narração, dialoguismo e carnavalização. um leitura de a hora da estrela, de c.l. usp

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CÉSAR MOTA TEIXEIRA NARRAÇÃO, DIALOGISMO E CARNAVALIZAÇÃO: UMA LEITURA DE A HORA DA ESTRELA, DE CLARICE LISPECTOR SÃO PAULO 2006 CÉSAR MOTA TEIXEIRA

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Clarice Lispector; Narração

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  • CSAR MOTA TEIXEIRA

    NARRAO, DIALOGISMO E CARNAVALIZAO: UMA LEITURA DE A HORA DA ESTRELA, DE CLARICE LISPECTOR

    SO PAULO 2006

    CSAR MOTA TEIXEIRA

  • 1

    NARRAO, DIALOGISMO E CARNAVALIZAO: UMA LEITURA DE A HORA DA ESTRELA, DE CLARICE LISPECTOR

    Tese apresentada como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor na rea de Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo sob orientao do Prof. Dr. Alcides Celso de Oliveira Villaa.

    SO PAULO 2006

    LISTA DE GRAVURAS

  • 2

    Figura 1 - CHAGALL, Marc. Rssia, aos Asnos e aos Outros ..................................... 89 Figura 2 - CHAGALL, Marc. A Mo de Sete Dedos......................................................... 92 Figura 3 - CHAGALL, Marc. O Violinista Verde.............................................................. 96 Figura 4 - WARHOL, Andy. As Duas Marilyns, 1962...................................................... 213 Figura 5 - WARHOL, Andy. Marilyn, 1964...................................................................... 213 Figura 6 - WARHOL, Andy. Marilyn Monroe, Diptych (1962)........................................ 214

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

  • 3

    PCS - Perto do Corao Selvagem

    APSGH - A Paixo Segundo G. H.

    AV - gua Viva

    HE - A Hora da Estrela

    RESUMO

  • 4

    Esta tese um estudo analtico-interpretativo do romance A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Com base nas teorias de Mikhail Bakhtin, explicitam-se os elementos dialgicos que estariam na base da composio do romance final de Lispector. Por dialogismo, entendem-se as vrias interaes crtico-pardicas que o narrador Rodrigo S.M, persona masculina criada pela autora, estabelece com outros discursos no processo metaliterrio que embasa a construo da narrativa. Entre estes discursos, a anlise d especial ateno pardia que o narrador faz de diferentes formas narrativas e dramticas, entre as quais se destacam o romance de folhetim, o melodrama, o romance regional, o romance social e o romance psicolgico. O tom dialgico-pardico dominante na obra permite detectar traos de carnavalizao usados como arma de crtica e denncia social. No mbito desta carnavalizao, destaca-se a presena de mscaras ancestrais da arcaica romanesca retomadas e atualizadas por Lispector, em especial as mscaras do tolo, do bufo e do trapaceiro, personagens arquetpicos que, oriundos do solo da cultura popular, teriam importante papel na consolidao do romance como gnero fundamentalmente voltado para a representao/encenao crtica de discursos (ainda segundo Bakhtin). Analisam-se tambm algumas crnicas de Lispector consideradas importantes para a compreenso da figurao do personagem tolo sem sua obra. Trata-se de crnicas que tematizam o longo contato da escritora com empregadas domsticas, personagens que antecipam e inspiram a criao de Macaba. A importncia do tolo destacada, na medida em que ele se apresenta como uma mscara que permite interagir criticamente com os discursos institudos, ou seja, com a ideologia dominante. O tolo que estranha e no compreende a sociedade que o cerca torna-se um importante elemento de denncia da falsidade e do perniciosismo das relaes sociais estabelecidas. A ele se junta o bufo, representado ironicamente na persona burlesca do narrador masculino Rodrigo S.M., que, em clima de carnavalizao, desmascara e destrona discursos no processo autocrtico de construo da narrativa.

    Palavras-chave: romance; dialogismo; pardia; carnavalizao; mscaras populares.

  • 5

    ABSTRACT

    This thesis is an analysis and interpretation of Clarice Lispectors novel The Hour Of The Star. Based on Mikhail Bakhtins theories, the work focuses attention on various forms and degrees of dialogic orientation in the discourse of the narrator Rodrigo S.M., who is a kind of fictional male mask created by the author in order to develop parodic stylization of a series of other discourses, specially of epic and dramatic forms, such as the melodrama, the serialized novel (feuilleton-roman), the social novel, the regional novel and the psychological novel. The dialogic and parodic tone of Lispectors novel implies the use of carnivalization as a tool of social criticism. It is also considered that the novelist has constructed the main characters, including the narrator, out of ancient and durable popular masks which, according to Bakhtin, had a great role in the constitution of the specific dialogism of novelistic discourse. These masks, which correspond to the figures or artistic images of the fool, the clown and the rogue, go back into the depths of folklore and have a vital connection with the public square and the public spectacle. In the context of the novel, these popular masks assist the author in the task of parodying the languages of others as well as different literary and non - literary discourses. Besides, the analysis focuses on some Lispectors short stories which were regarded important for the understanding of the image of the fool character, mainly those ones well known to be based on her real life. The theme of such stories is Lispectors daily contact with housemaids, an inspiration for the creation of Macaba, the fool protagonist of The Hour Of The Star. The importance of the fool is emphasized in this study due to the fact that his stupidity and incomprehension of the conventions of society and its canonized discourses (religious, political, judicial, scholarly) turn to be a dialogic category whose function is to rip off ideological falsehood. In addition to the fool, there is the clown, a role played by Rodrigo S. M., the male narrator who, as a mask, has the right to speak in otherwise languages and maliciously distort and turn them upside-down.

    Keywords: novel; dialogism; parody; carnivalization; popular masks.

  • 6

    AGRADECIMENTOS

    Ao Prof. Dr. Fbio de Souza Andrade, pela leitura precisa e iluminadora dos primeiros captulos.

    Ao Prof. Dr. Adriano Machado Ribeiro, pela gentileza com que prontamente aceitou o convite para a banca de qualificao. Paula Arbex, ao Jos Emlio e ao Roberto Daud, pela fora e pela amizade. Nelly Edith, que me abriu muito gentilmente a casa e a crtica jornalstica a respeito de Clarice Lispector. Marlia Mendes Ferreira, pela ajuda com o material bibliogrfico em lngua estrangeira.

    Polyana Alves, amiga e cantora, que esclareceu dvidas sobre a pera. Maria (a dona Maria da penso da Vila Mariana), que deu fora em momentos muito difceis. Keyla (do colgio Nacional), sempre pronta para arranjar ou trocar horrios para as viagens e todo o resto. Ao Luiz Carlos Soares (o Luiz), que lembrou, muito a propsito, que Macaba no tinha nome.

    Ao Luiz Carlos Costa (in memorian), professor e amigo. Claudete e ao Andr, presenas marcantes. Ao Rodrigo Lencio, pela formatao e pela pacincia. Ao Nil, pela capa.

    AGRADECIMENTO ESPECIAL

    Ao Prof. Dr. Alcides Celso de Oliveira Villaa (o Alcides), por tudo aquilo que a palavra no pode dizer: a fineza da pessoa, a urbanidade do trato, a simplicidade do estilo, a pacincia da orientao. (Juro que este agradecimento sem palavras).

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    memria de meu pai (cujo corao no memria de meu pai (cujo corao no memria de meu pai (cujo corao no memria de meu pai (cujo corao no resistiu a tempo).resistiu a tempo).resistiu a tempo).resistiu a tempo). minha me, personagem clariciana. minha me, personagem clariciana. minha me, personagem clariciana. minha me, personagem clariciana. s pequenas Lgia e Sara, bobinhas do s pequenas Lgia e Sara, bobinhas do s pequenas Lgia e Sara, bobinhas do s pequenas Lgia e Sara, bobinhas do coraocoraocoraocorao....

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    Respondi que eu gostaria mesmo era de poder um dia afinal escrever uma histria que comeasse assim: era uma vez... Para crianas? Perguntaram. No, para adultos mesmo,

    respondi j distrada... (Clarice Lispector)

    Tento neste livro meio doido, meio farfalhante, meio danando nu pelas estradas, meio palhao, meio bobo da corte do rei.

    (Clarice Lispector)

    Um ouvido sensvel sempre adivinha as repercusses, mesmo as mais distantes, da cosmoviso carnavalesca.

    (Mikhail Bakhtin)

    Pelo tom o sujeito que se revela e faz a letra falar. (Alfredo Bosi)

  • 9

    CAPTULO I EM BUSCA DA VOZ: ROMANCE E DIALOGISMO

    Esta tese pretende investigar os elementos dialgicos que estruturam a narrativa de A Hora da Estrela (1977)1, ltimo romance de Clarice Lispector, publicado alguns meses antes da morte da autora. Por elementos dialgicos, entendemos, num primeiro momento, os mecanismos formais, que a anlise detida visa a identificar, atravs dos quais o discurso narrativo entra em interao com vrios gneros, tanto literrios quanto extraliterrios,

    fazendo do romance de Lispector, autocrtico por excelncia, espao de representao/encenao de diferentes linguagens. A hiptese primeira, ainda sob a forma de uma impresso inicial2 de leitura, a de que a fala do narrador de HE (figura masculina criada pela autora) no est exclusivamente voltada para o objeto da representao (a histria a ser narrada), abrindo-se antes para um dilogo (pardico) com outros discursos. Entre o desejo de contar uma histria e a tentativa (dificultosa) de encontrar o estilo e a forma mais adequados, assume-se a conscincia problemtica, porque moderna, de que h uma distncia grande entre discurso e realidade, posto que entre eles se interpem falas e inflexes diversas, o que impede uma aproximao direta ou imediata a um objeto sobre o qual incide uma espcie de saturao lingstico-ideolgica.3 Neste ponto, o leitor avisado j percebeu que nossa proposta de anlise fundamenta-se na concepo bakhtiniana de romance, que define o gnero, sob a perspectiva de uma estilstica particular, como um gnero dialgico ou

    1 LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro, Livraria Jos Olympio Editora, 1981. Todas as

    citaes extradas do romance sero seguidas da abreviao HE (em negrito) e do nmero das pginas. Citaes de outros romances de Lispector seguiro o mesmo padro: a respectiva abreviao seguida do nmero das pginas. 2 Usamos aqui o termo impresso, considerando o sentido que a ele atribui Antonio Candido quando afirma

    que toda crtica viva parte de uma impresso para chegar a um juzo. Segundo o autor, no pode haver trabalho analtico-interpretativo sem se levar em considerao o conjunto de sugestes e intuies trazidas pela primeira leitura, espcie de timbre individual do crtico e vestbulo importante para a investigao paciente da anlise. Cf. CANDIDO, Antonio. O Terreno e as Atitudes Crticas. IN: Formao da Literatura Brasileira. Belo Horizonte, Itatiaia, 1981, v.1, p. 32-33. 3 Entendemos que as dificuldades iniciais do narrador Rodrigo S. M. para encontrar a palavra adequada para a

    representao da histria da nordestina devem-se, em grande parte, conscincia de que a realidade encontra-se saturada por uma infinidade de discursos, que variam do folhetim ao romance social engajado, invalidando aprioristicamente qualquer pretenso de originalidade mimtica. Vale, para este caso, a tese de Bakhtin segundo a qual a conscincia do romancista se orienta para a multiplicidade discursiva que circunda o objeto da representao, estando fadada, portanto, a um confronto com as diferentes linguagens que incidem sobre este objeto. A respeito do assunto, cf. BAKHTIN, Mikhail. O Discurso na Poesia e no Romance. IN: Questes de Literatura e de Esttica. A Teoria do Romance. So Paulo, Unesp, 1993, p. 85-106.

  • 10

    plurilnge, cujo trao formal mais importante est na representao de uma multiplicidade de linguagens e tambm de vozes em interao.4

    Alm de ser linguagem que representa, o romance , em maior ou menor grau de conscincia, representao ou imagem da linguagem. Por isso, desde cedo, se afirma como um gnero em contato com uma pluralidade de discursos, includos neste universo no apenas as falas dos personagens (permeadas por entonaes especficas de origem, sexo, profisso, classe), do narrador e ou do autor, como tambm uma infinidade de gneros intercalados, literrios ou no. Sob este enfoque, o romance torna-se fundamentalmente a representao do homem que fala (seja ele autor, narrador ou personagem) e exprime seus pontos de vista, estando, por isso, orientado para a multiplicidade discursiva de sua poca e do seu meio social.5 A pretenso de se atribuir uma unidade lingstica enunciao do romancista torna-se ilusria, porque, em sua raiz, ela se constri no encontro com a linguagem alheia (seja a dos personagens, seja a dos gneros interpostos). No caso especfico de HE, nossa leitura inicial destaca a figura do narrador, ostensivamente presente, como o eixo discursivo em torno do qual se estrutura a narrativa. Colocado no primeiro plano, o discurso narrativo chama a ateno antes da histria propriamente dita, convidando-nos inicialmente a analisar o narrador que fala e identificar, em sua enunciao, as vrias imagens discursivas representadas. Somente assim, acreditamos, poderemos chegar ao cerne da questo debatida por ele, a saber, a da possibilidade da prpria representao mimtica do tema social escolhido (a histria da nordestina Macaba).

    4 Para Mikhail Bakhtin, o trao peculiar do romance est na sua orientao dialgica ou plurilnge no s para

    os discursos de outrem como para uma infinidade de gneros interpostos. Nessa perspectiva, ele se alimentaria de um verdadeiro hibridismo de linguagens, literrias e extraliterrias, sendo resultado, nos termos do autor russo, da conscincia galileana da diversidade dos discursos existentes no interior de uma dada sociedade. Conseqentemente, a retrica tradicional, mais voltada para o estudo da poesia, no d conta da estratificao lingstica do romance, cujo discurso no se orienta direta e exclusivamente pra o objeto, mas sim para as diversas vozes (sociais) que o circundam. Nesse sentido, haver sempre, na enunciao romanesca, em graduaes diversas, a refrao de outras enunciaes com as quais a fala narrativa entra em interao. Para uma compreenso inicial do assunto, cf. BAKHTIN, Mikhail. O Plurilingismo no Romance. IN: Questes de Esttica e de Literatura A Teoria do Romance, op. cit. , p. 107-133. 5 Em um sugestivo estudo, Irene Machado formula a importante idia de que Bakhtin, ao conceber o romance

    como expresso do homem que fala, conversa e discute idias, elege um ponto de vista original na anlise do gnero, em geral, concebido como fruto da consolidao da cultura impressa em detrimento da cultura oral que esteve na base da constituio dos gneros antigos. Sob a viso peculiar de Bakhtin, a oralidade ou, pelo menos, um certo tipo de oralidade, acaba sendo incorporada pelo romance em sua tarefa de representar a imagem do homem que fala e exprime seus pontos de vista. Posto na confluncia da escrita e da fala, o romance revela um novo aspecto do carter essencialmente hbrido de sua composio, sempre aberta para uma multiplicidade de discursos e de outros gneros. Esta hiptese de Bakthin, aclarada pelo estudo de Irene Machado, parece fecunda para HE e outros romances de Clarice, como AV e APSGH, nos quais o narrador flagrado no ato mesmo da enunciao e em dilogo com o leitor, cruzando escrita e voz. Cf. MACHADO, Irene. O Romance como Gnero Oral. IN: O Romance e a Voz A Prosaica Dialgica de Mikhail Bakhtin. Rio de Janeiro, Imago, So Paulo, Fapesp, 1995, p. 157-239.

  • 11

    RODRIGO EM CENA

    Antes de prosseguirmos, contudo, convm ir por partes, detalhando as impresses hauridas das primeiras leituras do todo da obra que nos levaram a formular esta hiptese interpretativa da estruturao dialgica do romance e esclarecendo que a orientao terica eleita resultado de um estudo que parte primordialmente das sugestes e ou pistas de anlise fornecidas pelo prprio texto. Comecemos dizendo ento que, em HE, primeira e ltima incurso da pressuposta escritora hermtica6pelos caminhos de uma fico mais exterior e explcita (no dizer do prprio narrador do romance), a inveno de uma estria bem estruturada, com comeo, meio e grand finale, no exclui a presena tambm explcita do narrador, figura masculina que, criada pela escritora, abre os bastidores da criao, problematizando o tempo todo o ato de narrar - sempre digressivo e sinuoso - e disputando espao com sua personagem: uma migrante nordestina miservel. A combinao entre enunciao discursiva (o narrador fala no momento presente da narrao) e de narrativa propriamente dita (o narrador narra as aventuras da protagonista nordestina) parece ser um primeiro elemento da composio estrutural que merece destaque.7 Nessa perspectiva, a fala

    6 Na famosa entrevista concedida TV Cultura, no ano de seu falecimento, Clarice Lispector refere-se ao termo

    hermtico como uma espcie de rtulo crtico j cristalizado em torno de seu nome. Trata-se de uma resposta da escritora a uma pergunta a respeito de sua popularidade. Cf. LERNER, Jlio. A ltima Entrevista de Clarice Lispector. IN: Revista Shalom. So Paulo, n. 296, jun-ago. 1992, p. 62-69. 7 Nossa distino entre discurso e narrativa propriamente dita parte inicialmente dos estudos de Benveniste, que

    inclui, na categoria do discurso, toda enunciao que suponha um locutor e um ouvinte e tenha a inteno de influenciar o outro. Em oposio a este tipo de enunciao discursiva, o lingista define a enunciao histrica (que inclui a narrativa literria de 3 pessoa) como aquela em que a apresentao dos fatos se d sem a interveno do locutor e fora, portanto, do eixo eu-tu que caracteriza o discurso. Grard Genette retoma as formulaes de Benveniste, concordando que a diferena entre discurso e narrativa est na subjetividade do primeiro em contraste com a objetividade da segunda, entendendo objetividade e subjetividade na acepo lingstica de Benveniste: ausncia ou presena das marcas enunciativas do eu-locutor. Genette ainda refora o fato de que narrativa e discurso no existem em estado ideal de pureza em nenhum texto, havendo quase sempre uma mistura entre ambos. Por ora, digamos que a narrativa da histria de Macaba vai surgindo aos poucos do discurso de Rodrigo, permanecendo atrelada a ele o tempo todo. Isso significa que, nos termos de Genette, a introduo de elementos narrativos (no caso, a histria da nordestina) no plano do discurso no basta para emancipar este ltimo, pois a narrativa permanece vinculada referncia do locutor (no caso, Rodrigo), que mantm uma presena implcita e pode intervir de novo a qualquer momento. Benedito Nunes tambm estuda o tema ao diferenciar numa narrativa, pelo menos, dois tempos, o da histria, do ponto de vista do contedo e o do discurso, do ponto de vista da forma de expresso. Essas reflexes iniciais permitem fundamentar a ostensiva presena da fala do narrador como elemento de estruturao de HE e preparar o terreno para a anlise das relaes e tenses que discurso e narrativa criam no desenrolar do romance. A partir deste ponto, trabalharemos basicamente com a noo de discurso proposta por Bakhtin, segundo a qual o discurso se constitui como manifestao concreta e viva da lngua, posta em circuito interativo e dialgico entre sujeitos-interlocutores. Nesse sentido, entendemos que o discurso de Rodrigo vive num ambiente essencialmente dialgico, pois est voltado no s para as expectativas e rplicas do leitor para quem se dirige como tambm para uma infinidade de outros discursos, literrios ou no. Cf. BENVENISTE, mile. Da Natureza dos Pronomes e Da Subjetividade na Linguagem. IN: Problemas de Lingstica Geral. So Paulo, Ed. Nacional, Ed. Da Universidade de So Paulo, 1976, p. 277-283. GENETTE, Grard. Fronteiras da Narrativa. IN: VV. AA., Anlise Estrutural da Narrativa, Petrpolis, Vozes, 1973, p.255-274. NUNES, Benedito. O Tempo na Narrativa. So Paulo, tica, 1988, p. 27. BAKHTIN, Mikhail. Os Gneros do Discurso. IN: Esttica da Criao Verbal. So Paulo, Martins Fontes, 1997, p. 277-287.

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    problematizadora de Rodrigo S. M. (nome da figura masculina inventada pela romancista) entra em tenso constante com a dificultosa histria narrada, que emperra no incio, comea pelo meio e segue seu curso constantemente interrompida pelas intruses do narrador. Desse modo, a esperada exterioridade e ou objetividade do relato questionada pela voz narrativa que a anuncia e a nega ao mesmo tempo:

    Histria exterior e explcita, sim, mas que contm segredos... (HE, p.17)

    A ostensiva presena da fala de Rodrigo S.M. como fator primordial da estruturao do romance levou-nos a desconfiar dela logo nas primeiras leituras, principalmente no que se refere ao seu tom dubitativo e contraditrio8. Desde as pginas iniciais, em que a narrativa emperrada ainda no encontrou seu curso definido, sentimo-nos nas mos de um narrador que, embora se proponha a contar uma histria com propalada objetividade e verossimilhana, no consegue abandonar o centro da cena a favor da necessria distncia onisciente que um pressuposto relato com comeo, meio e grand finale exigiria. Ao contrrio, Rodrigo S. M. insiste em fazer alarde de si mesmo, chegando a afirmar, a certa altura, que, dentre os personagens do enredo a ser construdo, ele o mais importante. Alm disso, brinca com a prpria categoria da oniscincia de que se investe como narrador ao mostrar-se ao mesmo tempo seguro e inseguro acerca dos rumos do enredo. Em alguns trechos, demonstra ter domnio completo dos fatos; em outros, coloca dvidas a respeito deles. Sobre a ordenao da trama, por exemplo, diz, num determinado pargrafo, que poderia comear pelo fim, algo possvel apenas para algum que detivesse um conhecimento total (leia-se apriorstico) dos fatos. Um pouco mais adiante, desmente o que acabou de dizer, afirmando que mal vislumbra o desfecho, que tanto poder ser brilhante (como parece ilustrar o ttulo A Hora da Estrela) quanto opaco. Ardilosamente (ao que parece) provocativo e polmico, Rodrigo ainda dialoga com o leitor, instaurando, como ficou dito, um eixo discursivo em meio narrativa propriamente dita (que ensaia, a esta altura, o seu comeo sempre adiado):

    8 Entendemos tom como a modalidade afetiva da expresso, ou seja, o modo expressivo particular do falante.

    Acreditamos que o termo renda como elemento de interpretao sobretudo num romance em que o sujeito narrador aparece o tempo todo flagrado no momento da enunciao, combinando escrita e fala, discurso e narrativa propriamente dita. No ser preciso lembrar a pertinncia do termo tom para a concepo bakthiniana do romance como um gnero que vive da tenso entre letra e voz. Para Bakhtin, a entonao expressiva a marca do discurso ou da enunciao, exprimindo a relao emotivo-valorativa do locutor com o objeto de sua fala. Sob essa perspectiva, o tom no pertence lngua enquanto sistema abstrato de significao, mas se manifesta apenas no momento em que a lngua ganha um autor, converte-se em discurso e entra em contato com a realidade concreta. O tom, desse modo, no estaria nem no sistema da lngua e nem na realidade, mas sim no encontro destas via enunciao. Sendo o romance a representao da imagem do homem e de sua fala, ele se torna, no enfoque bakhtiniano, um gnero escrito com forte propenso tonal. Cf. BAKHTIN, Mikhail. Os Gneros do Discurso. IN: Esttica da Criao Verbal, op.cit., p. 289-326. Sobre a importncia da determinao do tom no processo de anlise e interpretao da obra literria, cf. ainda BOSI, Alfredo. A Interpretao da Obra Literria. IN: Cu, Inferno. So Paulo, tica, 1988, p. 274-287.

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    S no inicio pelo fim que justificaria o comeo- como a morte parece dizer sobre a vida- porque preciso registrar os fatos antecedentes. (HE, p.16)

    (Mal e mal vislumbro o final que, se minha pobreza permitir, quero que seja grandioso) (HE, p.17)

    Pergunto-me se eu deveria caminhar frente do tempo e esboar logo um final. Acontece porm que eu mesmo ainda no sei bem como este isto terminar. (HE, p.21)

    Nossa desconfiana em relao a Rodrigo S.M. prossegue, na medida em que atentamos para o fato de que ele constitui uma persona criada pela autora para falar no lugar dela atravs de uma forjada e, tambm provocativa, atitude de assumir uma espcie de autoridade autoral masculina. No entanto, ao contrrio do que geralmente ocorre nas obras em que o escritor adota o estratagema da pseudo-autoria, Clarice desnuda o artifcio que cria, escrevendo um prefcio ou dedicatria para HE no qual faz questo de assinalar, no cabealho entre parnteses, a expresso na verdade Clarice Lispector. O leitor, tendo passado inicialmente pelo prefcio, reconhecer imediatamente em Rodrigo a condio de mscara, por trs da qual, como resultado necessrio, a conscincia autoral se manifestar em tons diversos de aproximao e de distanciamento. A nosso ver, a grande dificuldade imposta pela anlise de Rodrigo exatamente a de determinar o tom (ou tons) certo(s) de seu discurso, tendo em vista o fato de que, desde o incio, ele dono de uma fala por via da qual fala um outro (o autor de verdade do prefcio). Neste ponto, j estamos bem prximos dos primeiros elementos dialgicos que vimos buscando reconhecer e especificar desde o nosso intrito. Antes, porm voltemos questo da pseudo-autoria supracitada.

    Benedito Nunes9 refere-se ao assunto, contrastando o recurso da falsa autoria utilizado por Clarice Lispector com aquele utilizado por outros autores, entre eles, Machado de Assis. A lembrana do crtico no parece fortuita, tendo em vista que o dilogo com autores da tradio literria brasileira (tema a que voltaremos no momento oportuno) constitui outro fator importante da estruturao dialgica que pretendemos investigar em HE. Continuando, Nunes destaca que o artifcio da falsa autoria um recurso formal antigo que parece se ligar ao prprio nascimento do gnero romance, tendo em vista o exemplo citado pelo crtico do uso que do referido artifcio faz Daniel Defoe10 em Moll Flanders. Lembremo-

    9 NUNES, Benedito. Filosofia e Literatura: A Paixo de Clarice Lispector. IN: Cadernos de Literatura e

    Ensaio. So Paulo, Brasiliense, 1981, n. 13, p. 33-41 (Suplemento Literrio). 10

    DEFOE, Daniel. Moll Flanders. So Paulo, Abril Cultural, 1971.

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    nos, com base na sugesto de Nunes, do estudo de Ian Watt11, no qual o autor, analisando, entre outros, o mesmo Daniel Defoe, aponta o realismo formal como o princpio bsico de estruturao do romance, entendendo realismo como um conjunto de procedimentos narrativos que se baseiam na representao completa e autntica da experincia individual inserida num contexto verossmil em que se ressaltam as particularidades espcio-temporais da ao representada. Embora seja tambm uma conveno literria como qualquer outra, o realismo formal, trao estruturador do romance em oposio epopia (cujo enredo histrico ou lendrio afigura-se mais genrico ou arquetpico), uma conveno, por assim dizer, sem jeito de conveno, na medida em que, exigindo menos do leitor, procura satisfazer-lhe o anseio por uma correspondncia estrita entre arte e vida.

    Na linha de raciocnio de Watt, o estratagema da falsa autoria pode ser entendido como um recurso a servio do realismo formal, j que, como faz Defoe (um dos inventores do romance moderno, segundo Watt) em Moll Flanders12, ou mesmo Machado de Assis em Esa e Jac e em Memorial de Aires,13 o recurso a uma suposta autobiografia e ou dirio verdicos como matria do romance um artifcio narrativo destinado a reforar a verossimilhana do relato, criando no leitor aquele anseio por verdade ou autenticidade descrito por Watt. No caso de Clarice Lispector, como bem percebe Nunes, o procedimento curiosamente se inverte.

    11 WATT, Ian. O Realismo e A Forma Romance. IN: A Ascenso do Romance. So Paulo, Companhia das

    Letras, 1990, p. 11-33. 12

    O romance Moll Flanders inicia-se com um longo prefcio no qual o autor Daniel Defoe se dirige aos leitores, explicando que seu relato uma verso modificada da biografia supostamente verdica da ladra e prisioneira Moll. O autor faz questo de dizer que modificou trechos da biografia encontrada no intuito de corrigir as obscenidades da linguagem de sua personagem-autora, alm de insistir no carter essencialmente moralizante de seu livro. O recurso autobiografia como material de composio da obra comprova o compromisso do romance, desde a sua origem, com a verossimilhana, ou como ressalta Watt, com o registro autntico e particular da experincia individual. Ressalte-se ainda a importncia dos prefcios para os primeiros romances como verdadeiras fontes de teorizao sobre o gnero nascente. Ao contrrio dos gneros elevados da Antigidade, epopia ou tragdia, o romance nasce, por assim dizer, margem do aval das regras da potica clssica , vendo-se obrigado ele mesmo a refletir, medida que surge, sobre os princpios essenciais de sua composio. No ser preciso dizer que esta tendncia dos primeiros romancistas de explicar, em prefcios, a natureza e a funo do gnero novo que nascia, remete ao carter auto-reflexivo que j est na base da constituio do romance e que apenas se acentuaria no decurso de sua evoluo. Acrescente-se que a insistncia de Defoe no carter moralizante de sua obra alude desconfiana que o novo gnero, espcie de bastardinho brilhante na feliz expresso de Antonio Candido, causou nos meios literrios afeitos ao imprio da tradio clssica, obrigando os autores a justificarem a importncia do romance atravs de sua funo instrutiva e moralizante. A respeito do assunto, cf. CANDIDO, Antonio. Aparecimento da Fico. IN: Formao da Literatura Brasileira, op.cit., p. 109-145. Cf. tambm CANDIDO, Antonio. Timidez do Romance. IN: A Educao pela Noite e Outros Ensaios. So Paulo, tica, 1987, p. 82-99. 13

    Nos dois romances em questo, Machado de Assis assume o papel de uma espcie de editor que teria simplesmente publicado os cadernos de um personagem chamado Aires. Nestes cadernos, em nmero de sete, teriam sido encontrados tanto o dirio do velho Aires (os seis primeiros), matria do derradeiro Memorial, quanto a histria dos gmeos (o stimo) narrada em Esa e Jac. Como se sabe, a figura do diplomata Aires ocupa lugar central nas obras finais de Machado, afirmando-se como um alter-ego ou, nos termos de Nunes, pseudo-autor do velho bruxo. Cf. ASSIS, Machado de. Esa e Jac. So Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Recife, Editora Mrito S.A, 1959, p. 5-6 e ASSIS, Machado de. Memorial de Aires. So Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Recife, Editora Mrito, 1959, p. 9.

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    Enquanto Defoe ou Machado recuam ou disfaram a figura autoral, comportando-se como meros editores dos escritos de seus personagens (Moll, no exemplo de Defoe; Aires, no exemplo de Machado), Clarice invade a cena, declarando-se a verdadeira autora na dedicatria para s depois introduzir o pseudo-autor Rodrigo nas primeiras pginas do romance. Nesse sentido, ao invs de reforar a verossimilhana do relato, criando no leitor a segurana consoladora da correspondncia arte/ vida anteriormente mencionada, Clarice expe, em contrapartida, o carter essencial de jogo e artifcio que presidem a criao artstica, posta, em HE, nos limites da sinceridade e da quase impostura.

    No deixa de parecer postio, porque desmascarado a priori, o procedimento de se travestir num outro e assumir, logo depois do prefcio em que se confessa e se revela sob a rubrica do nome verdadeiro, a persona de um autor masculino. Nossa desconfiana em relao a Rodrigo, mera impresso inicial de leitura e primeira pista de anlise, comea agora a encontrar fundamentao mais objetiva. Como num passe de mgica, a autora real, ainda mulher no prefcio, , poucas pginas adiante, autor homem com nome e sobrenome abreviado. As absurdas interpretaes que alguns tm buscado para o termo S. M. se tornam inteis diante do fato de que o sobrenome abreviado to-somente parte do jogo irnico que preside a inveno do personagem-narrador, escritor fracassado e intelectual em crise no limite do anonimato e da farsa.14 Ao desmascarar a prpria conveno de que se utiliza, Clarice leva o romance a um processo auto-reflexivo que questiona a validade ou eficcia do gnero na representao da realidade, retirando o leitor, parte ativa do artifcio ficcional conduzido pelo narrador postio, do conforto e da garantia de um relato propriamente fiel ou autntico.15

    Um dos dilemas fundamentais de Rodrigo, diga-se de passagem, reside na indagao a respeito da possibilidade de representar a verdade da protagonista nordestina sem o falseamento ou a distoro impostas pela linguagem. Acrescente-se ainda que a idia de

    14 Lembramos, a propsito, o pequeno comentrio de Moacyr Scliar a respeito de HE, no qual o autor especula

    que o termo S. M. pode significar Substantivo Masculino ou Sua Majestade. Cf. SCLIAR, Moacyr. A Hora de Macaba. IN: Saturno nos Trpicos. So Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 238-242. 15

    Solange Ribeiro de Oliveira aponta, em HE, um entrelaamento entre stira social e comentrio metalingstico, entendendo a narrativa como uma pardia do romance tradicional. Nesse sentido, a excessiva intruso do narrador Rodrigo constitui um procedimento deliberado de quebra da iluso mimtica ou realista, o qual impede uma identificao completa do leitor com a personagem e com a prpria obra, identificao sempre mediada pela interveno do narrador. O leitor, desse modo, lembrado a cada momento que tem diante de si um artefato literrio e no uma representao direta da realidade. Tambm a crtica Lucia Helena, partindo do conceito de mimesis, defende a idia de que HE se distancia da representao mimtica, usando os recursos consagrados para obt-la, mas minando-os pouco a pouco. Cf. OLIVEIRA, Solange Ribeiro de. Clarice Lispector e o Repdio do Exotismo em A Hora da Estrela. IN: Anais do 2 Simpsio de Literatura Comparada. Belo Horizonte, UFMG, 20-24 out. 1986, p.859-871. Cf. ainda HELENA, Lucia. Nas Frestas da Representao. IN: Nem Musa, Nem Medusa Itinerrios da Escrita em Clarice Lispector. Niteri, Ed. da Universidade Federal Fluminense, 1997, p. 58-75.

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    encenao no est muito longe do horizonte da narrativa, revelando que o romance moderno, ao confessar suas mentiras e expor suas convenes, pe em crise o compromisso mimtico que o enformou na origem e questiona, como afirma Nunes, a sua natureza enquanto gnero.16 Aqui o uso da palavra encenao proposital sobretudo em uma obra cujo discurso se origina da incorporao deliberada de uma persona narrativa. Nos termos de Bakhtin, como dissemos, o romance um gnero no qual a linguagem no apenas representa a realidade como tambm constitui objeto da representao. Nesse sentido, o termo imagem da linguagem,17 que o autor russo considera ser a marca da mimesis romanesca, quadra bem com o jogo cnico conduzido por Rodrigo no seu dilogo irnico com diferentes discursos. No se deve esquecer tambm que, para Bakhtin, a pr-histria do romance est enraizada no folclore mais longnquo, especialmente nas manifestaes carnavalescas da praa pblica, nas quais a idia de mscara, como incorporao e reacentuao pardica da linguagem do outro, fundamental.18 Novamente vamos nos aproximando de um outro trao dialgico presente em HE, na medida em que no s a fala de Rodrigo constitui a encenao(entre sincera e artificiosa) da fala de um outro (o autor), como o romance se constitui enquanto encenao de

    16 NUNES, Benedito. Filosofia e Literatura: A Paixo de Clarice Lispector, op. cit., p. 35.

    17 O que Bakhtin chama de imagem da linguagem a representao de uma linguagem luz de outra, uma

    espcie de hbrido intencional em que ressoam duas conscincias lingsticas em interao. Embora no use o termo encenao, Bakhtin fornece, em outro ensaio seu, um exemplo teatral para explicar o funcionamento da atividade esttica. Para o terico russo, a criao esttica, que inclui tambm o romance, s pode se dar atravs da interao de, pelo menos, duas conscincias. Neste jogo interacional, o autor-criador se vale de sua exotopia, ou seja, do excedente de viso que s ele possui do lugar nico e singular que ocupa, para dar acabamento esttico ao seu personagem. Por isso, no exemplo teatral dado pelo terico, ator e autor se aproximam, j que ambos devem construir seus personagens a partir de um certo distanciamento. Bakhtin afirma que, se o ator simplesmente incorporasse seu personagem, assumindo completamente o ponto de vista interno deste, no haveria trabalho esttico. preciso que o ator, num papel semelhante ao do autor, crie de fora (ou seja, exotopicamente) o personagem que vai depois encarnar. Sendo a conscincia de uma conscincia, ator ou autor precisam de um distanciamento que s a exotopia (a capacidade de ver aquilo que o outro no pode ver de sua posio especfica) permite. Acreditamos que o exemplo dado por Bakhtin pode ser transposto para a composio esttica do romance. Desse modo, a imagem da linguagem pode ser vista como a construo exotpica da imagem lingstica do outro conduzida luz da conscincia do autor-criador. Cf. BAKHTIN, Mikhail. A pessoa que Fala no Romance. IN: Questes de Literatura e de Esttica A Teoria do Romance, op.cit, p. 134-163. Cf. tambm BAKHTIN, Mikhail. A Forma Espacial do Heri. IN: Esttica da Criao Verbal, op.cit., p. 43-113. 18

    preciso esclarecer que os estudos de Bakhtin a respeito do romance enquadram-se naquilo que poderamos batizar de potica histrica, constituindo portanto uma tipo de investigao preocupada com a questo da origem e da evoluo do gnero. Para Bakhtin, o gnero literrio conserva certos elementos estveis ou imorredouros em sua evoluo, guardando uma espcie de memria criativa ou archaica que vem de longe. Nessa perspectiva, a pr-histria romanesca situa-se principalmente na rea dos gneros cmico-srios da Antigidade que, por sua vez, remetem a manifestaes folclricas mais recuadas, em especial, s diversas formas populares das festividades carnavalescas. Para Bakhtin, o carnaval , espetculo semi-real e semi-representado, em que os atores so os prprios participantes ativos, inventa uma diversidade de formas concreto-sensoriais(que inclui mscara, vesturio, gesto, comportamento, fala, riso) por via das quais se estabelece a mimetizao pardica de linguagens. Embora possa parecer estranho para uma teoria literria acostumada a tratar o romance como descendente direto da epopia, o fato que, para Bakhtin, o gnero se constitui, em termos de archaica, nesta rea do contato franco e familiar, aberto pelo riso carnavalesco, com os variados discursos sociais. Cf. Particularidades do Gnero, do Enredo e da Composio das Obras de Dostoivski. IN: Problemas da Potica de Dostoivski. Rio de Janeiro, Forense Universitria, 1997, p. 101-180. Cf. tambm A Cultura Popular na Idade Mdia e no Renascimento. So Paulo, Hucitec; Braslia, Ed da Universidade de Braslia, 1993.

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    si mesmo, j que, dentre os seus temas, est a problemtica tentativa de construir uma alardeada histria com comeo, meio e grand finale, interrompida a cada passo pelo discurso do narrador-intruso.

    Sendo um romance sobre o romance, HE comprova o que dissemos acerca do carter auto-reflexivo que acompanha o gnero desde a sua origem.19 Nessa perspectiva, no parece exagero afirmar que o prprio romance (na condio mesma de objeto fsico) que chama ateno sobre si antes de Rodrigo fazer alarde de seu nome e sobrenome. O primeiro artifcio que desconcerta o leitor est na indicao, numa pgina em destaque, dos treze ttulos possveis para a narrativa, includo, entre eles, o principal que est na capa. Ressalte-se que o nome da escritora firmado tambm entre os ttulos, reiterando a autoria j declarada no prefcio-dedicatria e remetendo novamente pseudo-autoria de Rodrigo, com a qual nos defrontaremos pginas adiante. A incluso de um prefcio relativamente longo como introduo ao livro (os romances anteriores da autora contavam em geral com pequenos pensamentos introdutrios ou recados bem mais curtos ao leitor) evoca, como ficou dito atrs, procedimentos metalingsticos inerentes ao romance enquanto gnero. Com um prefcio, treze ttulos e at um patrocinador jocoso (a coca-cola), HE parece expor ou qui saturar (como o caso dos ttulos) parodicamente artifcios tpicos da construo romanesca no intuito de sinalizar que o romance, antes de Rodrigo ou da nordestina Macaba, est no primeiro plano da cena.

    Em seu estudo sobre HE, Benedito Nunes20 ressalta esta idia de que o romance constitui um personagem ao lado de Rodrigo e Macaba. Como se sabe, o autor estabelece para a obra a existncia de trs histrias em regime de transao constante, a histria de Macaba, a histria de Rodrigo e a histria da prpria narrativa, lanando uma interpretao que se tornaria lugar corrente entre a crtica. Embora no desenvolva o assunto, Nunes reconhece, entre as possveis inflexes da fala de Rodrigo, um tom entre jocoso e srio.

    19 Sendo um gnero em permanente dilogo com os discursos de sua poca, o romance no poderia deixar de se

    voltar para a representao crtica do prprio discurso literrio. Por isso, Bakhtin considera a autocrtica do discurso a particularidade fundamental do gnero romanesco. Nessa perspectiva, o estudioso russo sustenta que, desde a sua origem, o romance pe prova o discurso literrio, criticado nas suas relaes com a realidade e nas suas pretenses de reproduzi-la fielmente, govern-la ou at mesmo substitu-la. Como exemplos desses romances de provao do discurso literrio, Bakhtin cita Dom Quixote e Madame Bovary, narrativas nas quais a realidade pe prova o discurso organizado em volta do heri que v a vida com os olhos da literatura. Alm disso, o crtico afirma que a provao do discurso pode se dar no s no mbito do heri como tambm no do prprio autor, citando o Tristam Shandy como exemplo clssico do romance sobre o romance. A partir dessas reflexes, conclumos que, para Bakhtin, a metalinguagem parece inerente ao romance enquanto gnero, no constituindo exclusividade da narrativa contempornea. Cf. BAKHTIN, Mikhail. Duas Linhas Estilsticas do Romance Europeu. IN: Questes de Literatura e de Esttica A Teoria do Romance, op. cit., p.202-203. 20

    De Benedito Nunes, destacamos dois estudos: o j citado Filosofia e Literatura: A Paixo de Clarice Lispector e o conhecido O Jogo de Identidade, presente em O Drama da Linguagem, So Paulo, tica, 1989, p. 160- 171.

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    Assinala ainda o carter mendrico, tumultuoso e trocista do livro, apontando uma chave de leitura que todavia no segue. Entre o tom srio e jocoso detectado, Nunes parece ressaltar o primeiro em detrimento do segundo, vendo em Rodrigo a projeo dilemtica e agnica da Clarice-autora s voltas com as reflexes a respeito do ofcio de escrever. Seguindo esta linha de anlise, o crtico chega ao aspecto essencialmente auto-reflexivo do romance clariciano, situando-o no quadro maior da situao do gnero na modernidade. Segundo Nunes, HE exemplo do extremo limite a que chegou a fico contempornea, cuja concentrao na mimesis da experincia interior, trao fundamental da revoluo romanesca operada no incio do sculo XX, abre espao para o processo de desdobramento interno da forma narrativa. Em outras palavras, a presena da conscincia individual como centro mimtico do romance moderno (eixo do estudo do autor sobre Clarice) apenas um etapa de uma crise aguda que culminar na passagem da prpria narrativa ao primeiro plano da representao.

    Nossa direo de anlise pretende seguir, ainda que sob outra orientao terica, a mesma pista do trao auto-reflexivo de HE, mostrando como o romance, voltado sobre si mesmo, dialoga com diversas linguagens e gneros, includas neste universo de referncias discursivas, formas romanescas vrias, que vo do folhetim narrativa social engajada. Ao contrrio de Nunes, portanto, analisaremos mais detidamente em Rodrigo aquilo que nele propriamente mscara, ou seja, apropriao pardica da imagem discursiva de outrem, e no simplesmente projeo (que tambm existe) dos dilemas da Clarice-autora. Sob este enfoque, parece fundamental a investigao do tom jocoso ou trocista apontado pelo mesmo Nunes, pois ele que pode nos ajudar a definir o referido carter de encenao que estrutura, na origem, o discurso narrativo. Esse tom trocista, conduzido de forma quase teatral, a evidncia de que a fala de Rodrigo no propriamente direta: primeiro, porque por trs dela ressoa uma outra voz, a da autora ostensivamente declarada no prefcio; segundo, porque ela se orienta para outros discursos, assumindo inflexo pardica.

    A NARRATIVA COMO ESPETCULO

    Como prova dessa mencionada conduo cnica do discurso narrativo, destacamos inicialmente a presena de traos estilsticos do gnero dramtico no mbito da pica (o que tambm vem reiterar a abertura dialgica do romance para os outros gneros). A fala de Rodrigo, desde o incio, mostra-se orientada para o leitor atravs de um dilogo provocativo.

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    A escolha do pronome vs, marca formal de incorporao do receptor no plano do discurso, torna-se irnica pela deliberada incluso de uma forma gramatical erudita no contexto de uma conversa informal que se estabelece entre narrador-autor e ouvinte. A estruturao discursiva do romance, que permanece mesmo quando a histria propriamente dita comea, estabelece uma espcie de tenso entre o tempo do discurso (o aqui-agora da fala de Rodrigo ao leitor) e o tempo da histria narrada. A presena insistente do narrador, que inclusive brinca com os possveis desfechos da histria, implica uma conduo temporal tpica do drama: a do presente que caminha para o futuro.21 No se deve esquecer, nesse sentido, que um dos truques de Rodrigo na estruturao da narrativa est exatamente na manipulao irnica do destino da personagem, posto entre a glria e o fracasso, entre o brilho e a opacidade, entre a estrela e a morte. Alm disso, tanto o ttulo principal A Hora da Estrela quanto um dos outros doze, Quanto ao futuro. (seguido de ponto final), apontam que a soluo temporal da narrativa encontra-se num tempo posterior ao presente da enunciao, criando uma expectativa comum forma dramtica (obviamente tambm manipulada em chave irnica). Em outros termos, a impresso a de que o destino de Macaba pode se resolver tanto em comdia quanto em tragdia, espcies teatrais com que o romance dialoga atravs do hibridismo de gneros e discursos que lhe caracterstico.22

    Alm da questo temporal, outro detalhe que comprova a estruturao cnica do romance est no uso constante que o narrador faz de parnteses no s para incluir reflexes digressivas como para marcar detalhes de caracterizao das cenas narradas. Merece destaque a repetio excessiva dos parnteses em que se assinala, ao modo de uma rubrica teatral, o termo exploso, ironicamente usado para anunciar momentos tidos como cruciais no enredo.23 Esta interveno jocosa (para usar o termo de Nunes) de Rodrigo, que faz alarde de sua presena na conduo dos fatos, pe a nu a atmosfera artificiosa com que a trama conduzida. Voltando aos termos de Bakhtin, como se estivssemos diante no de um enredo, mas sim de uma imagem de enredo, tendo em vista a presena de uma conscincia narrativa vigilante que, distncia, constri a vida de um outro (o personagem), sabendo a priori dos

    21 Pensamos aqui no estudo de Anatol Rosenfeld, que atribui para cada gnero uma temporalidade especfica. No

    caso, o tempo dramtico o presente que passa, que exprime a atualidade do acontecer e que evolve tensamente para o futuro. Cf. Gneros e Traos Estilsticos. IN: O Teatro pico. So Paulo, Perspectiva, 1997, p. 34. 22

    Informamos que consideramos aqui tragdia e comdia no s como formas teatrais especficas, mas tambm, nos termos de Northrop Frye, como dois mythos ou movimentos narrativos arquetpicos, ou seja, a tragdia como movimento de excluso social do heri e a comdia como movimento contrrio de integrao. Cf. FRYE, Northrop. Teoria do Mythos. IN: Anatomia da Crtica. So Paulo, Cultrix, s.d., p. 159-235. 23

    Solange Ribeiro de Oliveira comenta que o termo exploso, posto entre parnteses, usado para marcar os momentos de grande emoo (os acontecimentos dramticos, as sbitas revelaes, os suspenses) numa visvel pardia do romance melodramtico. Cf. Clarice Lispector e o Repdio do Exotismo em A Hora da Estrela, op.cit.

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    riscos do falseamento inerentes sua criao. Continuando, afora as rubricas, no faltam ao romance inmeras trilhas musicais, elementos que, mais tpicos do espetculo que do texto, sinalizam nova contaminao com a esfera extraliterria de que participa o drama, forma de arte que vive na confluncia da palavra escrita (estritamente temporal e auditiva) com a representao udio-visual.24 A idia do hibridismo de gneros retorna num romance que usa e abusa de recursos cnicos, includa a, frise-se, a prpria metamorfose original e estruturante do livro__ a transformao de Clarice em Rodrigo S.M. Das trilhas sonoras utilizadas, lembremo-nos por ora do tambor que se mescla a um violino plangente, combinando, em registro pardico, formas quase circenses (a proximidade com a encenao carnavalesca aqui inegvel) de acompanhamento musical dos solavancos do enredo, entre trgico e melodramtico.25 Nessa perspectiva, o patrocnio da coca-cola parece ser o coroamento do espetculo (bufo) em fase de incorporao pela cultura de massa:

    Tambm esqueci de dizer que o registro que em breve vai ter que comear__ pois j no agento a presso dos fatos__ o registro que em breve vai ter que comear escrito sob o patrocnio do refrigerante mais popular do mundo... (HE, p.29)

    ECOS DE CARNAVALIZAO

    Nossa tentativa de fundamentar, atravs dos detalhes formais apontados, o andamento dramtico da narrativa visa no s constatao do hibridismo de gneros caracterstico de HE, mas tambm confirmao da categoria da mscara como um dos estatutos da existncia de Rodrigo S. M. na narrativa. Como dissemos, a entrada abrupta de um narrador masculino no texto, logo aps a apresentao da verdadeira autora no prefcio, ressalta o carter de artifcio que preside a sua inveno. Ademais, a apresentao inicial de Rodrigo se faz num tom cerimonioso que no esconde o efeito pardico, prprio da condio de quem est quase o tempo todo mimetizando a fala de outrem. Alm de fornecer nome e sobrenome abreviado

    24 Anatol Rosenfeld considera que a literatura dramtica no se contenta em ser literatura, j que, sendo

    incompleta, exige a complementao cnica. A encenao que faz a passagem da palavra enquanto entidade temporal e auditiva existente no texto escrito para a dimenso udio-visual do espetculo. Cf. ROSENFELD, Anatol. A Essncia do Teatro. IN: Prismas do Teatro. So Paulo, Perspectiva, 2000, p. 21-26. 25

    Wilma Aras desenvolve uma sugestiva (embora pequena) anlise na qual aponta o carter espetacular e circense da conduo narrativa de HE e tece ligaes de Macaba com a figura do clown. A crtica comenta, entre outros aspectos, que o enredo do romance menos trama que direo de palco e fala de Rodrigo como travesti confesso de Clarice. Alm disso, considera que o pathos tragicmico o verdadeiro tom de HE. Cf. ARAS, Wilma. O Sexo dos Clowns. IN: Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, n.104, jan-mar. 1991, p. 145-153.

  • 21

    (Eu, Rodrigo S.M.), o narrador afirma ser o personagem mais importante da histria, assumindo ironicamente, ao que parece, um poder de oniscincia que logo se revelar falso, tendo em vista as suas dvidas e indagaes a respeito dos rumos da narrativa. Contores gestuais tambm no faltam a esta apresentao estridente do narrador-autor masculino: no decurso de poucas pginas, ele confessa uma dor de dentes, canta alto uma melodia sincopada e aguda (reflexo da dor de dentes), grita, esfrega as mos para esquentar o corpo. Na seqncia, no se esquece de forjar um figurino adequado para a apresentao frente aos leitores, convertidos em uma espcie de platia que acompanha a montagem do espetculo em curso. Com olheiras escuras e barba por fazer, Rodrigo se veste com roupa velha e rasgada, terminando a construo da mscara enquanto assimilao arlequinal de diferentes retalhos discursivos (o social, o filosfico, o retrico, o intelectual, o folhetinesco) que demandaro anlise cuidada no desenvolvimento de nosso trabalho. Por enquanto, investiguemos a noo da mscara em si nas suas possveis ligaes com a pr-histria do gnero romanesco de que a HE parece ser uma encenao deliberada. O prprio Rodrigo, diga-se de passagem, reitera a sua condio narrativa de persona e tambm o j mencionado carter teatral do romance ao dizer, a certa altura, que mais ator que escritor e que faz malabarismos de entonao. A palavra malabarismo no deixa de aludir s razes populares e qui circenses da encenao conduzida, abrindo caminho para que recuperemos possveis ecos de carnavalizao na estruturao do romance, categoria importante para a consolidao da palavra dialgica que vimos buscando compreender. Segundo Bakhtin, nos termos de sua potica histrica, a prosa romanesca guarda enquanto gnero a memria arcaica da linguagem carnavalesca enraizada no espao da rua e da praa pblica e, de certa forma, recuperada nos palcos do teatro popular. Tal linguagem encontraria na mscara o seu smbolo fundamental. Nas palavras do autor russo, o motivo da mscara, inseparvel do espetculo carnavalesco, o motivo mais complexo, mais carregado de sentido da cultura popular,26 exprimindo, em sua inesgotvel simbologia, a alegria da metamorfose e da transferncia, da alternncia e da renovao. Inseparvel do tempo-espao peculiar da festa pblica, a mscara a expresso da relatividade de tudo, da negao do sentido nico e da identidade, instaurando o dilogo pardico com as linguagens oficiais e dominantes e constituindo, portanto, o nascedouro folclrico do dialogismo romanesco. Pardia, caricatura, careta, contoro e macaquice so todas manifestaes derivadas da mscara, o que nos leva a crer, voltando ao texto, que os malabarismos entonacionais de

    26 Sobre o motivo da mscara, cf. BAKHTIN, Mikhail. Apresentao do Problema. IN: A Cultura Popular na

    Idade Mdia e no Renascimento, op.cit., p. 1-50.

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    Rodrigo, na sua interao dialgica com outros discursos, remetem a esta recuada origem do gnero:

    (...) Ou no sou um escritor? Na verdade sou mais ator porque, com apenas um modo de pontuar, fao malabarismos de entonao, obrigo o respirar alheio a me acompanhar o texto. (HE, p. 29)

    Obviamente, a mscara construda por Clarice via Rodrigo no conserva integralmente

    a alegria renovadora tpica das manifestaes do carnaval popular, ainda que, a nosso ver,

    se origine desta memria ancestral formadora do gnero romanesco. O mesmo Bakhtin

    explica que, arrancado de sua ligao com a viso de mundo carnavalesca, o motivo da

    mscara se empobrece na medida em que incorporado pelo homem em sua dimenso

    privada, longe do contato com o riso festivo e regenerador da praa pblica. No mbito da

    vida privada e burguesa e sobretudo no da individualidade isolada que a se firma, tanto a

    mscara quanto o riso se tingem de ironia, humor ou sarcasmo. Fora da unidade da

    mundivivncia popular, na qual representa a natureza inesgotvel da vida e de seus mltiplos

    rostos, a mscara, no contexto da literatura de representao do indivduo privado, ganha

    significaes sombrias: pode dissimular, enganar, encobrir. Do mesmo modo, o riso, atenuado

    e reduzido, recebe colorao irnica e destrutiva. A propsito, lembremos aqui da pena da

    galhofa e da tinta da melancolia, imagem com que Machado de Assis parece definir esta

    ambigidade do riso moderno no intrito de Memrias Pstumas de Brs Cubas,27 romance

    no qual a figura de um defunto-autor, mscara dialgica ancestral que remete stira

    menipia28, se combina com a mimesis da realidade imediata, comprovando a peculiaridade

    27 ASSIS, Machado de. Memrias Pstumas de Brs Cubas. So Paulo, tica, 1995. Nesta edio, o prefcio ao

    leitor encontra-se na pgina 16. 28

    Bakhtin faz um longo estudo a respeito da stira menipia, vendo, neste gnero da Antigidade, etapa crucial para a formao da palavra dialgica tpica do romance. Embora tambm tenham sido escritas na Grcia, as stiras menipias se consolidaram no mbito da cultura romana, recebendo sua denominao do filsofo grego Menipo de Gdara. Em termos gerais, as menipias apresentam uma liberdade incrvel de imaginao criadora, baseando-se em enredos fantsticos que no devem mais fidelidade representao do mito ou da lenda nacional, tpicos na organizao do enredo dos gneros elevados e cannicos. Nesse sentido, os heris da menipia sobem aos cus, descem ao inferno, erram por pases fantsticos numa liberdade de inveno original (fantstico livre). A representao do inferno, por exemplo, deu origem ao gnero do dialgo dos mortos, amplamente difundido na literatura europia e de onde parece descender o defunto-autor de Machado. Como gnero misto e protico, neste aspecto muito semelhante ao romance, as stiras menipias costumam tambm combinar o simbolismo fantstico com a representao da vida cotidiana e grosseira, estabelecendo assim um dialgo com as linguagens e idias de seu tempo. Cf. BAKHTIN, Mikhail. Particularidades do Gnero, do Enredo e da Composio das Obras de Dostoivski, op. cit., p. 112-120.

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    do realismo do mestre bruxo, sempre aberto para um certo arcasmo de tcnicas e de fontes.29

    Embora no seja nossa inteno qualquer tipo de estudo comparativo, o fato que o dialogismo estrutural de HE deixa margem para uma possvel constatao de

    intertextualidade entre o histrionismo de Rodrigo e Brs, ambos, a seu modo, mscaras

    narrativas manipuladas pelos respectivos autores.30

    Galhofa e melancolia so termos que soam apropriados tambm para a caracterizao

    de Rodrigo, cuja mscara no esconde uma caracterizao cansada e surrada. As olheiras, a barba mal feita e a roupa velha e rasgada so indcios de que o antigo colorido alegre da

    mscara em sua origem carnavalesca cede lugar a um tom esmaecido e sombrio. A sutil

    aproximao entre artista e mendigo que resulta dessa caracterizao teatral/ circense que

    Rodrigo faz de si mesmo d a ele ares de um bufo degradado que ainda deixa ver e ouvir, em

    tempos de massificao progressiva, o desenho de suas caretas e momices bem como o som

    de seu guizos. O tambor batido por um soldado e o violino tocado, na esquina, por um homem

    magro de palet pudo (outra imagem do artista-mendigo que esmola com sua msica) so ecos do mundo da feira ou da praa popular de onde se aprende o uso da mscara. bastante sintomtico que, na tentativa desesperada de escrever um romance que no quer sair, em

    estado de emergncia e de calamidade pblica como avisa a autora no prefcio em tom

    cmico-srio j previsto, Rodrigo redescubra categorias arcaicas que vigem adormecidas no gnero em sua mais remota origem. Na construo dos personagens, como ainda veremos, a

    noo de mscara tambm ser fundamental, principalmente quando pensamos nos papis de

    Macaba, Olmpico, Glria e a cartomante na imagem de enredo cunhada e conduzida, em

    ritmo de espetculo, pelo narrador e pseudo-autor Rodrigo:

    29 Antonio Candido afirma que o que mais chama a ateno do crtico na obra de Machado de Assis a

    despreocupao com as modas dominantes de sua poca e o aparente arcasmo da tcnica. Candido mostra como o realismo machadiano se afasta da maneira francesa preconizada por Flaubert ou Zola e se volta para fontes anteriores ao sculo XIX, seja para a bisbilhotice saborosa de Sterne, seja para o conto philosophique Voltaire. Tanto Sterne quanto Voltaire, diga-se de passagem, esto entre os autores citados por Bakhtin como descendentes da linha carnavalesca geradora do romance europeu, o que pode ajudar a comprovar as possveis fontes cmico-srias do narrador machadiano das Memrias. Cf. CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. IN: Vrios Escritos. So Paulo, Livraria Duas Cidades, 1977, p. 15-32. De Bakhtin, cf. o j citado Duas Linhas Estilsticas do Romance Europeu. 30

    Numa primeira resenha crtica que escreve para o recm lanado romance de Lispector, Benedito Nunes afirma que Memrias Pstumas de Brs Cubas e Memrias Sentimentais de Joo Miramar so, em nossa histria literria, dois antecedentes de HE no que tange relao autor-personagem, com seus estratagemas e duplicidades, frise-se. O crtico tambm reconhece a condio de mscara ou disfarce de Rodrigo, mas prefere ressaltar, por trs dele, a presena de Clarice e os dilemas finais de sua fico. Cf. Clarice Lispector A Hora da Estrela. IN: Revista Colquio Letras. Lisboa, nov. 1978, n 46, p. 104-105.

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    Esqueci de dizer que tudo o que estou agora escrevendo acompanhado pelo ruflar enftico de um tambor batido por um soldado. No instante mesmo em que eu comear a histria__ de sbito cessar o tambor. (HE, p. 28).

    A idia de travestimento pardico, com eco carnavalesco longnquo, no parece absurda quando analisamos o tom trocista ou jocoso, para voltar aos termos de Nunes, que preside a metamorfose Clarice/Rodrigo nas pginas iniciais do romance. Ao se fantasiar de homem e deixar claro, na assinatura do prefcio, de que se trata de uma fantasia, Lispector est, nos termos de Bakhtin, exercitando o poder antiqssimo da mscara de permitir falar no lugar do outro e com a linguagem do outro. Neste caso, a metamorfose pardica adquire estatuto de crtica social, dialogando ironicamente com a ideologia patriarcal dominante, que tende a enxergar a literatura feminina sob a tica da alienao, do sentimentalismo e da pieguice.31 Como deve ter ficado implcito, o papel do carnaval consiste em destronar temporariamente a linguagem oficial, macaqueada dialogicamente pelo riso alegre e regenerador. Embora o riso aqui j no seja to alegre e festivo, o fato que a troca de sexos consiste num episdio comum da esfera carnavalesca, revisitada no contexto da cena privada. Do cubculo em que escreve (assunto a que voltaremos), Rodrigo no perdeu completamente os vnculos com a rua e a praa. Alis, o prprio tema social que persegue, a histria da nordestina Macaba, impe a tentativa de religamento com a arena pblica perdida no isolamento do intelectual e escritor fracassado:

    Alis__ descubro eu agora__ tambm eu no fao a menor falta, e at o que escrevo um outro escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas. (HE, p. 18).

    31 Sabe-se que, nos anos de endurecimento da ditadura no Brasil, Clarice Lispector foi muito cobrada

    politicamente. A escritora chegou a ser enterrada no cemitrio de Henfil, conjunto de tiras do famoso cartunista nas quais se desenhavam os tmulos dos reacionrios. Em entrevista posterior, Clarice reagiu com raiva a comentrios do mesmo Henfil a seu respeito, mandando dizer ao cartunista que seu nome era com c e no com dois esses. Talvez j em combate ao rtulo de alienada que tanto a desagradava, Clarice acrescenta um P. S. a uma crnica semanal sua, datada de 6 de abril de 1968, na qual se diz solidria, de corpo e alma, com a tragdia dos estudantes do Brasil. Acreditamos, a partir destes dados, que a criao de um narrador masculino em HE, sobretudo no que ele tem de travesti pardico e bufo, constitua tambm uma resposta dialgica s patrulhas ideolgicas que sempre exigiram de Clarice o engajamento poltico-social de sua obra. Obviamente, nos moldes da autora, este engajamento no poderia deixar de aparecer em chave burlesca atravs da pardia do lugar e da voz masculina num pas que, quela altura, chegara ao auge do reacionarismo. Neste ponto, o arremedo masculino pode ser a contra-resposta clariciana s vozes que a acusaram, relativizadas e destronadas pelo riso (irnico). A respeito do episdio das charges de Henfil, cf. ARAS, Vilma. Clarice Lispector. IN: PIZARRO, Ana (org.). Amrica Latina Palavra Literatura Cultura. So Paulo, Memorial; Campinas, Unicamp, 1995, v.3, p. 442. Sobre as reaes de Clarice aos comentrios de Henfil, cf. E Agora?. IN: MANZO, Lcia. Era Uma Vez: Eu A No-fico na Obra de Clarice Lispector. Curitiba, Secretaria do Estado da Cultura, The Document Company-Xerox do Brasil, 1997, p. 203-204. A referida crnica de abril de 68 encontra-se em LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1992, p. 90-91.

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    Antecipando possveis rplicas quanto nossa pretenso de aplicar uma categoria da esfera pblica e popular, a mscara, na anlise e interpretao de um romance moderno que representa a vida subjetiva e privada de um escritor-autor em crise de criao, faamos um pequeno excurso terico que possa embasar a referida pretenso. Recapitulando, o fato que as noes de mscara e dialogismo correm juntas, sendo Rodrigo, conforme hiptese inicial de leitura, a expresso de ambas. Na verdade, Clarice no est fazendo nada que nenhum outro romancista no tenha feito antes, exercitando a liberdade ficcional de eleger algum tipo de ponto de vista para representar a realidade. Ao recorrer a um pseudo-autor, como ficou dito, a escritora adota um estratagema comum criao romanesca, desde cedo compromissada com o retrato verossmil da experincia individual e da vida cotidiana. No entanto, ao disputar espao com o seu autor fictcio, a romancista desnuda propositalmente o jogo, revela as regras implcitas da mgica e reitera o carter de artifcio envolvido na sua inveno. Por isso, acreditamos, Rodrigo se impe explicitamente como mscara manipulada pela verdadeira autora, que faz questo de firmar seu nome no prefcio e entre os treze ttulos. A atmosfera de artifcio ainda reforada pelo jogo cnico e espetacular da narrao do pseudo-autor, comandada maneira dramtica atravs de rubricas jocosas. A hiptese de que Rodrigo constitui uma verso moderna e degradada do bufo advm da constatao de que elementos de sua encenao passam pelo aprendizado dos palcos populares,32 onde tambm vai encontrar parte da imagem da sua nordestina estropiada e tola e dos trapaceiros Olmpico e Madama Carlota.

    Segundo a teoria bakhtiniana, um dos problemas que se colocam para o romancista o de encontrar uma posio adequada tanto para ver a vida quanto para torn-la pblica. Uma especificidade importante do romance que constitui a particularidade do gnero a de colocar autor, leitor e mundo representado num mesmo plano axiolgico e temporal. Ao contrrio da epopia, que se orienta para o passado absoluto do mito nacional e desloca o eixo da representao para um tempo-espao distante daquele em que se inserem autor e ouvinte, o romance encontra no presente inacabado o seu eixo representacional, voltando-se para a mimesis da vida corrente e atual (que inclui obviamente autor e leitor).33 No ser preciso lembrar que, nas pginas iniciais de seu relato, Rodrigo, em chave novamente irnica, menciona a importncia de se pisar na hora presente e atualizar-se, utilizando-se do patrocnio burlesco da

    32 Vilma Aras volta a insistir, em outro estudo seu, na vinculao de HE com os palcos populares, destacando

    sobretudo a origem circense do jogo cnico conduzido por Rodrigo, feito de mscaras, trejeitos, improvisao e delrio verbal, lugares-comuns colados rutilncia do discurso literrio, que no lado avesso exibe seus remendos. Cf. ARAS, Vilma. Clarice Lispector, op. cit., p.443. 33

    A respeito das diferenas propostas por Bakhtin entre romance e epopia, cf. BAKHTIN, Mikhail. Epos e Romance. IN: Questes de Literatura e de Esttica A Teoria do Romance, op.cit., p. 397-428.

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    coca-cola como um dos estratagemas para isso. Ademais, ao dizer, numa tautologia brincalhona, que hoje hoje, ele parece dialogar parodicamente com a necessidade (lembre-se de que a narrativa escrita em estado de emergncia e calamidade) de representar a atualidade, exigncia inerente ao romance enquanto gnero e ainda mais necessria quando se pensa na alardeada inteno engajada e social do projeto literrio de HE:

    Quero acrescentar, guisa de informaes sobre a jovem e sobre mim, que vivemos exclusivamente no presente pois sempre e eternamente o dia de hoje... (HE, p. 23).

    Mas voltemos a hoje. Porque, como se sabe, hoje hoje. (HE, p. 26).

    Voltando, o fato que esta ligao do romance com a vida presente, suas diversas linguagens e ideologia, implica, por parte do romancista, posto tambm na cena do mundo representado, uma liberdade de se mover livremente pelo campo da representao, aparecendo em qualquer atitude ou imagem. Em outros termos, o autor pode se intrometer na conversa dos personagens, polemizar com diferentes discursos, dialogar com o leitor ou at mesmo, nos termos exatos de Bakhtin, representar os momentos reais de sua vida ou fazer uma aluso.34 Ao contrrio do que ocorre na epopia, em que o universo representado permanece inacessvel e fechado no seu acabamento dado pelo mito e pela tradio, o romance elege o presente inacabado como eixo temporal e axiolgico, abrindo-se assim para a mimesis da contemporaneidade e permitindo que autor e leitor se encontrem numa zona de contato franco e familiar e possam se imiscuir de diferentes maneiras no mbito da representao. A excessiva presena de Rodrigo S.M. na rea de representao de sua personagem bem como o seu dilogo provocativo com o leitor podero ser vistos certamente como uma exacerbao desta liberdade do romancista de incluir-se, em qualquer posio, no campo representado. A prpria incluso da Clarice-autora no prefcio e sobretudo suas projees autobiogrficas no pseudo-autor masculino so indcios de uma espcie de saturao autoral(a verdadeira firmada no prefcio e a fictcia conduzida por Rodrigo), tornada possvel apenas pela vocao dialgica do gnero. O motivo da mscara35 vem ao socorro do romancista exatamente neste ponto em que ele, includo na prpria representao literria, necessita de um lugar para a observao da vida cotidiana, especificamente no que ela tem de privado ou particular. Segundo Bakhtin, a

    34 BAKHTIN, Mikhail, Epos e Romance, op.cit., p.417.

    35 Nas palavras de Bakhtin: O romancista precisa de alguma espcie de mscara consistente na forma e no

    gnero que determine tanto a sua posio para ver a vida, como tambm a posio para tornar pblica essa vida. IN: Funes do Trapaceiro, do Bufo e do Bobo no Romance, Questes de Literatura e de Esttica A Teoria do Romance, op. cit., p. 277.

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    vida privada no d lugar, por sua prpria natureza, a um observador ou terceiro, que estaria no direito de constantemente observ-la e julg-la.36 Como literatura da vida privada e da representao dos discursos que nela se travam, o romance exercitaria ento a arte de espiar e ouvir como vivem os outros, necessitando, portanto, de artifcios que permitam tornar pblico o particular. Nesse sentido, a mscara deve ser considerada uma categoria essencialmente dialgica de investigao e de apropriao das falas de outrem, podendo ser tanto utilizada pelo romancista quanto representada deliberadamente em determinados personagens. Ademais, na dimenso da vida popular e carnavalesca, onde encontra, por assim dizer, o seu habitat natural, a mscara no deixa de se associar imagem do homem inacabado e em incessante transformao de identidade, imagem herdada pelo romance em sua pretenso de retratar a contemporaneidade aberta e inconclusa e sobremaneira o indivduo em seu permanente porvir. Nesse aspecto, o gnero encontraria sua base na experincia pessoal e na livre inveno criadora, opondo ao heri acabado da epopia e do passado absoluto, o heri do processo sempre atual da vida, o heri das mltiplas improvisaes.37 Enfim, por trs da mscara, tambm se firma a idia da metamorfose, motivo antiqssimo de estruturao do romance no que concerne representao do homem em seus momentos de crise, transformao e converso. Sem dvida, a metamorfose Clarice-Rodrigo via mscara, feita em estado de urgncia e calamidade, origina-se de uma crise particular do cidado e pseudo-autor Rodrigo, que resulta na tentativa de construir um romance social aps o contato incmodo com a misria, vista, num relance casual, no rosto de uma nordestina pobre:

    que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdio no rosto de uma moa nordestina. (HE, p.16).

    36 Bakhtin estuda os modos de representao da vida privada no captulo em que faz uma anlise das obras de

    Apuleio e Petrnio, nas quais detecta uma outra fonte arcaica do romance. Nos dois autores da Antigidade, firma-se a representao do tempo biogrfico (as crises e transformaes do homem) inserido na esfera da vida privada e cotidiana. Trata-se de um tempo-espao, ou nos termos especficos de Bakhtin, um cronotopo fundamental na evoluo do romance ocidental. No captulo, o estudioso russo aborda diferentes formas de introduo do terceiro na observao da vida cotidiana, estabelecendo uma tipologia de personagens a que freqentemente so atribudas esta funo. Cf. BAKHTIN, Mikhail. Apuleio e Petrnio. IN: Questes de Literatura e de Esttica A Teoria do Romance, op.cit, p. 234-249. 37

    Para Bakhtin, a mscara e sua estrutura permanecem na memria do gnero romance, condicionando o seu modo especfico de representao literria. As mscaras populares, em especial, guardam de seu passado carnavalesco, a possibilidade da eterna renovao/improvisao. A caracterstica dos personagens que vestem estas mscaras nos palcos populares (Arlequim, Polichinelo, entre outros) a sua capacidade de figurarem em qualquer enredo ou situao, arremedando discursos e linguagens vrias. Ao fazer esta ponte entre a improvisao livre dos palcos populares e o romance, Bakhtin refora a total liberdade criadora do romancista (que pode figurar em qualquer atitude e posio no mundo representado) e o carter inacabado do enredo e do personagem romanesco, para os quais resta sempre um excedente de humanidade no realizado. Cf. BAKHTIN, Mikhail. Epos e Romance, op.cit., p. 425

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    Ainda no que concerne aos modos mimticos de observao da vida privada, problema crucial que o romance precisa resolver na sua tarefa de representar a atualidade corrente, Bakhtin aponta uma srie de personagens recorrentes que funcionariam como mscaras do terceiro na espionagem da vida particular.38 Entre eles, cita o aventureiro ou trapaceiro, o parvenu, a prostituta, a alcoviteira, o criado, o vagabundo, o mdico, o parasita, o charlato, reconhecendo em todos, dentro da lgica de uma potica histrica de gnero, a verso atualizada e transformada de motivos antigos detectados em obras da Antigidade.39 Nos referidos personagens, importantssimos para a evoluo do romance, detecta-se uma posio insegura e indefinida de vida que os capacita, no processo de obter carreira, riqueza ou glria, a estudar os mecanismos secretos da esfera privada e a auscultar seus segredos mais ntimos. Entendemos que, na imagem de enredo construda por Rodrigo S.M., ou seja, no mbito de sua trama essencialmente pardica, tanto o personagem Olmpico, cabra macho nordestino deslocado na grande cidade, quanto Madama Carlota, prostituta convertida em cartomante, descendem certamente desta linhagem do aventureiro/trapaceiro, cuja funo dialgica, por assim dizer, reside no aprendizado e na mimetizao da linguagem e dos valores do mundo dos outros a que aspiram em seu projeto arrivista. Nas palavras esclarecedoras do narrador Rodrigo:

    No se arrependeu um s instante de ter rompido com Macaba pois seu destino era o de subir para um dia entrar no mundo dos outros. Ele tinha fome de ser outro. (HE, p.79).

    Ecos longnquos do motivo da metamorfose, inseparvel da noo de mscara, voltam a ressoar nesta converso de Olmpico ao to ambicionado cl do sul, onde, como se sabe, ele virar doutor e deputado. Do mesmo modo, a longa histria contada por Madama Carlota,

    38 Cf. BAKHTIN, Mikhail. Apuleio e Petrnio, op.cit., p. 246-247.

    39 No estudo histrico que faz dos cronotopos, ou seja, das diferentes formas de representao espcio-temporal

    encontradas na longa estrada da evoluo do gnero romanesco, Bakhtin detecta, no Asno de Ouro de Apuleio, a representao do tempo-espao da vida privada do indivduo e tambm da vida cotidiana. Com base na categoria da metamorfose, tpica deste cronotopo biogrfico e cotidiano, cria-se o tipo de mimesis da vida humana em seus momentos excepcionais de ruptura e de crise, atravs da qual so fornecidas diferentes imagens do homem em pocas e etapas distintas de sua existncia. A metamorfose de Lcio em asno constituiria uma das etapas da trajetria do personagem e representaria uma mscara bastante eficaz para a observao dos segredos da vida cotidiana. Na presena do asno, ningum se acanha, revelando-se totalmente. Num certo sentido, esta situao excepcional do asno converte-se numa espcie de arqutipo dos personagens que mais tarde o romance eleger como o terceiro na observao da vida cotidiana. Vale a pena lembrar, nesse sentido, que o motivo do asno retomado por Dostoivski no romance O Idiota, cujo protagonista, figurao importante da linhagem do tolo de que tambm descende Macaba, age como um observador sagaz, sob o disfarce da ingenuidade, da vida alheia. Lembramos que um asno, no fundo uma das possveis metforas da tolice sbia representada no romance de Dostoivski, a primeira viso do protagonista quando ele chega a uma aldeia na Sua, vindo da Rssia, para uma breve temporada. Sobre o motivo da metamorfose, cf. o j citado Apuleio e Petrnio. Sobre a cena do asno no romance de Dostoivski, cf. DOSTOIVSKI, Fiodor. O Idiota. Trad. de Paulo Bezerra. So Paulo, Ed. 34, 2002, p. 78- 79.

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    mestra na arte da palavra, versar sobre sua progressiva transformao de prostituta em cafetina e posteriormente em cartomante, numa exposio orgulhosa de sua tambm vitria e entrada no mundo dos outros. No caso dela, o desenho da mscara ainda mais visvel, sobretudo no que ele tem de incorporao de retalhos discursivos vrios, rebaixados pelo tom irnico, verso moderna de um riso atenuado. Religio, consumo e cultura de massa se cruzam na decorao de plstico do apartamentozinho trreo(metfora de uma ascenso ilusria), onde se v estampado o corao de Cristo e esplende o rosto (mscara estropiada com batom vermelho e ruge brilhoso) da madama que parecia um boneco de loua meio quebrado. (HE, p. 87). J Macaba, figura central deste enredo bufo e espetacular comandado por Rodrigo como artifcio pardico de incorporao dialgica de discursos, completa o rol das mscaras manipuladas pelo narrador, ressuscitando uma outra figura antiqssima da arcaica romanesca tambm vinculada aos palcos populares e ao folclore

    carnavalesco a figura do tolo. Novamente ser o rosto (flagrado por Rodrigo numa rua da cidade) o veculo fundamental para a caracterizao inicial da mscara:

    A pessoa de quem vou falar to tola que s vezes sorri para os outros na rua. Ningum lhe responde ao sorriso porque nem ao menos a olham. (HE, p.20).

    Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Tanto que (exploso) nada argumentou em seu prprio favor quando o chefe da firma de representante de roldanas avisou-lhe com brutalidade (brutalidade essa que ela parecia provocar com sua cara de tola, rosto que pedia tapa), com brutalidade que s ia manter no emprego, Glria(...) (HE, p. 31, grifo nosso).

    AINDA O ESPETCULO: O BUFO, O TRAPACEIRO E O TOLO

    O tolo compe, ao lado do bufo e do trapaceiro, o conjunto dos trs personagens que Bakhtin vai buscar nos palcos teatrais populares como representantes tpicos das mscaras folclricas primitivas que sero posteriormente incorporadas pelo romance em sua evoluo.40 A partir destas figuras fundamentais, o gnero encontraria seu principal entroncamento com a cultura do riso carnavalesco, responsvel, segundo o vis da potica histrica, pela consolidao da palavra dialgica naquele aspecto de sua franca familiarizao com as linguagens da esfera cotidiana, tornada possvel pela aproximao destronadora que o riso

    40 Cf. BAKHTIN, Mikhail. Funes do Trapaceiro, do Bufo e do Bobo no Romance, op.cit., p. 275-281.

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    festivo permite em relao ao objeto representado, no caso, a diversidade de discursos que estruturam a vida social. 41 Embora possuam caractersticas especficas, bobo, trapaceiro e bufo congregam em torno de si um cronotopo especial na tica bakhtiniana, o tempo-espao da praa e da feira pblica, locais privilegiados no aprendizado da mimesis da fala alheia. Desse modo, o discurso dos trs personagens guarda um significado figurado, porque tudo o que dizem no tem sentido direto e imediato, mas sim um sentido pardico, isto , orientado para a fala de um outro e, por isso, fundamental para a origem da noo de dialogismo. Espcies de saltimbancos da vida, as trs figuras tambm portam um estatuto peculiar de existncia, estando ao mesmo tempo dentro e fora da vida, sem se ligar a nenhum papel especfico ou definido na rbita social, exceo feita para o trapaceiro, que ainda mantm vnculos com a realidade circundante. Um tanto estrangeiros neste mundo e sem se solidarizar com uma posio definida nele, bobo, trapaceiro e bufo usufruem do poder que a mscara lhes d de estar em qualquer situao e de arremedar qualquer linguagem, funcionando, portanto, como os principais antecedentes do referido terceiro introduzido no campo de observao da vida privada e cotidiana. Na passagem dos palcos populares para a estruturao da prosa romanesca, as referidas mscaras dialgicas podem ser detectadas tanto na rbita do autor quanto na das personagens. Especialmente o tolo e o bufo, pelo seu desligamento essencial de uma posio especfica na esfera da vida cotidiana, acenam com um poder incrvel de observao e de arremedo de linguagem, constituindo, pois, as figuras mais encontradas no mbito autoral. Trata-se mesmo do excepcional poder de espionagem do terceiro, ao mesmo tempo dentro e fora da vida observada e, como tal, detentor de excepcionais possibilidades narrativas. Obviamente, tolo e bufo podem tambm ser simbolizados na figura de um personagem principal que seja detentor dos pontos de vista do romancista. Isso parece ocorrer em HE, posto que Rodrigo S.M., fazendo uso de seu poder dialgico, tambm veste, atravs da nordestina com quem busca se identificar, a mscara da tolice, inconsciente nela e consciente nele. Alm disso, como narrador que passeia livremente por inmeras posies narrativas, Rodrigo sabe, do mesmo modo, vestir a mscara do trapaceiro, utilizando-a para experimentar parodicamente a fala alheia e denunciar seus clichs. Como demonstraremos, no momento

    41 Bakhtin considera que o riso carnavalesco e tambm o riso dos gneros cmico-srios destri qualquer tipo de

    distncia hierrquica em relao ao objeto da representao. Nesse sentido, o riso institui uma zona de contato familiar com a imagem do homem e do mundo, mostrados em novos e surpreendentes aspectos no revelados pela representao sria ou elevada. Toda obra cmica trabalharia numa rea de aproximao mxima com a vida, destruindo a distncia pica e permitindo um apalpar direto do objeto, profanado, destronado, desmascarado. Cf. a respeito o j citado Epos e Romance, p. 413-415.

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    posterior da anlise42, uma forma importante de dialogismo est nesta funo do autor ou narrador de falar na rea de seus personagens, fazendo ressoar em seu discurso o discurso do outro.43

    Voltando funo da mscara na constituio da palavra romanesca, o seu poder reside no direito de arremedar e confundir, de falar parodiando, de representar a vida como comdia e as pessoas como atores.44 Aqui, a pertinncia desta afirmao de Bakhtin aplica-se precisamente ao carter espetacular do enredo de HE, conduzido, como demonstrado, nos moldes de um espetculo. Alis, a conduo de Rodrigo no poderia ser diferente, j que sua trama est montada de forma pardica de modo a dialogar criticamente com diferentes categorias de romance cuja construo encenada. Do mesmo modo, os personagens de HE, manipulados pelos cordes do narrador, no deixam de ostentar certos traos de estereotipia proposital,45 possvel num enredo construdo, por assim dizer, atravs do cronotopo intermedirio do palco popular, apropriado obviamente no tom da ironia moderna, que vai descaracterizando em farsa a autenticidade originria da mscara em seu nascedouro folclrico (neste ponto, outra influncia arcaica sobre o romance de Lispector pode estar no teatro de marionetes).46 Lembramos que uma das cenas que flagram os primeiros encontros

    42 Em termos de mtodo, compreendemos que o momento da anlise seja o do detalhamento objetivo das partes e

    mincias do texto que permita sustentar, na forma de um juzo universalmente vlido, aquilo que, por enquanto, ainda so impresses e hipteses de leitura. Remeto novamente o leitor ao j citado O Terreno e As Atitudes Crticas. 43

    Num texto bastante didtico, Bakhtin apresenta as diferentes formas de introduo do plurilingismo no romance, detendo especial ateno a esta capacidade do autor ou narrador de falar na rea de seus personagens. Neste ponto, Bakhtin estuda o interessante fenmeno da hibridizao, tpica do discurso romanesco, no qual sempre ressoam vozes em interao, ainda que sob o disfarce de um aparente monologismo do discurso autoral. Cf. o j citado O Plurilingismo no Romance, p. 120-124. 44

    Cf. o citado Funes do Trapaceiro, do Bufo e do Bobo no Romance, p. 278. 45

    Arnaldo Franco Junior estuda, com base na teoria da incorporao do Kitch em HE, o uso de personagens-esteretipo oriundos do folhetim e do melodrama. O crtico ainda defende a existncia de um clima de farsa na conduo do romance, mostrando como o ansiado engajamento social proposta por Rodrigo se converte em folhetim melodramtico bem como o meta-romance de sua vida se converte em melodrama existencial. Concordamos com o posicionamento de Franco Junior e chegamos a concluses parecidas, ainda que por vias tericas distintas. Cf. FRANCO, Arnaldo Junior. O Kitch na obra de Clarice Lispector. So Paulo, FFLCH, 1993. (Dissertao de Mestrado). 46

    Numa breve passagem, Bakhtin comenta que o cronotopo do teatro de marionetes est na base do Tristam Shandy. Para o estudioso russo, o estilo de Sterne o estilo da marionete de madeira, manipulada e comentada pelo autor. A mesma tcnica, Bakhtin a detecta no Nariz de Gogol. Com base nesta sugesto, achamos pertinente a presena de um eco do espetculo de marionetes tambm em HE, sobretudo nas cenas em que Rodrigo narra, com artifcios explcitos, os encontros entre Macaba e Olmpico (a que voltaremos no decurso da anlise). Cabe lembrar o modo como Rodrigo se culpa por guiar tanto o destino de Macaba, que, comandada em sua ingenuidade por todos, no deixa de ser vtima da manipulao excessiva do narrador. Torna-se sintomtico, nesse sentido, que a frase usada por Rodrigo para anunciar a morte da nordestina, tambm conduzida por ele de forma espetacular, seja a frase que est na cena de uma traio clebre: At tu, Brutus? Cf. a respeito do teatro de marionetes o j citado Funes do Trapaceiro, do Bufo e do Bobo no Romance, p.281. A clebre frase de Csar aparece em HE, p. 102.

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    entre Macaba e o namorado Olmpico ocorre num banco de praa pblica, espao fundamental para a constituio, via cultura popular e carnavalizao, da palavra pardica.

    A redescoberta da praa por Rodrigo, intelectual que escreve seu romance de um cubculo apertado, pode ser o sintoma do cruzamento do privado com o pblico e a prova de que os procedimentos bufos de estruturao de HE passam pelo aprendizado do palco popular e pela incorporao das mscaras constituintes da arcaica romanesca. Na cena em questo, Macaba e Olmpico sentam no que de graa, banco de praa, e incapazes de inventar acontecimentos, deixam ao narrador a funo de comandar os cordes da cena. A incluso dos pronomes ele e ela antes das respectivas falas dos personagens, procedimento dramtico explcito, aponta a presena de Rodrigo nos bastidores e remete ao citado modelo do espetculo de marionetes. Por fim, a associao da praa com o que de graa representa a nostalgia de um espao ainda no completamente corrompido pelo capitalismo reinante e pela massificao progressiva, algo ilusrio quando se pensa no avano da cultura de massa no cenrio da grande cidade (o prprio patrocnio da coca-cola pode ser uma prova disso).47 Cabe lembrar aqui que faz parte do contexto dialgico do romance o cruzamento de elementos discursivos oriundos da cultura popular e da cultura de massa, o que pode responder pelo tom ambivalente do espetculo conduzido por Rodrigo, que j no pode conservar a autenticidade folclrico-festiva do riso carnavalesco de origem.48 No parece fortuito, nesse sentido, as vrias vezes em que o narrador se diz enjoado da histria e exprime seu cansao diante da banalidade dos fatos com os quais encena a narrativa (o uso de parnteses, ao modo de rubricas, continua a reiterar, no decorrer do romance, o carter teatral da estruturao do enredo). , nesse sentido, que a histria enjoativa e banal transita muitas

    47 Em um importante ensaio sobre a dinmica cultural brasileira, Alfredo Bosi estuda as relaes entre a cultura

    popular e a cultura de massa, mostrando como o poder econmico expansivo dos meios de comunicao e a investida tcnico-econmica do neocapitalismo moderno cobre todo o territrio nacional com uma aparncia de modernizao que, primeira vista, no parece deixar mais nenhum espao prprio para os modos de ser arcaico-populares. O crtico ainda mostra diferentes exemplos de incorporao e descaracterizao da cultura popular pela de massa (o exemplo do carnaval na televiso), mas insiste na sobrevivncia do popular no interior da rede familiar e comunitr