nascimento, paulocésar; fernandes, mateus braga. a phrônesis, o herói e a pólis - rbcp-2015

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Revista Brasileira de Ciência Política, nº16. Brasília, janeiro - abril de 2015, pp. 273-292. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0103-335220151611 Paulo César Nascimento * e Mateus Braga Fernandes ** A phrônesis, o herói e a pólis: os paradoxos de Hannah Arendt como leitora dos Antigos e phronesis, the hero and the polis: paradoxes of Hannah Arendt as a reader of the Ancient * É professor adjunto do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: <paulo- [email protected]>. ** É doutorando em Ciência Política na UnB. E-mail: <[email protected]>. Dar razão aos antigos não pode significar um retorno a eles nem sua imitação. Hans-Georg Gadamer Hannah Arendt procura resgatar uma particularidade da política – uma certa dignidade – que não somente parece ter escapado de nosso entendimen- to e de nossas práticas como, de algum modo, parece ter sido mais do que esgarçada ao longo dos séculos, chegando a ser eclipsada desde o início de sua fundação. Para compreender o pensamento da autora, o primeiro passo deve ser o de resgatar o sentido original da política. Não é porque careça de algum sentido que nos indagamos sobre o sentido da política, mas porque parece não haver mais nenhum sentido para acreditarmos no sentido original da política, o qual, para Hannah Arendt, é a liberdade. Para fundamentar sua teoria política, Arendt faz uma articulação entre aspectos filosóficos, literários e históricos da tradição iniciada por Homero e Aristóteles. Dessa forma, para compreender essa abordagem, é necessário verificar quais são as implicações dessas leituras sobre suas definições do ethos e do logos do homem político e sobre suas ideias de restauração do espaço político a partir das divergentes configurações da pólis grega. Assim, para dizê-lo de modo mais específico, este artigo surge da perplexi- dade dos autores ao tentarem articular a constelação formada por duas ideias

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Este artigo analisa as leituras de Homero e de Aristóteles feitas por Hannah Arendt. Partin-do das reinterpretações do conceito de coragem, phrônesis e política feitas pela filósofa,apontamos naquelas leituras indícios das definições arendtianas do ethos do homempolítico e do surgimento do espaço público. O artigo também discute dois paradoxosno pensamento de Arendt: o paralelo entre a coragem guerreira do herói homérico e avirtude sagaz da phrônesis aristotélica, por um lado, e, por outro, a ação política enquantoreveladora do agente no espaço público e atividade coletiva voltada para a criação emanutenção de instituições. Sustentamos, como conclusão, que a releitura de Homero eAristóteles, por mais paradoxal que seja, constitui a fonte teórica para a separação radicalentre violência e política, realizada por Arendt.

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  • Revista Brasileira de Cincia Poltica, n16. Braslia, janeiro - abril de 2015, pp. 273-292. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0103-335220151611

    Paulo Csar Nascimento* e Mateus Braga Fernandes**

    A phrnesis, o heri e a plis:os paradoxos de Hannah Arendt como leitora dos Antigos

    The phronesis, the hero and the polis: paradoxes of Hannah Arendt as a reader of the Ancient

    * professor adjunto do Instituto de Cincia Poltica da Universidade de Braslia (UnB). E-mail: .

    ** doutorando em Cincia Poltica na UnB. E-mail: .

    Dar razo aos antigos no pode significar um retorno a eles nem sua imitao.Hans-Georg Gadamer

    Hannah Arendt procura resgatar uma particularidade da poltica uma certa dignidade que no somente parece ter escapado de nosso entendimen-to e de nossas prticas como, de algum modo, parece ter sido mais do que esgarada ao longo dos sculos, chegando a ser eclipsada desde o incio de sua fundao. Para compreender o pensamento da autora, o primeiro passo deve ser o de resgatar o sentido original da poltica. No porque carea de algum sentido que nos indagamos sobre o sentido da poltica, mas porque parece no haver mais nenhum sentido para acreditarmos no sentido original da poltica, o qual, para Hannah Arendt, a liberdade.

    Para fundamentar sua teoria poltica, Arendt faz uma articulao entre aspectos filosficos, literrios e histricos da tradio iniciada por Homero e Aristteles. Dessa forma, para compreender essa abordagem, necessrio verificar quais so as implicaes dessas leituras sobre suas definies do ethos e do logos do homem poltico e sobre suas ideias de restaurao do espao poltico a partir das divergentes configuraes da plis grega.

    Assim, para diz-lo de modo mais especfico, este artigo surge da perplexi-dade dos autores ao tentarem articular a constelao formada por duas ideias

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    estudadas por Hannah Arendt, sob o pano de fundo que separa radicalmente a violncia do poder poltico: (i) a relao da phrnesis aristotlica com a exaltao da coragem como virtude poltica e sua exemplificao por meio da figura de Aquiles, de Homero; e (ii) as configuraes agonsticas da plis grega em relao estabilidade poltica alcanada com as instituies polticas romanas. Dessas ideias surgem dois paradoxos1. O primeiro paradoxo trata da vinculao do ethos do heri homrico, caracterizado pela coragem, virtude poltica aristotlica da phrnesis. Portanto, diz respeito necessidade de Hannah Arendt articular seu entendimento histrico-literrio de Homero com sua leitura filosfica de Aristteles. J o segundo paradoxo aparece na descrio do espao pblico como locus de revelao do agente por meio da ao e do discurso, ao mesmo tempo que fonte do surgimento de instituies e locus de discusses sobre elas. Apresenta-se, assim, a tenso entre a imagem de fundao da plis advinda de um acampamento militar permanente e a imagem de organizao da plis enquanto criao e manuteno de institui-es civis e polticas. Para isso, abordaremos tambm os aspectos histricos relacionados aos desenvolvimentos filosficos propostos pela autora2.

    Mais alm da imediata aparncia de uma recapitulao nostlgica ou de uma comparao anacrnica, o que se v a autora alem debruando-se, por um lado, sobre a difcil relao entre poltica e violncia, entre a pala-vra e a fora, entre a persuaso e a coao; e, por outro, sobre a complicada hierarquizao tica entre pensamento e prtica, quando situada ao lado da equivalncia poltica entre discurso e ao.

    O paradoxo da autonomia heroica: o heri entre a imprudncia da coragem e o exerccio da phrnesis

    O pensamento poltico de Hannah Arendt situa-se entre a viso que a autora tem do heri homrico que enfatiza a poltica como instncia de

    1 Querendo afirmar que algumas das ideias apresentadas por Hannah Arendt so paradoxais, temos de reafirmar que, no entanto, elas no so necessariamente ideias contrrias opinio comum como sugere a etimologia da associao entre o prefixo para (contrrio a, alterado ou oposto de) e o sufixo doxa (opinio ou fama) na palavra paradoxo. Isto , as ideias que iremos investigar nos levam a possibilidades aparentemente divergentes, embora consigam sustentar seu sentido no contexto da obra da autora e, at mesmo, apoiado nas leituras de Hannah Arendt que podem ter dado origem a tais ideias. Em outras palavras, estamos sugerindo que as ideias que vamos abordar no deveriam ser facilmente descartadas como meras contradies quando se diz o contrrio do que se havia sido dito anteriormente, procurando sustentar duas afirmaes opostas em valor e em sentido.

    2 No entanto, Arendt frisa que essa parte de seu argumento terico e metafrico, no histrico.

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    revelao do agente no (e por meio do) discurso e ao, na pluralidade do espao pblico e outra que se preocupa com a poltica enquanto atividade coletiva voltada para a criao de instituies, cujas funes seriam a de mediar as relaes entre classes e as contradies entre Estado e economia, bem como a de assegurar a universalidade dos direitos dos cidados e as possibilidades concretas da atividade poltica.

    Nossa primeira tarefa ser compreender que a viso homrica da poltica arendtiana, que ressalta a glria dos grandes feitos e dos grandes discursos dos heris (cf. Arendt, 2001, p. 210-11)3, apresenta-se como a marca da rup-tura provocada pela ao em seu incio, como um acontecimento indito, carregado de possibilidades e gerador de milagres e da novidade alcan-ada com a pluralidade na continuidade da ao. A pluralidade, segundo Arendt, a condio pela qual se sustenta a poltica e, consequentemente, a liberdade. Vale a ressalva, portanto, de que a palavra heri, ela mesma guarda em sua significao somente a ideia de homem livre4 e, embora implicasse originalmente certa distino, essa distino estava ao alcance de quaisquer desses homens (cf. Arendt, 2001, p. 199, nota 10) que ousassem conviver e agir em conjunto com outros homens e que tivessem condies para tanto.

    Para Arendt no importar, contudo, o objetivo nem o contedo dessa ao poltica, se comparada usual categoria de meios-fins, que precisa tanto de um contedo quanto de uma finalidade para fundamentar e dar seguimento ao. O foco na revelao de si e do acontecimento, que a ao permite, nos obriga a aceitar que o importante a atuao e a concertao, o lanar-se ao espao em que a ao possa ser iniciada e ento continuada por outros, e no que o ator tenha conseguido ou venha a conseguir, com sua ao individual, aquele objetivo prvia e intimamente determinado.

    Para compreendermos melhor a proposta de ao poltica arendtiana, precisamos igualmente nos aproximar da ideia de phrnesis, tal como con-cebida por Aristteles. No difcil ver que no cerne do pensamento moral aristotlico, exposto em sua tica a Nicmaco, est a importncia de se viver plenamente uma vida para que sejamos felizes. Essa plenitude, que julgamos, em princpio, como um modo extremado de se viver uma vida, porquanto

    3 Arendt (2001, p. 34) vai dizer que a estatura do Aquiles homrico s pode ser compreendida quando se o v como autor de grandes feitos e pronunciador de grandes palavras.

    4 O heri revelado pela histria no precisa ter qualidades heroicas; originalmente, isto , em Homero, a palavra heri era apenas um modo de designar qualquer homem livre que houvesse participado da aventura troiana e do qual se podia contar uma histria (Arendt, 2001, p. 199).

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    elevaria sua potncia ao mximo, paradoxalmente o termo mdio que de-ver balizar nosso entendimento sobre a phrnesis. O que Aristteles busca a harmonizao entre a boa ao (eupraxia) e o desejvel de ser feito em cada situao. A partir disso, vemos que, se, para Aristteles, a phrnesis a virtude poltica por excelncia, em Homero, a coragem o que promove a distino do guerreiro.

    Hannah Arendt, por sua vez, vincula a poltica ao ethos homrico em diversas obras, e explicitamente na coletnea O que poltica?. O heri homrico e o homem poltico parecem confundir-se na busca por glria e imortalidade. Ambos circulam por espaos no privados, em convivncia com pares, que so seus iguais em liberdade. A coragem, atributo exemplar do heri homrico, para a pensadora alem a maior das virtudes (aretai) polticas (cf. Arendt, 1999, p. 53; 2001, p. 45-6). Assim, podemos argumentar que, para a autora, a phrnesis deveria estar articulada coragem. No en-tanto, preciso antes saber se a phrnesis segue a ideia de moderao, como expresso em prudentia, ou o seu contrrio, no exerccio ativo (energeia) da excelncia (aret), que um tipo de imoderao. A tradio escolstica, ao traduzir o termo grego para o latim, optou por associar a phrnesis ideia de prudentia. Em nosso argumento, no entanto, destacamos o fato de que Arendt caminha na direo contrria ao exaltar a coragem como virtude po-ltica, pretendendo resgatar o sentido original aristotlico e compatibiliz-lo com o de Homero. Neste ponto, portanto, devemos buscar a interpretao arendtiana do Aristteles da tica a Nicmaco, para confront-la leitura que a autora faz do heri homrico, de onde ela extrai as caractersticas que lhe servem de analogia poltica. Ao percorrermos esse caminho, preten-demos buscar respostas seguinte questo: se a poltica enquanto forma de embate discursivo (agn) no significa um apelo violncia, o paradoxo entre a nfase arendtiana na no violncia da ao poltica e o carter trgico e agonista daqueles que agem na plis desapareceria?

    De incio, poderamos adotar, como recomendam vrios comentadores, a traduo de phrnesis por sabedoria, inteligncia ou por discernimento5. No entanto, um aspecto importante dessa virtude sua conexo intrnseca

    5 Assim fazem Ren Antoine Gauthier e Jean Yves Jolif, tradutores e comentadores para a lngua francesa da tica a Nicmaco; William David Ross, tradutor para o ingls; alm de Julia Annas (em The morality of happiness), que segue o tradutor ingls Terence Irwin. Comentadores como Carlo Natali (em The wisdom of Aristotle) e John Burnet (em The ethics of Aristotle) utilizam-se da palavra em grego ou transliterada. Ver outros aspectos sobre essa questo em Spinelli (2005, p. 6).

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    ao e prxis ainda permaneceria oculto nessas definies6. Assim, preferimos traduzir por sagacidade, para podermos evidenciar que a base da noo de phrnesis no um tipo moderado de atitude ou uma vida cau-telosa e comedida, mas sim a capacidade de ter atitudes sagazes, realizando escolhas sbias, diante dos desafios apresentados pelo cotidiano sempre com vistas eudaimonia, ou seja, vida plena7. Isso pode exigir por vezes atitudes imoderadas (hbris), quando um problema profundo pede uma soluo radical como a melhor alternativa.

    Se vemos que a phrnesis no pode estar desligada de uma prtica cotidia-na e singular, como um exerccio ativo (energeia) e no como mera repetio (kinesis), devemos agora tentar compreender os motivos que levam Arendt a exaltar a coragem como a virtude poltica por excelncia8.

    No nos parece que haja, por parte da autora alem, escolha da cora-gem em detrimento da phrnesis, ou ainda de outras virtudes morais, mas a simples percepo de que a coragem aquela disposio do carter que est ntima e diretamente ligada iniciativa e novidade. E tal ligao, no contexto arendtiano, visa recuperao da importncia da ao enquanto possibilidade de mudana e enquanto atividade na qual, e por meio da qual, se revela o quem do agente, no somente o que ele ou faz.

    A coragem, portanto, parece ser o elemento ausente nas condies polticas atuais para que se possa, efetivamente, retomar a phrnesis como virtude poltica. Isto , parece ser o melhor exerccio para estimular a ao coletiva e concertada dos indivduos e para restaurar a conexo entre gover-nar (archein) e realizar (prattein)9 ou, em outras palavras, para superarmos

    6 E isso porque, como relembra Spinelli (2005, p. 6, nota 3; grifo da autora), que escreveu sua dissertao sobre a phrnesis na tica a Nicmaco, a phrnesis uma virtude do intelecto prtico, isto , que no se limita apenas a julgar ou discernir, mas est intrinsecamente relacionada ao.

    7 Ver comentrios de Arendt (2001, p. 205-06) sobre sua utilizao da noo grega de eudaimonia.8 A meno coragem est espalhada em diversos pontos da obra arendtiana. Mas se pode ver

    explicitamente essa exaltao em Arendt (1999, p. 53; 2001, p. 45-6 e 199). Em Sobre a violncia, por exemplo, existe uma sntese do que seria a virtude da coragem em movimentos polticos atualmente: essa gerao parece caracterizar-se em qualquer lugar pela pura coragem, por uma surpreendente disposio para a ao e por uma confiana no menos surpreendente na possibilidade de mudana (Arendt, 2009, p. 31). A coragem descrita por Aristteles na tica a Nicmaco no captulo 6 do livro III (cf. Aristteles, 2001, p. 60-5, 1115 a6-1117b 29). Ele tambm adverte que h cinco outras espcies da mesma disposio moral que no devem ser confundidas com a coragem, a saber: a coragem do cidado-soldado; a coragem como experincia prvia e conhecimento; o arrebatamento; a confiana que gera ousadia; e a ignorncia do perigo (cf. Aristteles, 2001, p. 62-5, 1116 a8-1117 b8).

    9 Tanto no Fragmento 3a de O que poltica?, como em A condio humana, Arendt (1999, p. 44; 2001, p. 202) relembra que as palavras gregas e latinas para designar o incio de uma ao, o comeo de um

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    o paradigma do que Holloway (2003, p. 43-51) denomina como a fratura instaurada pelo poder-sobre, e realizarmos aquilo caracterizado como poder--para. Em resumo, a coragem pode fazer do poder um poder-fazer.

    Diante da ideia de que, retirada a coragem do carter humano no se pode realizar a poltica em uma vida plena, poderamos finalmente concluir que o discernimento prtico e contnuo entre o que necessrio e o que no necessrio para a eudaimonia que parece estar em jogo. Em tempos em que a poltica converte-se em mera estratgia, a coragem de lanar-se ao concertada precisa associar-se novamente sagacidade da phrnesis, para que o poder-fazer no seja distinto do queremos-e-podemos, do qual fala Arendt (2009, p. 107) na concluso de seu livro Sobre a violncia.

    Mesmo com isso posto, talvez ainda seja difcil compreender a escolha arbitrria de Arendt por exaltar a coragem como virtude poltica, pois uma vez que a coragem esteja associada imagem de Aquiles, heri homrico pico e guerreiro (Arendt, 2005, p. 307), estaremos, paradoxalmente, diante de uma ideia belicista o que seria aparentemente contrrio noo da poltica como o oposto da violncia10. Mas ela crucial para que se chegue ousada afirmao da correspondncia entre ao e pluralidade. Nas palavras de Arendt (2001, p. 15; grifo da autora), a ao, nica atividade que se exerce diretamente entre os homens e sem a mediao das coisas ou da matria, corresponde condio humana da pluralidade, que especificamente a condio [] de toda vida poltica. Vejamos em que aspectos a coragem o que permite essa correspondncia.

    A origem latina da palavra coragem deixa clara a associao entre as palavras corao (que tambm possua a conotao de esprito [como em

    processo, eram respectivamente archein e agere. Essas palavras tm especial importncia, pois regis-tram o fato de que parte da experincia humana, desde tempos antigos, a possibilidade mesmo que individual, em princpio de desencadear um processo (Arendt, 1999, p. 44.). Mas no livro de 1958, A condio humana, ela apresenta ainda outros dois verbos, um grego e um latino prattein e gerere, respectivamente, para indicar o duplo aspecto de toda ao: o comeo (archein/agere) e a realizao (prattein/gerere). E ressalta que, em ambos os idiomas, as palavras que originalmente des-ignavam apenas a segunda parte da ao, ou seja, sua realizao, passaram a ser os termos aceitos para designar a ao em geral, enquanto as palavras que designavam o comeo da ao ganharam significado especial, pelo menos na linguagem poltica: archein passou a significar principalmente governar, quando empregada de maneira especfica, e agere passou a significar liderar, em vez de pr em movimento (cf. Arendt, 1999, p. 57; 2001, p. 202). Essa mudana explicita, sobremaneira, a separao entre o governo que prope e o agente que executa.

    10 Isto , se tomarmos a poltica de que se trata nesse texto como sinnimo de poder (cf. Arendt, 2009, p. 73-4).

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    ingls mind, soul]) e ao. Fazer do corao ou do esprito um verbo, torn-lo aparente no ato de quem o possui: essa talvez fosse a ideia presente nos primeiros que formularam tal conceito; a coragem seria, portanto, a ao do corao, a autntica e espontnea atitude do esprito ativo.

    A prtica da coragem, dessa maneira, diz respeito fundamentalmente ao modo como se enfrentam os desafios. O corajoso age, resiste ou desiste por uma finalidade nobilitante; em qualquer dos casos, mantm-se confiante e com uma disposio esperanosa. Ele no sustenta um apego demasiado vida e no foge do que lhe aflitivo11. Mas, no exerccio ativo de sua ex-celncia, no dispensa a companhia de outras pessoas, de modo que sua atividade ser mais contnua e ser mais agradvel em si (Aristteles, 2001, p. 186, 1170 a 23) se realizada com outras pessoas boas. Assim, se no for continuamente reafirmada12 e reconhecida in concert, a virtude poltica da coragem ser ainda pr-poltica, como o a liberdade da espontaneidade, enfatiza Arendt (1999, p. 59).

    A despeito de toda essa descrio, temos de concordar que, de fato, o homem corajoso parece temerrio em relao ao covarde, e covarde em re-lao ao temerrio (Aristteles, 2001, p. 45, 1109a). Isso nos indica que a situao intermediria deve ser louvada em todas as circunstncias, embora o ponto central do argumento seja notar que s vezes devemos inclinar-nos no sentido do excesso, e s vezes no sentido da falta, pois assim atingiremos mais facilmente o meio termo que certo (Aristteles, 2001, p. 47, 1109b 33). Mais ainda, como afirma Spinelli (2005, p. 78) sobre a phrnesis na tica a Nicmaco, devemos ter em mente que, embora em si mesma a virtude consista em uma mediania, com relao ao que bom e reta razo, ela um extremo, pois a nica disposio que est de acordo com eles e capaz de alcan-los. O exerccio da coragem, portanto, expandido pela razo e limitado pelas circunstncias, e no o contrrio.

    11 Vale recordar que, para Aristteles, na interpretao de Arendt (2001, p. 25, nota 15), a imortalidade daqueles que permanecem na histria por seus feitos e palavras dependia, tambm, de algum desdm em relao s necessidades da vida, e que, como ela reafirma, o preo da eudaimonia a prpria vida (Arendt, 2001, p. 206). No nos parece que tal ideia esteja to distante da revitalizao que Nietzsche (2009, p. 30) prope, para quem os espritos nobres tm uma atitude de indiferena, demonstrando seu desprezo por segurana, corpo, vida, bem-estar.

    12 Aristteles (2001, p. 25, 1098a) diz que tal exerccio ativo [da excelncia] deve estender-se por toda a vida. Tambm o que se v descrito nos relatos etnogrficos de Pierre Clastres (2004, p. 299), quando ele diz que a vida guerreira um combate perptuo.

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    Sobre as contradies da plis e do heriDe todo modo, preciso compreender essa busca pela glria dos grandes

    feitos e dos grandes discursos dentro de seu registro histrico. Vale recordar que Aristteles deixa claro que a eudaimonia uma conquista reafirmada, ainda que seja feita naturalmente. Com isso, o espao dessa reafirmao justamente a causa e a consequncia da criao e da manuteno da plis, como um lugar duradouro e palpvel que possa sobreviver tanto aos feitos memorveis quantos aos nomes dos memorveis autores, e possa ser trans-mitido posteridade na sequncia das geraes (Arendt, 1999, p. 54). Mas a plis no pode sobreviver como um espao poltico de liberdade e pluralidade quando surge um heri que age e fala por todos. Portanto, parece que so justamente os aspectos trgicos e lricos do heri que mantm a contradio13 que faz viver a plis a contradio de ser um espao de iguais ao mesmo tempo que transforma em virtude a coragem de falar e de agir qua indivduo, como uma revelao de si e de seu mundo.

    No entanto, notvel que um excessivo arrebatamento, possvel causa-dor de violncia, ajuda os homens corajosos a empreenderem suas aes. E se possvel supor que Aristteles concordaria com a afirmao, tambm podemos dizer que Arendt no a negaria14.

    Arendt afirma que a ao (prxis) e o discurso (lexis), alm de terem a afinidade de serem da mesma categoria e da mesma espcie e de serem as mais altas de todas as capacidade humanas, tambm figuram desde os tempos pr-plis como fundamentais para o surgimento da esfera pblico-poltica, a esfera dos negcios humanos. E assim, como o autor de grandes feitos e o pronunciador de grandes palavras (Homero, Ilada, apud Arendt, 2001, p. 34, nota 6) que essa autora apresenta tanto Aquiles, dos tempos picos de Ho-mero, quanto Antgona, dos tempos trgicos de Sfocles. Com o surgimento e a reconfigurao da plis, entretanto, a ao e o discurso separaram-se e tornaram-se atividades cada vez mais independentes. A nfase passou da ao

    13 Vale mencionar a explicitao que Rachel Gazolla (2001, p. 62) faz sobre essa contradio presente no heri: o heri aquele que tem a fora de estar em hbris, isso o que lhe d a estatura do heri. S a ele cabe a hbris no sentido trgico. Ao homem comum compete amedrontar-se com tal pos-sibilidade e consequncias.

    14 Para Aristteles (2001, p. 63, 1117a), os homens corajosos agem por causa da honra, mas o arrebata-mento os ajuda. E Arendt (2009, p. 85) vai dizer que a violncia s tem sentido quando uma re-ao e tem medida, como na defesa prpria. Mas torna-se irracional no momento em que racionalizada e se converte em princpio de ao.

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    para o discurso, e para o discurso como meio de persuaso (Arendt, 2001, p. 35). Com isso, se o espao de ao tivesse se reconfigurado a ser limitado por uma lgica da escassez (Urrutia, 2001, p. 185), em que a luta travada de modo a fazer do vencedor aquele que conseguiu angariar mais recursos para continuar sua ao, ento o heri homrico teria de se afastar da poltica e se reaproximar da guerra entendida como a guerra da necessidade pelos recursos escassos, aqueles com os quais ele pode levar suas aes a cabo. A plis, caracterizada pela palavra, pela publicidade e pela igualdade, como apresentada por Vernant (2004, p. 53-72), cria essas instituies justamente na tentativa de evitar tal guerra.

    Assim, mesmo estando coragem e violncia separadas por princpio, os traos marcadamente belicosos e violentos de heris como Aquiles deixaram de ser relevantes para o que realmente acontecia na gora conforme a plis foi se reconfigurando. Ou seja, a violncia dos heris homricos ainda uma atitude pr-poltica. O que era passvel de ser observado e vivenciado nos palcos das tragdias e nos tempos da criao da plis eram as discusses e as conflitivas aes humanas, e no mais os relatos picos.

    Na plis, no havia mais espao para as grandiosas aes de guerra nem para as pequenas violncias pr-polticas15. Portanto, se a discusso sobre o destino comum passava a lidar com leis e instituies, a coragem precisava se adaptar a essa nova dimenso: o tipo de coragem que era exercida com a violncia pica transformou-se na coragem que s possvel ser exercitada autonomamente no trato com outros e cuja excelncia s experienciada na autolimitao da phrnesis.

    Sobre as mudanas na plis e no heri: da pica lrica J que afirmamos a validade conceitual da phrnesis para compreender a

    exaltao da coragem por Arendt, justamente essa viragem decisiva na hist-ria da plis (cf. Vernant, 2004, p. 68) tambm uma transformao no conceito de coragem, isto , de sua associao violncia pica para uma aproximao phrnesis aquilo que precisa ser considerado para que saibamos porque ainda precisaramos nos posicionar historicamente entre estes dois momentos:

    15 Em diversas pontos de sua obra, Arendt deixa clara a ideia de que, em seu resgate da poltica grega da plis, ela pretende afirmar que a guerra est fora dos limites do poltico, assim como a violncia e a ordem (que no visa persuaso, e se mantm por meio da fora ou outro tipo de coero), que so atitudes pr-polticas ou despticas (cf. Arendt, 1999, p. 59-61; 2001, p. 35-6).

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    entre a plis fundada sobre a base aristocrtica da eunomia (de Slon) e a plis refundada sobre uma nova base, democrtica, da isonomia (de Clstenes).

    Assim, nos fins do sculo VII a.C., com as primeiras configuraes da plis grega, o que vemos o surgimento da poesia lrica em oposio pica. Mais tarde, j no sculo V a.C., veremos que a tragdia, numa combinao de elementos picos e lricos, que passa a ser a expresso tico-esttica que melhor apresenta a relao conflituosa entre os valores cvicos e pessoais; ou seja, a tragdia pretende expressar os valores de um conjunto cvico e seus feitos, como o faz a pica; tambm pessoal [a palavra pessoa exprime aquele que se sabe diferente entre diferentes] como a lrica (Gazolla, 2001, p. 36).

    No sentido homrico, a poltica se desvia da ideia de liberdade porque o heri homrico poderia agir sozinho. Um heri homrico, como Hrcules, pode realizar grandes faanhas mesmo sozinho e precisava dos homens apenas para receber a notcia sobre elas (Arendt, 1999, p. 59). E ento vemos que, para Arendt (1999, p. 102), o indivduo em seu isolamento jamais livre; s pode s-lo quando adentra o solo da plis e age nele. Com isso em mente, a sada para a discusso sobre o tema do heri sobre qual aspecto iremos abord-lo pico ou lrico? , uma vez que a palavra heri, ela mesma, significava homem livre, como vimos.

    H, portanto, que se resgatar a simbiose original entre o agir e o falar, reconhecendo-se que a liberdade do falar, em especial, aquela atividade que s possvel no trato com outros, como relembra Arendt (1999, p. 59). Para diz-lo de outro modo, pretendemos que essa liberdade de falar seja como aquela performance que revela o agente no, e atravs do, ato, fazen-do aparecer, com ele, a estrutura do mundo que o constitui e, portanto, diferente da performance individualizante16. Ento, a opo pela lrica nos abriria alternativas de expor e de explorar a excelncia do heri em meio a suas marcantes fragilidades, e a partir das condies particulares do mundo que seu discurso performativo projeta. Portanto, se o campo de escolhas parece estar aberto, devemos confrontar os traos marcantes tanto da pica quanto da lrica, para que possamos, ao final, olhar novamente para a figura do heri e saber qual o tipo de poesia que se far dele.

    A figura de um heri pico, que encarna em si as paixes de um povo, uma imagem autocrtica que deve estar fora do que se quer entender por

    16 Para saber mais sobre a grande diferena entre ato performtico e ato performativo, ver Butler (2003, p. 205).

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    poltica cujo sentido a liberdade e, consequentemente, por democra-cia. Contrariamente a isso, o heri lrico expressa sua paixo pessoal, em comunho s paixes que tm os demais e no em substituio ou por generalizao universalizante.

    A tragdia convida partilha das emoes vivenciadas pelo heri, pois expe os extremos das situaes, dos erros, das escolhas. O foco da tragdia no o ator, o seu personagem, mas a ao e a intriga, o acontecimento. por isso que a cidade reaparece nas cenas dramatizadas pela tragdia, e que cada cidado tem a oportunidade de experimentar seus prprios conflitos e os conflitos que ele tem com a coletividade17. Assim, como no desdobra-mento da lrica, mas distintamente dela, na tragdia a cidade encontrou uma forma de purificar a hbris, as desmedidas ou certa imoderao nas palavras e atitudes, que, como vimos, paradoxalmente surgiam e mantinham a cidade em sua dynmeis18, em seu movimento de restaurao.

    A tragdia, portanto, apresenta-se como a primeira experincia poltica de pluralidade humana porque desenvolve-se: (i) a partir dos conflitos vividos cotidianamente pelos cidados da plis e no choque entre a manuteno do ethos tradicional, que reverencia os heris antigos e seus feitos memorveis; e (ii) no questionamento desse mesmo ethos, por conta da descoberta de novas institucionalidades, afirmadoras tanto do singular lrico quanto do coletivo pico, com uma interioridade que no se aparta totalmente do pblico-poltico.

    O paradoxo apontado na leitura que Hannah Arendt faz do heri hom-rico e da virtude aristotlica da phrnesis , dessa forma, atenuado ao rein-terpretarmos o significado dos conceitos de coragem e da prpria phrnesis como sagacidade. Alm disso, as mudanas ocorridas na plis grega com a passagem da violncia pica para a hegemonia da palavra no espao pbli-co fenmeno este que tambm se manifesta no surgimento da tragdia , somente reforam essa convico.

    17 Como enfatiza Gazolla (2001, p. 49), o trgico recua ao pico e ao lrico na medida em que, quanto ao primeiro, alm da narrao e dos personagens do coro, quer representar os mitos heroicos, e quanto ao segundo, alm da musicalidade e dos gestos, deixa as falas atravessadas pelas emoes e pelas dificuldades em viv-las.

    18 Essa dinmica poltica um sinnimo da potncia do poder na plis e revela claramente a relao dos gregos com o poder, com o seu poder: ao mesmo tempo que ele estabelece a dinmica que move a cidade e que traz consigo as possibilidades de superao para os problemas coletivos, carrega junto o efeito catico de ter de resolver as injustias pelas reparaes ou restauraes da ordem. Alm das referncias em Vernant (2004, p. 115-25; 129-35), Castoriadis (1987, p. 301-13) e Arendt (2001, p. 204, 212), ver tambm Duarte (2009, p. 144).

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    Ainda assim, tanto em sua anlise do heri homrico que realiza grandes feitos, como em sua interpretao da poltica realizada atravs do discurso, Arendt privilegia a revelao do agente no espao pblico, dando pouca ateno ligao entre poltica e instituies, apesar de ser historicamente observvel que as mudanas que levaram criao da plis dos sculos V e IV a.C., ao surgimento da tragdia e expanso da democracia foram todas elas acompanhadas do fortalecimento das leis e das instituies em Atenas sem contar o pice do desenvolvimento poltico romano: a legislao e a funda-o (Arendt, 2001, p. 208). Como importantes estudiosos da Grcia clssica assinalaram, a poltica no espao pblico passa a ser em larga medida uma discusso sobre instituies19. Estamos aqui, portanto, diante de outro apa-rente paradoxo no pensamento de Hannah Arendt, o qual trataremos a seguir.

    O paradoxo da autolimitao institucional: a revelao do agente e a instncia de criao de instituies

    Este segundo paradoxo que identificamos no pensamento de Hannah Arendt entre um heri homrico que se revela na pluralidade do espao pblico e a poltica enquanto atividade coletiva voltada para a criao e ma-nuteno de instituies envolve ainda outro aspecto da poltica que muito caro a Arendt: a imprevisibilidade da ao humana. Isso porque a revelao do agente no espao pblico depende da originalidade e da criatividade de sua ao, e as leis e instituies tendem a padronizar o comportamento poltico. Na obra Sobre a Revoluo, ao analisar a contradio entre a estabilidade de uma repblica e a continuidade do esprito revolucionrio, Arendt mostra visvel preocupao com o declnio do agir poltico que o fortalecimento das leis acarreta20. Previsvel e padronizado, o agir poltico pode transfigurar-se em uma relao meios-fins semelhante fabricao (piesis). Radicalizando essa preocupao, Arendt (1999, p. 60-1; 2001, p. 207-209) chega a relembrar que at mesmo o ato de legislar, para os gregos, era pr-poltico, j que a feitura

    19 Ver, a esse respeito, os textos de Castoriadis, A polis grega e a criao da democracia; e Antropogonia em squilo e autocriao do homem em Sfocles (1987, p. 277-323; 2004, p. 19-46 respectivamente); e tambm Vernant (2004).

    20 Arendt descreve a perplexidade que tomou conta de Thomas Jefferson quando este sentiu que a Constituio norte-americana estabilizava a Repblica ao preo da castrao da ao poltica e do esprito de rebeldia, que eram ento a prpria garantia da liberdade. Da que a autora cite o desabafo de Jefferson: a rvore da liberdade deve ser regada de tempos em tempos com o sangue dos patri-otas e tiranos. o seu fertilizante natural (Arendt, 1990, p. 186-87).

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    de leis assemelhar-se-ia fabricao e antecederia o espao pblico-poltico. Mais ainda, vai dizer Arendt (2001, p. 207), o trabalho do legislador devia ser executado e terminado antes que a atividade poltica pudesse comear.

    Para entendermos melhor a viso de Hannah Arendt a respeito da rela-o entre leis e poltica, e o paradoxo que estamos analisando, necessrio recapitular alguns pontos centrais do pensamento da autora.

    Uma das principais preocupaes tericas de Arendt, como assinalamos no incio deste artigo, e como do conhecimento de qualquer estudioso de sua obra, a tentativa de resgatar a dignidade da poltica, que teria sido perdida, segundo ela, na tradio do pensamento ocidental21. A pensadora alem faz uma crtica da era moderna justamente nesse sentido: as sociedades modernas so o corolrio do definhamento da poltica e de sua substituio pela administrao das coisas e pelas atividades econmicas. Quando ela usa o conceitual grego para analisar a era moderna, Arendt no est sofrendo de nostalgia helnica, pois sabe que uma volta ao passado impossvel. Ape-nas est tentando repensar a poltica no intuito de elevar sua importncia, mas sem sugerir caminhos concretos para resgatar a poltica de seu oprbrio, j que isso depende de aes humanas e no de frmulas tericas.

    Arendt identifica a perda da dignidade da poltica j no incio do pen-samento ocidental, ou seja, na filosofia poltica de Plato, desenvolvida no contexto da decadncia da plis ateniense, e interpreta a morte de Scrates como um momento de inflexo que no meramente simblico, mas re-velador de um processo de rompimento entre filosofia e poltica. a partir do estranhamento entre estes dois modos de vida que Plato elabora uma teoria das ideias voltada a subordinar os assuntos humanos aos ditames do pensar filosfico. O que incomodava Plato na atividade poltica porque concorria para colocar a vida do filsofo em perigo era a imprevisibilida-de da ao poltica, provavelmente acentuada pelo carter agonstico grego e pela contingncia inerente aos assuntos humanos22. Domar a poltica, submetendo os assuntos humanos a uma ordem baseada seja no poder do rei-filsofo, seja em leis feitas por sbios, caracterizou o esforo terico de Plato, como os textos de sua velhice indicam23.

    21 A dignidade da poltica, alis, tema de interessante coletnea de textos de Hannah Arendt (1999), cuja preocupao justamente resgatar o domnio da poltica do oprbrio a que foi condenada pela tradio ocidental de pensamento.

    22 Sobre a empresa da escola socrtica em relao imprevisibilidade da ao, ver Arendt (2001, p. 208).23 Em trs dilogos importantes A Repblica, O estadista e As leis , Plato elimina a autonomia da poltica

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    Assim, na tradio do pensamento ocidental inaugurada por Plato, a poltica passa a ser submetida filosofia e teoria, ou, como diramos mais modernamente, ideologia. Hannah Arendt viu muito bem que o pensa-mento de Plato passa a conceber a prxis poltica como fabricao isto , como piesis, porque assim como a fabricao permite a previsibilidade da atividade do arteso e d a ela utilidade e valor de troca (o carpinteiro, por exemplo, s tem de seguir a ideia da mesa que est em sua mente para poder fabric-la, dar-lhe uso e vend-la), o pensar filosfico, ao indicar regras e normas para a conduta poltica, eliminaria a imprevisibilidade presente nos assuntos humanos e garantiria ao fabricante ser senhor de si mesmo e de seus atos (Arendt, 2001, p. 157). Esse rei-filsofo, portanto, quando visto como um poltico-fabricante, se contraporia ao homem de ao, que sempre depende de seus semelhantes (Arendt, 2001, p. 157).

    Foi o antiplatonismo de Hannah Arendt, e sua luta para valorizar justa-mente os aspectos que Plato gostaria de eliminar das atividades humanas como a imprevisibilidade da ao, a autonomia dos cidados e a validade da doxa, da opinio comum que a fez privilegiar o carter agonstico do ethos poltico grego. Na interpretao marcadamente homrica de Arendt, a originalidade dos grandes feitos e a revelao do heri no espao pblico s podem acontecer se o agir humano estiver livre dos entraves intelectuais platnicos. Contudo, essa crtica a Plato levou Arendt diversas vezes a minimizar o papel das leis e das instituies, j que elas tambm poderiam dificultar a criatividade da ao poltica ao reificarem limites e fronteiras24.

    Como muitos de seus crticos assinalaram, essa concepo arendtiana reduz a poltica essencialmente a uma forma de estar-no-mundo. Pode-se indagar, como fez Dana Villa (1996), sobre a possibilidade de que, quando uma ao poltica no possui telos (finalidade) e, portanto, no remete a uma relao meios-fins, ela passa a carregar fortes tintas estticas, reduzindo-se a mera performance25; ou como observou George Kateb (1983), poderamos

    ao elaborar sua plis ideal. Embora com importantes variaes em A Repblica, o poder poltico consignado ao rei-filsofo, em O estadista, o dirigente ideal varia do pastor humano ao tecelo rgio, enquanto em As leis, seu ltimo dilogo, so as prprias leis, sob a gide de um conselho noturno de filsofos, que regem a plis as solues platnicas so sempre autoritrias, no deixando margem para a autonomia poltica dos cidados. A esse respeito, ver interpretao semelhante de Arendt (2001, p. 239; em especial, nota 69).

    24 Interessante ponderao sobre isso o elogio de Arendt (2001, p. 203, nota 17) ao modo como Montesquieu redefine a noo de leis.

    25 Interessante assinalar que o professor Villa (1992) admite que a teoria da ao poltica de Hannah

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    afirmar que a ao para Arendt parece ser um jogo em que o mais impor-tante jogar, independentemente do resultado do jogo; ou ainda, como criticou Habermas, ao analisar o conceito de poder em Hannah Arendt, poderamos mostrar como a autora, ao reinterpretar o conceito aristotlico de prxis, acaba chegando ao paradoxo de conceber uma poltica despida de preocupaes socioeconmicas, que dificilmente ilumina a situao das sociedades modernas26.

    Mas, se em sua anlise da poltica, Arendt privilegia o aspecto ontolgico da ao o ator revelando-se no espao pblico ao agir em concerto , em obras de cunho mais histrico e sociolgico, como Origens do totalitarismo, Da Revoluo, e O que autoridade (Arendt, 1989, 1990, 2002 respecti-vamente), ela desenvolve um sentido diferente do que pode ser a atividade poltica27. A autora, nesses momentos, descreve o mbito da poltica no tanto como o espao da revelao do ator, mas como o locus de ao para a criao e discusso de instituies, aproximando-se do Aristteles da Poltica, que desenvolve uma engenharia poltica destinada a elaborar a forma de governo mais estvel, que pudesse melhor perseguir e garantir o bem-comum.

    No seria exagero dizer que essa concepo da poltica que estamos denominando de institucional tem recebido relativamente menos aten-o pelos estudiosos do pensamento arendtiano do que a que explora sua dimenso ontolgica28. Isso se d no somente pelo fato de Hannah Arendt ter definido a poltica privilegiando essa dimenso, como j assinalamos, mas tambm porque a relevncia das instituies s aparece nos textos da autora de forma oblqua, quando ela analisa situaes histricas particula-res onde a presena ou ausncia de instituies e de uma forma de governo baseada em leis fazem toda a diferena para a estabilidade poltica e para a preservao da liberdade.

    No caso de sua anlise sobre as revolues do sculo XVIII, Arendt ar-gumenta, por exemplo, que a revoluo norte-americana, diferentemente da

    Arendt, discutida durante longo tempo por partidrios de um modelo dialgico de poltica (como Habermas), passou recentemente a ser analisada em sua dimenso virtuosa, agonstica e teatral, ou seja, como performance. Em nosso argumento, no entanto, diferenciamos performatividade de performance teatral; esta ltima como emulao de cdigos e comportamentos predeterminados ou roteirizados.

    26 O conceito arendtiano de ao poltica analisado em Kateb (1983). Habermas (1980), por sua vez, discute Arendt no artigo O conceito de poder de Hannah Arendt.

    27 Para essas e outras referncias, ver Canovan (1978, p. 8, nota 6). 28 Isso visvel em alguns importantes estudos sobre poltica e teoria da ao em Hannah Arendt, tais

    como: Villa (1996; 1999); Pirro (2000) e Taminiaux (1997).

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    francesa, deveu sua estabilidade em larga medida constitutio libertatis, ou seja, a instituies como a Constituio norte-americana, que implantou o regime da lei e que garantiu as liberdades democrticas. Certo que outros fatores so por ela apontados, como a relativa ausncia de uma questo social nas colnias norte-americanas. Mas na falha em construir um arcabouo institucional capaz de assegurar as conquistas da revoluo que Hannah Arendt detecta os problemas no somente da revoluo francesa, como tambm de diversos movimentos revolucionrios do sculo XX29. A nfase aqui no no carter imprevisvel da ao poltica, nem em grandes feitos que tornem seus autores imortais, mas em uma estrutura poltica estvel que impea o definhamento do espao pblico.

    Esta preocupao, como sabemos, j afligia os prprios gregos. Segundo Hannah Arendt, a desesperada busca de Plato por algum tipo de instncia que pudesse gerar obedincia dos cidados e pudesse manter, ao mesmo tem-po, a liberdade do espao pblico, terminou em propostas de visvel cunho autoritrio, pois os gregos, diferentemente dos romanos, desconheciam o conceito e a experincia da autoridade.

    A elucidao do conceito de autoridade foi uma das maiores contribuies de Hannah Arendt para a filosofia e a teoria poltica. Sem a experincia da autoridade que Theodor Mommsen iria definir como mais que um conse-lho, menos que uma ordem (apud Arendt, 2005, p. 165) , o corpo poltico ateniense permaneceu instvel. A autoridade, para Arendt, exige somente re-conhecimento, de modo que nem a coero nem a persuaso so necessrias, uma vez que sua legitimidade, quando desafiada, ampara-se a si mesma em um apelo ao passado (Arendt, 2009, p. 62, 58 respectivamente), e confere, pelo resgate da memria do estar-junto-inicial, a condio de possibilidade ao poder constitudo. Os romanos desenvolveram a noo de autoridade poltica encarnada em uma poderosa instituio surgida na Roma antiga o Senado. instituio do Senado, que extraa sua autoridade da prpria fundao da cidade eterna, que Hannah Arendt atribuiu uma das causas da longevidade poltica de Roma. Novamente, a anlise de Arendt sobre o que autoridade enfatiza instituies como o Senado, responsvel pelo mesmo ato de legislar que ela em outros momentos negligenciou ao enfatizar a soluo grega.

    29 A falha das revolues em se institucionalizarem, a burocratizao e a perda do esprito revolucionrio so alvo de anlise no captulo 6 em Da revoluo, intitulado A tradio revolucionria e seu tesouro perdido (cf. Arendt, 1990, p. 172-224). Sobre a tenso, na obra arendtiana, entre a ao e instituciona-lizao, vale conferir tambm Avritzer (2006).

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    Mas em seu estudo sobre o colonialismo e a expanso imperialista ocorrida em fins do sculo XIX, contudo, que Hannah Arendt mais ressalta a importncia das instituies para a poltica. Reconstituindo a gnese do im-perialismo, Arendt primeiramente mostra como, na Europa, o Estado-nao e a burguesia desenvolveram-se juntos, e esta ltima passou paulatinamente a dominar a sociedade, sem ainda impor seu domnio ao nvel estatal. O fortalecimento da classe burguesa na sociedade significou igualmente a possibilidade de expanso ilimitada das foras produtivas, colocando a lgica da atividade econmica, que, na Antiguidade, limitava-se oikia domsti-ca, aos espaos privados, no centro das aspiraes societrias. A crescente complexidade da economia capitalista, contudo, exigiu que a burguesia colocasse tambm o Estado a servio da expanso econmica, tornando-se classe dominante no s na sociedade, mas tambm no aparelho estatal.

    No entanto, escreve Arendt (1999, p. 154), foram as prprias instituies nacional-estatais que resistiram brutalidade e megalomania das aspira-es imperialistas dos burgueses, de modo que as tentativas burguesas de usar o Estado e os seus instrumentos de violncia para seus prprios fins eco-nmicos tiveram apenas sucesso parcial. E justamente porque o sucesso em domar o Estado no foi total que Arendt define a expanso burguesa apenas como pr-totalitria, no sentido de que foi um espao preparatrio para a experincia totalitria que viria a seguir na Alemanha nazista e na Rssia estalinista. A anlise que Arendt faz do fenmeno totalitrio tambm revela a importncia das instituies. Como ela percebeu muito bem, em regimes totalitrios como o nazismo ou o estalinismo, as leis positivas so substitudas por leis transcendentais, como a lei do materialismo histrico, no caso do estalinismo, ou da luta entre as raas, no caso do nazismo. As instituies polticas so eliminadas ou esvaziadas de qualquer significado, o que deixa a populao merc do Estado, do partido oficial e da polcia secreta.

    Outras situaes contemporneas indicam igualmente a relevncia das instituies para a preservao da democracia. Na Amrica Latina, em pases como a Venezuela ou o Equador, lideranas carismticas aladas ao poder pelo voto tentam subverter as j dbeis instituies democrticas de seus pases, de forma a perpetuarem-se no poder. Tambm no Leste Europeu, o vcuo institucional que se seguiu ao colapso do socialismo naquela regio desencadeou uma srie de guerras tnicas, incentivadas por lderes que usaram o fervor nacionalista para conseguir apoio popular. Soma-se a isso,

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    como que para confirmar o diagnstico pessimista com que Hannah Arendt aborda os rumos tomados pela poltica na era moderna, o crescente desinte-resse e desconfiana da poltica institucionalizada nos pases de democracia representativa consolidada, sintoma inegvel de uma crise da poltica.

    ConclusoSeria possvel atenuar os dois paradoxos apontados no pensamento de

    Hannah Arendt, entre o heri homrico que se revela no espao pblico atravs de grandes feitos e a poltica enquanto geradora de instituies? Apesar de a prpria autora sugerir algumas vezes que no, pensamos que seja possvel, pelo menos conceitualmente, imaginarmos uma acomodao, j que as instituies democrticas, ao fortalecerem padres de comporta-mento poltico legitimados e democrticos, estabilizam o espao pblico e podem assegurar melhores condies para que os cidados se destaquem como atores polticos, atuando em associao com seus pares. E a atividade de legislar no reduzida piesis se deliberada em um espao pblico institucionalizado que fomente a discusso responsvel de propostas de leis.

    No parece ento haver razes intrnsecas para que tenhamos de separar ou excluir mutuamente os elementos agonsticos e institucionais da ao poltica. Ainda que no controle o resultado de suas aes e que tenha de agir diante da imprevisibilidade, ao encontrar-se sob a proteo de instituies, o cidado tem mais garantias de que no se tornar a eterna vtima trgica de acontecimentos que no controla. E, no menos importante, instituies democrticas podem ao menos restringir a violncia, essa indesejvel com-panheira da poltica.

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    ResumoEste artigo analisa as leituras de Homero e de Aristteles feitas por Hannah Arendt. Partin-do das reinterpretaes do conceito de coragem, phrnesis e poltica feitas pela filsofa, apontamos naquelas leituras indcios das definies arendtianas do ethos do homem poltico e do surgimento do espao pblico. O artigo tambm discute dois paradoxos no pensamento de Arendt: o paralelo entre a coragem guerreira do heri homrico e a virtude sagaz da phrnesis aristotlica, por um lado, e, por outro, a ao poltica enquanto reveladora do agente no espao pblico e atividade coletiva voltada para a criao e manuteno de instituies. Sustentamos, como concluso, que a releitura de Homero e Aristteles, por mais paradoxal que seja, constitui a fonte terica para a separao radical entre violncia e poltica, realizada por Arendt.Palavras-chave: phrnesis, coragem, plis, instituies, Hannah Arendt.

    AbstractThis article analyses the readings of Homer and Aristotle by Hannah Arendt. Starting from her reinterpretation of the concepts of courage, phronesis and politics, we point out in those readings elements of her definition of the ethos of the political man as well as the rise of the public space. The article further discusses two paradoxes in Arendts thought: on the one hand, the parallel between the warrior courage of the Homeric hero and the virtue of the Aristotelic phronesis and, on the other hand, political action as a tool to reveal the agent in the public space and as a collective activity aiming at the creation of institutions. As a conclusion, the article points out that Arendts readings of Homer and Aristotle, paradoxical as they can be, form the theoretical basis for the radical separation between politics and violence that she sustains.Keywords: phronesis, courage, polis, institutions, Hannah Arendt.

    Recebido em 30 de janeiro de 2014.Aprovado em 29 de agosto de 2014.

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