não menos que nada

Upload: pedro-davoglio

Post on 04-Apr-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/31/2019 No menos que nada

    1/4

    No menos que nada, mas simplesmente nada

    Slavojiek

    2 de julho de 2012

    Se eu sou censurado pela resenha de Jonh Gray a respeito de meus dois ltimos livros

    ('The Violent Visions of Slavoj iek'1,New York Review of Books, July 12 2012) no

    porque a resenha seja altamente crtica ao meu trabalho, mas porque os seus

    argumentos so baseados em uma incompreenso to grosseira de minha posio que,

    se eu fosse respond-la em detalhe, teria que gastar tempo demais apenas refutando

    insinuaes e recolocando de modo adequado incompreenses a respeito de minha

    posio, para no mencionar afirmaes diretamente falsaso que , para um autor, umdos exerccios mais entediantes imaginveis. Por isso me limitarei a um exemplo

    paradigmtico que mistura m interpretao terica com indignao moral; ele diz

    respeito ao anti-semitismo e est citado detalhadamente abaixo:

    iek diz pouco sobre a natureza da forma de vida que poderia ter surgido

    caso a Alemanha tivesse sido governada por um regime menos reativo e

    impotente do que ele julga ter sido o de Hitler. Mas ele deixa claro que no

    haveria espao nessa nova vida para uma determinada forma da identidade

    humana:

    O status fantasmtico do antissemitismo claramente revelado por uma

    declarao atribuda a Hitler: Temos que matar o judeu dentro de ns.[...]

    Essa afirmao de Hitler diz mais do que ela quer dizer: contra as suas

    intenes, ela confirma que os gentios precisam da figura antissemita do

    judeu para sua identidade. A questo, portanto, no apenas que o judeu

    est dentro de ns o que Hitler esqueceu de acrescentar que ele, o

    antissemita, tambm est no judeu. O que esse entrelaamento paradoxal

    significa para o destino do antissemitismo?

    iek explcito ao censurar certos elementos da esquerda radical pelo seu

    desconforto quando se trata de condenar o antissemitismo inequivocamente.

    1

    Traduo para o portugus em Piau 71, As vises violentas de iek, em. Daqui em diante, todas as citaes do texto em portugus sero retiradas dessa verso. N.T.

    http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-71/tribuna-livre-da-luta-de-classes/as-visoes-violentas-de-zizekhttp://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-71/tribuna-livre-da-luta-de-classes/as-visoes-violentas-de-zizekhttp://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-71/tribuna-livre-da-luta-de-classes/as-visoes-violentas-de-zizekhttp://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-71/tribuna-livre-da-luta-de-classes/as-visoes-violentas-de-zizek
  • 7/31/2019 No menos que nada

    2/4

    Mas difcil entender a afirmao de que a identidade dos antissemitas e a dos

    judeus se reforam mutuamente, de alguma formaideia que se repete, palavra

    por palavra, emLess than Nothing, exceto como uma sugesto de que o nico

    mundo em que o antissemitismo pode deixar de existir um mundo em que

    no existam mais judeus.

    O que est acontecendo aqui? A passagem acima referida deLess than nothing continua

    imediatamente com:

    Aqui podemos localizar novamente a diferena entre o transcendentalismo

    kantiano e Hegel: o que ambos vem, claro, que a figura antissemita do judeu

    no uma reificao (para colocar isso ingenuamente, ela no diz respeito a

    judeus reais), mas uma fantasia ideolgica (projeo), ela est no meu

    olhar. O que Hegel acrescente que o sujeito que fantasia que o prprio judeu

    est "na imagem", que o mecanismo de existncia na fantasia dos judeus

    como uma pequena parte do Real que sustenta a consistncia de sua

    identidade: retire a fantasia antissemita e o sujeito a quem ela pertence se

    desintegra. O que importa no a localizao do Eu na objetividade real, o

    impossvel-real do o que eu sou objetivamente, mas como eu estou

    localizado em minha prpria fantasia, como minha prpria fantasia sustenta o

    meu ser como sujeito.

    Essas linhas no so perfeitamente claras? A implicao mtua no entre os nazistas e

    os judeus, mas entre os nazistas e a sua prpria fantasia antissemita: voc retira a

    fantasia antissemita, e o sujeito a quem a fantasia pertence se desintegra. O ponto no

    que os judeus e os antissemitas so de algum modo co-dependentes, ento o nico

    modo de livrar-se dos nazistas livrar-se dos judeus, mas que a identidade de um

    nazista depende de sua fantasia antissemita: o nazista est no judeu no sentido de que

    a sua prpria identidade fundamentada na sua fantasia do judeu. A insinuao de Gray

    de que eu de algum modo sugiro a necessidade de aniquilao dos judeus uma

    obscenidade to ridcula quanto monstruosa que s serve como argumento para retirar

    crdito do oponente ao atribuir-lhe algum tipo de simpatia pelo mais terrvel crime do

    sculo XX.

  • 7/31/2019 No menos que nada

    3/4

    Ento quando Gray escreve que iek diz pouco sobre a natureza da forma de vida que

    poderia ter surgido caso a Alemanha tivesse sido governada por um regime menos

    reativo e impotente do que ele julga ter sido o de Hitler, ele simplesmente no est

    dizendo a verdade: o que eu aponto que tal forma de vida no precisaria procurar

    por um bode expiatrio como os judeus. Em vez de matar milhes de judeus, um regime

    menos reativo e impotente do que ele julga ter sido o de Hitler transformaria, por

    exemplo, as relaes de produo eliminando seu carter de antagonismo. Essa a

    violncia que estou pregando, a violncia na qual nenhum sangue precisa ser

    derramado. Essa a violncia totalmente destrutiva de Hitler, Stalin, e do Khmer

    Vermelho, que para mim reativa e impotente. nesse sentido simples que eu

    considero Gandhi mais violento do que Hitler:

    Em vez de atacar diretamente o Estado colonial, Gandhi organizou

    movimentos de desobedincia civil, de boicote a produtos britnicos, de

    criao de um espao social com liberdade de ao no interior do Estado

    colonial. por isso que se pode dizer, por mais louco que parea, que Gandhi

    era mais violento do que Hitler. A caracterizao de Hitler que faria dele um

    cara mau, responsvel por milhes de mortes, mas mesmo assim um homem

    com culhes para perseguir seus fins com uma fora de vontade ferrenha no apenas eticamente repulsiva, tambm errada: no, Hitler no teve culhes

    para realmente mudar as coisas. Todas as suas aes foram fundamentalmente

    reaes: ele agiu de modo que nada realmente mudasse; ele agiu para prevenir

    o perigo comunista de uma verdadeira mudana. Sua perseguio aos judeus

    foi em ltima instncia um ato de descentramento com o qual ele evitou o

    inimigo realo ncleo mesmo das relaes sociais capitalistas. Hitler encenou

    um espetculo da Revoluo para que o capitalismo pudesse sobreviver em

    contraste com Gandhi cujo movimento efetivo procurou interromper a base de

    funcionamento do Estado colonial britnico.

    Em vez de entediar o leitor com dzias de exemplos similares de interpretaes errneas

    de Gray, deixe-me apenas mencionar que Gray conclui sua resenha com uma

    observao sobre o alegado isomorfismo entre o capitalismo contemporneo e meu

    pensamento que

  • 7/31/2019 No menos que nada

    4/4

    reproduz o dinamismo compulsivo, sem propsito, que ele v nas atividades

    do capitalismo. Ao alcanar um contedo enganoso com a reiterao

    interminvel de uma viso essencialmente vazia, a obra de iek que ilustra

    muito bem os princpios da lgica paraconsistente consiste, no final, em

    menos que nada.

    Nada pode ser comprovado com uma homologia pseudo-marxista to superficialessas

    homologias, junto com as numerosas distores tendenciosas de Gray, so tristes

    indicadores do nvel do debate intelectual que est na mdia de hoje. o trabalho de

    Gray que se encaixa perfeitamente no universo ideolgico do nosso capitalismo tardio:

    voc ignora totalmente sobre o que o livro que est resenhando, voc renuncia a

    qualquer tentativa de reconstruir de algum modo a sua linha de argumentao; em vezdisso, junta citaes vagas e gerais do livro, distores grosseiras da posio do autor,

    analogias vagas, etc. e, a fim de demonstrar seu engajamento pessoal, adiciona um

    bric-a-brac de apimentada indignao moral comjarges provocativos e pseudo-

    profundos (imagine, o autor parece defender um novo holocausto!). A verdade no

    importa aquio que importa o efeito. isso que os consumidores de intelectualidade

    fast-food procuram: frmulas simploriamente cativantes misturadas a indignao moral.

    Entretm e faz voc sentir moralmente bem. A resenha de Gray no nem menos doque nada, simplesmente um nada sem valor.

    Traduo: Pedro Eduardo Zini Davoglio

    Original em: http://www.versobooks.com/blogs/1046-not-less-than-nothing-but-simply-

    nothing

    http://www.versobooks.com/blogs/1046-not-less-than-nothing-but-simply-nothinghttp://www.versobooks.com/blogs/1046-not-less-than-nothing-but-simply-nothinghttp://www.versobooks.com/blogs/1046-not-less-than-nothing-but-simply-nothinghttp://www.versobooks.com/blogs/1046-not-less-than-nothing-but-simply-nothing