Anlise do filme Nell (1994) luz da teoria histrico-cultural de Vigotski

O presente trabalho tem como objetivo analisar o filme Nell (1994), do diretor Michael Apted, e relacion-lo com a teoria de desenvolvimento histrico-cultural do psiclogo russo Lev Vigotski. Pretende-se considerar alguns centrais dessa abordagem, tais como o conceito de mediao, a relao entre pensamento e linguagem, alm dos aspectos sociais e culturais, que o autor considera como fundamentais para o desenvolvimento das funes psicolgicas superiores.Vigotski pretendia caracterizar os aspectos tipicamente humanos do comportamento e elaborar hipteses de como essas caractersticas se formaram ao longo da espcie humana e de como se desenvolvem durante a vida do indivduo (Vygotsky, 1984 p. 38 apud Rego, 1994, p. 21). As funes psicolgicas superiores, tais como a ateno voluntria, linguagem e pensamento abstrato, so consideradas pelo autor como tipicamente humanas, uma vez que se referem a processos conscientes intencionais, controle do prprio comportamento e liberdade do indivduo em relao s caractersticas do momento e espao presentes. Tais processos no seriam inatos na concepo do autor, j que se originam nas relaes entre os seres humanos e se desenvolvem ao longo do processo de internalizao. (Rego, 1994, p.39). O filme ento analisado tem como protagonista Nell, uma jovem de pouco mais de 20 anos, que sobrevive de maneira isolada em uma floresta isolada na Carolina do Norte (EUA). A personagem sempre viveu na regio com sua irm gmea, que faleceu ainda criana, e a sua me, que tinha sofrido abuso sexual, derrame e mais tarde decidiu morar com suas filhas pequenas longe da civilizao. Aps sua morte, Nell permaneceu sozinha e isolada no lugar. Ao ficar sabendo da existncia da moa, o mdico Jerome Lovell resolve estudar o comportamento deNell,e se admira com o modo com que ela consegue garantir sua sobrevivncia mesmo estando isolada de qualquer outro ser humano. Assim, pede ajuda psicloga Paula Olsen, o que causar problemas mais tarde pelas vises diferentes dos dois em relao a maneira de como integrar a garota na sociedade. Contudo, o que mais os impressiona o dialeto pronunciado por Nell, julgado inicialmente por eles como incompreensvel, mas que logo reconheceriam fortes marcas da lngua inglesa, ensinada por sua me, que fora vtima de um derrame, e possivelmente afsica.De acordo com Vigotski, desde o nascimento o ser humano est imerso em um ambiente sociocultural, e por meio de suas relaes com as outras pessoas ele se apropria das formas culturalmente dadas, como a linguagem, as ideias, as experincias, os modelos, ou seja, o modo de pensar e agir do seu grupo, internalizando esses processos. Todos os comportamentos exibidos por Nell no decorrer do filme demonstram a gnese social do ser humano.Contato ntimo com a natureza, uma linguagem idiossincrtica atravs de um ingls deficiente e aes expressas com uma fala egocntrica e com alto teor emocional so alguns exemplos de comportamentos tpicos de Nell observados no filme. Sob a tica vigotskiana, percebe-se que todos esses elementos no tem uma origem inata, completamente herdada ou restrita no plano biolgico. Nell nasceu e sempre viveu na floresta, ambiente em que se sentia bem e conhecido desde a infncia, como podemos ver na cenas em que se lembra de quando brincava com a irm no rio e pela floresta, atividades que at ento continuava a realizar. O ingls distorcido falado por Nell tambm fruto de suas fracas relaes sociais, principalmente com a me. A fala debilitada da mulher fez com que a filha aprendesse o idioma do seu pas daquela maneira, e a ausncia de outros contatos sociais fez com que a linguagem da protagonista permanecesse do jeito outrora ensinado. Para Vigotski, a linguagem um processo fundamental para o desenvolvimento das funes psicolgicas superiores nos seres humanos. Assim como em outras atividades realizadas pelo homem, o processo de aquisio da linguagem uma atividade mediadora entre signo e instrumento. Entretanto, ao contrrio do instrumento que tem uma relao direta e externa em relao aos objetos, ao signo no modifica em nada o objeto da relao psicolgica, constitui um meio de atividade interna dirigido para o controle do prprio indivduo. (Vygotsky, 1991, p. 62). Ou seja, a linguagem quanto atividade mediada, ocorrida internamente representando atividades externas de particular importncia para processos psquicos superiores como a inteligncia prtica, ateno voluntria, memria, etc.Com relao ao pensamento e linguagem, Vigotski afirma que ambos se originam separadamente, mas que se juntam e atuam de maneira interdependente com o desenvolvimento do indivduo. Antes do pensamento e a linguagem se associarem, existe, na criana pequena, uma fase pr-verbal no desenvolvimento do pensamento e uma fase pr-intelectual no desenvolvimento da linguagem. Na primeira, antes de dominar a linguagem, a criana demonstra capacidade de resolver problemas prticos, de utilizar instrumentos (como brinquedos) e meios indiretos para conseguir determinados objetivos. Embora no domine a linguagem enquanto sistema simblico, j utiliza manifestaes verbais, que indicam sobretudo reaes emocionais, como raiva, dor e alegria, mas que indicam uma comunicao difusa entre com as pessoas nessa fase pr-intelectual da linguagem.Contudo, por volta de dois anos, o percurso do pensamento encontra-se com a linguagem e inicia-se uma nova forma de funcionamento psicolgico: a fala torna-se intelectual, com funo simblica, generalizante, e o pensamento torna-se verbal, mediado por significados dados pela linguagem. Quando o pensamento e linguagem se unem, surgindo ento, o pensamento verbal e linguagem racional, o ser humano passa a ter a possibilidade de um funcionamento psicolgico mais sofisticado, mediado pelo sistema simblico de linguagem. A partir da, segundo Vigotski, o ser humano passa de um ser puramente biolgico para um ser scio histrico, dotado de uma linguagem, cultura e membro de uma sociedade.Com relao Nell, podemos dizer que ela, mesmo com mais de 20 anos, est na transio entre a fase pr-verbal do desenvolvimento do pensamento e da linguagem. Principalmente pela privao de contatos humanos que sofreu e pela linguagem defasada que teve acesso, a personagem ainda apresenta uma fala egocntrica, em que ainda nem aprendeu a utilizar o pronome eu para referir-se a si prpria. Nell ainda no consegue pensar sem falar, e sempre fala sozinha o que supostamente est pensando. Assim como nas etapas primitivas das crianas, Neo se expressa com um alto grau emocional, gritando, chorando e esperneando para conseguir o quer, e mesmo com o ingls imperfeito que fala, ainda no capaz de ter adequadamente uma falar interior, intrapsquica, capaz de supor e articular conceitos e ideias. O filme se encerra com Nell participando de uma reunio de amigos, e brincando com a filha de Lovell e Olsen. Agora a antiga menina selvagem teria maior convvio social e contato, mesmo que pequeno, com a cultura moderna estadunidense. Contudo, no que diz respeito s suas funes psicolgicas superiores, provavelmente nunca se assemelhariam com s de um indivduo mediano, uma vez que a garota foi privada de todo o contato social e cultural durante a infncia, perodo crtico de tempo limitado para o desenvolvimento dessas funes.

Referncias Bibliogrficas

LURIA, A. R. Vigotski. In: ________. A construo da mente. Traduzido por Marcelo Brando Cipolla. So Paulo: cone,1992. p.43-61.

REGO, Teresa Cristina. A cultura torna-se parte da natureza humana. In:________. VYGOTSKY: uma perspectiva histrico-cultural da educao. Petroplis: Vozes, 1995. p.37-50.

VYGOTSKY, L.S. Internalizao das funes psicolgicas superiores. In:________. A formao social da mente O desenvolvimento dos Processos Psicolgicos Superiores. Traduzido por Jos Cipolla Neto, Lus Silveira Menna Barreto, Solange Castro Afeche. Martins Fontes, 1991. p. 59-65.