na trama dos sentidos: o edital de concurso …
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO PÚBLICO SOB A
ÓTICA DA ANÁLISE DE DISCURSO
Márcio Lázaro Almeida da Silva
Rio de Janeiro
2019
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE LETRAS E ARTES
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA
NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO PÚBLICO SOB A
ÓTICA DA ANÁLISE DE DISCURSO
Márcio Lázaro Almeida da Silva
Tese de Doutorado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Linguística da
Universidade Federal do Rio de Janeiro
como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Linguística.
Orientadora: Profa. Dr
a. Tania Conceição
Clemente de Souza
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2019
3
NA TRAMA DOS SENTIDOS: O EDITAL DE CONCURSO PÚBLICO SOB A
ÓTICA DA ANÁLISE DE DISCURSO
Márcio Lázaro Almeida da Silva
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da
Faculdade de Letras Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Linguística
BANCA EXAMINADORA:
______________________________________________________________________
Profa. Dr
a. Tania Conceição Clemente de Souza (Presidente) – Programa de Pós-
Graduação em Linguística/UFRJ
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Barros Montez (Membro Externo) – Programa de Pós-Graduação
Interdisciplinar em Linguística Aplicada/UFRJ
______________________________________________________________________
Profa. Dr
a. Juciele Pereira Dias (Membro Externo) – Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Linguagem/UNIVÁS
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Jonathan Ribeiro Farias de Moura (Membro Externo) – Fundação Oswaldo
Cruz
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Evandro de Sousa Bonfim (Membro Externo) – Programa de Pós-Graduação
em Linguística e Línguas Indígenas/MN-UFRJ
______________________________________________________________________
Profa. Dr
a. Márcia Maria Damaso Vieira (Suplente) – Programa de Pós-Graduação em
Linguística/UFRJ
______________________________________________________________________
Profa. Dr
a. Silmara Cristina Dela Silva (Suplente) – Programa de Pós-Graduação em
Estudos da Linguagem/UFF
4
FICHA CATALOGRÁFICA
SILVA, Márcio Lázaro Almeida da.
Na trama dos sentidos: o edital de concurso público sob a ótica
da Análise de Discurso / Márcio Lázaro Almeida da Silva. – Rio de
Janeiro: UFRJ / Letras, 2019.
236 f.
Referências e Anexos: 217-236.
Orientadora: Tania Conceição Clemente de Souza.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Linguística,
2019.
1. Edital de concurso público. 2. Aspectos discursivos gerais. 3.
Historicidade. 4. Paráfrase. 5. Polissemia. I. Souza, Tania Conceição
Clemente de (orientadora). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro.
III. Título.
5
À memória de
Balbino Soares da Silva Filho,
meu pai, meu eterno amigo.
6
AGRADECIMENTOS
A Deus, a nosso Senhor Jesus Cristo e a todas as energias que, em nome de
Deus, circulam entre nós para prática do bem.
A Balbino Soares da Silva Filho (in memoriam), meu pai, o ser de luz que, por
39 anos, caminhou do meu lado e cumpriu bravamente sua missão.
A Adelaide dos Santos de Almeida (in memoriam) e Djalma Pires de Almeida
(in memoriam), meus queridos avós.
À minha esposa, Taís, e ao meu filho, Thales, razões para meus anseios, por
terem compreendido minha ausência ao longo dessa caminhada.
À minha mãe, Iara, e meus irmãos, Marcos e Lúcia, alicerces de toda a minha
formação.
À Tania, minha querida orientadora, que, com suas lições certeiras, soube me
mostrar o valor de uma teoria como a Análise de Discurso a ponto de me fazer escolher
exclusivamente este caminho para um estudo sobre os editais de concurso público.
Tania é mais que orientadora; é amiga, é protetora. É aquela professora que sabe tomar
seu aluno pelas mãos e conduzi-lo com carinho e esmero na construção de novos
conhecimentos.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Linguística com os quais
tive a oportunidade de cursar as disciplinas inerentes ao curso.
Às professoras Juciele Pereira Dias e Silmara Dela Silva, pelos valiosos
comentários e orientações durante o Exame de Qualificação.
Aos meus colegas de turma, com quem compartilhei bons momentos de troca de
conhecimentos.
Aos meus queridos colegas de trabalho, pessoas mais que especiais das quais
tive de ficar afastado para a realização de mais uma etapa da formação acadêmica.
À Elizângela Fidélis, do Setor de Arquivo do Supremo Tribunal Federal, e Ao
Sr. Luís, da Coordenadoria de Gestão Documental e Memória do Tribunal Superior do
Trabalho, que tão gentilmente me enviaram cópias de antigos editais de concurso
público.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ –
pelo financiamento desta pesquisa por meio da concessão da Bolsa Aluno Nota 10 ao
longo dos dois últimos anos do curso de Doutorado.
A Sócrates e Cicuta. Não podia deixar de mencioná-los aqui.
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SILVA, Márcio Lázaro Almeida da. Na trama dos sentidos: o edital de concurso
público sob a ótica da Análise de Discurso. Tese (Doutorado em Linguística) –
Programa de Pós-Graduação em Linguística, Faculdade de Letras, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
RESUMO
O edital de concurso público, tomado sob o prisma da Análise de Discurso, é um
campo do saber que traz a articulação entre o simbólico e o político, o que nos permite
colocá-lo numa posição privilegiada de investigação. Frise-se que se trata de um texto
prescritivo de regras que governam o concurso público, uma das maiores conquistas
políticas dos trabalhadores no Brasil. O concurso concentra uma típica relação inscrita
no modelo econômico do capitalismo: a relação entre instituição/Administração e
homem/administrado; em outras palavras, uma relação entre os que detêm os meios de
produção e os que pretendem vender sua força de trabalho. Esta tese tem por objetivo
apresentar uma análise da prática discursiva produzida pelo Estado em edital de
concurso público, levando em consideração: (i) a constituição histórica dos sentidos que
circulam hoje nos editais, por meio da incorporação/desincorporação de dizeres e
sentidos no transcurso do tempo, e (ii) os deslocamentos de sentidos operados pelo
efeito metafórico – deriva – nas atuais formulações do nosso objeto. Para o
desenvolvimento da análise, fizemos uma pesquisa documental, pela qual foi possível
construir dispositivos de arquivo formados basicamente por leis e editais, e
confrontamos esses arquivos com os pressupostos teóricos da Escola Francesa de
Análise do Discurso. Foram mobilizadas, da AD, dentre outras, as noções de
interdiscurso, formação discursiva, formação ideológica, intradiscurso, paráfrase,
polissemia e silenciamento.
Palavras-chave: 1. Edital de concurso público. 2. Historicidade 3. Paráfrase. 4.
Polissemia. 5. Silenciamento.
8
SILVA, Márcio Lázaro Almeida da. In the plot of the meanings: the edict of public
tender notice through the vision of Discourse Analysis. Thesis (PhD in Linguistics) –
Postgraduate Program in Linguistics, Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ), Rio
de Janeiro, 2019.
ABSTRACT
The public tender notice, through the prism of the Discourse Analysis, is an
knowledge field that brings the articulation between the symbolic and the political,
which allows us to place it in a privileged position of investigation. It is important to
emphasize that the tender notice is a prescriptive text of rules that regulates the public
tender process, one of the greatest political achievements of workers in Brazil. It
concentrates a typical relation incorporated in the economic model of capitalism: the
relation between institution/Administration and man/administered; in other words, a
relationship between those who hold the means of production and those willing want to
sell their labor power. This thesis aims to present an analysis of the discursive practice
produced by the State in a public tender notice, taking into consideration: (i) the
historical constitution of the senses that circulate in the public tender notice today,
through the incorporation/dis-incorporation of sayings and meanings in the course of
time, and (ii) the displacements of senses operated by the metaphorical effect - derives -
in the present formulations of our object. For the development of the analysis, we did a
documentary research, through which it was possible to construct archival devices
formed basically by laws and public tender notices, and we confront these archival
devices with the theoretical assumptions of the French School of Discourse Analysis.
The notions of interdiscourse, discursive formation, ideological formation,
intradiscourse, paraphrase, polysemy and silencing were mobilized, among others.
Key words: 1. Public tender notice. 2. Historicity. 3. Paraphrase. 4. Polysemy. 5.
Silencing.
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Lista de Quadros
Quadro 1 Aspectos teóricos relevantes em Les Vérités de la Palice
Quadro 2 Concepções de língua em Análise do Discurso
Quadro 3 Tipos de discurso
Quadro 4 Arquivo de editais sem irregularidades
Quadro 5 Arquivo de editais com irregularidades
Quadro 6 Arquivo de documentos do universo jurídico
10
Lista de Siglas e Abreviaturas
ANC Assembleia Nacional Constituinte
Art. Artigo
AFRF Auditor Fiscal da Receita Federal
CCJC Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania
Cebraspe/UnB
Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção
de Eventos/Universidade de Brasília
Consulplan Consultoria e Planejamento em Administração Pública LTDA.
CRFB Constituição da República Federativa do Brasil
DASP Departamento Administrativo do Serviço Público
DOU Diário Oficial da União
ES Espírito Santo
Esaf Escola de Administração Fazendária
FAUF Fundação de Apoio à Universidade Federal de São João del-Rey
FCC Fundação Carlos Chagas
FGV Fundação Getúlio Vargas
FUMARC Fundação Mariana Resende Costa
FUNDEP Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa
Indi Instituto de Desenvolvimento Integrado de Minas Gerais
LAEL Laboratório de Estudos Linguísticos
LASPRAT Laboratório Semântico-Pragmático de Textos
MPF Ministério Público Federal
N. Número
PB Paraíba
PL Projeto de Lei
PLS Projeto de Lei do Senado
PNE Portador de Necessidades Especiais
PR Paraná
RJ Rio de Janeiro
SC Santa Catarina
TCE Tribunal de Contas do Estado
11
SUMÁRIO
Introdução.............................................................................................................. 14
1. A Análise do Discurso: revisão da literatura................................................. 18
1.1. Primeiras palavras.............................................................................. 18
1.2. A Linguística no seio do estruturalismo............................................ 20
1.3. A instauração de novos horizontes para a análise linguística............ 25
1.4. A Análise do Discurso Francesa........................................................ 28
1.4.1. Da fundação........................................................................ 28
1.4.2. Do programa teórico e prático de análise: a AD
pecheutiana.........................................................................
33
1.4.3. Desdobramentos da Análise de Discurso (pecheutiana) no
Brasil...................................................................................
45
2. Dispositivo teórico da Análise de Discurso................................................... 48
2.1. Discurso, Formação Discursiva e Formação Ideológica................... 48
2.2. Língua (em relação a discurso) em Análise de Discurso................... 54
2.3. Texto e discurso................................................................................. 57
2.4.
Sujeito e forma-sujeito....................................................................... 61
2.4.1. A noção de sujeito para a AD............................................. 61
2.4.2. A forma-sujeito................................................................... 66
2.4.3. Funções enunciativo-discursivas do sujeito....................... 66
2.5 Arquivo.............................................................................................. 67
2.6 Paráfrase e polissemia........................................................................ 70
2.6.1 “Arqueologia” da noção de paráfrase em Michel Pêcheux 70
2.6.2 Desenvolvimentos da noção de paráfrase e polissemia em
AD......................................................................................
76
2.7 Tipologia de discurso......................................................................... 81
2.8 A questão do silêncio em Análise de Discurso.................................. 84
3. Metodologia................................................................................................... 86
3.1. Procedimentos para a primeira etapa da pesquisa............................. 88
3.2. Procedimentos para a segunda etapa da pesquisa.............................. 94
3.2.1. Do corpus discursivo para a segunda etapa da pesquisa.... 97
4. História do concurso público no Brasil......................................................... 102
4.1. O surgimento do concurso público.................................................... 102
4.1.1. Algumas considerações sobre Estado, sujeito e poder....... 104
12
4.1.2. O concurso público no seio do Estado Moderno................ 110
4.2. O concurso público no Brasil............................................................ 112
4.2.1. O concurso público no Brasil Imperial............................... 113
4.2.2. O concurso público na República Velha............................ 122
4.2.3. O concurso público na Era Vargas..................................... 130
4.2.4. O concurso público na República Liberal.......................... 137
4.2.5. O concurso público na Ditadura Militar............................. 139
4.2.6. O concurso público na República Federativa do Brasil..... 142
5. Considerações discursivas sobre o edital de concurso público..................... 154
5.1. A formação discursiva edital de concurso público............................ 154
5.2. Historicidade das formulações analisadas......................................... 159
5.3. Os sujeitos da relação editalícia......................................................... 175
5.4. A língua(gem) do edital..................................................................... 180
5.5. Tipologia de discurso......................................................................... 182
5.5.1. Natureza jurídica do edital de concurso público................. 182
5.5.2 Tipo de discurso em edital de concurso.............................. 186
6. A tensão paráfrase-polissemia e o silenciamento em editais de concurso
público...........................................................................................................
188
6.1. Análise da Cadeia de Formulação 1 (CF1): sobre requisitos para
investidura..........................................................................................
189
6.2. Análise da Cadeia de Formulação 2 (CF2): sobre o período de
inscrição.............................................................................................
195
6.3. Análise da Cadeia de Formulação 3 (CF3): sobre a limitação
temporal de cinco anos dos antecedentes criminais como um dos
requisitos para investidura.................................................................
197
6.4. Análise da Cadeia de Formulação 4 (CF4): sobre a devolução do
valor da taxa de inscrição..................................................................
199
6.5. Análise da Cadeia de Formulação 5 (CF5): sobre o direito à
nomeação...........................................................................................
202
6.6. Análise da Cadeia de Formulação 6 (CF6): sobre os critérios de
desempate..........................................................................................
205
6.7. Análise da Cadeia de Formulação 7 (CF7): sobre as vagas
destinadas a portadores de necessidades especiais............................
207
6.8. Análise da Cadeia de Formulação 8 (CF8): sobre prazo para
recursos quanto às provas aplicadas..................................................
209
6.9. Análise da Cadeia de Formulação 9 (CF9): sobre a ausência do
programa das provas..........................................................................
210
6.10. Análise da Cadeia de Formulação 10 (CF10
): sobre a previsão de
vagas para negros...............................................................................
211
Considerações finais.............................................................................................. 214
Referências............................................................................................................ 217
13
Anexo I.................................................................................................................. 226
Anexo II................................................................................................................. 232
14
Introdução
A atual Constituição da República Federativa do Brasil prescreve, em seu artigo
37, inciso II, que “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação
prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e
a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei (...)”. Com esse
dispositivo, o ordenamento constitucional vigente, respeitando, dentre outros, os
princípios da democracia, da isonomia e da eficiência, estatui a necessidade de se
realizar um certame com o objetivo de selecionar os candidatos mais aptos ao serviço
público.
Dessa forma, a Administração Pública direta e indireta de qualquer um dos
Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) da União, dos Estados, do Distrito Federal
e dos Municípios, quando precisa prover seus cargos ou empregos públicos de recursos
humanos, fica vinculada à realização de concurso ao qual deve ser dada ampla
publicidade, em tempo hábil, por meio da imprensa oficial.
Para tornar públicas as regras que nortearão o relacionamento entre a
Administração e os interessados no certame entra em cena a figura jurídica do edital de
concurso público, um ato normativo editado pelo Estado contendo propriedades
textuais, discursivas e estilísticas muito bem marcadas em virtude de sua composição
característica.
Do ponto de vista jurídico, o edital de concurso pode ser entendido, em primeira
leitura, como um ato normativo que, subordinado à lei e editado pelos órgãos da
Administração Pública, vincula a Administração e os candidatos em um mesmo
processo administrativo. Embora aparentemente pareça ser construído de modo objetivo
no plano jurídico-conceitual, o edital de concurso, visto sob a ótica da linguística e,
mais especificamente, da Análise de Discurso, por atender às técnicas de redação oficial
e valer-se do jargão técnico do Direito e dos mecanismos de construção sintática típicos
da argumentação jurídica, ostenta uma forma de composição em que fica evidente a
opacidade do texto ao olhar do sujeito leitor.
Podemos ir além e afirmar – mesmo tendo conhecimento do risco que corremos
ao fazê-lo – que, na construção textual do edital, o sujeito-enunciador tem as aberturas
de que necessita para fazer manobras no processo de produção de sentidos; em outras
palavras, na produção discursiva do edital de concurso público, os sentidos podem ter
direções determinadas, desvelando um jogo próprio da língua, uma vez que o texto tem
15
sempre direções de sentido definidas pelo enunciador. É em razão disso que
enxergamos o edital como um valioso objeto de estudo para a Linguística e,
especificamente, para a Análise de Discurso, uma vez que, em sua formulação, o
político se entrecruza com o simbólico.
Temos assistido, de norte a sul do país, nos diferentes poderes da República, ao
nascimento de inúmeras controvérsias no processo de formulação de editais de concurso
público. Tais controvérsias, não raro, conduzem a pedidos de impugnação, suspensão e
anulação de todo o processo administrativo atinente ao certame. Podemos citar, a título
de ilustração, o edital de concurso para a Prefeitura Municipal de Centralina/MG, que
faz parte do dispositivo de arquivo construído para a presente pesquisa. Esse edital foi
publicado na imprensa oficial em 15 de maio de 2009 e, dois meses depois, o Tribunal
de Contas do Estado de Minas Gerais determinou a suspensão cautelar do concurso em
razão das falhas identificadas. Entre as falhas, o TCE/MG aponta para enunciados que,
em nossa perspectiva (discursiva), rompem com o já-dito, isto é, com a memória
discursiva própria dos editais, produzindo deslocamentos de sentido que põem em risco
a estabilidade jurídica entre os sujeitos da relação editalícia.
A Escola Francesa de Análise do Discurso, conhecida como AD pecheutiana ou
marxista, deixou-nos um precioso legado teórico e metodológico para tratar dos
discursos, desde aqueles que se manifestam em uma materialidade verbal àqueles que
irrompem por meio do não verbal (SOUZA, 2001, 2018, entre outros). Como nosso
objetivo é estudar o edital de concurso público, vemos os pressupostos da AD como a
fundamentação perfeita para edificar a perspectiva de análise que desejamos construir
para esse objeto. Daí a necessidade, em nossa concepção, de circunscrever o trabalho na
linha de reflexão da AD desenvolvida neste período – entre o fim dos anos de 1960 e os
de 1980 – e tão propagada no Brasil. Em nosso país, a Análise do Discurso inaugurada
por Michel Pêcheux e desenvolvida por ele e seus seguidores constitui uma “referência
privilegiada”; sua dispersão a partir dos anos de 1990 “não gerou o fim das referências
teóricas, e as práticas ainda se inspiram nela”1.
Ao situarmos o edital de concurso público como objeto de investigação (frise-se:
em uma ótica discursiva, e não jurídica), estamos trazendo para o domínio da Análise de
Discurso uma matéria empírica, o corpo textual do edital, que rege o concurso público,
uma das maiores conquistas políticas dos trabalhadores no Brasil. Soma-se a isso o fato
1 Cf. Mazière (2007, p. 30)
16
de o concurso público – e as regras de sua realização previstas em edital – concentrar
uma típica relação inscrita no modelo econômico do capitalismo: é a relação entre
homens/administrados e instituições/Administração; em outras palavras, uma relação
entre aqueles que pretendem vender sua mão de obra e aqueles que detêm as forças de
produção. Eis, portanto, o caráter político do concurso público e das suas normas de
realização previstas em edital.
Com base nas considerações feitas até aqui, assumimos o objetivo principal de
descrever, sob a ótica da Análise de Discurso de orientação francesa, a prática
discursiva produzida em edital de concurso público, levando em consideração: (i) a
constituição histórica dos sentidos que circulam hoje em dia nos editais, por meio da
incorporação/desincorporação de dizeres e sentidos no transcurso do tempo, e (ii) os
deslocamentos de sentidos operados pelo efeito metafórico – deriva – nas atuais
formulações do nosso objeto.
Para atingirmos esse objetivo, propomos uma investigação em duas etapas, de
modo que a primeira seja a base para a compreensão da segunda. A primeira visa
reconstituir a história do concurso público no Brasil e mostrar a maneira como os editais
de concurso vêm sendo textualizados no transcurso do tempo; tentamos, assim, produzir
uma historiografia sobre concurso e sobre o documento – edital – que dispõe sobre ele
em dadas condições de produção. É uma busca pela memória política do Estado. A
pergunta que nos fazemos é: como o Estado vem tratando o acontecimento concurso
público? A segunda etapa visa analisar os efeitos de sentido produzidos atualmente
quando a Administração formula um enunciado para configurar em dado edital, sendo
que tal enunciado rompe com os sentidos já estabilizados discursivamente. Cada uma
dessas etapas de pesquisa será descrita no Capítulo 3, em que discorremos sobre a
metodologia aplicada em nossa investigação.
Esta tese vem organizada em seis capítulos. No primeiro, apresentamos ao leitor
um itinerário sobre a Análise de Discurso de orientação francesa para mostrar-lhe o
percurso que essa disciplina seguiu desde sua gênese até seus desdobramentos nos anos
de 1980. No segundo, trazemos um recorte teórico dos princípios e procedimentos da
AD que serão mobilizados em nossa análise. No terceiro, descrevemos a metodologia
aplicada nas duas etapas de pesquisa. Os capítulos 4, 5 e 6 são destinados às análises
dos documentos que assumimos em nossa investigação sobre os editais.
A produção de uma pesquisa com as perspectivas que desejamos criar por meio
deste trabalho detém implicações teóricas e sociais. Acreditamos que toda pesquisa
17
realizada nos níveis mais elevados de formação deva ser útil à produção do pensamento
científico e, principalmente, à sociedade. É com essa dupla responsabilidade que
pretendemos intervir com o presente trabalho.
No domínio das ciências jurídicas, existe relativa literatura acerca do edital de
concurso público. As pesquisas feitas nesse domínio produziram um acervo em que se
observa esse documento sob a ótica da lei, do Direito, dos princípios informadores do
Direito, da jurisprudência. E o resultado é um conjunto de considerações de ordem
estritamente jurídica.
No Brasil, a matéria empírica que assumimos, no presente trabalho, como objeto
de investigação carece, ainda, de estudos detalhados acerca dos aspectos linguísticos,
textuais, discursivos e estilísticos envolvidos em sua produção. Alguns estudos já vêm
sendo realizados pelo LASPRAT (Laboratório Semântico-Pragmático de Textos) e pelo
LAEL (Laboratório de Estudos Linguísticos), ambos vinculados à Universidade Federal
da Paraíba, porém as investigações desenvolvidas por esses núcleos de pesquisa
objetivam analisar e descrever a estrutura semântico-argumentativa de gêneros textuais
diversos, inclusive do edital, sem descrever este último em suas especificidades
discursivas.
Não vimos, ainda, nenhuma proposta de trabalho que interrogasse, no campo da
Linguística – e, em nosso caso, no campo da AD – questões referentes aos processos de
significação instaurados no ato de formulação de um edital específico. Falta uma
intervenção no sentido de responder a perguntas como: (a) como se deu a construção
histórica do edital? (b) como se justifica o fato de o edital ter adquirido historicamente
estruturas cada vez mais amplas? (c) como o edital foi incorporando dizeres produzidos
em outros momentos e em outros lugares? (d) como se dá a textualização do edital sob a
ótica da heterogeneidade? (e) e sob a ótica do silenciamento? (f) como os sentidos se
movimentam em função dos efeitos metafóricos que se realizam de um edital para
outro? Enfim, as perguntas são muitas, e acreditamos que uma intervenção que vise
responder ao menos algumas terá justificada sua relevância teórica.
Ressaltamos, ainda, a relevância social que nosso trabalho pode assumir ao
revelar alguns processos de significação utilizados por quem formula os enunciados (as
cláusulas, os dispositivos) que constituem o corpo do edital, processos de significação
que atendem, por vezes, a verdadeiras manobras da Administração.
18
1. A Análise do Discurso: revisão da literatura
(...)
―estamos todos nós / cheios de vozes / que o mais das vezes / mal cabem em nossa voz
(...)
Até que de repente / um susto / ou uma ventania / (...) / chama /esses fósseis à fala.‖
(Ferreira Gullar)
1.1 Primeiras palavras
Neste capítulo, abraçamos o compromisso de construir um itinerário que
conduza o leitor à compreensão das rupturas, das bases epistemológicas, das
construções, das desconstruções e do legado que a Escola Francesa de Análise do
Discurso2 (doravante AD) nos deixou de herança. Nossa intenção é disponibilizar ao
leitor, leigo ou letrado no assunto, o referencial que nos dará amparo à construção do
dispositivo teórico a ser mobilizado em nossa análise sobre o edital de concurso
público.
Para realizar essa tarefa, entretanto, um questionamento nos perseguiu desde o
início: como apresentar, em uma linha fluida de raciocínio, os fundamentos de uma
Escola de análise do discurso que não se desenvolveu seguindo um pensamento
retilíneo? Como guiar o leitor por uma via concebida, em suas duas primeiras décadas
de existência, por construções e desconstruções teóricas sem parecer um ébrio
desgovernado? Afinal, como bem pontua Ferreira (2003b, p. 189), “(...) o terreno é dado
a armadilhas, obstáculos e pode levar algum incauto a não achar o caminho”.
É importante frisar que o fato de a AD de linha francesa ter se desenvolvido por
construções e desconstruções3 não a torna, em hipótese alguma, uma disciplina sem
estatuto científico. Construção e desconstrução são procedimentos inerentes à ascensão
e ao progresso de qualquer ato que se quer fundador de uma nova forma de pensar e
interpretar a realidade objetiva. E no caso específico da Escola Francesa de Análise do
Discurso, em sua gênese, não havia como ser diferente. Era impossível romper com as
amarras do estruturalismo e com a linguística imanente, sem uma linha de reflexão que
não se desse a contornos e descontornos, configurações e reconfigurações; uma linha de
2 A expressão Escola Francesa de Análise do Discurso, que dá título ao conjunto de estudos sobre o
discurso desenvolvidos por Michel Pêcheux por pouco mais de vinte anos, foi cunhado por Guespin
(1976, p. 7) ao afirmar: “Mas é importante assinalar que ele (o trabalho desenvolvido por Guepin)
procede da prática e da teoria que podemos e devemos agora conceber como uma frente científica
original, a escola francesa de análise do discurso”.
3 Essa perspectiva de desenvolvimento da AD por construções e desconstruções é apresenta por Denise
Maldidier, em A Inquietação do Discurso (MALDIDIER, 2003).
19
reflexão que permitisse um diálogo interno – conflituoso por vezes – entre seus
próprios conceitos, princípios e procedimentos de análise, sem qualquer paternalismo,
despido do narcisismo de seu criador, a ponto de levar alguns desses conceitos,
princípios e procedimentos ao abandono, por mais doloroso que fosse ao pai.
Fruto de uma dialética incessante, a AD não se cansa de rever seus métodos e
suas concepções tendo em vista a construção de uma teoria capaz de tocar o real da
língua e o real da história. E essa busca obstinada nos deixou de legado uma sólida
fundação sobre a qual é possível erguer-se qualquer construção que visa abrigar os
mecanismos de constituição, formulação e circulação dos sentidos. Esse é, para nós, o
grande mérito que se pode atribuir à fundação da Análise de Discurso.
Há de se convir, portanto, que teoria alguma – e com a AD não foi diferente –
constrói-se sem perfilar caminhos tortuosos, sendo necessárias configurações e
reconfigurações. Por isso, talvez, o trajeto laborioso e, às vezes, obscuro, cerrado, não
só ao olhar opaco do leitor leigo, mas também ao olhar pretensioso do especialista. Daí,
o terreno ser dado a armadilhas. E longe de querermos ser vistos como incautos a não
achar o caminho, manifestamos, aqui, nosso pleno e humilde interesse em trazer ao
leitor uma apresentação lúcida sobre os desenvolvimentos da Análise de Discurso que
servirão de norte para nossas análises.
Retornemos, então, ao questionamento inicial: como apresentar a AD
lucidamente ao leitor, tendo em vista os desdobramentos produzidos desde a eclosão
dos tratamentos dados ao discurso, por volta dos anos 1960, até o que se faz hoje em
Análise de Discurso?
Na tentativa de construir um referencial teórico para o leitor, propomo-nos
apresentar a fundação e os desdobramentos da Análise de Discurso em quatro partes: (a)
primeiramente, tecemos breve comentário sobre a Linguística no seio do estruturalismo;
(b) em seguida, tratamos da instauração dos novos horizontes para a análise linguística a
partir da segunda metade do século XX; (c) depois, comentamos o momento em que se
institui a Análise de Discurso Francesa, um modelo de AD que ficou referido na
literatura como análise de discurso pecheutiana, de cunho marxista4; (d) finalmente,
citamos alguns desenvolvimentos de maior destaque na Análise de Discurso praticada
no Brasil.
4 Cf. Courtine (1999 [1991).
20
1.2 A Linguística no seio do Estruturalismo
É comum o entendimento de que a AD só pôde se constituir, no final dos anos
1960, em razão de uma mudança de terreno. Mas por que a necessidade de mudar de
terreno para erguer um novo edifício que acolhesse essa frente científica original5? A
resposta está no próprio estruturalismo linguístico, que, não obstante seu caráter
imanentista, serviu como terreno fértil para a AD fecundar.
Na primeira metade do século XX, a Linguística, que acabara de romper com
método comparativista e sua descrição histórica da língua, reconstruiu-se no âmbito do
estruturalismo. Saussure (1995 [1916]), protagonista desse cenário, foi quem operou a
revolução científica nos estudos da linguagem e, por isso, é apontado como responsável
pelo estabelecimento da linguística moderna, o precursor do estruturalismo. O Curso de
Linguística Geral, que introduziu a noção de língua como sistema, permitiu que se
desenvolvesse, a partir dos anos 1920, a concepção de língua como estrutura, já que
“uma vez aceita a visão de que a língua constitui um sistema (...) cumpre analisar-lhe a
estrutura” (KENEDY & MARTELOTTA, 2003, p. 17). Do termo sistema ao seu
corolário estrutura, os estudos linguísticos percorreram um caminho que levou ao
desenvolvimento, entre as escolas pós-saussurianas, da doutrina intitulada
estruturalismo. Segundo Benveniste (1976, p. 100), a:
(...) doutrina que iria, alguns anos mais tarde, pôr em evidência a
estrutura dos sistemas linguísticos (...) encontra a sua primeira
expressão nas proposições redigidas em francês que três linguistas
russos, R. Jakobson, S. Karcevsky, N. Troubetzkoy, enviaram em
1928 ao 1º Congresso Internacional de linguistas em Haia com vistas
a estudar os sistemas de fonemas.
Portanto, a concepção saussuriana de linguagem, ou mais precisamente de língua
como sistema, permitiu o progresso da linguística estrutural com suas distintas
abordagens nas mais diferentes escolas linguísticas pós-Saussure. Entre essas
abordagens, segundo Kenedy & Martelotta (2003, p. 19), há duas principais: (i) aquela
que está centrada na forma linguística, relegando sua função a um plano secundário; (ii)
a que se centra na função desempenhada pela forma linguística no processo de
comunicação, ficando a forma linguística em si em segundo plano. No primeiro grupo,
temos as escolas formalistas, como a Escola de Copenhague, na Europa, e os trabalhos
5 Tomamos em empréstimo a expressão usada por Guespin (1976, p. 7).
21
nela desenvolvidos, principalmente, por Louis Hjelmslev e Viggo Brøndal – os
criadores da Glossemática – e, na América, os trabalhos desenvolvidos por Leonard
Bloomfield e Zellig Harris. No segundo grupo, encontramos as escolas funcionalistas,
como a Escola de Praga, na Europa, e as pesquisas produzidas em seu domínio por
Roman Jakobson, Nicolai Troubetzkoy e Serguei Karcevsky e, mais tarde, ainda na
Europa, por André Martinet; na América, Franz Boas e Edward Sapir figuram entre os
principais precursores do estruturalismo americano com abordagem funcional.
Se a linguística estrutural surgiu na Europa com os linguistas de Praga e
prosperou, em seguida, com os de Copenhague, visando “pôr em evidência a estrutura
dos sistemas linguísticos”6, na América o estruturalismo foi implantado com outras
ambições: primeiramente, visaram à análise e à descrição exaustiva das línguas
ameríndias desconhecidas e ágrafas, o que necessitou da interferência de um enfoque
antropológico e etnológico7; em seguida, vieram as preocupações sobre a relação entre
pensamento e linguagem. No tocante ao primeiro momento, o papel desempenhado por
Franz Boas e Edward Sapir foi crucial; no que diz respeito ao segundo momento, foi a
vez de Benjamin Lee Whorf chamar a atenção de seus contemporâneos com “a tese de
que a linguagem determina a percepção e o pensamento”8 – a hipótese de Sapir-Whorf.
Ainda na América, Leonard Bloomfield, que, segundo Weedwood (2002, p. 131),
“adotou explicitamente uma abordagem behaviorista do estudo da língua, eliminando,
em nome da objetividade científica, toda referência a categorias mentais ou
conceituais”, desfrutou de enorme repercussão, tendo influenciado o surgimento da
escola distribucionalista ou neobloomfieldiana. Como bem enfatiza Ilari (2004, p. 78),
Bloomfield foi a grande referência dos estruturalistas norte-americanos, que não viam
Saussure como a “referência intelectual” de que precisavam.
Mesmo com a ampla divulgação que o estruturalismo teve nos Estados Unidos
da América, é justo salientar que é a Hjelmslev que se imputa uma das mais precisas
definições de linguística estrutural como “conjunto de pesquisas que se apóiam numa
hipótese segundo a qual é cientificamente legítimo descrever a linguagem como sendo
essencialmente uma entidade autônoma de dependências internas ou, numa só palavra,
uma estrutura” (HJELMSLEV, 1944 apud BENVENISTE, 1976, p. 103). Frise-se:
6 Como vimos, essa perspectiva é de Benveniste (1976, p. 100).
7 Para maiores detalhes, confira Ilari (2004).
8 Cf. Weedwood (2002, p. 130).
22
entidade autônoma de dependências internas. Sob essa ótica, as explicações para os
fenômenos linguísticos não podiam ser buscadas em outro lugar que não fosse a língua.
Independentemente dos continentes por que tenha se expandido e dos teóricos
que contribuíram para o seu progresso, a linguística estrutural esteve fechada em seu
caráter imanente. Em Prolegômenos a uma teoria da linguagem, Hjelmslev traz à tona o
princípio da imanência para os estudos linguísticos ao afirmar que a língua deve ser
vista como uma “unidade encerrada em si mesma, como uma estrutura sui generis”
(HJELMSLEV, 1975, p. 3), devendo, portanto, ficar de fora quaisquer considerações
que levem em conta fatores extralinguísticos.
Há ainda um aspecto de extrema importância a se considerar em relação às
escolas estruturalistas: o (não) enfoque por elas conferido ao estudo do sentido. No
estruturalismo americano, em especial a partir dos trabalhos iniciais dos formalistas, a
linguística esteve, em grande parte, centrada no estudo da morfologia e da sintaxe,
campos de descrição que tinham por método a chamada análise componencial das
unidades linguísticas. A semântica e as questões referentes à significação estavam
excluídas do escopo do que concebiam como a ciência da linguagem humana; o sentido
não era passível de estudo científico em razão de sua natureza mental, psicológica. Ilari
(2004, p. 78) sinaliza que “Bloomfield chegou à conclusão de que o sentido – que é
mental, e portanto faz parte da psicologia individual – não poderia ser estudado
cientificamente” e conclui que “a linguística estrutural americana foi tipicamente avessa
ao estudo do sentido”. Até o distribucionalismo, conforme bem enfatiza Mazière (2007,
p. 27), acabou por eliminar “a questão do sentido lexical, deixada a cargo de
antropólogos, psicólogos e lógicos”.
Nem mesmo a primeira tentativa de formalização de uma teoria do discurso, de
Zellig Harris e sua Análise do Discurso, de 1952, deteve-se ao estudo do sentido. Em
seu trabalho, Harris aplicou a metodologia de análise típica do distribucionalismo com o
objetivo de analisar e descrever relações interfrasais. O procedimento, entretanto, ainda
não visava ao sentido do texto (MALDIDIER, NORMAND & ROBIN, 2014 [1976]).
O estruturalismo europeu, contudo, conseguiu enfocar o estudo da significação.
Segundo Ilari (2004), a glossemática, que teve aderência mais às questões do
significado que as do significante, foi a escola que, na Europa, por meio dos trabalhos
de Hjelmslev, trouxe as primeiras tentativas de explicar a significação sob a égide do
estruturalismo a partir das matrizes de traços semânticos. Essa vertente, que tratava do
sentido lexical por matrizes de traços, constituirá um dos pilares sobre o qual se
23
sustentará, a partir dos anos 1960, a semântica estrutural desenvolvida, também na
Europa, por Algirdas Julius Greimas9 e Bernard Pottier.
É importante destacar também, segundo Mazière (2007, p. 27), que, apesar dos
esforços de Noam Chomsky no sentido de implantar, nos anos 1960, a questão do
sentido em seus debates, com a introdução do componente semântico em relação ao
componente sintático, as concepções de aceitabilidade e gramaticalidade “reduziram
consideravelmente o tratamento do sentido (redução à ambiguidade, depois ao não
sentido), e os enfrentamentos dos anos 1970 vão hipotecá-lo a partir de formalismos
lógico-semânticos”.
Independentemente de suas diferentes emergências geográficas, das distintas
metodologias que foram sendo implantadas para o tratamento de dados linguísticos, das
perspectivas assumidas por seus investigadores – quer funcional, quer formalista –, das
preocupações em recobrir mais um campo de descrição que outro, não podemos deixar
de reconhecer que o estruturalismo linguístico ecoou em todos os cantos a ponto de se
tornar, no início da segunda metade do século XX, a ciência-piloto de todas as ciências
humanas e sociais, a “matriz possível de toda atividade científica”10
.
Por outro lado, ao mesmo tempo em que o estruturalismo linguístico atinge seu
apogeu, especialmente na Europa, ele começa a esbarrar em suas próprias limitações. O
fato mesmo de a linguística ser apropriada por outros campos de investigação já pode
ser interpretado como um indício de seu esgotamento, e isso fora sutilmente notado por
Haroche, Henry & Pêcheux (1971), ao afirmarem que “essa exploração ideológica da
linguística, sua reinscrição fora do seu próprio campo, não teriam sido possíveis sem a
existência de dificuldades interiores à própria linguística, e produzidas pelas mesmas
causas”. Vale ressaltar ainda, de acordo com Angermuller (2016, p. 11), que um dos
fatos que culminam nesse esgotamento é, no final da década de 1960, “a entrada na cena
intelectual de teóricos como Jacques Lacan, Louis Althusser, Michel Foucault e Jacques
Derrida, que se colocam numa posição de ruptura com as tendências teóricas
9 É importante destacar que a semântica estrutural concebida por J. Greimas a partir 1966 (ano da
publicação de Sémantique structurale) também receberá posteriormente contornos discursivos. A
perspectiva de análise criada por ele desembocou no que chamam hoje de Semiótica Discursiva
(BARROS, 2012), uma teoria que trata da enunciação em um quadro teórico-metodológico diferente da
AD pecheutiana, mas que também leva em consideração a relação entre texto e discurso.
10
Essa caracterização é de Ilari (2004, p. 76). Segundo ele, a antropologia (de Lévi-Strauss), a sociologia,
a estética, o estudo da moda (de Roland Barthes) e a teoria literária são algumas das ciências que
“formularam suas tarefas tomando como modelo a linguística”. Disciplinas como estas entram no rol das
ciências que enxergaram a linguística como o paradigma a seguir porque, segundo o autor, “lidam com
valores e representações” e “analisam algum tipo de troca simbólica”.
24
anteriores”. Dessa forma, o esgotamento da abordagem estrutural conduzia à
necessidade de se iniciar uma revisão.
Na Europa, entre as primeiras propostas revisionistas, destacam-se a de Émile
Benveniste, que critica o estruturalismo em razão da exclusão do sujeito e o papel que
este desempenha na língua – a intervenção de Benveniste, embora ele se mantenha em
uma perspectiva estruturalista, vem exatamente no sentido de recolocar em cena certa
noção de sujeito no campo da linguística (daí sua teoria da subjetividade na
linguagem); a de Eugenio Coseriu, que, na esteira da dicotomia saussuriana entre
sincronia e diacronia, enxergou aquilo que chamaremos aqui de ilusão da delimitação da
sincronia – para Coseriu, demarcar com exatidão um momento sincrônico da língua era
uma ficção, em razão da convivência do velho com o novo em todo sistema linguístico
(parte daí sua defesa pela pancronia); e a de Michel Pêcheux, para quem a dicotomia
cunhada por Saussure entre língua e fala não teve outro objetivo a não ser excluir a
linguística do campo da fala, o que ocasionou a exclusão de qualquer consideração
sobre o sujeito e sobre o sentido do âmbito dos estudos linguísticos11
(as reflexões de
Pêcheux permitiram introduzir definitivamente o estudo do sentido).
Na América, embora não tenha se constituído como uma proposta revisionista
do estruturalismo, a gramática gerativa de Noam Chomsky desabrigou a linguística
estrutural americana do solo prestigioso em que se edificara. Conforme afirma Ilari
(2004, p. 86), “diante do gerativismo, a linguística estrutural americana foi perdendo
progressivamente terreno”. Porém, como ele mesmo nos ensina (2004, p. 85): “(...) a
gramática gerativa foi tratada pelos estruturalistas europeus como um novo
estruturalismo, que atendia melhor, do que qualquer outro tratamento da linguagem até
então proposto, ao propósito de matematização lançado por Hjelmslev”. No tocante,
então, às tentativas de tratamento formal sobre o sentido, sobre a significação, as
semânticas universais, que se constituíram sobre os fundamentos da gramática gerativa,
assim como a semântica estrutural erguida depois de Saussure, não passaram de
“lugares de recobrimento do corte saussuriano” (MALDIDIER, 2003, p. 31).
Retornando ao que dissemos no início deste item – e tomando por base as
colocações do grupo de pesquisa de Michel Pêcheux –, para que uma nova frente
11
Para considerações mais profundas, remetemos o leitor, mais uma vez, ao trabalho de Ilari (2004, p. 80-
81) e ao trabalho de Brandão (2003, p. 1). Esta última nos ensina que as dicotomias efetuadas por
Saussure no CLG “serviram para separar as noções de „fala‟ e „diacronia‟ para construir e eleger como
objeto da ciência lingüística, duas outras, as de „língua‟ e „sincronia‟”. A autora menciona ainda que a
consequência disso foi excluir “do âmbito da linguagem o conceito de linguagem enquanto trabalho
produzido por sujeitos falantes”.
25
científica original se constituísse era, pois, mais do que necessário fazer uma mudança
de terreno, uma renovação que colocasse em cena a questão do sujeito, que fizesse o
sentido vir à tona e que reintroduzisse a história na investigação do fenômeno
linguístico.
1.3 A instauração de novos horizontes para a análise linguística
Fruto de uma abordagem distribucionalista, o artigo intitulado Discourse
Analysis – Análise do Discurso –, escrito por Harris (1969 [1952]), foi a primeira
tentativa de elaboração de uma teoria que considerasse as relações entre as partes de um
texto e, por isso, veio a exercer forte influência nos desenvolvimentos de Michel
Pêcheux. Publicado no volume 28 da revista Language, o texto foi traduzido para o
francês em 196912
.
O grande mérito do empreendimento de Harris reside na tentativa de construir
um “procedimento formal de análise dos segmentos superiores à frase, permitindo levar
em conta as relações transfrásticas que podem ser observadas nos „textos‟” (Brandão,
2003, p. 2-3). Como afirmam Haroche, Henry & Pêcheux (1971), o modelo harrisiano
“alia as preocupações concernentes às relações entre a „cultura‟ e a „língua‟ a uma
tentativa de estender a análise linguística „além dos limites de uma única frase‟”. O
deslocamento teórico e analítico que ele produziu permitiu uma verdadeira mudança de
rumo nos estudo linguísticos: da análise estritamente distribucional dos constituintes
imediatos da sentença para a análise do modo como se organizam os enunciados por
meio dos encadeamentos sintáticos e transformacionais operados entre as frases do
texto.
De acordo com Angermuller (2016, p. 16-17), são características da análise
instituída por Harris: (a) estudo da organização linguística do enunciado (da frase); (b)
concepção de discurso como o produto da organização dos enunciados que configuram
no texto; e (c) interesse por conexões sintáticas e transformacionais responsáveis pela
organização dos enunciados no discurso (as conexões sintáticas entre as frases do
corpus ocupam lugar privilegiado em seu método). Harris evoca, portanto, uma análise
de enunciados que é constitutiva do trabalho desenvolvido por Michel Pêcheux no final
da década de 1960; em sua AAD69, Pêcheux recorre ao método harrisiano, que se
12
É a versão francesa, publicada no número 13 da revista Langages, de que dispomos.
26
tornará o centro de suas reflexões no tratamento do processo de paráfrase
(MALDIDIER, 2014 [1994]).
Embora encerre inestimável valor para desenvolvimentos posteriores de distintas
escolas de análise do discurso13
, o projeto de Harris, circunscrito no imperialismo da
linguística estrutural, visando a uma investigação intrínseca à língua, ainda não tinha
por interesse questões referentes ao sentido do texto, aos processos de significação e às
considerações sócio-históricas envolvidas na constituição do sentido, traços da AD que
será praticada na Escola Francesa de Análise do Discurso14
.
Uma grande reviravolta, que marcará profundamente a história das idéias
linguísticas, começa a acontecer na conjuntura histórica e política dos anos 1950-1960,
período em que o estruturalismo linguístico desvela as marcas do seu esgotamento. A
esse propósito, é importante salientar que o apogeu do pensamento estruturalista,
segundo Dosse (1993), ocorrerá no ano de 1966, quando começarão a ocorrer as
“primeiras fissuras” que darão resultado a novas perspectivas.
Entre os anos 50-60, dois teóricos europeus desempenharão o papel de
protagonistas, Roman Jakobson e Émile Benveniste, em virtude do desenvolvimento
teórico – e suas implicações na análise linguística – que eles produziram acerca da
noção de enunciação. Para Brandão (2003, p. 3), a enunciação “constitui a tentativa
mais importante para ultrapassar os limites da linguística da língua, permitindo elaborar
um conceito que possibilitasse colocar em relação língua e fala”, relação que tinha sido
dicotomizada no Curso de Linguística Geral (CLG) e que fechou os olhos do linguista
estruturalista para qualquer consideração sobre o papel do sujeito na língua. A
enunciação tornou-se a ferramenta perfeita para lutar contra a visão imanente da
linguística.
As leituras de Brandão (2003) e Maldidier, Normand & Robin (2014 [1976]) nos
permitem reconstituir o percurso da enunciação nos estudos linguísticos. Pela clareza de
suas apresentações, nós as tomamos aqui, com o intuito de traçar o caminho que esse
conceito tomou desde o início até se tornar um dos fundamentos da análise do discurso.
13
A Análise do Discurso de Harris influenciou o aparecimento de dois modelos de análise do discurso:
um se desenvolveu nos Estados Unidos e corresponde a uma ampliação do escopo do modelo harrisiano;
o outro se desenvolveu na França e, embora tenha inegável influência de Harris, constitui-se mais por
deslocamentos que por espelhamento daquele projeto. A AD francesa incorpora em seu modelo analítico
suas preocupações com o sujeito, com a história e com o sentido.
14
Para informações mais detalhadas, confira Maldidier, Normand e Robin (2014 [1976]) e Brandão
(2003).
27
O percurso histórico da enunciação se inicia com o trabalho pioneiro de Charles
Bally, Tratado de estilística francesa, de 1909. Cabe, aqui, uma observação de nossa
parte: não é surpreendente que a problemática em torno da enunciação tenha irrompido,
nessa época, em um domínio que não fosse o da linguística – lembremo-nos de que a
recém criada ciência, segundo a orientação da época, ocupava-se da língua. A
enunciação, por implicar os contornos realizados pelo sujeito no “ato individual de
vontade e inteligência”15
, estando, assim, relacionada à fala, não poderia ser assumida
como uma preocupação do linguista imanente. Não é de se estranhar, portanto, a opção
de Bally, discípulo de Saussure e um dos compiladores do CLG, por tratar a enunciação
no âmbito de um tratado de estilística.
Nos anos de 1960, Jakobson (1963 apud BRANDÃO, 2003) e Benveniste (1976
[1966], 1999 [1974]) assumiram uma posição de vanguarda no âmbito dos estudos
sobre a enunciação, reinscrevendo-a nos limites da linguística, que, a partir desse
momento, começa a manifestar a preocupação de integrar fatores extralinguísticos na
investigação dos fenômenos da linguagem: a introdução de considerações sobre o papel
do sujeito na linguagem será o divisor de águas entre essa abordagem e a anterior.
A grande contribuição desses dois linguistas, independentemente dos matizes
que cada um tenha dado à enunciação, reside no tratamento que ambos conferiram às
unidades da língua definidas por suas propriedades funcionais no discurso. Jakobson
(1963 apud BRANDÃO, 2003) chamou essas unidades de shifters ou embrayeurs,
embreantes; Benveniste (1976 [1966], 1999 [1974]) as chamou de elementos indiciais
ou dêiticos. Maldidier, Normand & Robin (2014 [1976], p. 74) resumem em poucas
palavras as contribuições dos autores, afirmando que:
Quaisquer que sejam as diferenças que marcam suas abordagens, os
trabalhos destes dois linguistas convergem no sentido de colocar em
evidência uma classe de unidades da língua que se definem por suas
propriedades funcionais no discurso: embrayeurs (ou shifters) para
Jakobson, elementos indiciais para Benveniste, tais elementos têm a
particularidade de remeter para a “instância do discurso” em que eles
são produzidos, constituindo no enunciado pontos de emergência do
sujeito da enunciação.
O que precisamos frisar é que tais unidades funcionais servem, na enunciação,
como pontos de ancoragem por meio dos quais o sujeito se manifesta na língua e marca
as categorias de tempo e lugar; em outras palavras, essas unidades apresentam a função
15
É assim que Saussure (1995 [1916], p. 22) define parcialmente a fala.
28
de identificar o enunciador, o momento em que se enuncia e o lugar da
enunciação. Para que isso seja possível, segundo Benveniste (1976 [1966], 1999
[1974]), a língua disponibiliza aos falantes um aparelho formal, constituído pelos
elementos indiciais responsáveis pela marcação do eu-aqui-agora; o sujeito falante se
apropria desse aparelho formal da língua e o converte em discurso. A enunciação
pressupõe, portanto, o trabalho individual de um sujeito falante.
Graças aos empreendimentos desenvolvidos por Jakobson e Benveniste que foi
possível conceber a subjetividade na linguagem, as formas como o sujeito nela se
inscreve no ato de enunciação. Por isso, como bem salientam Maldidier, Normand &
Robin (2014 [1976], p. 74]):
Esta descoberta comum funda a oposição entre enunciado e
enunciação e abre uma perspectiva nova à análise do texto: este não
mais manifesta o funcionamento da língua como “repertório de
signos e sistema de suas combinações”, mas remete para a
“linguagem assumida como exercício pelo indivíduo”.
Enunciado e enunciação, nesse contexto, “tornam-se uma dupla de noções
incontornáveis” (MAZIÈRE, 2007, p. 18) e vão permitir, a partir da década de 1960,
diferentes desdobramentos para a linguística, entre os quais se situa a Análise do
Discurso na França. A perspectiva criada especialmente por Benveniste, ainda no
contexto dos anos de 195016
, “desempenhou um papel fundamental na „invenção‟ deste
grande conceito do campo da linguagem: o discurso” (TEIXEIRA, 2012, p. 67).
1.4 A Análise de Discurso Francesa
1.4.1 Da fundação
A Análise de Discurso surgiu na França dos anos 60 a partir dos esforços de Jean
Dubois e de Michel Pêcheux que atuavam nos domínios do marxismo e da política.
Segundo Maldidier (2014 [1994], p. 19), ambos “são tomados em um mesmo espaço:
aquele do marxismo e da política” e “partilham as mesmas evidências sobre a luta de
classes, sobre a história, sobre o movimento social”.
16
Embora tenhamos conhecimento dos trabalhos de Benveniste a partir da compilação dos seus textos nas
obras de 1966 – Problemas de Linguística Geral – e 1974, Problemas de Linguística Geral II –, suas
teses foram desenvolvidas nos anos de 1950, quando, numa tentativa de se colocar contra o descritivismo
da linguística, atribuía à ciência da linguagem a tarefa de estudar a língua viva, tomada pelos falantes no
ato concreto de comunicação. Para maiores detalhes, confira Teixeira (2012, p. 65-68).
29
Os historiadores da Análise de Discurso costumam situar as contribuições desses
dois autores a partir de dois textos fundamentais: (i) Lexicologia e análise de
enunciado, publicado no Cahiers de Lexicologie, número 15, em 1969, com o título
Lexicologie et analyse d’énoncés e (ii) Análise Automática do Discurso, publicado pela
Dunot em 1969. O primeiro texto corresponde à comunicação feita por Jean Dubois, em
1969, durante a realização do Colóquio de Lexicologia Política de Saint-Cloud, em que
“ele propôs um método de análise distribucional aplicado ao discurso político que,
superior à lexicologia, caracteriza-se pela análise de frases a partir de um corpus”
(MAINGUENEAU, 1996). O segundo é a tese de doutorado de Pêcheux; nela ele visava
à formalização de uma “máquina discursiva”, um “programa teórico e prático” para a
análise de textos.
No que diz respeito ao ato de fundação, há historiadores que tendem a situar um
ou outro desses teóricos na posição de pioneirismo. Segundo Mazière (2007, p. 31), “as
técnicas linguísticas da AD foram institucionalizadas por Jean Dubois”. Acrescenta a
autora que foi ele quem possibilitou o desenvolvimento da Escola Francesa de Análise
do Discurso, ao introduzir o sintagma “análise do discurso” (MAZIÈRE, 2007, p. 32).
Afirma ainda que entre 1969 e 1972, particularmente, surgiu a “Escola de Nanterre” em
análise do discurso, por meio da qual se desenvolveu “o primeiro círculo de
pesquisadores em AD” (MAZIÈRE, 2007, p. 34), cujos trabalhos se debruçavam sobre
textos políticos.
Embora Mazière (2007) nos conduza a enxergar Jean Dubois – e sua “Escola de
Nanterre” – como o fundador da AD, em razão de suas formalizações terem sido as
primeiras, ela mesma reconhece que foi por meio dos trabalhos desenvolvidos por
Michel Pêcheux e pelos pesquisadores que trabalharam em torno dele que a AD
“experimentou certa longevidade” (MAZIÈRE, 2007, p. 45). Entretanto, mais
importante que tornar preciso quem foi o fundador da Análise do Discurso é reconhecer
que ela estava sendo delineada por dois estudiosos cujas formações – em Linguística,
por Dubois e, em Filosofia, por Pêcheux – poderiam oferecer os ingredientes
necessários à constituição de uma nova frente científica. É importante lembrar que foi
em função das articulações entre a Linguística, o Marxismo e a Psicanálise que a AD se
estabeleceu no seio das ciências humanas. Como bem enfatiza Maldidier (2014 [1994],
p. 20), “marxismo e linguística presidem o nascimento da AD na conjuntura teórica da
França dos anos 1968-70. Muito naturalmente, o projeto se inscreve num objetivo
político: a arma científica da linguística oferece meios novos para abordar a política”.
30
Um fato importante de se destacar é que o ato de fundação da AD (saliente-se
que estamos aludindo ao gesto de inauguração que, na literatura, costuma ser referido
como 1ª Época da AD) está marcado por uma grande “virada” nos estudos de
linguagem em fins dos anos 60. Essa “virada”, caminho necessário para combater o
estruturalismo reinante, caracteriza-se, entre outros fatores17
: (i) pela incorporação de
componentes pragmáticos, (ii) pela assunção da dimensão histórico-social, (iii) pelo
deslocamento da noção de função para a de funcionamento e (iv) pelo lançamento da
hipótese de que o discurso é um processo de produção de sentidos. Tratemos
brevemente sobre cada um desses fatores.
(i) incorporação de elementos pragmáticos
No tocante ao primeiro fator mencionado acima, no transcurso dos anos 60-70,
vemos aparecer um conjunto de trabalhos na linguística francesa que busca a
reintegração de fatores extralinguísticos no estudo da linguagem humana. Uma das
críticas centrais da AD recaiu sobre a dicotomia saussuriana entre língua e fala,
separação que serviu para instituir a língua como objeto da linguística e excluir dela a
fala, a qual permitiria avaliar as condições de emprego da língua. A exclusão da fala
significou ainda o afastamento do sujeito. A AD entra como uma negação/superação do
gesto separador de Saussure. A esse respeito, cabe aqui a lição de Baronas (2003, p. 7):
A Análise do Discurso irrompe no final dos anos sessenta na França
como um gesto teórico-político que procura negar e, ao mesmo
tempo, superar o que Ferdinand de Saussure havia concebido em
termos de uma ciência da linguagem, ao propor, entre outras
questões, a separação entre língua e fala. Ou seja, a Análise do
Discurso (re)introduz nas preocupações sobre os estudos da
linguagem o que Saussure ao se inscrever no verdadeiro positivismo
de sua época deixou de fora: as condições de emprego da língua.
O objetivo inicial da AD foi, portanto, “rearticular o que o „corte saussuriano‟
havia separado, fazer ressurgir o que a instituição de uma linguística formal havia
17
Marandin (1993 [2014, p. 127]) nos ensina que a análise do discurso, em seu “modelo inaugural”, irá
reter o projeto de gramática de texto constituído no seio do estruturalismo e sobre esse referencial irá
propor três deslocamentos: (a) em vez de procurar “descobrir a estrutura de um texto”, a AD buscará
“conceber um sistema de análise aplicável a todo texto”; (b) em vez de se debruçar sobre a “descoberta
dos constituintes de um texto”, a AD lançará a hipótese de que “o discurso é um processo de produção de
sentidos”; (c) em vez de tentar descobrir o “sentido das expressões linguageiras”, a AD partirá para “a
construção de um fato”.
31
removido para fora do campo da ciência da linguagem: as condições de emprego da
língua” (COURTINE, 1999 [1991], p. 8).
É oportuno lembrar que Maldidier, Normand e Robin (2014 [1976]) colocam
que, para se constituir uma teoria do discurso, era necessário reintegrar o
“extralinguístico”, aquilo que é dado pelo sujeito e/ou pelo contexto, pela situação, o
que ficara excluído da prática linguística no seio do estruturalismo. No modelo
inaugural de AD, mais especificamente na AAD69, Michel Pêcheux reintegra esse
aspecto “extralinguístico” ao propor o termo condições de produção para descrever as
“circunstâncias” em que se produz dado discurso. O próprio Michel Pêcheux reconhece
que “esta perspectiva está representada na teoria linguística atual pelo papel dado ao
contexto ou à situação, como pano de fundo específico dos discursos, que torna possível
sua formulação e sua compreensão” (PÊCHEUX, 2014 [1969], p. 74). Essa perspectiva
permite ainda refrear o recalque do sujeito pela linguística estruturalista.
(ii) assunção da dimensão histórico-social
Sobre a assunção da dimensão histórico-social, há que se reconhecer que uma
das teses centrais que será formulada na Análise de Discurso é a de que a significação
de um texto está ligada às condições sócio-históricas em que esse mesmo texto é
produzido e que essa ligação não é traço meramente secundário, mas constitutivo da
própria significação18
. Orlandi (2012b, p. 21) afirma que:
O estudo da linguagem não pode estar apartado da sociedade que a
produz. Os processos que entram em jogo na constituição da
linguagem são processos histórico-sociais. A análise de discurso tem
uma proposta adequada em relação a estas colocações, já que no
discurso constatamos o modo social de produção da linguagem. Ou
seja, o discurso é um objeto histórico-social, cuja especificidade está
em sua materialidade, que é linguística.
Trazer à tona a dimensão histórico-social representa uma tentativa de a Análise
de Discurso aplacar o recalcamento que a linguística estrutural fez da história, de modo
a constituir uma teoria materialista do discurso, tomando a língua numa relação com a
sociedade e a história. Na AAD69, Pêcheux (2014 [1969], p. 76) nos ensina que “o
processo discursivo não tem, de direito, início: o discurso se conjuga sempre sobre um
discurso prévio, ao qual ele atribui o papel de matéria-prima (...)”. O processo
18
É o ensinamento que nos dão Haroche, Henry e Pêcheux (1971).
32
discursivo é, portanto, atravessado pelo “já ouvido” e pelo “já dito” (PÊCHEUX, 2014
[1969], p. 85). Compreendemos, assim, que as palavras significam pela língua e pela
história: “a história se inscreve na língua para que ela funcione, isto é, produza sentido”
(ORLANDI, 2014 [1993], p. 11). Assim, entra em jogo a concepção de funcionamento.
(iii) deslocamento da noção de função para a de funcionamento
No que diz respeito ao deslocamento da noção de função para a de
funcionamento, vale destacar que essa mudança teórica foi promovida por Pêcheux
(2014 [1969], p. 60) logo no início de sua obra, ao tratar sobre a Linguística e a análise
de texto. Afirma que:
(...) o deslocamento conceitual introduzido por Saussure consiste
precisamente em separar essa homogeneidade cúmplice entre a
prática e a teoria da linguagem: a partir do momento em que a língua
deve ser pensada como um sistema, deixa de ser compreendida como
tendo a função de exprimir sentido; ela se torna um objeto do qual
uma ciência pode descrever o funcionamento (...) (grifos do autor).
Orlandi (2014 [1993], p. 11) afirma que a AD “pensa a compreensão (e não a
descrição finalista) do fato de linguagem, introduzindo explicitamente a noção de
„funcionamento‟”. Segundo Maldidier (2003, p. 31), o funcionamento das línguas em
relação a elas mesmas é uma “fórmula decisiva no pensamento de Michel Pêcheux”.
Na perspectiva criada por Pêcheux, para Maldidier (2003, p. 32), “é a partir desse
funcionamento autônomo que será preciso pensar os processos discursivos”.
(iv) lançamento da hipótese de que o discurso é um processo de produção de sentidos
A inclusão de elementos pragmáticos (sujeito e condições de produção), a
retomada da história e a noção de funcionamento desembocam em outro fator que
contribui para a “virada” nos estudos sobre a linguagem: a perspectiva de que o discurso
é um processo de produção de sentidos.
Antes de tudo, é importante destacar que a concepção de discurso introduzida
por Pêcheux (2014 [1969]) e trabalhada por seu grupo é uma noção fundadora
(MALDIDIER, 2003), fruto de rompimentos com teorias anteriores. Citemos como
exemplo a referência a Harris (1969 [1952]): a teoria desenvolvida por ele traz uma base
a que Pêcheux recorre para construir a noção de paráfrase; entretanto, sua noção de
33
discurso propriamente não é recuperada19
. De fato, a noção de discurso introduzida por
Michel Pêcheux visa romper com as concepções de cunho estruturalista, fazendo
intervir, entre outras, as noções de sujeito, condições de produção e ideologia, com as
quais ele vinha trabalhando20
.
Há, portanto, um deslocamento da noção de discurso como enunciado resultante
do encadeamento de frases para uma compreensão de discurso como um processo que
produz sentidos entre os interlocutores. Pêcheux recusa, no esquema da teoria da
comunicação formulada por Roman Jakobson, a ideia de que, entre interlocutores, há
uma mensagem para transmitir uma informação. Em seu lugar, implementa a visão de
que, entre interlocutores, há o discurso, que produz um efeito de sentidos. Resulta daí a
nova perspectiva: estudar o processo de produção do discurso (o processo discursivo).
Como a noção de efeito de sentido é produtiva em Análise de Discurso – e, por
isso, será mobilizado em nosso estudo sobre os editais –, iremos retornar a ela no
próximo capítulo.
1.4.2 Do programa teórico e prático de análise: a AD pecheutiana
A produção teórica de Pêcheux se estendeu de 1966 a 198321
. Como
mencionamos no início deste capítulo, sua “Análise do Discurso”22
passou, durante esse
lapso temporal, por várias reconfigurações tendo em vista, sempre, à constituição de
uma máquina discursiva, um algoritmo catalisador de uma análise automática. As
construções e desconstruções em sua teoria nos deixaram como legado uma visão da
análise do discurso desenvolvida em três épocas. O próprio Michel Pêcheux, em 198323
,
reconheceu a existência desses momentos ao rascunhar um texto em que tratava das
“três épocas” da análise de discurso.
A partir de uma revisão da literatura, em que consideramos os principais
historiadores da análise do discurso, elaboramos as anotações a seguir pensando a AD
segundo as características de cada época em que se desenvolveu sem, entretanto, tomar
19
Harris (1969 [1952]) entende o discurso como o enunciado organizado pelo encadeamento interfrástico.
O discurso é, assim, unidade superior à frase. 20
Conferir Herbert (2012 [1966], 1995 [1968]). 21
Incluímos nesse período os trabalhos desenvolvidos por ele com o pseudônimo Thomas Herbert. 22
Usamos o sintagma “Análise do Discurso” em referência ao modelo proposto por Michel Pêcheux, em
que se visava à análise de um discurso específico: o discurso político. 23
PECHEUX, M. (1983). A análise de discurso: três épocas. IN: GADET, Françoise; HAK, Tony
(Orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 5 ed.
Campinas, SP: Editoria da Unicamp, 2014. pp. 307 a 315.
34
cada um desses momentos de forma estanque. Pensamos as construções, os
desdobramentos e as reconfigurações da teoria criada por Pêcheux como um continuum
no qual podemos acessar conceitos operacionais, princípios e procedimentos de análise
para tratar da constituição dos sentidos e compreender os processos de significação em
suas diferentes materialidades.
Consideremos, pois, o momento inicial e o que se pode reter dele em um
trabalho de AD. Michel Pêcheux, em sua AAD69, tinha o objetivo de formalizar uma
“máquina discursiva” apta a tirar a leitura da subjetividade. Para tanto, implementa,
como sinalizamos no item anterior, um novo objeto de estudo: o discurso. O dispositivo
de análise proposto por ele vinculava-se a uma teoria do discurso, que, para Maldidier
(2003), estava inscrita num “vão” da conjuntura teórica e política da França naquela
época e que ainda estava por nascer.
Em AAD69, além de se preocupar em traçar tópicos de reflexão necessária para
a constituição de uma teoria do discurso24
, Pêcheux introduz noções que nortearão, a
partir dos anos seguintes, os trabalhos em AD. Destacam-se as noções de processo de
produção, condições de produção, relações de força, formações imaginárias, efeito
metafórico como deslizamento de sentido. Além disso, o “cavalo de Troia”25
traz a
previsão de que um processo discursivo se constitui sobre um discurso prévio e a
concepção de discurso como um “efeito de sentidos” entre dois pontos A e B. Pêcheux
(2014 [1969], p. 81) nos ensina que estes pontos não correspondem à “presença física
de organismos humanos individuais”, como previa a teoria da comunicação
jakobsoniana, mas a “lugares determinados na estrutura de uma formação social”.
Acrescenta, ainda, que “esses lugares estão representados nos processos discursivos em
que são colocados em jogo” (grifo do autor). Retornaremos a essa questão no próximo
capítulo, quando tratarmos das formações imaginárias postas em jogo no processo
discursivo.
É importante frisar ainda que o dispositivo de análise que está sendo criado visa
“realizar as condições de uma prática de leitura” (PECHEUX, 1969 [2014, p. 150]). Há
um princípio nessa prática de leitura que Michel Pêcheux chama de “princípio da dupla
diferença”, que o fará tomar, nos trabalhos desenvolvidos nos anos seguintes, as noções
de formação discursiva, formação ideológica, interdiscurso e intradiscurso.
24
Lembremo-nos de que Pêcheux, na PARTE I da AAD69, já toca na questão da análise do texto
buscando relações com a Linguística, trata dos métodos não linguísticos e paralinguísticos de análise e
aponta as dificuldades metodológicas para a constituição do corpus. 25
Termo usado por Paul Henry (1995 [2014, p. 38]) para designar a AAD69.
35
O princípio da dupla diferença identifica a leitura como uma prática polêmica
por produzir gestos de interpretação diferentes, uma vez que o processo discursivo “se
caracteriza não somente pelos efeitos semânticos que nele se encontram realizados – o
que é dito no discurso x – mas também pela ausência de um certo número de efeitos que
estão presentes „além‟ (...)” (PECHEUX, 1969 [2014, p. 151]) . Ou seja, o discurso,
como efeito de sentidos, caracteriza-se não só pelo que é dito, mas também pelo “não
dito”.
A entrada de Pêcheux no domínio da Linguística fica evidente nas considerações
iniciais da AAD69. Embora sua penetração na Linguística também tenha ficado
marcada em um artigo de 1970, Considerações teóricas a propósito do tratamento
formal da linguagem, escrito em colaboração com Antoine Culioli e Catherine Fuchs26
,
e em Língua, ―Linguagens‖, Discurso, escrito em 197127
, a “entrada estrondosa” nas
ciências da linguagem, segundo Maldidier (2003, p. 28), dar-se-á, também em 1971,
com a publicação de A semântica e o corte saussuriano: língua, linguagem, discurso,
escrito em co-autoria com Claudine Haroche & Paul Henry28
.
Neste último artigo – daremos uma atenção especial a ele em razão da mudança
de terreno que propõe –, vemos uma crítica à semântica estrutural pós-saussuriana e às
semânticas universais associadas à gramática gerativa. A perspectiva que se cria é a de
que o corte saussuriano não foi suficiente para a constituição da semântica. Para
Haroche, Henry & Pêcheux (1971), “essa ruptura abre passagem para a fonologia, para
a sintaxe e para a morfologia, deixando entretanto de fora de seu campo uma boa parte
daquilo que atribuímos à semântica”. É por isso que, para Maldidier (2003, p. 31), essa
crítica aponta as semânticas linguísticas como “lugares de recobrimento do corte
saussuriano”. É aí que reside a necessidade de “mudança de terreno” por meio da
intervenção da problemática do discurso.
A necessidade de “mudança de terreno” está, portanto, explicitamente
reconhecida por Haroche, Pêcheux & Henry (1971) ao tratar do lugar que ocupava a
26
Cf. Maldidier (2003, p. 27). 27
PÊCHEUX, Michel. (1971). Língua, “Linguagens”, Discurso. IN: ORLANDI, E. Análise de Discurso:
Michel Pêcheux (Textos selecionados por Eni P. Orlandi). 3 ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2012. p.
121-129. Esse texto foi publicado inicialmente no “Spéciale Idées” do L’Humanité em 1971. 28
HAROCHE, C.; HENRY, P.; PÊCHEUX, M. (1971). A semântica e o corte saussuriano: língua,
linguagem, discurso. Tradução de Roberto Leiser Baronas e Fábio César Montanheiro. Linguasagem -
UFSCAR, São Carlos, ed. 03. Disponível em: http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao03/traducao
_hph.php. Acesso em: 29 jun. 2016. Esse texto foi publicado no número 24 da revista Langages também
em 1971. O interstício entre ele e Língua, ―Linguagens‖, Discurso é de apenas dois meses.
36
semântica entre os estudos linguísticos pós-saussurianos. Segundo eles, “a semântica
(enquanto teoria das regiões deixadas de lado do campo de aplicação dos conceitos e da
prática dos linguistas) supõe uma mudança de terreno ou de perspectiva”. Justificam
ainda a mudança de terreno em função de duas necessidades: “lutar contra o empirismo
(se desembaraçar da problemática subjetivista centrada sobre o indivíduo) e contra o
formalismo (não confundir a língua como objeto da linguística com o campo da
„linguagem‟)”.
Soma-se a isso a necessidade, segundo eles, de introduzir novos objetos
relacionados ao novo terreno. Para a perspectiva teórica que visavam implantar, tais
objetos deveriam partir de conceitos oriundos do materialismo histórico, conceitos estes
que vinham sendo recalcados pelas ciências humanas. Julgamos importante destacar
esse fato porque, já nesse artigo de 1971, Pêcheux explora uma das bases em que ele
fundamentará seu empreendimento, explicitamente, a partir de 1975: o materialismo
histórico, compreendido como a “teoria das formações sociais e de suas
transformações”29
.
Como consequências da mudança de terreno, as reflexões críticas tecidas sobre
a semântica de inspiração saussuriana conduzem, tendo em vista o objeto discurso, à
proposição de uma semântica discursiva, entendida como “a análise científica dos
processos característicos de uma formação discursiva (...) que leva em consideração o
elo que liga esses processos às condições nas quais o discurso é produzido (às posições
às quais deve ser referido)” (HAROCHE, HENRY & PÊCHEUX, 1971, p. 13).
Entendendo o discurso como efeito de sentidos30
, os três desenvolvem uma das teses
fundamentais da semântica, a de que:
O sentido, objeto da semântica, excede o âmbito da linguística,
ciência da língua. A semântica não deriva de uma abordagem
linguística, ciência da língua. (...) Para além dos níveis fonológico,
morfológico e sintático, cuja descrição Saussure autoriza, a semântica
não é apenas um nível a mais, homólogo aos outros. (MALDIDIER,
2003, p. 31).
29
Em 1975, ao lado de Catherine Fuchs, em A propósito da análise automática do discurso: atualizações
e perspectivas, Pêcheux explicitará as bases sobre as quais se constrói a análise do discurso. 30
Essa expressão é usada por Haroche, Henry & Pêcheux (1971, p. 16) ao se referirem à direção da
pesquisa que visam implantar: uma pesquisa que pode “desembocar numa análise dos efeitos de sentido
implícitos ligados à relação entre diversas formações discursivas” (grifo nosso).
37
Como afirmamos anteriormente, o dispositivo de análise instituído por Pêcheux
na AAD69 visava à constituição de uma prática de leitura, e isso o fez tomar algumas
noções que se tornaram fundamentais para a AD. Duas dessas noções foram
apresentadas no artigo publicado no número 24 da revista Langages (A semântica e o
corte saussuriano: língua, linguagem, discurso); são elas: Formação Ideológica e
Formação Discursiva (doravante, FD e FI). Retornaremos a esses conceitos no capítulo
seguinte.
É também no texto de 1971 que Haroche, Henry & Pêcheux formulam um dos
princípios fundamentais da AD, o princípio segundo o qual “as palavras podem mudar
de sentido segundo as posições determinadas por aqueles que as empregam”31
. No
mesmo artigo, eles concluem que “(...) o laço que une as „significações‟ de um texto às
suas condições sócio-históricas não é meramente secundário, mas constitutivo das
próprias significações”. Eis aqui a base da noção de condições de produção às quais se
relacionam as formações discursivas.
Segundo os ensinamentos de Maldidier (2003), podemos visualizar o triênio que
segue A semântica e o corte saussuriano: língua, linguagem e discurso como o
momento decisivo para a formulação de uma teoria do discurso. É um período marcado
pelas emanações que Louis Althusser exalou no contexto teórico da França no final da
década de 1960 com seu artigo Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado: (notas a
uma investigação), que permitiram o desenvolvimento de uma “política marxista das
ciências humanas”32
. A perspectiva traçada por Althusser exerceu influência decisiva
nos trabalhos de Pêcheux. Soma-se a isso o aparecimento da noção de pré-construído,
introduzida na Análise do Discurso, segundo Collinot & Mazière (2014, p. 193), por
Paul Henry e Michel Pêcheux.
O discurso, entendido como uma prática social, não podia ficar imune a tais
elucubrações, e foi por meio delas que se fez possível o encontro da língua com a
ideologia. A relação entre língua/discurso com a ideologia – que, como vimos, já
encontramos nos artigos de Pêcheux citados acima, de 1971 – será o alicerce sobre o
qual ele construirá sua teoria do discurso no triênio seguinte, teoria que ficará visível no
artigo que Pêcheux escreve com Catherine Fuchs, A propósito da Análise Automática
31
Conferir Haroche, Henry & Pêcheux (1971, p. 6). 32
A expressão é de Courtine (1999 [1991]).
38
do Discurso (publicado em março de 1975), e no livro Les Verités de la Palice, de
Pêcheux (publicado em maio de 1975)33
.
O alicerce da teoria do discurso é sustentado por duas grandes fundações:
(i) a tese da interpelação ideológica de Althusser
A tese da interpelação se resume no título que abre um dos capítulos da obra de
Althusser (1970 [1980, p. 93]): “A ideologia interpela os indivíduos como sujeitos”.
Essa tese, fundamental para a constituição da teoria do discurso de Pêcheux, se
desenvolve no seguinte sentido:
Como todas as evidências, aí compreendidas as que fazem com que
uma palavra „designe uma coisa‟ ou „possua uma significação‟ (logo
aí compreendidas as evidências da „transparência‟ da linguagem),
esta evidência de que eu e você somos sujeitos – e que isto não cause
problemas – é um efeito ideológico elementar, o efeito ideológico
elementar. (ALTHUSSER, 1970 [1980, p. 95])
(ii) a tese do pré-construído de Paul Henry e Michel Pêcheux
O termo pré-construído, que será tomado por Pêcheux, a partir de 1975, como
um dos elementos decisivos para a construção de uma teoria do discurso, já aparece no
final do artigo 24 de Langages, em 1971, e vem previsto desde a AAD69, quando
afirma que:
(...) o processo discursivo não tem, de direito, início: o discurso se
conjuga sempre sobre um discurso prévio, ao qual ele atribui o papel
de matéria-prima, e o orador sabe que quando evoca tal
acontecimento, que já foi objeto de discurso, ressuscita no espírito
dos ouvintes o discurso no qual este acontecimento era alegado, com
as “deformações” que a situação presente introduz e da qual pode
tirar partido. (PÊCHEUX, 1969 [2014, p. 76])
Está aqui implícita a primeira referência ao princípio de que o discurso se
sustenta sobre um discurso prévio. Mais adiante, Pêcheux (1969 [2014, p. 85]) evoca as
noções de pressuposição e implicação desenvolvidas por Oswald Ducrot para levantar a
hipótese de que “as diversas formações resultam, elas mesmas, de processos discursivos
anteriores (provenientes de outras condições de produção) que deixaram de funcionar
mas que deram nascimento a „tomadas de posição‟ implícitas que asseguram a
33
Nossa referência neste trabalho é a tradução brasileira Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação
do óbvio (doravante, SD), feita pela professora Eni Orlandi. Na versão brasileira, além do texto esculpido
em Les Vérités de la Palice, há outros textos anexos escritos também por Michel Pêcheux.
39
possibilidade do processo discursivo em foco”. O discurso estaria, pois, atravessado
pelo “já ouvido” e pelo “já dito”.
Maldidier (2003) nos ensina que, diferentemente de Ducrot, que traz uma
interpretação lógico-pragmática sobre a pressuposição, Pêcheux, que desejava se
distanciar de qualquer interpretação logicista, assume a opção pelo pré-construído: “A
teoria do discurso acabava de receber um novo conceito: despojado de qualquer sentido
lógico, o pré-construído constitui a reformulação da pressuposição no novo terreno do
discurso” (Maldidier, 2003, p. 36).
A expressão semântica discursiva, adotada por Haroche, Henry & Pêcheux
(1971), será usada até 1975, ano em que Michel Pêcheux e Catherine Fuchs publicarão,
no número 37 da revista Langages, o artigo intitulado A propósito da análise
automática do discurso: atualização e perspectivas, uma reformulação da AAD69. É
neste texto que, pela primeira vez, vemos ser anunciadas as regiões do conhecimento
que se articulam para a constituição da Análise do Discurso34
.
(i) o Materialismo Histórico, entendido como a “teoria das formações sociais e de suas
transformações, compreendida aí a teoria das ideologias”.
(ii) a Linguística, concebida como a “teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos
de enunciação ao mesmo tempo”.
(c) a Teoria do Discurso, compreendida como a “teoria da determinação histórica dos
processos semânticos”.
(d) a Psicanálise, entendida como “uma teoria da subjetividade” (de natureza
psicanalítica) que atravessa e articula as três regiões do conhecimento científico
apresentadas anteriormente.
A articulação dessas regiões do conhecimento pretende trazer para a linguística a
história, assim como ela é tratada no materialismo histórico, e o sujeito, segundo a
concepção da psicanálise. Do materialismo histórico, a teoria do discurso retém
principalmente a noção de formação social ou formação econômica e social, que se
constitui pelos diferentes modos de produção. Para Marx (apud MALDIDIER,
NORMAND & ROBIN, 1976 [2014, p. 87]), “o modo de produção da vida material
domina em geral o desenvolvimento da vida social, política e intelectual”. Da
34
Cf. Pêcheux & Fuchs, 1975 [2014, p. 160].
40
psicanálise, importa a teoria freud-lacaniana sobre o inconsciente e “o deslocamento da
noção de homem para a de sujeito”, compreendendo-o como uma entidade que “se
constitui na relação com o simbólico, na história” (ORLANDI, 2013, p. 19).
Para a teoria do discurso, importa uma teoria da sintaxe e da enunciação e, ainda,
segundo Orlandi (2013, p. 19), a questão da não-trasparência da linguagem, partindo-se
da hipótese de que “a Análise do Discurso procura mostrar que a relação
linguagem/pensamento/mundo não é unívoca, não é uma relação direta que se faz
termo-a-termo, isto é, não se passa diretamente de um a outro”. A Linguística é vista
como “disciplina nodal” (Mazière, 2007, p. 48).
A articulação entre Linguística, Materialismo Histórico e Psicanálise será
defendida por Michel Pêcheux até o final de sua vida e a vemos em Pêcheux (2012
[1984], p. 283]), ao afirmar que “a análise de discurso na França é antes de tudo (...) um
trabalho de linguistas, (...) de historiadores (...) e de psicólogos”. Daí sua caracterização
como “disciplina de entremeio” (ORLANDI, 1996, 2016).
O mérito de A propósito da análise automática do discurso: atualização e
perspectivas reside, entretanto, não apenas na formalização do tripé sobre o qual se
apoia a AD, mas no conjunto de pressupostos de análise que são instituídos e que
governarão, a partir de então, as inúmeras pesquisas que se desenvolveram em torno da
análise do discurso francesa. No artigo, encontramos uma discussão mais ampla acerca
dos seguintes aspectos recorrentes em análise do discurso35
: a tese da interpelação
ideológica; as noções de formação ideológica e formação discursiva; a teoria dos dois
esquecimentos; a relação entre produção de sentido e processo parafrástico; o processo
discursivo; a enunciação; os mecanismos de dessintagmatização linguística (ou
dessuperficialização) e dessintagmatização discursiva; a distinção terminológica entre
superfície linguística, objeto discursivo e processo discursivo; as condições de
construção de um corpus.
O ano de 1975, para a Análise do Discurso, não ficou marcado somente pela
revisão e inauguração de novas perspectivas de análise operadas pelo artigo publicado
em Langages 37. Nesse mesmo ano, vem coroar os estudos acerca do discurso o livro
de Michel Pêcheux intitulado Les Vérités de la Palice. Para melhor situar o leitor sobre
35
Com o intuito de não tornar nossa apresentação redundante, nós nos limitaremos, aqui, a uma mera
referência aos pontos de maior relevância para a pesquisa em AD que encontramos no artigo 37 de
Langages. No capítulo em que trataremos dos princípios e procedimentos da AD, o retorno ao artigo será
inevitável.
41
as contribuições de Pêcheux neste livro, tomaremos por base a própria obra do autor e a
excelente exposição sobre ela feita por Maldidier (2003, p. 45-54). Com esse
referencial, elaboramos o quadro a seguir em que ficam destacados os aspectos
importantes para a AD contidos em Les Vérités de la Palice36
.
(a) A tese de que a Semântica é ponto nodal das contradições que atravessam a Linguística,
pois é nesse ponto que a Linguística se articula com a Filosofia e, assim, com o
Materialismo Histórico – ciência das formações sociais.
SD, p.
18
(b) Assunção da posição materialista, a partir da teoria marxista-leninista sobre ideologia, e
a tentativa de desenvolver a noção de processos discursivos a partir dessa posição.
SD, p.
33
(c) Opção pelo “ponto lógico-linguístico” que, segundo ele, pode nos conduzir a uma teoria
materialista do discurso.
SD, p.
84
(d) Necessidade de recondução ao “problema „moderno‟ da enunciação”. A enunciação,
segundo Pêcheux, ocupa o centro da nova configuração, que articula lógica, teoria do
conhecimento e filosofia da linguagem.
SD, p.
46-50
(e) Distinção entre língua – base linguística – e discurso – processo discursivo – e sua
relação com a ideologia. Como consequência dessas relações, recebemos duas teses: (i) a
tese segundo a qual é sobre a base linguística que se desenvolvem os processos
discursivos e (ii) a tese de que todo processo discursivo se inscreve numa relação
ideológica de classes.
SD, p.
82
(f) Acolhimento da tese do pré-construído para se referir a toda “construção anterior,
exterior, mas sempre independente, em oposição ao que é „construído‟ pelo enunciado”.
SD, p.
89
(g) Recepção do termo articulação de enunciados como um funcionamento discursivo
(MALDIDIER, 2003, p. 47). Esse termo foi usado por Paul Henry, em seu artigo no
número 37 de Langages37
, em referência ao funcionamento das relativas, cuja construção
é, para Pêcheux, “o lugar privilegiado no caminho teórico que leva ao discurso”.
SD,
p.95
(h) Afirmação de que “uma teoria materialista dos processos discursivos não pode, para se
constituir, contentar-se em reproduzir, como um de seus objetos teóricos, o „sujeito‟
ideológico como „sempre-já dado‟”. Pêcheux conclui que essa teoria materialista dos
processos discursivos deve assumir uma teoria não-subjetiva da subjetividade. Temos
aqui um dos grandes avanços sobre a problemática do sujeito do discurso na AD.
SD, p.
121
(i) Ancoragem da teoria do discurso na tese althusseriana da interpelação ideológica
(MALDIDIER, 2003, p. 49). Vemos essa ancoragem nos capítulos 1 e 2 da 3ª Parte de
SD.
SD, p.
129 -
144.
(j) Sistematização – e aprofundamento da discussão – dos principais elementos de uma
teoria do discurso. Entre esses elementos destacam-se: (i) o caráter material do sentido,
(ii) o conceito de formação discursiva, (iii) a noção de processo discursivo, (iv) o
interdiscurso e o intradiscurso, (v) a forma-sujeito, (vi) a concepção de efeito de sentido,
(vii) o discurso-transverso e (viii) as noções de Esquecimento no 1 e Esquecimento n
o 2.
SD, p.
145 a
168
Quadro 1 – Aspectos teóricos relevantes em Les Vérités de la Palice
Esse modelo inaugural da Análise do Discurso, desenvolvido no “tempo das
grandes construções”38
, em virtude dos deslocamentos teóricos produzidos, passou por
36
Lembramos ao leitor que nossa referência é a tradução brasileira Semântica e Discurso: uma crítica a
afirmação do óbvio. 37
HENRY, Paul. (1975). Construções relativas e articulações discursivas. Trad. João Wanderley Geraldi
e Celene Margarida Cruz. Caderno de Estudos Linguísticos, Campinas, (19): 43-64, jul./dez. 1990. 38
A expressão é de Maldidier (2003). A autora traz uma periodização da Análise do Discurso que se
divide em três momentos (que se aproximam das “três épocas” da AD visualizadas por Pêcheux (2014
42
uma crise cuja consequência foi o desdobramento de um conjunto de trabalhos que
ficou referido na literatura como 2ª Época da AD, reconhecida por Pêcheux (2014
[1983, p. 309]). O programa de pesquisa implantado pela AAD69 e desenvolvido nos
anos seguintes – até 1975, em especial com o artigo 37 de Langages e Les Vérités de la
Palice – necessitava ser reorientado, uma vez que refletia ainda o modelo estrutural.
Segundo Maldidier (2014 [1994], p. 25), Pêcheux, nessa época, “dispunha de uma
concepção ainda simples de língua, fortemente marcada pela ideologia estrutural: a base
invariante (sintaxe) vs a seleção combinação (léxico)”.
Outra problemática do modelo inaugural apontada por Maldidier (2014 [1994]) é
o fato de que tanto o princípio de constituição do corpus quanto o método
distribucional do estruturalismo estavam centrados sobre a palavra. Por essa razão, a
problemática da construção do corpus constituirá um “deslocamento sensível”39
durante
o primeiro período de reconstrução do dispositivo. Soma-se a isso a entrada, em
Linguística, de campos como a pragmática, a filosofia da linguagem, os estudos sobre
enunciação e a recepção de Bakhtine-Volochinov, cujo livro Marxismo e Filosofia da
Linguagem acabara de entrar na conjuntura teórica da França dos anos 1970
(MALDIDIER, 2014 [1994]; BRANDÃO, 2012).
As reconfigurações mais sutis giram em torno das noções de formação
discursiva e interdiscurso. No tocante à formação discursiva, Pêcheux (2014 [1983], p.
310) passa a afirmar que:
(...) a noção de formação discursiva, tomada de empréstimo a Michel
Foucault, começa a fazer explodir a noção de máquina estrutural
fechada na medida em que o dispositivo da FD está em relação
paradoxal com seu “exterior”: uma FD não é um espaço estrutural
fechado, pois é constitutivamente “invadida” por elementos que vêm
de outro lugar (isto é, de outras FD) que se repetem nela, fornecendo-
lhe suas evidências discursivas fundamentais (por exemplo, sob a
forma de “pré-construídos” e de “discursos transversos”).
Isto posto, no que diz respeito ao interdiscurso, Pêcheux reorienta sua visão no
seguinte sentido:
A noção de interdiscurso é introduzida para designar “o exterior
específico” de uma FD enquanto este irrompe nesta FD para construí-
la em lugar de evidência discursiva, submetida à lei da repetição
estrutural fechada: o fechamento da maquinaria é pois conservado, ao
[1983]). São eles: o Tempo das grandes construções – de 1969 a 1975; o tempo das Tentativas – de 1976
a 1979; e o tempo da Desconstrução Domesticada – de 1980 a 1983. 39
Cf. Pêcheux (2014 [1983], p. 311).
43
mesmo tempo em que é concebido então como resultado paradoxal
da irrupção de um “além” exterior e anterior. (PÊCHEUX, 2014
[1983], p. 310).
Durante o primeiro período em que se buscou por desconstruções e
reconfigurações (da 1ª para a 2ª Época da AD), Michel Pêcheux escreveu pouco. Os
historiadores da Análise do Discurso situam, nesse período, as seguintes contribuições
do autor: Remontemos de Foucault a Spinoza (1977), Há uma via para a linguística
fora do logicismo e do socialismo? (1977) e Só há causa daquilo que falha (1978). O
próprio Pêcheux (2014 [1983], p. 311) reconheceu que a “AD-2 manifesta muito poucas
inovações”.
A partir da década de 1980, a Análise de Discurso passará por outra reviravolta,
cuja consequência será uma nova Época a qual Pêcheux (1983 [2014, p. 311])
reconhecerá como AD-3, a 3ª Época da AD. No bojo da nova reconfiguração está a
realização do colóquio Materialidades Discursivas40
, realizado em Nanterre em 1980.
Nesse período da AD, presenciamos a desconstrução das maquinarias
discursivas e o desenvolvimento de novos procedimentos de análise. Dentre as
inovações, as pesquisas acentuam “o primado teórico do outro sobre o mesmo”
(PÊCHEUX, 2014 [1983], p. 311), isto é, o primado do interdiscurso sobre o discurso.
Há duas contribuições decisivas para o estabelecimento de novas perspectivas: a
de Jean-Jacques Courtine e a de Jacqueline Authier-Revuz. Courtine (2014 [1981]
[2014], 2016 [1982]) elaborou as noções de “enunciado dividido”, a partir da categoria
marxista da contradição, e “memória discursiva”, a partir da Arqueologia do Saber de
Michel Foucault. Além disso, ele ampliou o conceito de formação discursiva,
demonstrando que o fechamento de uma FD é instável, não havendo uma separação
definitiva entre um interior e o exterior; sob esse prisma, o fechamento de uma FD “se
inscreve entre diversas FD como uma fronteira que se desloca em função das questões
da luta ideológica” (COURTINE, 2016 [1982, p. 20]). A contribuição de Authier-Revuz
(1990, 1998, 2004), fortemente influenciada pela teoria da polifonia de Bakhtine-
Voloshinov, reside, principalmente, na construção teórica sobre as heterogeneidades
enunciativas: heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva do discurso,
funcionamentos que permitem identificar a presença do outro sobre o mesmo e que
40
Tivemos acesso aos textos do colóquio por meio do livro organizado por Bernard Conein, Jean-Jacques
Courtine, Françoise Gadet, Jean-Marie Marandin e Michel Pêcheux, publicado pela Editora da Unicamp
em 2016: CONEIN, Bernard et al. (Org.) Materialidades discursivas. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2016.
44
recoloca, nas pesquisas em AD, a relação entre interdiscurso e intradiscurso
(MALDIDIER, 2003).
Depois década de 1980, entra em jogo a questão do arquivo e sua relação com a
problemática da leitura; o arquivo se torna elemento fundamental para a reconstrução de
novos algoritmos de análise do discurso. Pêcheux et al. (2014[1982]), após breve
“balanço” sobre o dispositivo de análise construído em AAD69, lançam os “pontos de
referência” para uma versão AAD80, entre os quais se destaca a definição do corpus,
cuja constituição deveria estar relacionada à problemática do arquivo. Em uma breve
nota de rodapé, Pêcheux et al. (2014 [1982], p. 255) afirmam que “os corpora tratados
pela AAD69 foram de dois tipos: os corpora experimentais e os corpora de arquivo.
Estes últimos constituem, em função das perspectivas teóricas atuais, os únicos tipos de
corpora passíveis de serem tratados pela análise do discurso”.
Pêcheux (2016 [1980], p. 24), em seu discurso de abertura do colóquio
Materialidades Discursivas, nos faz uma pergunta deveras provocadora: “Sabemos o
que é ler?”. E é pensando a leitura, no espaço do arquivo histórico, que ele imagina a
análise do discurso como “esse dispositivo muito particular de leitura que se poderia
designar como leitura-trituração” (PÊCHEUX, 2016 [1980], p. 25). No próximo
capítulo, trataremos com mais detalhes a noção de arquivo em AD.
Dentre as perspectivas lançadas em torno de uma AAD80, julgamos importante
chamar a atenção de duas:
(a) (re)afirmação41
da necessidade de serem considerados dois espaços para
descrever séries discursivas: o espaço vertical, da dimensão histórica do
discurso, e o espaço horizontal, do “fio do discurso”, isto é, do sequenciamento
(PÊCHEUX et al., 2014 [1982], p. 277]);
(b) afirmação do desejo de abandonar a prática de análise que se desenvolveu em
função do sentido atribuído à expressão análise do discurso42
e assumir, em seu
lugar, “uma prática contraditória, tomando a morfologia e a leitura” (PÊCHEUX
et al., 2014 [1983], p. 278).
41
Lembremo-nos de que essa afirmação se pauta na perspectiva criada por Courtine (2014 [1981], 2016
[1982]) acerca dos eixos vertical e horizontal da produção discursiva. 42
Pêcheux et al (2014 [1982], p. 278) reconhecem que o termo análise do discurso, que se difundiu a
partir da AAD69, “designa ao mesmo tempo uma decomposição de séries discursivas e uma regressão
que reduz a complexidade dessas séries a uma lei ou a um modelo de representação simplificador”. Mais
adiante, afirmam que é essa prática que deve ser abandonada.
45
Outra contribuição valiosa de Michel Pêcheux à Análise do Discurso nesse
período é a introdução do conceito de acontecimento. Tomando suas próprias palavras,
podemos compreender o acontecimento como ―o ponto de encontro de uma atualidade e
uma memória‖ (PÊCHEUX, 2012 [1983], p. 17) ou como o fato novo ―em seu contexto
de atualidade e no espaço da memória que ele convoca‖ (PÊCHEUX, 2012 [1983, p.
19]). Desde 1980, no colóquio Materialidades Discursivas, ele já apontava para a
necessidade de “libertar a análise do discurso (...) das rotinas da reprodução do sentido e
engajá-la na produção do acontecimento” (PÊCHEUX, 2016 [1980], p. 27). Traremos o
conceito de acontecimento em AD com maiores esclarecimentos no próximo capítulo.
1.4.3 Desdobramentos da Análise de Discurso (pecheutiana) no Brasil
A Análise de Discurso possui muitas linhas teóricas43
. Por essa razão, desde
nossa Introdução, vimos afirmando em qual perspectiva nos baseamos para a
elaboração do dispositivo teórico e do dispositivo de análise que assumimos na presente
pesquisa. Filiamo-nos à Análise do Discurso proposta por Michel Pêcheux e
desenvolvida por ele e seu grupo entre os anos de 1969 e 1983. Entretanto, é importante
destacar que somamos aos postulados da AD pecheutiana pressupostos teóricos
elaborados no Brasil a partir da matriz francesa. É fato que a AD de orientação francesa
obteve desdobramentos e deslocamentos importantes em nosso país, em especial com os
trabalhos de Eni Orlandi, a partir dos anos de 1970, e dos pesquisadores a ela
vinculados.
Acreditamos que o principal desdobramento da AD francesa no Brasil tenha sido
a ampliação do seu escopo de estudo, resultante do deslizamento de uma Análise do
Discurso, que possui uma relação determinante com o discurso político, para uma
Análise de Discurso, que permitiu o estudo sobre o discurso em diferentes
materialidades. Não estamos nos referindo, aqui, ao deslizamento que fez a AD
pecheutiana caminhar rumo às reconfigurações que se aproximam das perspectivas
formalistas. É notória, nesse sentido, a observação de Baronas (2003, p. 7), para quem:
43
Só a título de ilustração, podemos citar as linhas de pesquisa implantadas atualmente no âmbito do
Grupo de Estudos Discursivos – GED, que reúne pesquisas em torno da Análise Dialógica do Discurso,
de orientação bakhtiniana, da Semiótica Discursiva, originada dos trabalhos de Greimas, e da Análise de
Discurso Francesa, sob a chancela dos estudos de Pêcheux e Foucault.
46
O dispositivo teórico-político tal qual fora pensado por Pêcheux no
final dos anos sessenta ao caminhar de uma Análise do Discurso para
uma Análise de Discurso, principalmente depois da sua morte em
1983, gradativamente foi sendo desviado do seu percurso primeiro,
que era o de articular linguística e história e tomando uma
configuração que se aproximou cada vez mais das perspectivas
formalistas, as quais, no fundo, concebem o discurso como um
exemplo de língua.
Referimo-nos aos deslocamentos que permitiram o estudo do processo
discursivo nas diferentes trocas simbólicas realizadas pelo homem por meio da
linguagem verbal e não verbal. Sobre esta última, vale destacar, como exemplo, as
contribuições de Souza (2001, 2018, entre outros), que desenvolveu perspectivas
voltadas para o estudo da imagem (gráfica, fotográfica, fílmica, publicitária, etc.)
formulando um novo campo de descrição e análise do não verbal como materialidade
discursiva44
.
Os desdobramentos e deslocamentos teóricos realizados a partir da matriz de
origem francesa permitiram o reconhecimento daquilo que, hoje, é referido como
Análise do Discurso Brasileira (ORLANDI, 2005). Em razão da inviabilidade de trazer,
neste espaço, todas as contribuições dos pesquisadores brasileiros para a constituição
dessa Escola Brasileira de Análise do Discurso, destacaremos as de Eni Orlandi que
julgamos mais relevantes, tendo em vista, principalmente, o tratamento que daremos ao
nosso objeto de estudo. Para isso, tomamos por base Orlandi (2012a), que traz um
inventário de algumas de suas construções teóricas que ela considera como
“deslocamento produtivo” (tomaremos a liberdade de, aqui, apenas citá-las, pois, no
capítulo seguinte, iremos expor para o leitor com mais detalhes os conceitos instalados
em AD em função dessas contribuições):
(i) a tese de que, no processo discursivo, há uma tensa relação entre paráfrase e
polissemia;
(ii) o estabelecimento de um corte entre discurso e texto, sujeito e autor;
(iii) o deslocamento da operação de segmentação para a de recorte;
(iv) o princípio da incompletude da linguagem;
(v) a instalação do conceito de forma material ao lado da forma empírica e da
forma abstrata;
44
Confira também o conjunto de textos organizados por Souza & Pereira (2011).
47
(vi) a teorização sobre o silenciamento de modo a se compreender como os
sentidos se constituem, são formulados e circulam na sociedade.
(vii) a revisão do conceito de interpretação, segundo a Hermenêutica e a Análise
de Conteúdo, o que a fez conceber a noção de gesto de leitura ou gesto de
interpretação, em que se considera a interpretação como uma prática
discursiva/simbólica;
(viii) a diferenciação entre Dispositivo Teórico e Dispositivo Analítico, o que
permite ao analista desenvolver seu estudo no batimento metodológico entre
teoria, descrição e interpretação;
(ix) a distinção entre interdiscurso e arquivo;
(x) a revisão do conceito de equívoco levando em consideração a falha da língua
na história;
(xi) a teorização sobre o duplo movimento da compreensão da subjetividade: a
interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia (assujeitamento) e a
individualização do sujeito pelo Estado.
48
2. Dispositivo teórico da Análise de Discurso
Neste capítulo, apresentamos ao leitor os princípios e procedimentos difundidos
na Análise de Discurso de orientação francesa que serão mobilizados para darmos
tratamento ao nosso objeto de estudo. Gostaríamos de ressaltar que, em função das
limitações espaciais impostas a todo capítulo teórico, as anotações que fazemos aqui se
referem a um mínimo recorte do referencial teórico da AD, de modo a trazer para o
leitor os pressupostos necessários para a análise.
2.1 Discurso, Formação Discursiva e Formação Ideológica
Partiremos da tradicional noção de discurso como efeito de sentidos entre
interlocutores. Essa noção foi inicialmente delineada na AAD69, quando Pêcheux,
revendo a Teoria da Enunciação de Jakobson45
, propôs o termo discurso no lugar de
mensagem. Para Pêcheux (2014 [1969]), na interlocução, o que o locutor diz ao
alocutário “não se trata necessariamente de uma transmissão de informação” entre dois
indivíduos, mas de “efeito de sentidos” entre duas posições, “dois lugares determinados
na estrutura de uma formação social”.
Essa noção de discurso é fundadora. Ao deslocar a concepção de interlocutores
como indivíduos (pessoas físicas) que transmitem informações entre si para
interlocutores como lugares historicamente determinados, Michel Pêcheux funda uma
nova forma de analisar as trocas simbólicas realizadas pelo homem por meio da
linguagem.
A concepção de discurso introduzida na AAD69 teve como consequência uma
série de desdobramentos teóricos necessários para sua compreensão. O primeiro deles
foi relação que se estabeleceu entre efeito de sentidos e as noções de formação
discursiva (FD) e formação ideológica (FI), formuladas em 1971 no artigo A semântica
e o corte saussuriano: língua, linguagem e discurso, de Haroche, Henry e Pêcheux46
.
Segundo esses teóricos:
45
Devemos lembrar que, na Teoria da Enunciação de Roman Jakobson, há um remetente/destinador que
transmite a um destinatário uma sequência verbal – a mensagem – visando à transmissão de informação. 46
Estamos considerando o uso da noção de formação discursiva no interior da AD; daí partirmos desse
ponto, sem deixar de considerar que o termo em questão já tinha sido usado por Foucault (2008 [1969]).
49
Falaremos de formação ideológica para caracterizar um elemento
suscetível de intervir – como uma força confrontada a outras forças –
na conjuntura ideológica característica de uma formação social em
um momento dado. Cada formação ideológica constitui desse modo
um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são
nem “individuais” e nem “universais”, mas que se relacionam mais
ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas em
relação às outras. (HAROCHE, HENRY & PÊCHEUX, 1971, p.12)
Logo em seguida, apoiando-se em pressupostos do Materialismo Histórico, eles
acrescentam que:
(...) as formações ideológicas assim definidas comportam
necessariamente, como um de seus componentes, uma ou várias
formações discursivas interligadas, que determinam o que pode e
deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão,
de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.) a partir de
uma posição dada numa conjuntura dada: o ponto essencial aqui é
que não se trata apenas da natureza das palavras empregadas, mas
também (e sobretudo) de construções nas quais essas palavras se
combinam, na medida em que elas determinam a significação que
tomam essas palavras: como apontávamos no começo, as palavras
mudam de sentido segundo as posições ocupadas por aqueles que as
empregam. Podemos agora deixar claro: as palavras ―mudam de
sentido‖ ao passar de uma formação discursiva a outra.
(HAROCHE, HENRY & PÊCHEUX, 1971, p.12) [Grifos nossos].
Os trechos destacados acima nos permitem sintetizar o seguinte quadro teórico:
uma formação ideológica consiste em uma concepção dada na conjuntura histórica de
dada formação social; a formação discursiva é aquilo que determina o que pode e deve
ser dito no interior dessa conjuntura sócio-histórica.
A noção de discurso – efeito de sentido – é posta, assim, numa relação com as
formações discursivas inscritas em dada formação ideológica. O sentido de uma palavra
não é dado a priori, ele emerge do interior da formação discursiva na qual dada palavra
é empregada. Esse posicionamento sobre efeito de sentido em relação à FD continua
sendo defendido por Pêcheux e Fuchs (2014 [1975], p. 167). Para eles, “o „sentido de
uma sequência só é materialmente concebível na medida em que se concebe esta
sequência como pertencente necessariamente a esta ou aquela formação discursiva (o
que explica, de passagem, que ela possa ter vários sentidos)”.
Em Les Vérités de La Palice, Michel Pêcheux dá amplo desenvolvimento à
relação entre sentido, FD e FI. Lá, ele defende que o caráter material do sentido é
dependente constitutivamente do “todo complexo das formações ideológicas”. Desse
modo, parte em defesa de duas teses: (i) a de que o sentido das unidades da língua é
50
determinado por posições ideológicas que entram em jogo no processo sócio-histórico
em que são reproduzidas, daí sua compreensão de FD como aquilo que determina o que
pode e deve ser dito dentro de uma FI dada; (ii) a de que toda FD dissimula (apaga,
oculta), pelo princípio da transparência do sentido, sua subordinação ao todo complexo
com dominante das formações discursivas, no interior do emaranhado das formações
ideológicas (PÊCHEUX, 2009 [1975], p. 146)47
. É nesse ponto específico que Pêcheux
formula um dos principais conceitos operatórios da Análise de Discurso. Ao todo
complexo com dominante das formações discursivas ele atribui o nome interdiscurso,
ao qual voltaremos adiante.
Essa concepção de FD, como um exterior específico do discurso, dominou as
pesquisas na Análise do Discurso instituída por Michel Pêcheux e, muito embora esse
conceito tenha sido posto em escanteio na França a partir dos anos 80, como bem
pontua Baronas (2011), ele continua operativo em pesquisas sobre o discurso por se
tratar de um conceito produtivo para a teoria.
Em razão de sua operacionalidade para o tratamento de diferentes temas no
amplo domínio da Análise de Discurso, são necessários outros apontamentos sobre a
noção de formação discursiva. Consideramos a reinterpretação do conceito por Courtine
(2014 [1981], 2016 [1982]) que, buscando elementos definidores de formação
discursiva em Michel Foucault, contribuiu para a superação de obstáculos relacionados
à noção de FD com os quais os analistas de discurso se confrontaram.
Courtine (2016 [1982]) sinaliza que há um erro na interpretação de formação
discursiva como um bloco de imobilidade, uma área de repetição fechada. Adverte que
uma FD não é um único discurso para todos, nem para cada um o seu discurso,
concepção de FD que a colocava como regiões fechadas e estabilizadas48
. Partindo da
premissa de que a contradição é o seu princípio constitutivo, ele irá pensá-la como dois
(ou vários) discursos em um só.
Consideramos assim uma FD como uma unidade dividida, uma
heterogeneidade em relação a si mesma: o encerramento de uma FD é
fundamentalmente instável, ele não consiste em um limite traçado
separando de uma vez por todas um interior e um exterior do seu
saber, mas se inscreve entre diversas FD como uma fronteira que se
desloca em função das questões da luta ideológica. (COURTINE,
2016 [1982]) [Grifos do autor].
47
Para maiores detalhes, confira Pêcheux (2009 [1975], p. 146-149). 48
Confira Orlandi (2014 [1993]), que atribui a má compreensão sobre o conceito de FD não a Michel
Pêcheux, mas aos seus discípulos.
51
O conceito de formação discursiva recebe, dentro dessa perspectiva, um
importante desdobramento realizado por Courtine (2014 [1981], 2016 [1982]). Ao
retomar de Pêcheux (2009 [1975]) o pressuposto de que o interdiscurso corresponde ao
“todo complexo com dominante das formações discursivas” e o de que o interdiscurso
está submetido à lei de desigualdade-contradição-subordinação, ele vê o interdiscurso
como a “articulação contraditória de uma formação discursiva e de formações
ideológicas” e propõe que “é no interdiscurso de uma FD que se constitui o domínio do
saber próprio desta FD” (COURTINE, 2016 [1982], p. 22). Segundo ele, primeiro há a
contradição que constitui uma FD; o domínio do saber e seus elementos são formados
em seguida. O domínio do saber realiza, assim, o fechamento – instável – de uma
formação discursiva.
O fechamento de uma FD é interpretado por Courtine como instável, porque ele
compreende o interdiscurso como um processo de reconfiguração incessante devido às
posições ideológicas que dada FD representa em conjuntura sócio-histórica dada. O
interdiscurso é, assim, a instância que governa o deslocamento das fronteiras de uma
formação discursiva. Desse modo, uma FD não é um bloco fechado, homogêneo,
estável; é mais um espaço em que podem ser incorporados elementos produzidos em
outro domínio do saber.
A introdução do conceito de interdiscurso como memória do dizer ou memória
discursiva – aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente – desempenhou
papel importante na AD. Quando observamos o interdiscurso, podemos “remeter o
dizer” posto em análise “a uma filiação de dizeres, a uma memória” e, ainda, podemos
identificar esse dizer “em sua historicidade, em sua significância, mostrando seus
compromissos políticos e ideológicos” (ORLANDI, 2013, p. 32, lendo Courtine).
Para Courtine (2016 [1982]), uma FD comporta dois níveis de descrição: o do
enunciado e o da formulação. Ele chama de enunciado, representado por um [E], o
conjunto de elementos do domínio do saber inerente a uma FD, isto é, um “esquema
geral” que rege a repetibilidade no interior de uma rede de formulações. É a dimensão
vertical (interdiscursiva) do enunciado. Por outro lado, denomina formulação, processo
que ele representa com um [e], a sequência linguística que corresponde a uma
formulação possível de um enunciado [E] no domínio da rede de formulações. É a
dimensão horizontal (intradiscursiva) do enunciado.
Elaboramos o esquema abaixo para ilustrar a perspectiva assumida por Courtine.
No nível vertical, interdiscursivo, temos os elementos do saber – o enunciado [E] – um
52
conjunto estratificado e desnivelado de formulações que constituem uma rede na qual se
estabiliza a referência de tais elementos, forma-se um objeto de discurso, algo pré-
construído, que fala antes e independentemente e constitui a memória do dizer. No nível
horizontal, intradiscursivo, temos a formulação [e], quando um sujeito enunciador,
ocupando uma posição determinada no interior da FD, em uma situação de enunciação,
apropria-se de dado elemento do saber [E], da memória discursiva, e o sequencializa,
lineariza, fazendo sua formulação.
Portanto, foi em função dos trabalhos de Courtine (2014 [1981], 2016 [1982])
que o conceito de FD se deslocou de uma compreensão que a colocava como uma
região fechada e estabilizada para campos de significação cujas fronteiras são móveis,
de modo que as FDs estejam em constante reconfiguração. O saber discursivo inerente a
uma FD se desloca no transcurso do tempo de modo que em dado domínio do saber vão
se produzindo diferentes dizeres. Compreendemos o trajeto produzido pelo
deslocamento dos sentidos no seio de um domínio do saber como aquilo que a AD
chama de historicidade. No texto Papel da Memória, Michel Pêcheux termina por
conceber a memória discursiva da seguinte maneira:
(...) uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena,
cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria
um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é
necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de
deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um
Interdiscurso de uma FD X
Costura uma FD, delimitando suas fronteiras (com outras FD), fronteiras estas
que podem ser deslocadas em razão de sua
incessante reconfiguração.
É levado a incorporar os elementos pré-construídos produzidos no seu exterior (já
que o interdiscurso é um processo de
reconfiguração incessante).
Determina o que pode e deve ser dito.
Domínio do
Saber
(elementos do saber)
e
E
53
espaço de desdobramentos, réplicas; polêmicas e contra-discursos.
(ACHARD et al., 1999, p. 56).
Com base no que foi exposto sobre os trabalhos de Courtine, é necessário
sistematizar duas noções basilares da AD: interdiscurso e intradiscurso. O interdiscurso
– a memória discursiva – sustenta o dizer em uma estratificação de formulações já
feitas, mas esquecidas, que vão construindo uma história de sentidos. É sobre essa
memória, de que não detemos controle, que nossos sentidos se constroem, dando-nos a
impressão de sabermos do que estamos falando (aí se forma a ilusão de que somos a
origem do que dizemos; esse apagamento é necessário para que o sujeito estabeleça um
lugar possível no movimento da identidade e dos sentidos, constituindo outras
possibilidades dos sujeitos se subjetivarem).
Como leciona Orlandi (2013, p. 31), o interdiscurso é “o saber discursivo que
torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está
na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra. O interdiscurso disponibiliza
dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada”.
O interdiscurso, a memória do dizer, determina o intradiscurso, a formulação de
um enunciado por um sujeito ocupando dada posição no seio da formação discursiva em
que está inscrito. O intradiscurso reativa a memória do dizer em dado acontecimento
discursivo. Por essa razão, em AD, relaciona-se às noções de interdiscurso e
intradiscurso o conceito de acontecimento discursivo que, segundo Pêcheux (2012
[1983], p. 17) é “o ponto de encontro entre uma atualidade e uma memória”.
Voltando ao que expúnhamos sobre o discurso como efeito de sentido entre
interlocutores, podemos afirmar que sua relação com as noções de formação discursiva
e formação ideológica atravessou a Análise de Discurso durante os anos de 1970.
Depois dos anos 80, entretanto, com o declínio da concepção de FD, o discurso passou a
ser posto numa relação com o conceito de deriva.
A materialidade do discurso é a língua. Uma vez compreendida como “sistema
sintático intrinsecamente passível de jogo que comporta a inscrição dos efeitos
linguísticos materiais na história para produzir sentidos”49
, a língua deve ser vista como
uma forma material sujeita ao equívoco, ao deslize, à falha. Pêcheux (2012 [1983]) nos
ensina que o equívoco, a falta, a falha são constitutivos da língua.
49
Confira Ferreira (2003, p. 197).
54
Baronas (2005) afirma que, em 1983, com a obra O discurso: estrutura ou
acontecimento, Pêcheux faz o noção de efeito de sentido desembocar na perspectiva da
deriva.
Todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro,
diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de sentido para
derivar para um outro (a não ser que a proibição da interpretação
própria ao logicamente estável se exerça sobre ele explicitamente).
Todo enunciado, toda sequência de enunciados é, pois,
linguisticamente descritível como uma série (léxico-sintaticamente
determinada) de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar a
interpretação. (PÊCHEUX, 2012 [1983], p. 53)
Sendo o equívoco inerente ao sistema linguístico, a língua fica sujeita a falhas e,
por elas, os sentidos deslizam, ficam à deriva. À Análise de Discurso cabe interpretar e
descrever o modo como os efeitos de sentido são produzidos nos possíveis pontos de
deriva, na série de deslocamentos produzidos de um enunciado a outro. Os pontos de
deriva passam a constituir, assim, o lugar sobre o qual deve recair o olhar do analista
para observar os efeitos de sentido.
2.2 Língua (em relação a discurso) em Análise de Discurso
Uma vez apresentada a noção de discurso, cumpre destacar sua relação com
outras instâncias consideradas na AD: a instância da língua e a da ideologia. Isso se faz
necessário, porque um dos postulados da AD diz respeito ao jogo de materialidades que
cada uma dessas instâncias desempenha em relação à outra. Repete-se em, AD, que a
língua é a materialidade do discurso; e o discurso, a materialidade da ideologia.
Aquilo que se deve entender por língua é uma das questões sobre as quais se
debruçam os analistas do discurso. Com base em Mazière (2007, p. 17-19), podemos
traçar dois diferentes contornos para o conceito de língua, desde Saussure até o
momento em que a AD começa a se constituir: língua como estrutura, sistema, e língua
como instrumento de comunicação, isto é, como a entidade empírica usada pelos
sujeitos falantes no exercício da comunicação.
Em ambas as concepções, não há qualquer consideração de língua no tocante ao
seu funcionamento. Como vimos no capítulo precedente, a entrada de Pêcheux na
linguística foi decisiva para a formulação de uma nova visão sobre língua a partir do
deslocamento da noção de função para funcionamento. Como consequência dessa visão,
55
a língua na AD não pode ser pensada da mesma forma como o é na Linguística, como
sistema abstrato; a língua na AD possui um funcionamento autônomo, funcionamento
este que, na perspectiva de análise criada por Pêcheux, dependerá da relação da língua
com a ideologia, com a história, que “se inscreve na língua para que ela funcione, isto é,
produza sentido” (ORLANDI , 2014 [1993], p. 11). Língua, para o analista de discurso,
não é um sistema abstrato fechado nele mesmo; é uma das maneiras que o homem, ser
histórico e social, adotou para significar o mundo e se significar no mundo. E para isso
o homem necessariamente inscreve a língua na história.
A partir do deslocamento teórico de função para funcionamento realizado por
Michel Pêcheux, Orlandi (1983, p. 115) elaborou o conceito de funcionamento
discursivo, compreendendo-o como “a atividade estruturante de um discurso
determinado, por um falante determinado, para um interlocutor determinado, com
finalidades específicas”. Por meio dessa atividade estruturante, segundo a autora,
podemos reconhecer as marcas formais que remetem a certa formação discursiva, em
outras palavras, a partir do funcionamento discursivo, podemos analisar em um discurso
dado como os interlocutores se representam e suas relações com as formações
ideológicas (ORLANDI, 1983). As marcas formais da língua estão, portanto, revestidas
com esse funcionamento e por meio delas o analista tem como acessar a relação da
língua com a ideologia.
Outra contribuição importante de Eni Orlandi nesse sentido foi a introdução do
conceito de forma material. No capítulo anterior, revimos que a concepção saussuriana
de linguagem permitiu o desenvolvimento de diferentes abordagens na Linguística
Estrutural, entre elas a abordagem formalista, que se centra na forma, deixando a
função em segundo plano. A partir do conceito de forma, de Hjelmslev (1975), e
influenciada pela perspectiva da Análise de Discurso desenvolvida a partir dos anos de
1980, em especial depois do Colóquio “Materialidades Discursivas”, Orlandi (2012a, p.
40) concebeu a noção de forma material como o “acontecimento do significante
(estrutura) no sujeito, no mundo”. A forma material permite pensar a relação entre
estrutura e acontecimento (ORLANDI, 2005). É nesse sentido que se afirma, em AD,
que a materialidade da ideologia é o discurso, e a materialidade do discurso é a língua.
Assim, por meio do discurso podemos observar as relações entre língua e ideologia.
Com a publicação de O discurso: estrutura ou acontecimento, de Michel
Pêcheux, a língua da AD passa a ser “tomada em sua forma material enquanto ordem
significante capaz de equívoco, de deslize, de falha, ou seja, enquanto sistema sintático
56
intrinsecamente passível de jogo que comporta a inscrição dos efeitos linguísticos
materiais na história para produzir sentidos” (FERREIRA, 2003, p. 197). A investigação
em AD que toma a forma material como unidade sujeita ao equívoco permite ao analista
trazer para sua análise o trabalho com a paráfrase e a polissemia, dois procedimentos de
análise que nos levam ao reconhecimento dos deslizamentos de sentido.
Antes de passarmos para o próximo item, há posicionamentos assumidos em AD
sobre a noção de língua que julgamos importante destacar. Trata-se da concepção
discursiva de língua de vento e língua de madeira, segundo Gadet & Pêcheux (2004
[1981]) e Courtine (1999 [1981]), de língua fluida e língua imaginária, de acordo com
Orlandi & Souza (1988), e da concepção de língua numa perspectiva enunciativa,
conforme Guimarães (2003).
De acordo com Gadet & Pêcheux (2004 [1981]), a língua de madeira é dura,
hermética, reflexo de um sistema fechado, prescritivo e normativo, típico do Direito e
da Política. A língua de vento é uma língua fluida, flexível e acessível aos falantes em
suas trocas simbólicas cotidianas. É em Courtine (1999 [1981]) que encontramos uma
das formulações mais expressivas acerca dessas formas de existência da linguagem.
Para ele, línguas de madeira são como “línguas vindas do frio”, “língua paralisada,
como que imobilizada pelo frio”, “língua de pano, rude, áspera, desigual”, “línguas de
peso, talhadas na massa (nas massas?), fundidas em um bloco, línguas de mármore,
línguas de ferro” (COURTINE, 1999 [1981], p. 16). Por outro lado, são línguas de
vento as línguas instáveis e fluidas.
Orlandi & Souza (1988) trazem um desenvolvimento das noções de língua
expostas acima, defendendo que a língua fluida – que está para a concepção de língua
de vento – e a língua imaginária – que está para língua de madeira – são diferentes
modos de existência da linguagem. A primeira “é a que pode ser observada e
reconhecida quando focalizamos os processos discursivos, através da história da
constituição de formas e sentidos, tomando os textos como unidades (significativas) de
análise, no contexto de sua produção” (ORLANDI & SOUZA, p. 34). A segunda
corresponde às “línguas-sistemas, normas, coerções, as línguas-instituição, a-históricas”
(ORLANDI & SOUZA, p. 28). A língua fluida manifesta-se nas relações do nosso
cotidiano e, já que “não pode ser contida no arcabouço dos sistemas e fórmulas”,
permite o contínuo movimento, o deslocamento de suas formas e sentidos. A língua
imaginária, caracterizada pela sistematização, pelas contenções institucionais, freia a
fluidez, o movimento, reproduzindo um sistema estático.
57
Guimarães (2003), considerando os diferentes espaços de enunciação, concebe
quatro categorias teóricas para se referir aos modos como as línguas estão distribuídas
para seus falantes, o que nos parece uma divisão social da língua em função dos grupos
que a utilizam e como a utilizam. Para ele, existe a língua materna, usada pelos falantes
pelo simples fato de ser praticada pela sociedade em que nasceram; há a língua franca,
adotada por grupos falantes de línguas maternas distintas visando ao intercurso comum;
temos, ainda, a língua nacional, entendida como língua que caracteriza um povo
específico; e, finalmente, a língua oficial, adotada pelo Estado em seus atos legais.
Guimarães (2003, p. 48) ressalta que “as duas primeiras categorias tratam das relações
cotidianas entre falantes e as duas seguintes de suas relações imaginárias (ideológicas) e
institucionais”. Desse modo, para o autor, a língua materna e a língua franca estão para
a noção de língua fluida (de vento); a língua nacional e a língua oficial estão para a
língua imaginária (de madeira). Buscamos visualizar essas relações pelo quadro que
propomos a seguir:
2. Texto e Discurso
2.3 Texto e Discurso
Quadro 2 – Concepções de língua em Análise do Discurso
2.3 Texto e Discurso
A questão do texto – e mais especificamente do sentido do texto – constitui um
dos pontos centrais da Análise de Discurso e foi pensada desde a AAD69. Logo no
início da primeira parte de sua tese, ao tratar da Análise de Conteúdo e da Teoria do
Discurso, Pêcheux (2014 [1969]) levanta os pontos críticos dos métodos não
Língua de vento
Língua de madeira
Gadet & Pêcheux (2004 [1981]) e Courtine (1999 [1981])
Língua fluida
Língua imaginária
Orlandi & Souza (1988)
Língua materna
Língua franca
Língua nacional
Língua oficial
Guimarães (2003)
58
linguísticos de análise: (i) aqueles que se valem da dedução frequencial e (ii) os que se
fundamentam na noção de categorias temáticas. Entre os primeiros, os métodos de
análise não visam ao funcionamento da língua, mas apenas à existência de materiais
linguísticos, de forma que acabam por não responder às questões referentes ao sentido
do texto. No segundo grupo, no qual a Análise de Conteúdo ocupa lugar central, embora
haja preocupação com a questão do sentido do texto, tal sentido é visto como algo que
pode ser acessado a partir da estrutura linguística do texto, como se o sentido estivesse
vinculado às unidades da língua tomadas em sua construção (efeito da concepção de
transparência da linguagem).
Ao propor orientações para a formulação de uma Teoria do Discurso, Pêcheux
(2014 [1969], p. 72), pensando a questão do sentido, parte do princípio de que é
necessário haver, em relação aos métodos anteriores, “uma „mudança de terreno‟ que
faça intervir conceitos exteriores à região da linguística atual”; em outras palavras, era
necessário deslocar a noção de texto levando em consideração o seu funcionamento
(ORLANDI, 2012a). Sua proposta é ligar ao linguístico o social e o histórico e, para
isso, lança a noção de processo de produção para designar “o conjunto de mecanismos
formais que produzem um discurso de tipo dado em „circunstâncias‟ dadas”
(PECHEUX, 2014 [1969], p. 73). As “circunstâncias dadas” são chamadas por ele de
condições de produção, que fazem intervir, na análise do sentido, o papel
desempenhado pelo contexto/situação.
Segundo Orlandi (2014) a noção de condições de produção (CP, a partir de
agora) não diz respeito à situação empírica em que o discurso é produzido, mas à
representação dessa situação no imaginário histórico-social. Uma das orientações
pontuais sobre as CP vem de Orlandi (2013) que as considera em sentido estrito e em
sentido amplo. Em sentido estrito, as CP correspondem às circunstâncias da enunciação
(o contexto imediato, aquilo que responde, por exemplo, às perguntas O quê? Quem?
Quando? Onde?); em sentido amplo, elas incluem o contexto sócio-histórico,
ideológico (aquilo que traz para a análise considerações sobre o modelo de formação
social, a organização política do Estado, os acontecimentos históricos etc.). Portanto,
para o interior da noção de CP convergem aspectos sociais, históricos e ideológicos.
Além disso, Orlandi (2013, p. 30) frisa que, além das CP, a memória “também faz parte
da produção do discurso”, pelo importante papel que desempenha na constituição e
formulação dos sentidos. É por meio da memória que os sujeitos “acionam” os
acontecimentos históricos que sustentam as significações.
59
Entramos brevemente no conceito condições de produção, porque ela é crucial
para a compreensão de texto em AD e sua relação com o discurso. Guespin (1976, p. 4
apud INDURSKY, 2006, p. 27) leciona que “um olhar lançado sobre um texto, do ponto
de vista de sua estruturação em „língua‟ faz dele um enunciado; um estudo linguístico
das condições de produção deste texto o transforma em um discurso”. Indursky (2006)
enfatiza que essa perspectiva nos leva à visão de texto como unidade de análise afetada
pelas condições de produção, as quais relacionam o texto a sujeitos históricos, inscritos
em uma FD (e, por isso, dotados de uma memória discursiva) filiada a uma FI. Assim,
antes de proceder à análise do texto, é indispensável oferecer informações sobre suas
condições de produção.
A maneira como as noções de texto e discurso vêm inter-relacionadas em
Análise de Discurso é descrita por Orlandi (2012a, 2012b, 2013). Segundo o que
apresentamos no item anterior, o discurso, como efeito de sentidos entre interlocutores,
é um objeto histórico-social por meio do qual a AD põe em cena o confronto entre o
simbólico – a linguagem – e o político. Assim, para a AD, o discurso funciona como
objeto teórico. O texto, uma vez compreendido, “pragmaticamente, como unidade
complexa de significação, consideradas as condições de produção” (ORLANDI, 2012b,
p. 28), torna-se a unidade de estudo, o objeto empírico tomado à análise. O texto nos
permite ter acesso ao discurso. Orlandi (2012a, p. 78) esclarece que:
(...) na maneira como considero o texto, não se trata do texto como
obra literária, não se trata do texto como pretexto para estudar a
língua, ou para estudar as línguas, trata-se do texto como forma
material, como textualidade, manifestação material concreta do
discurso, sendo este tomado como lugar de observação dos efeitos da
inscrição da língua sujeita ao equívoco na história. Trata-se do texto
como unidade de análise (científica) do discurso. E é essa sua
qualidade teórica, o de ser unidade de análise.
Como já dissemos, a materialidade da ideologia é o discurso, e a materialidade
do discurso é a língua. Assim, por meio do discurso podemos observar as relações entre
língua e ideologia. O texto (repetimos: objeto empírico de análise) é posto por Orlandi
(2012a) como o lugar material em que essa relação entre língua e ideologia produz seus
efeitos. Para visualizar melhor a posição do texto nesse emaranhado de materialidades,
elaboramos o esquema abaixo:
60
É importante destacar um traço do discurso que não foi mencionado até agora
para relacioná-lo à noção de texto em AD: a incompletude do discurso. Orlandi (2013,
p. 52) afirma que a incompletude é “a condição da linguagem” uma vez que “nem os
sujeitos nem os sentidos estão completos, já feitos, constituídos definitivamente”. Esse
princípio caracteriza, de fato, todo o dispositivo teórico da AD, pois os conceitos
operatórios com que nela se trabalha são vistos sob a ótica da incompletude: linguagem,
sujeito, sentido, discurso – e, assim também, texto –, só para citar alguns, estão sempre
incompletos. Não é possível atribuir a esses elementos da Teoria do Discurso um início
e o fim determinado. Sujeitos ao equívoco, à falha, ao jogo, eles estão abertos ao
contínuo movimento na história.
Portanto, o texto, afirma Orlandi (2012a, p. 87), “não pode ser visto como uma
unidade fechada, pois tem relações com outros textos (existentes, possíveis ou
imaginários), com suas condições de produção (os sujeitos e a situação) e com o que
chamamos exterioridade constitutiva, ou seja, o interdiscurso”. O texto está assim
aberto à atribuição de diferentes sentidos que vão depender dos gestos de interpretação
realizados por quem o formula e por quem o lê. Os efeitos de sentido produzidos entre
os interlocutores poderão ser sempre outros.
O retorno a Orlandi (2012a) mais uma vez se faz necessário, em razão da
posição privilegiada em que ela coloca o texto para o analista de discurso em sua tarefa
de interpretação:
O texto é lugar de jogo de sentidos, de trabalho da linguagem, de
funcionamento da discursividade. Sendo assim, ele é trabalho de
interpretação. É tarefa do analista compreender tanto como os
sentidos estão nele quanto como ele pode ser lido. Essa dimensão
ambígua da historicidade do texto mostra que o analista não toma o
texto como ponto de partida absoluto nem como ponto de chegada.
Língua Discurso
(objeto teórico) Ideologia Materialidade do Materialidade da
Texto (objeto empírico)
61
Ele o considera como lugar em que se podem observar os gestos de
interpretação dos sujeitos. (ORLANDI, 2012a, p, 89).
Consideramos, então, o texto como uma unidade de análise não-acabada, aberta
à exterioridade – assim como o discurso –, embora seja construída imaginariamente
com início, meio e fim. Essa organização do texto que prevê um início e um fim é
imaginária, pois, como dissemos acima, os sentidos produzidos no texto não
apresentam, discursivamente, um início e um fim determinados. Na construção de um
texto há um trabalho realizado por um sujeito que, assumindo a função-autor50
,
textualiza diferentes enunciados trazidos do interdiscurso da formação discursiva em
que está inscrito (ou, mais propriamente, das diferentes formações discursivas que
podem atravessar aquele texto).
A esse propósito, é importante destacar o princípio segundo o qual a constituição
de um texto é heterogênea, pois o sujeito ocupa diversas posições no texto. Orlandi
(2012b, p. 70-71) afirma que “o texto é atravessado por várias posições do sujeito”, as
quais “correspondem a diversas formações discursivas”, uma vez que no texto
convergem enunciados de diferentes discursos, derivados de diferentes FD.
É com base nesses argumentos que Orlandi (2012a) defende a existência da
heterogeneidade detectável no texto ou heterogeneidade textual, como sendo aquela que
observamos por meio das diferentes formações discursivas que atravessam o texto. Para
Orlandi (1995), o texto é heterogêneo em função dos diferentes materiais simbólicos por
meio dos quais é produzido (imagem, grafia, som, etc.), em razão da natureza da
linguagem empregada em sua construção (oral, escrita, científica, literária, etc.) e
quanto à posição do sujeito no texto. Assim, afirma a autora, “um texto não corresponde
a uma só FD, dada a heterogeneidade que o constitui, lembrando que toda FD é
heterogênea em relação a si mesma” (ORLANDI, 1995, p. 115).
2.4 Sujeito e forma-sujeito
2.4.1 A noção de sujeito para a AD
A concepção de sujeito em Análise de Discurso apresenta suas especificidades.
Ela foi construída a partir de dois pilares: a leitura que Louis Althusser realizou sobre o
50
Preferimos tocar especificamente na função-autor quando tratarmos sobre o sujeito e suas formas de
representação a depender das funções enunciativo-discursivas por ele desempenhadas.
62
termo ideologia com base nos clássicos do marxismo e a formalização da noção de
sujeito por Jacques Lacan em sua teoria psicanalítica. Do primeiro, a principal retenção
em AD é a tese da interpelação ideológica que Althusser (1980 [1970]) formulou em
Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado; do segundo, importa para a AD a leitura
que Lacan realizou sobre o sujeito à luz do simbólico, marcado pela linguagem,
interpretando-o como uma unidade dividida, descentrada.
Como dissemos no capítulo anterior, a tese da interpelação se resume no título
que abre um dos capítulos da obra de Althusser (1980 [1970], p. 93): “A ideologia
interpela os indivíduos como sujeitos”. Essa tese, fundamental para a constituição da
teoria do discurso de Pêcheux, se desenvolve no seguinte sentido:
Como todas as evidências, aí compreendidas as que fazem com que
uma palavra „designe uma coisa‟ ou „possua uma significação‟ (logo
aí compreendidas as evidências da „transparência‟ da linguagem),
esta evidência de que eu e você somos sujeitos – e que isto não cause
problemas – é um efeito ideológico elementar, o efeito ideológico
elementar. (ALTHUSSER, 1980 [1970], p. 95)
Louis Althusser introduz a compreensão de que todas as evidências são efeitos
ideológicos. Ele destaca, na passagem acima, duas que são importantes para a produção
da Teoria do Discurso. A primeira delas é a evidência do sentido, entendida como o
efeito ideológico que faz a linguagem ser vista como transparente, como se o sentido
estivesse sempre lá, quando, segundo a perspectiva da teoria do discurso, o sentido está
no interior das FD filiadas a dada FI. Tal evidência não nos deixa, assim, perceber o
caráter material do sentido, a historicidade de sua construção no seio das FD. A segunda
é a evidência do sujeito, um efeito ideológico que cria no sujeito a ilusão de que ele é
sempre sujeito, quando, de acordo com a teoria, ele só se torna sujeito ao ser interpelado
pela ideologia; para o Althusser, esse é o efeito ideológico elementar. Essa evidência,
portanto, “apaga o fato de que o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia”
(ORLANDI, 2013, p. 47)51
.
A interpelação transforma o indivíduo – o “não-sujeito”, segundo Pêcheux (2009
[1975], p. 141), em sujeito por meio da ideologia. Como vimos antes, o sentido das
sequências linguísticas não está nelas mesmas, mas nas FD – inscritas em dada FI – em
51
Não pretendemos fazer com que essas considerações levem o leitor a crer que a ideologia tem a função
de ocultar dadas condições. É importante retomar, nesse sentido, Orlandi (2013, p. 47): “(...) a ideologia
não é ocultação mas função da relação necessária entre linguagem e mundo”.
63
que tais sequências são (re)produzidas pelo sujeito, ao assumir uma posição dada numa
conjuntura sócio-histórica dada. Nessa perspectiva, para que haja sentido é necessário
que a língua se inscreva na história.
Logo, todo indivíduo, na produção do discurso, é interpelado pela ideologia para
se tornar sujeito do que diz. A interpelação ideológica produz, assim, o assujeitamento,
condição necessária para o indivíduo se tornar sujeito. Para a Análise de Discurso
importa o pressuposto de que a ideologia “é a condição para a constituição do sujeito e
dos sentidos” (ORLANDI, 2013, p. 47), pois se parte do princípio de que não há
discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia.
A tese da interpelação constitui ponto central no trabalho de Pêcheux (2009
[1975], p. 140), para quem: “Todo nosso trabalho encontra aqui sua determinação pela
qual a questão da constituição do sentido se junta à constituição do sujeito, e não de
modo marginal (...), mas no interior da „tese central‟, na figura da interpelação” [grifos
do autor].
Devemos nos lembrar de que Pêcheux (2014 [1969], p. 81) já introduz a noção
de que os interlocutores não correspondem bem à “presença física de organismos
humanos individuais”, mas a “lugares determinados na estrutura de uma formação
social”. Somando a essa noção os pressupostos do Materialismo Histórico, formou-se na
AD a concepção de sujeito como “posição” entre outras, o lugar que o indivíduo ocupa
na formação social para ser sujeito do que diz. Por conseguinte, fala-se em posição-
sujeito numa referência a esse lugar social ocupado pelo sujeito.
O sujeito com que a AD trabalha não é, entretanto, afetado apenas por um
campo exterior – pela ideologia –, mas também por algo que lhe é interior – pelo
inconsciente. Por isso, uma das máximas da AD será a de que o sujeito é atravessado
pela ideologia e pelo inconsciente.
Será sobre a Teoria Psicanalítica formada sobre o binômio Freud-Lacan (mais
especificamente sobre os desenvolvimentos feitos por Lacan a partir dos pressupostos
teóricos estabelecidos por Freud) que a AD irá buscar a sustentação para conceber a
noção de sujeito. Segundo Magalhães & Mariani (2010, p. 394):
Do ponto de vista da psicanálise lacaniana, que trazemos aqui para o
campo do discursivo, importa compreender mais de perto o
funcionamento do sistema dos significantes, um funcionamento
marcado por uma negatividade e por uma descontinuidade: há uma
distância entre um significante e outro, e nessa distância marca-se um
vazio. Nossa entrada na linguagem é afetada por esse modo de
64
funcionamento, que inclui a descontinuidade significante. Quando
tomamos a palavra e falamos, nós o fazemos marcados pelo
funcionamento dessa descontinuidade que inclui o vazio (o espaço
entre os significantes) e traz a marca da distância entre a linguagem e
o mundo. É por isso que, de acordo com Lacan, o sujeito falante, o
parlêtre (LACAN, 1985, p. 188) é um sujeito dividido pelo
funcionamento da linguagem, pois é "atingido por essa
descontinuidade, barrado e em via de se barrar; é o que vai marcá-lo
com um inconsciente".
É sobre a noção de sujeito como unidade dividida, descentrada, clivada,
heterogênea, que se apoia a AD. Tal noção é uma das consequências da distinção
estabelecida entre o Outro (l’Autre) e o outro (l’autre). Lacan (1995, p. 297) afirma que
“há dois outros que se devem distinguir, pelo menos dois – um outro com O maiúsculo
e um outro com o minúsculo, que é o eu. O Outro, é dele que se trata na função da fala”.
A forma autre origina-se do latim alter, base da qual se forma a palavra alteridade. De
forma resumida, podemos dizer que o outro corresponde a uma alteridade que nos é
próxima, nosso semelhante, com quem nos relacionamos; é da ordem do imaginário. O
Outro corresponde a uma alteridade levada ao extremo; não se trata de um indivíduo
com sua constituição física, mas um lugar que se situa na linguagem, sendo, portanto,
da ordem do simbólico. Em AD, o Outro corresponde ao interdiscurso, memória
discursiva52
.
Todo falante está afetado pelo Outro. Quando o sujeito entra na linguagem, ele
se submete a uma estrutura de linguagem e a sentidos já constituídos. Os significantes
de que nos apropriamos ao falar e consideramos como “nossos” são constituídos e
afetados pelo Outro (Magalhães & Mariani, 2010).
A filosofia idealista da linguagem vê o sujeito como a fonte do que diz e dos
sentidos. Com base no que foi exposto acima, a Análise de Discurso, atravessada pela
teoria da subjetividade de natureza psicanalítica, enxergou o sujeito como unidade
heterogênea, descentrada, cindida, clivada, uma vez que é afetado pelo Outro: no seu
dizer há um feixe de distintas vozes já produzidas pela/na linguagem, pelo/no
simbólico, e apagadas, esquecidas.
Pêcheux & Fuchs (2014 [1975]) diferenciam duas formas de esquecimento no
discurso:
52
Ver Orlandi (2012a, p. 111).
65
(a) o esquecimento número 1, da instância do inconsciente e da ideologia, é também
chamado de esquecimento ideológico, uma vez que “resulta do modo pelo qual somos
afetados pela ideologia” (ORLANDI, 2013, p. 35). Esse esquecimento cria a ilusão de
sermos a origem, a fonte do que dizemos quando, na realidade, retomamos sentidos pré-
existentes, inscritos no Outro.
(b) o esquecimento número 2, da instância da enunciação (daí ser chamado também de
esquecimento enunciativo), resulta do fato de que o sujeito, ao fazer a formulação de um
enunciado, opta por uma sequência linguística e não outra, isto é, privilegia uma forma
e apaga as demais, de modo que todas as possibilidades de enunciação formam uma
família parafrástica que mostra que o dizer sempre pode ser outro (ORLANDI, 2013).
Esse esquecimento cria a ilusão referencial – ilusão da realidade do pensamento – que
faz o sujeito crer que o que diz dá margem a apenas uma significação.
Antes de encerrar este item, é importante retornar à questão do assujeitamento
produzido pela interpelação ideológica para destacar um desenvolvimento teórico
operado por Orlandi (2012a). Para ela, há dois movimentos na compreensão da
subjetividade, quais sejam:
1º Movimento: interpelação do indivíduo (considerado em sua dimensão bio-
psicológica) em sujeito pela ideologia – essa é a forma de assujeitamento pela qual o
indivíduo afetado pelo simbólico na história se subjetiva, isto é, torna-se sujeito. O
resultado dessa interpelação é uma forma-sujeito histórica.
2º Movimento: individualização do sujeito pelo Estado – essa é a forma de
individualização pela qual a forma-sujeito histórica é individualizada pelo Estado por
meio de suas instituições. O resultado é, agora, um indivíduo (considerado em sua
dimensão social) construído pelo Estado, inscrito (o indivíduo) em dada formação social
capitalista; no nosso caso, capitalista.
Portanto, para compreender como a subjetividade se manifesta na
discursividade, é necessário percorrer este duplo movimento: o indivíduo é interpelado
em sujeito pela ideologia em um processo simbólico; em uma formação social como a
nossa, capitalista, esse indivíduo – materialidade da forma-sujeito histórica – é
66
determinado pelo modo como o Estado lhe dá sua forma individual(izada), qual seja, a
forma de um indivíduo livre de coerções e submisso, forma pela qual deve responder,
como sujeito-jurídico (sujeito de direitos e deveres), diante do Estado e dos outros
homens (ORLANDI, 2012a).
2.4.2 A forma-sujeito
O termo forma-sujeito foi trazido por Michel Pêcheux para a Análise de
Discurso a partir de Althusser (1972 apud PÊCHEUX, 2009 [1975], p. 150) que
afirmava que “todo indivíduo humano, isto é, social, só pode ser agente de uma prática
se se revestir da forma de sujeito. A „forma-sujeito‟, de fato, é a forma de existência
histórica de qualquer indivíduo, agente das práticas sociais”.
O sujeito, como vimos, é constituído pela interpelação ideológica. Esta dá ao
indivíduo uma forma específica dependendo do modelo de formação social em que ele
esteja inserido. A forma-sujeito que todo indivíduo assume é, portanto, determinada
historicamente pelo modelo de formação social, levando em consideração os modos de
produção. Haroche (1992, p. 178) coloca como um princípio geral “o fato de que a
forma-sujeito representa „a forma de existência histórica de todo indivíduo‟”, o que
justifica o fato de a forma-sujeito ter tomado diferentes formas no curso da história. Na
Idade Média, por exemplo, predominou a figura do sujeito-religioso, um sujeito
passivo, submetido às leis de Deus. Atualmente, em uma formação social capitalista,
como a nossa, o sujeito assume a forma de sujeito-jurídico ou sujeito-de-direito, um
sujeito ao mesmo tempo livre (responsável) e passivo (submisso); por um lado, essa
forma-sujeito detém autonomia e responsabilidade, por outro, subordina-se às leis do
Estado.
2.4.3 Funções enunciativo-discursivas do sujeito
Orlandi (2012b) nos ensina que o sujeito está inscrito no texto que produz. Para
a Análise de Discurso não interessa falar das marcas que comprovam essa inscrição do
sujeito, como faz a clássica teoria da enunciação de Benveniste (1976), mas das suas
diferentes funções enunciativo-discursivas assumidas na produção de um texto
específico. A autora aponta, por exemplo, as funções enunciativas cunhadas por Oswald
Ducrot, em sua obra O dizer e o dito, de 1985: o sujeito pode assumir a função de
67
locutor, pela qual ele se representa como eu no discurso, e a de enunciador, em função
perspectiva que o sujeito constrói em dada formulação.
Tomando por base o “princípio da autoria” de Michel Foucault, Orlandi (2012a,
2012b) acrescenta outra função, de caráter discursivo: a função-autor, uma contraparte
da forma-sujeito histórica. Sua proposta é colocar a função-autor logo abaixo da ordem
(hierarquia) estabelecida por Ducrot, de modo que ficássemos com as seguintes funções
enunciativo-discursivas para o sujeito: locutor, enunciador, autor. Nessa hierarquia, o
sujeito assume funções que o levam em direção ao social. A função-autor, em sua
concepção, “é aquela em que o sujeito falante está mais afetado pelo contato com social
e suas coerções” (ORLANDI, 2012a, p. 103).
Diferentemente da concepção de autoria de Foucault, Eni Orlandi entende a
função-autor como um princípio geral, uma vez que sempre será imputada uma autoria a
um texto, mesmo que não haja um autor específico. Além disso, a função-autor produz
o efeito-texto, ―um espaço discursivo organizado, simbolicamente fechado e
ilusoriamente completo” (INDURSKY, 2006, p. 28). A função-autor, no plano
discursivo, produz o efeito imaginário de unidade do texto.
Essas funções enunciativo-discursivas do sujeito se constituem na perspectiva da
emissão/formulação do discurso. Na perspectiva da recepção, Orlandi (2012b, p. 138-
139) considera três outras funções enunciativo-discursivas para o sujeito:
a) alocutário – “é o tu a quem o eu do locutor se dirige”, é a contraparte da função-
locutor.
b) destinatário – “é o outro da perspectiva do enunciador, isto é, uma perspectiva
de leitor construída pelo enunciador, é o leitor-ideal inscrito no texto, por
antecipação”. É a contraparte da função-enunciador.
c) leitor – “é aquele que se assume como tal na prática de leitura”. É a função mais
determinada pelo social, assim como a função-autor.
2.5 Arquivo
Como mencionamos no capítulo anterior, a partir da década de 1980,
principalmente em função das preocupações referentes à constituição do corpus de
análise, a questão do arquivo e sua relação com a problemática da leitura passou a
figurar no centro das atenções do analista de discurso. Os corpora de arquivo passaram
68
a ser vistos como os únicos passíveis de serem tratados pela análise de discurso,
segundo o entendimento de Pêcheux (2014 [1982]), em razão das respostas às dúvidas
que o dispositivo de arquivo oferecia aos analistas no tocante ao corpus.
Se entrecruzarmos as reflexões produzidas pelos teóricos que estão na base dos
desenvolvimentos da Análise de Discurso, iremos compreender as razões da assunção
do arquivo para a investigação. Robin (1979, p. 70 apud COURTINE, 1999, p. 9)
sinaliza que a AD, desde seu nascimento, visa atenuar “dois recalcamentos simétricos”:
o do historiador, que recalca o significante, materialidade da linguagem, e o do
linguista, que recalca o sujeito e a história (daí a proposta de articular três regiões do
conhecimento: a linguística, que traz o significante; o materialismo histórico, que faz
intervir a história e a psicanálise que traz o sujeito). É em razão disso que, segundo
Guilhaumou (2009), a noção de arquivo passa a atravessar a AD a partir dos anos de
1980, uma vez que tal noção permite articular estes dois campos do saber: história e
linguística. Soma-se a isso a preocupação, em voga na época, sobre a questão das
“materialidades discursivas”, o que contribuiu também para o arquivo adquirir sua
relevância teórico-metodológica na AD, por permitir a análise dessas materialidades e, a
partir disso, o estabelecimento do corpus discursivo tendo em vista critérios pré-
definidos no momento da leitura do arquivo. (DELA SILVA, 2015).
Mas o que é o arquivo na perspectiva da Análise de Discurso? Pêcheux (2014
[1982], p. 59) o entende, em sentido amplo, como “campo de documentos pertinentes e
disponíveis sobre uma questão”. O arquivo traz à tona “o discursivo informaticamente
marcado sob a forma dos dados textuais” (PÊCHEUX, 2014 [1982], p. 57); por isso
Pêcheux também o chama de discurso textual53
, que ele considera como “o lugar em
potencial de um confronto violentamente contraditório”, capaz de permitir a realização
de diferentes gestos de leitura por meio do confronto entre o próprio arquivo e a
memória histórica.
Cabe, aqui, a diferenciação entre estas duas instâncias de análise: arquivo
(memória de arquivo) e memória histórica. Orlandi (2014) esclarece que a memória de
arquivo é aquela que se institucionaliza, é arquivada, e, por isso, não se esquece. É a
memória que as instituições em geral arquivam – e para isso se valem de mecanismos
formais de arquivística – com o objetivo de guardar traços de sua história, de modo que
53
Na prática da Análise de Discurso, são todas estas formas de se referir ao mesmo objeto: arquivo,
memória de arquivo, discurso textual e discurso documental.
69
fique preservado o registro de acontecimentos que o homem pode retomar
posteriormente para compreender a realidade que o cerca. A memória discursiva – o
interdiscurso –, entretanto, é o saber discursivo que dá sentido às nossas palavras toda
vez que falamos, uma memória que restabelece aquilo que já foi dito (sentidos pré-
existentes) antes e em outro lugar, mas esquecido. A memória discursiva é, assim,
estruturada pelo esquecimento.
O arquivo, memória institucional, abre espaço à construção de um conhecimento
discursivo acerca dos diferentes setores e práticas sociais pelas quais os homens se
organizam para a produção de bens e serviços e sua reprodução em sociedade. A
construção desse conhecimento é feita a partir dos diferentes gestos de leitura (aqui
reside a função do analista de discurso) possíveis de se realizar sobre o arquivo em
constante confronto com a memória histórica, diferentemente do tratamento e
interpretação realizados por outros campos de investigação. É nesse sentido que Nunes
(2008, p. 82) defende que:
Ler os documentos de arquivo conduz a explicitar os gestos de
interpretação que subjazem a sua elaboração, evitando-se reproduzir
uma história já dada, fixada, e mostrando seu processo de construção.
As práticas institucionais e de arquivo realizam um trabalho de
interpretação que direciona os sentidos, estabelecendo uma
temporalidade e produzindo uma memória estabilizada.
Guilhaumou & Maldidier (2014 [1986], p. 170) fazem considerações
importantes acerca da noção de arquivo, mostrando em especial o seu funcionamento e
o que ele é capaz de engendrar em uma análise de discurso. Grifamos os trechos que nos
chamam à atenção:
O arquivo nunca é dado a priori, e em uma primeira leitura, seu
funcionamento é opaco. Todo arquivo, principalmente manuscrito, é
identificado em presença de uma data, de um nome próprio, de uma
chancela institucional etc., ou ainda pelo lugar que ele ocupa em
uma série. Essa identificação, puramente institucional, é para nós
insuficiente: ela diz pouco do funcionamento do arquivo”. (...) O
arquivo não é o reflexo passivo de uma realidade institucional, ele é,
dentro de sua materialidade e diversidade, ordenado por sua
abrangência social. O arquivo não é um simples documento no qual
se encontram referências; ele permite uma leitura que traz à tona
dispositivos e configurações significantes.
A perspectiva que se cria em AD é a de que, por meio da leitura de
arquivo, o analista não se depara simplesmente com um documento no qual se
70
encontram apenas referências institucionais (data, nome próprio, chancela etc.), mas
também com dispositivos e configurações significantes, as quais o permitem investir em
uma análise que ponha em relação língua e discursividade. Lembremo-nos de que, nessa
época, a língua é pensada como estrutura sujeita ao equívoco, ao deslize, à falha, ou
seja, como sistema sintático intrinsecamente passível de jogo; por outro lado, a
discursividade é vista como a inscrição de efeitos linguísticos materiais na história para
produzir sentidos. É nessa relação língua-discursividade que, para Pêcheux (2014
[1982]), deve ser situado o trabalho de leitura de arquivo54
.
A concepção do arquivo no seio da Análise de Discurso não trouxe apenas
contribuições teóricas, mas também permitiu o desenvolvimento de um percurso
metodológico fluido que vai desde a leitura do arquivo referente ao tema da pesquisa até
à constituição do corpus discursivo a ser tomado em análise. Em uma investigação, o
analista precisa realizar de início este importante movimento que consiste na passagem
do arquivo ao corpus.
Para a constituição do corpus discursivo, o analista se vale de uma operação
chamada de recorte, proposta por Orlandi (1984). Essa operação representa um
deslocamento metodológico em relação à técnica de segmentação, proposta por Léon &
Pêcheux (2012 [1982]). O recorte é uma unidade discursiva, um fragmento textual
relacionado à situação discursiva. Quando o analista faz um recorte de um fragmento do
corpo textual, ele não deixa de considerar a relação desse recorte com o todo textual,
isto é, com a materialidade discursiva de onde ele (o recorte) foi pinçado, e,
principalmente, com as condições de produção em que aquele texto foi elaborado.
2.6 Paráfrase e polissemia
2.6.1 “Arqueologia” da noção de paráfrase em Michel Pêcheux
Como as noções de paráfrase e polissemia ocupam lugar central em nossa
análise sobre os editais de concurso público, preocupamo-nos em esboçar para o leitor
um quadro teórico que o permita compreender esses conceitos operacionais. Não
queremos, entretanto, criar a ilusão de que daremos conta de tudo que já se falou sobre
paráfrase e polissemia em AD. Tendo em vista o modo como esses processos serão
mobilizados na análise, pinçamos, na literatura, as postulações iniciais sobre eles e suas
54
Para maiores detalhes, confira Pêcheux (2014 [1982], p. 66).
71
reconfigurações no desenvolvimento da Análise de Discurso. Neste primeiro item,
buscamos apresentar a noção de paráfrase na perspectiva de Michel Pêcheux e
pesquisadores a ele vinculados, considerando os trabalhos situados na linha do tempo
abaixo.
O mecanismo de paráfrase constitui um dos referenciais mais importantes da
Análise de Discurso e está presente no estudo da produção de sentidos desde o
surgimento do primeiro dispositivo instituído por Michel Pêcheux em AAD69. Nessa
versão inaugural da AD, Pêcheux aborda a questão da sinonímia local ou contextual,
que é “um caso particular do problema da paráfrase”55
.
Pêcheux (2014 [1969], p. 94-95) caracteriza sinonímia local ou contextual como
a “possibilidade de substituição” entre “dois termos, x e y, pertencentes a uma mesma
categoria gramatical” em função de determinados contextos. Tomemos como exemplos
os termos zangada (x) e irada (y), adjetivos que podem ser permutados em contextos
como:
A mulher está {irada} com o marido.
A mulher está {zangada} com o marido.
Os dois adjetivos, entretanto, não são substituíveis em contextos como:
Sua casa é {irada}.
*Sua casa é {zangada}.
Na primeira formulação, o adjetivo irada, ao caracterizar conotativamente o
substantivo casa, produz uma enunciação possível, o que não acontece com a palavra
55
Confira Notas à AAD-69 (PÊCHEUX, 2014 [1969], p. 157). A nota de número 18 traz esse
esclarecimento.
1969 1975 1975 1982 1982
Pêcheux
(AAD69)
Pêcheux & Fuchs
(A propósito da
AAD:
Atualização e
perspectivas)
Pêcheux
(Semântica
e Discurso)
Léon & Pêcheux
(Análise sintática
e paráfrase
discursiva)
Pêcheux et al.
(Apresentação da
AAD)
72
zangada, que não admite a mesma figuração no contexto dado, pois não produz a
mesma imagem56
.
A partir do conceito de sinonímia contextual, Pêcheux (2014 [1969], p. 96)
elabora a noção de efeito metafórico, “fenômeno semântico produzido por uma
substituição contextual, para lembrar que esse „deslizamento de sentido‟ entre x e y é
constitutivo do „sentido‟ designado por x e y”. Em outras palavras, a substituição
contextual, que implica o deslizamento de sentido entre x e y, produz o fenômeno
semântico que Pêcheux (2014 [1969]) chama de efeito metafórico. Além disso, é
importante notar que o efeito metafórico, segundo o autor, por resultar da substituição
contextual, faz variar a superfície do texto mantendo a mesma ancoragem semântica
(PÊCHEUX, 2014 [1969], p. 97).
No artigo publicado na revista Langages, no 37, Pêcheux e Fuchs (2014 [1975],
p. 167), com o intuito de compreender o processo discursivo, lançam uma noção de
paráfrase que vem a constituir um verdadeiro princípio de análise em AD. No artigo,
eles lecionam que:
(...) a produção do sentido é estritamente indissociável da relação de
paráfrase entre sequências tais (=sequências discursivas concretas)
que a família parafrástica destas sequências constitui o que se poderia
chamar a “matriz do sentido”. Isso equivale a dizer que é a partir da
relação no interior desta família que se constitui o efeito de sentido,
assim como a relação a um referente que implique este sentido.
Entendemos que Pêcheux e Fuchs (2014 [1975]), ao assumirem a paráfrase
nessa perspectiva, pretendem instituir um princípio de análise que sirva para dar
visibilidade ao processo discursivo, à maneira como o sentido é produzido entre
interlocutores. O analista, seguindo o princípio, deve levar em consideração a relação
de paráfrases entre sequências discursivas concretas que formam uma família
parafrástica, a qual constitui a matriz do sentido. Como essa noção de paráfrase vai ao
encontro dos procedimentos de análise que adotamos para tratar os efeitos de sentido
entre diferentes formulações em editais de concurso, propomos uma representação
visual para as relações de paráfrase em uma família parafrástica.
56
Pêcheux (2014 [1969], p. 95) coloca em relação as palavras brilhante e notável, que podem ser
permutadas em este matemático é notável e este matemático é brilhante – em que brilhante está em
sentido conotativo. Os mesmos termos não podem, porém, ser substituídos em a luz brilhante do farol o
cegou e *a luz notável do farol o cegou.
73
eenunciado
denunciado
cenunciado
benunciado
aenunciado
A imagem acima é a de uma família parafrástica sobre algum referente (Fpx)
que constitui uma matriz de sentidos. No interior dessa Fpx, sequências discursivas
concretas – cada enunciado – são colocadas numa relação de paráfrase. Tomando por
base os ensinamentos de Pêcheux e Fuchs (2014 [1975], p. 168), que enxergam o
processo discursivo como “as relações de paráfrase interiores ao que chamamos a matriz
do sentido inerente à formação discursiva”, temos o entendimento de que cabe ao
analista compreender os efeitos de sentido produzidos nos deslizamentos entre as
sequências arroladas no interior de uma família parafrástica.
Pêcheux (2009 [1975], p. 266), buscando fazer alguns esclarecimentos e
retificações sobre o artigo de Langages 3757
, propõe a distinção entre duas concepções
de paráfrase: por um lado, temos uma noção “puramente sintática”; por outro, uma
concepção que ele denomina de “histórico-discursiva”. A primeira pressupõe “uma
unidade não-contraditória do sistema da língua como reflexo eterno no espírito
humano”; a segunda marca “a inscrição necessária dos funcionamentos parafrásticos em
uma formação discursiva historicamente dada” (grifos do autor).
A concepção de paráfrase é amadurecida nos anos seguintes e, depois de 1980,
época da AD marcada pela reflexão sobre a heterogeneidade, pelo reconhecimento do
outro no interior do mesmo e pelo retorno ao arquivo para a construção do corpus, tal
concepção passa a desempenhar importante papel na Análise de Discurso.
Léon & Pêcheux (2012 [1982]) fornecem uma verdadeira metodologia para um
estudo que envolva a problemática da paráfrase e, por isso, deter-nos-emos um pouco
mais a esse artigo. Nele, vemos muitos pontos do texto publicado em Langages 37
sendo retomados e aprofundados; por exemplo, o termo sequência discursiva concreta é
retomado, mas como sequência discursiva autônoma (não se trata de mera mudança no
tocante à denominação, mas de reformulação de uma perspectiva que visa enfatizar a
57
Comentário do próprio Pêcheux (2009 [1975], p. 265).
Fpx
74
análise a partir da construção do corpus). Para eles, “segundo a hipótese da AAD sobre
a produção do sentido, só é possível dar visibilidade ao processo discursivo colocando
várias sequências em relação” (LÉON & PÊCHEUX, 2012 [1982], p. 167), sequências
estas obtidas pela construção do corpus de análise. Os autores apresentam três etapas
para o tratamento do corpus, quais sejam:
ETAPA 1: segmentação do corpus em SDA
Devemos segmentar o corpus em sequências discursivas autônomas (SDA). Elas
são autônomas porque, quando as selecionamos, “quebramos o fio discursivo e
permitimos que sejam tratadas pelo algoritmo como entidades independentes” (LÉON
& PÊCHEUX, 2012 [1982], p. 167). A segmentação é feita com base em critérios
sintáticos, levando em consideração as ligações interfrásticas (por meio de conectivos,
anáforas e elipses) e as marcas de enunciação (o sistema modo-aspecto-tempo e os
determinantes). Depois da fase de segmentação, ainda nessa mesma etapa, faz-se uma
divisão do corpus em certo número de SDA‟s, as quais serão tratadas pelo algoritmo de
análise como unidades máximas de comparação.
ETAPA 2: estabelecimento da fórmula da SDA
Essa etapa consiste em tomar as SDA‟s organizadas por mais de uma frase para
estabelecer a fórmula da sequência discursiva com base nas ligações interfrásticas e as
marcas de enunciação.
ETAPA 3: análise sintática da frase
Na última etapa do tratamento do corpus, procede-se à análise sintática da frase.
Tal análise toma por base a teoria de Chomsky defendida no livro Aspectos da Teoria
da Sintaxe, de 1965, para decompor a frase em proposições, isto é, em níveis P
chomskyanos58
. Léon & Pêcheux (2012 [1982], p. 168) acrescentam, contudo, alguns
“elementos que permitem compreender aquilo que já pode haver de discursivo na
análise de uma frase”.
58
O que Léon & Pêcheux (2012 [1982], p. 168) estão chamando de níveis P chomskyanos corresponde
aos níveis sintagmáticos (SN, SV, SAdv, SPrep etc.) ligados verticalmente nas árvores sintáticas.
75
Um dos elementos que ligam diretamente a discursividade à sintaxe é a paráfrase
sintática59
que, segundo os autores, permite ultrapassar “a problemática estritamente
linguística para abordar questões de ordem discursiva” (LÉON & PÊCHEUX, 2012
[1982], p. 169). No artigo, retoma-se a concepção clássica da Linguística sobre
paráfrase sintática – a de que duas sequências estão em uma relação de paráfrase quando
elas são semanticamente equivalentes, embora ocorra ou variação de suas estruturas
sintáticas e manutenção da identidade lexical ou variação lexical e manutenção da
estrutura sintática – para projetar a hipótese de que “entre duas sequências a variação
sintática introduz uma diferença de sentido” (LÉON & PÊCHEUX, idem, p. 170).
Há duas noções introduzidas nesse artigo: espelhamento e deriva. Os dois
conceitos se relacionam às variações/identidades lexicais e sintáticas produzidas entre
sequências numa relação de paráfrase. O espelhamento ocorre quando há identidade
lexical e variação sintática, variação esta que introduz uma diferença de sentido.
Entretanto, a diferença de sentido produzida é mínima e está presente em toda paráfrase
sintática. A deriva, por outro lado, ocorre quando há variação lexical e identidade
sintática. Nesse caso, Léon & Pêcheux apontam que, dependendo do nível de variação
lexical, pode haver diferença de sentido, mas eles admitem que o algoritmo de análise
previsto em AAD69 não foi capaz de indicar o grau de semelhança (ou diferença) de
sentido uma vez que este era determinado empiricamente, de forma arbitrária60
.
A problemática envolvida em torno dos pólos identidade-alteração nos conduz à
outra importante contribuição trazida por Léon e Pêcheux no artigo em análise: a
reflexão sobre o mesmo (identidade) e o outro (alteração) na produção discursiva do
sentido. Segundo eles:
Vem se tornando progressivamente claro para nós que essa produção
discursiva do sentido se encontrava entre dois pólos opostos, quais
sejam: aquele do mesmo (da identidade, da repetição, assegurando a
estabilidade da forma lógica do enunciado) e aquele da alteridade (da
diferença discursiva, da alteração do sentido induzido pelos efeitos de
espelhamento e de deriva (...)).
Léon & Pêcheux (2012 [1982], p. 172) concluem o artigo apontando o traço
essencial no estudo da discursividade, o que constitui um norte para o analista de
59
O outro elemento é a introdução de ligações horizontais entre as proposições, com as quais não nos
ocuparemos uma vez que não serão mobilizadas para nossa análise. 60
Para maiores detalhes, ver Léon & Pêcheux (2012 [1982], p. 170).
76
discurso proceder em suas investigações: “compreender a tensão contraditória entre a
relação paradigmática de substituição que tende em direção à estabilização da forma
lógica e a existência de relações de deriva e de alteração entre sequências (...)”.
Pêcheux et al. (2014 [1982]), a partir da proposta de redefinir a estratégia de
descrição e análise em AD, reconhecem que a paráfrase tem lugar central na teoria, mas
sua problemática deve ser retomada numa perspectiva diferente daquela apresentada nos
modelos teóricos anteriores, ou seja, a paráfrase, segundo eles, precisa ser retomada
numa perspectiva que atenda à “posição geral do nosso projeto (= projeto de Michel
Pêcheux e seu grupo): o estudo „do outro no interior do mesmo‟” (PÊCHEUX et al.,
2014 [1982], p. 275).
2.6.2. Desenvolvimentos da noção de paráfrase e polissemia em AD
Apresentamos a brevíssima revisão acima com o objetivo de mostrar que o
recurso à paráfrase nos estudos sobre a produção do sentido se fez presente desde a
AAD69 até os últimos anos em que Michel Pêcheux se dedicou à Análise de Discurso.
Mesmo que tenha sido operado, em seu percurso histórico, algum deslocamento teórico
sobre o processo61
, a paráfrase ocupou, em diversos momentos, lugar central na AD.
Na Análise de Discurso que se formou no Brasil, a noção de paráfrase também
vem ocupando posição privilegiada, especialmente a partir dos trabalhos desenvolvidos
por Eni Orlandi ainda na década de 1970. Até hoje a paráfrase vem sendo mobilizada na
construção de diferentes dispositivos analíticos para dar tratamento à discursividade.
O efeito metafórico que comentamos no item anterior – o deslizamento de
sentido provocado pela substituição de termos do contexto – não é, entretanto, um
fenômeno semântico produzido exclusivamente pela paráfrase. Os trabalhos produzidos
por Orlandi (1983, 1984, 2012a, 2012b, 2013) representam um autêntico
desenvolvimento dos princípios instituídos por Michel Pêcheux sobre esse processo.
Na esteira do pensamento elaborado por Eni Orlandi, para a produção de
sentidos soma-se o processo chamado de polissemia. Toda produção discursiva se dá
por meio da articulação destes dois processos: paráfrase e polissemia.
61
Esse deslocamento fica evidente em Pêcheux et al. (2014 [1982], p. 275) ao afirmarem que, na AAD69,
“a paráfrase é definida de maneira composicional: duas frases estão em relação de paráfrase se a soma de
suas partes constitui um mesmo sentido por identidade ou equivalência lexical”. Por outro lado, em uma
perspectiva nova, vislumbrada a partir da década de 1980, a paráfrase é tomada como o estudo do outro
no interior do mesmo.
77
Em função do princípio teórico da AD segundo o qual o discurso é efeito de
sentidos entre locutores, Orlandi (1984, p. 10) nos ensina que houve a necessidade de se
abrir espaço para intervir a noção de polissemia, a qual permite considerar a
“multiplicidade de sentidos de que é capaz de se revestir qualquer ato de linguagem,
qualquer unidade da linguagem em uso”.
Assim, para que seja possível observar o funcionamento discursivo, Orlandi
(1984) postula que é necessário determinar os processos de constituição do discurso, os
quais são de natureza sócio-histórica. Entre esses processos, ela distingue dois que
considera fundamentais: a polissemia e a paráfrase.
Deparamo-nos com o princípio da tensão paráfrase-polissemia na produção dos
sentidos em A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso, de 1983, obra em
que Orlandi defende que:
“(...) a produção da linguagem se faz na articulação de dois grandes
processos: o parafrástico e o polissêmico. Isto é, de um lado, há um
retorno constante a um mesmo dizer sedimentado – a paráfrase – e,
de outro, há no texto uma tensão que aponta para o rompimento. Esta
é uma manifestação da relação entre o homem e o mundo (a natureza,
a sociedade, o outro), manifestação da prática e do referente na
linguagem. Há um conflito entre o que é garantido e o que tem de se
garantir. A polissemia é essa força na linguagem que desloca o
mesmo, o garantido, o sedimentado. Essa é a tensão básica do
discurso, tensão entre o texto e o contexto histórico-social: o conflito
entre o mesmo e o diferente. Entre a paráfrase e a polissemia”.
(ORLANDI, 1983, p. 21)
Esse princípio é até hoje defendido por Orlandi (2013, p. 36) – ao manter a
afirmação de que “todo funcionamento da linguagem se assenta na tensão entre
processos parafrásticos e processos polissêmicos” – e compartilhado por inúmeros
analistas em pesquisas sobre a discursividade em diferentes materialidades.
Nesse ínterim de mais de 40 anos, Orlandi (1983, 1984, 2012a, 2012b, 2013)
elaborou uma espessa teorização sobre os processos em foco. Tentaremos resumi-la
evocando a diferenciação proposta pela autora entre três formas de repetição, noção que
ela traz dos trabalhos elaborados em torno de Michel Pêcheux, em especial Léon &
Pêcheux (2012 [1982]). Orlandi (2013, p. 54) distingue as seguintes formas de
repetição:
a) a repetição empírica (mnemônica) que é a do efeito papagaio, só
repete;
78
b) a repetição formal (técnica) que é um outro modo de dizer o mesmo;
c) a repetição histórica, que é a que desloca, a que permite o movimento
porque historiciza o dizer e o sujeito, fazendo fluir o discurso, nos
seus percursos, trabalhando o equívoco, a falha, atravessando as
evidências do imaginário e fazendo o irrealizado irromper no já
estabelecido.
Compreendemos que as repetições de tipo (a) e (b) estão para a noção de
paráfrase, processo pelo qual se busca manter o mesmo, o sentido igual, sob diferentes
formas ou com a mesma forma; a repetição do tipo (c), por outro lado, está para a
concepção de polissemia, processo que visa o novo, a multiplicidade dos sentidos62
.
A repetição do tipo (a) constitui a mera repetição de uma sequência. Em razão
da mobilização que faremos desse conceito em nosso gesto de interpretação sobre os
editais de concurso, iremos nos deter um pouco mais a essa forma de repetição.
Comparado-a com as duas outras, poderíamos ser levados a pressupor que a repetição
empírica não engendraria qualquer deslize de sentido. Contudo, devemos levar em
consideração que cada repetição está relacionada a um acontecimento discursivo. Isso é
sinalizado por Orlandi (1983, p. 109):
Do ponto de vista da Análise de Discurso, a mera repetição já
significa diferentemente, pois introduz uma modificação no processo
discursivo. Quando digo a mesma coisa duas vezes, há um efeito de
sentido que não me permite identificar a segunda à primeira vez, pois
são dois acontecimentos diferentes. (Grifo da autora)
Além disso, temos que considerar o fato de que cada repetição pode ser
formulada por uma forma-sujeito inscrita em uma formação discursiva diferenciada, de
modo que se atribua outro sentido àquela formulação repetida literalmente. Lembremo-
nos de que, segundo Pêcheux e Fuchs (2014 [1975], p. 167): “o „sentido‟ de uma
sequência só e materialmente concebível na medida em que se concebe esta sequência
como pertencente necessariamente a esta ou aquela formação discursiva (o que explica,
de passagem, que ela possa ter vários sentidos)”.
Os argumentos acima nos colocam diante da seguinte perspectiva (a qual
assumiremos em nosso dispositivo analítico): a repetição empírica, uma vez relacionada
a acontecimentos diferentes ou formulada por formas-sujeito inscritas em formações
discursivas distintas, introduz diferença de sentido; a repetição formal – paráfrase –
62
Para maiores informações, confira ORLANDI (1984, p. 11).
79
também introduz diferença de sentido, mesmo que seja mínima63
, pelas mesmas razões
apresentadas anteriormente (acontecimentos diferentes ou formas-sujeito diferentes
produzem diferenças de sentindo); e a repetição histórica – polissemia – é marcada pela
variação dos sentidos já instituídos, isto é, pela instauração de um novo sentido. A
polissemia é, assim, o processo que mais relacionado está com a concepção de “deriva”,
o que não significa que a paráfrase não implique deriva, deslizamento de sentido.
Sobre a noção de “deriva”, “efeito metafórico” vale ressaltar a lição de Orlandi
(2012a, p. 23): “o efeito metafórico é o fenômeno semântico – a deriva – produzido por
uma substituição contextual, observando-se que este deslizamento entre x e y é
constitutivo do sentido designado por x e y”. A autora conceitua efeito metafórico a
partir da noção de substituição contextual entre termos que, como vimos acima, é um
problema específico da paráfrase assim como entendida por Pêcheux (2014 [1969]).
Orlandi (2005b, p. 78 apud SCHENEIDERS, 2012, p. 1002) ressalta que “é a paráfrase
(pensada em relação à configuração das formações discursivas) que está na base da
noção de deriva que, por sua vez, se liga ao que é definido como efeito metafórico”.
É importante trazer aqui Pêcheux (2012 [1983], p. 51), para quem toda descrição
em Análise de Discurso:
(...) está intrinsecamente exposta ao equívoco da língua: todo
enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente
de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar
para um outro (...). Todo enunciado, toda sequência de enunciados é,
pois, linguisticamente descritível como uma série (léxico-
sintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis,
oferecendo lugar a interpretação. É nesse espaço que pretende
trabalhar a análise de discurso.
Portanto, partimos do princípio de que tanto a paráfrase quanto a polissemia
produzem a deriva, o deslizamento de sentido. A primeira, visando ao logicamente
estável, produz um deslizamento mesmo que mínimo; a segunda, visando romper com
os sentidos estabilizados, desloca o já instituído para compor nova significação.
Feitas essas colocações e tendo deixado antevisto pelo leitor a perspectiva que
assumiremos para tratar as três formas de repetição em edital de concurso público,
retornemos à teorização de Eni Orlandi sobre os dois processos em discussão.
63
Reveja a colocação de Léon e Pêcheux (2012 [1982], p. 170), para quem a paráfrase sintática “introduz
uma diferença de sentido” ínfima na forma de espelhamento.
80
Orlandi (1984, p. 11) acrescenta que a paráfrase é o processo que, na linguagem,
permite a produtividade, uma vez que se caracteriza pela “reiteração de processos já
cristalizados pelas instituições, em que se toma a linguagem como produto e se mantém
o dizível no espaço do que já está instituído”. Por outro lado, a polissemia rege a
criatividade, “que instaura o diferente, na medida em que o uso, para romper o processo
de produção dominante de sentidos e na tensão com o contexto histórico-social, pode
criar novas formas, produzir novos sentidos”. Além disso, ao retomar a concepção de
paráfrase elaborada por Pêcheux e Fuchs (2014 [1975]), a autora mantém a noção de
que esse processo constitui a matriz do sentido. Por outro lado, a polissemia é vista por
ela como “a fonte do sentido, a própria condição de existência da linguagem, uma vez
que a base da significação está na multiplicidade de sentidos”.
Com a intenção de fornecer uma distinção precisa entre os dois processos,
formulamos o esquema a seguir com base nos trabalhos de Orlandi (1983, 1984, 2012a,
2012b, 2013):
Paráfrase Polissemia
“Os processos parafrásticos são aqueles
pelos quais em todo dizer há sempre algo que se
mantém, isto é, o dizível, a memória”.
“A paráfrase representa assim o retorno
aos mesmos espaços do dizer”.
Pela paráfrase, são produzidas “diferentes
formulações do mesmo dizer sedimentado”.
Ela “está do lado da estabilização”.
Rege a produtividade, que “mantém o
homem num retorno constante ao mesmo espaço
dizível: produz a variedade do mesmo”64
.
A paráfrase é “a matriz do sentido, pois
não há sentido sem repetição, sem sustentação no
saber discursivo”.
Na polissemia, o que vemos é
“deslocamento, ruptura dos processos de
significação”.
“Ela joga com o equívoco”.
Rege a criatividade, que “implica na
ruptura do processo de produção da linguagem,
pelo deslocamento das regras, fazendo intervir o
diferente, produzindo movimentos que afetam os
sujeitos e os sentidos na sua relação com a história
e a língua”65
.
“Para haver criatividade é preciso um
trabalho que ponha em conflito o já produzido e o
que vai-se instituir”.
A criatividade é a “passagem do
irrealizado ao possível, do não-sentido ao sentido”.
A polissemia “é a fonte da linguagem
uma vez que ela é a própria condição de existência
dos discursos, pois se os sentidos – e os sujeitos –
não fossem múltiplos, não pudessem ser outros,
não haveria necessidade de dizer”.
64
Para Orlandi (2012b, p. 26) “a produtividade se dá pela obtenção de elementos variados através de
operações que são sempre as mesmas, que incidem recorrentemente e que, dessa forma, procuram manter
o dizível no mesmo espaço do que já está instituído (o legítimo, a paráfrase)”.
65
Para Orlandi (2012b, p. 26) “a criatividade instaura o diferente na linguagem na medida em que o uso
pode romper com o processo de produção dominante de sentidos e, na tensão da relação com o contexto
histórico-social, pode criar novas formas, novos sentidos”.
81
Antes de finalizar este item, queremos demarcar na presente discussão um traço
da paráfrase discursiva defendido por Henry (1990 [1975]). Para este teórico, a
paráfrase é um conceito que remete à noção de formação discursiva, compreendida
como aquilo que pode e deve ser dito numa conjuntura dada a partir de uma posição
dada. Nessa relação entre paráfrase e formação discursiva, a paráfrase está relacionada
àquilo que pode “ser substituto de uma unidade dada”66
. Henry (1990 [1975], p. 52)
defende que: “a noção de paráfrase discursiva é uma noção “contextual” no sentido de
que as paráfrases discursivas dependem das condições de produção e de interpretação,
ou seja, das formações discursivas diversas às quais o discurso pode estar relacionado
para nelas produzir sentido”.
Levaremos em consideração esse princípio em nosso dispositivo analítico, pois,
como será apresentado em nossa análise, uma mesma formulação em edital de concurso
público muda o efeito de sentidos entre os interlocutores (e o status da formulação)
dependendo da forma-sujeito que a emprega e da formação discursiva em que se
inscreve.
2.7 Tipologia de discurso
A preocupação em traçar uma tipologia para os discursos sempre esteve presente
no domínio da AD, desde suas formulações iniciais. No texto Lexicologia e análise de
enunciado, por exemplo, Dubois (2014 [1969]), considerando os enunciados políticos
dos textos estudados no Colóquio de Lexicologia Política de Saint-Cloud, realizado em
abril de 1968, afirma que esses enunciados derivam de dois tipos de discurso. De um
lado, temos o discurso polêmico, marcado pela presença de asserções que entram em
confronto com outras asserções implicitamente reconhecidas entre os “adversários”.
Nesse tipo de discurso, o objetivo do enunciador é persuadir, levar o ouvinte/leitor a
criar uma identidade com o autor do discurso, sujeito da enunciação. Por outro lado,
temos o discurso didático, marcado pela presença de asserções identificadas como
“verdadeiras”, sobre as quais não recai qualquer possibilidade de confronto. O objetivo
do enunciador não é persuadir, mas tão-somente informar, isto é, formular asserções que
não se opõem a outras.
66
Henry (1990 [1975], p. 52).
82
Orlandi (2013) afirma que há inúmeros critérios para se definir tipologias de
discurso. Quanto à forma de uma instituição (e suas normas), por exemplo, temos o
discurso político, o religioso, o pedagógico, o jornalístico, o científico etc.; quanto à
matéria/disciplina tratada, temos o discurso sociológico, o antropológico, o literário, o
filosófico etc. Segundo a autora, todas essas tipologias, dentre muitas outras possíveis,
não devem constituir o centro das atenções dos analistas de discurso, pois o que
caracteriza o discurso não é o seu tipo, mas o seu modo de funcionamento.
Por isso, desde os anos de 1980, Eni Orlandi vem trabalhando com uma
tipologia de discurso que leva em consideração o funcionamento discursivo, a atividade
estruturante de um discurso determinado por um falante determinado para um
interlocutor determinado com uma finalidade específica (ORLANDI, 1983). Para tanto,
ela toma por base, dentre outros critérios, a questão da polissemia para elaborar sua
tipologia, uma vez que esse processo é constitutivo da tensão que produz o texto. Como
afirma Orlandi (1983, p. 9), “podemos tomar a polissemia enquanto processo que
representa a tensão constante estabelecida pela relação homem/mundo, pela intromissão
da prática e do referente, enquanto tal na linguagem”.
Assim, os trabalhos de Orlandi (1983, 1984 2013) nos levam ao reconhecimento
de três tipos de discurso: lúdico, polêmico e autoritário. A caracterização desses
discursos é feita tecnicamente com base nos seguintes critérios67
:
(i) Modo como os interlocutores se consideram – por esse critério, observa-se
se o locutor considera seu interlocutor, não o considera ou se a relação entre
eles é qualquer uma.
(ii) Reversibilidade – critério que determina a dinâmica da interlocução;
dependendo do grau de reversibilidade, há maior ou menor troca de papéis
entre os interlocutores no discurso.
(iii) Relação dos interlocutores com o objeto de discurso (como o referente se
apresenta) – por esse critério, é verificado se o objeto de discurso está
ausente (encoberto pelo dizer), ou se ele é disputado pelos interlocutores,
que procuram dominá-lo, ou se ele é mantido como tal, ou seja, como objeto
de discurso, e os interlocutores se expõem a ele.
67
Confira Orlandi (1983, p. 142).
83
(iv) Carga de polissemia – permite avaliar, tendo em vista o critério anterior, se
há maior ou menor carga de polissemia entre os interlocutores e o referente.
Os critérios descritos acima permitem definir cada tipo de discurso, segundo a
tipologia estabelecida por Orlandi (1983, 1984, 2013), da seguinte maneira:
a) DISCURSO AUTORITÁRIO – Nele, a polissemia é contida; o referente (objeto
de discurso) está ausente, pois é apagado pela relação de linguagem que se
estabelece; não há interlocutores, pois o locutor se coloca como agente exclusivo
apagando sua relação com o interlocutor; a reversibilidade tende a zero. O
exagero é a ordem no sentido militar, assujeitamento ao comando.
b) DISCURSO POLÊMICO – A polissemia é controlada; o referente (objeto de
discurso) é disputado pelos interlocutores, os quais se mantêm presentes, numa
relação tensa de disputa pelos sentidos, ou seja, eles tentam dominar o referente,
conferindo-lhe direção com perspectivas particulares; a reversibilidade se dá sob
certas condições. O exagero é a injúria.
c) DISCURSO LÚDICO – A polissemia é aberta; o referente (objeto de discurso)
está presente como tal, isto é, enquanto objeto; os interlocutores se expõem aos
efeitos dessa presença inteiramente sem regular sua relação com os sentidos (daí
a polissemia aberta); a reversibilidade é total. O exagero é o non sense.
Para facilitar a visualização desses traços de cada tipo de discurso, elaboramos o
quadro teórico abaixo:
Como os interlocutores se
consideram
Grau de
reversibilidade
Como o referente se
apresenta
Carga de
polissemia
Resultado do
exagero
Discurso
Autoritário
Há um locutor que se impõe
como agente exclusivo e
apaga sua relação com o
interlocutor
Tendência a ser
nula (zero)
Ausente/apagado/
oculto pelo dizer
Contida Ordem/
Assujeitamento
ao comando
Discurso
Polêmico
Presentes em uma tensa
relação de disputa pelos
sentidos.
Manifesta-se sob
dadas condições
Disputado pelos
interlocutores
Controlada Injúria
Discurso
Lúdico
Expostos aos efeitos da
presença do referente sem
regular sua relação com os
sentidos.
Total Presente como tal (como
objeto) na interlocução
Aberta Non sense
Quadro 3 – Tipos de discurso
84
2.8 A questão do silêncio em Análise de Discurso
A Análise de Discurso é uma disciplina que, ao se instituir como um espaço
polêmico das maneiras de ler68
– o que prevê a possibilidade de diferentes gestos de
leitura sobre uma mesma forma material –, parte do princípio de que, no plano
discursivo, aquilo que é dito, enunciado, mantém constante relação com tudo que não é
dito.
Orlandi (2013) explica que há diversas maneiras de analisar o não-dito em AD.
Dentre os linguistas que se debruçaram sobre essa questão, ela cita o trabalho de
Oswald Ducrot, do qual podemos extrair conceitos como pressuposto e subentendido,
informações implícitas no enunciado que correspondem a maneiras de não-dizer.
Entretanto, uma perspectiva singular para trabalhar com o não-dito foi desenvolvida por
Orlandi (2007), que teorizou sobre o silêncio, tornando-o uma categoria de análise
operativa em AD.
Em As formas do silêncio: no movimento dos sentidos, Orlandi (2007) apresenta
as maneiras como o silêncio pode significar, uma vez que há sentido no silêncio. Para
ela, o silêncio, como princípio geral, é a “„respiração‟ (o fôlego) da significação; um
lugar de recuo necessário para que se possa significar, para que o sentido faça sentido”
(ORLANDI, 2007, p. 13). Na obra em comentário, a autora assume que o silêncio
apresenta duas formas: silêncio fundador e silenciamento ou política do silêncio, o qual
possui duas formas de existência, o silêncio constitutivo e silêncio local.
O silêncio fundador ou fundante é o princípio de toda significação, que nos leva
a assumir que o sentido sempre pode ser outro. Corresponde a um não-dito que é, ao
mesmo tempo, história e função da relação entre língua e ideologia. Não se trata de
mero complemento da linguagem, mas de uma contraparte dotada de significação
própria. Ao chamar essa forma de silêncio de fundador, não se quer atribuir outra ideia
que não seja a de que o silêncio garante o movimento dos sentidos (ORLANDI, 2007).
O silenciamento ou política do silêncio é uma prática constitutiva da linguagem
que visa pôr em silêncio. Uma de suas formas de existência é o silêncio constitutivo,
que se relaciona ao fato de que, quando falamos, optamos por formas da língua que
necessariamente apagam, silenciam outras, o que resulta no princípio de que para dizer
é preciso não-dizer. Orlandi (2007, p. 73), afirma que:
68
Expressão tomada emprestada de Pêcheux (2014 [1982], p. 59).
85
O silêncio constitutivo pertence à própria ordem de produção do
sentido e preside qualquer produção de linguagem. Representa a
política do silêncio como um efeito de discurso que instala o anti-
implícito: se diz “x” para não (deixar) dizer “y”, este sendo o sentido
a se descartar do dito. É o não-dito necessariamente excluído. Por aí
se apagam os sentidos que se quer evitar, sentidos que poderiam
instalar o trabalho significativo de uma “outra” formação
discursiva, uma “outra” região de sentidos.
A outra forma de existência da política do silêncio é o silêncio local, que implica
a censura, a proibição de se dizer algo em dada conjuntura. Trata-se da manifestação
mais visível da política do silêncio, que traz em seu bojo a interdição do dizer
(ORLANDI, 2007).
Todo o desenvolvimento sobre a questão do silêncio visa constituir em AD não
só uma reflexão teórica e filosófica sobre ele, mas também, e principalmente, pretende
trazer implicações para as práticas de leitura que levem em consideração, no tocante ao
método de análise, a relação entre o dito e o não-dito, uma relação que permite ao
analista avaliar os contornos significativos entre o que é enunciado em dada conjuntura
e tudo que, simultaneamente, fica silenciado na enunciação.
86
3. Metodologia
Como já delineamos antes, nosso principal objetivo é compreender os modos
como os sentidos são atualmente produzidos na interlocução que se instaura quando um
órgão vinculado ao Estado, no exercício de sua função administrativa, elabora um edital
de concurso público e o põe em circulação na sociedade entre os
indivíduos/administrados69
. Para tanto, vale ressaltar que: (a) se nos propomos a tratar
dos efeitos de sentidos entre interlocutores – Administração e administrados –,
entendemos que se torna necessária uma filiação às Teorias do Discurso, mais
especificamente àquela constituída pelo legado deixado por Michel Pêcheux; (b) se nos
propomos a abordar o discurso, não podemos nos distanciar do princípio de que todo
discurso é um continuum, já que nasce em outro e aponta para outro; e (c) se, em função
da condição imediatamente anterior, assumirmos que um processo discursivo é o
resultado de outros processos discursivos já sedimentados, tornar-se-á necessário
remeter o que é dito hoje à memória e, assim, apreender uma enunciação
contemporânea no universo do já-dito, tendo um vista sua historicidade.
Essa perspectiva de trabalho nos coloca, assim, diante de uma imposição: para
compreender o atual processo discursivo em edital de concurso público, precisamos
compreender a historicização dos sentidos que foram sendo produzidos no domínio
dessa materialidade com o transcurso do tempo. Não estamos propondo que se resgate a
memória histórica – na condição de interdiscurso – relacionada a um processo
discursivo; afinal, dado o caráter imaterial e irrepresentável dessa memória, tal proposta
seria ilusão. O que propomos é que se resgate, do amplo universo da memória de
arquivo, do discurso documental, um recorte de dizeres que nos permita compreender
como os sentidos foram sendo historicamente constituídos, deslocados, sedimentados e
incorporados no processo discursivo produzido em edital de concurso a ponto de fazê-lo
ir adquirindo progressivamente uma dimensão textual cada vez mais ampla. Pensemos,
por exemplo, na diferente textualidade de um edital elaborado pelo Estado durante o
Império em relação a um edital produzido hoje em dia: o corpo textual do edital
deslocou de uma estrutura mínima para outra de dimensão muito superior.
Portanto, como já sinalizamos em nossa Introdução, para atingirmos os objetivos
da presente pesquisa, propomos uma investigação em duas etapas. A primeira visa
69
Optamos pela referência a indivíduo, sempre que consideramos a pessoa física como um número em
relação ao Estado, isto é, como o sujeito individualizado pelo Estado.
87
reconstituir a história do concurso público e mostrar como os editais de concurso vêm
sendo textualizados no transcurso do tempo. A segunda visa analisar os efeitos de
sentido produzidos contemporaneamente quando a Administração formula um
enunciado para configurar em edital, sendo que tal enunciado rompe com os sentidos já
estabilizados discursivamente.
Para o desenvolvimento dessas duas etapas da pesquisa, fez-se necessária a
assunção de dois dispositivos analíticos – cada qual com seus respectivos arquivos –
que nos permitissem um gesto de interpretação sobre as atuais práticas discursivas
postas em jogo na textualização de editais.
A constituição de um arquivo para tratar de um tema específico é, para nós, um
dos momentos – o primeiro – mais importantes no estabelecimento do dispositivo
analítico em AD, pois é a partir dele (do arquivo) que se constitui o corpus discursivo,
formado por todos os enunciados que serão colocados em análise.
Dentre o que já tratamos acerca do arquivo no capítulo 2, há três aspectos sobre
esse objeto que devemos retomar, de forma sucinta, para justificar nossas opções
metodológicas na constituição dos arquivos que selecionamos para esta pesquisa.
Primeiramente, devemos considerar o arquivo como um objeto linguístico e histórico
constituído pela heterogeneidade, podendo incorporar enunciados/discursos de ordens
distintas (Schneiders, 2014). Em segundo lugar, com base em Guilhaumou & Maldidier
(2014 [1986], p. 170), não podemos perder de vista que “o arquivo nunca é dado a
priori, e, em uma primeira leitura, seu funcionamento é opaco”. Terceiro: a
compreensão de arquivo, em sentido amplo, como “campo de documentos pertinentes e
disponíveis sobre uma mesma questão” (PÊCHEUX, 2014 [1982], p. 59) subtrai do
arquivo qualquer sensação de unidade, conferindo-lhe, ao contrário, dispersão.
Desta forma, estando o arquivo marcado pela heterogeneidade, pela opacidade e
pela dispersão, cumpre ao analista, em um primeiro momento, tratar da constituição do
arquivo que será tomado em sua pesquisa tendo em vista a questão por ele levantada e
a finalidade da análise. Em outras palavras, o analista deve destacar do interior do
grande Arquivo sobre o tema abordado, o conjunto de documentos que ele pretende
considerar para a construção do seu corpus discursivo. Esse primeiro movimento feito
pelo analista pode ser representado como no esquema abaixo, em que A representa todo
o Arquivo, toda a memória institucionalizada, e representa o arquivo constituído pelo
analista a partir da seleção dos documentos que lhe servirão para a composição do
corpus discursivo.
88
Vale ressaltar que esse primeiro movimento já é um gesto de interpretação.
Embora o Arquivo (A) – como memória institucionalizada, que não se esquece – não se
confunda com o interdiscurso – como memória discursiva/histórica, estruturada pelo
esquecimento – é no confronto entre eles que há espaço para interpretação (Orlandi
(2003). Não uma interpretação única e exclusiva, mas um gesto de interpretação, entre
outros possíveis, em face do arquivo () tomado em relação ao tema da pesquisa.
3.1 Procedimentos para a primeira etapa da pesquisa
Optamos por recorrer, de início, ao imenso arquivo que temos sobre o tema
concurso com o objetivo de conhecer sua história. Para tanto, tivemos que partir de um
ponto. Como iremos tratar do edital de concurso considerando suas especificidades no
Brasil, optamos por reconstruir sua história a partir de 1822, com a Independência do
país, tomando o concurso e o edital, de início, na época do Brasil Imperial. Em
seguida, buscamos considerá-los em cinco períodos históricos diferentes: a República
Velha, a Era Vargas, a República Liberal, a Ditadura Militar e a atual República
Federativa.
O estudo histórico prévio que empreendemos nessa etapa sobre concurso e edital
traz um objetivo mais específico: conhecer a constituição dos dizeres e a determinação
histórica dos sentidos para compreender o processo de formulação dos editais na
atualidade. Não queremos dizer com isso que temos a intenção de apreender o
interdiscurso sobre o qual se constrói hoje o edital. Conhecemos o caráter imaterial da
memória discursiva e impossibilidade de ser apreendida, como se pudesse ser um bloco
compactado de dizeres já produzidos. Nossa intenção é tão somente criar um referencial
em que se demarque o aparecimento gradual de enunciados que foram sendo
incorporados historicamente na produção de editais. Acreditamos que, a partir disso,
teremos condições de dar tratamento adequado ao edital de concurso público, um
tratamento ao mesmo tempo desembaraçado de implicações jurídicas e capaz sinalizar
os problemas de sentido envolvidos, hoje em dia, em sua construção.
A
89
Para levar a cabo essa primeira tarefa, adotamos a seguinte metodologia.
Fizemos uma pesquisa documental em que foram considerados dois arquivos: (i) um
arquivo constituído por referência aos termos edital e concurso na legislação brasileira e
(ii) um arquivo constituído por editais de concurso. Ambos foram construídos levando
em consideração cada um dos períodos históricos do Brasil mencionados acima (do
Brasil Imperial à República Federativa do Brasil).
Para a formação do primeiro arquivo, que chamaremos Arquivo 1 – Legislação,
fizemos uma “varredura” na legislação brasileira, desde a Constituição de 1824 até a
atualidade, disponível no site oficial da Presidência da República
(www2.planalto.gov.br/)70
, para verificar os momentos da história em que se fala em
concurso e edital. Os gestos de leitura realizados sobre esse arquivo são apresentados ao
leitor no capítulo 4.
Foram adotados os seguintes procedimentos:
1) Recorremos às leis disponibilizadas no Acervo do Executivo Federal, buscando
nelas as ocorrências das palavras edital e concurso. Diante da ausência de tempo
hábil para ler toda a legislação em busca dessas palavras, recorremos a um
recurso simples oferecido pelo próprio sistema de busca do site para localizar
um conteúdo específico no documento: com a lei aberta, utilizamos a opção Ctrl
+ F. Por meio desse atalho, procuramos localizar a ocorrência das palavras
postas em análise.
2) Todas as ocorrências dessas palavras foram reproduzidas em documento novo
criado no editor de texto Microsoft Word, indicando a lei respectiva, com o
intuito de constituir o arquivo para análise.
3) Para que fosse possível traçar um percurso histórico do aparecimento das
palavras concurso e edital, aplicamos os procedimentos descritos acima sobre a
legislação brasileira, considerando-a em sua evolução cronológica. Dessa forma,
dividimos a legislação em 6 grupos, quais sejam:
70
Consultamos o item Legislação que constitui o Acervo da Presidência da República. Por meio do site
oficial do Palácio do Planalto - http://www2.planalto.gov.br/ - é possível identificar as leis que compõem
o sistema jurídico brasileiro no campo Acervo. Lá, há o link http://www4.planalto.gov.br/legislação que
dá acesso ao Portal da Legislação, onde todo cidadão tem acesso a quase todo material legislativo
(Constituições, Leis Ordinárias, Decretos, Estatutos, Códigos, etc.) produzido na história do Brasil.
90
Grupo A – Legislação do Brasil Imperial, entendido o Brasil Imperial como o período
que se estende do dia 7 de setembro de 1822, com a Independência, até o dia 15 de
novembro de 1889, com a Proclamação da República.
Grupo B – Legislação da República Velha, entendida a República Velha como o
período que se estende entre a Proclamação da República, a partir de 15 de novembro de
1889, e a Revolução de 1930 (iniciada, mais precisamente, em 24 de outubro de 1930).
Grupo C – Legislação da Era Vargas, entendida a Era Vargas como o período que se
estende da Revolução de 1930 até o ano de 1945 (mais precisamente em 29 de outubro
de 1945, quando Vargas foi deposto). Vale ressaltar que a Era Vargas teve três
momentos históricos, que ficaram conhecidos, respectivamente, como: Governo
Provisório/fase revolucionária (de 1930 a 1934), Governo Constitucional/fase
constitucional (de 1934 a 1937) e Estado Novo/fase ditatorial (de 1937 a 1945).
Consideraremos a legislação da Era Vargas em sua totalidade, sem considerá-la em cada
período em que Vargas governou.
Grupo D – Legislação da República Liberal, entendida como o breve período
democrático que se estende de 13 de novembro de 1945 a 31 de março de 1964 e
constitui um período de entremeio de duas ditaduras.
Grupo E – Legislação da Ditadura Militar, entendida como o período que se estende de
1º de abril de 1964, com o golpe militar, a 14 de janeiro de 1985.
Grupo F – Legislação da República Federativa do Brasil, entendido como o período que
se estende de 15 de janeiro de 1988 até os dias atuais.
Para a formação do segundo arquivo, a ser nomeado Arquivo 2 – Edital,
buscamos editais disponibilizados em sites de diferentes órgãos públicos (por exemplo,
Câmara dos Deputados e Tribunal Superior do Trabalho) ou bancas examinadoras (por
exemplo, Esaf e Cebraspe/UnB). Diante da impossibilidade de obter editais antigos, em
especial aqueles que foram produzidos pelo Estado nos séculos XIX e XX, utilizamos a
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, um portal de periódicos nacionais que
permite ampla consulta, pela internet, a jornais, revistas, anuários, boletins e
91
publicações seriadas71
. Optamos pela Hemeroteca porque, sendo o edital de concurso
público um documento que deve ser publicado na imprensa para dar ampla publicidade
aos interessados, ela oferece a possibilidade de resgatar editais emitidos por órgãos
oficiais em diferentes épocas e diferentes lugares do país. Os gestos de leitura realizados
sobre esse arquivo são apresentados ao leitor no capítulo 5.
Para construir o Arquivo 2, selecionamos 2 (dois) editais dentro de cada década
dos períodos históricos considerados. Tal seleção não é, entretanto, aleatória.
Escolhemos, dentro de cada década, o edital mais antigo e o edital mais recente (1 edital
no início e outro no final de cada década). Constituem o Arquivo 2 – Edital os seguintes
editais:
1. Editais do Brasil Imperial
Edital de Concurso de 1823 Periódico: “Diário do Governo” do Império do
Brasil
Data: 1º de julho de 1823
Edital de Concurso de 1829 Periódico: “O Universal”
Data: 9 de março de 1829
Edital de Concurso de 1830 Periódico: “O Farol Maranhense”
Data: 21 de maio de 1830
Edital de Concurso de 1838 Periódico: “O Universal”
Data: 8 de outubro de 1838
Edital de Concurso de 1840 Periódico: “O Universal”
Data: 16 de março de 1840
Edital de Concurso de 1849 Periódico: “Diário do Rio de Janeiro”
Data: 1º de outubro de 1849
Edital de Concurso de 1850 Periódico: Publicador Maranhense
Data: 7 de fevereiro de 1850
Edital de Concurso de 1859 Periódico: “O Universal”
Data: 27 de maio de 1859
Edital de Concurso de 1861 Periódico: “Diário do Rio de Janeiro”
Data: 06/11/1861
Edital de Concurso de 1868 Periódico: “Correio Mercantil”
Data: 11 de novembro de 1868
Edital de Concurso de 1870 Periódico: “Jornal do Pará”
Data:17 de fevereiro de 1870
Edital de Concurso de 1877 Periódico: “Jornal do Pará: Órgão Oficial”
Data: 1º de setembro de 1877
Edital de Concurso de 1882 Periódico: “Pharol (RJ)”
Data: 15 de maio de 1882
71
Cf. https://www.bn.gov.br/explore/acervos/hemeroteca-digital#.
92
2. Editais da República Velha
Edital de Concurso de 1889 Periódico: “A República (PR)”
Data: 27 de dezembro de 1889
Edital de Concurso de 1893 Periódico: “A República (PR)”
Data: 14 de junho de 1893
Edital de Concurso de 1899 Periódico: “Gazeta de Notícias (RJ)”
Data: 26 de outubro de 1899
Edital de Concurso de 1900 Periódico: “Minas Geraes”
Data: 20 de março de 1900
Edital de Concurso de 1908 Periódico: “Diário da Manhã (ES)”
Data: 22 de abril de 1908
Edital de Concurso de 1911 Periódico: “Correio Paulistano”
Data: 25 de janeiro de 1911
Edital de Concurso de 1919 Periódico: “Correio Paulistano”
Data: 16 de fevereiro de 1919
Edital de Concurso de1924 Periódico: “O Dia (PR)”
Data: 10 de janeiro de 1924
Edital de Concurso de 1927 Biblioteca Virtual da Câmara dos Deputados
Disponível em
http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/13816
Data: 27 de junho de 1927
3. Editais da Era Vargas
Edital de Concurso de 1930 Periódico: “A República (SC)”
Data: 13 de dezembro de 1930
Edital de Concurso de 1937 Periódico: “A República (SC)”
Data: 22 de junho de 1937
Edital de Concurso de 1940 Periódico: “O Dia (Curitiba)”
Data: 19 de abril de 1940
Edital de Concurso de 1945 Periódico: “Diário Carioca”
Data: 14 de julho de 1945
4. Editais da República Liberal
Edital de Concurso de 1950 Periódico: “Diário Carioca”
Data: 16 de janeiro de 1950
Edital de Concurso de 1957 Biblioteca Virtual da Câmara dos Deputados
Disponível em
http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/13817
Data: 11 de setembro de 1957
Edital de Concurso de 1961 Periódico: Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro
Data: 23 de novembro de 1961
93
5. Editais da Ditadura Militar
Edital de Concurso de 1969 Periódico: Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro
Data: 22 de dezembro de 1969
Edital de Concurso de 1971 Biblioteca Virtual da Câmara dos Deputados
Disponível em
http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/13858
Data: 26 de abril de 1971
Edital de Concurso de 1977 Biblioteca Virtual da Câmara dos Deputados
Disponível em
http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/13856#
Data: 28 de janeiro de 1977
Edital de Concurso de 1982 Coordenadoria de Gestão Documental do TST
Data: 06 de agosto de 1982
6. Editais da República Federativa do Brasil
Edital de Concurso de 1989 Disponível em:
bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/14138/e
dital_1_1989.pdf?...4
Data: 4 de dezembro de 1989
Edital de Concurso de 1993 Disponível em:
http://portal.stf.jus.br/textos/verTexto.asp?servico=sobre
StfConcursoPublico&pagina=Editais_concurso_1993
Data: 20 de setembro de 1993
Edital de Concurso de 1998 Disponível no site do Cespe/UnB
http://www.cespe.unb.br/concursos/_antigos/anteriores_
2002/1999/Escrivao_PF/Arquivos/
Data: 17 de dezembro de 1998
Edital de Concurso de 2001 Disponível no site do Cespe/UnB
www.cespe.unb.br/concursos/_antigos/2002/senado/Arq
uivos/ED2001_senado1.pdf
Data: 31 de outubro de 2001
Edital de Concurso de 2009 Disponível no site da ESAF
http://esaf.fazenda.gov.br/assuntos/concursos_publicos/e
ncerrados/2009/auditor-fiscal-da-receita-federal-do-
brasil
Data: 18 de setembro de 2009
Edital de Concurso de 2011 Disponível no site da CONSULPLAN
http://www.consulplan.net/concursosInterna.aspx?k=N8
b56a8jybE=
Data: 11 de novembro de 2011
Edital de Concurso de 2018 Disponível no site do Cespe/UnB http://www.cespe.unb.br/concursos/TCE_MG_18/
Data: 5 de junho de 2018
É um importante justificar para o leitor uma necessidade que se impôs ao nosso
trabalho. Em razão das limitações de espaço físico de uma tese de doutorado, julgamos
94
que não é possível reproduzir em anexo toda a legislação que compõe o Arquivo 1 e
todos os editais que compõem o Arquivo 2. Desse modo, optamos apenas por referi-los
(legislação e editais) ao leitor, oferecendo-lhe as devidas fontes de pesquisa. Nos
capítulos 4 e 5, em que fazemos a análise sobre esses arquivos, as referências serão
retomadas e sinalizadas para o leitor.
3.2 Procedimentos para a segunda etapa da pesquisa
O primeiro arquivo que construímos para a segunda etapa da pesquisa é formado
por quatro editais que não sofreram qualquer forma de controle (administrativo ou
judicial) por dispor, em princípio, suas cláusulas segundo os contornos das leis, da
doutrina e da jurisprudência. Nesse arquivo, encontram-se editais cujos concursos foram
promovidos por instituições examinadoras que gozam de relativo prestígio no país; são
elas: a Escola de Administração Fazendária (Esaf), que é vinculada ao Ministério da
Fazenda e responsável pela seleção de pessoal para o provimento de cargos na
Administração Pública Federal; o Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção
e de Promoção de Eventos (Cebraspe), vinculado à Universidade de Brasília; a
Fundação Getúlio Vargas (FGV), que, além de ser uma instituição de ensino superior
que visa, principalmente, preparar pessoal qualificado para a Administração pública e
privada, possui em sua estrutura organizacional um setor – FGV Projetos – destinado à
promoção de concursos e exames; e a Fundação Carlos Chagas (FCC), que se tornou
uma das bancas examinadoras de maior vulto e prestígio no país nos últimos anos.
Como esse arquivo é constituído por editais que não foram alvo de
questionamentos e processos, nós o chamaremos de E+
(leia-se “arquivo de editais sem
irregularidades”). E sua composição segue as especificações no Quadro 4, apresentado
na página seguinte.
Reiteramos, antes de seguir, a finalidade da análise nessa parte de nossa pesquisa
sobre os editais: apresentar ao leitor como se manifesta a tensão paráfrase-polissemia na
formulação de editais e, mais especificamente, como o jogo com a polissemia no seio de
uma cadeia de sentidos já estabilizados pelas leis, pela doutrina e pela jurisprudência,
pode abrir determinada formulação em um edital a diferentes interpretações, o que faz o
edital ficar sujeito ao controle administrativo e/ou judicial em função da instabilidade
que se cria.
95
Arquivo E+
Banca Concurso de referência Ano de
publicação
Fonte/disponibilidade
Esaf Concurso público para provimento de cargos
de Auditor-Fiscal Federal Agropecuário-
Médico Veterinário do Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
2017 http://www.esaf.fazenda.gov.br/a
ssuntos/concursos_publicos/em-
andamento-1/concurso-mapa-
2017/auditor-fiscal-federal-
agropecuario-mapa
Cebraspe Concurso público para provimento de vagas
nos cargos de Delegado, Perito, Agente,
Escrivão e Papiloscopista da Polícia Federal.
2018 http://www.cespe.unb.br/concurs
os/pf_18/
FGV Concurso público para quadro permanente de
Serviços Auxiliares do Ministério Público do
Estado do Rio de Janeiro.
2016 https://fgvprojetos.fgv.br/concur
sos/mprj
FCC Concurso público para provimento de cargos
do quadro de Servidores Auxiliares da
Defensoria Pública do Estado do Amazonas.
2017 http://www.concursosfcc.com.br/
concursos/dpeam217/index.html
Quadro 4 – Arquivo de editais sem irregularidades
Com o intuito de pôr em confronto os sentidos estáveis – materializados pela
paráfrase72
– com os sentidos que visam romper com o instituído – mobilizados pela
polissemia –, era necessário trazer para a análise enunciados de editais que sofreram
alguma forma de controle e tomá-los como unidades de comparação em relação àqueles
formulados em editais sem falhas apontadas. Daí a necessidade de recorrer a outro
arquivo.
O segundo arquivo que construímos, portanto, é formado por editais de concurso
público que passaram, após publicação na imprensa oficial, por processo de controle
administrativo ou judicial, ocasionando pedidos de impugnação, suspensão cautelar ou
anulação do certame. Por se tratar de textos maculados por falha ou falta
(silenciamentos), nós chamaremos esse arquivo de E-
(leia-se “arquivo de editais com
irregularidades”). Sua constituição segue as especificações no Quadro 5, que se
encontra na página seguinte:
72
Estes sentidos estáveis seriam tomados a partir das formulações em editais que compõem o Arquivo
E+
.
96
Arquivo E-
E
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I
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L
1
Concurso de referência Prefeitura Municipal de Centralina/Minas Gerais.
Banca Prima Face Consultoria e Assessoria em Concursos (Prima Face). Data da publicação 15 de maio de 2009.
Disponível em: https://static-files.folhadirigida.com.br/uploads/files/Edital13174_2.pdf Forma de
controle Controle judicial pelo Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, em 23/07/2009, que
determinou a suspensão cautelar do concurso em razão das falhas apontadas. Resultado do controle Em 7 de outubro de 2009, o prefeito reeditou o documento editalício acatando as
determinações do TCE. A versão retificada do edital está disponível em: www.seapconcursos.com.br/v2/arquivos
/.../852638e6b13e9b6f6f09599b158fb0d3.p...
E
D
I
T
A
L
2
Concurso de referência Prefeitura Municipal de São João Del-Rey/Minas Gerais.
Banca Fundação de Apoio a Universidade Federal de São João Del-Rey (FAUF).
Data da publicação 15 de setembro de 2009.
Disponível em: https://www.ufsj.edu.br/fauf/concurso_pmsjdr.php Forma de controle Controle judicial pelo Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, em 29/10/2009, que
determinou a suspensão cautelar do concurso em razão das irregularidades encontradas. Resultado do controle Em 31/7/2010, o presidente da Fundação tornou pública a revogação da suspensão
temporária do Concurso Público e Processo Seletivo.
A versão retificada disponível em: https://www.ufsj.edu.br/fauf/concurso_pmsjdr.php
E
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3
Concurso de referência Prefeitura Municipal de Santa Rita/Paraíba
Banca FACET Concursos. Data da publicação 18 de março de 2016. Disponível em:
diario.santarita.pb.gov.br/wp-content/.../2016/.../DIÁRIO-OFICIAL-483-18-03-2016 Forma de controle Manifestação do Tribunal de Contas do Estado da Paraíba, que determinou suspensão
cautelar do concurso. A decisão é de 7 de abril de 2016. Resultado do controle Em 24/05/2016, o prefeito reeditou o documento acatando as determinações do TCE.
A versão retificada do edital está disponível em: www.facetconcursos.com.br/santarita/edital_santarita.pdf
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4
Concurso de referência Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais
Banca FUMARC – Fundação Mariana Resende Costa
Data da publicação 26/09/2008. Disponível em: www.fumarc.com.br/imgDB/concursos Forma de controle
Controle do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, em 02/12/2008, que
determinou a suspensão do concurso em razão das irregularidades encontradas. Resultado do controle A versão re-ratificada do edital, de 09/03/2009, está disponível em:
www.fumarc.com.br/imgDB/concursos/edital_retificacao-20090309-154723.pdf
E
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5
Concurso de referência Procurador da República do Ministério Público Federal/MPF.
Banca O concurso foi organizado e executado pelo próprio MPF. Data da publicação 26 de agosto de 2016. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/concursos/concursos/
procuradores/ 29-concurso Forma de controle
Uma ação civil pública movida pelo próprio Ministério Público Federal, que pedia anulação do certame e desfazimento de todos os atos praticados, recebeu Decisão de
Waldemar Cláudio de Carvalho, Juiz Federal da 14ª Vara do Distrito Federal, que
determinou a suspensão do concurso em 29 de março de 2017. Resultado do controle Por força de decisão judicial, o concurso foi suspenso em 05 de abril de 2017 e voltou a
ter prosseguimento em 12 de junho de 2018 (até nossa última consulta ao site do
Ministério Público Federal em 08/09/2018, o concurso ainda estava em andamento). Não encontramos nenhuma alteração no edital.
E
D
I
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6
Concurso de referência Instituto de Desenvolvimento Integrado de Minas Gerais (Indi).
Banca Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa – FUNDEP. Data da publicação 24 de fevereiro de 2012 . Disponível em: http://www.gestaodeconcursos.com.br/site/site/
DetalheConcurso.aspx?CodigoConcurso=973 Forma de controle O Edital autuado pelo TCE de Minas Gerais em 25 de abril de 2012.
Resultado do controle No dia 18 de junho de 2012, o Diretor-Presidente do Indi suspendeu o concurso em cumprimento da determinação da autuação do TCE e, em 05 de julho de 2012, editou uma
retificação do edital para dar prosseguimento ao certame.
Edital de retificação e reabertura disponível em: http://www.gestaodeconcursos.com.br/
site/site/DetalheConcurso.aspx?CodigoConcurso=973
Quadro 5 – Arquivo de editais com irregularidades
97
Finalmente, para que não restassem dúvidas sobre a inadequação das
formulações nos editais que sofreram controle, recorremos a outro arquivo, formado por
decisões tomadas pelos órgãos de controle. Denominamos esse arquivo, constituído por
sete Documentos (DOC), de D
(leia-se “arquivo de documentos do universo jurídico”);
nele, se inclui tudo que diz respeito ao Direito. Esse arquivo foi construído de acordo
com as especificações que seguem no Quadro abaixo:
Arquivo D
DOC1
Forma de controle Judicial
Autoria Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais
Relator Conselheiro Elmo Braz
Concurso Prefeitura de Centralina/MG – Banca Prima Face
Disponibilidade revista1.tce.mg.gov.br/Content/Upload/Materia/497.pdf
DOC2
Forma de controle Judicial
Autoria Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais
Relator Conselheiro Elmo Braz
Concurso Prefeitura de São João Del-Rey/MG – Banca FAUF
Disponibilidade revista1.tce.mg.gov.br/Content/Upload/Materia/643.pdf
DOC3
Forma de controle Judicial
Autoria Tribunal de Contas do Estado da Paraíba
Relator Conselheiro Fábio Túlio Filgueiras Nogueira
Concurso Prefeitura de Santa Rita – Banca FACET
Disponibilidade publicacao.tce.pb.gov.br/1f8eee89cc7c4dd47f22df48653e005c
DOC4
Forma de controle Judicial
Autoria Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais
Relator Conselheira Adriene Andrade
Concurso Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais – Banca FUMARC
Disponibilidade revista1.tce.mg.gov.br/Content/Upload/Materia/542.pdf
DOC5
Forma de controle Judicial
Autoria Ministério Público Federal
Relator/Juiz Waldemar Cláudio de Carvalho
Concurso Ministério Público Federal
Disponibilidade https://justutor.com.br/media/uploads/b66564c443984947866e30d6
bd34597a.pdf
DOC6
Forma de controle Judicial
Autoria Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais
Relator Procurador Marcílio Barenco Corrêa de Mello
Concurso Instituto de Desenvolvimento Integrado de Minas Gerais (Indi)
Disponibilidade revista1.tce.mg.gov.br/Content/Upload/Materia/1623.pdf
Quadro 6 – Arquivo de documentos do universo jurídico
3.2.1 Do corpus discursivo para a segunda etapa da pesquisa
Uma vez estabelecido o arquivo com o qual pretendemos nos encontrar para,
respaldados por uma teoria, dar tratamento à matéria posta em análise na segunda etapa
98
da presente pesquisa, torna-se necessário realizar um segundo movimento, de igual
importância ao primeiro (o do estabelecimento do arquivo): a construção do corpus
discursivo a ser tomado em análise tendo em vista a finalidade da investigação.
A noção de corpus em Análise de Discurso veio a ocupar uma posição
privilegiada a partir dos anos de 1980, quando os analistas da época se voltaram para as
leituras de arquivo. Pêcheux & Léon (2012 [1982]), ao tratarem sobre procedimentos
teórico-metodológicos em AD, incluem, entre estes, a questão da constituição do corpus
a partir da concepção de arquivo. Para eles:
(...) analisar uma materialidade discursiva supõe estruturar o campo
dos arquivos submetidos à análise, o que chamamos, por vezes, a
construção do corpus.
Nessa perspectiva, um corpus é um sistema diversificado,
estratificado, disjunto, laminado, internamente contraditório, e não
um reservatório homogêneo de informações ou uma justaposição de
homogeneidades contrastadas. (PÊCHEUX & LÉON, 2012 [1982], p. 165)
Já que um dos nossos objetivos é mostrar como, nas formulações de editais, a
polissemia irrompe no seio dos dizeres e sentidos estabilizados, balançando os
mecanismos de significação previamente instituídos, julgamos procedente pôr em
relação os enunciados formulados em edital que dispõem sobre a mesma matéria, o
mesmo referente, para dar visibilidade ao processo discursivo.
Pêcheux & Léon (2012 [1982]), propõem o procedimento de segmentação de
sequências discursivas autônomas (SDA), que são tratadas, na análise, como unidades
máximas de comparação. Entretanto, não tomaremos por base a noção de segmentação
proposta pelos autores73
. Para selecionar os enunciados a serem tomados como unidades
de comparação em uma cadeia de formulações sobre o mesmo referente, levaremos em
consideração a operação denominada recorte, assim como proposta por Orlandi
(1984)74
.
73
Ressaltamos, aqui, uma mudança no dispositivo de análise concebido por nós até o Exame de
Qualificação desta Tese de Doutorado, realizado em 06 de setembro de 2017. Até então, vínhamos
trabalhando com a noção de sequência discursiva autônoma; porém, em razão das valiosas observações
feitas pelas avaliadoras, julgamos oportuno alterar o tratamento que demos até aquele momento aos
enunciados selecionados do arquivo para a construção do corpus discursivo. Aproveitamos a nota para
renovar nossos agradecimentos à banca da Qualificação, formada pelas Professoras Doutoras Tania
Conceição Clemente de Souza, orientadora, Juciele Pereira Dias e Silmara Dela Silva. 74
Remetemos o leitor ao Capítulo 2, em que apresentamos essa noção.
99
Mas o que justifica a opção por esse procedimento de análise? A própria posição
teórico-metodológica que esta operação ocupa na Análise de Discurso que vem sendo
produzida no Brasil. Para compreender o papel do recorte na construção do corpus
discursivo, precisamos retomar brevemente a perspectiva criada por Orlandi (1984),
para quem o recorte, por ser fragmento relacionado à “linguagem-e-situação”, constitui
uma unidade discursiva. O “recorte nos remete à situação de interlocução, e, de forma
mais abrangente, a particularidades que derivam da ideologia” (ORLANDI, 1983, p.
149). A sequência discursiva autônoma, entretanto, obtida pelo processo de
segmentação, é fruto de operações sobre a língua segundo os critérios sintáticos e as
marcas de enunciação (“o sistema modo-aspecto-tempo e os determinantes”)75
. A
passagem da noção de sequência discursiva autônoma – SDA – para a de recorte
discursivo – RD76
– vai ao encontro dos pressupostos teóricos e procedimentos
analíticos implantados hoje em Análise de Discurso. Essa passagem, como bem enfatiza
Orlandi (1984), representa um deslocamento da frase para o texto e, assim, para nós, da
língua para o discurso. Já que nossa intenção é, neste trabalho, dar visibilidade ao
processo discursivo em editais de concurso, a noção de recorte apresenta um melhor
funcionamento no âmago do nosso dispositivo analítico. Isso se justifica pelo fato de
que, ao fazermos um recorte de um fragmento do corpo de dado edital, não deixamos de
considerar sua relação com o todo textual, isto é, com a materialidade discursiva de
onde ele (o recorte) foi pinçado, e, principalmente, com as condições de produção sobre
as quais aquele edital fora formulado.
É justo salientar também que o recorte, no interior do arquivo, daquilo que se
pretende pôr em análise permite ao analista desenvolver seu trabalho em uma posição
menos desconfortável, uma vez que o recorte lhe dá a ilusão – favorável ao analista – de
unidade: caminha-se da dispersão do arquivo para unidade imaginária do corpus
constituído pelos recortes. Notamos o mesmo sentimento por Schneiders (2014, p. 104),
para quem:
(...) a noção de RD coloca-se como mais apropriada (...) permitindo
traçar, no interior de uma heterogeneidade e multiplicidade de
documentos que compõem o arquivo de pesquisa, uma ideia, mesmo
que imaginária, de unidade para o corpus de análise, unidade que se
estabelece no jogo com a heterogeneidade.
75
Confira a este propósito Pêcheux & Léon (2012 [1982], p. 167). 76
Retomamos a expressão e a sigla usadas por Schneiders (2014).
100
Neste estudo, o corpus discursivo é construído a partir dos recortes operados
sobre os arquivos E+
, E-
e D, haja vista a finalidade da análise. Como pomos em
relação enunciados de editais que foram alvo de controle judicial e enunciados que não
sofreram qualquer forma de controle, ambos sobre o mesmo referente, foi necessário
construir dois corpora analíticos.
O primeiro corpus é formado por cláusulas de editais questionadas em razão da
forma como se dá a enunciação; nesses casos, a perspectiva construída pelo enunciador
rompe com os sentidos sedimentados, o que engendra a instabilidade de sentidos entre
os interlocutores. Esse corpus discursivo foi produzido basicamente a partir dos recortes
operados sobre o arquivo E-
.
O segundo corpus é estabelecido por cláusulas de editais que não sofreram
controle, uma vez que, em princípio, a enunciação não rompe com os sentidos já
instituídos. Esse corpus discursivo foi elaborado a partir dos recortes operados sobre o
arquivo E+
. Descrevemos detalhadamente a seguir os procedimentos adotados para a
construção de ambos os corpora.
(a) Do corpus discursivo I – referente aos arquivos E-
e D
Primeiramente, recortamos, do arquivo E-
, os fragmentos de editais que foram
alvo de questionamento em razão da maneira como o enunciado fora formulado em
determinado edital. Em seguida, procuramos identificar, no arquivo D, os sentidos já
instituídos que foram mobilizados pelo órgão de controle para questionar a respectiva
enunciação; recortamos, assim, para compor também o corpus I, o argumento do
universo jurídico que punha em xeque aquela formulação. Por último, recortamos, dos
respectivos editais retificados77
indicados no arquivo E-
, os fragmentos que
disciplinavam o mesmo conteúdo, agora formulados sem as irregularidades apontadas.
Para facilitar a visualização desses dados pelo leitor, dispomos os fragmentos recortados
em uma tabela com três colunas. A primeira coluna traz os recortes dos enunciados
formulados na publicação inicial do edital; a segunda coluna, os recortes dos enunciados
contidos nos pareceres e decisões dos órgãos de controle; a terceira, os recortes dos
77
Isso nos casos em que houve retificação. Como o leitor perceberá mais adiante, nem sempre o órgão
fiscalizado, responsável pela publicação do edital, acata as recomendações do órgão fiscalizador,
insistindo ora no jogo com equívoco da língua ora no silenciamento, para preservar sua posição de
império e fazer o indivíduo que participa do concurso manter-se na posição de assujeitamento ao Estado.
101
enunciados retificados. Dessa forma, os recortes do arquivo E-
, conjugados com os
recortes do arquivo D, resultaram no corpus discursivo I, que o leitor poderá conferir
no ANEXO I deste trabalho.
(b) Do corpus discursivo II – referente ao arquivo E+
Para a construção do corpus discursivo II, tomamos os editais referenciados no
arquivo E+
e recortamos os enunciados que dispunham sobre a mesma matéria prescrita
pelos editais eivados de irregularidade, dispostos no corpus discursivo I. Como
estabelecemos um arquivo de editais sem falhas formado por quatro editais, recortamos,
dos quatro, os enunciados a serem relacionados como unidades de comparação. Assim,
os recortes operados no âmbito do arquivo E+
resultaram no corpus discursivo II, que o
leitor pode observar o ANEXO II do presente trabalho.
É importante frisar para o leitor que esses recortes foram organizados de acordo
com as matérias disciplinadas pelo enunciado posto em análise, matérias que
consideramos os pontos críticos em editais. São dez pontos críticos que colocamos em
análise e, no corpus discursivo II, eles aparecem na seguinte ordem: requisitos para
investidura, período de inscrição, limitação temporal para os antecedentes criminais,
devolução do valor da taxa de inscrição, direito à nomeação, critérios de desempate,
vagas destinadas a portadores de necessidades especiais, prazo para recursos, ausência
do programa de provas e previsão de vagas para negros.
Até aqui apresentamos ao leitor os dois movimentos (necessários para esta
pesquisa) realizados inicialmente para o estabelecimento do nosso dispositivo analítico:
seleção do arquivo e constituição do corpus. Preocupamo-nos em trazer para o leitor, a
partir desses movimentos, os corpora de análise construídos a partir do arquivo pinçado
dentro do universo de documentos atinentes ao tema. Além disso, estamos já balizados
pelo dispositivo teórico mobilizado nos Capítulos 1 e 2.
102
4. História do Concurso Público no Brasil
4.1 O surgimento do concurso público
O concurso público é um processo administrativo produzido pelo Estado para
selecionar os candidatos mais aptos ao desempenho de cargos, empregos e funções
públicas. Esta tríade, Estado – candidato apto – Concurso, sempre esteve presente em
processos seletivos desde suas origens mais remotas.
Fiuza & Sapio (2012), em um estudo sobre a origem do concurso público na
China Antiga, ensinam-nos que os primeiros processos seletivos fundamentados na
meritocracia são datados entre os anos de 2.300 a.C. e 150 a.C.. Nesse período, a cada
três anos, os Oficiais do Império eram submetidos a testes de natureza física para que o
Estado avaliasse suas condições reais de saúde de modo a mantê-los ou dispensá-los do
exercício da função. Posteriormente, durante a Dinastia Han (206 a.C. a 220 d.C.),
teriam surgido as primeiras avaliações escritas sob influência dos ensinamentos de
Confúcio. Como enfatizam Fiuza & Sapio (2012), o sistema filosófico que se formou
em torno de Confúcio defendia a necessidade de uma consciência lógica moral por
parte dos indivíduos para que uma sociedade harmônica fosse formada. Provavelmente,
foi em função dessa consciência moral que as avaliações escritas teriam sido instituídas
para os processos seletivos. Estava lançada, desde então, a base para a formulação do
princípio da moralidade, materialmente previsto, hoje em dia, em grande parte das
Constituições de Estado78
. Em um terceiro momento, no período da Dinastia Ming
(1.368 d.C. a 1.644 d.C.), os processos de seleção adquiriram uma elaboração mais
ampla, que previa diferentes níveis de exame para prover os cargos e funções estatais
com os mais capacitados para o exercício.
A prática de seleção com base em um sistema de mérito para a escolha do mais
apto ao exercício da função pública remonta, portanto, há mais de 4.000 anos. No
transcurso do tempo, difundiram-se diferentes práticas até a construção do instituto
jurídico do concurso público. De acordo com Cretella Júnior (1994 apud
AGLANTZAKIS, 2003), houve as seguintes formas de seleção na história das
civilizações: sorteio, compra e venda, herança, arrendamento, nomeação e eleição.
78
É o caso da nossa atual Constituição. O artigo 37 da Constituição da República Federativa do Brasil
assim reza: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência”.
103
Montamos o quadro sinótico abaixo, como base em Aglantzakis (2003), para o leitor ter
uma visão geral sobre essas formas de seleção.
Sorteio Sistema comumente usado durante a Antiguidade Clássica e a Idade Média. No
primeiro período, essa prática, difundida principalmente na Grécia, ficou marcada
pelo modo como os cargos políticos eram sorteados (havia o sorteio puro,
aplicado a pessoas que passavam por um processo seletivo prévio, e o sorteio
condicionado, aplicado a pessoas que detinham “condições apreciáveis”, uma
forma de reputação ilibada). No segundo período, a prática era válida entre as
comunas italianas, unidades básicas de organização territorial da Itália.
Compra e venda Usado durante a Idade Média, especialmente na França. Nesse sistema, o Estado
alienava os empregos públicos àqueles que o desejassem exercer, a título oneroso,
isto é, por meio de um contrato que implicava obrigações recíprocas entre ambas
as partes.
Herança Instituído igualmente durante a Idade Média. Nesse sistema, o ingresso em cargos
públicos era determinado por meio da hereditariedade.
Arrendamento Instituído pelas sociedades feudais da Idade Média. Por meio desse sistema, o
Estado concedia, por tempo determinado, os cargos públicos a particulares
mediante uma quantia arrecadada pelos cofres públicos.
Nomeação Sistema que consistia na designação de particular para dado cargo público.
Ficaram reconhecidas duas formas de nomeação: a absoluta, efetuada por um
único indivíduo sem interferência de qualquer poder, e a relativa, efetuada por
meio de um ato administrativo que previa a necessidade de manifestação de
vontade de um poder com a aprovação de outro poder.
Eleição Sistema que consiste na escolha de funcionário por meio de votação em escrutínio
(sufrágio).
No Estado moderno, o concurso público é o processo de provimento da maior
parte dos cargos públicos e se distingue dos outros sistemas de seleção por ser uma
“série complexa de procedimentos para apurar as aptidões pessoais apresentadas por um
ou vários candidatos que se empenham na obtenção de uma ou mais vagas e que
submetem voluntariamente seus trabalhos e atividades a julgamento de comissão
examinadora” (AGLANTIKIS, 2003)79
.
Nesse sentido, por se tratar de um processo realizado pelo Estado, que, por meio
dos poderes a ele atribuídos, seleciona sujeitos para compor seus cargos públicos, é
importante trazer para nossa discussão algumas noções centrais sobre essa forma de
organização política da sociedade (Estado) e sua relação com o poder e os sujeitos.
79
Por se tratar de um artigo que circula em ambiente virtual, não foi possível remeter à pagina em que
este fragmento se encontra.
104
4.1.1 Algumas considerações sobre Estado, sujeito e poder
Na esteira do Direito, é possível apreender o conceito de Estado levando em
consideração quatro perguntas básicas: (1) O que é o Estado? (2) Que tarefas ele
realiza? (3) Do que ele necessita para realizar essas tarefas? (4) Que limitações ele tem?
Não é tarefa fácil dar resposta à primeira pergunta. Mesmo no domínio das
Ciências Jurídicas, onde se incluem as Teorias do Estado, não encontramos conceitos
uníssonos em razão da complexidade inerente à noção de Estado. Dallari (2007)80
, que
nos fala de uma posição privilegiada do Direito, apresenta-nos diferentes conceitos
sobre essa forma de organização social, os quais convergem, contudo, a um mesmo
ponto comum, que gostaríamos de destacar tendo em vista a perspectiva a ser traçada.
Segundo esses conceitos, o Estado seria: (i) “ordem coativa normativa da conduta
humana”81
, (ii) “corporação territorial dotada de um poder de mando originário”82
, (iii)
“unidade de dominação”83
, (iv) “institucionalização do poder”84
, (v) “monopólio do
poder”85
.
Todos os conceitos acima convergem no sentido de atribuir ao Estado poder:
poder de vigiar a ordem social; poder de criar, modificar e impor normas sobre aqueles
que lhe estão circunscritos; poder de fixar pena sobre aqueles que infringem as normas
por ele instituídas a ponto de restringir-lhes a liberdade, poder de criar e cobrar tributos
etc.
Temos, aqui, o fundamento necessário para responder sucintamente às questões
(2) e (3) que levantamos acima: o Estado, segundo as definições apresentadas, necessita
de poder para realizar o bem comum, sua tarefa essencial. Essa realização do bem
comum como finalidade geral do Estado é defendida por Dallari (2007, p. 108) ao
afirmar que:
(...) o Estado, como sociedade política, tem um fim geral,
constituindo-se em meio para que os indivíduos e as demais
sociedades possam atingir seus respectivos fins particulares. Assim,
pode-se concluir que o fim do Estado é o bem comum, entendido este
como o conceituou o Papa João XXIII, ou seja, o conjunto de todas
80
Julgamos oportuno trazer a voz de um dos maiores juristas brasileiros. Dalmo de Abreu Dallari é
Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP. Por isso ele fala de uma posição discursiva bem
específica, vinculada às Ciências Jurídicas. Temos, assim, um discurso do Direito sobre o Estado. 81
Conceito de Hans Kelsen (apud DALLARI, 2007, p. 119). 82
Conceito de Jellinek (apud DALLARI, 2007, p. 118). 83
Conceito de Heller (apud DALLARI, 2007, p. 117). 84
Conceito de Burdeau (apud DALLARI, 2007, p. 117). 85
Conceito de Gurvitch (apud DALLARI, 2007, p. 117).
105
as condições de vida social que consistam e favoreçam o
desenvolvimento integral da personalidade humana.
É importante nesse ponto trazer para discussão a relação poder-Estado na esteira
da Filosofia. Em Dois ensaios sobre o sujeito e o poder, Foucault (1984) aponta para
um tipo de poder político que nasceu entre as instituições cristãs: o poder pastoral.
Ligado à instituição religiosa, essa é uma forma de poder que visa assegurar a salvação
do indivíduo no além-mundo. Essa forma de poder não se preocupa somente com a
comunidade como um todo, mas com cada indivíduo em particular; busca, assim,
conhecer o que se encontra na cabeça das pessoas (exploração de suas almas)
impelindo-as a revelar seus segredos íntimos.
O poder pastoral difere de outra forma de poder político que se desenvolveu
progressivamente a partir do século XVI. Foucault (1984) chama essa nova forma de
poder de Estado, “tipo de poder político que ignora os indivíduos, ocupando-se apenas
dos interesses da comunidade ou, deveria dizer, de uma classe ou de um grupo de
cidadãos escolhidos”86
. Segundo Foucault (1984), há, entretanto, no interior do Estado
ocidental moderno, que se desenvolveu a partir do século XVIII, uma complexa
combinação de técnicas de individualização e de procedimentos totalizadores,
combinação que, para ele, resulta da integração, por parte do próprio Estado moderno,
das antigas técnicas do poder pastoral, sob a égide de uma nova forma política.
Foucault (1984) sublinha que “o poder do Estado é uma forma de poder
simultaneamente globalizante e totalitária”87
. Por isso, ele não considera o Estado
moderno como uma entidade que tenha se desenvolvido deixando os indivíduos de lado,
mas “como uma estrutura muito elaborada, na qual os indivíduos podem ser integrados
sob uma condição: que forneça a esta individualidade uma nova forma e que a submeta
a um conjunto de mecanismos específicos”88
. Vemos, entre esses mecanismos
específicos, as leis, a doutrina do Direito, a jurisprudência e outros mecanismos formais
que visam assegurar direitos e impor obrigações aos indivíduos. O Estado moderno é
visto, assim, como uma “matriz de individualização” (uma nova forma de poder
pastoral). As estruturas de poder moderno realizam, segundo Foucault (1984), um
“duplo” constrangimento político: a individualização e a totalização.
86
Conferir página 5 da versão em português. 87
Idem nota anterior. 88
Conferir página 7 da versão em português.
106
Ao encontro dessa linha de reflexão vem a perspectiva criada por Orlandi
(2012a) sobre o “duplo movimento na compreensão da subjetividade”89
: 1º)
interpelação do indivíduo (considerado em sua dimensão bio-psicológica) em sujeito
pela ideologia – essa é a forma de assujeitamento pela qual o indivíduo afetado pelo
simbólico na história se subjetiva, isto é, torna-se sujeito. O resultado dessa interpelação
é uma forma-sujeito histórica; 2º) individualização do sujeito pelo Estado – essa é a
forma de individualização pela qual a forma-sujeito histórica é individualizada pelo
Estado por meio de suas instituições. O resultado é, agora, um indivíduo (considerado
em sua dimensão social) construído pelo Estado.
Se juntarmos à perspectiva de Michel Foucault as reflexões que se
desenvolveram em torno da concepção althusseriana de interpelação ideológica, que
assujeita (ideologicamente) o indivíduo, isto é, transforma o indivíduo em sujeito,
fazendo nascer uma forma-sujeito histórica inscrita em uma conjuntura sócio-histórica
dada, teremos condições de ver como se deu o deslocamento da forma-sujeito do Estado
medieval, dotado do poder político pastoral, para a forma-sujeito do Estado moderno.
Compreendemos que a interpelação ideológica do indivíduo no Estado medieval
produzia uma forma-sujeito – o sujeito-religioso – subordinada a Deus e ao discurso
religioso, à Letra (HAROCHE, 1992). O progressivo deslocamento do poder pastoral
para o poder de Estado, deslocou simultaneamente o sujeito-religioso para outra forma-
sujeito – o sujeito-de-direito ou sujeito-jurídico – subordinado às Letras (HAROCHE,
1992), isto é, ao conjunto de mecanismos específicos, produzidos pelo próprio Estado,
que torna o indivíduo ao mesmo tempo livre e submisso.
O que dissemos até aqui nos abre espaço para pensar os deslizamentos de
sentido de Estado no transcurso do tempo. O poder pastoral era aquele que demonstrava
preocupação tanto com o aspecto individual quanto com o social, sendo que a
individualização era feita sobre a forma-sujeito histórica construída pela interpelação
ideológica produzida na formação social daquele período (medieval); dava-se, portanto,
sobre a forma sujeito-religioso. O primeiro deslizamento ocorreu do poder pastoral para
o poder de Estado que, em um primeiro momento (século XVI), enfatizava somente o
aspecto social, por preocupar-se apenas com os interesses da comunidade. A partir do
século XVIII, o Estado reintegrou a técnica de individualização do poder pastoral
deslizando, assim, o poder de Estado do século XVI para o poder de Estado moderno,
89
Rever Capítulo 2, página 65.
107
que retornou sua preocupação para o aspecto social e para o individual. A
individualização, entretanto, faz-se agora sobre outra forma-sujeito, construída pela
interpelação ideológica produzida no interior do Estado moderno. A individualização é,
pois, sobre a forma sujeito-de-direito. O esquema abaixo visa facilitar a visualização dos
deslocamentos a que nos referimos.
Poder pastoral – ênfase no social e no individual
(individualização sobre a forma-sujeito-religiosa)
Poder de Estado – ênfase no social
Totalização (ênfase no social)
Poder de Estado Moderno
Individualização (ênfase no individual)
(individualização sobre a forma-sujeito-de-direito)
Há outro traço sobre o poder de Estado moderno que devemos destacar. O poder
inerente ao Estado no exercício de suas funções não é absoluto90
. Podemos, assim,
responder à questão (4) que formulamos no início afirmando que o Estado, na
atualidade, o Estado Democrático de Direito, esbarra em limitações no que diz respeito
ao poder que tem em suas mãos. É de se fazer notar os conceitos de Estado que
continuamos a apresentar a seguir:
(vi) “Força material irresistível (...) limitada e regulada pelo direito” 91
.
(vii) “Ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado
em determinado território” (DALLARI, 2007, p. 119).
Temos, assim, uma noção de Estado limitado e regulado pelo Direito com vistas
à realização do bem comum. Por meio das definições acima, que coroam a concepção
de Estado Democrático de Direito, vemos que o Estado não detém poder absoluto. No
90
Ao menos não o é mais. Lembremo-nos de que durante o Absolutismo, o monarca concentrava todos
os poderes em suas mãos, podendo até legislar mesmo sem o consentimento da sociedade. 91
Conceito de Duguit (apud DALLARI, 2007, p. 117).
108
momento em que é constituído, seus criadores, verdadeiros titulares do poder92
,
reservam para si, no documento que institui o Estado – a Constituição –, um conjunto
de direitos em face ao ente que estão criando. Dessa forma, tanto o indivíduo (investido
em sua forma sujeito-de-direito produzida pela interpelação) quanto o Estado são
detentores de direitos (liberdades) e obrigações (deveres/limitações). Vale, assim,
referir-se ao Estado como Estado-de-direito, pelo fato de o exercício do poder estar
também limitado por um “conjunto de mecanismos específicos” que cerceiam suas
liberdades. O Estado-de-direito não possui uma liberdade sem limites.
Portanto, em uma forma de Estado como a nossa, direitos e deveres são
delimitados tanto para o Estado-de-direito quanto para o sujeito-de-direito, delimitação
que cria uma tensão constitutiva entre os dois pólos. Tensão produzida, ao mesmo
tempo, pelo Estado, que detém poder para individualizar e massificar os indivíduos, e
pelos sujeitos, que detêm em suas mãos “ferramentas” para assegurar o cumprimento
dos seus direitos. É nesse sentido que Gomes (2015, p. 81) assevera:
Se considerarmos Estado (Estado-de-direito) e cidadão (sujeito-de-
direito) como categorias jurídicas, podemos entender que Estado é
categoria que massifica os indivíduos, que não são considerados em
sua individualidade, mas como uma massa homogênea. Estado, como
o entendemos, é uma ficção histórica e politicamente constituída, já
que a homogeneização (busca por regularidade) é construída, não
espontânea.
Como dizíamos antes, as limitações impostas ao Estado têm como consequência
a criação de direitos para os sujeitos. É a esse conjunto de direitos resultantes das
limitações impostas ao Estado que a doutrina jurídica chama de Direitos Individuais,
Direitos Fundamentais ou Liberdades Fundamentais93
. Motta (2006, p. 65) embasa
nitidamente essa visão ao declarar:
Os Direitos Individuais representam um conjunto de limitações do
Estado em face das pessoas que com ele se relacionam. Pode-se dizer
que é um conjunto de direitos que assim se reservam os titulares do
poder no momento em que criam o Estado. Assim, ao redigirem a
Constituição, estabelecem limites ao ente que estão criando.
92
Afinal, “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente
(...)” (CRFB, art. 1º, Parágrafo Único). 93
Silva (2008, p. 184), com base em nossa atual Constituição da República Federativa do Brasil,
classifica os direitos fundamentais em seis grupos: (i) direitos individuais (previstos no art. 5º), (ii)
direitos à nacionalidade (art. 12), (iii) direitos políticos (arts. 14 a 17), (iv) direitos sociais (arts. 6º e 193
e ss.), (v) direitos coletivos (art. 5º) e (vi) direitos solidários (arts. 3º e 225).
109
Essas liberdades fundamentais têm origem no conjunto de documentos que
foram surgindo a partir de movimentos sociais que lutavam contra o poder absoluto do
Estado. Destaca-se, a título de ilustração, a Declaração de Direitos do Homem e
Cidadão, aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte francesa, em 1789, no auge
da Revolução Francesa.
Os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade promulgados pela Revolução
Francesa permitiram, em cada país, por meio de suas Cartas Magnas – suas
Constituições –, o desenvolvimento de um conjunto de Direitos Fundamentais. Esses
direitos foram sendo conquistados pelo povo frente ao Estado em períodos diferentes da
história, de modo que podemos reconhecer, na atualidade, as Gerações de Direitos
Fundamentais.
De acordo com a visão clássica, temos três gerações de direitos94
: (a) Primeira
Geração, em que estão os direitos ligados ao ideal de liberdade, os quais impõem ao
Estado limitações ao poder de legislar em face aos indivíduos, que conquistaram suas
liberdades (situam-se, aqui, os direitos civis e políticos); (b) Segunda Geração, etapa
em que foram surgindo os direitos ligados ao ideal de igualdade (situam-se, nessa
geração, os direitos sociais, econômicos e culturais); (c) Terceira Geração, dimensão
dos direitos humanos relacionados ao ideal de fraternidade (estão, aqui, os direitos
referentes ao desenvolvimento econômico, à proteção do meio ambiente e à defesa do
consumidor)95
. Dentro desse rol de Direitos Fundamentais, interessa-nos,
especificamente, a Segunda Geração, por ter permitido o desenvolvimento dos direitos
sociais, dentre os quais se destaca o direito ao trabalho.
Optamos por iniciar essa apresentação tocando na formação histórica dos
direitos fundamentais assegurados ao sujeito-de-direito frente ao Estado-de-direito para
mostrar que, em um determinado momento da história, com vistas ao atendimento aos
direitos da Segunda Geração – em especial no tocante ao Direito do Trabalho –,
assistimos ao florescimento do concurso público, com todas as características que hoje
lhe são inerentes.
94
Há constitucionalistas que ampliam o rol das Gerações de Direitos Humanos, acrescentando a Quarta e
Quinta Gerações. 95
Cf. Motta (2006, p. 68-69) e Novelino (2009, p. 362-363).
110
4.1.2. O concurso público no seio do Estado Moderno
Segundo Cretella Júnior (1994, p. 461 apud AGLANTZAKIS, 2003), o concurso
público “se desenvolveu, na França, a partir de Napoleão, depois de renhidas lutas
contra seus opositores, beneficiados por outros sistemas”. Lembremo-nos de que
Napoleão se situa no contexto histórico da Revolução Francesa e seus proclamados
ideias de liberdade, igualdade e fraternidade. Contexto histórico do moderno Estado-de-
direito em que figura o sujeito-de-direito.
É pacífica a compreensão de que o deslocamento de um processo de seleção
pautado nos privilégios daqueles que detinham o poder em suas mãos para um processo
de seleção em que se põem candidatos em ampla concorrência com o objetivo de
selecionar o mais forte, o mais apto, o mais eficiente, operou-se durante a transição do
Estado Absolutista para o Estado-de-direito. O concurso, como meio de seleção de
funcionário público, é fruto do Estado-de-direito. E mais que isso: é fruto das conquistas
advindas do ideal de igualdade, que permitiu o desenvolvimento dos direitos sociais e,
inscritos nestes, os direitos ao trabalho. Afinal, o concurso é o instituto cujo propósito
“é assegurar igualdade de condições para todos os concorrentes, evitando-se
favorecimentos ou discriminações e permitindo-se à administração selecionar os
melhores candidatos ao cargo que estejam disputando” (AGLANTZAKIS, 2003)96
.
O concurso público vem, portanto, inscrito numa relação entre Estado-de-direito
e sujeito-de-direito, relação esta demarcada por um conjunto de direitos e obrigações
atribuídos a ambas as partes. Mas como se dá essa relação?
Com o objetivo de fugir das explicações de cunho jurídico, tentamos oferecer
uma interpretação discursiva para essa relação considerando a perspectiva teórica criada
por Pêcheux (1999 [1982], 2012 [1983]). No primeiro texto citado, Michel Pêcheux
estabelece uma relação entre dois universos de formulação do discurso: os universos
discursivos logicamente estabilizados e os universos discursivos não-estabilizados
logicamente. Os primeiros estão “inscritos no espaço da matemática e das ciências da
natureza, no das tecnologias industriais e bio-médicas, e na esfera social dos
dispositivos de gestão-controle administrativos”; nesses universos, figuram formulações
em um “núcleo duro lógico”, que visa assegurar um mundo semanticamente perfeito no
qual não sobra espaço para a ambiguidade e para o equívoco (ao menos pela ilusão do
96
Por se tratar de um artigo que circula em ambiente virtual, não foi possível remeter à pagina em que
este fragmento se encontra.
111
não-equívoco para a produção de uma homogeneidade lógica). Os segundos são
“próprios ao espaço sócio-histórico dos rituais ideológicos, dos discursos filosóficos,
dos enunciados políticos, da expressão cultural e estética”; nesses universos figuram
formulações discursivas constitutivamente marcadas pela ambiguidade e pelo equívoco
(PÊCHEUX, 1999 [1982], p. 24).
Em O Discurso: estrutura ou acontecimento, Pêcheux (2012 [1983], p. 31)
desenvolve o que chamou de universos logicamente estabilizados. Nesses espaços
discursivos, afirma ele:
supõe-se que todo sujeito falante sabe do que se fala, porque todo
enunciado produzido nesses espaços reflete propriedades estruturais
independentes de sua enunciação: essas propriedades se inscrevem,
transparentemente, em uma descrição adequada do universo (tal que
este universo é tomado discursivamente nesses espaços).
Como dissemos acima, esses universos criam a ilusão de um mundo
logicamente, semanticamente perfeito, por meio do qual se pode determinar aquilo que
é verdadeiro ou falso. Para Pêcheux (2012 [1983], p. 34), a “necessidade universal de
um „mundo semanticamente normal‟” produz consequentemente a necessidade de
“disjunções e categorizações lógicas”, ou seja, torna-se necessário estabelecer
“fronteiras”. E acrescenta: “o Estado e as instituições funcionam o mais frequentemente
– pelo menos em nossa sociedade – como polos privilegiados de resposta a esta
necessidade” (de estabelecer fronteiras). Gomes (2015, p. 66), em sua interpretação
sobre essa perspectiva de Pêcheux, conclui que “estabelecido como espaço
administrativo, o Estado tem, entre outras funções, a de classificar os indivíduos de
acordo com critérios definidos que se alinham a uma lógica disjuntiva”.
Voltemos à questão do concurso. Para nós, em uma sociedade como a nossa, o
concurso público é um dispositivo administrativo de gestão-controle. Por isso, nós o
vemos como uma prática social que se inscreve no universo do logicamente estabilizado
que visa assegurar uma homogeneidade lógica entre o Estado-de-direito e o sujeito-de-
direito em um mundo tido como “semanticamente normal”. O concurso se torna, assim,
uma prática pela qual o Estado e suas instituições realizam disjunções e categorizações
lógicas visando à manutenção do logicamente estável. O concurso, por meio das
disjunções e categorizações, realiza uma “gestão social dos indivíduos” (PÊCHEUX,
2012 [1983], p. 30), pela qual eles são identificados, separados de acordo com critérios
definidos, comparados, colocados em ordem, classificados etc.
112
Além disso, para nós, a inscrição do concurso em um espaço discursivo
logicamente estável não o torna um ritual sem contradições, falhas, faltas. Não que isso
represente, como enfatiza Pêcheux (PÊCHEUX, 2012 [1983], p. 51), um
“amolecimento do núcleo duro lógico”, mas por ser o equívoco algo próprio da língua,
lugar em que se materializa o discurso. Para Pêcheux (2012 [1983], p. 32), a
“homogeneidade lógica”, como uma necessidade do sujeito pragmático, é, sempre,
“atravessada por uma série de equívocos, em particular termos como lei, rigor, ordem,
princípio, etc que „cobrem‟ ao mesmo tempo, como um patchwork heteróclito, o
domínio das ciências exatas, o das tecnologias e o das administrações” (grifos nossos).
O discurso produzido na prática social do concurso pelas administrações do
Estado jamais estaria imune ao equívoco da língua. Os sentidos constituídos no âmbito
dessa prática não se imobilizam dentro da ilusão de um mundo semanticamente normal,
com uma homogeneidade lógica. Pelo equívoco constitutivo da língua, os sentidos,
também nessa prática, deslocam-se, estão suscetíveis de se tornarem outros.
Forma-se, assim, um movimento cíclico de deslocamentos de sentido na
produção discursiva do concurso público. Ele é cíclico, porque visa retornar o sentido
para um espaço logicamente estabilizado. Esse movimento, fruto da relação entre
Estado-de-direito e sujeito-de-direito (ambos com seus direitos e limitações) visa
alcançar sempre o logicamente estável, a homogeneidade lógica, dentro de um universo
de sentidos sujeitos ao equívoco. Acreditamos que é esse movimento cíclico de
deslocamento de sentidos que faz a prática discursiva do concurso público, como toda
prática discursiva, variar, deslizar para outra, no transcurso do tempo.
4.2. O concurso público no Brasil
Os manuais de Direito costumam apresentar o concurso público como uma
prática que ganhou propulsão no Brasil nos anos de 1930, quando passou a figurar
explicitamente na Constituição de 1934, a primeira a prever uma série de dispositivos
que regulavam o acesso aos cargos públicos das instituições vinculadas ao Estado. Não
devemos, com isso, afirmar que o concurso público não era uma prática produzida antes
em nosso país. De fato, se considerarmos nosso ordenamento jurídico como um todo, o
que inclui não somente a Constituição do país, mas também as leis (ordinárias,
delegadas, complementares etc.), os decretos, as portarias, as medidas provisórias, as
113
resoluções etc., ficará nítido que o concurso público era uma prática legitimamente
organizada antes da Constituição de 1934.
Neste item, buscamos apresentar ao leitor uma breve história do concurso no
Brasil, considerando-o a partir de 1822, ano da Independência, o que não implica que o
concurso tenha surgido no país apenas depois de 1822. A prática já existia. Porém,
como temos que iniciar nosso gesto de leitura a partir de um ponto específico, optamos
por entrar no fio do processo discursivo referente ao concurso nesse período partindo da
hipótese de que, desde então, o Estado – independente – e suas instituições
administrativas buscariam por uma brasilidade na produção dos seus atos oficiais.
Como sinalizamos em nossa metodologia, vamos observar como os sentidos
relacionados à prática do concurso foram sendo constituídos e deslocados por nosso
ordenamento jurídico em seis diferentes momentos políticos: Brasil Imperial, República
Velha, Era Vargas, República Liberal, Ditadura Militar e República Federativa do
Brasil. Reiteramos também que a perspectiva que criamos aqui não se funda sobre
aquilo que já está pronto, dado, pelos manuais de Direito. Pelo contrário, tentamos
lançar um olhar diferenciado sobre a história do concurso a partir de um gesto de leitura
realizado sobre o discurso documental, sobre a memória de arquivo institucionalizada.
4.2.1. O concurso público no Brasil Imperial
Consideramos Brasil Imperial o período da história do Brasil que se estende do
dia 7 de setembro de 1822, com a Independência, até o dia 15 de novembro de 1889,
com a Proclamação da República. Na Constituição Política do Imperio do Brazil,
elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I em 25 de
março de 1824, não encontramos qualquer referência ao instituto do concurso público.
Não há sequer qualquer referência a palavras que remetam à concepção de concurso:
seleção, certame, concorrência, candidato, edital.
Vemos esse silenciamento como constitutivo dos sentidos inerentes à prática de
seleção na época. O fato de não-dizer – isto é, não formular, no corpo de uma lei
outorgada pelo próprio imperador, os critérios de seleção – é uma marca discursiva que
nos permite identificar as atitudes e representações próprias da formação ideológica no
início do Império. Ao imperador cabiam as decisões sobre o seu governo; formulações
expressas no texto constitucional sobre os modos de seleção poderiam, assim, limitar
sua esfera de decisão pessoal.
114
Já que não se falava em concurso, procuramos verificar como a primeira Carta
Magna previa a nomeação para o exercício de cargo público. Verificamos que o texto
constitucional referia-se a “nomear” e “prover”, mas sem qualquer previsão de
concurso. É o que podemos perceber nos trechos abaixo. Os grifos são nossos:
Art. 101. O Imperador exerce o Poder Moderador:
VI. Nomeando, e demittindo livremente os Ministros de Estado
Art. 102. O Imperador é o Chefe do Poder Executivo, e o exercita
pelos seus Ministros de Estado.
São suas principaes attribuições
II. Nomear Bispos, e prover os Beneficios Ecclesiasticos.
III. Nomear Magistrados.
IV. Prover os mais Empregos Civis, e Politicos.
V. Nomear os Commandantes da Força de Terra, e Mar, e removel-
os, quando assim o pedir o Serviço da Nação.
VI. Nomear Embaixadores, e mais Agentes Diplomaticos, e
Commerciaes.
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos
Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança
individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio,
pela maneira seguinte.
XIV. Todo o cidadão pode ser admittido aos Cargos Publicos
Civis, Politicos, ou Militares, sem outra differença, que não seja
dos seus talentos, e virtudes. (Grifos nossos)
Vemos, aqui, um traço interessante. Embora se admita, em lei, que “Todo
cidadão pode ser admittido aos Cargos Publicos (...)”, tendo em vista exclusivamente
(“sem outra differença”) seus talentos e virtudes, não havia previsão (silenciamento) de
qualquer processo seletivo que pudesse definir o cidadão mais virtuoso e talentoso para
ocupar um cargo público. Era o Imperador que detinha o poder de nomear, prover e
demitir quem julgasse dotado dessas qualidades para o exercício das funções públicas.
Os cargos eram, portanto, de livre nomeação e exoneração por parte do monarca.
Esse poder conferido ao chefe estatal está inscrito em um modelo de sociedade
em que as relações de poder se manifestam entre dois polos: imperador x cidadãos,
sendo o imperador tomado na condição de “soberano” e os cidadãos tomados na
condição de “súditos”. Vale ressaltar que essa relação se faz visível no próprio texto
constitucional; no preâmbulo da Constituição de 1824, afirma-se: “DOM PEDRO
PRIMEIRO, POR GRAÇA DE DEOS, e Unanime Acclamação dos Povos, Imperador
Constitucional, e Defensor Perpetuo do Brazil: Fazemos saber a todos os Nossos
Súbditos (...)”.
115
A palavra “súdito” nos remete à concepção de “não livre”, “submetido à vontade
de outrem” ou, mais precisamente, submetido à vontade do imperador. A forma-sujeito
histórica inscrita nesse modelo de formação social corresponde a um sujeito-de-direito
mais submisso que livre, e isso se faz notar na própria Carta Constitucional outorgada
por D. Pedro I. Sämy (2016), em um estudo sobre a positivação da “liberdade” em
nossas constituições, tomou as palavras “livre” e “liberdade” como palavras-pivô e
realizou um levantamento desses termos em todas as constituições formuladas no
Brasil. Na Constituição Imperial, a palavra “liberdade” aparece 3 vezes, “livre” apenas
2 vezes. Se compararmos com a atual Constituição Federal, em que as mesmas palavras
ocorrem, respectivamente, 17 e 28 vezes, é nítida a imagem que podemos ter do
cidadão-súdito circunscrito no Brasil Imperial. A relação jurídica fica, portanto,
estabelecida entre um Estado-de-direito a que se atribui mais liberdade que limitação e
um sujeito-de-direito a que se atribui mais limitação que liberdade.
Embora a Constituição Imperial não dissesse nada sobre a forma de seleção dos
cidadãos talentosos e virtuosos, há dois tipos de atos normativos do Império, leis e
decretos imperiais, destacados em nosso dispositivo de arquivo, que dispõem sobre o
concurso público. Dentro do recorte que fizemos no arquivo do nosso ordenamento
jurídico, o primeiro documento identificado como um referencial sobre o concurso data
de 1827. Trata-se da Lei de 15 de outubro de 1827, que determina a criação de escolas
de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos do Império. Essa
lei faz impor o concurso público, mesmo sem usar ainda a palavra concurso. Ao tratar,
do artigo 6º ao 14, sobre os professores das escolas de primeiras letras, a lei determina
no artigo 7º que os/as pretendentes às cadeiras disponíveis deverão ser examinados(as)
publicamente perante os Presidentes, em Conselho, cabendo primeiramente a estes
prover o/a pretendente julgado(a) mais digno(a) para que, em seguida, o Governo faça
sua legal nomeação. O imperador, na condição de chefe de Governo, só poderia nomear
o professor para as cadeiras disponíveis, mediante prévia examinação entre
pretendentes, o que entendemos como concurso.
Um traço importante nessa lei é que ela determina alguns pré-requisitos para que
os/as pretendentes participem da examinação – para que sejam “admitidos à oposição e
examinados”, nos termos da lei em foco –; eles devem ser cidadãos brasileiros, em gozo
de seus direitos civis e políticos, sem nota da regularidade de sua conduta (artigo 9º) e
com reconhecida honestidade (artigo 12), pré-requisitos que constituem desde então um
domínio do saber próprio da formação discursiva em que se inscreve o concurso
116
público. Mais um traço digno de nota, que também integra esse domínio do saber, é
diferenciação entre homens e mulheres que exercerão a mesma função (artigo 12). Às
professoras, compete o ensino do mesmo conteúdo de responsabilidade dos professores,
com exclusão das noções de geometria e limitação das noções de aritmética às quatro
operações fundamentais. Tais limitações são impostas porque passa a ser competência
das professoras também o ensino de prendas que sirvam à economia doméstica. Trata-
se, pois, de uma ponderação de atribuições – não de discriminação – de modo que as
professoras não ficassem com mais atribuições que os professores. No tocante à
remuneração e gratificações, a lei não faz nenhuma diferenciação, cabendo às mestras
os mesmos ordenados e gratificações concedidos aos mestres.
Pela leitura dos documentos tomados em nosso dispositivo de arquivo, a prática
de examinação de “pretendentes” para escolher o “mais digno” parece ter sido válida
para selecionar professores por toda a primeira metade do século XIX, mas não outros
profissionais para desempenhar outras funções. Vejamos o que dispõem as leis que
trouxemos para nosso dispositivo de arquivo.
A Lei de 15 de novembro de 1827, que versa sobre dívida pública e caixa de
amortização, ao tratar sobre o pessoal destinado ao serviço, do artigo 40 ao 47, dispõe
que haverá no estabelecimento inspetor, contador, tesoureiro, corretor, escriturário e
porteiro; os três primeiros são nomeados pelo Governo; os demais, por uma Junta de
Administração com a aprovação do Governo. Para esses cargos, portanto, a lei não nos
deixa antever se deve haver ou não processo de examinação entre pretendentes.
Outro ato normativo, a Lei de 1º de outubro de 1828, que dá nova forma às
Câmaras Municipais e trata das suas eleições e de seus Juízes de Paz, ao tratar no Título
V, dos seus empregados, toca apenas no ato de nomeação e demissão sem prever
qualquer forma específica de seleção de pessoal.
A Lei de 23 de novembro de 1841, que cria um Conselho de Estado, estabelece
que haverá 12 Conselheiros de Estado Ordinários e 12 Extraordinários, todos também
nomeados pelo Imperador; mas não há previsão de concurso. Outra norma do mesmo
ano, a Lei de 3 de dezembro de 1841, que reforma o Código de Processo Criminal, ao
tratar, no Capítulo I, da Polícia, dispõe que no Município da Corte e em cada Província
haverá um Chefe de Polícia, Delegados e Subdelegados, os quais serão nomeados pelo
Imperador. Nesta e em todas as previsões anteriores, fica evidente a falta de referência à
forma como será feita a escolha do cidadão a ser nomeado.
117
Um ato normativo do Brasil Imperial valioso para nós é o Decreto N. 817 de 30
de agosto de 1851, pois determina como se deve proceder, em casos de vacância, para o
provimento definitivo do cargo de Serventuário dos Ofícios de Justiça e outros
Empregos inerentes a tais Ofícios (secretários, escrivães, curadores, porteiros, tabeliães,
promotores etc.). O provimento dos ofícios e empregos é disciplinado do artigo 10 ao
artigo 13. O procedimento descrito é o seguinte:
(i) assim que vagarem, os cargos devem ser providos temporariamente pelas autoridades
competentes, ficando estas incumbidas de comunicar ao Governo, na Corte, e aos
Presidentes, nas Províncias, sobre a existência da vaga e como ela está sendo
interinamente preenchida (art. 10);
(ii) as mesmas autoridades devem afixar editais nos Ofícios (a palavra edital como
instrumento de publicidade/convocação para o processo seletivo, a partir de então,
começa a figurar nas leis consideradas em nosso arquivo), editais estes que serão
reproduzidos nas capitais das Províncias, anunciando a vaga e convidando os
pretendentes a apresentar seus requerimentos no prazo de sessenta dias (art. 11);
(iii) findo o prazo, as autoridades remetem os requerimentos para o Presidente da
Província anexando informações sobre as habilitações e merecimento de cada
pretendente e, ainda, declarando se os pretendentes estão aptos ou não ao provimento
(art. 12);
(iv) o Presidente remete os requerimentos ao Governo, mais especificamente à
Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça, acompanhados de informação sobre a
idoneidade de cada pretendente, declarando explicitamente se merecem o provimento
(art. 13).
Esse decreto traz um silenciamento sobre a maneira como será feita a escolha do
pretendente que será provido no cargo vago. Porém, ele é o primeiro dentro do nosso
dispositivo de arquivo que situa o gesto de afixação de editais na repartição em que se
deu a vaga e sua reprodução nas capitais. Não se fala explicitamente em concurso, e a
definição fica a critério do Governo com base na análise dos requerimentos
apresentados pelos pretendentes. A seleção é feita por julgamento de mérito com base
nas habilitações declaradas pelos pretendentes.
Nesse período, um dos atos normativos mais importantes do nosso recorte é o
Decreto N. 1.387 de 28 de abril de 1854, que dá novos estatutos às Escolas de
118
Medicina. Nele encontramos explicitamente o instituto do concurso público, inscrito no
artigo 66 do decreto: “A nomeação dos oppositores será feita em virtude de concurso
público”. É o primeiro ato normativo do nosso recorte que traz o sintagma concurso
público. O concurso, entretanto, é uma prática aplicada para selecionar apenas
candidatos para o cargo de Lente Catedrático. Como já dissemos antes, a prática do
concurso nesse período parece ser, portanto, vinculada à seleção de professores.
Dentre os seus dispositivos, esse decreto disciplina como será feita a habilitação
dos candidatos, as provas, o provimento do cargo e prevê ainda a possibilidade de
realização de novo concurso em caso de inobservância das formalidades previstas
inicialmente. Esse decreto torna-se valioso por nos permitir ver como os sentidos sobre
a prática do concurso que temos até a atualidade foram sendo constituídos. Vale
destacar também que, além de prever a possibilidade de anulação do concurso (artigo
74, segunda parte) caso suas formalidades essenciais não tiverem sido observadas, o
decreto dispõe sobre o recurso ao Governo de candidato que se julgar prejudicado no
certame no tocante à sua habilitação e à de terceiros (artigo 67).
A transição da década de 1850 para 1860 parece ter sido decisiva para a irrupção
do concurso no contexto histórico-social do Brasil Imperial. Atos normativos
posteriores passam a dispor sobre a necessidade do concurso prévio ao provimento
efetivo de cargos vagos. Se até a década de 1850, o concurso foi predominantemente
uma prática de seleção de professores, a partir dessa década foi progressivamente se
tornando uma prática assumida pelas instituições públicas em geral para a seleção de
profissionais que desempenham diferentes ofícios.
Nesse sentido, é de se notar o Decreto N. 2.549 de 14 de março de 1860. Ele
regula o concurso e o provimento dos empregos do Tesouro Nacional e Tesourarias de
Fazenda das Províncias. Embora disponha especificamente sobre o provimento dos
empregos de Amanuenses, Oficiais das Secretarias das Tesourarias Fazendárias,
Praticantes e Escriturários do Tesouro Nacional, seus dispositivos constituem
verdadeiros parâmetros e procedimentos para a realização de concurso público. Vale
ressaltar que, logo no artigo primeiro, o decreto determina explicitamente que o
provimento desses empregos somente acontecerá por meio de concurso. Assim reza o
dispositivo: “Art. 1º O provimento dos empregos de Amanuenses, e Officiaes das
Secretarias das Thesourarias de Fazenda, de Praticantes, e das duas ultimas classes de
Escripturarios do Thesouro Nacional, e das mesmas Thesourarias de Fazenda só poderá
ter lugar por meio de concurso”.
119
No âmbito do Decreto 2.549, há um sentido que irrompe no contexto social da
época que vai atravessar o tempo e se deslocar de diferentes maneiras. Esse sentido está
materializado no artigo 23, que assim estatui (o grifo é nosso):
Art. 23. Nas Provincias em que, por falta de estabelecimentos de
instrucção secundaria, não fôr possivel encontrar pessoas que tenhão
as habilitações exigidas por este Decreto para a admissão aos
empregos das Repartições de Fazenda nelle mencionadas, poderá o
Governo dispensar do exame, huma ou mais das seguintes materias:
Inglez, Francez, Geographia, Historia do Brasil, e algebra até
equações do 2º grão.
Os individuos, porém, que forem assim admittidos, não poderão ter
accesso para as outras Repartições, em que se exigirem taes
habilitações, salvo mostrando-se primeiro habilitados nas referidas
materias.
Devemos notar que, em 1860, em pleno Brasil Imperial, o Decreto implanta uma
política pública com a intenção de sanar desigualdades sociais. É o princípio da
igualdade sendo já aí aplicado: pessoas desiguais devem ser tratadas de modo desigual.
A institucionalização do concurso público afetou também os órgãos vinculados
às administrações das Forças Armadas. O Decreto 4.173 de 06 de maio de 1868, que
organiza o corpo de Fazenda Armada, no capítulo que trata da admissão de pessoal ao
serviço, estabelece, em seu artigo 10, o concurso público como forma de provimento
dos cargos disponíveis, concurso que será anunciado com a antecedência mínima de um
mês de modo que o público possa dele tomar conhecimento.
Outro Decreto que merece nota é o de N. 4.668, de 5 de janeiro de 1871, pois
eles traz alterações das disposições do Decreto N. 817 de 30 de agosto de 1851, que já
comentamos antes. Tais alterações dizem respeito exatamente aos modos como a
administração deve proceder, em caso de vacância, para o provimento definitivo dos
Ofícios de Justiça e outros empregados dessa repartição. Devemos observar que as
alterações são propostas 20 anos depois da primeira norma. Cabe-nos verificar que
deslocamentos foram operados.
No decreto de 1851, para a seleção do candidato ao posto de serviço, havia um
conjunto de procedimentos que não ensejavam o concurso. A seleção ficava a critério
do Governo. Além disso, esse decreto não mencionava qualquer forma de
questionamento por parte dos outros pretendentes que não foram escolhidos pela
Administração para o mesmo posto. O decreto de 1871 vem basicamente com estes
objetivos: delegar ao Presidente da Província o ato de nomeação e permitir aos
120
concorrentes não preteridos entrar com recurso sobre a decisão. Para nós, este é o maior
mérito do Decreto de 1871: abrir espaço para a figura do recurso.
O Decreto N. 5.659 de 06 de junho de 1874, que dá nova organização à
Secretaria de Estado dos Negócios do Império, traz a palavra concurso explicitamente.
Ao tratar da nomeação dos Oficiais e dos Amanuenses das Secretarias, o ato não só
institui o concurso como o procedimento para prover tais empregos, mas também traz
os requisitos exigidos no certame. Em relação à publicidade, o decreto retoma um
sentido que, nessa época, já parece circular: “Art. 28 - Todos os concursos serão
anunciados com antecedência de 30 dias, em edital publicado pela imprensa”.
Há um movimento de sentidos interessante nesse Decreto: os artigos 25 e 27
abrem a possibilidade de nomeação de candidato aprovado em concurso anterior,
independentemente de novo concurso. Não se estipula, entretanto, ainda nenhum prazo
de validade de concurso público.
O Decreto N. 6.026, de 6 de novembro de 1875, que cria e dá regulamento à
Escola de minas em Minas Gerais, determina que a nomeação dos Professores
destinados ao serviço nessa instituição se dê mediante concurso. A figura jurídica do
contrato vem prevista também e se aplica para estrangeiros que venham servir naquela
repartição e serventes da Escola. Observa-se, portanto, que, para o desempenho de
função que exija grande conhecimento nas matérias, vigora o concurso público.
Estamos nos aproximando, nesse período, da transição do Império para a
República, que foi um deslocamento político necessário para a implantação da
burguesia no Brasil. Nesse contexto, o Decreto 9.420 de 28 de abril de 1885, que
consolida a legislação relativa aos empregos e ofícios de Justiça, é decisivo para a
instituição do concurso. Esse Decreto, logo no artigo 1º, consolida que nenhum Ofício
de Justiça, independente de sua denominação ou natureza, será provido sem realização
de concurso. O princípio do concurso público passa a ser aplicado para a seleção de
pessoal destinado desde os cargos mais baixos aos mais elevados na hierarquia do
Judiciário (o artigo 71 estatui que “o porteiro do Supremo Tribunal de Justiça é provido
pelo Governo, mediante concurso, como os demais serventuários vitalícios”). A figura
do concurso se torna imperativa a ponto de ter que ser realizado logo que um ofício se
torne vago (o artigo 135 determina que “logo que falecer o serventuário vitalício, ainda
que exista sucessor, será posto o ofício a concurso”).
Precisamos parar a descrição que vimos fazendo até aqui para tecer algumas
considerações sobre o contexto sócio-histórico e ideológico em que o concurso começa
121
a se institucionalizar. Estamos em um período do Brasil (fins dos anos de 1880) em que
pressões internas e externas fazem o país caminhar para uma revolução burguesa.
Na Europa, a revolução burguesa já tinha sido operada por meio da Revolução
Inglesa (1640) e da Revolução Francesa (1789). Esses movimentos permitiram a
burguesia desenvolver as relações capitalistas de produção e exercer a dominação social
e a hegemonia política sobre os demais segmentos da sociedade (FERNANDES, 2006).
Segundo a interpretação do sociólogo Florestan Fernandes, em sua clássica obra
A Revolução Burguesa no Brasil, há dois acontecimentos que marcam o
desenvolvimento da burguesia em nosso país: a extinção da escravidão, declarada pela
Lei 3.353 de 13 de maio de 1888, e a Proclamação da República em 15 de novembro de
1889. De um lado, a relação de produção escravista não atendia mais às relações de
produção que se desenvolviam no Brasil e no mundo; por outro, o rompimento com a
monarquia, pelo que a França e a Inglaterra davam como exemplo, abria espaço para
uma nova forma de organização política do Estado, que teria maior autonomia e poder
de decisão.
A revolução burguesa no Brasil, segundo Fernandes (2006), dá início à
modernidade no país, marcada por uma sociedade capitalista em que as relações de
produção se dão entre aqueles que detêm os meios de produção (classe burguesa) e os
que vendem sua força de trabalho em troca de salário (classe operária). Nesse novo
Estado capitalista, as relações entre o Estado-de-direito e o sujeito-de-direito (sujeito-
capitalista) deslizam, tornando-se diferentes do modelo anterior. Como vimos acima,
aos sujeitos-de-direito circunscritos no modelo imperial eram atribuídas poucas
liberdades. Com o modelo burguês implantado, o Estado (burguês) tende a ir
progressivamente ampliando o rol de direitos para os sujeitos com uma finalidade bem
específica: manter sua própria relação de produção. Mas como fazer isso? Como manter
a aparência de que está tudo bem entre a classe burguesa e a operária para que se
perpetue a relação de produção capitalista?
Para nós, a melhor resposta a essa pergunta pode ser dada a partir dos
ensinamentos de Michel Pêcheux. Como nos ensina Pêcheux (1990 [1982], p. 10), “a
particularidade da revolução burguesa foi a de tender a absorver as diferenças rompendo
as barreiras: ela universalizou as relações jurídicas no momento em que se universaliza
a circulação do dinheiro, das mercadorias... e dos trabalhadores livres”. Ou, segundo as
palavras de Gomes (2015, p. 45), “a burguesia tende, portanto, a absorver as diferenças,
mascarando-as sob a unidade jurídica”.
122
O Estado burguês, para manter sua relação de produção, instala, por meio de
suas instituições, por meio do Direito, a ilusão de igualdade, para mascarar ou apagar as
diferenças, quando, de fato, mantém essas diferenças sob o primando do próprio
Direito. Esse movimento de absorção de diferenças pela ilusão da unidade Gomes
(2015) chamou de “separeamento”. A ilusão da igualdade criada pela burguesia por
meio das instituições democráticas serve, antes de tudo, para assujeitar as classes
dominadas.
Acreditamos que não foi à toa que o concurso público começou a se
institucionalizar como uma prática da Administração Pública no exercício de sua função
de gestão-controle na transição do Império para a República. O Estado burguês, uma
vez implantado, acompanha as construções e representações da ideologia burguesa. É
por isso que veremos nas décadas seguintes o surgimento de diversos atos normativos
que visam assegurar o princípio da igualdade, apagando as desigualdades.
4.2.2 O concurso público na República Velha
Consideramos República Velha o período que se estende de 15 de novembro de
1889, com o ato de Proclamação, culminando na transição do Império para a República,
até 24 de outubro de 1930, dia do principal acontecimento que pôs fim à República
Velha: o Golpe de 1930, que depôs o presidente Washington Luís e impediu a posse do
presidente eleito Júlio Prestes.
Na Constituição da República dos Estados Unidos do Brazil, elaborada por
representantes do povo brasileiro reunidos em Congresso Constituinte e promulgada em
24 de fevereiro de 1891, também não encontramos qualquer referência ao instituto do
concurso público. Da mesma forma, não há referência a palavras como seleção e
certame que poderiam configurar como substitutas do termo investigado. Do mesmo
modo que na Constituição de 1824, verificamos que o texto constitucional de 1891
refere-se a “nomear”, “nomeação”, “funcionário público”, mas sem qualquer previsão
de seleção prévia à nomeação. É o que podemos perceber nos trechos abaixo (os grifos
são nossos):
Art 48 - Compete privativamente ao Presidente da República:
2º) nomear e demitir livremente os Ministros de Estado;
5º) prover os cargos civis e militares de caráter federal, salvas as
restrições expressas na Constituição;
123
11º) nomear os magistrados federais mediante proposta do Supremo
Tribunal;
12º) nomear os membros do Supremo Tribunal Federal e os
Ministros diplomáticos, sujeitando a nomeação à aprovação do
Senado. Na ausência do Congresso, designá-los-á em comissão até
que o Senado se pronuncie;
13º) nomear os demais membros do Corpo Diplomático e os agentes
consulares;
Art 56 - O Supremo Tribunal Federal compor-se-á de quinze Juízes,
nomeados na forma do art. 48, nº 12, dentre os cidadãos de notável
saber e reputação, elegíveis para o Senado.
Art 82 - Os funcionários públicos são estritamente responsáveis
pelos abusos e omissões em que incorrerem no exercício de seus
cargos, assim como pela indulgência ou negligência em não
responsabilizarem efetivamente os seus subalternos.
Parágrafo único - O funcionário público obrigar-se-á por
compromisso formal, no ato da posse, ao desempenho dos seus
deveres legais.
Embora a Constituição de 1891 não preveja expressamente o concurso, os anos
de 1890, primeira década após a implantação de um governo republicano em 15 de
novembro de 1889, foram bastante produtivos no tocante ao concurso público. Por mais
que a Constituição de 1891 tenha silenciado regras atinentes ao provimento dos cargos
públicos, mesmo antes de sua promulgação, já no âmbito da República, houve uma
atividade legislativa notável sobre as formas de provimento.
Dentro do recorte que fizemos, só no ano de 1890, há 12 decretos – a maior
parte deles já foi revogada por legislação posterior – que determinam o concurso para o
provimento de cargos. Alguns decretos chegam a incluir capítulos ou seções para dispor
exclusivamente sobre concurso (veja, por exemplo, os Decretos 407/1890, 408/1890 e
810/1890).
Por meio dos decretos que tomamos a partir de 1890, vemos um traço peculiar
na forma de provimento dos cargos públicos: os postos de trabalho considerados
superiores em uma hierarquia eram ocupados por funcionário da carreira por meio de
um procedimento chamado de acesso, em que o funcionário sobe de posto por
merecimento e antiguidade. A ocupação dos postos mais baixos, entretanto, fica
subordinada a concurso. É o que vemos no Decreto N. 216 de 22 de fevereiro de 1890,
que dá nova organização à Secretaria do Interior (já revogado). Ele determinava que a
nomeação dos 2os
oficiais e dos amanuenses fosse precedida de concurso conforme o
disposto no Decreto 5.659 de 1874, enquanto os cargos de 1º Oficial eram providos por
acesso, isto é, por nomeação de funcionário já pertencente à estrutura de carreira em
124
função de seu merecimento e antiguidade. Algo semelhante encontramos no Decreto N.
277 de 22 de março de 1890, também revogado em 1991. O art. 12 estatuía que as
promoções nos corpos sanitários fossem feitas dois terços por merecimento e um terço
por antiguidade, do primeiro para o segundo posto, e deste em diante somente por
merecimento; as nomeações para o primeiro posto deviam ser feitas por concurso. O
mesmo procedimento é seguido no Decreto N. 291 de 29 de março de 1890, que
reorganiza a Secretaria de Estado das Relações Exteriores. Esse Decreto determina que
a nomeação de amanuenses está sujeita a concurso, enquanto as nomeações para outras
funções se dá por escolha do Governo ou por acesso.
No âmbito desses atos normativos, o Decreto N. 330 de 12 de abril de 1890,
revogado em 1991, desempenha papel importante. Dentro do recorte que tomamos em
nosso dispositivo de arquivo, esse decreto, que promulga o regulamento que organiza o
ensino nas escolas do Exército, estatui, do artigo 78 ao 86, um conjunto de
procedimentos para que o concurso seja realizado. São eles: (i) oito dias depois que o
comandante do Exército tiver conhecimento que a vaga se deu, a inscrição para o
concurso é aberta na secretaria da escola; (ii) o concurso é anunciado nas folhas de
maior circulação e no Diário Oficial contendo desde já a indicação do período de
inscrição dos candidatos – esse período nunca será menor de quatro meses nem maior
de oito; (iii) terminado o prazo de inscrição, reúne-se uma congregação para julgar a
admissão dos candidatos ao concurso e organizar a relação dos que foram habilitados
para o certame, que acontecerá dentro do prazo de três meses depois de encerrada a
inscrição; (iv) as provas consistem em defesa de tese, dissertação escrita, preleção oral,
arguição sobre as provas escrita e oral e prova prática nas matérias que a permitem; (v)
concluídos os atos do concurso, a congregação faz votação nominal, sendo excluídos os
candidatos que não tenham recebido dois terços dos votos; também pelos votos fica
determinada a classificação dos candidatos; (vi) em caso de empate, é o comandante da
escola que, com seu “voto de qualidade”, desfaz o empate.
Há dois detalhes importantes nesse decreto: 1º) o artigo 83 estatui que as provas
são reguladas por programas e instruções organizadas pela congregação e aprovadas
pelo Governo. É o primeiro ato normativo que vemos em nosso recorte prever
programas para as matérias exigidas no concurso. 2º) o artigo 86 prevê a possibilidade
de anulação caso tenha ocorrido desrespeito a alguma formalidade essencial.
O Decreto N. 371 de 02 de maio de 1890 (revogado por Decreto de 1991), que
aprova o regulamento do Colégio Militar, determina que o professor adjunto é nomeado
125
por concurso, exceção feita às primeiras nomeações, que podem ser feitas sem concurso
e provas de habilitação. O Decreto N. 377-A de 05 de maio de 1890 (revogado por
decreto de 1991), que organiza a Secretaria de Estado dos Negócios da Instrução
Pública, determina que as nomeações para os cargos não ocupados após a
transferência de empregados de Secretarias antigas para a recém criada “poderão ser
feitas independentemente de concurso” (art. 7º). Mesmo que o concurso caminhasse
nesse período rumo à institucionalização, esses decretos nos permitem ver que os
próprios atos normativos da época deixavam uma margem de liberdade para atuação da
administração, que, por meio do mérito administrativo, isto é, pelo julgamento de
conveniência ou oportunidade, podia prover os cargos com ou sem concurso nas
circunstâncias indicadas acima (primeiras nomeações para o cargo de professor do
Colégio Militar e nomeação para cargo não ocupado após processo de transferência de
empregados).
Outra norma valiosa para nós é Decreto N. 379-A de 08 de maio de 1890
(revogado por Decreto de 1991), que reorganiza o Museu Nacional. Ele determina que a
nomeação dos diretores e subdiretores do Museu preceda a concurso sobre as matérias
da seção em que fossem empossados. O concurso constava de dissertação escrita e oral
e uma prova prática sobre pontos tirados à sorte. A norma ainda determina os pré-
requisitos necessários à admissão: ser cidadão brasileiro, ter capacidade profissional
(provada por títulos científicos de origem brasileira ou estrangeira e publicação de obras
ou memórias de notório mérito científico) e moralidade comprovada (veja todo artigo
17 do Decreto). O importante para nós é que esse decreto, dentro do nosso recorte, é o
primeiro a fazer referência a provas de títulos científicos e a considerar publicações de
candidatos como critérios de examinação. As provas de títulos, que hoje constituem
uma prática reiterada em muitos concursos, encontram ressonância em uma prática que
já se fazia presente nas administrações desde 1890. Outro fato importante é o tratamento
que este decreto dava ao estrangeiro que, segundo o parágrafo único do artigo 17, podia
ser nomeado para os cargos mencionados acima mesmo sem concurso desde que tivesse
se naturalizado brasileiro.
O Decreto N. 406 de 17 de maio de 1890 dava regulamento à Estrada de Ferro
Central do Brasil e foi revogado em 1991. Ele trazia de forma bem didática os modos de
provimento dos cargos em vigor na época: por livre nomeação, por acesso e por
concurso. Na prática de provimento dos cargos desse órgão específico (Estrada de
Ferro), eram nomeados por acesso, atendendo-se de preferência à aptidão e à
126
assiduidade, os oficiais, os escriturários, os agentes de estação, seus ajudantes e fiéis, os
conferentes, os telegrafistas, os amanuenses e os condutores de trem – todos, portanto,
que já ocupassem algum posto naquele órgão. Por concurso eram admitidos apenas os
praticantes, para posto inicial na carreira. Todos os demais empregados não
especificados acima eram nomeados por livre escolha.
O Decreto N. 407 de 17 de maio de 1890, também revogado em 1991, aprovava
o regulamento da Escola Normal da Capital Federal. O capítulo X versava sobre o
preenchimento da vagas de professor. Os princípios e procedimentos eram os seguintes:
(i) os docentes eram nomeados por concurso, exceção feita ao momento inicial de
criação da Escola em que o Governo podia preencher as vagas sem concurso; (ii) ao
surgir uma vaga de magistério, o secretário a anunciava nos jornais mais lidos da
Capital abrindo a concorrência em noventa dias; (iii) os candidatos requeriam a
inscrição declarando os cargos antes exercidos, seus títulos e trabalhos pedagógicos,
literários e científicos; (iv) terminado o prazo para inscrição e não havendo candidato
inscrito, outro anúncio era feito pelo mesmo período do anterior, e, se não houvesse
inscrito, a nomeação para o cargo poderia ser feita independente de concurso; (v)
havendo concurso, os candidatos eram julgados por comissão, eleita pela congregação
da Escola, a qual competia propor ao Governo quem deveria ocupar a vaga; (vi)
terminadas as provas, caso houvesse concurso, todas eram julgadas pelos examinadores
habilitados pela congregação, os quais emitiam juízo escrito fundamentado sobre o
candidato; (vii) a comissão do concurso fazia a classificação dos candidatos e a
submetia à congregação para que esta fizesse a devida indicação ao Governo.
O Decreto N. 408 de 17 de maio de 1890, igualmente revogado em 1991,
aprovou o regulamento do Instituto Nacional de Cegos. Esse Decreto reservava um
capítulo inteiro – Capítulo XXII – sobre concurso público para o magistério, cujos
procedimentos eram assemelhados aos do concurso para a Escola Normal, descritos no
Decreto 407/1890. Resumimos os procedimentos: (i) publicação de anúncio informando
a abertura de inscrição com prazo nunca maior de três meses, as matérias da cadeira em
concurso, a natureza das provas e as condições que deviam ser cumpridas pelos
candidatos; (ii) aplicação de provas escrita, oral e prática das matérias que a admitiam;
(iii) julgamento pela comissão organizadora e indicação ao Governo do candidato que
recebesse a maioria dos votos. Traços importantes: (i) no começo da execução do
regulamento do Instituto, o Governo podia preencher as vagas existentes sem concurso;
(ii) o artigo 245 do decreto prevê que o candidato que já tivesse realizado a prova escrita
127
e não pudesse realizar a oral por motivo de doença justificada faria a mesma prova em
até oito dias, não ficando assim excluído do certame.
O Decreto N. 429 de 29 de maio de 1890, que deu novo regulamento ao Hospital
da Marinha do Brasil, ao tratar dos escreventes do Hospital, estatuía que, mesmo o
concurso não sendo obrigatório para todas as funções, mas apenas para aquelas que o
regulamento determinasse (art. 129), no caso do provimento do cargo de escrevente
devia haver concurso, no qual o candidato devesse mostrar ter bom procedimento, idade
mínima de 18 anos, boa letra, conhecimento perfeito da gramática e da língua nacional,
aritmética e teoria das proporções (art. 65).
O Decreto N. 810 de 04 de outubro de 1890, revogado em 1991, alterou o
regulamento do Museu Nacional, inclusive no que diz respeito a concurso, reservando
um capítulo inteiro para dispor sobre o assunto. Esse decreto traz de novidade os
seguintes aspectos: (i) há referência a “programas especiais”, um conjunto de
disposições que determinavam como as provas eram realizadas; e (ii) após a votação
dos examinadores para a escolha dos candidatos em lista de classificação, o candidato
que não entrasse na relação dos apresentados ao Governo ficava impossibilitado de
prestar novo concurso para o mesmo cargo no prazo de três anos e, caso sofresse
alguma rejeição (o decreto não estipula as razões para isso), ficaria impossibilitado de
entrar em concurso para sempre. Fica evidente a aplicação de uma pena de caráter
perpétuo (art. 41), forma de penalidade que, hoje, está formalmente proibida pela
Constituição Federal (art. 5º, XLVII, b).
Retomando o que dissemos no item precedente, estamos em um período (1890)
de implantação da burguesia. O Estado burguês, para se perpetuar, precisa criar e
reproduzir mecanismos que deem ao cidadão a sensação de que ele é igual a seus pares.
E para isso a atividade legislativa desempenha papel importante. Todos os atos
normativos apresentados acima, mesmo sendo anteriores à promulgação da Constituição
de 1891, evidenciam que o concurso era uma prática que se institucionalizava para
colocar os cidadãos em pé de igualdade, mascarando quaisquer diferenças.
Após a promulgação da Constituição de 1891, encontramos apenas seis decretos
que dispõem sobre concurso. Vejamo-los.
O Decreto N. 1.940 de 17 de janeiro de 1895 é uma ferramenta valiosa para
vermos como os sentidos sobre o concurso foram sendo construídos. Nós o
consideramos, dentro do nosso recorte, como a primeira Lei de Concurso no Brasil,
pois, ao fornecer instruções para os concursos destinados ao provimento dos cargos de
128
amanuenses e 2os
oficiais da Secretaria de Estado das Relações Exteriores, dispõe
exclusivamente sobre concurso. Lembremo-nos que, em 1890, o Decreto N. 291,
comentado acima, já determinava que o cargo de amanuense fosse preenchido mediante
concurso. O Decreto de 1895 vem disciplinar como será realizado esse concurso. Os
princípios aplicados à seleção e os procedimentos do certame podem ser assim
resumidos:
(i) são feitos anúncios com antecedência de 15 dias pondo em concurso os cargos de
amanuenses e de 2os
oficiais que não tiverem sido preenchidos internamente – estes
cargos, segundo o artigo 2º, são preenchidos por concurso interno realizado entre
aqueles que já desempenham a função de amanuense;
(ii) forma-se banca de examinação;
(iii) para o cargo de amanuense, as provas são de caligrafia, língua portuguesa, francesa
e inglesa, noções de história do Brasil e geografia geral e aritmética. A prova de
caligrafia e língua portuguesa consiste em um ditado feito pelo examinador. O
candidato a este cargo pode, se quiser, prestar o exame em língua alemã, o que lhe
confere prioridade na nomeação constituindo critério de desempate (artigos 8º e 14);
(iv) para o cargo de 2º oficial, as provas são de língua alemã (tradução para o alemão de
textos ditados pelo examinador), princípios de direito internacional e direito público
nacional e redação;
(v) os candidatos são todos examinados sobre os mesmos pontos e conjuntamente;
(vi) as provas são públicas;
(vii) o candidato que não comparecer ou se retirar do recinto antes de fazer a prova fica
excluído do concurso;
(viii) há duas votações: primeiro, os examinadores votam, por escrutínio, logo depois
que os exames tenham terminado; essa votação se dá por meio de esferas brancas, que
indicam aprovação pelo examinador, e pretas, indicadoras de reprovação; em seguida,
os examinadores votam sobre o merecimento dos candidatos.
(ix) elabora-se uma lista de classificação que é remetida ao Ministro;
(x) caso não haja candidato habilitado para o concurso, as vagas são preenchidas por
livre escolha do Governo.
O Decreto N. 9.169-A de 30 de novembro de 1911, que dava nova organização a
algumas repartições da Marinha, também determinava o concurso como o procedimento
para prover o cargo de 4º Oficial da Secretaria da Marinha. Deve-se notar, nesse
decreto, que: (i) o concurso é anunciado com antecedência de 30 dias em Diário Oficial
129
e em jornais de maior circulação na Capital Federal; (ii) exige-se idade mínima de 18
anos e máxima de 30 para concorrer ao posto; (iii) permite-se a inscrição de candidato
por meio de procuração legalmente estabelecida; (iv) não se admite inscrição de
candidato após o prazo estabelecido em edital; (v) há, implicitamente, a previsão de
uma espécie de validade do concurso, pois o artigo 128, § 5º, estatui que as vagas que
ocorrerem dentro de seis meses depois do último concurso serão preenchidas pelos
candidatos aprovados respeitada a ordem de classificação, a manutenção de bom
procedimento e o limite de idade de 30 anos. Esta previsão é, para nós, a semente do
que será estatuído, no futuro, como prazo de validade do concurso.
O Decreto N. 9.262 de 28 de dezembro de 1911, revogado em 1991, dispunha
sobre a reorganização da justiça do Distrito Federal. Em seus artigos 18 e 19,
determinava que os cargos de escrivão, distribuidor, contador, partidor, avaliador e
porteiro seriam preenchidos por concurso mediante o disposto no Decreto 9.420/1885,
que comentamos no item anterior. Os pretendentes ao cargo deveriam ser maiores de 21
anos, possuir pleno gozo dos direitos civis e políticos, ter moralidade e aptidão física
para o exercício do cargo, apresentar folha corrida e ser habilitado em exame de
suficiência. Do mesmo modo dispunha o Decreto N. 9.831 de 23 de outubro de 1912,
revogado em 1991, que versava sobre a Administração e a Justiça no território do Acre.
A única diferença entre este último e o primeiro é que o último prevê o ato de
publicação oficial de edital convocando os concorrentes a apresentar seus requerimentos
no prazo de 60 dias.
O Decreto N. 13.670 de 26 de junho de 1919, que dá novo regulamento à
Secretaria de Estado das Relações Exteriores, traz informações importantes sobre
concurso e elaboração de editais. É a primeira norma, dentro do nosso recorte, que
dispõe algo sobre a elaboração de edital. No tocante a concurso, o Decreto estabelece
que, para ser nomeado Terceiro Oficial, o interessado deve ter sido aprovado em
concurso, além de ser brasileiro, ter capacidade física, bom procedimento, idade de 18
anos e apresentar caderneta de reservista. Além disso, essa norma estatui as matérias
exigidas no concurso para o cargo em questão: caligrafia e datilografia, língua
portuguesa, francesa, inglesa e alemã (o candidato deve falar e escrever corretamente
pelo menos a primeira, entre as estrangeiras), história e geografia (especialmente do
Brasil), aritmética e noções de direito internacional público e privado, constitucional,
administrativo, civil, comercial e industrial. No que diz respeito aos editais de concurso,
o decreto estabelece que eles devem ser assinados pelo Diretor Geral da Contabilidade e
130
que sua elaboração compete à Seção do Expediente de Pessoal. O Decreto N. 14.056 de
11 de fevereiro de 1920, que também regula a mesma Secretaria, amplia a competência
da Seção de Contabilidade, que passa a lavrar, segundo o art. 22, os editais de concurso
para os diversos cargos do Ministério das Relações Exteriores.
O Decreto 15.670 de 06 de setembro de 1922, revogado em 1944, aprovou o
regulamento para a Biblioteca Nacional. Esse ato normativo tinha uma seção inteira
para tratar sobre o provimento de cargos. O concurso é instituído como um
procedimento “comum à Biblioteca Nacional, ao Arquivo Nacional e ao Museu
Histórico Nacional” (art. 29) e por meio dele serão nomeados os amanuenses dos dois
primeiros e os 3os
oficiais do último. A inscrição para esses concursos era aberta na
Biblioteca Nacional e ficavam admitidos à inscrição os candidatos habilitados no curso
técnico – curso oferecido pela Biblioteca Nacional para habilitar candidatos ao referido
concurso. Os pré-requisitos que os candidatos deviam satisfazer eram: idade entre 18 e
30 anos e preencher as demais condições exigidas para o provimento em cargos
públicos federais.
4.2.3 O concurso público na Era Vargas
Como mencionamos no início do item precedente, no dia 24 de outubro de 1930
ocorreu o principal acontecimento que fez deslocar o sistema político do Brasil da
República Velha para a Era Vargas. Com o Golpe de 1930, Getúlio Vargas assumiu em
3 de novembro de 1930 a chefia do Governo Provisório e governou continuamente até
1945. Os historiadores tendem a distinguir, nesse ínterim de 15 anos, três momentos do
Governo Vargas: 1º) Governo Provisório, de 1930 a 1934; 2º) Governo Constitucional,
de 1934 a 1937; e 3º) Estado Novo (Ditadura), de 1937 a 1945.
Nesse período, duas constituições foram elaboradas: a Constituição da
República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho 1934) e a Constituição dos
Estados Unidos do Brasil (de 10 de novembro de1937), cada qual relacionada a um
contexto sócio-histórico e ideológico diferente, como se pode ver pelos “preâmbulos”
inscritos em cada uma delas:
Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa confiança em
Deus, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar
um regime democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade,
a justiça e o bem-estar social e econômico, decretamos e
131
promulgamos a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS
ESTADOS UNIDOS DO BRASIL. (Constituição de 1934)
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO
BRASIL,
ATENDENDO às legitimas aspirações do povo brasileiro à paz
política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de
desordem, resultantes da crescente agravação dos dissídios
partidários, que, uma notória propaganda demagógica procura
desnaturar em luta de classes, e da extremação de conflitos
ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, resolver-se
em termos de violência, colocando a Nação sob a funesta iminência
da guerra civil;
(...)
Resolve assegurar à Nação a sua unidade, o respeito à sua honra e à
sua independência, e ao povo brasileiro, sob um regime de paz
política e social, as condições necessárias à sua segurança, ao seu
bem-estar e à sua prosperidade, decretando a seguinte Constituição,
que se cumprirá desde hoje em todo o País. (Constituição de 1937)
A primeira foi promulgada por representantes do povo brasileiro reunidos em
Assembleia Nacional Constituinte. O sujeito-enunciador é representado por “nós”,
“representantes do povo”. Faz apelo à fé em Deus, faz injunção à democracia e enaltece
princípios como liberdade, justiça e bem-estar social e econômico. A segunda foi
outorgada por Getúlio Vargas. Quem fala nesse texto é o próprio presidente; entretanto,
para conferir ao texto constitucional um efeito de sentido de objetividade, o sujeito-
enunciador é representado por “ele”, “O PRESIDENTE DA REPÚBLICA DOS ESTADOS
UNIDOS DO BRASIL”. O apelo à fé em Deus dá lugar à razão, levando em consideração
as condições sociais em que o país se encontrava naquele momento.
A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1934) é a primeira
Constituição do país a fazer referência explícita ao instituto do concurso público. No
corpo textual dessa Carta Magna, a referência a concurso público é feita em 5 (cinco)
artigos. É o que podemos perceber nos trechos abaixo. Os grifos são nossos:
Art 95 - O Ministério Público será organizado na União, no Distrito
Federal e nos Territórios por lei federal, e, nos Estados, pelas leis
locais.
§ 3º - Os membros do Ministério Público Federal que sirvam nos
Juízos comuns, serão nomeados mediante concurso e só perderão
os cargos, nos termos da lei, por sentença judiciária, ou processo
administrativo, no qual lhes será assegurada ampla defesa.
Art 104 - Compete aos Estados legislar sobre a sua divisão e
organização judiciárias e prover os respectivos cargos, observados os
preceitos dos arts. 64 a 72 da Constituição, mesmo quanto à
requisição de força federal, ainda os princípios seguintes:
132
a) investidura nos primeiros graus, mediante concurso
organizado pela Corte de Apelação, fazendo-se a classificação,
sempre que possível, em lista tríplice;
Art 158 - É vedada a dispensa do concurso de títulos e provas no
provimento dos cargos do magistério oficial, bem como, em qualquer
curso, a de provas escolares de habilitação, determinadas em lei ou
regulamento.
Art 169 - Os funcionários públicos, depois de dois anos, quando
nomeados em virtude de concurso de provas, e, em geral, depois de
dez anos de efetivo exercício, só poderão ser destituídos em virtude
de sentença judiciária ou mediante processo administrativo, regulado
por lei, e, no qual lhes será assegurada plena defesa.
Art 170 - O Poder Legislativo votará o Estatuto dos Funcionários
Públicos, obedecendo às seguintes normas, desde já em vigor:
1º) o quadro dos funcionários públicos compreenderá todos os
que exerçam cargos públicos, seja qual for a forma do pagamento;
2º) a primeira investidura nos postos de carreira das repartições
administrativas, e nos demais que a lei determinar, efetuar-se-á
depois de exame de sanidade e concurso de provas ou títulos;
A Constituição de 1934 traz uma verdadeira revolução no que respeita ao
provimento de cargos públicos do Judiciário, do Legislativo e do Executivo. O concurso
se torna obrigatório para a seleção dos membros do Ministério Público Federal (art. 95,
§ 3º); para o provimento de cargos do Judiciário, respeitada a legislação produzida pelos
Estados (art. 104, alínea a); para o provimento de cargos do magistério oficial, em que
se torna obrigatório não só o concurso de provas, mas também o de títulos (art. 158);
para a investidura em cargos das repartições administrativas do Legislativo ao qual a
Constituição atribuiu competência para produzir um Estatuto dos Funcionários Públicos
(art. 170, segunda parte).
Além dessa conquista – o concurso público – para o povo de modo geral, que
passa a ter chance de concorrer por cargos que antes estavam fechados para um grupo
específico de candidatos indicados por representantes de governo, a nova norma
constitucional implementa, em seu artigo 169, o princípio da estabilidade no serviço
público. Após dois anos no cargo (e em geral depois de dez anos de efetivo exercício), o
funcionário nomeado por concurso só perde o cargo, por meio de sentença judicial ou
processo administrativo, ficando assegurada sua ampla defesa. Essa forma de
estabilidade vai balançar depois, deslocando sentidos (voltaremos a isso mais adiante).
Na Constituição dos Estados Unidos do Brasil (1937), continua-se fazendo
referência explícita ao instituto do concurso público. Os dispositivos sobre esse instituto
continuam os mesmos, como podemos observar nos únicos trechos que tratam de
concurso (grifos nossos):
133
Art 103 - Compete aos Estados legislar sobre a sua divisão e
organização judiciária e prover os respectivos cargos, observados os
preceitos dos arts. 91 e 92 e mais os seguintes princípios:
a) a investidura nos primeiros graus far-se-á mediante concurso
organizado pelo Tribunal de Apelação (...);
Art 156 - O Poder Legislativo organizará o Estatuto dos
Funcionários Públicos, obedecendo aos seguintes preceitos desde já
em vigor:
(...)
b) a primeira investidura nos cargos de carreira far-se-á
mediante concurso de provas ou de títulos;
c) os funcionários públicos, depois de dois anos, quando
nomeados em virtude de concurso de provas, e, em todos os casos,
depois de dez anos de exercício, só poderão ser exonerados em
virtude de sentença judiciária ou mediante processo administrativo,
em que sejam ouvidos e possam defender-se.
Ambas as constituições, portanto, sinalizam o concurso prévio ao ato de
provimento de cargos públicos. Por essa razão, é comum Manuais de Direito situarem
esse instituto como uma conquista dos cidadãos a partir de 1930. Entretanto, nossa
leitura sobre o dispositivo de arquivo que trazemos para nossa pesquisa torna evidente
que a prática do concurso já estava institucionalizada no país antes de Vargas. Com
Vargas, o processo de seleção pública ganhou solo no texto constitucional, o que
representa, de fato, uma importante conquista para o cidadão, uma vez que direitos
instituídos por uma Constituição, a Lei Maior do Estado, ficam, em princípio, menos
vulneráveis a modificações ou supressões.
Uma das construções mais importantes desse período para a questão do concurso
público foi a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público – DASP. Esse
órgão já estava previsto na Constituição outorgada por Getúlio Vargas em 1937, no
artigo 67, que assim estatuía:
Haverá junto à Presidência da República, organizado por decreto do
Presidente, um Departamento Administrativo com as seguintes
atribuições:
a) o estudo pormenorizado das repartições, departamentos e
estabelecimentos públicos, com o fim de determinar, do ponto de
vista da economia e eficiência, as modificações a serem feitas na
organização dos serviços públicos, sua distribuição e agrupamento,
dotações orçamentárias, condições e processos de trabalho, relações
de uns com os outros e com o público;
b) organizar anualmente, de acordo com as instruções do
Presidente da República, a proposta orçamentária a ser enviada por
este à Câmara dos Deputados;
c) fiscalizar, por delegação do Presidente da República e na
conformidade das suas instruções, a execução orçamentária.
134
Mas foi o Decreto-Lei nº 579 de 30 de julho de 1938 que criou o DASP e
atribuiu, entre outras, a seguinte competência: “selecionar os candidatos aos cargos
públicos federais, excetuados os das Secretarias da Câmara dos Deputados e do
Conselho Federal e os do magistério e da magistratura” (art. 2º, alínea d). O DASP se
manteve como órgão executor de seleção e aperfeiçoamento de pessoal até 1986,
quando foi extinto e substituído pela Secretaria da Administração Pública da
Presidência da República – SEDAP – pelo decreto nº 93.211 de 3 de setembro de 1986.
A atividade legislativa sobre o concurso público não se deu apenas nas
Constituições da Era Vargas. Há vários atos normativos (decretos, leis ordinárias e
decretos-leis) do nosso ordenamento jurídico que dispuseram normas relativas a
concurso entre os anos de 1930 e 1945. Passamos a descrever os principais aspectos
sobre concurso previstos nessas normas.
O Decreto nº 19.851 de 11 de abril de 1931, revogado em 1991, que tratava do
ensino universitário, apresenta um título inteiro para falar sobre o corpo docente das
universidades. Esse decreto reconhece quatro tipos de docente: professor catedrático,
auxiliar de ensino, docente livre e professor contratado.
Para o provimento de cargo de professor catedrático é obrigatório o concurso de
título e de provas. No concurso de títulos, em que se visa avaliar o mérito do candidato,
são apreciados: os diplomas e outras dignidades universitárias e acadêmicas, os estudos
e trabalhos científicos, as atividades didáticas já exercidas e as realizações práticas de
natureza técnica ou profissional. No concurso de provas, que objetiva mensurar a
erudição, a experiência e a didática do candidato, há defesa de tese, prova escrita, prova
prática ou experimental e prova didática.
Para a função de auxiliar de ensino, o decreto não estabelece qual seria a forma
de seleção, deixando, no Parágrafo Único do artigo 68, aos institutos universitários a
regulamentação das condições de admissão.
O docente livre é um título conferido, segundo os critérios definidos em
regulamento de cada instituto universitário, ao candidato que demonstre, por um
concurso de títulos e de provas, capacidade técnica, científica e didática (art. 75). Desse
concurso, conforme preceitua o artigo 70, devem fazer parte os professores auxiliares
nomeados dois anos antes sob pena de perda automática do cargo.
No tocante ao professor contratado, o decreto não dispõe sobre sua forma de
seleção. Sua contratação parece ficar por juízo de mérito do instituto universitário, que
135
contrata professor brasileiro ou estrangeiro em razão de suas vantagens didáticas ou
culturais (art. 71, § 1º).
O concurso público é imposto como um procedimento obrigatório para o
provimento do cargo de professor catedrático e docente livre, e os mesmos
procedimentos adotados para a seleção de docentes se tornam recorrentes na
administração pública brasileira da época para o provimento de diferentes cargos
públicos. Vemos tais procedimentos, dentre tantos outros atos normativos que não
tomamos para descrição em nosso recorte, no Decreto nº 20.865 de 28 de dezembro de
1931, revogado em 1990; no Decreto nº 23.122 de 09 de setembro de 1933, revogado
em 1990; no Decreto nº 23.196 de 12 de outubro de 1933, ainda em vigor; e no Decreto
nº 23.512 de 28 de novembro de 1933, também revogado em 1991.
O Decreto nº 19.890 de 18 de abril de 1931, revogado em 1991, dispunha sobre
a organização do ensino secundário. Nele, há cláusulas sobre concurso, considerado
obrigatório para nomeação de docente do Colégio Pedro II (do artigo 14 ao 17) e de
inspetores (do artigo 58 ao 64). Um princípio digno de observação que esse decreto
institui é sobre a estabilidade do professor catedrático no serviço público. Na verdade,
não se trata de estabilidade, mas de “instabilidade”, pois o artigo 17 determinava que,
após 10 anos da nomeação, o professor, caso quisesse, podia se candidatar à recondução
no cargo, havendo novo concurso no qual só podiam concorrer professores de outras
instituições que também tivessem sido nomeados por concurso. Era uma forma de tratar
os candidatos à recondução com igualdade. O professor do Colégio Pedro II cumpria
suas funções, portanto, em um interstício máximo de 10 anos, só podendo permanecer
no cargo se fosse aprovado em novo concurso.
No caso de concurso para inspetor, há pontos que também merecem nota: (i) a
nomeação por concurso era apenas para inspetor, função inicial de carreira, pois para a
função de inspetor geral mantinha-se o processo de acesso; (ii) além dos pré-requisitos
sempre enunciados, a idade determinada era de 22 anos, no mínimo, e 35, no máximo;
(iii) as notas das provas eram graduadas de zero a dez – é o primeiro ato normativo, no
nosso recorte, que versa sobre nota e não votação com esferas pelos examinadores, o
que torna o processo seletivo menos subjetivo por parte da administração; (iv) a
aprovação no concurso parece implicar, segundo o artigo 64, direito subjetivo à
nomeação se houver vaga, respeitada a ordem de classificação; (v) é introduzido prazo
de validade do concurso de 3 anos para este concurso especificamente, perdendo o
candidato o direito à nomeação depois desse período. Por conseguinte, do Decreto nº
136
19.890 de 18 de abril de 1931, é importante reter que, por meio dele, podemos
vislumbrar, já no início dos anos de 1930, a presença de critérios de julgamento por
nota, imposição de prazo de validade do concurso e, principalmente, o delineamento do
princípio do direito subjetivo à nomeação.
A essa altura, o concurso público é instituto amplamente usado em diferentes
repartições para a seleção de pessoal qualificado para o exercício da função pública.
Citemos dois exemplos com base no recorte que fizemos na legislação: para admissão à
carreira consular – Decreto nº 24.113/1934 – e para o quadro de Intendentes de Guerra
do Exército – Decreto nº 24.287/1934.
Tomamos em nosso recorte um Decreto do final do período em análise – Era
Vargas: é o Decreto nº 13.609 de 21 de outubro de 1943, que, embora tivesse sido
revogado em 1991, voltou a valer no mundo jurídico em 1993 em virtude de outro ato
normativo (Decreto de 22/06/1993) ter tornado a revogação sem efeito. O Decreto
13.609/43 regula o ofício de tradutor público e intérprete comercial. Seu artigo 1º
mantém o concurso público (de provas apenas) como procedimento a ser tomado para
seleção de tradutor e intérprete. O que devemos notar é a tempestividade atribuída ao
processo seletivo. O artigo 2º declara que
Criado um ofício ou declarada qualquer vaga dentro do limite que for
fixado, a Junta Comercial ou o órgão correspondente fará publicar no
jornal oficial, dentro de 10 dias e no mínimo por três vezes, edital
com prazo não inferior a 60 dias, declarando aberto o concurso que se
realizará em sua sede e tornando conhecidas as condições para a
inscrição dos candidatos.
Falamos em tempestividade do processo seletivo porque, naquela época, uma
vez reconhecida a vaga, ela era colocada em concurso. Além disso, o mesmo artigo traz
o princípio da ampla publicidade do concurso, o prazo do edital e as condições que os
candidatos devem respeitar para se candidatar à vaga. Outros princípios que esse
decreto mantém são: (a) o do provimento do cargo com respeito à classificação dos
candidatos em concurso e (b) o prazo de validade do concurso, estipulado, nesse caso,
em um ano.
Há outro princípio estatuído nesse Decreto que é novo para nós, considerando o
recorte que trazemos em nossa pesquisa: trata-se do prazo para posse. O artigo 11
estipula que se o candidato aprovado e nomeado não tomar posse no prazo de 30 dias
137
contados a partir da data da nomeação perderá o direito que lhe cabe em favor de outro
candidato da lista de classificação.
Antes de passarmos para o próximo item, é necessário fazer uma ressalva. A
partir desse período, Era Vargas, encontramos uma intensa atividade legislativa que
visava regular profissões, funções, cargos e empregos públicos. Muitas leis foram
produzidas tomando outras como modelo, numa espécie de espelhamento, sendo feitas
apenas as adaptações necessárias para dispor sobre dada profissão/função. Por essa
razão, no nosso recorte, selecionamos apenas os atos normativos que, por nosso gesto
de interpretação, introduziam algum sentido novo na prática do concurso.
4.2.4 O concurso público na República Liberal
República Liberal é o nome atribuído pelos historiadores ao breve período que
se estende de 1945 a 1964. Em 1945, o Brasil saía de um regime ditatorial implantado
por Vargas em 1937 (Estado Novo), regime que fora retomado em 1964 com o Golpe
Militar. A República Liberal constitui, assim, um hiato entre duas ditaduras, um lapso
temporal em que o país pode reexperimentar a democracia, com a qual Vargas havia
rompido em 1937.
É importante levar em consideração que o contexto sócio-histórico e ideológico
em que irrompe a República Liberal é marcado pelas transformações sociais,
econômicas, políticas e culturais operadas a partir de 1930. O país passava por amplo
processo de modernização em seus variados setores. Sobre o aspecto político, devemos
reter o fato de muitos governantes desse período terem produzido um discurso
fundamentado em projetos sociais – os de maior destaque nesse sentido foram Getúlio
Vargas (1951-1954), Juscelino Kubitschek (1956-1961) e João Goulart (1961-1964) – o
que fez esse regime democrático ser considerado de base populista.
A legitimação do novo regime democrático é feita com a promulgação, em 18 de
setembro de 1946, da Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Em seu preâmbulo,
vemos ecoar os mesmos efeitos de sentido produzidos pela Constituição de 1934 com o
objetivo de retomar a democracia. Assim reza a abertura da Carta de 1946: “Nós, os
representantes do povo brasileiro, reunidos, sob a proteção de Deus, em Assembléia
Constituinte para organizar um regime democrático, decretamos e promulgamos a
seguinte Constituição dos Estados Unidos do Brasil”. O sujeito-enunciador volta a se
138
representar na primeira pessoa do plural, “nós”, “representantes do povo”, retorna o
apelo à fé em Deus e volta a fazer injunção à democracia.
Nesse contexto de democracia, o concurso público mantém-se no texto
constitucional de 1946. A Lei Maior determina que o ingresso na carreira da
magistratura (art. 124), do Ministério Público (art. 127), do magistério no ensino
secundário e no superior oficiais (art.168) depende de concurso público. Além disso,
determina-se também que a primeira investidura em qualquer cargo de carreira deve ser
efetuada mediante concurso (art. 186).
A principal inovação que a Carta de 1946 traz é o comando constitucional que
versa sobre a estabilidade no serviço público em virtude do concurso. Segundo o artigo
188, os funcionários efetivos nomeados por concurso são estáveis após dois anos de
exercício, enquanto os efetivos nomeados sem concurso se tornam estáveis apenas
depois de cinco anos de exercício.
Entre os demais atos normativos do nosso ordenamento jurídico, o Decreto nº
37.396 de 26 de maio de 1955 traz contribuições importantes para prática do concurso
público. No recorte que fizemos sobre a legislação, esse é o primeiro ato normativo que
visa estabelecer “normas práticas gerais para vigorar nas aberturas de concurso”.
Embora se aplique a concurso para provimento de vagas de professor de instituições
vinculadas às Forças Armadas, o decreto adota práticas que serão reiteradas em outros
concursos. Por isso, nós as descreveremos a seguir.
A primeira delas é a adoção de um sistema de avaliação por provas e títulos (art.
2º, § 1º). As provas são de quatro tipos: teórico-escrita, prática ou experimental, didática
e defesa de tese. Outro traço importante nesse decreto é que ele determina a publicidade
do concurso por meio de edital de modo que as condições de inscrição e a maneira
como o certame será realizado sejam conhecidas por todos (art. 2º, § 4º). Além disso, a
norma determina que o resultado final do concurso será amplamente anunciado por todo
o Brasil, através dos órgãos divulgadores (art. 2º, § 8º)
É no seio da República Liberal que nasce a primeira formulação de um Estatuto
dos Funcionários Públicos Civis da União. A Lei no 1.711 de 28 de outubro de 1952
estatuiu um conjunto de princípios jurídicos que governaram o funcionalismo público
federal até 1990, quando foi revogada pela Lei 8.112/1990, sobre a qual falaremos mais
adiante. Em razão do seu teor e suas disposições acerca do concurso público, iremos nos
deter um pouco mais à lei nº 1.711/1952. Resumimos os sentidos ali implementados nos
seguintes itens:
139
(i) a lei retoma o princípio da Constituição de 1946 segundo o qual a primeira
investidura em qualquer cargo de carreira deve ser efetuada mediante concurso;
(ii) o concurso podia ser de provas ou títulos e, também, de provas e títulos;
(iii) uma vez aberto o concurso, ele deveria ser homologado no prazo de doze meses;
(iv) para tomar posse, o candidato deveria satisfazer os seguintes requisitos: ser
brasileiro, ter completado dezoito anos, estar em gozo dos direitos políticos e quite com
as obrigações militares, ter bom procedimento, gozar de boa saúde comprovada em
inspeção médica, possuir aptidão para o exercício da função e ter se habilitado em
concurso.
4.2.5 O concurso público durante a Ditadura Militar
Em 1º de abril de 1964, o golpe militar encerrou o governo democrático da
República Liberal ao depor o presidente eleito João Goulart. As Forças Armadas, por
meio de um golpe de Estado, assumiram o poder implantando um regime de Ditadura
Militar, que se estendeu até janeiro de 1985. Nesse lapso temporal de quase 21 anos, o
Brasil experimentou o governo de cinco presidentes militares – Castelo Branco, Costa e
Silva, Médici, Geisel e Figueiredo, respectivamente – e recebeu uma nova Carta Magna,
a Constituição de 1967, que teve nova redação em 1969 conferida pela Emenda
Constitucional nº 1 de 17/10/196997
.
É importante destacar que Constituição da República Federativa do Brasil de
1967/1969 é considerada pela maior parte dos doutrinadores do Direito nacional como
uma constituição outorgada98
. Embora, o preâmbulo dessa Constituição declarasse que
“O Congresso Nacional, invocando a proteção de Deus, decreta e promulga a
seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”, não se pode considerar essa
Lei como um ato promulgado, uma vez que ela não evoca a participação do povo.
A leitura do arquivo resultante da atividade legislativa nesse período (1964-
1985) evidencia que a disposição sobre concurso público não se deu no tocante ao
aspecto quantitativo, mas no qualitativo. Não encontramos, no amplo campo de
documentos referentes a concurso naquela época, tantos atos normativos que tratassem
do tema; entretanto, os que encontramos indicam que as prioridades do governo militar
97
Em razão da EC de 17/10/1969, iremos nos referir a partir de agora apenas à Constituição de 1969. 98
Confira a este respeito Silva (2008, p. 41). Para ele, as Constituições brasileiras de 1824, 1937 e 1967
foram todas outorgadas, uma vez que foram elaboradas e estabelecidas sem a participação do povo.
140
foram as de organizar o que já estava instituído, fixando princípios e normas que
disciplinassem o ingresso nos cargos públicos. Para a construção do nosso dispositivo
de arquivo, pinçamos os atos normativos que descrevemos a seguir.
Considerando, de início, a Constituição de 1969, verificamos que muito do que
já tinha sido dito nas cartas constitucionais anteriores ressoa na de 1969. O concurso
público continua sendo referido como o procedimento necessário para selecionar
candidatos para o ingresso no Ministério Público federal (art. 95), na Magistratura
federal (art. 123), na Magistratura estadual (art.144) e no Magistério das redes oficiais
de ensino médio e superior (art. 176). De modo geral, repetindo o que já estava dito na
Constituição de 1946, “a primeira investidura em cargo público dependerá de aprovação
prévia, em concurso público de provas ou de provas e títulos, salvo os casos indicados
em lei” (art. 97, § 1º), exceção feita para os cargos em comissão, declarados em lei, de
livre nomeação e exoneração.
Em sentido amplo, o artigo 97 da Lei Maior determina uma série de princípios
atinentes ao concurso, princípios estes que se perpetuarão em leis posteriores. Ao
primeiro desses princípios a Doutrina do Direito e a Jurisprudência em geral costumam
se referir como princípio do amplo acesso aos cargos públicos, pelo qual se constitui o
sentido de que todos os brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei
podem ter acesso aos cargos públicos. Outro princípio que fica bem definido no corpo
da Constituição de 1969 é o da estabilidade no serviço público; de acordo com o artigo
100, os funcionários nomeados por concurso tornam-se estáveis após dois anos de
efetivo exercício.
No tocante aos deslocamentos operados, vemos irromper no seio da Constituição
de 1969 dois sentidos novos. O primeiro fixa pela primeira vez o prazo máximo de
validade do concurso, que não pode passar de quatro anos contados a partir da data da
homologação (art. 97, § 3º). O segundo eleva o instituto do concurso público da posição
de procedimento para a posição de princípio a ser adotado pela legislação de ensino (art.
176, § 3º, inciso VI). Assim, o provimento dos cargos de carreira do magistério oficial,
como já sinalizamos acima, depende de concurso público prévio para que seja legítimo.
Como vimos no item precedente, a Lei no 1.711 de 28 de outubro de 1952, que
estabeleceu o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União, embora tenha feito
sistematizações acerca do concurso, deixou lacunas sobre a maneira como a
141
administração deveria proceder no processo de seleção99
. Para preencher essas lacunas e
outras deixadas até então pela legislação, o Decreto nº 55.003 de 13 de novembro de
1964 (já revogado por decreto em 9 de maio de 1991) constitui, para nós, o primeiro
grande ato normativo a dispor exclusivamente sobre concurso e critérios de nomeação
dos aprovados. Esse decreto dispõe sobre as normas destinadas a disciplinar o ingresso
em cargos públicos e a nomeação de candidatos habilitados em concurso.
Logo no início desse ato normativo decretado pelo Presidente da República,
retoma-se o princípio já instituído: o de que o ingresso em caráter efetivo nos cargos
públicos depende de prévia habilitação em concurso público de provas ou de provas e
títulos (art. 1º). Para tanto, o decreto delega ao DASP – Departamento Administrativo
do Serviço Público, que, como já vimos, foi criado em 1938 – a realização de todo
concurso público, seja por iniciativa do próprio DASP ou mediante solicitação dos
órgãos interessados.
Vemos, nesse decreto, um respeito singular aos direitos adquiridos pelos
candidatos habilitados em concurso. O artigo 1º, § 2º, determinava que, havendo
candidato habilitado em concurso para determinado cargo, as vagas existentes não
podiam ser providas em caráter interino, devendo o candidato habilitado ser convocado
para ocupar o posto. E, caso houvesse cargo ocupado interinamente, os interinos tinham
que ser exonerados dentro do prazo de 60 dias contados da homologação do concurso,
de modo que a vaga fosse por direito destinada àquele que se habilitou em concurso. A
nomeação dos aprovados devia ser, de acordo com o decreto, simultânea à exoneração
dos interinos (art. 2º).
Outro traço importante que devemos notar diz respeito à comprovação da
habilitação profissional específica para dado cargo. O artigo 3º do decreto disciplina que
a investidura no cargo somente pode ocorrer mediante a apresentação do respectivo
diploma, mas determina que isso deve ser expresso no termo de posse, fase final do ato
de investidura. Essa perspectiva criada em 1964 é até hoje utilizada na administração
pública.
Outro decreto que dispõe sobre concurso, também editado durante a ditadura
militar, é o Decreto no 86.364 de 14 de setembro de 1981, que dispõe sobre concursos
públicos e provas de seleção para ingresso nos órgãos e entidades da Administração
Federal. Há um novo sentido irrompendo no seio do que já estava estabelecido sobre a
99
Entendemos que isso resulta do fato de a Lei nº 1.711 de 28 de outubro de 1952 não ter como objeto
específico o concurso, mas a organização geral do funcionalismo público federal.
142
inscrição em concurso público. O artigo 2º determina que, no ato da inscrição, o
candidato deve apenas apresentar documento oficial de identidade e firmar declaração
de que possui os demais documentos comprobatórios das condições exigidas para a
inscrição. A apresentação desses documentos só se faz depois, caso o candidato seja
aprovado, no momento prévio à posse. Desde então, portanto, a comprovação dos
requisitos para a investidura em cargo público fica atrelada ao momento da posse.
Entre as leis ordinárias produzidas durante o regime militar, destacamos em
nosso dispositivo de arquivo a Lei no
4.737 de 15 de julho de 1965 em virtude do que
dispõe sobre o atendimento de preceitos vinculados à problemática do concurso.
Atualmente, em todo edital de concurso público, um dos requisitos exigidos para a
investidura no cargo é “estar em dia com as obrigações eleitorais”. Esse requisito
encontra ressonância na lei em foco, que instituiu o Código Eleitoral brasileiro. O inciso
I do § 1º do artigo 7º estatui que o candidato que não provar que votou ou justificou a
impossibilidade de votar na última eleição fica impossibilitado de inscrever-se em
concurso para cargo ou função pública, investir-se ou empossar-se neles. Portanto, a
quitação das obrigações com a Justiça Eleitoral, nessa época, impedia o candidato de se
inscrever no concurso. Tal prática, entretanto, não se mantém atualmente. Hoje, o
candidato deve comprovar esse requisito no ato da posse.
4.2.6 O concurso público na República Federativa do Brasil
A eleição indireta de Tancredo Neves em 15 de janeiro de 1985 marcou o fim do
regime militar implantado em 1964, e a reassunção do poder pelos civis deu início ao
processo de redemocratização do país. A democracia pela qual o país clamava só veio a
se firmar em 1988 com a promulgação da Constituição da República Federativa do
Brasil, em vigor até os dias de hoje.
No lapso temporal entre 1985 e 1988 houve uma série de acontecimentos que
indicam a maneira como se deu a redemocratização. A chapa que concorria à
Presidência da República formada por Tancredo Neves, candidato a presidente, e José
Sarney, vice-presidente, foi eleita por um colégio eleitoral constituído por parlamentares
do Senado e da Câmara Federal. Tancredo não chegou a assumir o cargo em função de
sua morte em 21 de abril de 1985, ficando o posto presidencial destinado a Sarney.
Durante seu mandato, houve o restabelecimento das eleições diretas, as quais já eram
exigidas pelo povo no fim da ditadura. Mas o principal ato político daquele período foi
143
a Mensagem no 48 de 28 de junho de 1985 enviada pelo presidente em exercício para o
Congresso Nacional pela qual ele convocava uma Assembleia Nacional Constituinte
(ANC), que foi instalada em 1º de fevereiro de 1987. Em 5 de outubro de 1988 foi
promulgada a atual Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), a
Constituição Cidadão, como foi chamada por Ulysses Guimarães, presidente da ANC.
A Constituição de 1988 entra no cenário político dos anos de 1980 com o
objetivo de resgatar o povo das condições sociais em que fora deixado pelos mais de
vinte anos de ditadura. A intenção do poder constituinte que culminou com a nova Carta
Magna vem inscrita em seu preâmbulo:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia
Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado
a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça
como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem
interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,
promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO
DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
Visando ao atendimento, de um lado, dos direitos sociais e individuais e, de
outro, dos princípios instituídos pela nova Constituição, em especial o princípio da
igualdade e outros princípios expressos na Lei Maior (legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência)100
, o novo Estado Democrático permitiu amplo
desenvolvimento do estatuto do concurso público. Os últimos trinta anos constituem
inegavelmente o período de maior atividade legislativa acerca de concurso.
Julgamos oportuno retomar o que falamos anteriormente sobre a construção da
classe burguesa no Brasil. Dissemos que o Estado burguês, para manter sua relação de
produção, instala, por meio dos seus aparelhos ideológicos (em especial pelo Direito), a
ilusão de igualdade, para mascarar ou apagar as diferenças, quando, de fato, mantém
essas diferenças valendo-se do próprio Direito. O Estado burguês busca, assim, uma
harmonização com o povo, com a classe dominada, para melhor assujeitá-la. Como
afirma Gomes (2015, p. 44), “com o objetivo de ascender ao poder, a burguesia se
empenha em uma relação popular” e, assim, “estabelece-se o sujeito-de-direito sob a
100
Os princípios constitucionais expressos estão no artigo 37 da CRFB/1988: “A administração pública
direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também,
ao seguinte: (...)”.
144
égide da liberdade e igualdade como busca incessante, apagando a desigualdade
prevalente e visando à legitimação de uma desigualdade”.
Compreendemos que, partir dos anos de 1980, com a redemocratização do
Brasil, a criação de um novo Estado – o Estado Democrático, como afirma o preâmbulo
da Constituição – terá como um dos principais objetivos (para não dizer o principal) a
ampliação e perpetuação da burguesia no país. Isso se tornará visível pela expressiva
política de inclusão das minorias produzida no novo cenário legislativo a ser
configurado após a promulgação da Constituição de 1988. Nunca, na história do país, os
atos normativos trataram tanto sobre direitos sociais e individuais, liberdades, bem-
estar, igualdade, justiça, sociedade fraterna, sociedade despida de preconceitos como
tratarão a partir de 1988.
As referências às noções de “liberdade” e “livre” (sujeito livre) nunca foram, em
nossa história política, tão bem marcadas como o serão na Nova República. Vale trazer
de novo o levantamento realizado por Sämy (2016) sobre o emprego dessas palavras na
Constituição de 1988. “Liberdade” configura 17 vezes; “livre”, 28. São, ao todo, 45
referências expressas a uma concepção de liberdade; por outro lado, não há nenhuma
referência explícita à submissão no texto constitucional. É por isso que entendemos a
criação do Estado Democrático como uma forma de ampliar e perpetuar a burguesia e,
para isso, o caminho seria criar um conjunto de ilusões que deixassem o sujeito ao
mesmo tempo livre e submisso às leis do Estado.
No tocante ao concurso público, veremos, a partir do exame dos atos normativos
que pinçamos para a construção do nosso dispositivo de arquivo, o surgimento de
diferentes normas que visam assegurar a igualdade e a liberdade como buscas
incessantes do Novo Estado em prol do povo, com o objetivo de apagar as
desigualdades quando, de fato, legitima-se a desigualdade.
Em razão da falta de tempo e espaço físico hábeis para tratar, nesta tese, de todos
os atos normativos referentes a concurso público que foram produzidos a partir de 1988,
recortamos em nosso dispositivo de arquivo apenas aqueles que trazem um sentido
novo, que opera deslocamentos em relação ao que já estava sedimentado.
Comecemos pelas disposições previstas na carta constitucional.
O artigo 37 da Constituição de 1988 é decisivo para a reafirmação do concurso.
No inciso II desse artigo, o constituinte manteve a perspectiva de que a investidura em
cargos, empregos e funções públicas depende de prévia aprovação em concurso público
de provas ou de provas e títulos. Além disso, o mesmo artigo determina, no inciso III,
145
que o prazo de validade do concurso é de até dois anos, prorrogável uma única vez por
igual período. O inciso IV traz uma inovação para assegurar os direitos dos candidatos
aprovados em dado concurso: durante o prazo improrrogável previsto no edital de
convocação, o aprovado em concurso público é convocado com prioridade sobre novos
concursados para assumir o cargo.
Embora a regra do concurso seja aplicada pela Constituição para a seleção de
pessoal para todos os cargos, empregos e funções públicas, o constituinte discriminou
no corpo textual da Lei Maior os cargos que devem ser sempre providos por concurso.
São os seguintes casos: (a) para ingresso na carreira da magistratura (art. 93, I); (b) para
cargos dos tribunais, exceto os de confiança (art. 96, I, e); (c) para o ingresso na carreira
do Ministério Público (art. 129, § 3º); (d) para ingresso na carreira da Advocacia-Geral
da União (art. 131, § 2º); (e) para os cargos de procuradores dos Estados e do Distrito
Federal (art. 132); (f) para a Defensoria Pública (artigo 134, § 1º); e (g) para o
magistério público.
Outra inovação diz respeito ao momento em que o servidor adquire estabilidade.
A nova Constituição estatui, no artigo 41, que os servidores nomeados para cargo de
provimento efetivo em razão de concurso se tornam estáveis após três anos de efetivo
exercício. O prazo de três anos não foi previsto, entretanto, no texto constitucional
originário, o qual mantinha a previsão de dois anos para a aquisição de estabilidade. Foi
com a Emenda Constitucional no 19 de 1998 que o prazo deslocou de dois para três
anos, período considerado mais razoável para a administração avaliar o desempenho do
servidor, posto em condição de estágio probatório.
Entre os atos normativos do nosso ordenamento jurídico situados abaixo da
Constituição Federal, encontramos leis ordinárias, decretos e projetos de lei que trazem
informações importantes acerca do concurso. Destacaremos, primeiramente, a Lei no
8.112 de 11 de dezembro de 1990, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores
públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Paralelamente
teremos que comentar outras normas em razão dos princípios instituídos pelo estatuto
dos servidores federais.
Podemos afirmar que a maior inovação desta lei reside na reserva de percentual
de vagas para portadores de deficiência. Essa previsão está inscrita no § 2º do artigo 5º
da lei, que assim determina: “Às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o
direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições
sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão
146
reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso”. Embora antes
da lei nº 8.112/1990 já houvesse norma101
que proibisse criar obstáculos à inscrição em
concurso público de pessoa portadora de deficiência, o que já era alguma garantia, foi o
estatuto dos servidores federais a primeira grande norma a zelar por deficientes em
processo seletivo.
Será, entretanto, por meio do Decreto no 3.298 de 20 de dezembro de 1999, que
os portadores de necessidades especiais (PNE) ganharão maior proteção. A propósito,
esse decreto e a lei nº 8.112/90 são sempre citados no corpo textual de editais ao se
tratar sobre as vagas destinadas aos PNE. O decreto veio a desfazer qualquer equívoco
que a lei 8.112 possa ter deixado aberto, especialmente no que diz respeito ao percentual
de vagas reservadas. A lei 8.112 determina que fique na reserva até 20% das vagas, mas
não define um mínimo. Desse modo, um órgão poderia prever apenas 1%. Para que isso
não acontecesse, o decreto 3.298/1999 estipulou, em seu artigo 37, § 1º, que deve ficar
reservado um percentual mínimo de 5%. Estatuiu ainda que, se com a aplicação do
percentual previsto em lei, o resultado for número fracionado, a administração deve
arredondar para o primeiro número inteiro subsequente. Com o intuito de assegurar
vagas aos PNE, o decreto 3.298/1999 chegou a determinar o que deve vir a constar no
corpo textual dos editais de concurso. De acordo com o artigo 39 do decreto:
Art. 39. Os editais de concursos públicos deverão conter:
I - o número de vagas existentes, bem como o total correspondente à
reserva destinada à pessoa portadora de deficiência;
II - as atribuições e tarefas essenciais dos cargos;
III - previsão de adaptação das provas, do curso de formação e do
estágio probatório, conforme a deficiência do candidato; e
IV - exigência de apresentação, pelo candidato portador de
deficiência, no ato da inscrição, de laudo médico atestando a espécie e
o grau ou nível da deficiência, com expressa referência ao código
correspondente da Classificação Internacional de Doença - CID, bem
como a provável causa da deficiência.
Outra lei que vem reiteradamente expressa no texto de edital é a de número
13.146 de 6 de julho de 2015, que ficou referida na literatura como Estatuto da Pessoa
com Deficiência. O inciso II do artigo 8º eleva à condição de crime, punível com
101
Confira como exemplo a lei 7.853 de 24/10/1989. Essa lei proíbe criar obstáculos à admissão de
pessoal portador de deficiência, mas não institui nenhum percentual que a Administração Pública deva
reservar para PNE.
147
reclusão de dois a cinco anos e multa, qualquer tentativa por parte da Administração de
criar obstáculos à inscrição de qualquer pessoa em razão de sua deficiência.
Precisamos retornar agora à lei nº 8.112/1990, pois ela prevê mais um meio de o
Estado assegurar ao povo condições de igualdade. Trata-se da hipótese de isenção da
taxa de inscrição em concurso público, que vem ressalvada no artigo 11. De fato, essa
previsão não pode ser vista como um acontecimento produzido pela lei 8.112/90, que
não tratou especificamente, em nenhuma cláusula, sobre a hipótese de isenção, tendo
feito apenas uma ressalva no final do artigo 11. Deve-se à Lei nº 9.527, de 10/12/97,
que deu nova redação a algumas cláusulas do estatuto do servidor federal e veio a
prever a isenção do taxa para aqueles que comprovem insuficiência de recursos
financeiros.
Após essa previsão legal, surgiram três atos normativos para disciplinar a
isenção do valor da taxa de inscrição: o Decreto no 6.135/2007, o Decreto n
o 6.593/2008
e a Lei no
13.656/2018, todos recorrentemente referidos nos textos de editais. O
primeiro não se refere especificamente a concurso, nem à isenção de taxa; apenas dispõe
sobre o CadÚnico (Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal), que,
de acordo com o artigo 2º, é “um instrumento de identificação e caracterização sócio-
econômica das famílias brasileiras de baixa renda, a ser obrigatoriamente utilizado para
seleção de beneficiários e integração de programas sociais do Governo Federal voltados
ao atendimento desse público”. Por meio desse comando, todo edital de concurso
passou a estabelecer que qualquer cidadão inscrito no CadÚnico fique isento do
pagamento da taxa de inscrição.
O Decreto no
6.593/2008 desempenhou papel importante nesse cenário, porque
veio a regulamentar o artigo 11 da Lei nº 8.112/1990 (com sua redação alterada pela Lei
nº 9.527/97), quanto à isenção de pagamento de taxa de inscrição em concursos
públicos realizados no âmbito do Poder Executivo federal. Esse decreto sinaliza
explicitamente, no artigo 1º, que os editais de concurso para órgãos federais devem
prever a possibilidade de isenção de taxa de inscrição102
.
A Lei no
13.656 de 30 de abril de 2018, recentemente criada, veio a ampliar a
possibilidade de isenção. Por meio dessa lei, ficam isentos não apenas os cidadãos que
comprovem hipossuficiência financeira, mas também os doadores de medula óssea em
entidades reconhecidas pelo Ministério da Saúde (artigo 1º, inciso II). Desse modo, de
102
Simetricamente, os Estados e os municípios passaram a fazer o mesmo, fundamentados em legislação
produzida por esses entes federativos, além da disponibilizada em âmbito federal.
148
acordo com a nova lei, todo edital de concurso público federal deve trazer essa previsão,
mencionando os critérios de isenção da taxa e, também, as sanções cabíveis para
candidatos que tentarem fraudar o processo. É importante salientar que o objetivo real
dessa lei é incentivar a doação de medula óssea e não desequilibrar as desigualdades
sociais.
Julgamos importante destacar por fim que a lei 8.112/1990 estabelece
explicitamente os “requisitos básicos para investidura”, sem fechar um rol taxativo de
exigências, uma vez que, dependendo da natureza do cargo, outros podem vir a ser
exigidos no certame. É importante destacar essa previsão em lei, porque tais condições
passam a compor cláusulas de editais de concurso; em todo edital, há um item para
dispor sobre “requisitos para investidura”. De acordo com o artigo 5º dessa lei, são os
seguintes os requisitos: nacionalidade brasileira, gozo dos direitos políticos, quitação
com as obrigações militares e eleitorais, nível de escolaridade exigido para o exercício
do cargo, idade mínima de 18 anos, aptidão física e mental.
Devemos trazer também para nossa descrição o que está disposto no artigo 27 da
Lei no
10.741 de 1º de outubro de 2003 – Estatuto do Idoso –, que consagra importante
proteção à admissão do idoso em qualquer trabalho ou emprego. Segundo a lei, fica
proibida, inclusive para concurso, a discriminação e a fixação de limite máximo de
idade, a não ser quando a natureza do cargo o exigir. Além do mais, esse dispositivo
legal institui a idade como o primeiro critério de desempate em concurso público,
ficando preferido o candidato de maior idade.
Um dos atos normativos mais importantes para a compreensão da construção de
editais é o Decreto no 6.944 de 21 de agosto de 2009 por dispor sobre normas gerais
relativas a concurso público. O que merece nota é o fato de essa norma reservar uma
seção inteira (Seção II, do Capítulo II) para tratar especificamente sobre o Edital de
Concurso Público. A Administração Pública fica obrigada a especificar no corpo do
edital um conjunto mínimo de informações, as quais são aludidas pelo decreto103
, com o
103
De acordo com o artigo 19, o edital dever ter, no mínimo, as seguintes informações: I - identificação
da instituição realizadora do certame e do órgão ou entidade que o promove; II - menção ao ato
ministerial que autorizar a realização do concurso público, quando for o caso; III - número de cargos ou
empregos públicos a serem providos; IV - quantitativo de cargos ou empregos reservados às pessoas com
deficiência e critérios para sua admissão; V - denominação do cargo ou emprego público, a classe de
ingresso e a remuneração inicial, discriminando-se as parcelas que a compõem; VI - lei de criação do
cargo, emprego público ou carreira, e seus regulamentos; VII - descrição das atribuições do cargo ou
emprego público; VIII - indicação do nível de escolaridade exigido para a posse no cargo ou emprego;
IX - indicação precisa dos locais, horários e procedimentos de inscrição, bem como das formalidades para
sua confirmação; X - valor da taxa de inscrição e hipóteses de isenção; XI - orientações para a
149
objetivo de tornar o processo de seleção justo para ambas as partes, Administração e
administrados.
Ponto importante a ser destacado no decreto diz respeito ao princípio da
publicidade do edital. O decreto determina, em seu artigo 18, que todo edital deve ser
publicado integralmente no Diário Oficial da União (DOU) com antecedência mínima
de sessenta dias104
da realização da primeira prova e, também, deve ser divulgado no
sítio do órgão que fará o concurso e no sítio da instituição que executará o certame.
Além disso, fica determinado que qualquer alteração no edital deve ser publicada no
DOU e divulgada no órgão e na instituição executora.
Com o objetivo de desfazer as desigualdades historicamente construídas entre
brancos e negros, em 2014 entrou em vigor a Lei no 12.990, que reserva aos negros 20%
das vagas oferecidas nos concursos públicos federais. Essa reserva, de acordo com o §
1º do artigo 1º, deve ser feita sempre que o quantitativo de vagas oferecidas for maior
ou igual a 3 (três). Se o resultado da aplicação dessa regra for número fracionado, ele
deve ser arredondado ou para o primeiro número inteiro subsequente, caso a fração seja
maior ou igual a 0,5, ou para o primeiro número inteiro inferior, se a fração for menor
que 0,5.
Para finalizar nossa descrição sobre o tratamento do concurso público na atual
República, trazemos para o leitor algumas considerações sobre o Projeto de Lei do
Senado (PLS) 92/2000 – continuado na Câmara dos Deputados como Projeto de Lei
(PL) 252/2003 – que visa implantar uma Lei Geral dos Concursos Públicos a ser
aplicada por todos os órgãos vinculados à estrutura administrativa da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para a seleção de pessoal. Conforme
preceitua o artigo 1º desse PL, o objetivo é estabelecer “normas gerais sobre a
apresentação do requerimento de isenção da taxa de inscrição, conforme legislação aplicável; XII -
indicação da documentação a ser apresentada no ato de inscrição e quando da realização das provas, bem
como do material de uso não permitido nesta fase; XIII - enunciação precisa das disciplinas das provas e
dos eventuais agrupamentos de provas; XIV - indicação das prováveis datas de realização das provas;
XV - número de etapas do concurso público, com indicação das respectivas fases, seu caráter eliminatório
ou eliminatório e classificatório, e indicativo sobre a existência e condições do curso de formação, se for
o caso; XVI - informação de que haverá gravação em caso de prova oral ou defesa de memorial; XVII -
explicitação detalhada da metodologia para classificação no concurso público; XVIII - exigência, quando
cabível, de exames médicos específicos para a carreira ou de exame psicotécnico ou sindicância da vida
pregressa; XIX - regulamentação dos meios de aferição do desempenho do candidato nas provas; XX -
fixação do prazo de validade do concurso e da possibilidade de sua prorrogação; e XXI - disposições
sobre o processo de elaboração, apresentação, julgamento, decisão e conhecimento do resultado de
recursos.
104
O § 2o do artigo 18, entretanto, prevê esse prazo pode ser reduzido mediante ato motivado da
autoridade competente pela realização do concurso público.
150
realização de concursos públicos de provas ou de provas e títulos no âmbito da
administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios”.
É importante destacar uma breve história sobre esse Projeto de Lei105
. A
iniciativa de elaborar um conjunto de normas gerais relativas a concursos públicos
nasceu no âmbito do Senado Federal, com o Projeto de Lei do Senado 92/2000, de
autoria do senador Jorge Bornhausen. O projeto tramitou no Senado do dia 12/04/2000
ao dia 06/03/2003, quando foi remetido à Câmara dos Deputados, casa em que passou a
tramitar com a designação/numeração Projeto de Lei 252/2003.
O que chama a atenção é o fato de esse Projeto de Lei, que foi efetivamente
apresentado à Câmara dos Deputados em Sessão Plenária do dia 07/03/2003, ainda vir
tramitando no Congresso Nacional sem previsão de aprovação definitiva. Atualmente, o
sítio oficial da Câmara destaca a seguinte situação do processo: “Aguardando Parecer
do Relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC)”106
. Nesse
ínterim de 15 anos, foram apensados ao PL 252/2003 outros 41 projetos de lei que
também versam sobre concurso público. A discussão é ampla, pois requer de ambas as
Casas Legislativas os cuidados necessários à manutenção da ordem jurídica ao se
colocar em jogo a tensão entre administração e administrados.
Portanto, é fato que ainda não dispomos de uma Lei Geral de Concursos
implantada em âmbito federal, valendo os princípios jurídicos implantados por leis
esparsas como as que comentamos anteriormente. Diante da morosidade das Câmaras
federais, o Distrito Federal e alguns Estados já passaram à frente e editaram suas
próprias normas gerais relativas a concursos públicos. Fizemos uma busca pelos sítios
eletrônicos das casas legislativas estaduais e distrital e encontramos as seguintes leis em
vigor nos respectivos entes federativos: (a) Lei no 4.949, de 15/10/2012, que estabelece
normas gerais para realização de concurso público pela administração direta, autárquica
e fundacional do Distrito Federal; (b) Lei no 7.858, de 28/12/2016, que dispõe sobre
normas relativas a concurso público pela Administração Pública do Estado de Alagoas;
(c) Lei no 19.587, de 10/01/2017, que estabelece normas gerais para a realização de
concursos públicos no âmbito da Administração Pública do Estado de Goiás; e (d) Lei
105
Reconstruímos essa breve história com base em informações dispostas sobre as tramitações de ambos
Projetos de Lei disponíveis em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/43692> e
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=105464>. 106
Confira em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=105464>.
Nossa última consulta foi no dia 23/11/2018.
151
no 1.172, de 10/04/2017, que estatui normas para concurso público no Estado de
Roraima.
Nota-se que todas essas leis mantêm entre si e o PL 252/2003 uma espécie de
repetição técnica, disciplinando cada conteúdo referente a concurso basicamente com
os mesmos dizeres. Por essa razão, para evitar redundância, destacaremos os princípios
instituídos apenas pelo PL 252/2003, inclusive para não nos afastarmos
metodologicamente do nosso gesto de leitura, que incide sobre a legislação produzida
em âmbito federal. Devemos frisar também que recortamos apenas aquilo que julgamos
importante para a análise de editais de concurso público.
O primeiro aspecto que deve ser notado no Projeto de Lei diz respeito à reserva
de um capítulo inteiro para tratar do EDITAL. O artigo 5º estatui que o edital é o
instrumento vinculante da administração pública e, por isso, é de cumprimento
obrigatório. Isso decorre de um princípio já instituído em nosso ordenamento jurídico: o
princípio da vinculação ao edital ou princípio da vinculação ao instrumento
convocatório, pelo qual tanto a administração quanto os administrados ficam vinculados
às regras estabelecidas no edital. Daí decorre o aforismo: “o edital é a lei do concurso
público”. Outra característica a que o artigo 5º se refere é a de que o edital deve ser
escrito de forma clara e objetiva para possibilitar a compreensão de seu conteúdo pelos
candidatos.
O artigo 5º faz menção expressa também a dois preceitos importantes que devem
estar relacionados ao edital: sua publicidade e seu conteúdo mínimo. O § 1º do artigo 5º
estabelece que, por meio do princípio da publicidade, a administração deve buscar a
máxima divulgação de um concurso, inclusive pela imprensa oficial. A publicidade se
aplica também, de acordo com o artigo 6º, a quaisquer alterações produzidas no edital,
as quais devem ser divulgadas tanto na imprensa oficial quanto nos jornais de grande
circulação. Ainda sobre publicidade, o PL destaca que o edital deve ser publicado com a
antecedência mínima de 60 dias em relação à primeira prova (art. 7º).
O § 3º do artigo 5º determina as informações mínimas que devem constar do
edital, sob pena de ser declarada sua nulidade. Em razão do teor dessas informações
mínimas e sua relativa importância para nossa pesquisa, nós as destacamos a seguir.
Assim versa o § 3º do artigo 5º:
O conteúdo mínimo do edital, sob pena de nulidade, é composto de: I
– identificação da banca realizadora do certame e do órgão que o
promove; II – identificação do cargo, suas atribuições, quantidade e
152
vencimentos; III – indicação do nível de escolaridade exigido para a
posse no cargo; IV – indicação do local e órgão de lotação dos
aprovados; V – indicação precisa dos locais e procedimentos de
inscrição, bem como das formalidades confirmatórias dessa; VI –
indicação dos critérios de pontuação e contagem de pontos nas provas;
VII – indicação do peso relativo de cada prova; VIII – enumeração
precisa das matérias das provas, dos eventuais agrupamentos de
provas e das datas de suas realizações; IX – indicação da matéria
objeto de cada prova, de forma a permitir ao candidato a perfeita
compreensão do conteúdo programático que será exigido; X –
regulamentação dos mecanismos de divulgação dos resultados, com
datas, locais e horários; XI – regulamentação do processo de
elaboração, apresentação, julgamento, decisão e conhecimento de
resultado de recursos; XII – fixação do prazo inicial de validade e da
possibilidade de sua prorrogação; XIII – lotação inicial dos aprovados
e disciplina objetiva das hipóteses de remoção; XIV – percentual de
cargos ou empregos reservados às pessoas portadoras de deficiência e
critérios para sua admissão.
Preceito importante que deve ser destacado do PL 252/2003 vem inscrito no §
13, que determina que os pré-requisitos escolaridade mínima e qualificação profissional
subjetiva devem ser comprovados pelo candidato no ato da posse, ficando vedada a
exigência de comprovação no momento da inscrição.
Outro aspecto do PL 252/2003 que merece nota é a reserva de um capítulo
inteiro para dispor sobre INSCRIÇÃO. Atualmente, um dos pontos mais controversos
em concurso é a questão da devolução da taxa de inscrição. O artigo 11, § 2º, do PL
determina que o valor relativo à inscrição deve ser devolvido sempre que ocorra a
anulação do concurso por qualquer causa. Além disso, fica estabelecido que as
inscrições, quando presenciais, devem ser recebidas em locais de fácil acesso e em
período e horário que facilitem sua realização pelos interessados (art. 12).
Mais um sentido instituído pelo PL que vimos comentando vem inscrito do
artigo 56 ao 63, que versam sobre recursos. Fica estabelecido que em hipótese alguma o
edital pode prever cláusula que impeça ou crie obstáculos à interposição de recursos. O
PL frisa ainda que o prazo para recurso não pode ser inferior a 3 (três) dias úteis.
Por fim, destacamos um dos pontos mais controversos em concursos públicos
que também vem disciplinado no PL 252/2003: o direito à nomeação dos aprovados. O
artigo 64 preceitua que “os candidatos aprovados no concurso são detentores de mera
expectativa de direito à nomeação”. Entretanto, esse comando se aplica apenas aos
aprovados em número excedente ao de vagas previstas no edital, pois o § 1º do artigo 64
prevê a hipótese do direito subjetivo à nomeação dos candidatos aprovados dentro do
153
número de vagas oferecidas pelo instrumento de convocação. Nesse caso, a
administração fica obrigada a dar posse ao candidato aprovado nessa circunstância.
Como vimos anteriormente, o sentido de direito subjetivo à nomeação ronda a
administração pública desde os anos de 1930. Vimos que o Decreto nº 19.890 de 18 de
abril de 1931 previa esse direito ao candidato em concurso para o cargo de inspetor do
Colégio Pedro II que ficasse classificado dentro do número de vagas previstas em edital.
Atualmente, é essa a compreensão dos nossos tribunais. Trazemos, como exemplo, o
Recurso Extraordinário 598.099, julgado pelo Relator Ministro Gilmar Mendes, do
Supremo Tribunal Federal, do qual extraímos o trecho a seguir107
:
Dentro do prazo de validade do concurso, a Administração poderá
escolher o momento no qual realizará a nomeação, mas não poderá
dispor sobre a própria nomeação, a qual, de acordo com o edital, passa
a constituir um direito do concursando aprovado e, dessa forma, um
dever imposto ao poder público. Uma vez publicado o edital do
concurso com número específico de vagas, o ato da Administração
que declara os candidatos aprovados no certame cria um dever de
nomeação para a própria Administração e, portanto, um direito à
nomeação titularizado pelo candidato aprovado dentro desse número
de vagas.
Decisões como esta visam refrear práticas escusas da Administração Pública,
que, não raro, realiza concurso público oferecendo dado número de vagas e não convoca
nenhum dos aprovados classificados dentro das vagas ofertadas, apresentado
justificativas que fogem às determinações legais e decisões reiteradamente tomadas
pelos Tribunais Superiores.
Finalizamos este capítulo reiterando o que colocamos como nosso objetivo
principal ao produzi-lo, trazer ao leitor a memória política do Estado para mostrar-lhe
como essa forma de organização do poder veio tratando até a atualidade o
acontecimento concurso público. Passemos, agora, ao estudo das maneiras como o
edital de concurso público vem sendo textualizado nas práticas administrativas
produzidas por nosso Estado.
107
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumarioSumulas.asp?sumula=145
6>.
154
5. Considerações discursivas sobre o edital de concurso público
No capítulo precedente, tivemos a oportunidade de mostrar ao leitor como
diferentes sentidos para a prática do concurso público no Brasil foram sendo
constituídos e deslocados pela atividade legislativa do Estado em quase 200 anos de
história (1822-2018). Em diversos pontos desse recorte temporal, em razão dos anseios
da própria Administração e dos administrados, vimos sentidos previamente instituídos
serem deslocados visando à constituição de sentidos novos, tendo em vista a conjuntura
sócio-histórica e ideológica em cada período. Esse movimento que rompe com o
instituído para implementar novas significações teve sempre o mesmo objetivo:
produzir uma estabilidade nos sentidos (mesmo que transitória) e, assim, manter a
estabilidade jurídica entre as partes envolvidas.
Vimos também que o concurso público caminhou paulatinamente rumo a sua
institucionalização, de modo que, atualmente, ele é concebido como procedimento
obrigatório para o provimento dos cargos e empregos disponíveis em qualquer órgão
vinculado à administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, incluindo-se, nesse rol, os empregos disponíveis nas
empresas públicas e sociedades de economia mista, que pertencem à estrutura da
administração indireta.
Neste capítulo, trazemos algumas reflexões sobre o edital de concurso público a
partir da mobilização de conceitos oriundos da Análise de Discurso com o objetivo de
estabelecer a base para sustentar as análises empreendidas no capítulo seguinte. A
principal pergunta que nos fazemos aqui é: o que justificaria, em uma perspectiva
discursiva, em que se consideram os efeitos de sentidos entre os interlocutores, a origem
de litígios entre as partes envolvidas em um concurso público em função da maneira
como alguns enunciados são formulados em edital?
5.1 A formação discursiva edital de concurso público
Como vimos no capítulo 2, as concepções de formação ideológica (FI) e
formação discursiva (FD) estão na base das considerações feitas em Análise de Discurso
acerca dos efeitos de sentidos produzidos entre interlocutores, entendidos estes como
lugares historicamente determinados.
155
Com o intuito de justificar interpretações variadas para os mesmos enunciados
formulados em dado edital de concurso – uma interpretação por parte da Administração
e outro por parte dos administrados –, devemos partir de duas considerações prévias: (a)
uma FI é um conjunto de atitudes e representações que se relacionam de algum modo a
posições de classes em conflito; (b) uma FI comporta uma ou várias FDs interligadas
que determinam o que pode e deve ser dito.
Nossa tese é a de que Administração e administrados/candidatos, sujeitos na
relação editalícia, na condição de posições de classes em conflito, inscrevem-se em
formações ideológicas distintas, muito embora ambos devam, em princípio, zelar pelo
bem comum. A Administração Pública é uma atividade desenvolvida pelo Estado para
atingir o bem comum; por isso, deve desenvolver, por meio de seus órgãos, uma prática
administrativa que atenda aos interesses da coletividade, desvencilhada de quaisquer
vícios que ponham em risco a estabilidade jurídica entre as partes. Entretanto, não raro,
vemos órgãos públicos se valerem de meios obscuros para se manterem em sua posição
de império, estabelecendo regras que ofendem leis e princípios já instituídos. Em razão
disso, os administrados, diante dos usos excessivos (e abusivos) de poder que a
Administração pode vir a fazer, necessitam de um conjunto de instrumentos que
assegurem seus direitos historicamente construídos. Na prática, portanto, os interesses
desses dois polos nem sempre são os mesmos, o que os coloca em posições de classes
em conflito.
Entendemos ainda que cada uma dessas partes da relação editalícia apresenta, no
interior da FI em que se inscrevem, diversas FDs cada qual encerrando em seu campo os
elementos do domínio do saber que lhe são próprios. Dentre as FDs da Administração,
destacamos uma a que chamaremos a partir de agora de FDecp
(leia-se: formação
discursiva de edital de concurso público). Dentre as FDs do administrado/candidato,
destacamos a FDcand
(leia-se: formação discursiva dos candidatos em concurso
público). Para o leitor melhor visualizar o quadro teórico que pretendemos apresentar,
segue o esquema abaixo:
156
Administração Pública Administrado/candidato
Tentaremos apresentar, neste item, uma descrição da constituição da formação
discursiva de edital de concurso público, uma vez que constitui o edital nosso objeto de
estudo.
Seguindo a esteira de pensamento de Michel Pêcheux e os desenvolvimentos
propostos por Courtine (2014 [1981], 2016 [1982]) sobre a noção/relação entre
interdiscurso e formação discursiva, entendemos que a FDecp
, assim como toda FD, está
submetida originariamente à lei de desigualdade-contradição-subordinação, de modo
que seu interdiscurso – o todo complexo com dominante da formação discursiva
(PÊCHEUX, 2009 [1975], p. 149) – resulte da articulação contraditória da própria FDecp
com a FI em que está inscrita. Lembremo-nos de que, de acordo com Courtine (2016
[1982]), de início, ocorre a contradição entre o todo complexo com dominante da FD e
as atitudes e representações da FI em que se inscreve; em seguida, constitui-se o
interdiscurso daquela FD.
No interdiscurso da FDecp
, foi se constituindo historicamente um domínio do
saber próprio dessa formação discursiva, o qual é responsável pelo fechamento –
instável – de suas fronteiras, demarcando, assim, uma zona de repetibilidade em que
figuram seus elementos do saber. Devemos, portanto, destacar que as fronteiras da
FDecp
podem se deslocar, uma vez que, como toda FD, a FDecp
não funciona como um
bloco homogêneo e fechado de dizeres, mas como um espaço em que podem ser
incorporados elementos do saber oriundos de outras FDs.
Esse fenômeno de incorporação de elementos do saber de uma FD por outra
torna-se evidente na prática discursiva dos editais de concurso público quando vemos o
edital formular em seu corpo textual dizeres produzidos em outro lugar, em especial na
esfera legislativa. No capítulo anterior, mostramos como o Poder Legislativo atuou na
constituição histórica de dizeres que representavam tanto os anseios da Administração
FI
FDecp
FDx
FDy
FDx
FDy
FDcand
FI
157
quanto os dos administrados, de modo que ficasse estabelecida uma zona de
repetibilidade de sentidos que visava sempre à estabilidade jurídica. Tais dizeres
passaram a ser formulados, em editais de concurso, pelos órgãos públicos no exercício
de sua função administrativa.
Para ilustrar o que acabamos de expor, tomaremos como exemplo dois editais. O
primeiro é de 1823; o segundo, de 1838108
.
Como o leitor poderá notar, o primeiro edital, organizado com uma textualidade
mínima, se comparado com os atuais editais de concurso produzidos no Brasil, visava
tão somente dar publicidade aos interessados sobre os cargos públicos vagos e convocá-
los à concorrência. O segundo edital cumpre basicamente a mesma função. Mas há
dizeres formulados no interior deste edital que não estão presentes no primeiro. Dentre
eles, destacamos o seguinte trecho:
Os candidatos (...) deverão mostrar por documentos, e pelo exame,
que possuem os seguintes requisitos – a qualidade de Cidadão
Brasileiro – a idade de 18 anos – conhecimento da Grammatica da
Lingoa Nacional, e mormente da Orthografia – o das quatro
operações da Arithmetica – boa letra – robustez, e regularidade de
conduta.
108
Esses editais foram obtidos por meio da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. O primeiro edital
foi publicado no periódico Diário do Governo do Império do Brasil em 1º de julho de 1823, página 3. O
segundo foi publicado no periódico O Universal em 8 de outubro de 1838, páginas 3-4.
158
No capítulo anterior, em que apresentamos os dispositivos legais que foram
sendo instituídos pela atividade legislativa no transcurso do tempo, destacamos a Lei de
15 de outubro de 1827, na qual os artigos 9º e 12 determinavam os pré-requisitos que os
candidatos deviam atender para participar da examinação: deviam ser cidadãos
brasileiros, em gozo de seus direitos civis e políticos, sem nota da regularidade de sua
conduta e com reconhecida honestidade. Pelo recorte que fizemos na legislação
brasileira para a constituição do dispositivo de arquivo que nos permitiu reconhecer a
historicidade dos sentidos em editais, essa foi a primeira lei em que vimos ser instituído
um conjunto de pré-requisitos que os candidatos deviam atender para participar do
certame. Não temos, portanto, como afirmar categoricamente se antes de 1827 havia lei
que já impunha a comprovação desses requisitos.
O fato é que o edital de 1823, que reproduzimos acima, não formula nenhum
enunciado que crie esta perspectiva: necessidade de apresentar documentos para
comprovar o atendimento aos requisitos. Porém, o edital de 1838 já traz incorporado de
algum modo os mesmos dizeres instituídos pelo Poder Legislativo na Lei de 15 de
outubro de 1827. Esses pré-requisitos constituem desde então o domínio do saber e,
assim, o interdiscurso (memória discursiva) próprio da formação discursiva em que se
inscreve o concurso público, a FDecp
.
Partimos do princípio de que o conhecimento da memória do dizer inerente à
FDecp
nos permite, em uma análise das formulações atuais em edital de concurso (como
a que faremos no próximo capítulo), remeter o que é dito hoje à memória discursiva, a
uma filiação de dizeres, trazendo para o que é posto em análise sua historicidade.
Entendemos que todas as formulações produzidas hoje em edital podem ser remetidas a
uma memória, de modo que seja possível identificar tais formulações em sua
historicidade para, assim, analisar os deslocamentos de sentidos produzidos em cada
contexto sócio-histórico e ideológico.
Como não é possível, entretanto, produzir uma investigação sobre a
historicidade de todas as formulações contemporâneas em editais, em razão do escopo
deste trabalho, selecionamos um conjunto de enunciados que constituem pontos de
deriva dignos de observação. São os enunciados que, uma vez formulados em edital,
chocam-se com a memória discursiva da FDecp
, o que gera uma série de consequências
drásticas que vão desde os pedidos de impugnação aos de anulação de todo o certame.
Esses enunciados e os conflitos de sentido por eles produzidos serão apresentados e
159
discutidos no próximo capítulo. O que faremos aqui, repetimos, é apenas mostrar a
historicidade desses dizeres.
5.2 Historicidade das formulações analisadas
A análise a ser apresentada no próximo capítulo recai sobre 10 (dez) enunciados
recorrentes em edital de concurso público que, não raro, são objetos de questionamento
pela própria administração ou por candidatos, órgãos de classe, Ministério Público e
Poder Judiciário, em razão da forma irregular como foram formulados (irregular, porque
esses enunciados se chocam com a memória do dizer). São enunciados que dispõem
sobre: (a) momento de apresentação dos requisitos para a investidura; (b) período de
inscrição; (c) limitação temporal de cinco anos para os antecedentes criminais (entre os
requisitos para investidura); (d) devolução do valor da taxa de inscrição; (e) direito à
nomeação; (f) critérios de desempate; (g) vagas destinadas a portadores de necessidades
especiais; (h) prazo para recursos quanto às provas aplicadas; (i) ausência do programa
das provas; e (j) previsão de vagas para negros. Considerando os editais que formam o
Arquivo 2 - Edital, buscamos apresentar ao leitor a historicidade de cada dizer até o
ponto mais antigo da nossa linha do tempo (início do Brasil Imperial).
A. Sobre o momento de apresentação dos requisitos para a investidura
Desde o início do Império, a apresentação dos documentos que comprovavam o
atendimento aos requisitos mínimos exigidos para a investidura no cargo esteve atrelada
ao momento inicial do processo administrativo do concurso público. Nesse período, os
documentos que provavam os requisitos eram solicitados aos pretendentes no momento
da inscrição, para que estes fossem habilitados e admitidos ao concurso (à “oposição”,
como alguns editais se referiam).
Recortamos dos editais históricos que compõem nosso Arquivo 2 - Edital, as
formulações que enunciam essa perspectiva e as listamos abaixo (os grifos são nossos):
“(...) só podem ser admitidos á oposição os Cidadãos Brazileiros, que estiverem no gozo dos seus
direitos civis e politicos, sem nota na regularidade de sua conducta, cumpre que a habilitaçaõ consista
na apprezentaçaõ de documentos que provem taes qualidades.” [Edital de concurso de 1930]
“São condições necessarias á inscripção: apresentar requerimento em que demonstrem ter pelo menos
18 anos de idade (...)”.[Edital de concurso de 1893]
160
“São portanto convidados os pretendentes ao provimento (...) a apresentarem (...) seus requerimentos
[de inscrição] (...) instruídos com os seguintes documentos: auto de exame de sufficiencia e
calligraphia (...), folha corrida, certidão de edade (...)”.[Edital de concurso de 1900]
“Convido, por isso, aos que ao mesmo quiserem concorrer, a se inscreverem por meio de requerimento
(...) acompanhado de prova de goso dos direitos civis e políticos, folha corrida e quaesquer outros
documentos (...)”.[Edital de concurso de 1930]
“Serão admitidos a concurso (...) os candidatos de ambos os sexos que contarem com mais de 18 e
menos de 30 anos de idade em 18-8-45, data de encerramento das inscrições”. [Edital de concurso de
1945]
“Os requerimentos de inscrição serão instruídos com os seguintes documentos: certidão de idade,
atestado de bom comportamento, (...)”.[Edital de concurso de 1957]
“Ao inscrever-se o candidato deverá (...) apresentar os seguintes documentos: a) diploma de professor
do ensino primário (...)”. [Edital de concurso de 1969]
“Exibir no ato de inscrição: a) carteira ou cédula de identidade; b) título de eleitor; c) comprovante de
estar em dia com o Serviço Militar; d) comprovante de habilitação de nível superior (...)”. [Edital de
concurso de 1977]
Como o leitor pode observar, a prática discursiva adotada pela Administração
Pública, desde o início do Império até a época da Ditadura Militar, permitia ao sujeito-
enunciador do edital de concurso reproduzir a mesma perspectiva: exigir do candidato a
comprovação dos requisitos já no ato de inscrição. Essa perspectiva constitui para nós
um elemento do saber pertencente ao interdiscurso da FDecp
.
Tomando como base a teorização de Courtine (2016 [1982]), que assume a
existência de dois níveis de descrição de uma FD – o do enunciado [E] e o da
formulação [e] –, podemos afirmar que esse elemento do saber da FDecp
descrito aqui
constitui um enunciado [E], inerente à dimensão interdiscursiva da FDecp
, que funciona
como um “esquema geral” a reger a repetibilidade no interior de uma rede de
formulações. Por outro lado, cada formulação enunciada por uma forma-sujeito
específica de um edital constitui um [e], inerente à dimensão intradiscursiva da FDecp
.
Em outras palavras, esse elemento do saber constitui, no interior dessa formação
discursiva, um enunciado [E] que enseja, em cada ato de enunciação por uma forma-
sujeito, no plano intradiscursivo, diferentes formulações [e], todas filiadas à memória do
dizer. Os sentidos estabilizam-se; e, assim também, estabiliza-se a segurança jurídica
entre as partes.
Desse modo, tal elemento do saber [E] – exigência de requisitos no ato de
inscrição – estabiliza uma referência dentro de uma rede estratificada e desnivelada de
formulações. Cria-se, assim, um objeto de discurso, um pré-construído, que passa a
constituir a memória do dizer e a governar cada formulação em uma situação específica
161
de enunciação, quando dada forma-sujeito se apropria desse objeto de discurso [E], que
“fala antes e independentemente”, e a lineariza com uma sequência linguística,
produzindo dada formulação.
Os editais que analisamos nos permitem ver que essa prática de significação
manteve-se imóvel até os anos de 1970 (nossa última referência é o edital de 1977). A
FDecp
manteve estável o dizer em análise até então. A partir dos anos de 1980, como os
dados seguintes evidenciam, há um deslocamento de sentido. Os grifos ainda são
nossos.
“3. São condições de inscrição: a) ser brasileiro; ter idade superior a 18 anos; c) estar quite com as
obrigações eleitorais; d) estar em dia com o Serviço Militar, quando do sexo masculino (...). 4. Para inscrever-se, o candidato deverá, no período das inscrições, apresentar-se nos locais indicados
no item 1, munido de: a) cédula de identidade; b) comprovante de recolhimento do valor da taxa de
inscrição. 6. A aprovação da inscrição dependerá da apresentação pelo candidato, no ato da inscrição dos
documentos especificados no item 4. No ato da posse, o candidato deverá comprovar as demais
exigências”. [Edital de concurso de 1982]
“4. Requisitos: 4.1 - ser brasileiro, nato ou naturalizado, e estar em dia com as obrigações eleitorais e militares; (...) 4.6 - por ocasião da posse, será exigida a comprovação dos requisitos, importando sua não
apresentação em insubsistência de inscrição, nulidade da aprovação ou habilitação e perda dos direitos
decorrentes”. [Edital de concurso de 1989]
As formulações acima, de acordo com nossos dados, passam a ser produzidas a
partir dos anos de 1980. Mas o que justificaria a deriva de uma formulação para outra?
No capítulo anterior, mostramos ao leitor que, desde 1964, por meio do Decreto nº
55.003 de 13 de novembro de 1964 (período em que o país experimentava nova ditadura
militar), já havia dispositivo legal que determinava que a apresentação de documentos
(no caso deste decreto, o diploma) devesse ser feita no termo de posse, fase final do ato
de investidura. Tal determinação, entretanto, não produziu nenhum efeito, como
mostram os enunciados que extraímos dos editais de concurso de 1969 e 1977,
reproduzidos na página anterior, pelos quais o diploma já é exigido no ato de inscrição.
Referimo-nos também, no capítulo sobre história do concurso, ao Decreto no
86.364 de 14 de setembro de 1981, também editado durante a ditadura. O artigo 2º
determinava que, no ato da inscrição, o candidato devia apenas apresentar documento
oficial de identidade e firmar declaração de que possuía os demais documentos
comprobatórios das condições exigidas para a inscrição. A apresentação desses
documentos só era feita depois, no momento prévio à posse. Esse decreto parece ter
produzido maior efeito sobre os atos da administração, pois, como nossos dados
162
mostram, a partir do edital de 1982, assim passa a ser exigida a comprovação dos
requisitos.
Acreditamos que o deslocamento de sentidos operado aqui se justifique em razão
do contexto sócio-histórico e ideológico. Para nós, a deriva de uma formulação para
outra não ter sido operada efetivamente, pela prática administrativa, com o decreto de
1964 se justifica pelo fato de o país estar iniciando um regime militar. Por outro lado,
em 1981, quando a ditadura já mostrava as marcas do seu esgotamento, e o povo
clamava por uma nova constituinte na intenção de reaver direitos do cidadão que
haviam sido solapados, o Decreto no 86.364 passa produzir mais efeito, balançando os
sentidos enraizados pela administração, movimentando-os.
Considerando o princípio de que o fechamento de uma FD é sempre instável, é
inegável que houve, depois de 1981, uma movimentação nas fronteiras FDecp
, que
incorporou um dizer produzido anteriormente na esfera legislativa. Um novo enunciado
[E] passa, assim, a compor o interdiscurso dessa FD, ampliando seu domínio do saber, a
partir do qual inúmeras formulações [e] passam a ser produzidas pela forma-sujeito, em
uma nova rede de filiação de sentidos.
B. Sobre o período de inscrição
Os tribunais têm o entendimento de que deve haver um período de tempo
arrazoado, contado a partir da data de publicação do edital, para que os candidatos
possam realizar sua inscrição em um concurso. Isso decorre do princípio da
razoabilidade, pelo qual se impõe um limite à discricionariedade da Administração
Pública, buscando uma adequação entre os meios e os fins nos atos por ela praticados.
Muito embora não tenhamos encontrado em nosso Arquivo 1 – Legislação
nenhum ato normativo que, entre 1822 e 1850, tivesse disposto sobre o período de
inscrição em concurso público, os editais históricos que tomamos em análise indicam
que, nesse período, havia uma oscilação entre duas margens de tempo – 30 ou 60 dias –,
como mostram as formulações abaixo (grifos nossos):
“Todos os pertendentes aos mesmos logares dirigirám á sobredita Mesa os seos requerimentos dentro do
praso de trinta dias (...)”. [Edital de concurso de 1823]
“(...) fica aberto o concurso por espaço de sessenta dias para o provimento da cadeira de 1.as Letras
(...)”. [Edital de concurso de 1850]
163
Entretanto, como vimos no capítulo prévio, o Decreto N. 817 de 30 de agosto de
1851 trouxe alguma contribuição nesse sentido, fixando que os requerimentos de
inscrição deveriam ser apresentados no prazo de 60 (sessenta) dias. Assim, esse sentido
instituído na esfera legislativa parece ter sido incorporado pela FDecp
, constituindo mais
um enunciado [E] a compor o domínio do saber dessa formação discursiva. Uma análise
dos dizeres já produzidos no interior da FDecp
deixa evidente que, do Brasil Imperial até
a República Liberal, a oscilação entre esses dois lapsos temporais entra em jogo, no
nível intradiscursivo, em diferentes formulações de editais. É o que indicam os recortes
abaixo, somados aos anteriores:
“(...) fica marcado o prazo de 60 dias (...) para inscripção e processo de habilitação dos oppositores às
cadeiras (...)”. [Edital de concurso de 1882]
“(...) se acha aberta pelo prazo de 60 (sessenta) dias, contados desta data [26/10/1899], a inscripção para
o concurso ao cargo de professor provisório do Estado”. [Edital de concurso de 1899]
“(...) a contar de 15 do corrente mez, durante 40 dias, achar-se-á aberta (...) a inscripção para o concurso
ao provimento dos logares de carteiro (...) ”. [Edital de concurso de 1924]
“Fica nesta data aberto concurso, pelo prazo de (60) sessenta dias, para o provimento do alludido
officio”. [Edital de concurso de 1930]
“Os interessados poderão inscrever-se (...) no período de 16-7-45 a 18-8-45 (...)”. [Edital de concurso de
1945]
“Os requerimentos de inscrição devem ser apresentados (...) no período de 16 de setembro a 15 de
outubro (...)”. [Edital de concurso de 1957]
A partir dos anos de 1960, vemos outra prática de significação irromper no
contexto histórico-social da Ditadura Militar. O período destinado à inscrição é reduzido
consideravelmente, chegando a atingir menos de um terço do período mínimo até então
estipulado (30 dias). É o que mostram as formulações abaixo.
“As inscrições (...) serão feitas (...) no período de 29-12-69 a 9-1-70 (...)”. [Edital de concurso de 1969]
“(Das Inscrições) Ficarão abertas no período de 16 a 27 de agosto de 1982. [Edital de 1982]
“Inscrições: 1.1 - Período: de 08 a 30 de janeiro de 1990”. [Edital de concurso de 1989]
“2 – Das inscrições: 2.1 – Períodos: de 27 de setembro a 1º de outubro de 1993”. [Edital de concurso de 1993]
“A inscrição será efetuada (...) no período compreendido entre 10 horas do dia 28 de setembro de 2009
e 23h59min do dia 13 de outubro de 2009 (...)”. [Edital de concurso de 2009]
164
Acreditamos que a mudança drástica operada sobre essa perspectiva do período
de inscrição se deva aos avanços tecnológicos que o Brasil experimentou a partir da
segunda metade do século XX, ampliando consideravelmente os meios de comunicação,
o que fez tal perspectiva perdurar até os dias atuais, independentemente dos litígios que
vem provocando contemporaneamente. No próximo capítulo, voltaremos a esse ponto e
mostraremos as consequências da incorporação desse sentido novo à memória do dizer
da FDecp
, uma vez que tem produzido questionamentos do Judiciário face ao tão
reduzido tempo que alguns concursos impõem aos candidatos.
Para fechar este item, entendemos que tal prática de significação passou a
constituir mais um enunciado [E] inerente ao interdiscurso da FDecp
, um pré-construído
que vem governando, até hoje, a zona de repetibilidade, permitindo diferentes
formulações com prazo variável dentro da margem considerada (menos de 30 dias).
C. Sobre a limitação temporal de cinco anos dos antecedentes criminais como um dos
requisitos para investidura
A comprovada reputação ilibada é uma característica que a Administração
Pública vem perseguindo desde sempre nos processos de seleção de candidatos aos
cargos pertencentes à sua estrutura. Entre os editais históricos que assumimos em nosso
trabalho, desde o Brasil Imperial até a atual República Federativa do Brasil, a condição
de candidato probo sempre foi um requisito imposto pela prática discursiva da
Administração na elaboração de edital. Desse modo, para nós, essa perspectiva
engendra, no interior da FDecp
, mais um elemento do saber próprio do seu interdiscurso,
mais um enunciado [E] que dá margem a diferentes formulações do mesmo dizer
sedimentado. Os recortes abaixo demonstram essa prática discursiva (grifos nossos).
“Os candidatos (...) deverão mostrar por documentos (...) robustez, e regularidade de conduta”. [Edital
de concurso de 1838]
“São condições necessárias á inscripção: (...) ter boa conduta exihibindo fé”. [Edital de concurso de
1893]
“A inscripção se fará mediante requerimento (...) instruído de: (...) atestado de bom comportamento
passado por autoridade policial ou por duas pessoas de notória respeitabilidade (...)”. [Edital de
concurso de 1911]
“(...) a se inscreverem por meio de requerimento (...) acompanhado de (...) folha corrida (...)”. [Edital de
concurso de 1930]
“Os requerimentos de inscrição serão instruídos com os seguintes documentos: (...) b) atestado de bom
comportamento firmado por duas pessoas idôneas”. [Edital de concurso de 1957].
165
“Exibir no ato da inscrição: (...) f) certidões negativas da justiça comum, Justiça Federal e Justiça
Militar; g) folha corrida”. [Edital de concurso de 1977]
“4. Requisitos: 4.5 – ter boa conduta e idoneidade moral”. [Edital de concurso de 1989]
Todas as formulações acima revelam a necessidade de o candidato satisfazer à
mesma condição: possuir bons antecedentes. Entretanto, os editais que produziram tais
formulações silenciam uma informação importante: os documentos que provam que o
candidato possui bons antecedentes devem ser considerados retrospectivamente até que
ponto da linha do tempo?
A partir do momento em que o edital formula um enunciado estabelecendo a
necessidade de provar reputação ilibada, mas não indica um período mínimo
retrospectivo em que será considerada e avaliada a vida pregressa do candidato, o
silenciamento desse sentido cria uma espécie de pena de caráter perpétuo. Desse modo,
a Administração, em dado concurso, poderia vir a criar obstáculos para candidatos que,
em algum momento da vida, tivesse cometido ato ilícito, impossibilitando-o a participar
do certame.
Por essa razão, estamos observando contemporaneamente a constituição de um
novo sentido no interior da FDecp
, sentido este que, para nós, compõe outro enunciado
[E], um novo elemento do saber inerente a essa formação discursiva. Essa nova prática
de significação quebra o silenciamento que descrevemos acima e determina um lapso
temporal retrospectivo de 5 (cinco) anos para avaliar a vida pregressa dos candidatos.
Nós encontramos essa perspectiva na formulação a seguir (grifo nosso).
“O Edital de convocação para matrícula no Programa de Formação fixará prazo e local para que os
candidatos apresentem os documentos a seguir relacionados, indispensáveis à sindicância de vida
pregressa (...) : a) certidão dos setores de distribuição dos foros criminais da Justiça Federal, Estadual e Eleitoral
dos lugares em que tenha residido o candidato nos últimos 5 (cinco) anos; (...) [Edital de concurso de
2009].
D. Sobre a devolução do valor da taxa de inscrição
Outra formulação sempre prevista atualmente em editais de concurso público diz
respeito à devolução do valor da taxa de inscrição paga pelo candidato. Como veremos
no capítulo seguinte, formulações desse sentido têm sido constantes alvos de pedidos de
impugnação e anulação de edital.
166
Se tomarmos por base os recortes de editais apresentados abaixo, veremos que,
desde o período da Ditadura Militar109
até o início deste século, a perspectiva enunciada
fora a mesma: a de que a taxa referente à inscrição não seria devolvida em hipótese
alguma. O único edital desse período, dentro do nosso Arquivo 2 - Edital, a prever a
devolução foi o de 1977 (primeira formulação abaixo), considerando apenas uma
circunstância: caso o candidato não tivesse efetivado a inscrição.
A taxa de inscrição somente será devolvida se o candidato não tiver efetivado a inscrição. [Edital de
concurso de 1977]
Em nenhuma hipótese haverá devolução da importância paga a título de ressarcimento das despesas
(...) [Edital de concurso de 1989]
“Não haverá, em qualquer hipótese, devolução da referida taxa”. [Edital de concurso de 1993]
“O valor referente ao pagamento da taxa de inscrição não será devolvido em hipótese alguma”.
[Edital de concurso de 2001]
Por isso, entendemos que essa perspectiva constitui mais um elemento do saber
próprio da FDecp
, um enunciado [E] que permite diferentes formulações no plano
intradiscursivo. É, pois, mais um pré-construído, que está sempre já-lá na memória do
dizer e permite uma forma-sujeito dele se apropriar para produzir uma formulação
contemporânea em um edital.
As controvérsias acerca dessa perspectiva já produziram inúmeras disputas
judiciais entre candidatos e órgãos públicos. A Administração lançava um edital de
concurso, recolhia os valores da taxa de inscrição e, caso o concurso fosse anulado por
decisão judicial ou mesmo cancelado pela própria Administração por motivos de
conveniência, os candidatos não eram ressarcidos. É importante ressaltar que a
Administração Pública, com essa prática, comete um ato de enriquecimento ilícito às
custas do administrado.
As contendas judiciais e a consequente jurisprudência firmada pelos tribunais
fizeram irromper, em nossa atual conjuntura, um sentido novo que já constitui o
interdiscurso da FDecp
. Muitos editais (não todos, como veremos no próximo capítulo)
trazem formulações que preveem a devolução do valor da taxa de inscrição caso o
concurso venha a ser cancelado por conveniência ou interesse da Administração. É o
que nos deixa ver a formulação abaixo:
109
Foi somente a partir desse período que encontramos cláusulas em editais a dispor sobre devolução da
taxa de inscrição.
167
O valor da taxa de inscrição não será devolvido em hipótese alguma, salvo em caso de cancelamento
do concurso por conveniência ou interesse da Administração. [Edital de concurso de 2009]
E. Sobre o direito à nomeação
O direito à nomeação do candidato aprovado e classificado em concurso público
é outra formulação recorrente (e necessária) em editais. Pelos documentos de que
dispomos em nosso Arquivo 1 - Legislação, a enunciação desse direito se tornou uma
prática discursiva durante a República Liberal e vem sendo reproduzida até os dias de
hoje com novos contornos enunciativos.
O Arquivo 1 revela que, da República Liberal até o final da Ditadura Militar, as
administrações criaram a perspectiva de que os candidatos habilitados/classificados em
concurso eram nomeados na ordem de classificação. Entretanto, não determinavam, por
meio de nenhuma cláusula, que a habilitação e a classificação dentro do número de
vagas poderiam dar ao candidato o direito de ser efetivamente nomeado. Havia, pois,
um silenciamento nesse sentido. É o que indicam os recortes seguintes, que demonstram
a existência de outro enunciado [E] próprio da FDecp
:
Os candidatos habilitados serão nomeados na ordem da classificação obtida na localidade em que
tenham pleiteado aproveitamento (...) [Edital de concurso de 1945]
As nomeações obedecerão rigorosamente à ordem de classificação. [Edital de concurso 1957]
O provimento dos cargos obedecerá à ordem de classificação dos candidatos. [Edital de concurso de
1982]
É oportuno lembrar que, no capítulo anterior, mostramos que o princípio do
direito subjetivo à nomeação de candidato aprovado dentro do número de vagas
ofertadas já estava se institucionalizando em nossa prática administrativa desde a
década de 1930. O Decreto nº 19.890 de 18 de abril de 1931, ao dispor sobre o concurso
para inspetor do Colégio Pedro II, determinava no artigo 64 que o candidato tinha
direito ao provimento no cargo assim que se verificasse a existência de vaga. Contudo,
o silenciamento por parte da Administração nas formulações destacadas acima a
colocava em posição de império, de modo que a ela caberia avaliar a necessidade de
convocar ou não para nomeação o candidato aprovado e classificado em concurso.
Com isso, não raro, a Administração realizava concurso prevendo um número
específico de vagas, arrecadava valores referentes à taxa de inscrição, desenvolvia os
procedimentos administrativos com toda a aparência de legalidade e, findo o processo,
168
não nomeava os candidatos, alegando, com base no “mérito administrativo”, a ausência
de conveniência ou oportunidade para a nomeção. Inevitavelmente, resultaram dessa
prática processos judiciais impetrados por candidatos que viam seus direitos serem
negados.
Com a finalidade de conter as contendas judiciais, depois da promulgação da
atual Constituição Federal, esse sentido se movimenta, e vemos ser incorporada à FDecp
nova prática de significação. A partir de então, os editais passaram a enunciar a
perspectiva de que a aprovação e a classificação do candidato, mesmo dentro do número
de vagas, não lhe dá o direito à nomeação, mas tão só a expectativa desse direito. Essa
significação passou a compor o interdiscurso da FDecp
e vem funcionando
discursivamente como um pré-construído que governa formulações contemporâneas em
editais de concurso. É o que revelam os dados abaixo:
A aprovação no concurso, ainda que no limite das vagas existentes, assegurará ao concorrente apenas
a expectativa de direito à nomeação, segundo a rigorosa ordem classificatória por ÁREA DE
SELEÇÃO, ficando a concretização desse ato condicionada à observância das disposições legais
pertinentes e ao exclusivo interesse e conveniência da Administração da Câmara dos Deputados.
[Edital de concurso de 1989]
“A aprovação e a classificação final geram, para o candidato, apenas a expectativa de direito à
nomeação”. [Edital de concurso de 1998]
A aprovação no concurso assegurará apenas a expectativa de direito à nomeação, ficando a
concretização desse ato condicionada à observância das disposições legais pertinentes, do exclusivo
interesse e conveniência da Administração, da rigorosa ordem de classificação e do prazo de validade
do concurso. [Edital de concurso de 2009]
Contudo, as formulações atuais filiadas a esse elemento do saber incorporado à
FDecp
no início da Nova República têm produzido efeitos de sentido controversos entre
os interlocutores (Administração e candidatos). Como mostramos no capítulo anterior,
os Tribunais Superiores entendem que o candidato aprovado dentro do número de vagas
tem o direito à nomeação. Não cabe, portanto, à Administração avaliar a conveniência
ou a oportunidade para nomear o candidato nessa condição. Trata-se de uma obrigação.
Por isso, a Administração Pública, respeitando a atual jurisprudência dos Tribunais,
vem produzindo editais com uma nova formulação sobre esse sentido, a exemplo da
transcrita abaixo:
Os candidatos aprovados dentro do número de vagas ofertadas neste edital possuem direito
subjetivo à nomeação. [Edital de concurso de 2018]
169
O sentido construído pela formulação acima já constitui novo elemento do saber
pertencente à FDecp
. É outro enunciado [E] inerente a essa FD que vem regendo a
repetibilidade no seio de uma rede de formulações. Como mostraremos no capítulo
seguinte, nos editais, hoje, há uma oscilação entre esse sentido e o anteriormente
descrito, o que tem produzido pedidos de impugnação ou anulação de concursos.
F. Sobre os critérios de desempate
Dentre os editais que consideramos para nossa análise, só encontramos
formulações sobre critérios de desempate em editais produzidos pela Administração a
partir da República Liberal. Desde então até o início do século XXI, a perspectiva criada
era a de que, havendo igualdade na totalização dos pontos, o desempate era feito com
base no melhor resultado em determinada prova (em geral, a de Língua Portuguesa) ou
em dado conjunto de provas (como as de Conhecimentos Específicos). Para nós, essa
prática de significação constituiu um enunciado [E] pertencente ao domínio do saber da
FDecp
. Assim, filiada a essa memória do dizer, as formas-sujeito de editais produziram
as seguintes formulações no plano intradiscursivo:
“Ocorrendo empate, deverá ser observado, sucessivamente, o seguinte critério: a) melhor resultado na
prova de português (...)”. [Edital de concurso de 1957]
“Os casos de empates, enquanto persistirem, serão resolvidos atribuindo-se prioridade ao candidato que
tiver obtido maior número de pontos, sucessivamente: 1º) na prova de Conhecimentos Específicos
(...)”. [Edital de concurso de 1977]
“Para os cargos de Técnico Judiciário e Auxiliar Judiciário, na hipótese de igualdade de total de pontos,
terá preferência, sucessivamente, o candidato que: a) tiver melhor nota na prova de Português (...)”.
[Edital de concurso de 1982] “Em caso de empate na classificação, terá preferência o candidato que haja obtido maior nota,
sucessivamente, nas provas: a) Específica Objetiva da Área de Seleção (...); d) mais idoso”. [Edital de
concurso de 1989]
“9.1. Em caso de empate, terá preferência o candidato que, na seguinte ordem: a) obtiver maior nota na
segunda parte das provas discursivas (...)”. 9.2 Persistindo o empate, terá preferência o candidato
mais idoso. [Edital de concurso de 2001]
Um movimento de sentido interessante de se notar é a inclusão do critério de
desempate baseado na idade do candidato; a qualidade de “candidato mais idoso” passa
a ser considerada. Essa perspectiva irrompe no seio da FDecp
, como nossos dados
revelam, a partir de 1988. Acreditamos que ela seja fruto da conjuntura ideológica da
época, uma vez que a Constituição de 1988 trouxe relativa proteção ao idoso.
170
Entretanto, até o ano de 2003, o desempate pautado na qualidade “candidato mais
idoso” era o último a ser observado. É o que sinalizam as duas últimas formulações
acima.
De acordo com que apresentamos no capítulo anterior, o ano de 2003 foi
decisivo para a constituição de um novo sentido, um novo enunciado [E] a compor o
domínio do saber da FDecp
. A Lei no
10.741 de 1º de outubro de 2003 – Estatuto do
Idoso – instituiu a idade como o primeiro critério de desempate em concurso público.
Assim, as atuais formulações em edital, com objetivo de não romper com essa
significação estável, vêm contemporaneamente filiadas a essa memória discursiva; caso
contrário, são certos os pedidos de impugnação. Recortamos o trecho abaixo para
ilustrar ao leitor:
“Ocorrendo empate quanto ao número de pontos ponderados obtidos, terá preferência o candidato com
idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos (...)”. [Edital de concurso de 2009]
G. Sobre as vagas destinadas a portadores de necessidades especiais
No capítulo sobre a história do concurso público, vimos que, com a Lei
8.112/1990, as pessoas portadoras de necessidades especiais ganharam efetiva
proteção110
nos certames realizados no país. Desde então, esse direito instituído na
esfera legislativa foi incorporado pela FDecp
, tornando-se mais um elemento do saber
dessa FD, reativado nas formulações intradiscursivas. O recorte a seguir mostra que
logo que a lei fora aprovada, os editais passaram a enunciar em seu corpo textual essa
perspectiva.
“Aos candidatos abrangigos pelo Art. 5º, Parágrafo 2º, Lei 8.112/90, é assegurado o direito de se
inscreverem, sendo-lhes reservada 01 (uma) vaga para a Área Fim”. [Edital de concurso de 1993]
Esse novo enunciado inerente à memória do dizer da FDecp
ganhou outros
contornos enunciativos, de modo que seja possível reconhecer a historicidade dos
deslocamentos de sentidos. Com a Lei 8.112/90, a significação que irrompe na
conjuntura social, política e ideológica da época – lembremo-nos de que essa proteção
foi instituída logo depois da promulgação da atual Constituição, que trouxe grande
110
Preferimos falar em “efetiva proteção”, porque, como vimos no capítulo anterior, ato normativo
anterior (Lei 7.853 de 24/10/1989) já impedia a Administração obstar a inscrição de candidatos PNE,
embora não estabelecesse um percentual mínimo de vagas a ser reservado para eles.
171
contribuição nesse sentido111
– é a de que os órgãos públicos devem reservar até 20%
das vagas, mas não fica estatuído um percentual mínimo. Desse modo, a instituição que
reservasse o mínimo das vagas estaria atuando nos limites da lei.
É exatamente o que vemos na formulação transcrita acima. De acordo com o
edital do qual esse enunciado foi recortado, para o cargo de Técnico Judiciário - Área
Fim, eram oferecidas 30 (trinta vagas). O edital, contudo, reservou apenas 01 (uma
vaga) para PNE, o que corresponde a aproximadamente 3% do total de cargos a serem
providos.
Para fazer valer a Constituição Federal de 1988, era necessário, pois, uma norma
legal que estabelecesse limitações à Administração Pública de modo a assegurar os
direitos dos PNE. Foi por isso que, como mostramos no capítulo anterior, o legislativo
editou o Decreto 3.298/1999 e, mais recentemente, a Lei 13.146/2015, ambas
recorrentemente referidas na textualização de editais.
Esses atos normativos movimentaram a prática de significação produzida pela
Lei 8.112/90, deslocando-a para que ficasse previsto um percentual mínimo de vagas a
serem ocupadas por PNE. A FDecp
incorporou, em seu domínio do saber, esse novo
enunciado, ao qual se filiam atualmente as formulações que preveem, pelo menos, 5%
das vagas para PNE. É o que indica o recorte a seguir:
“O candidato que se julgar amparado pelo Decreto n. 3.298, de 20/12/99, (...) poderá concorrer às vagas
reservadas a pessoas com deficiência (...)”. [Edital de concurso de AFRF de 2009]
Muito embora a formulação acima, em nenhum trecho, estabeleça
expressamente a reserva dos 5%, a tabela enuncia essa perspectiva: das 450 vagas
disponíveis, 23 são reservadas a candidatos com deficiência, ao passo que 427 ficam
destinadas aos candidatos em ampla concorrência. Com a aplicação da regra, o resultado
fica fracionado em 22,5 vagas (5% de 450). Em respeito ao Decreto 3.298/99, o edital
arredondou para o primeiro número inteiro subsequente, ficando o total de 23 vagas.
111
O inciso XXXI do artigo 7o da CRFB traz, no rol dos Direitos Sociais, o devido amparo aos PNE, ao
estabelecer que “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à
melhoria de sua condição social: (...) XXXI - proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e
critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência”.
172
H. Sobre prazo para recursos quanto às provas aplicadas
O capítulo anterior nos permitiu observar que a concepção de recurso em
concursos públicos é prenunciada pela esfera legislativa desde o Brasil Imperial. Entre
os editais analisados, entretanto, só nos deparamos com formulações desse sentido a
partir da Ditadura Militar. O recorte abaixo parece evidenciar que, nesse período, a
Administração dava uma margem de 24 horas, contadas a partir do encerramento da
vista de provas, para os candidatos apresentarem seus recursos.
“O candidato poderá apresentar recurso à Banca Examinadora (...) no prazo de 24 horas após o
encerramento da vista de provas”. [Edital de concurso de 1977]
Consideramos que o dizer acima constitui um [E] que compôs a FDecp
durante a
Ditadura Militar. Nossos dados mostram ainda que, depois da promulgação da
CRFB/88, houve um deslocamento de sentidos que fez esse prazo derivar para 48 horas.
Não encontramos, dentro do nosso dispositivo de arquivo sobre a legislação brasileira
(Arquivo 1 – Legislação), nenhuma norma editada pelo legislativo que justificasse essa
deriva. Acreditamos que ela seja produto da própria Carta Magna de 1988, que elevou à
posição de princípio constitucional o preceito do contraditório e ampla defesa112
. O
prazo de 24 não seria, nessa perspectiva, suficiente para que os candidatos fizessem sua
ampla defesa perante a banca de examinação. Um novo enunciado [E] parece, portanto,
ampliar as fronteiras da FDecp
, permitindo outras formulações.
“O candidato poderá interpor recurso (...) no prazo de 48 horas após a identificação da prova
discursiva”. [Edital de concurso de 1989]
“O candidato que desejar interpor recurso contra o gabarito oficial preliminar (...) disporá de 2 (dois) dias
úteis após a sua divulgação”. [Edital de concurso de 1998]
“O candidato que desejar interpor recurso contra os gabaritos oficiais das provas objetivas disporá de até
dois dias, a contar do dia subseqüente ao da divulgação dos gabaritos oficiais”. [Edital de concurso de
2001]
“O recurso deverá ser formulado e enviado, via internet, até 2 (dois) dias úteis, contados a partir do dia
seguinte ao da divulgação dos gabaritos (...)”. [Edital de concurso de 2009]
112
Confira a este respeito o artigo 5o, inciso LV, da Constituição Federal de 1988: “aos litigantes, em
processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla
defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
173
Entre os editais analisados, assistimos à historicização de outra prática de
significação, além das duas mencionadas acima, a partir de 2009113
. Os editais passaram
a prever prazo recursal de 03 (três) dias – outro enunciado a compor, para nós, a FDecp
–
para conceder ao candidato um lapso temporal maior e, assim, ficar assegurada sua
ampla defesa.
“O candidato que desejar interpor recursos (...) disporá de 03 (três) dias para fazê-lo, a contar do dia
subsequente ao da divulgação desses gabaritos”. [Edital de concurso de 2011]
“O candidato que desejar interpor recursos (...) disporá das 9 horas do primeiro dia às 18 horas do
terceiro dia (...) para fazê-lo”. [Edital de concurso de 2018]
Contemporaneamente, temos assistindo, na textualização de editais, à
formulação destas duas últimas perspectivas: o edital prevê prazo de recurso de 02
(dois) ou 03 (três) dias. Ambas formulações estão, portanto, filiadas à atual
configuração da FDecp
.
I. Sobre a ausência do programa das provas
Entre os editais considerados em nossa investigação, a primeira formulação a
prever os conteúdos mínimos a ser objeto de examinação em provas de concurso é de
1893. Coincidentemente, segundo o que apresentamos no capítulo prévio, o primeiro
ato normativo a dispor, no campo legislativo, sobre programas para as matérias exigidas
em um certame data de 1890 (Decreto N. 330 de 12 de abril de 1890). A partir de então,
entendemos que essa prática de significação passou a constituir um enunciado [E]
inerente à FDecp
, como mostram os recortes a seguir114
.
“O concurso versará sobre o seguinte: calligraphia; línguas nacional e franceza; arithmetica e suas
aplicações ao commercio com especialidade reducções de moedas, pesos e medidas, cálculos, de
desconto, juros simples e compostos, e teoria de cambios, princípios de escripturação mercantil, noções
de geographia do Brazil”. [Edital de concurso de 1893].
“O concurso constará de: a) dictado de um trecho extrahido da Constituição da República Brasileira de 15
a 20 linhas e analyse grammatical das 20 primeiras palavras; b) Problemas sobre as quatro operações
fundamentaes, em dez pontos, cada um com três questões; d) Leitura de um trecho manuscripto em
portuguez, de preferência minutas de officios, portarias e circulares”. [Edital de concurso de 1924]
113
Não estamos afirmando categoricamente que essa nova perspectiva tenha se dado em 2009. Supomos
essa data pautando-nos nos recortes operados sobre os editais do nosso Arquivo 2 - Edital. O movimento
dos sentidos parece ter ocorrido nesse período. 114
Apresentamos os recortes apenas até 1945, pois a partir desse momento as formulações sobre
programas de provas tornam-se cada vez maiores, chegando atingir dezenas de páginas em editais
contemporâneos.
174
“O concurso (...) compreenderá as seguintes provas: a) BÁSICA: Português, Aritmética e Corografia do
Brasil; b) ESPECIALISTA: Redação (para a carreira de Auxiliar) e Prática Datilográfica (para a carreira
de Datilógrafo)”. [Edital de concurso de 1945]
A previsão dos programas das provas tornou-se uma imposição nas atuais
formulações de editais de concurso. Cumpre ressaltar ainda que, além do conteúdo
programático, há entendimento por parte dos Tribunais Superiores no sentido de ser
necessário a instituição realizadora do certame indicar uma bibliografia básica sobre a
qual os examinadores se apoiarão para formular as questões. Uma forma de se criar
alguma estabilidade entre as partes envolvidas na relação editalícia.
J. Sobre a previsão de vagas para negros
Podemos afirmar que a previsão de vagas para negros em concursos públicos é
uma das construções mais recentes na produção discursiva de editais de concurso.
Como mostramos no capítulo anterior, trata-se de uma prática instituída pelo poder
legislativo em 2014 por meio da Lei no
12.990, que reserva aos negros 20% das vagas
oferecidas nos concursos públicos federais sempre que o quantitativo de vagas for maior
ou igual a 03 (três). Vemos esse novo sentido como outro enunciado [E] que veio a
compor a FDecp
.
Por ser uma lei que se aplica apenas à Administração Pública Federal, não cabe
aos editais estaduais e municipais produzir, no plano intradiscursivo, formulações que
enunciem essa perspectiva. Porém, os órgãos públicos federais ficam obrigados a
formular, em seus editais, enunciados filiados a esse elemento do saber incorporado à
FDecp
. Não cabe silenciamento por da Administração, sob pena de anular-se todo o
procedimento administrativo atrelado ao concurso.
Tendo em vista a descrição dos elementos do saber da FDecp
apresentados até
aqui, parece que temos argumentos suficientes para sustentar a tese de que essa FD é
fruto de um constante deslocamento de fronteiras que vem sendo produzido desde o
Brasil Imperial (ou, poder-se-ia dizer, desde sempre). Além disso, a análise que fizemos
evidencia que é a esfera legislativa a principal responsável (principal, porque há
também a atuação do poder judiciário), pela incorporação de novos elementos ao
domínio do saber dessa FD, alargando suas fronteiras movediças e ampliando o escopo
da sua memória do dizer.
175
5.3. Os sujeitos da relação editalícia
Em uma análise discursiva do edital de concurso público, as primeiras perguntas
que se impõem estão relacionadas aos indivíduos que participam da relação editalícia.
Quem são esses indivíduos? Que forma-sujeito é instituída em relação a cada um deles
em função do assujeitamento ideológico? De que lugar eles falam? Quais são as marcas
que atestam a subjetividade na textualização do edital?
Podemos afirmar que, na relação social produzida pelo edital de concurso
público, há basicamente dois indivíduos que participam da interlocução: de um lado
temos a Administração Pública (locutor, em sentido amplo) ou, de forma mais
específica, o órgão vinculado à estrutura administrativa do Estado responsável pela
elaboração de um edital (locutor, em sentido estrito)115
; de outro, temos os
administrados, isto é, os candidatos (interlocutores).
Na perspectiva da Análise de Discurso, sabemos que esses interlocutores –
considerados em sua individualidade como pessoa física (candidato) e pessoa jurídica
(Administração) –, na produção do discurso, são interpelados pela ideologia para se
tornarem sujeitos do que dizem. Este é o primeiro movimento que devemos considerar
para compreender a subjetividade em editais de concurso116
: os indivíduos em questão
(administração e candidatos) são interpelados em sujeito pela ideologia; em outras
palavras, cada um dos indivíduos da relação editalícia, por meio do assujeitamento
ideológico, é afetado pelo simbólico na história tornando-se sujeito.
O assujeitamento tem como resultado a forma-sujeito histórica, que atua nas
trocas simbólicas produzidas na sociedade. Desse modo, Administração e candidatos
revestem-se, pela interpelação ideológica, de uma forma-sujeito para serem agentes de
dada prática social.
Na relação produzida por um edital de concurso público, falaremos em forma-
sujeito-candidato para nos referirmos aos administrados, cidadãos que satisfazem, em
princípio, os requisitos exigidos em dado concurso público e, ao se inscreverem,
colocam-se numa relação bilateral com a Administração Pública, estabelecendo-se um
vínculo do qual decorrem direitos e obrigações para ambos. Em razão dos objetivos do
115
Como não é possível especificar quem é o sujeito que fala na produção de um edital (mesmo porque
sua textualização não é feita por um único indivíduo, mas por uma equipe de técnicos que recebem essa
atribuição), preferimos colocar a Administração Pública na posição de locutor. 116
Tomamos por base a teorização de Orlandi (2012a) sobre o duplo movimento na constituição da
subjetividade.
176
nosso trabalho, não nos ocuparemos com a descrição detalhada dessa forma-sujeito.
Nosso foco incide sobre a forma-sujeito revestida pela Administração ao produzir um
edital de concurso. Antes de darmos um nome a essa forma-sujeito, iremos expor dois
aspectos que justificarão nossa escolha.
O primeiro aspecto relaciona-se com o que apresentamos de início. No primeiro
item deste capítulo, em que descremos a FDecp
, tornou-se evidente que essa formação
discursiva é atravessada por uma série de dizeres produzidos em outro lugar que foram
sendo historicamente incorporados em função dos anseios tanto do poder público
quanto dos cidadãos. Desse modo, quando observamos um edital produzido
contemporaneamente, deparamo-nos com um texto constitutivamente heterogêneo,
elaborado com enunciados que trazem à tona sentidos constituídos em diferentes
momentos da nossa história e por diferentes sujeitos. Essa heterogeneidade do edital é,
portanto, fruto do princípio de que “o discurso é uma dispersão de textos e o texto é
uma dispersão do sujeito” (ORLANDI, 2012b). Assim, para nós, o texto editalício é
atravessado por várias posições do sujeito, que correspondem a diferentes formações
discursivas (por exemplo, a FD da própria Administração, a FD do Legislativo, a FD do
Judiciário etc.).
Outro aspecto que devemos levar em consideração diz respeito à maneira como
os editais de concurso são usualmente elaborados antes de entrarem em circulação na
sociedade. Em geral, o órgão público responsável pelo concurso prepara uma minuta do
edital contendo as informações gerais sobre o processo de seleção. Em seguida, essa
minuta é transmitida à instituição responsável pela execução do concurso, que finaliza a
estruturação do edital e o submete à revisão pelo órgão público respectivo para que seja
dada ampla publicidade ao certame. O que desejamos sinalizar para o leitor é que não há
um único sujeito responsável pela produção de um edital de concurso público, o que
vem a ser uma problemática para determinação da forma-sujeito responsável pela
enunciação.
Levando em consideração os dois aspectos que mencionamos acima, falaremos
em forma-sujeito-instituição para nos referirmos à(s) entidade(s) que entra(m) em jogo
no processo de produção de um edital de concurso público. A principal razão para
considerarmos a existência dessa forma-sujeito relaciona-se ao fato de ela ser, de acordo
com nosso entendimento, a fonte da enunciação de todas as perspectivas em um edital.
Em outras palavras, pela forma-sujeito-instituição se constitui uma posição-sujeito, isto
é, um lugar determinado na estrutura da nossa formação social a ser ocupado tanto pelo
177
órgão público quanto pela instituição executora do concurso. Além disso, a forma-
sujeito-instituição, uma vez compreendida como uma forma de existência histórica, abre
espaço para um gesto de leitura que nos permite analisar os diferentes dizeres
produzidos no interior da FDecp
no transcurso do tempo e observar os movimentos de
sentido operados pelo homem em suas práticas de significação.
Agora que temos delimitadas as formas-sujeito que participam da interlocução
produzida pelo edital de concurso, cabe avaliar de que lugar elas falam. Dentro de uma
formação social como a nossa, esses sujeitos falam de uma posição discursiva muito
bem definida. Sabemos que a ambos são atribuídos direitos e obrigações. Mas a
Administração é uma posição-sujeito a que são atribuídas prerrogativas que não são
concedidas aos administrados, uma vez que cabe à primeira a realização do bem
comum. A Administração ocupa, assim, uma posição de “império”, de comando, que
lhe dá margem a enunciar a perspectiva que melhor atenda aos interesses públicos. Por
outro lado, os candidatos ocupam a posição de comandado, na qual, aceitando as
normas impostas pela poder público para um concurso, inscreve-se, submetendo-se a
elas.
É possível reconhecer essas posições discursivas (de comando x de submissão)
quando observamos as marcas que atestam a subjetividade na textualização atual do
edital: as formas linguísticas que indicam os sujeitos-enunciadores (destinadores) do
edital e a forma linguística que aponta para o sujeito-enunciatário (destinatário). Os
recortes a seguir mostram a maneira como a categoria “pessoa” aparece enunciada no
edital. Em cada conjunto de enunciados ((I), (II) e (III)), o item (a) traz referência ao
órgão público realizador do concurso, e o item (b) se refere à instituição executora do
processo de seleção (a banca examinadora); ambos, portanto, dizem respeito ao
destinador. O item (c) se refere ao destinatário.
(I) Edital de concurso de 2018
(a) O Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (...) torna pública a realização de concurso
público para provimento de vagas do cargo de Analista de Controle Externo do Tribunal de Contas do
Estado de Minas Gerais (TCEMG), mediante as condições estabelecidas neste edital.
(b) O Cebraspe realizará o concurso utilizando o método Cespe de seleção.
(c) Os candidatos nomeados estarão submetidos ao Regime Jurídico estatutário, em conformidade com
as normas contidas na Lei Estadual nº 869, de 5 de julho de 1952 (...).
178
(II) Edital de concurso de 2011
(a) A COMISSÃO DE CONCURSO PÚBLICO DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL (TSE)
(...) torna pública a realização de concurso público para o provimento de cargos efetivos, de nível médio e
de nível superior, do quadro de pessoal do Tribunal Superior Eleitoral (...).
(b) A CONSULPLAN consultará o órgão gestor do CadÚnico para verificar a veracidade das
informações prestadas pelo candidato.
(c) O candidato que se declarar pessoa com deficiência concorrerá em igualdade de condições com os
demais candidatos.
(III) Edital de concurso de 2009
(a) O DIRETOR-GERAL DA ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO FAZENDÁRIA (...) divulga e
estabelece normas específicas para abertura das inscrições e a realização de concurso público destinado a
selecionar candidatos para o provimento de cargos de AUDITOR-FISCAL DA RECEITA FEDERAL
DO BRASIL (...).
(b) A ESAF consultará o órgão gestor do CadÚnico para verificar a veracidade das informações prestadas
pelo candidato.
(c) O candidato poderá retirar o Edital regulador do concurso no endereço eletrônico (...).
Os trechos destacados nas formulações acima evidenciam a exclusiva marcação
da categoria em foco com formas linguísticas que remetem à 3ª pessoa. Tanto os
destinadores – órgão público e instituição executora/banca examinadora – quanto os
destinatários são referidos na 3ª pessoa.
Essa forma de individuação na produção discursiva dos editais constrói um
efeito de distanciamento entre destinador e destinatário. A marcação dos sujeitos em 3ª
pessoa traz, ao mesmo tempo, um efeito de sentido de objetividade e dissimetria entre
os interlocutores (órgão público e banca examinadora x candidatos). A objetividade
fecha o texto em seu caráter impessoal, no sentido de “desprovido de 1ª pessoa”, como
deve ser todo ato normativo produzido pelo Estado, caracterizado pela impessoalidade.
A dissimetria reproduz o desnivelamento das posições-sujeito ocupadas por cada um
dos interlocutores – o destinador ocupa posição de comando; o destinatário, a de
comandado.
De modo mais amplo, podemos afirmar que a enunciação em 3ª pessoa para
esses três sujeitos envolvidos na relação editalícia apaga a interação entre eles (ou, mais
precisamente, apaga a interação entre os destinadores e o destinatário), construindo-os
discursivamente como sujeitos distintos, dotados de direitos e obrigações pelos quais
respondem individualmente caso cometam alguma infração às normas do edital. Eis a
179
forma como, pelo nosso entendimento, o Estado individualiza esses sujeitos, de modo
que cada um deles, representados em sua individualidade, possa vir a responder civil e
criminalmente pelos ilícitos praticados.
Há um traço linguístico peculiar que julgamos interessante destacar, uma vez
que, para nós, traz à tona o papel da memória no ato de formulação no plano
intradiscursivo. Esse traço linguístico se relaciona à maneira como o processo de
referenciação é construído na textualização do edital sempre que é necessário fazer
remissão às seguintes pessoas: à banca examinadora e ao(s) candidato(s).
Os dados apresentados nos itens (I), (II) e (III) acima mostram que tais pessoas
são referidas por meio de um processo de referenciação pela reiteração (repetição) dos
mesmos sintagmas: o Cebraspe, a Consulplan, a Esaf e o candidato. Entendemos que
essa repetição constitui um mecanismo de produção do discurso, isto é, de efeitos de
sentidos entre os interlocutores. Para nós, a repetição do nome da banca examinadora,
sempre que o enunciador precisa retomá-la na construção do texto de edital, realça a
posição discursiva que esse sujeito ocupa em relação ao destinatário, atribuindo-lhe uma
força argumentativa que o candidato não tem. Por outro lado, a repetição do sintagma o
candidato traz um jogo com a memória discursiva que também nos permite identificar
sua posição-sujeito no processo enunciativo. Para compreendermos esse jogo, temos
que tomar a palavra candidato em sua origem.
Candidato provém do latim candidātus que, por sua vez, deriva do adjetivo
latino candĭdus. Esta última palavra pode significar branco, alvo, sereno, puro,
bondoso, leal, sincero etc. Por isso, o termo candidātus designava na Roma Antiga o
sujeito vestido de branco117
.
No capítulo anterior, vimos que a eleição já foi uma forma de seleção para a
escolha de funcionário público por meio de votação em escrutínio. Ao que tudo indica, a
Roma Antiga foi um dos berços da civilização em que essa prática foi adotada. Os
pretendentes aos cargos públicos trajavam uma roupa branca como meio de serem
identificados e diferenciados do restante do povo. A veste branca que eles usavam
servia para marcar o indivíduo como um sujeito puro, leal, sincero, probo, que passou a
ser referido como candidātus, “vestido de branco”. A roupa branca metaforizava, assim,
a honestidade do candidato, que devia ser dotado de uma vida pregressa imaculada. Era,
117
Para mais detalhes sobre os sentidos dessas palavras latinas, confira Botelho (2014).
180
pois, uma forma de representar, no imaginário social romano, a “reputação ilibada”,
qualidade que se espera hoje de todo candidato ao serviço público.
Por essa razão, entendemos que o uso reiterado do sintagma o candidato, nos
atuais editais de concurso, em referência ao destinatário inscreve-se na discursividade
dos editais, no momento de sua formulação e circulação, para reafirmar a posição
histórica da forma-sujeito-candidato, uma posição de pessoa honesta que saberá cuidar
da coisa pública.
5.4. A língua(gem) do edital
É comum encontramos, nos distintos entes federativos (União, Estados, Distrito
Federal e Municípios) no exercício dos seus poderes (legislativo, executivo e
judiciário), seus respectivos Manuais de Redação Oficial, prontuários que estipulam um
conjunto de parâmetros de escrita pelo qual o poder público deve redigir seus atos
normativos e comunicações.
Tomamos, a título de ilustração, o Manual de Redação da Presidência da
República, que governa a escrita do executivo federal. Logo no início, quando são
tratados aspectos gerais da escrita do Estado, o Manual assume o princípio de que “a
redação oficial deve caracterizar-se pela impessoalidade, uso do padrão culto de
linguagem, clareza, concisão, formalidade e uniformidade” (BRASIL, 2002, p. 4). O
edital de concurso público é um ato normativo e, como tal, deve obedecer aos
parâmetros instituídos pelo Estado para sua redação. Daí dever reunir as características
apontadas acima.
Como vimos no item anterior, a impessoalidade está diretamente relacionada ao
modo como a categoria de “pessoa” é instituída no texto. Quando a forma-sujeito de um
edital faz referência ao órgão público e à banca examinadora por meio de seus nomes
institucionais, busca-se criar um efeito de sentido de objetividade, excluindo do texto
quaisquer impressões individuais do destinador. Muito embora, o edital seja assinado
por um chefe de expediente, a enunciação não é feita em seu nome, mas em nome do
Serviço Público. Do mesmo modo, quando a forma-sujeito-instituição se refere ao
destinatário como o(s) candidato(s), a intenção é produzir o mesmo feito de
objetividade, tratando-o(s) de forma impessoal e homogênea. Esse mecanismo de
impessoalização resultou consequentemente em uma padronização das formas de
181
referência aos sujeitos da relação editalícia, estabelecendo um efeito de uniformidade na
textualização do ato normativo.
Clareza, concisão e formalidade são atributos da redação oficial que precisam
ser igualmente respeitadas na produção do edital. Por clareza, o Manual entende a
qualidade que torna o texto claro, “possibilitando a imediata compreensão pelo leitor”
(BRASIL, 2002, p. 6). Concisão é definida como a qualidade que faz o texto conciso,
capaz de transmitir o máximo de informação com o menor número de palavras. O
Manual ressalta também a característica da formalidade que, além de atender à forma, à
sua estruturação típica, relaciona-se também ao uso do padrão culto de linguagem.
Ao estipular um conjunto de princípios aplicados à escrita de seus atos oficiais, o
Estado visa perpetuar o uso daquilo que, em Análise de Discurso, entendemos como
língua de madeira, segundo a concepção de Gadet & Pêcheux (2004 [1981]) e Courtine
(1999 [1981]), ou língua imaginária, na visão de Orlandi & Souza (1988).
Na textualização do edital de concurso público, o Estado faz uso da língua
oficial118
, uma língua que, por atender às técnicas de redação oficial e valer-se do jargão
técnico do Direito e dos mecanismos de construção sintática típicos da argumentação
jurídica, ostenta uma forma de composição em que fica evidente a opacidade do texto
ao olhar do sujeito leitor. Desse modo, defendemos a posição de que a língua adotada
pela Administração para a textualização do edital de concurso é a língua de madeira,
uma língua imaginária, típica das instituições, fechada nela mesma.
Esse posicionamento nos permite tecer duas considerações. Primeiramente, se
tomarmos a caracterização feita por Courtine (1999 [1981]) sobre língua de madeira
como “língua de pano, rude, áspera, desigual”, seremos levados a supor que a língua
usada na textualização do edital não é para a compreensão de todos. Não pretendemos
afirmar que isso seja um traço intencional por parte do enunciador. Ela é desigual, uma
vez que reproduz o desnível entre a Administração do Estado e os administrados,
cidadãos comuns que não têm o domínio dessa língua áspera. Assim, por mais que os
Manuais de Redação Oficial estipulem que a clareza deva ser atributo da escrita do
Estado, a língua de madeira possibilitaria “a imediata compreensão pelo leitor”? Pura
ilusão da transparência do sentido. A propósito, o próprio Manual de Redação da
Presidência da República traz expressamente a ilusão da transparência ao afirmar (grifos
nossos):
118
Adotamos esse termo dentro da concepção formulada por Guimarães (2003).
182
Não se concebe que um ato normativo de qualquer natureza seja
redigido de forma obscura, que dificulte ou impossibilite sua
compreensão. A transparência do sentido dos atos normativos, bem
como sua inteligibilidade, são requisitos do próprio Estado de Direito:
é inaceitável que um texto legal não seja entendido pelos cidadãos. A
publicidade implica, pois, necessariamente, clareza e concisão.
(BRASIL, 2002, p. 4)
A segunda consideração diz respeito à questão da fluidez. Como nos ensinam
Orlandi & Souza (1988), a língua imaginária (e, assim também, a língua de madeira)
freia a fluidez, o movimento dos sentidos, já que reproduz um sistema estático. Mas, na
produção discursiva do edital de concurso, os sentidos não se movimentariam, eles
ficariam sempre inertes dentro do sistema fechado do qual fazem parte? Na perspectiva
da Análise de Discurso que assumimos neste trabalho, o sentido da palavra sempre pode
ser outro. Por mais que se respeite todo um conjunto principiológico aplicado à escrita
do edital, a significação jamais estará fechada, abrindo espaço para diferentes
interpretações, fazendo os sentidos movimentarem-se.
5.5 Tipologia de discurso
Encontramos em Orlandi (1983, 1984, 2013) os fundamentos teóricos para
incluir o edital de concurso público no âmbito do discurso autoritário.
Argumentaremos em favor dessa tese levando em consideração o princípio de que é no
funcionamento discursivo – isto é, no modo como o discurso é estruturado em editais
por um locutor específico para um interlocutor determinado com uma finalidade
singular – que temos as bases para enquadrar um discurso dentro de uma tipologia.
Antes, julgamos necessário trazer informações sobre a natureza jurídica dos
editais de concurso, as quais contribuirão para traçarmos os argumentos favoráveis à
nossa tese, uma vez que nos permitirão reconhecer o papel desempenhado por cada
instância considerada no âmago do funcionamento discursivo (locutor, interlocutor e
finalidade em editais).
5.5.1 Natureza jurídica do edital de concurso público
Cumpre assinalar, de início, que o concurso público é um processo
administrativo atualmente compreendido, em sentido amplo, conforme orientação de
183
Alexandrino e Paulo (2011, p. 807), “como uma série de atos ordenados em uma
sucessão lógica, a qual tem por finalidade possibilitar à administração pública a prática
de um ato administrativo final ou a prolação de uma decisão administrativa final”.
No transcorrer dessa “série de atos ordenados", é possível que insurjam conflitos
de interesse entre os participantes do certame (interlocutores) ou entre estes e a
Administração Pública (locutor). Motta (2006) afirma que “o concurso público é
ontologicamente marcado pelo conflito de interesses entre os concorrentes e,
eventualmente, entre qualquer destes e a Administração”119
.
Acrescente-se que, diante dos eventuais litígios entre administrados –
concorrentes no certame – e Administração, além da observância dos princípios, entre
outros, da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, isonomia,
razoabilidade e proporcionalidade, previstos em nossa Constituição Federal, deve ser
observado, com a máxima atenção, o princípio da vinculação ao instrumento
convocatório ou princípio da vinculação ao edital.
Entra em jogo a figura jurídica do edital de concurso público como ato
administrativo normativo que serve ao controle de todo o processo administrativo
implementado para a seleção de candidatos ao serviço público (eis a finalidade de um
edital). O edital, em razão do princípio da vinculação ao instrumento convocatório,
tornou-se um ato normativo de caráter obrigatório emitido pelos órgãos da
Administração para tornar público, a todos os interessados, o conjunto de regras que
governarão a realização de dado concurso e que deverão ser observadas por ambas as
partes que entram em jogo no certame: administração e administrados. Torna-se
oportuna, aqui, a lição de Motta (2006), para quem:
A publicação do edital torna explícitas quais são as regras que
nortearão o relacionamento entre a Administração e aqueles que
concorrerão aos seus cargos e empregos públicos. Daí a necessária
observância bilateral, a exemplo do que ocorre com as licitações: o
poder público exibe suas condições e o candidato, inscrevendo-se,
concorda com elas, estando estabelecido o vínculo jurídico do qual
decorrem direitos e obrigações. Pactuam-se, assim, normas
preexistentes entre os dois sujeitos da relação editalícia. De um lado a
Administração. De outro, os candidatos. Qualquer alteração no
decorrer do processo seletivo, que importe em mudança significativa
na avença, deve levar em consideração todos os participantes
inscritos e previamente habilitados, não sendo possível estabelecer-se
119
Não é possível indicar a página deste fragmento, pois o texto circula em meio virtual.
184
distinção entre uns e outros, após a edição do edital. Desta forma,
compete ao administrador estabelecer condutas lineares,
universais e imparciais, sob pena de fulminar todo o concurso,
oportunidade em que deverá estipular nova sistemática editalícia para
regular o certame. (Grifos nossos)
É oportuno frisar que o edital, uma vez assumido como ato normativo, permite-
nos considerá-lo, com base nos ensinamento de Pêcheux (2012 [1983]), como um
procedimento de gestão-controle administrativo, que visa produzir uma estabilidade
discursiva. Este é, para nós, o traço (discursivo) peculiar do edital de concurso público:
um documento marcado pela estabilização dos sentidos. Os editais inscrevem-se, assim,
no universo dos discursos logicamente estabilizados, com seu núcleo rígido de
formulações que visam assegurar um mundo semanticamente perfeito, sem espaço para
o equívoco e para a ambiguidade.
Entretanto, como salientamos no capítulo anterior, o fato de o concurso e, assim,
o edital (documento que o disciplina), estarem inscritos em um universo discursivo
logicamente estável não os torna um ritual imune ao equívoco da língua, pelo qual os
sentidos se deslocam, estando sempre suscetíveis de se tornarem outros. É por essa
razão que, não raro, irrompem os litígios entre candidatos ou entre estes e a
Administração.
Para que sejam evitadas contendas entre os “sujeitos da relação editalícia”, tem
sido comum, na nossa atual prática social, o edital ser submetido a diferentes formas de
controle. Alexandrino e Paulo (2011, p. 791) definem controle administrativo como:
Conjunto de instrumentos que o ordenamento jurídico estabelece a
fim de que a própria administração pública, os Poderes Judiciário e
Legislativo, e ainda o povo, diretamente ou por meio de órgãos
especializados, possam exercer o poder de fiscalização, orientação e
revisão da atuação administrativa de todos os órgãos, entidades e
agentes públicos, em todas as esferas de Poder.
A doutrina jurídica prevê diferentes formas de classificação do controle
administrativo, dentre as quais destacamos, segundo nossos interesses, a classificação
conforme a origem. Sob essa ótica, o controle pode ser interno, externo ou popular.
A vantagem de se tratar de um processo administrativo organizado por uma
sequência de atos preordenados encontra-se no fato de a própria administração pública
poder, com base no princípio da autotutela, rever seus atos. É o que se chama de
185
controle interno. Seu fundamento é, pois, o poder de autotutela, segundo o qual a
administração, com base no princípio da legalidade, pode rever seus próprios atos,
anulando-os, se forem ilegais, ou, com base no mérito administrativo, pode revogá-los
por motivo de conveniência ou oportunidade.
Essa forma de controle interno é prevista no texto constitucional, que afirma, no
artigo 74, que “Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma
integrada, sistema de controle interno (...)”. É, portanto, uma forma de controle
realizada tanto pelo Executivo, que exerce tipicamente a função administrativa, quanto
pelo Legislativo e pelo Judiciário, que, embora suas funções primárias sejam outras,
exercem secundariamente a função administrativa. Ratifica o poder de autotutela por
parte da administração a Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal, que assim reza:
A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de
vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos;
ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade,
respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a
apreciação judicial.
Diferentemente do controle interno, diz-se que o controle é externo quando um
Poder controla os atos administrativos produzidos por outro Poder120
. É o que acontece,
por exemplo, quando o Judiciário é provocado pelo Ministério Público ou por qualquer
cidadão interessado para rever os atos praticados pelo Executivo ou, ainda, pelo
Legislativo ou Judiciário no exercício de atividade administrativa.
O controle popular, por outro lado, é aquele que pode ser realizado por
quaisquer administrados, aos quais é atribuída, por lei, “a possibilidade de – diretamente
ou por intermédio de órgãos com essa função institucional – verificarem a regularidade
da atuação da administração pública e impedirem a prática de atos ilegítimos, lesivos ao
indivíduo ou à coletividade, ou provocarem a reparação dos danos deles decorrentes”
(ALEXANDRINO & PAULO, 2011, p. 793). A principal lei que confere aos cidadãos a
possibilidade de controle popular é a Constituição Federal. O artigo 5º, inciso LXXIII,
estatui que “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a
anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à
moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural”. E,
ainda, o artigo 74, § 2º da Lei Maior estabelece que “qualquer cidadão, partido político,
120
Cf. Alexandrino e Paulo (2011, p. 793).
186
associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades
ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União”.
No tocante ao controle administrativo sobre a realização de concursos públicos,
vemos que as três formas de controle apresentadas acima têm sido praticadas para
conter, não raro, as exigências abusivas cometidas em editais de concurso, exigências
que ferem os princípios constitucionais e vão contra as conquistas dos cidadãos face ao
arbítrio da administração. Dessa forma, é possível assistir à própria administração,
valendo-se do poder de autotutela, suspender um edital de concurso após a reavaliação
do mérito administrativo, que tenha permitido observar que, por uma questão de
conveniência ou oportunidade, aquele concurso não atende às demandas da
administração naquele momento. Pode também a administração anular um edital de
concurso após ter observado algum vício insanável que torne o ato ilegal e, por isso,
passível de anulação. Além disso, não tem sido incomum assistir ao Poder Judiciário,
após prévia provocação, suspender ou anular a realização de um concurso em virtude
das falhas cometidas no certame. Por fim, destacamos os casos recorrentes de mandado
de segurança com pedido de liminar, impetrados por cidadãos, diretamente ou por seus
respectivos conselhos profissionais, contra edital de concurso em razão da existência de
cláusula da qual discordem.
5.5.2 Tipo de discurso em edital de concurso
Afirmamos anteriormente que o edital de concurso público se caracteriza por ser
um discurso autoritário. Chegamos a essa conclusão, após estudarmos o edital tomando
de empréstimo os critérios adotados por Orlandi (1983, 1984 2013) ao propor sua
tipologia de discurso: modo como os interlocutores se consideram, grau de
reversibilidade, relação dos interlocutores com o objeto de discurso (como o referente
se apresenta) e carga de polissemia.
Devemos destacar que, para a nossa caracterização do edital como discurso
autoritário, nós o consideramos no seu estado inicial, isto é, no momento em que ele é
formulado em dadas condições de produção e posto em circulação na sociedade. Nós o
consideramos assim porque, no seu nascimento, o edital, como a lei do concurso,
irrompe no mundo jurídico com um caráter impositivo. Como todo ato normativo, ele é
formulado pela Administração para não ser questionado, exceção feita aos editais
elaborados em discordância com a lei, o que pode levar às formas de controle que
187
dissertamos no subitem anterior. Entretanto, seu caráter impositivo, via de regra, não
daria margem ao questionamento por parte dos interlocutores.
Portanto, devemos deixar nítida nossa perspectiva para o leitor.
Independentemente das possibilidades de controle sobre os editais de concurso cuja
existência reconhecemos mais acima, considerando o seu nascimento no mundo jurídico
e suas delimitações dentro de um universo discursivo logicamente estável, ele é
produzido como um impositivo legal que não abre espaço ao questionamento. É com
base nessa essência do edital que o caracterizamos como discurso autoritário.
Assim, considerando o primeiro critério adotado por Orlandi, entendemos que,
na produção discursiva de um edital de concurso público, há um locutor que se
manifesta como um agente exclusivo do discurso, apagando sua relação com os
interlocutores. O “tu” previsto no edital, que corresponde ao candidato, é colocado
como mero receptor, não podendo interferir no processo.
No tocante ao segundo critério, entendemos que a reversibilidade em editais
tende a zero. Todo edital, produzido sem qualquer vício que o torne ilegal, nasce no
mundo jurídico sem dar margem à troca de papéis entre os interlocutores. Assim, a
Administração Pública, em um certame específico, impõe suas condições; os
candidatos, concordando com elas, inscrevem-se ou não para participar da seleção.
Como o edital de concurso corresponde à lei, a voz do seu locutor traz,
circunscrita em uma relação de poder, mais força que o próprio dizer. Desse modo, de
acordo com o terceiro critério, entendemos que o objeto de discurso de editais (seu
referente) fica apagado, encoberto pelo dizer do locutor, que se encontra em uma
posição discursiva em que lhe são conferidos plenos poderes para formular o edital de
modo que melhor atenda à Administração e aos administrados.
Com base no critério carga de polissemia, entendemos que a polissemia em
editais é contida uma vez que os enunciados formulados em sua produção visam manter
a estabilidade jurídica entre as partes, o que depende de um jogo com os sentidos já
sedimentados, estabilizados discursivamente.
188
6. A tensão paráfrase-polissemia e o silenciamento em editais de concurso público
Entre o Homem e a Instituição, numa relação em que o poder e a ideologia são as constantes,
os sentidos balançam entre uma permanência que às vezes parece irremediável
e uma fugacidade que se avizinha do impossível. E aí ficamos.
(ORLANDI, 2012b, p. 15)
Nesta parte do nosso trabalho, procuramos mostrar: a) como, na produção do
edital de concurso público, enunciados são formulados na tensão paráfrase-polissemia; e
b) dois casos de silenciamento. Partimos da hipótese inicial de que, sendo o edital um
ato normativo que disciplina todo o trâmite de um concurso, suas cláusulas devam ser
enunciadas segundo o mecanismo da paráfrase tendo em vista a manutenção da
estabilidade discursiva e, assim, da estabilidade jurídica entre as partes envolvidas
(administração e administrados). Em contrapartida, a polissemia seria, em editais,
extremamente contida, uma vez que a forma-sujeito de um edital não poderia, jogando
com o equívoco da língua, formular enunciados que rompessem com o já instituído
pelas leis, pela doutrina, pela jurisprudência e pelas práticas já enraizadas na
administração pública.
Colocamos em jogo enunciados de editais que não sofreram qualquer forma de
intervenção e enunciados que foram alvo impugnação, revogação ou anulação. Com
relação aos editais sob impugnação, no entanto, faz-se necessário verificar que efeitos
de sentidos são instituídos, levando-se em conta o tipo de paráfrase que daí resulta.
Quando da análise dos editais, recorreremos a Léon & Pêcheux (2012 [1982]) a fim de
se buscar colocar em discussão nos editais referidos o trabalho que se efetua na língua
em termos de léxico e sintaxe.
Partimos da tese de que, embora todo enunciado se filie a uma rede de
formulações já constituídas, em razão da incompletude do sujeito e dos sentidos o
enunciado pode representar um deslocamento nessa rede. Assim, o enunciado é
constituído por pontos de deriva, deslizamentos/efeitos metafóricos. Mas há também
pontos de bloqueio, que interrompem a deriva em busca da estabilização. A existência
desses dois processos na linguagem levou Orlandi (2013) a estabelecer a diferenciação
entre três formas de repetição: a empírica (mnemônica), que só repete, nada muda; a
formal (técnica), que implica outra maneira de dizer o mesmo; e a histórica, que
provoca o deslocamento, fazendo emergir o irrealizado no âmago dos sentidos
estabilizados. As duas primeiras constituem pontos de bloqueio na produção do
discurso; a última, pontos de deriva.
189
Na literatura da Análise de Discurso, as duas últimas formas de repetição que
mencionamos acima são tratadas, respectivamente, como paráfrase e polissemia,
processos que vêm sendo tratados por Eni Orlandi desde a década de 1970 e passaram a
constituir parte de inúmeros dispositivos analíticos em pesquisas que visam investigar
discurso em diferentes materialidades.
Não obstante a tensão básica do discurso se manifeste no jogo entre paráfrase e
polissemia, tensão esta que se torna um “prato cheio” na análise de editais, a repetição
mnemônica também intervém no ato de formulação desta forma de ato normativo, ainda
que, em princípio, não produza tensão. Frise-se por ora: “em princípio”. Em função
disso, devido à natureza do corpus trazido para análise, coloraremos em jogo, os três
processos.
Para dar visibilidade ao jogo repetição-paráfrase-polissemia e aos efeitos de
sentido produzidos, tomamos os enunciados formulados nos editais analisados (e
dispostos nos corpora discursivos I e II) e os dispomos em uma cadeia de formulações
(doravante CF). Em cada CF, relacionamos nas primeiras linhas os enunciados de
editais que não sofreram qualquer forma de controle administrativo/judicial e deixamos
por último o(s) enunciado(s) formulado(s) em edital(is) submetido(s) a questionamento
em razão de suas falhas ou silenciamentos. Estes últimos serão indicados em vermelho.
É importante justificar a maneira como organizamos as cadeias de formulações.
Entre cada formulação, utilizamos uma barra vertical cuja função é indicar que as
formulações em análise formam uma rede de enunciados que atestam que o dizer
sempre pode ser outro. Portanto, não instituímos essa rede com a intenção de afirmar a
existência de qualquer historicidade entre os enunciados postos em análise, mas apenas
que eles estão em uma relação de paráfrase. Devemos destacar ainda que não iremos
explorar as variações sintáticas entre as frases no todo, mas apenas dos fragmentos
destacados entre chaves, uma vez que são eles os pontos críticos que levaram dado
edital à intervenção judicial.
190
6.1 Análise da Cadeia de Formulação 1 (CF1): sobre requisitos para investidura
O candidato será {investido no cargo} se atendidas as seguintes exigências: (...) [Esaf]
Dos requisitos básicos {para investidura nos cargos}: (...) [Cebraspe]
O candidato deverá atender (...) {para investidura no cargo} aos seguintes requisitos: (...) [FGV]
O candidato (...) será {investido no Cargo/Especialidade} se atender (...): [FCC]
São requisitos {para inscrição / nomeação}: (...) [Prima Face]
Entre os pontos {a}, {b}, {c} e {d}121
, formulados de acordo com as leis,
observamos um típico processo parafrástico, pelo qual em cada dizer há algo que se
mantém visando à estabilidade dos sentidos e, assim, a estabilidade sociojurídica entre
as partes envolvidas. Entre eles, há uma variação sintática mínima, mas não há variação
lexical. Entretanto, na deriva para o ponto {e}, em que há variação sintática e total
variação lexical, apontando para outros referentes, há algo que se rompe. Jogando com o
equívoco, com a intrínseca susceptibilidade de o enunciado poder tornar-se outro122
, os
sentidos derivam, rompendo, no seio da cadeia de enunciados realizados na atual
conjuntura – estáveis discursivamente –, com o já estabelecido por lei. É aqui que
intervém a polissemia para permitir que os sujeitos e os sentidos se movimentem. O
processo polissêmico, como podemos notar, é uma força que permite o sujeito-
enunciador da formulação {e} deslocar um enunciado já estabilizado para outro ainda
não realizado contemporaneamente, mas possível.
De fato, com base no que apresentamos no capítulo anterior, o enunciador desta
formulação {e} está retomando sentidos pré-existentes, que já configuraram no interior
da FDecp
, mas que não entram em conformidade com universo jurídico atualmente
estabelecido. Conforme nosso entendimento, a perspectiva que impunha a comprovação
dos requisitos no ato de inscrição, em virtude das leis, deveria ter sido desincorporada
da FDecp
a partir da década de 1980 de modo a se manter a estabilidade dos novos
sentidos.
121
Considere cada um desses pontos em relação a cada um dos enunciados da cadeia de formulações na
respectiva ordem em que aparecem. Aplicaremos o mesmo procedimento em todas as cadeias de
formulação analisadas neste capítulo. 122
Cf. Pêcheux (1983[2012, p. 53]).
191
Deslocamentos como esse representam um jogo próprio da língua123
: fazer
manobras no processo de produção de sentidos, o que reflete a “exterioridade relativa”
da formação ideológica (MALDIDIER, 2003, p. 39). Expliquemos: a enunciação de
uma cláusula específica de edital de concurso tende a ser regulada por circunstâncias
várias (históricas, sociais, políticas e, principalmente, jurídicas) – daí uma possível
estabilidade entre os pontos {a}, {b}, {c} e {d}; contudo, na formulação de um
enunciado por meio da polissemia, a força que pretende deslocar o sedimentado para o
irrealizado atualmente reflete a formação ideológica na qual aquela formulação está
inserida. No seio dessa formação ideológica, manifesta-se uma formação discursiva que
tende a fechar o processo seletivo, excluindo do certame, já no ato de inscrição, os
indivíduos que não atendem aos requisitos estabelecidos. Desse modo, por exemplo, um
candidato que não tivesse 18 anos completos (este é um dos requisitos) até o último dia
da inscrição, mas que o tivesse três meses depois quando ainda se realizasse o concurso,
ficaria excluído daquele processo. Em outras palavras, ao deslocar os sentidos já
instituídos para outro ponto, o enunciador, nesse edital, manobra o processo, criando
obstáculos para aqueles que, durante a inscrição, não satisfaçam um dos requisitos
previstos. A forma-sujeito que fala nessa formulação se inscreve em uma FD filiada à
FI do Estado que, no ato de individuação dos sujeitos, decepa-lhes direitos.
A CF1 mostra que a consequência do deslocamento operado pela polissemia na
produção discursiva do edital de concurso pode ser drástica no mundo sócio-jurídico. A
formulação do enunciado {e} na construção do edital do concurso para a Prefeitura
Municipal de Centralina/MG foi julgada ilegal pelo TCE/MG com o argumento de que
as exigências apontadas (ter nacionalidade brasileira, ter idade mínima de 18 anos, estar
quite com a Justiça Eleitoral etc.) devem ser pleiteadas na data da posse e não no
momento da inscrição e/ou nomeação.
A deriva, o deslizamento de sentidos, das formulações {a, b, c, d} para a
formulação {e} produz discursivamente uma enunciação (uma perspectiva) possível
pelo jogo com as formas da língua, mas abre uma arena para o confronto com os
enunciatários em virtude dos efeitos de sentido estabelecidos. Instalam-se, assim, numa
relação de antagonismo, duas formas-sujeito: de um lado, temos uma forma-sujeito-
instituição inscrita em uma FD filiada a uma FI do Estado cerceadora de direito; do
outro, uma forma-sujeito-candidato (que corresponde ao cidadão em geral) – inscrita em
123
Esse jogo é inerente à língua porque, imaginariamente, toda formulação tem direções de sentido
determinadas.
192
uma FD que traz à tona – como efeito do pré-construído – uma série de dizeres e
sentidos produzidos/conquistados historicamente a partir das lutas políticas e
ideológicas entre classes.
A organizadora do concurso, em respeito às indicações do TCE/MG, fez a
devida retificação do edital, em que passou a figurar o seguinte enunciado: “São
requisitos para posse: (...)”. Assim, com a nova enunciação, a CF1 se reorganiza com a
seguinte composição:
CF1 Reformulada
O candidato será {investido no cargo} se atendidas as seguintes exigências: (...) [Esaf]
Dos requisitos básicos {para investidura nos cargos}: (...) [Cebraspe]
O candidato deverá atender (...) {para investidura no cargo} aos seguintes requisitos: (...) [FGV]
O candidato (...) será {investido no Cargo/Especialidade} se atender às seguintes exigências (...): [FCC]
São {requisitos para posse}: (...) [Prima Face/retificado]
As substituições contextuais entre {investido no cargo}, {para investidura nos
cargos}, {para investidura no cargo}, {investido no Cargo/Especialidade} e
{requisitos para posse} cria, no seio da CF1 reformulada, uma rede parafrástica de
sentidos estáveis, apta à manutenção da ordem jurídica. De modo geral, poderíamos
esquematizar a enunciação produzida nos cinco editais na seguinte fórmula:
{a, b, c, d, e} – O candidato deve atender x para y.
Na CF1 reformulada, há um contorno sintático entre a última formulação e as
anteriores que devemos notar. Em todas as formulações, x está para
requisitos/exigências. Mas apenas em {a, b, c, d} y está para investidura. Na formulação
{e}, y está para posse. Temos, assim, um deslocamento que se opera entre {(para)
investidura} e {para posse}. Ambas as construções sintáticas visam estabelecer a ideia
de finalidade; entretanto a opção por posse no lugar de investidura produz efeitos na
discursividade do edital, muito embora os sentidos que irrompam na formulação {e}
não a tornem ilegal no campo jurídico.
193
Para compreendermos a natureza desses jogos, devemos retomar as noções de
investidura e posse. Na doutrina do Direito124
, investidura é um processo que produz o
elo entre um indivíduo e um cargo ou emprego público. Sendo processo, possui início,
meio e fim; envolve um conjunto de atos produzidos tanto por parte da administração
quanto por parte do administrado.
No início do processo de investidura, temos a nomeação, que é o ato de
convocação do candidato aprovado em concurso público, respeitada a ordem de
classificação. Esse ato, que constitui um movimento unilateral do Estado – da
Administração – é oficializado por sua publicação na forma de decreto ou portaria na
imprensa oficial.
No fim do processo, temos a posse, que finaliza a investidura. É o momento em
que o indivíduo nomeado aceita, formalmente, por meio da assinatura do termo de posse
apresentado pelo Estado, as atribuições, deveres e responsabilidades do cargo. Só a
partir desse momento que o indivíduo nomeado se torna servidor público. Trata-se,
assim, de ato bilateral que depende de um movimento do indivíduo e de outro realizado
pelo Estado. Entre a nomeação e a posse, há um lapso temporal de, geralmente, 30 dias.
Para facilitar a compreensão, propomos a figura abaixo para representar o processo de
investidura em cargo público.
Voltemos ao que falávamos sobre os efeitos de sentido produzidos no
deslocamento, no âmago da CF1 reformulada, de {(para) investidura} para {para
posse}.
As enunciações previstas nas formulações {a, b, c, d}, com base no que
explicamos sobre investidura, ficam abertas a três interpretações: os requisitos devem
ser comprovados na nomeação (momento inicial da investidura), na posse (momento
124
Para apresentar esses conceitos, baseamo-nos em Motta (2006) e Alexandrino (2011).
Investidura
Nomeação
início
Posse
Estado
meio fim
indivíduo Estado
lapso temporal
194
final) ou entre a nomeação e a posse? O edital, via de regra, mantém uma linguagem
referencial/denotativa de modo a fechar o texto a uma única interpretação (pura ilusão).
Assim, ao apresentar formulações como as de {a, b, c, d}, para tentar fugir da
plurissignificação, o próprio enunciador formula outros enunciados no corpo do edital
para fechar o campo de significação. Nos editais da Esaf, Cebraspe e FGV, o
enunciador formula cláusulas que determinam o momento exato em que os requisitos
devem ser comprovados; a FCC estabelece esse momento na própria cláusula que
dispõe sobre os requisitos125
. Transcrevemos, abaixo, essas formulações:
Edital Esaf 2017
4.1.1 - A falta de comprovação de qualquer um dos requisitos
especificados neste subitem e daqueles que vierem a ser estabelecidos
na letra “l” impedirá a posse do candidato.
Edital Cebraspe 2018
3.11 O candidato deverá declarar, na solicitação de inscrição, que tem
ciência e aceita que, caso aprovado, deverá entregar os documentos
exigidos para matrícula por ocasião da convocação para o Curso de
Formação Profissional, assim como os documentos comprobatórios
dos requisitos exigidos para o cargo no momento da posse.
Edital FGV 2016
3.4 No ato da posse, todos os requisitos especificados no item 3.3
deverão ser comprovados mediante a apresentação de
documentação original.
Edital FCC 2017
3.1 O candidato aprovado no Concurso de que trata este Edital será
investido no Cargo/Especialidade se atender às seguintes exigências
na data da posse: (...) [Grifos nossos]
A Prima Face, após provocação do Poder Judiciário, reformulou o que havia
enunciado na publicação inicial do seu edital. O gesto de interpretação que pretendemos
realizar aqui ficará mais nítido se tomarmos a primeira formulação da Prima Face (a que
fora julgada ilegal) e a colocarmos em comparação com a retificada.
São requisitos {para inscrição / nomeação}:
São requisitos {para posse}:
O apagamento da perspectiva de que os requisitos deveriam ser apresentados na
inscrição é visível. Mas é importante notar o deslocamento de nomeação para posse, e
não para investidura, como fazem as outras bancas. Nesse deslize, o enunciador
125
Veja a esse propósito o item 1 do corpus discursivo II (ANEXO II).
195
transfere, explicitamente, no corpo da formulação daquela cláusula do edital, a
comprovação dos requisitos para o último momento da investidura. A reformulação
demonstra uma nova relação entre as formações discursivas das partes envolvidas no
processo: uma relação que visa à aliança entre as partes. Agora, o candidato, além de
não dever apresentar os documentos na inscrição, ele não precisa fazê-lo nem no
momento da nomeação, mas tão-somente no ato de posse, no fim do processo.
6.2 Análise da Cadeia de Formulação 2 (CF2): sobre o período de inscrição
As inscrições (...) encontrar-se-ão abertas {no período de 26 de fevereiro de 2016 até 04 de abril de 2016}. [FGV]
As inscrições ficarão abertas (...) {no período das 10 horas do dia 30/10/2017 às 14 horas do dia 27/11/2017} (...). [FCC]
A inscrição será efetuada {no período compreendido entre 10 horas do dia 02 e 23h59min do dia 16 de outubro de 2017}.
[Esaf]
Será admitida a inscrição (...) {no período entre 10 horas do dia 19 de junho de 2018 e 18 horas do dia 2 de julho de 2018} (...)
[Cebraspe]
PERÍODO DE INSCRIÇÕES: {22/07/2009 a 05/08/2009} (...). [Prima Face]
Período de inscrições {de 21 DE MARÇO a 08 de ABRIL DE 2016} (...). [Facet Concursos]
Os tribunais compreendem que, em respeito ao princípio da publicidade, deve
haver um período de, no mínimo, 30 dias destinado à realização das inscrições pelos
candidatos. Nesse sentido, os pontos {a} e {b} refletem o recurso da paráfrase na busca
pela estabilização dos sentidos instituídos pelas leis e pela jurisprudência. Em {a}, o
lapso temporal é de 39 dias e, em {b}, de 29 dias. Porém, o deslize produzido pela
substituição de {a/b} por {c/d/e/f} conduz à ruptura do sentido sempre já-lá: o ponto
{c} prevê um lapso temporal de 15 dias; o ponto {d}, 14 dias; o ponto {e}, 15 dias; e o
ponto {f} de 19 dias.
Nos deslocamentos dos pontos {a/b} para os pontos {c/d/e/f}, saímos de
formulações já estabilizadas para formulações possíveis, determinadas pelo equívoco da
língua. Na CF1, analisada anteriormente, vimos que as formulações possíveis, que visam
romper por meio da polissemia com o já instituído, esbarram em dadas circunstâncias
sob pena de serem impugnadas. É o que se esperaria igualmente para as quatro últimas
formulações da CF2. Contudo, apenas as duas últimas foram objeto de controle judicial.
O TCE/MG impugnou o dispositivo no edital elaborado pela Prima Face, com o
argumento de que as inscrições devem ser realizadas durante o lapso mínimo de trinta
dias, e o TCE/PB impugnou a cláusula do edital elaborado pela FACET, argumentando
196
que o prazo de inscrição inferior a 30 dias inviabiliza extensivamente o conhecimento
prévio do certame. O controle realizado por esses tribunais visa, portanto, manter a
estabilização dos sentidos que circulam atualmente no interior da FDecp
.
A pergunta que colocamos é: por que as formulações dos pontos {c} e {d} não
foram questionadas nem pelos cidadãos que pretendiam se candidatar às vagas nem
pelos devidos órgãos de fiscalização e controle? Da mesma forma que, em âmbito
estadual, há os Tribunais de Contas dos Estados para exercer o controle externo sobre os
atos praticados pelo Estado e pelas prefeituras municipais, como é o caso do controle
exercido sobre os editais elaborados pelas prefeituras de Centralina (MG) e Santa Rita
(PA), há o Tribunal de Contas da União para exercer as mesmas intervenções sobre atos
praticados por órgãos federais. Por que o TCU não questionou, então, o edital da
Esaf/2017, que versava sobre o concurso para o MAPA (Ministério da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento), e o edital do Cebraspe/2018, que disciplinava o concurso
para a Polícia Federal?
As prefeituras de Centralina e Santa Rita, após os pedidos de correção feitos
pelos respectivos TCE, retificaram seus editais. A primeira passou a prever um lapso
temporal de 33 dias para inscrição; a segunda, 30 dias. A Esaf e o Cebraspe não fizeram
nenhuma alteração, uma vez que não houve manifestação contrária às suas formulações.
Com as retificações, temos a seguinte CF2 reformulada:
CF2 Reformulada
As inscrições (...) encontrar-se-ão abertas {no período de 26 de fevereiro de 2016 até 04 de abril de 2016}. [FGV]
As inscrições ficarão abertas (...) {no período das 10 horas do dia 30/10/2017 às 14 horas do dia 27/11/2017} (...). [FCC]
A inscrição será efetuada {no período compreendido entre 10 horas do dia 02 e 23h59min do dia 16 de outubro de 2017}.
[Esaf]
Será admitida a inscrição (...) {no período entre 10 horas do dia 19 de junho de 2018 e 18 horas do dia 2 de julho de 2018} (...)
[Cebraspe]
As inscrições deverão ser efetuadas (...) {no período de 19 de outubro a 22 de novembro de 2009} (...) [Prima Face/retificado]
Período de inscrições: prorrogado {de 01 a 30 de JUNHO DE 2016}, nos dias úteis. [Facet Concursos/retificado]
Mostramos no capítulo anterior que, a partir dos anos de 1960, desenvolveu-se a
prática de se determinar, em editais, prazo de inscrição inferior a 30 dias. Embora as leis
e as decisões tomadas pelos tribunais aludam à necessidade de se satisfazer o intervalo
mínimo de 30 dias (preceito atendido hoje por muitos editais), os órgãos públicos
197
federais ainda vêm fazendo uso de período inferior com toda aparência de legalidade,
não sendo interposto qualquer pedido de impugnação nesse caso.
A cadeia parafrástica em análise sinaliza uma hipótese potencial sobre a
movimentação desses sentidos na produção discursiva em edital. O fato de as
formulações {c} e {d}, mesmo prevendo prazo de inscrição inferior a trinta dias, não
terem sido objeto de questionamento por nenhuma forma de controle da administração
sinaliza a coexistência de dois sentidos pré-construídos oscilando atualmente no
domínio do saber da FDecp
. Esses sentidos parecem, entretanto, estar em um processo de
distribuição, de modo que eles só sejam semanticamente possíveis quando realizados
pela forma-sujeito-instituição correspondente.
Nossa tese é a de que os editais elaborados por órgãos públicos federais e pelas
bancas por eles contratadas para executar um concurso ocupam uma posição discursiva
que preside esses deslocamentos de sentido. Como nos ensinam Haroche, Pêcheux e
Henry (1971), as palavras mudam de sentido de acordo com os sujeitos que as
pronunciam. É uma questão de relação de forças, que se faz valer na comunicação. O
lugar de onde as formas-sujeito dos editais da Esaf e do Cebraspe falam parece ser
decisivo para determinar o que vão dizer. Para nós, é esse traço discursivo que justifica
o fato de um órgão público municipal ser impedido de fixar prazo menor de 30 dias, ao
passo que essa concessão é feita a órgãos federais. As formulações parecem ser
determinadas, no plano intradiscursivo, pelas posições discursivas ocupadas por cada
órgão.
6.3. Análise da Cadeia de Formulação 3 (CF3): sobre a limitação temporal de cinco
anos dos antecedentes criminais como um dos requisitos para investidura
O candidato será investido no cargo se atendidas as seguintes exigências: (...) i) apresentar certidão negativa dos setores de
distribuição dos foros criminais dos lugares em que tenha residido, {nos últimos cinco anos}, da Justiça Federal e Estadual; j)
apresentar folha de antecedentes da Polícia Federal e da Polícia dos Estados onde tenha residido {nos últimos cinco anos}(...); k)
apresentar declaração firmada pelo candidato de não ter sido, {nos últimos cinco anos}: (...) [Esaf]
São requisitos para inscrição / nomeação: (...) Não ter sofrido, quando do exercício de cargo público ou função, demissão a bem do
serviço público ou por justa causa, fato a ser comprovado através da apresentação de documento idôneo ou assinatura de regular
termo de declaração, {no período de 05 a 10 anos} tendo em vista as circunstâncias atenuantes ou agravantes; (...) [Prima Face]
Com base no que dissemos no capítulo anterior, podemos afirmar que as formas-
sujeito-instituição responsáveis pelas enunciações acima filiam-se de algum modo à
memória discursiva da FDecp
. Vimos que a Administração vem reproduzindo a
perspectiva de que a comprovação de bons antecedentes deve ser feita levando em
consideração os últimos cinco anos de vida pregressa do candidato. Desse modo, o
ponto {a}, formulado de acordo com a lei, corresponde a um enunciado que se filia ao
198
interdiscurso da formação discursiva de editais de concurso. O ponto de deriva {b},
porém, traz uma formulação que foge ao domínio do saber dessa FD, por prever período
de investigação superior a cinco anos, tornando-se alvo de intervenção judicial.
A lei, a doutrina do Direito e a jurisprudência, com o intuito de afastar qualquer
possibilidade de aplicação de pena perpétua ao cidadão126
, trazem o entendimento de
que a fase de investigação da vida pregressa do candidato não pode levar em
consideração um lapso temporal desarrazoado, que crie uma eterna punibilidade ao
condenado. A vida do candidato não pode ser investigada de forma ilimitada, mas
dentro de um período específico prévio à posse. Assim, constituiu-se no domínio do
saber da FDecp
, especialmente a partir do Artigo 64, inciso I do Código Penal127
, o
sentido de que a investigação deve ser feita levando em consideração os últimos cinco
anos.
Essa nova significação, que interpretamos como um [E] que passou a compor a
FDecp
, é uma aquisição recente, implantada a partir de 1984 (quando a Lei nº 7.209, de
11.7.1984, deu nova redação ao inciso I do Artigo 64 do CP) e defendida
contemporaneamente por doutrinadores e pela jurisprudência no atual Estado
Democrático de Direito. Nós a vemos, ao mesmo tempo, como uma prerrogativa
(mesma que limitada) concedida ao Estado e um “bônus” concedido ao cidadão que,
uma vez tendo cometido ato ilícito, cumpriu sua pena, arrependeu-se e deseja
reconstruir sua vida servindo ao Estado. Mais além, essa nova significação traz à tona os
compromissos políticos e ideológicos assumidos pelo Estado de Direito frente aos
cidadãos.
Acreditamos que o fato de se tratar de um sentido novo, ainda movediço nas
práticas administrativas dos órgãos do Estado, justifica as formulações em editais que
oscilam entre o prazo de cinco anos e prazos superiores. Trata-se, na prática, de uma
significação em movimento. Isso justificaria ainda, pelo nosso entendimento, a opção
pelo silenciamento dessa perspectiva na textualização de alguns editais. Dos quatro
editais que compõem nosso arquivo E+
, apenas um (o da Esaf) enunciou essa
perspectiva. Os demais (Cebraspe, FGV e FCC) silenciaram-se. Silenciamento que
126
Nossa Constituição Federal/1988 proíbe expressamente a aplicação desse tipo de pena (cf. Artigo 5º,
XLVII, b). 127
Assim reza o referido dispositivo legal: “Art. 64 - Para efeito de reincidência: I - não prevalece a
condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver
decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos, computado o período de prova da suspensão ou do
livramento condicional, se não ocorrer revogação; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984).
199
semeia incertezas no edital, pois, na própria textualização de editais de concurso, o
sujeito-enunciador dispõe que os “casos omissos” serão resolvidos pela Administração.
Atribui-se, assim, à Administração, um poder de decisão sobre tudo que fica silenciado,
o que pode vir a produzir prejuízos aos administrados.
O que vale notar é que a perspectiva atual – que estipula o prazo de apenas cinco
anos de investigação – está difundida no universo jurídico. Desse modo, quando um
edital formula um enunciado que foge a tal sentido, fica sujeito à intervenção judicial. A
Prefeitura de Centralina, em função dos pedidos de correção feitos pelo TCE/MG,
retificou seu edital, passando a prever um lapso temporal limitado em 5 (cinco) anos
anteriores à data da posse para investigar o candidato. Com as retificações, temos a
seguinte CF3 reformulada:
CF3 Reformulada
O candidato será investido no cargo se atendidas as seguintes exigências: (...) i) apresentar certidão negativa dos setores de
distribuição dos foros criminais dos lugares em que tenha residido, {nos últimos cinco anos}, da Justiça Federal e Estadual; j)
apresentar folha de antecedentes da Polícia Federal e da Polícia dos Estados onde tenha residido {nos últimos cinco anos}(...); k)
apresentar declaração firmada pelo candidato de não ter sido, {nos últimos cinco anos}: (...) [Esaf]
São requisitos para inscrição / nomeação: (...) Não ter sofrido, quando do exercício de cargo público ou função, demissão a bem do
serviço público e por justa causa, fato a ser comprovado através da apresentação de documento idôneo ou assinatura de regular
termo de declaração, {no período de 05 anos} anteriores a data da posse. [Prima Face/retificado]
6.4. Análise da Cadeia de Formulação 4 (CF4): sobre a devolução do valor da taxa
de inscrição
O valor da taxa de inscrição {não será devolvido em hipótese alguma, salvo em caso de cancelamento do concurso por
conveniência ou interesse da Administração}. [Esaf]
O valor referente ao pagamento da taxa de inscrição {não será devolvido em hipótese alguma, salvo em caso de cancelamento do
certame por conveniência da Administração Pública}. [Cebraspe]
O valor referente ao pagamento da taxa de inscrição {não será devolvido em hipótese alguma, salvo em caso de cancelamento do
concurso por conveniência da Administração Pública}. [FGV]
O valor recolhido na inscrição {não será devolvido}. [FCC]
O valor da inscrição, uma vez pago, {não será devolvido, sob hipótese alguma, salvo no caso de não realização do Concurso,
por culpa ou omissão exclusiva da Administração}; [Prima Face]
{Em hipótese alguma, haverá devolução da taxa de inscrição já recolhida.} [FAUF]
A cadeia de formulação acima evidencia um traço marcante na produção
discursiva dos editais de concurso: a estabilização dos sentidos. Os enunciados {a}, {b}
e {c} constituem aquilo que entendemos por pontos de bloqueio, produzidos pela
repetição empírica (mnemônica) do mesmo enunciado, de modo que nada se altere.
Independentemente da mínima variação da superfície linguística em {b}, em que há a
200
substituição do item lexical concurso por certame, ambos tendo o mesmo referente, o
efeito metafórico produzido por essa substituição contextual mantém a mesma
ancoragem semântica. Há variação da superfície, mas não de significação.
Entretanto, quando pomos em relação os enunciados {a}, {b} e {c} com {d},
deparamo-nos com um deslocamento de sentidos, produzido pela enunciação de uma
perspectiva que não se filia à mesma rede de formulações estáveis
contemporaneamente. Assim, entendemos {d} como um ponto de deriva, que traz
efeitos metafóricos construídos pelo silenciamento, por parte da Administração, das
hipóteses que assegurariam a devolução da taxa de inscrição.
De acordo com o que afirmamos no capítulo anterior, essa perspectiva enunciada
em {d} pela FCC retoma um elemento do saber que já esteve incorporado na FDecp
,
algo pré-construído, que está lá na memória do dizer. Contudo, ela se choca com novos
sentidos que têm sido incorporados atualmente a essa FD em função das demandas
judiciais. Hoje em dia, segundo a jurisprudência firmada pelo Judiciário, não sendo
realizado o concurso, o valor referente à taxa de inscrição deve ser devolvido ao
candidato.
A forma-sujeito-instituição do concurso executado pela FCC, para produzir uma
formulação contemporânea [e], apropriou-se de um [E] que não entra atualmente na
configuração da FDecp
, produzindo um novo deslocamento de sentido para retomar uma
prática de significação pré-existente. Essa movência desestabiliza a rede de formulações
contemporânea, de modo que o enunciado {d}, elaborado pela FCC, se torne alvo de
controle de legalidade.
No entanto, como atesta nossa CF4, o edital da FCC, que disciplinou o concurso
para a Defensoria Pública do Estado do Amazonas, não passou pelo crivo do Judiciário.
Não encontramos quaisquer relatos de pedidos de impugnação, nem mesmo qualquer
forma de controle que podia ser exercido tanto pelo órgão público autor do concurso
(controle interno) quanto pelo Tribunal de Contas do Estado do Amazonas, responsável
pelo controle externo dos atos da Administração.
Quando voltamos à CF4
e pomos em relação os enunciados {a}, {b}, {c} com
{e} e {f}, defrontamo-nos com formulações (as duas últimas) que caíram em controle
judicial. No deslocamento dos pontos {a, b, c} para o ponto {e}, mais uma vez
assistimos ao jogo do equívoco produzindo uma ruptura com os processos de
significação discursivamente estáveis na atualidade. A enunciação de {e}, embora
ressalve hipóteses de devolução, traz uma textualização diferente daquilo que é
201
considerado estável pelo judiciário, o que pode vir a produzir diferentes efeitos
metafóricos, que ocasionem interpretações diferentes, criando, assim, uma instabilidade
jurídica entre as partes da relação editalícia. O TCE/MG solicitou a alteração do subitem
do referido edital que dispunha tal perspectiva para determinar que a taxa de inscrição
fosse devolvida ao candidato “em caso de cancelamento ou suspensão do certame”. A
intenção é, portanto, reproduzir a perspectiva que está atualmente incorporada à FDecp
,
de forma que fique assegurada a estabilização dos sentidos.
No deslocamento dos pontos {a, b, c} para o ponto {f}, vemos a FAUF realizar
o mesmo deslocamento de sentidos – em relação ao que é considerado estável
atualmente no interior da rede de formulações em análise – feito pela FCC. Porém,
diferentemente desta, o edital da FAUF foi alvo de controle externo. O TCE/MG
impugnou a cláusula do edital do concurso da Prefeitura Municipal de São João Del-
Rey, que não previa hipóteses de devolução, alegando que tal perspectiva feria o
princípio jurídico que proíbe o enriquecimento ilícito, neste caso, por parte da
Administração.
Após as devidas retificações de ambos os editais, conforme orientações do
TCE/MG, as cláusulas que dispunham sobre devolução de taxa de inscrição ganharam
nova textualização. A CF4 fica reformulada do seguinte modo:
CF4 Reformulada
O valor da taxa de inscrição {não será devolvido em hipótese alguma, salvo em caso de cancelamento do concurso por
conveniência ou interesse da Administração}. [Esaf]
O valor referente ao pagamento da taxa de inscrição {não será devolvido em hipótese alguma, salvo em caso de cancelamento do
certame por conveniência da Administração Pública}. [Cebraspe]
O valor referente ao pagamento da taxa de inscrição {não será devolvido em hipótese alguma, salvo em caso de cancelamento do
concurso por conveniência da Administração Pública}. [FGV]
O valor recolhido na inscrição {não será devolvido}. [FCC]
A taxa de inscrição, uma vez paga, {somente será devolvida nos casos de: não realização do Concurso; exclusão de algum
cargo oferecido; em caso de cancelamento ou suspensão do Certame; demais casos que a Comissão Especial de Concurso
Público julgar pertinente}. [Prima Face/retificado]
{No caso de hipóteses inesperadas, inclusive em caso de não realização ou suspensão do concurso, o candidato terá direito a
devolução do valor pago a titulo de inscrição}. [FAUF/retificado]
Vemos formulações {e} e {f} como formas de repetição técnica (formal), que
implicam outra maneira de dizer o mesmo, funcionando como um ponto de bloqueio
202
para assegurar a estabilização dos sentidos. Em outras palavras, retorna-se ao mesmo
espaço do dizer, mas de maneira diferente. É a paráfrase na busca da estabilização.
Para finalizar, é oportuno chamar a atenção para um traço que já sinalizamos ao
analisarmos CF2: o lugar de onde as formas-sujeito dos editais produzidos pela Esaf,
pelo Cebraspe e, assim também, pela FCC falam parece ser decisivo para determinar o
quê e como vão dizer. O fato de essas instituições executoras de concurso gozarem de
relativo prestígio em todo país as coloca em uma posição discursiva diferente de outras
instituições, como a Prima Face e a FAUF, ao ponto de aquelas enunciarem
perspectivas que fogem à prática de significação contemporânea, desfiliando-se da rede
de formulações estáveis, e, mesmo assim, não serem alvo de controle judicial.
6.5. Análise da Cadeia de Formulação 5 (CF5): sobre o direito à nomeação
{A aprovação no concurso assegurará apenas a expectativa de direito à nomeação, ficando a concretização desse ato
condicionada à observância das disposições legais pertinentes, do exclusivo interesse e conveniência da Administração}, da
rigorosa ordem de classificação e do prazo de validade do concurso}. [Esaf]
A convocação para o Curso de Formação Profissional e {a nomeação dos candidatos aprovados respeitará o número total de
vagas, o número de vagas reservadas a candidatos com deficiência e a candidatos negros} oferecidos no item 4 deste edital.
[Cebraspe]
{Os candidatos classificados serão convocados para nomeação} por meio de publicação no Diário Oficial e telegrama enviado
pela ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos). [FGV]
{Os candidatos aprovados, conforme disponibilidade de vagas, terão sua nomeação} publicada no Diário Eletrônico da
Defensoria Pública do Estado do Amazonas. [FCC]
{A aprovação no concurso público regido por este Edital assegurará apenas a expectativa de direito à nomeação, ficando a
concretização desse ato condicionada ao exclusivo interesse e conveniência da Administração}, da disponibilidade
orçamentária, da estrita ordem de classificação, do prazo de validade do concurso e do cumprimento das disposições legais
pertinentes. [Prima Face]
{A aprovação no Concurso Público não cria direito à nomeação}, mas esta, quando ocorrer, obedecerá a ordem de classificação
final constante da homologação do Concurso Público. [FAUF]
{A classificação no Concurso Público assegurará a expectativa do direito de ser nomeado dos candidatos aprovados},
seguindo a ordem classificatória, ficando a concretização das nomeações condicionada à existência de vagas e a prioridade sobre
novos concursados para assumir cargo no serviço público municipal de SANTA RITA. [FACET]
{A aprovação e classificação no presente Concurso Público não conferem ao candidato selecionado o direito automático à
admissão}, apenas impede que o INDI preencha as presentes vagas fora da ordem de classificação ou com outros candidatos, até o
final do prazo de validade deste Concurso Público. [FUNDEP]
No capítulo prévio, tivemos a oportunidade de mostrar ao leitor a movimentação
dos sentidos, no interior da FDecp
, no tocante à nomeação dos candidatos aprovados e
classificados dentro do número de vagas. Contemporaneamente, em razão da
jurisprudência dos Tribunais Superiores, podemos afirmar que o elemento do saber que
funciona discursivamente como o pré-construído “válido” para as formulações
203
intradiscursivas, relaciona-se à prática de significação segundo a qual o candidato
classificado tem direito subjetivo à nomeação. No entendimento do Judiciário, portanto,
os editais devem conter uma cláusula que assim disponha essa perspectiva.
A CF5, entretanto, evidencia que há uma oscilação entre o sentido
contemporâneo, cuja manutenção é pretendida pelo Judiciário, e o outro constituído
anteriormente, que prevê a nomeação apenas como uma “expectativa de direito”. Os
pontos {b}, {c} e {d} trazem formulações que aparentam atender à prática de
significação atual, embora não explicitem o fato de a nomeação constituir mera
expectativa de direito ou o fato de a nomeação constituir direito subjetivo do candidato.
Silenciamentos que abrem o texto à plurissignificação, dando margem a diferentes
interpretações. Entretanto, do ponto de vista jurídico e administrativo, essas
formulações não trazem insegurança para as partes envolvidas. Por isso, os pontos {b},
{c} e {d} não foram objeto de quaisquer formas de controle judicial.
Contraditoriamente, também não foi alvo de controle a cláusula formulada pela
Esaf, ponto {a}, que traz uma enunciação que foge à atual prática de significação. A
Esaf elaborou uma formulação intradiscursiva [e] que retoma um enunciado [E] que,
pela perspectiva do Judiciário, não deveria mais pertencer à FDecp
, uma vez que infringe
um direito adquirido pelo candidato quando aprovado dentro do número de vagas.
Temos aqui mais um indício que reforça nossa argumentação, segundo a qual a posição
discursiva ocupada pela forma-sujeito-instituição é decisiva para que ela enuncie a
perspectiva que quer, sem que seja alvo de controle judicial. Perguntamo-nos, de novo,
por que a Esaf, ao formular um enunciado que foge à significação contemporânea, não
respondeu por isso? Nossa tese é a de que sua posição discursiva, o lugar de onde a Esaf
fala, é determinativa, conferindo-lhe autonomia e poder para enunciar uma perspectiva
que circule na sociedade com toda aparência de legalidade.
A prática discursiva da Administração Pública referente ao direito à nomeação
envolve, atualmente, um dos pontos mais controversos da produção do discurso em
editais. Isso fica visível quando tomamos em comparação o ponto {a} da CF5
com os
pontos {e}, {f}, {g} e {h}. Estes últimos foram todos condenados pelo Judiciário, que
exigiu dos respectivos órgãos públicos/instituições examinadoras a devida retificação.
As formulações {e}, {f}, {g} e {h}, embora sejam enunciados diferentes, trazem
a mesma perspectiva daquela produzida pela Esaf: o candidato tem apenas a expectativa
de direito à nomeação. Assim, {a}, {e}, {f}, {g} e {h} estão em uma relação de
204
paráfrase, uma vez que fazem um constante retorno ao mesmo espaço do dizer.
Contudo, {e}, {f}, {g} e {h} foram impugnados pelos órgãos de controle.
Para nós, esses casos de impugnação estão relacionados à posição discursiva das
respectivas formas-sujeito enunciadoras de {e}, {f}, {g} e {h}. O ponto {e} foi
formulado pela Prefeitura Municipal de Centralina/Prima Face; {f}, pela Prefeitura
Municipal de São João Del-Rey/FAUF; {g}, pela Prefeitura Municipal de Santa
Rita/FACET; e {h}, pelo Instituto de Desenvolvimento Integrado de Minas
Gerais/FUNDEP. Essas instituições parecem não ter a mesma “força” que a Esaf, de
modo que o lugar de onde as primeiras falam não lhes dê a mesma autonomia e poder
que a última detém.
As formas-sujeito-instituição responsáveis pelas formulações de {e} e {f}, após
o julgamento dos respectivos órgãos de intervenção, reapresentaram novas
textualizações. A Prima Face revogou o enunciado, silenciando-se completamente sobre
a nomeação (o que, de algum modo, não é seguro para o candidato); a FAUF
reformulou o que tinha inicialmente enunciado de modo a prever a nomeação do
candidato dentro da ordem de classificação. Por outro lado, as formas-sujeito
responsáveis pelas formulações de {g} e {h}, a FACET e a FUNDEP, não fizeram
nenhuma alteração na primeira versão de seus editais. Eis a CF5 reformulada.
CF5 Reformulada
{A aprovação no concurso assegurará apenas a expectativa de direito à nomeação, ficando a concretização desse ato
condicionada à observância das disposições legais pertinentes, do exclusivo interesse e conveniência da Administração}, da
rigorosa ordem de classificação e do prazo de validade do concurso}. [Esaf]
A convocação para o Curso de Formação Profissional e {a nomeação dos candidatos aprovados respeitará o número total de
vagas, o número de vagas reservadas a candidatos com deficiência e a candidatos negros} oferecidos no item 4 deste edital.
[Cebraspe]
{Os candidatos classificados serão convocados para nomeação} por meio de publicação no Diário Oficial e telegrama enviado
pela ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos). [FGV]
{Os candidatos aprovados, conforme disponibilidade de vagas, terão sua nomeação} publicada no Diário Eletrônico da
Defensoria Pública do Estado do Amazonas. [FCC]
(Revogado) (Prima Face/retificado)
{A nomeação dos aprovados no Concurso Público obedecerá a ordem de classificação final constante da homologação}.
(FAUF/retificado)
{A classificação no Concurso Público assegurará a expectativa do direito de ser nomeado dos candidatos aprovados},
seguindo a ordem classificatória, ficando a concretização das nomeações condicionada à existência de vagas e a prioridade sobre
novos concursados para assumir cargo no serviço público municipal de SANTA RITA. [FACET/não retificado]
{A aprovação e classificação no presente Concurso Público não conferem ao candidato selecionado o direito automático à
admissão}, apenas impede que o INDI preencha as presentes vagas fora da ordem de classificação ou com outros candidatos, até o
final do prazo de validade deste Concurso Público. [FUNDEP/não retificado]
205
O que justificaria o fato de as bancas examinadoras das duas últimas
formulações da CF5 não terem feito a devida retificação exigida pelos respectivos
órgãos de controle, e o concurso prosseguir de forma legítima até sua fase final? Para
nós, esta contradição se justifica pela oscilação que ocorre contemporaneamente entre
os dois sentidos constituídos no interior da FDecp
. Entendemos que o sentido novo (que
obriga o órgão público a nomear o candidato classificado dentro do número de vagas),
assim que foi incorporado à FDecp
, não excluiu do mesmo território o sentido
constituído anteriormente (que concedia ao candidato apenas a expectativa de direito).
Percebemos que os dois sentidos, mesmo em confronto um com o outro, funcionam
discursivamente como pré-construídos que estão sempre lá no âmago da formação
discursiva do concurso público.
6.6. Análise da Cadeia de Formulação 6 (CF6): sobre os critérios de desempate
Havendo {empate} na totalização dos pontos, {terá preferência o candidato com idade igual ou superior a 60 (sessenta)
anos}(...). [Esaf]
Em caso de {empate} na nota final na primeira etapa do concurso para o cargo de Delegado de Polícia Federal, {terá preferência o
candidato que, na seguinte ordem: a) tiver idade igual ou superior a sessenta anos, até o último dia de inscrição neste
concurso} (...) [Cebraspe]
Em caso de {empate}, {terá preferência o candidato que, na seguinte ordem: a) tiver idade igual ou superior a sessenta anos,
até o último dia de inscrição neste concurso} (...). [FGV]
(...) na hipótese de {igualdade de nota final}, {após observância do disposto no Parágrafo Único do artigo 27 da Lei nº 10.741,
de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), sendo considerada, para esse fim, a data limite para correção de dados
cadastrais} (...) [FCC]
Em caso de {empate} na Primeira Etapa, será classificado o candidato que: 7.1.4.1 obtiver maior número de pontos na prova de
Conhecimento Específico; 7.1.4.2 obtiver maior número de pontos no conteúdo de Língua Portuguesa da prova de Conhecimento
Geral; 7.1.4.3 obtiver maior número de pontos no conteúdo de Conhecimentos Gerais da prova de Conhecimento Geral; 7.1.4.4 {for
mais velho}. [FAUF]
No capítulo 5, mostramos que duas práticas de significação foram constituídas
historicamente no interior da FDecp
no que diz respeito aos critérios de desempate em
provas de concurso. Antes de 2003, os critérios eram variados e definidos por cada
órgão público para dado concurso; depois de 2003, com a proteção que a Constituição
Federal e a Lei no
10.741 de 1º de outubro de 2003 concederam ao idoso, fechou-se o
campo de formulação intradiscursiva da administração, que só pôde, a partir de então,
prever como primeiro critério de desempate a qualidade de “candidato mais idoso”: o
mais idoso tem preferência sobre os demais candidatos.
Os pontos {a}, {b}, {c} e {d} da Cadeia de Formulação 6 evidenciam que,
atualmente, é este último sentido que está lá na memória do dizer e norteia as
formulações intradiscursivas contemporâneas. Esses pontos estão em uma relação de
206
paráfrase, visando dizer o mesmo sentido independente das diferentes textualizações.
Eles funcionam, assim, como outro ponto de bloqueio na produção discursiva dos
editais, pelo qual se busca a estabilização do mesmo sentido de modo a se assegurar a
estabilidade jurídica entre as partes.
Quando comparamos os pontos {a}, {b}, {c} e {d} com o ponto {e},
observamos um deslocamento de sentidos. A FAUF, executora do concurso da
Prefeitura Municipal de São João Del-Rey/MG, retoma uma prática de significação que
não está em conformidade com atual configuração discursiva do sentido em questão.
Assim, {e} funciona, no interior da CF6, como um ponto de deriva.
Em razão do controle a que o edital está sujeito, essa formulação da FAUF foi
questionada pelo TCE/MG, que alegou que a cláusula assim formulada fere os preceitos
da Lei Federal 10.471/2003 e a previsão de que o candidato mais idoso prevalece em
caso de desempate. Não há, nesse sentido, margem de discricionariedade para a
administração, cabendo a ela atuar exclusivamente de acordo com a lei. Em termos
discursivos, podemos dizer que não há espaço para a deriva, cabendo a forma-sujeito-
instituição formular a perspectiva que entre em conformidade com a atual configuração
discursiva para o mesmo sentido.
Após a suspensão cautelar do edital, a FAUF retificou o instrumento de
convocação em que passou a figurar a seguinte formulação: “Em caso de empate na
Primeira Etapa, será classificado o candidato que: 7.1.4.1 possuir mais de sessenta
anos}; (...)”. Mais uma vez, temos um retorno à paráfrase. A CF6 fica reformulada com
a configuração seguinte e mostra que, para a formulação do sentido em análise, não há
espaço para a polissemia, devendo o sentido ser sempre o mesmo, sob pena de anulação
do concurso.
CF6 Reformulada
Havendo {empate} na totalização dos pontos, {terá preferência o candidato com idade igual ou superior a 60 (sessenta)
anos}(...). [Esaf]
Em caso de {empate} na nota final na primeira etapa do concurso para o cargo de Delegado de Polícia Federal, {terá preferência o
candidato que, na seguinte ordem: a) tiver idade igual ou superior a sessenta anos, até o último dia de inscrição neste
concurso} (...) [Cebraspe]
Em caso de {empate}, {terá preferência o candidato que, na seguinte ordem: a) tiver idade igual ou superior a sessenta anos,
até o último dia de inscrição neste concurso} (...). [FGV]
(...) na hipótese de {igualdade de nota final}, {após observância do disposto no Parágrafo Único do artigo 27 da Lei nº 10.741,
de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), sendo considerada, para esse fim, a data limite para correção de dados
cadastrais} (...) [FCC]
“Em caso de {empate} na Primeira Etapa, {será classificado o candidato que: 7.1.4.1 possuir mais de sessenta anos}; (...)”.
[FAUF/retificado]
207
6.7. Análise da Cadeia de Formulação 7 (CF7): sobre as vagas destinadas a
portadores de necessidades especiais
O candidato que se julgar amparado pelo Decreto nº 3.298, de 20.12.99, publicado no DOU de 21.12.99, Seção 1, alterado pelo
Decreto nº 5.296, de 2.12.04, publicado na Seção 1 do DOU de 3.12.04, poderá concorrer às {vagas reservadas a pessoas com
deficiência}, fazendo sua opção no pedido de inscrição no concurso. [Esaf]
Das vagas destinadas a cada cargo/área, {5% serão providas} na forma do § 2º do artigo 5º da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de
1990, e suas alterações, do Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, e suas alterações, da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015,
e da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos autos do Recurso Extraordinário nº 676.335/MG, de 26 de
fevereiro de 2013.
+
Caso a aplicação do percentual de que trata o subitem 5.1 deste edital resulte em {número fracionado, este deverá ser elevado até
o primeiro número inteiro subsequente, desde que não ultrapasse 20% das vagas oferecidas por cargo/área}, nos termos do §
2º do artigo 5º da Lei nº 8.112/1990 e suas alterações. [Cebraspe]
Do total de vagas para os cargos e das vagas que vierem a ser criadas durante o prazo de validade do Concurso Público, {ficarão
reservadas 10% (dez por cento)} aos candidatos que se declararem pessoas com deficiência, conforme disposto na Lei Estadual nº
2.298, de 28 de julho de 1994, e na Resolução CNMP nº 81, de 31 de janeiro de 2012 (...)
+
Caso a aplicação do percentual de que trata o item 6.1.1 resulte {número fracionário, este deverá ser elevado até o primeiro
número inteiro subsequente, desde que não ultrapasse 20% (vinte por cento) das vagas}, conforme previsto no art. 5º, § 2°, da
Lei nº 8.112, de 1990. [FGV]
Em cumprimento ao disposto no § 2º do artigo 5º da Lei Federal nº 8.112/1990, bem como na forma do art. 37, §1º do Decreto
Federal nº 3.298/1999, ser-lhes-á {reservado o percentual de 5% (cinco por cento) das vagas existentes}, das que vierem a surgir
ou das que forem criadas no prazo de validade do Concurso.
+
Caso a aplicação do percentual de que trata o item 5.2 resulte em {número fracionado, este deverá ser elevado até o primeiro
número inteiro subsequente, desde que não ultrapasse a 20% das vagas oferecidas}, nos termos do § 2º do art. 5º da Lei
Federal nº 8.112/90 e do Enunciado CNJ nº 12/2009. [FCC]
Conforme art. 30, parágrafo 5o, da Lei Municipal 4.070, de 27/11/2006, serão {reservadas 10% (dez por cento) das vagas
providas em cada cargo para candidatos portadores de necessidades especiais}, {desprezadas frações menores que 1 (um)},
conforme disposto no Quadro 1, deste Edital, desde que sua deficiência seja compatível com o exercício do cargo, de acordo com
exame médico que fará avaliação das condições do candidato que se classificar. [FAUF]
Com base no que dissemos nos capítulos 5 e 6, podemos afirmar que o sentido
referente às vagas destinadas a PNE, estabilizado hoje na prática discursiva do edital, é
o de que deve haver uma reserva de, no mínimo, 5 %128
e, no máximo, 20%129
. Caso o
resultado da aplicação dessa regra resulte em número fracionado, a Lei 3.298/99
determina que a fração deve obrigatoriamente ser arredondada para o primeiro número
inteiro subsequente.
Esse sentido constitui um “dizer sedimentado” e vem funcionando como outro
ponto de bloqueio na produção discursiva do edital. Desse modo, na CF7, os pontos
{a}130
, {b}, {c} e {d} reiteram a mesma prática de significação, uma vez que são
128
Percentual definido pela Lei 3.298/99. 129
Percentual definido pela Lei 8.112/90. 130
A Esaf não estipulou percentuais em sua formulação ao tratar das vagas destinadas a PNE. Porém, no
item 1.2 do edital, onde dispõe sobre o quantitativo geral de vagas, o sujeito-enunciador aplica a regra
segundo a lei. Das 300 vagas oferecidas, 15 (5% de 300) são reservadas para PNE. O edital silenciou a
regra do arredondamento por não haver aplicação naquele caso, uma vez que o número total de vagas é
inteiro.
208
produzidas diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado. Embora os enunciados
sejam diferentes, o sentido é sempre o mesmo. Todas essas formulações colocam-se do
lado da estabilização dos sentidos.
Contudo, no ponto {e}, elaborado pela FAUF para o concurso da Prefeitura
Municipal de São João Del-Rey/MG, observamos a polissemia rompendo com o
processo de significação estabilizado, deslocando, movimentando o sentido. No jogo
com o equívoco, o enunciador cria uma nova perspectiva, a qual despreza as frações
menores que 1 (um), infringindo a regra do arredondamento prevista pela Lei 3.298/99.
O resultado de uma formulação como esta não podia ser outro: o TCE/MG
questionou o teor do enunciado produzido pela FAUF e solicitou a devida retificação. O
Tribunal em questão entende que, sempre que há o oferecimento em um certame de pelo
menos duas vagas, deve ser feita a reserva de modo a se aplicar a tese da máxima
efetividade das leis.
Com isso, a FAUF e a Prefeitura Municipal de São João Del-Rey retificaram o
edital do concurso dando nova redação ao que tinham enunciado na primeira versão do
edital. O resultado dessa nova textualização pode ser visto na CF7 Reformulada.
CF7 Reformulada
O candidato que se julgar amparado pelo Decreto nº 3.298, de 20.12.99, publicado no DOU de 21.12.99, Seção 1, alterado pelo
Decreto nº 5.296, de 2.12.04, publicado na Seção 1 do DOU de 3.12.04, poderá concorrer às {vagas reservadas a pessoas com
deficiência}, fazendo sua opção no pedido de inscrição no concurso. [Esaf]
Das vagas destinadas a cada cargo/área, {5% serão providas} na forma do § 2º do artigo 5º da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de
1990, e suas alterações, do Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, e suas alterações, da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015,
e da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos autos do Recurso Extraordinário nº 676.335/MG, de 26 de
fevereiro de 2013.
+
Caso a aplicação do percentual de que trata o subitem 5.1 deste edital resulte em {número fracionado, este deverá ser elevado até
o primeiro número inteiro subsequente, desde que não ultrapasse 20% das vagas oferecidas por cargo/área}, nos termos do §
2º do artigo 5º da Lei nº 8.112/1990 e suas alterações. [Cebraspe]
Do total de vagas para os cargos e das vagas que vierem a ser criadas durante o prazo de validade do Concurso Público, {ficarão
reservadas 10% (dez por cento)} aos candidatos que se declararem pessoas com deficiência, conforme disposto na Lei Estadual nº
2.298, de 28 de julho de 1994, e na Resolução CNMP nº 81, de 31 de janeiro de 2012 (...)
+
Caso a aplicação do percentual de que trata o item 6.1.1 resulte {número fracionário, este deverá ser elevado até o primeiro
número inteiro subsequente, desde que não ultrapasse 20% (vinte por cento) das vagas}, conforme previsto no art. 5º, § 2°, da
Lei nº 8.112, de 1990. [FGV]
Em cumprimento ao disposto no § 2º do artigo 5º da Lei Federal nº 8.112/1990, bem como na forma do art. 37, §1º do Decreto
Federal nº 3.298/1999, ser-lhes-á {reservado o percentual de 5% (cinco por cento) das vagas existentes}, das que vierem a surgir ou das que forem criadas no prazo de validade do Concurso.
+
Caso a aplicação do percentual de que trata o item 5.2 resulte em {número fracionado, este deverá ser elevado até o primeiro
número inteiro subsequente, desde que não ultrapasse a 20% das vagas oferecidas}, nos termos do § 2º do art. 5º da Lei
Federal nº 8.112/90 e do Enunciado CNJ nº 12/2009. [FCC]
Conforme art. 30, parágrafo 5o, da Lei Municipal 4.070, de 27/11/2006, {serão reservadas 10% (dez por cento) das vagas
providas em cada cargo para candidatos portadores de necessidades especiais. Será reservada 1 (uma) vaga para portador
de necessidades especiais em todos os casos em que o número de vagas oferecidas para o cargo estiver compreendido entre 2
(duas) e 9 (nove)}. [FAUF/retificado].
209
6.8. Análise da Cadeia de Formulação 8 (CF8): sobre prazo para recursos quanto
às provas aplicadas
Quanto às provas objetivas: (...) e) {o recurso deverá ser formulado e enviado, via internet, até 2 (dois) dias úteis, contados a
partir do dia seguinte ao da divulgação dos gabaritos}(...) [Esaf]
O candidato que desejar interpor {recursos contra os gabaritos oficiais preliminares da(s) prova(s) objetiva(s) disporá das 9
horas do primeiro dia às 18 horas do segundo dia (horário oficial de Brasília/DF) para fazê-lo, a contar do dia subsequente
ao da divulgação desses gabaritos}. [Cebraspe]
O candidato que desejar interpor {recurso contra o gabarito oficial preliminar e contra o resultado preliminar da prova escrita
objetiva, mencionados no subitem 11.1, disporá de dois dias úteis para fazê-lo, a contar do dia subsequente ao da divulgação
destes}. [FGV]
{Os recursos deverão ser interpostos no prazo de 2 (dois) dias úteis após a ocorrência do evento que lhes der causa}, tendo
como termo inicial o 1º dia útil subsequente à data do referido evento. [FCC]
Será admitida a interposição de {recurso pelo candidato que se achar prejudicado na prova escrita da seleção. Para isso terá
um prazo de 3 (três) dias úteis após o encerramento da prova}. (...). [FACET]
A Cadeia de Formulação 8 traz mais um tópico que indica a paráfrase como o
processo sobre o qual se assenta a produção discursiva dos editais de concurso. As
cláusulas editalícias que dispõem sobre prazo de recursos para as provas aplicadas são
formuladas retornando ao mesmo espaço do dizer.
No capítulo anterior, tivemos a oportunidade de mostrar que,
contemporaneamente, na textualização de editais, há duas perspectivas que entram em
jogo: o edital prevê prazo de recurso de 02 (dois) ou 03 (três) dias úteis, contados a
partir da divulgação do gabarito. Ambas estão filiadas à atual configuração da FDecp
ao
ponto de serem consideradas lícitas tanto pela Administração, no momento em que
elaboram seus editais, quanto pelos órgãos de controle, no momento em que os julgam.
Na CF8, os pontos {a}, {b}, {c} e {d} são produzidos no plano intradiscursivo
por formas-sujeito que optaram pelo prazo dois dias. São todos eles enunciados na
ordem da paráfrase: diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado. Pontos de
bloqueio, que enquadram o edital nos contornos da lei. Porém, {e} constitui um ponto
de deriva formulado por meio do processo polissêmico; nele, vemos uma ruptura com a
memória do dizer que pode ter sido provocada por engano ou mesmo por manobra do
sujeito-enunciador, de modo a evitar recursos às questões das provas escritas.
O enunciado {e}, elaborado pela FACET Concursos e pela Prefeitura Municipal
de Santa Rita, previu prazo recursal de três dias contados a partir do encerramento das
provas (e não a partir da liberação dos gabaritos). De acordo com o relatório do
TCE/PB, que impugnou o referido edital, houve uma coincidência entre o prazo de
divulgação dos gabaritos (segundo o edital, esse prazo é de 72 horas após o
210
encerramento das provas) e o prazo de recurso (segundo o edital, 3 dias após o
encerramento das provas). Nesse sentido, o prazo de recurso estaria expirado no
momento da divulgação do gabarito, e os candidatos não teriam, na prática, direito ao
recurso.
Depois da retificação do edital, a mesma cláusula passou a ter outra formulação,
conforme atesta a CF8
Reformulada, que implica o retorno ao mesmo espaço do dizer
sedimentado. Volta-se à paráfrase. Retoma-se o estabilizado.
Quanto às provas objetivas: (...) e) {o recurso deverá ser formulado e enviado, via internet, até 2 (dois) dias úteis, contados a
partir do dia seguinte ao da divulgação dos gabaritos}(...) [Esaf]
O candidato que desejar interpor {recursos contra os gabaritos oficiais preliminares da(s) prova(s) objetiva(s) disporá das 9
horas do primeiro dia às 18 horas do segundo dia (horário oficial de Brasília/DF) para fazê-lo, a contar do dia subsequente
ao da divulgação desses gabaritos}. [Cebraspe]
O candidato que desejar interpor {recurso contra o gabarito oficial preliminar e contra o resultado preliminar da prova escrita
objetiva, mencionados no subitem 11.1, disporá de dois dias úteis para fazê-lo, a contar do dia subsequente ao da divulgação
destes}. [FGV]
{Os recursos deverão ser interpostos no prazo de 2 (dois) dias úteis após a ocorrência do evento que lhes der causa}, tendo
como termo inicial o 1º dia útil subsequente à data do referido evento. [FCC]
{Será admitida a interposição de recurso pelo candidato} que se achar prejudicado na prova escrita da seleção. Para isso terá
{um prazo de 3 (três) dias úteis após o encerramento da prova e/ou após a divulgação do gabarito} (...). [FACET/retificado]
6.9. Análise da Cadeia de Formulação 9 (CF9): sobre a ausência do programa das
provas131
{ANEXO I – PROGRAMAS} [Esaf]
Nas provas, {serão avaliados, além de habilidades, conhecimentos conforme descritos a seguir.} (...) [Cebraspe]
{ANEXO I – CONTEÚDO PROGRAMÁTICO} [FGV]
{ANEXO II - CONTEÚDO PROGRAMÁTICO} [FCC]
{Ø} [FUMARC]
A Cadeia de Formulação acima traz um traço diferente das demais. Nela, pomos
em jogo a questão do silenciamento. No capítulo 5, mostramos que a indicação dos
conteúdos sobre os quais as questões das provas de concurso devem ser formuladas é
uma prática que começou a se constituir no Brasil desde o Império. Atualmente, é
131
Para a organização da CF9, referimo-nos apenas ao título ou ao enunciado que prevê a descrição do
conteúdo programático das provas, uma vez que não é possível transcrever todo o programa em razão do
espaço que ele ocuparia.
211
considerada inadmissível na produção discursiva dos editais qualquer tentativa de
silenciamento dos programas de provas, sob pena de ser fulminado todo o processo
seletivo.
Os pontos {a}, {b}, {c} e {d} da Cadeia de Formulação 9 atestam que a
indicação do programa de provas é uma prática recorrente. De fato, entre todos os
editais que tomamos em análise para a presente pesquisa, apenas um deixou de aludir
aos conteúdos de possível examinação em suas provas: trata-se do VI Concurso Público
para ingresso na carreira da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, executado
pela FUMARC. Podemos resumir o histórico do referido concurso da seguinte forma: a)
o edital foi divulgado em 03 de março de 2008; b) em 02 de dezembro de 2008, o edital
foi apreciado pela Segunda Câmara Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, que
determinou a suspensão do concurso em razão das irregularidades apresentadas (entre
elas, a ausência dos programas de provas); c) em 03 de dezembro de 2008, a FUMARC
publicou uma nota declarando a suspensão do concurso; em 2009, o concurso foi
restabelecido com inscrições previstas entre 23/03/2009 e 02/04/2009 (no novo edital,
havia o ANEXO I, com previsão dos conteúdos de prova).
O concurso promovido pela FUMARC para a Defensoria Pública de Minas
Gerais evidencia que, na atual produção discursiva de editais, não cabe o silenciamento
dos conteúdos de prova, em razão da instabilidade produzida para os candidatos. O
silenciamento dá à Administração um amplo leque de conteúdos que os candidatos não
têm condições de conhecer – para efeitos de arguição em concurso – em função das
próprias limitações do ser humano.
6.10. Análise da Cadeia de Formulação 10 (CF10
): sobre a previsão de vagas para
negros
{Além das vagas previstas neste Edital, das que vierem a ser criadas durante o prazo de validade deste processo seletivo,
20% (vinte por cento) serão providas na forma da Lei nº 12.990, de 09 de junho de 2014}. [Esaf]
{Das vagas destinadas a cada cargo/área, 20% serão providas na forma da Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014, e da
Portaria Normativa nº 4, de 6 de abril de 2018}. [Cebraspe]
{Ø} [MPF]
A Cadeia de Formulação 10 segue o mesmo caso da anterior: põe em jogo o que
deve ser enunciado com o que, por vezes, é silenciado. Vale salientar também que, na
212
CF10
, há formulações produzidas apenas em editais de concursos federais, uma vez que
o sistema de cotas para negros, implantado pela lei federal 12.990/2014 só se aplica a
certames que visam prover cargos públicos da União.
Os editais produzidos pela Esaf e pelo Cebraspe, com o objetivo de dar plena
efetividade à lei 12.990/2014, trazem formulações que respeitam a lei. Por isso, os
pontos {a} e {b} não esbarraram em controle judicial, uma vez que constituem
paráfrases em relação à lei, retomam a memória do dizer, pendendo para a estabilização
do sentido. Essas formulações constituem, assim, dentro da atual conjuntura, um ponto
de bloqueio na produção discursiva dos editais que disciplinam concursos federais.
O ponto {c}, entretanto, faz um silenciamento sobre a cota para negros.
Devemos notar que esse silenciamento é produzido pelo Ministério Público Federal
(MPF) em seu concurso para Procurador da República. Um órgão, que em princípio tem
a função institucional de fazer cumprir-se a lei, descumpre-a: uma contradição digna de
ser observada em uma perspectiva discursiva.
Perguntamo-nos a qual formação ideológica o MPF se filia afinal. Trata-se de
uma FI que nega o sistema de cotas ou uma FI que vê a cota como uma forma de
atenuar os desníveis que nossa sociedade construiu historicamente sobre o negro no
Brasil? Para responder a essa pergunta, devemos analisar todo o trâmite do referido
concurso.
O edital do 29º Concurso para provimento de cargos de Procurador da
República, organizado e executado pelo próprio Ministério Público Federal, foi
publicado em 26 de agosto de 2016. Nele, não foi formulada qualquer cláusula de
previsse 20% das vagas destinadas a negros. Por isso, o próprio MPF, depois de ter sido
provocado por cidadãos que viram o direito à cota ser infringido, moveu uma ação civil
pública em que era pedida a anulação do certame e desfazimento de todos os atos
praticados. A ação, que tramitou na 14ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito
Federal, ocasionou a suspensão do concurso em 05 de abril de 2017, voltando a ter
prosseguimento apenas em 12 de junho de 2018.
Mesmo com a suspensão do concurso, não encontramos, após seu
restabelecimento, nenhum edital de retificação que previsse explicitamente o percentual
(de vagas para negros) previsto em lei. Quando consultamos o site oficial do MPF132
, o
único documento em que fica evidente que o MPF respeitou a decisão judicial e passou
132
http://www.mpf.mp.br/concursos/concursos/procuradores/29-concurso?b_start:int=0
213
a prever alguma vaga para negros é o Edital 74 de 18/12/2018, que divulga o resultado
final do concurso. Entre os classificados nas “vagas de ampla concorrência” há 46
candidatos; entre os classificados nas “vagas reservadas a pessoas negras”, há apenas 1.
O fato é que não temos condições de identificar quantas vagas o MPF reservou
certamente a pessoas negras. O concurso, mesmo assim, seguiu seu trâmite
normalmente após a liminar que o restabeleceu.
214
Considerações finais
O presente trabalho teve por objetivo analisar a prática discursiva produzida pelo
Estado na textualização dos editais de concurso público. Para isso, fizemos uma
investigação em que se tornou necessário seguir duas vias – duas etapas de pesquisa –
de modo que fosse possível oferecer uma ampla visão dos mecanismos envolvidos
atualmente na formulação de enunciados em editais.
De início, observamos como os sentidos referentes a concurso público vieram
sendo constituídos pela atividade do poder legislativo federal, do Brasil Imperial à atual
República Federativa do Brasil, e como esses sentidos foram sendo formulados, no
plano intradiscursivo, pelos órgãos da Administração Pública em editais por ela
produzidos no mesmo período. Em seguida, colocamos em análise a maneira pela qual a
Administração formula contemporaneamente os enunciados de edital, com o objetivo de
mostrar como os deslizamentos hoje praticados podem fulminar todo o documento,
ocasionando suspensão ou anulação do certame, uma vez que rompem com os dizeres já
sedimentados. Sobre este último aspecto, sinalizamos que as contendas entre
Administração e administrados – interlocutores da relação editalícia – surgem e se
acentuam em razão desses deslizamentos de sentido (a deriva, o efeito metafórico) que
intervêm nas formulações contemporâneas de enunciados e balançam os processos de
significação já instituídos. Nossas análises nos permitiram, assim, chegar às conclusões
que descrevemos a seguir.
Ao assumirmos que o concurso público é um dispositivo administrativo de
gestão-controle concentrado nas mãos do Estado, pudemos inscrevê-lo no domínio
daquilo que Pêcheux (1999 [1982], 2012 [1983]) chamou de universo discursivo
logicamente estabilizado, que cria a ilusão de um mundo semanticamente normal e onde
há a necessidade de produzir disjunções e categorizações lógicas, ou seja, é preciso
estabelecer fronteiras (e o Estado e suas instituições funcionam para dar resposta a esta
necessidade). Desse modo, tivemos condições de afirmar que o concurso é uma prática
pela qual o Estado e suas instituições realizam disjunções e categorizações lógicas,
produzindo uma gestão social dos indivíduos, pela qual eles são identificados no
momento da inscrição, separados de acordo com critérios definidos (nível de
escolaridade, cargo pretendido, etc.), comparados em termos de desempenho nas
provas, colocados em ordem de classificação etc. Tudo isso visando à seleção dos
candidatos mais aptos a cuidar da coisa pública.
215
Entretanto, o fato de estar aparentemente inscrito em um espaço discursivo
logicamente estável não faz do concurso um ritual sem contradições, falhas, faltas, uma
vez que o equívoco e a falta são próprios da língua. Por isso, mostramos que o discurso
produzido pelo Estado na prática social do concurso jamais estaria imune ao equívoco
da língua. Os sentidos constituídos no âmbito dessa prática não se imobilizam dentro da
ilusão de um mundo semanticamente normal. Pelo equívoco constitutivo da língua, os
sentidos, também nessa prática, estão suscetíveis de se tornarem outros, movimentando-
se, deslocando-se progressivamente.
A análise que desenvolvemos nos três últimos capítulos nos permitiu estabelecer
a existência de uma formação discursiva própria da Administração Pública no tocante à
questão do concurso. Nós a nomeamos formação discursiva de edital de concurso
público – FDecp
–, um espaço que rege a repetibilidade no interior de uma rede de
formulações possíveis. Mostramos que FDecp
, como toda formação discursiva, não é
uma região fechada e estabilizada, mas uma área em que podem ser incorporados
elementos do saber oriundos de outras formações discursivas. Esse fenômeno de
incorporação de elementos do saber de outras FDs pela FDecp
mostra que esta
permanece em incessante reconfiguração. Isso fica evidente quando vemos a forma-
sujeito enunciadora em um edital formular em seu corpo textual dizeres produzidos em
outro lugar, em especial na esfera legislativa.
A incessante reconfiguração da FDecp
vem sendo produzida desde sempre.
Considerando o lapso temporal adotado na pesquisa (Brasil Imperial – República
Federativa do Brasil), vimos que dizeres instituídos pelos atos normativos editados pelo
legislativo federal foram sendo incorporados, em um momento, e desincorporados, em
outro, pela FDecp
de modo a atender aos anseios do povo e da Administração dentro de
cada conjuntura sócio-histórica. Dentro dos aproximados 200 anos de história da FDecp
considerados neste trabalho (1822-2018), diferentes enunciados [E] foram constituídos
no interior da FDecp
. Esses enunciados regeram, por um tempo, a repetibilidade em uma
rede de formulações intradiscursivas em alguns editais até o momento em que, também
por força de lei, foram desincorporados, dando lugar a novos [E] que irrompem no
âmago da FDecp
para atender aos novos anseios do Estado e do povo.
No tocante à questão da paráfrase e da polissemia na produção discursiva do
edital, nossa pesquisa mostrou que o processo parafrástico é seu princípio fundamental,
em virtude da necessidade de se dizer sempre o mesmo, embora seja possível fazê-lo
com outras palavras. A paráfrase em edital, que se dá em relação à lei e ao que já foi
216
dito em outros editais e se encontra sedimentado, estável discursivamente, mantém a
estabilidade dos sentidos e, assim, a estabilidade jurídica entre as partes envolvidas.
Por outro lado, como sinalizamos mais acima, pelo equívoco constitutivo da
língua, os sentidos também estão suscetíveis de se tornarem outros na produção de
editais, movimentando-se, deslocando-se. Porém, o presente trabalho indica que o
processo polissêmico é extremamente contido na produção de editais; mais
especificamente, podemos afirmar que ele é refreado pela lei e pela jurisprudência dos
tribunais, que visam manter o que está estável. As formulações investidas de sentidos
outros, ao deslocarem do irrealizado para uma significação que se pretende instituir,
balançam os sentidos sempre já-lá, fazendo o edital ficar suscetível à impugnação. Por
isso, quando a forma-sujeito de um edital, trabalhando nos limites da possibilidade de
movência dos sentidos, inaugura uma nova significação ou tenta recuperar aquela que já
esteve (mas não mais está) incorporada no domínio do saber da FDecp, torna o edital alvo
de intervenção judicial.
Há, contudo, “exceções” à intervenção. Nossa pesquisa revela que nem sempre a
polissemia produz questionamento, no/pelo judiciário, sobre o teor da “nova”
formulação, do “novo” sentido instituído. Para nós, esse fenômeno se relaciona à
posição discursiva ocupada pela forma-sujeito enunciadora de um edital, o que
justificaria o fato de algumas instituições não terem seus editais questionados em razão
do jogo provocado pela polissemia em dadas formulações. Isso mostra que não é
possível conter totalmente a polissemia, e é por meio de “brechas” como esta que os
sentidos deslizam.
No que diz respeito ao silenciamento, nossa pesquisa mostra que, na produção
discursiva do edital, não cabe ao sujeito enunciador silenciar-se sobre elementos do
saber próprios da FDecp, cuja formulação deve estar presente no corpo textual do edital.
O silenciamento daquilo que, pelas práticas enraizadas para a construção de editais,
deve ser enunciado, mas não é, também leva o edital ao controle de legalidade pelos
órgãos do Judiciário.
Para finalizar, devemos afirmar, em função dos traços destacados acima, que o
edital de concurso público é um texto marcado por alto grau de estereotipia, constituído
por uma série de enunciados que constituem basicamente paráfrases da lei e do que já
foi dito antes em outro edital em virtude da necessidade de se manter a estabilidade dos
sentidos e, assim, a estabilidade sociojurídica.
217
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público por irregularidades em edital. Relatório de 20 de outubro de 2009. Relator:
Elmo Braz. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, v. 73, n. 4, ano
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Prefeitura de Santa Rita. Análise de edital de concurso público para provimento de
cargos diversos: Edital nº 01/2016. Relatório de 7 de abril de 2016. Relator: Fábio Túlio
Filgueiras Nogueira. Decisão Singular DS1-TC 00021/16 - Decisão Singular - 1ª
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BRASIL. Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Suspensão de concurso
público por irregularidades no edital. Relatório de 02 de dezembro de 2008. Relatora:
Adriene Andrade. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, v. 71, n. 2,
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Materia/542.pdf >. Acesso em 19 de fevereiro de 2017.
BRASIL. Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Irregularidades em concurso
público. Relatório de 25 de abrilde 2012. Relator: Marcílio Barenco Corrêa de Mello.
Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, jul/ago/set, 2012. Disponível
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janeiro de 2017.
BRASIL. Poder Judiciário/Seção Judiciária do Distrito Federal. Superior Tribunal de
Justiça. Ação Civil Pública, com pedido de tutela de urgência, em que o autor pleiteia a
reserva de 20% dos cargos disponibilizados no último Edital do 29º Concurso Público
de Procurador da República para os candidatos negros, em cumprimento ao disposto no
art. 1º da Lei nº 12.990, de 09 de junho de 2014. Ação Civil Pública: 7100. Autor:
Ministério Público Federal. Ré: União Federal. Juiz: Waldemar Cláudio de Carvalho.
DF, 29 março 2017. Disponível em: <www.justificando.com/wp-content/uploads/2017
/03/liminar-cotas.pdf>. Acesso em 11 de maio de 2018.
226
ANEXO I – Corpus discursivo I – Recortes dos arquivos E-
e D
Enunciados referentes ao Edital 1 – Prefeitura Municipal de Centralina/MG – Prima Face
Enunciados da primeira formulação do edital Enunciados dos órgãos de controle Enunciados após a retificação do edital
2. DAS CONDIÇÕES PARA INSCRIÇÃO
2.1. São requisitos para inscrição / nomeação:
Alteração do item 2.1, para definir que as
condições arroladas serão exigidas na data
da posse e não no momento da inscrição
e/ou nomeação.
2. DAS CONDIÇÕES PARA POSSE
2.1. São requisitos para posse:
2. DAS CONDIÇÕES PARA INSCRIÇÃO
2.15. DAS INSCRIÇÕES
PERÍODO DE INSCRIÇÕES: 22/07/2009 a 05/08/2009,
exceto sábados, domingos e feriados.
Alteração do item 2.15, para determinar
que as inscrições devem ser realizadas
durante o lapso mínimo de trinta dias.
2. DAS CONDIÇÕES PARA POSSE
2.15. DAS INSCRIÇÕES
2.15.1. As inscrições deverão ser efetuadas pela internet, no
site http://www.primafaceconcursos.com.br, no período de 19
de outubro a 22 de novembro de 2009 ou presencialmente no
período de 19 de outubro a 19 de novembro de 2009
conforme item 2.15.5.
2. DAS CONDIÇÕES PARA INSCRIÇÃO
2.1. São requisitos para inscrição / nomeação:
2.1.8. Ter boa conduta e não possuir antecedentes criminais;
2.1.10. Não ter sofrido, quando do exercício de cargo público
ou função, demissão a bem do serviço público ou por justa
causa, fato a ser comprovado através da apresentação de
documento idôneo ou assinatura de regular termo de
declaração, no período de 05 a 10 anos tendo em vista as
circunstâncias atenuantes ou agravantes;
Alteração dos subitens 2.1.8 e 2.1.10, para
estabelecer limitação temporal às vedações
previstas.
2. DAS CONDIÇÕES PARA POSSE
2.1. São requisitos para posse:
2.1.8. Ter boa conduta e não possuir antecedentes criminais,
no período de 05 anos anteriores a data da posse;
2.1.10. Não ter sofrido, quando do exercício de cargo público
ou função, demissão a bem do serviço público e por justa
causa, fato a ser comprovado através da apresentação de
documento idôneo ou assinatura de regular termo de
declaração, no período de 05 anos anteriores a data da posse;
2.16. O Edital estará disponível na página do endereço
eletrônico www.primafaceconcursos.com.br, sendo de
responsabilidade exclusiva do candidato a obtenção desse
material.
Alteração do item 2.16, para ampliar a
publicidade do instrumento convocatório,
cujo aviso deve contar com divulgação pela
internet, publicação em jornal de grande
circulação no Município e no diário oficial,
além de afixação no quadro de avisos da
Prefeitura Municipal, informando onde
pode ser encontrada a íntegra do edital.
2.16. O Edital na Íntegra estará disponível na página do
endereço eletrônico www.primafaceconcursos.com.br e no
quadro de avisos da Prefeitura Municipal de Centralina.
Eventuais publicações serão publicadas nos meios já
informados além do Diário Oficial de Minas Gerais e no
Jornal do Pontal (circulação local).
Observação: A obtenção do edital na íntegra é de
responsabilidade exclusiva do candidato.
2.20. Outras informações:
c) O valor da inscrição, uma vez pago, não será devolvido,
sob hipótese alguma, salvo no caso de não realização do
Alteração do subitem 2.20-c, para
determinar a devolução do valor da taxa de
inscrição em caso de cancelamento ou
2.20. Outras informações:
c) A taxa de inscrição, uma vez paga, somente será devolvida
nos casos de:
227
Concurso, por culpa ou omissão exclusiva da Administração;
suspensão do certame.
não realização do Concurso;
exclusão de algum cargo oferecido;
em caso de cancelamento ou suspensão do Certame;
demais casos que a Comissão Especial de Concurso Público
julgar pertinente.
9. DAS DISPOSIÇÕES FINAIS
9.3. A aprovação no concurso público regido por este Edital
assegurará apenas a expectativa de direito à nomeação,
ficando a concretização desse ato condicionada ao exclusivo
interesse e conveniência da Administração, da disponibilida-
de orçamentária, da estrita ordem de classificação, do prazo
de validade do concurso e do cumprimento das disposições
legais pertinentes.
Exclusão do item 9.3, uma vez que é
ofertada vaga.
9. DAS DISPOSIÇÕES FINAIS
9.3. (Revogado)
Enunciados referentes ao Edital 2 – Prefeitura Municipal de São João Del-Rey/MG – FAUF
Enunciados da primeira formulação do edital Enunciados dos órgãos de controle Enunciados após a retificação do edital
4. Das inscrições e procedimentos afins:
4.3 Condições Gerais:
4.3.4 Em hipótese alguma, haverá devolução da taxa de
inscrição já recolhida.
O subitem 4.3.4 dispõe que em hipótese
alguma, haverá devolução da taxa de
inscrição já recolhida; a referida cláusula
deve ser alterada de modo a prever a
devolução da taxa de inscrição nos casos de
cancelamento ou anulação do concurso, em
observância ao princípio jurídico que
proíbe o enriquecimento ilícito.
4. Das inscrições e procedimentos afins:
4.3 Condições Gerais:
4.3.4 No caso de hipóteses inesperadas, inclusive em caso de
não realização ou suspensão do concurso, o candidato terá
direito a devolução do valor pago a titulo de inscrição.
7. Da Classificação e Homologação
7.1 Cargos com apenas 1 (uma) etapa:
7.1.4 Em caso de empate na Primeira Etapa, será classificado
o candidato que:
7.1.4.1 obtiver maior número de pontos na prova de
Conhecimento Específico;
7.1.4.2 obtiver maior número de pontos no conteúdo de
Língua Portuguesa da prova de Conhecimento Geral;
7.1.4.3 obtiver maior número de pontos no conteúdo de
Conhecimentos Gerais da prova de Conhecimento Geral;
7.1.4.4 for mais velho.
No subitem 7.1.4, referente aos critérios de
desempate, observou-se engano na
aplicação das normas da Lei Federal n.
10.471/03, uma vez que o candidato
enquadrado no conceito legal de idoso deve
ter prevalência no caso de empate, em
atendimento ao disposto no art. 27,
parágrafo único, do citado diploma legal,
sem prejuízo da aplicação de outros
critérios que podem ser escolhidos
discricionariamente pela administração
7. Da Classificação e Homologação
7.1 Cargos com apenas 1 (uma) etapa:
7.1.4 Em caso de empate na Primeira Etapa, será classificado
o candidato que:
7.1.4.1 possuir mais de sessenta anos;
7.1.4.2 obtiver maior número de pontos na prova de
Conhecimento Específico;
7.1.4.3 obtiver maior numero de pontos no conteúdo de
Língua Portuguesa da prova de
Conhecimento Geral;
7.1.4.4 obtiver maior número de pontos no conteudo de
228
pública. Conhecimentos Gerais da prova de Conhecimento Geral;
7.1.4.5 for mais velho.
9. Dos aprovados
9.2 No Concurso Público
9.2.2 A aprovação no Concurso Público não cria direito à
nomeação, mas esta, quando ocorrer, obedecerá a ordem de
classificação final constante da homologação do Concurso
Público.
A previsão contida nos subitens 9.2.2 de
que a aprovação do candidato não lhe
garante o direito à nomeação está em
desacordo com o entendimento do Superior
Tribunal de Justiça e desta Corte de
Contas, no sentido de que o candidato
aprovado dentro do número de vagas
previstas no edital deixa de ter mera
expectativa de direito para adquirir direito
subjetivo à nomeação para o cargo a que
concorreu e para o qual foi habilitado.
9. Dos aprovados
9.2 No Concurso Público
9.2.2 A nomeação dos aprovados no Concurso Público
obedecerá a ordem de classificação final constante da
homologação.
10. Das disposições finais
10.2. Todas as publicações, convocações, avisos e resultados
serão afixados no quadro de aviso da Secretaria de Saúde da
Prefeitura Municipal de São João Del-Rei.
A previsão de publicidade dos atos
referentes ao presente certame apenas no
quadro de aviso da Secretaria Municipal de
Saúde, conforme consta do subitem 10.2,
não atende ao princípio da ampla
divulgação dos atos administrativos e
restringe a acessibilidade dos candidatos.
10. Das disposições finais
10.2. Todas as publicações, convocações, avisos e resultados
serão afixados no quadro de aviso da Secretaria de Saúde da
Prefeitura Municipal de São João Del-Rei, nos quadros de
aviso da Fundação de Apoio a Universidade Federal de São
João Del-Rei - FAUF e disponibilizados no site da FAUF, no
seguinte endereço: http://www.ufsj.edu.br/fauf/concursos.php.
1. Da Participação de Candidatos Portadores de Necessidades
Especiais:
1.1 Conforme art. 30, parágrafo 5o, da Lei Municipal 4.070,
de 27/11/2006, serão reservadas 10% (dez por cento) das
vagas providas em cada cargo para candidatos portadores de
necessidades especiais, desprezadas frações menores que 1
(um), conforme disposto no Quadro 1, deste Edital, desde
que sua deficiência seja compatível com o exercício do
cargo, de acordo com exame médico que fará avaliação das
condições do candidato que se classificar.
Quanto à reserva de vagas para os
portadores de deficiência, é importante
salientar que o entendimento deste Tribunal
vem se consolidando no sentido de aplicar a
tese da máxima efetividade da norma
constitucional e, em função disso,
determinar que haja reserva sempre que
houver o oferecimento no certame de pelo
menos duas vagas.
Ressalta-se que deverá ser considerado o
percentual editalício, sem prejuízo de
garantir a devida concretização do
comando constitucional insculpido no art.
37, VIII, da Constituição Federal de 1988.
No presente caso, o edital prevê que serão
reservadas 10% das vagas providas em
1. Da Participação de Candidatos Portadores de Necessidades
Especiais:
1.1 Conforme art. 30, parágrafo 5o, da Lei Municipal 4.070,
de 27/11/2006, serão reservadas 10% (dez por cento) das
vagas providas em cada cargo para candidatos portadores de
necessidades especiais. Será reservada 1 (uma) vaga para
portador de necessidades especiais em todos os casos em que
o número de vagas oferecidas para o cargo estiver
compreendido entre 2 (duas) e 9 (nove).
1.1.1 - Caso surjam novas vagas no decorrer do prazo de
validade do Processo Seletivo ou do Concurso Publico, 10%
(dez por cento) delas serão igualmente reservadas para
candidatos portadores de necessidades especiais.
229
cada cargo para candidatos portadores de
necessidades especiais, desprezadas frações
menores que um.
Assim, deverá a administração:
— reservar uma vaga em todos os casos em
que o número de vagas oferecidas para o
cargo estiver entre dois e nove;
— aplicar o percentual de 10% em todos os
casos em que o número de vagas oferecidas
para o cargo for igual ou superior a 10,
afastada a possibilidade de
arredondamento;
— incluir uma cláusula que disponha: caso
surjam novas vagas no decorrer do prazo
de validade do concurso público, 10% delas
serão, igualmente, reservadas para
candidatos portadores de deficiência.
Enunciados referentes ao Edital 3 – Prefeitura Municipal de Santa Rita/PA – FACET Concursos
Enunciados da primeira formulação do edital Enunciados dos órgãos de controle Enunciados após a retificação do edital
Edital publicado no DOE em 18 de março de 2016.
CAPÍTULO II - DAS INSCRIÇÕES AO CONCURSO
PÚBLICO
1. As inscrições poderão ser realizadas sob a forma
presencial, conforme item 2 ou através da internet seguindo o
item 3.
1.1 Cada candidato poderá inscrever-se para apenas um dos
cargos previsto no Concurso.
2. Período de inscrições de 21 DE MARÇO a 08 de ABRIL
DE 2016, de segunda a sexta feira. (nos dias úteis). Horário:
das 8h às 13h. Local: Sede da Prefeitura, Rua Juarez Távora,
nº93. Centro - SANTA RITA –PB.
Ausência de prazo mínimo a separar a
publicação do Edital no Diário Oficial
Eletrônico e o início do período de
inscrição, inviabilizando o conhecimento
prévio do certame. Período de inscrição
inferior a 30 dias.
Edital publicado no DOE em 24 de maio de 2016.
CAPÍTULO II - DAS INSCRIÇÕES AO CONCURSO
PÚBLICO
1. As inscrições poderão ser realizadas sob a forma
presencial, conforme item 2 ou através da internet seguindo o
item 3.
2. Período de inscrições: prorrogado de 01 a 30 de JUNHO
DE 2016, nos dias úteis. Horário: das 8h às 13h. Local: Sede
da Prefeitura, Rua Juarez Távora, nº93. Centro - SANTA
RITA –PB.
CAPÍTULO III - DAS PROVAS E DA DATA DE
REALIZAÇÃO
4. E após a realização das provas escritas, no prazo de 72
Coincidência entre os prazos para
divulgação dos gabaritos e recurso. O
subitem 4 do Capítulo III informa que a
CAPÍTULO III - DAS PROVAS E DA DATA DE
REALIZAÇÃO
4. E após a realização das provas escritas, no prazo de 72
230
(setenta e duas) horas, a Organizadora do Concurso divulgará
os respectivos gabaritos de respostas das provas escritas no
site www.facetconcursos.com.br.
CAPÍTULO VI - DOS RECURSOS
1. Será admitida a interposição de recurso pelo candidato que
se achar prejudicado na prova escrita da seleção. Para isso
terá um prazo de 3 (três) dias úteis após o encerramento da
prova. Deverá ser utilizado o formulário do anexo III do
edital para o envio do recurso.
Organizadora do certame divulgará
os gabaritos das provas em 72 (setenta e
duas) horas e o item 1 do Capítulo VI
propaga que o encerramento do prazo
recursal se dá 03 (três) dias úteis após o
encerramento da prova. Em termos
práticos, o prazo recursal poderá estar
expirado no mesmo instante da divulgação
do gabarito.
(setenta e duas) horas, a Organizadora do Concurso divulgará
os respectivos gabaritos de respostas das provas escritas no
site www.facetconcursos.com.br.
CAPÍTULO VI - DOS RECURSOS
1. Será admitida a interposição de recurso pelo candidato que
se achar prejudicado na prova escrita da seleção. Para isso
terá um prazo de 3 (três) dias úteis após o encerramento da
prova e/ou após a divulgação do gabarito, também
obedecendo ao mesmo prazo para recorrer. Deverá ser
utilizado o formulário do anexo III do edital para o envio do
recurso.
CAPÍTULO VI - DOS RECURSOS
5. Os Recursos devem ser encaminhados, obedecendo aos
prazos estabelecidos no item 1 deste Capitulo à FACET
Concursos, localizada na Av. Antônio Xavier de Moraes,
03/05 – Sapucaia-Timbaúba (PE) - CEP 55870-000 - REF:
Concurso Público da Prefeitura Municipal de SANTA
RITA/PB. Os recursos poderão ser Protocolados na Central
de Informações da Instituição ou ainda remetidos por
SEDEX para que possam chegar em nossa central em tempo
hábil para serem julgados.
Carência de estabelecimento de prazo
adequado e razoável para entrega dos
recursos. Conforme item 5 do Capítulo VI,
os recursos serão entregues através da
Empresa Brasileira de Correios e
Telégrafos. Destarte, o prazo para
admissibilidade do recurso deve ser visto
na data da postagem, não da chegada
efetiva da documentação na comissão de
julgamento, pois não pode o candidato se
responsabilizar pela entrega da
correspondência. Mesmo o SEDEX pode
atrasar. Não considerar esta hipótese é
malferir os princípios da ampla defesa e do
contraditório.
CAPÍTULO VI - DOS RECURSOS
5. Os Recursos devem ser encaminhados, obedecendo aos
prazos estabelecidos no item 1 deste Capitulo, , à FACET
Concursos, localizada na Av. Antônio Xavier de Moraes,
03/05 – Sapucaia-Timbaúba (PE) - CEP 55870-000 - REF:
Concurso Público da Prefeitura Municipal de SANTA
RITA/PB. Os recursos poderão ser Protocolados na Central de
Informações da Instituição ou ainda remetidos por SEDEX,
contando da data da postagem na agência dos correios. Os
quais serão admitidos e julgados.
CAPÍTULO IX - DAS DISPOSIÇÕES GERAIS
7. A classificação no Concurso Público assegurará a
expectativa do direito de ser nomeado dos candidatos
aprovados, seguindo a ordem classificatória, ficando a
concretização das nomeações condicionada à existência de
vagas e a prioridade sobre novos concursados para assumir
cargo no serviço público municipal de SANTA RITA.
Expectativa de direito para candidatos
aprovado dentro do número de vagas. O
item 7 do Capítulo IX assegura expectativa
de direito dos candidatos aprovados. É
importante ressalvar que os candidatos
aprovados e classificados dentro dos
números de vagas possuem direito subjetivo
de serem nomeados.
CAPÍTULO IX - DAS DISPOSIÇÕES GERAIS
7. A classificação no Concurso Público assegurará a
expectativa do direito de ser nomeado dos candidatos
aprovados, seguindo a ordem classificatória, ficando a
concretização das nomeações condicionada à existência de
vagas e a prioridade sobre novos concursados para assumir
cargo no serviço público municipal de SANTA RITA.
231
Enunciados referentes ao Edital 4 – Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais – FUMARC
Enunciados da primeira formulação do edital Enunciados dos órgãos de controle Enunciados após a retificação do edital
Silenciamento sobre o programa das provas escritas. Ausência de discriminação do conteúdo
programático das provas, descumprindo o
inc. X do art. 8° da Lei n. 42.899/2002, que
determina, in verbis:
Art. 8° O edital para concurso público
conterá:
(...)
X — conteúdos programáticos, incluindo
noções de direitos humanos nos termos da
Lei n. 13.660, de 14 de julho de 2009, e a
bibliografia sugerida.
O edital passou a prever o programa de provas.
Enunciados referentes ao Edital 5 – Ministério Público Federal – MPF
Enunciados da primeira
formulação do edital
Enunciados dos órgãos de controle Enunciados após a retificação do edital
Omissão/silenciamento
O autor da ação pleiteia a reserva de 20% dos cargos disponibilizados
no último Edital do 29º Concurso Público de Procurador da República
para os candidatos negros, em cumprimento ao disposto no art. 1º da
Lei nº 12.990, de 09 de junho de 2014.
Não encontramos edital fazendo a correção. O concurso prosseguiu
em função do Mandado de Segurança nº 34.981/DF que, embora
apenas deferisse liminar para que os candidatos que fizeram a prova
objetiva tivessem acesso à folha de respostas, acabou por se tornar a
fresta pela qual o concurso continuou sendo produzido.
Enunciados referentes ao Edital 6 – Instituto de Desenvolvimento Integrado de Minas Gerais – FUNDEP
Enunciados da primeira formulação do edital Enunciados dos órgãos de
controle
Enunciados após a
retificação do edital
13.5 O candidato aprovado será convocado, em ordem de classificação, por meio de telegrama ou de
correspondência registrada, com aviso de recebimento, para comprovar os requisitos exigidos do
cargo/especialidade para o qual concorreu, de acordo com a necessidade e conveniência do INDI e critérios
estabelecidos neste Edital.
14.2 O INDI convocará, observados os critérios de oportunidade e conveniência, o candidato a ser admitido,
para apresentar os seguintes documentos: (...)
15.18 A aprovação e classificação no presente Concurso Público não conferem ao candidato selecionado o
direito automático à admissão, apenas impede que o INDI preencha as presentes vagas fora da ordem de
classificação ou com outros candidatos, até o final do prazo de validade deste Concurso Público.
Retificar os subitens 13.5, 14.2 e
15.18 do edital, de modo a
conferir aos candidatos
aprovados, dentro do número de
vagas oferecidas, o direito
subjetivo à admissão e suprimir
os critérios de oportunidade e
conveniência neles previstos.
Não houve correção.
232
ANEXO II – Corpus discursivo II – Recortes do arquivo E+
1) Sobre o momento de apresentação dos requisitos para investidura
Edital Esaf 2017 4.1 - O candidato será investido no cargo se atendidas as seguintes exigências: (...)
4.1.1 - A falta de comprovação de qualquer um dos requisitos especificados neste subitem e daqueles que vierem a ser estabelecidos na letra
“l” impedirá a posse do candidato.
Edital Cebraspe 2018 3 Dos requisitos básicos para a investidura nos cargos: (...)
3.11 O candidato deverá declarar, na solicitação de inscrição, que tem ciência e aceita que, caso aprovado, deverá entregar os documentos
exigidos para matrícula por ocasião da convocação para o Curso de Formação Profissional, assim como os documentos comprobatórios dos
requisitos exigidos para o cargo no momento da posse.
Edital FGV 2016 3.3 O candidato deverá atender, cumulativamente, para investidura no cargo, aos seguintes requisitos: (...)
3.4 No ato da posse, todos os requisitos especificados no item 3.3 deverão ser comprovados mediante a apresentação de documentação
original.
Edital FCC 2017 3.1 O candidato aprovado no Concurso de que trata este Edital será investido no Cargo/Especialidade se atender às seguintes exigências na
data da posse: (...)
2) Sobre o período de inscrição
Edital Esaf 2017 5.2- A inscrição será efetuada exclusivamente via internet, no endereço eletrônico www.esaf.fazenda.gov.br, no período compreendido entre
10 horas do dia 02 e 23h59min do dia 16 de outubro de 2017, considerado o horário de Brasília-DF, mediante o pagamento da taxa a ela
pertinente, no valor de R$ 120,00 (cento e vinte reais), por meio de boleto eletrônico, pagável em toda a rede bancária.
Edital Cebraspe 2018 7.2 Será admitida a inscrição somente via internet, no endereço eletrônico http://www.cespe.unb.br/concursos/pf_18, solicitada no período
entre 10 horas do dia 19 de junho de 2018 e 18 horas do dia 2 de julho de 2018 (horário oficial de Brasília/DF).
Edital FGV 2016 4.1 As inscrições para o Concurso Público encontrar-se-ão abertas no período de 26 de fevereiro de 2016 até 04 de abril de 2016.
Edital FCC 2017 4.2 As inscrições ficarão abertas, exclusivamente, via Internet, no período das 10 horas do dia 30/10/2017 às 14 horas do dia 27/11/2017
(horário de Brasília), de acordo com o item 4.3 deste Capítulo.
3) Limitação temporal de cinco anos para os antecedentes criminais (entre os requisitos para investidura)
Edital Esaf 2017 4.1 - O candidato será investido no cargo se atendidas as seguintes exigências: (...)
i) apresentar certidão negativa dos setores de distribuição dos foros criminais dos lugares em que tenha residido, nos últimos cinco anos, da
Justiça Federal e Estadual;
j) apresentar folha de antecedentes da Polícia Federal e da Polícia dos Estados onde tenha residido nos últimos cinco anos, expedida, no
máximo, há seis meses;
k) apresentar declaração firmada pelo candidato de não ter sido, nos últimos cinco anos:
233
I - Responsável por atos julgados irregulares por decisão definitiva do Tribunal de Contas da União, do Tribunal de Contas de Estado, do
Distrito Federal ou de Município, ou ainda, por conselho de contas de Município;
II - Punido, em decisão da qual não caiba recurso administrativo, em processo disciplinar por ato lesivo ao patrimônio público de qualquer
esfera de governo;
III - Condenado em processo criminal por prática de crimes contra a Administração Pública, capitulados nos Títulos II e XI da Parte Especial
do Código Penal Brasileiro, na Lei nº 7.492, de 16/6/1986, e na Lei nº 8.429, de 2/6/1992;
IV - Punido com demissão ou destituição de cargo em comissão, por infringência do artigo 117, incisos IX e XI, e artigo 132, incisos I, IV,
VIII, X e XI, ambos da Lei 8.112/90;
Edital Cebraspe 2018 Trata, no Anexo VI, sobre a Investigação Social do candidato, mas silencia o tempo anterior a ser considerado.
Edital FGV 2016 3.3 O candidato deverá atender, cumulativamente, para investidura no cargo, aos seguintes requisitos: (...)
l) não ter sido condenado à pena privativa de liberdade transitada em julgado ou qualquer outra condenação incompatível com a função
pública; (...)
o) não registrar antecedentes criminais que se apresentem, a critério do MPRJ, incompatíveis com a natureza do cargo;
Silencia-se sobre o tempo.
Edital FCC 2017 Sem referência.
4) Sobre a devolução do valor da taxa de inscrição
Edital Esaf 2017 5.6 - O valor da taxa de inscrição não será devolvido em hipótese alguma, salvo em caso de cancelamento do concurso por conveniência ou
interesse da Administração.
Edital Cebraspe 2018 7.4.6 O valor referente ao pagamento da taxa de inscrição não será devolvido em hipótese alguma, salvo em caso de cancelamento do certame
por conveniência da Administração Pública.
Edital FGV 2016 4.13 O valor referente ao pagamento da taxa de inscrição não será devolvido em hipótese alguma, salvo em caso de cancelamento do concurso
por conveniência da Administração Pública.
Edital FCC 2017 4.3.10 O valor recolhido na inscrição não será devolvido.
5) Sobre o direito à nomeação
Edital Esaf 2017 19.4 - A aprovação no concurso assegurará apenas a expectativa de direito à nomeação, ficando a concretização desse ato condicionada à
observância das disposições legais pertinentes, do exclusivo interesse e conveniência da Administração, da rigorosa ordem de classificação e
do prazo de validade do concurso.
Edital Cebraspe 2018 6.8 A convocação para o Curso de Formação Profissional e a nomeação dos candidatos aprovados respeitará o número total de vagas, o
número de vagas reservadas a candidatos com deficiência e a candidatos negros oferecidos no item 4 deste edital.
Edital FGV 2016 12.12 Os candidatos classificados serão convocados para nomeação por meio de publicação no Diário Oficial e telegrama enviado pela ECT
(Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos).
234
Edital FCC 2017 12.2 Os candidatos aprovados, conforme disponibilidade de vagas, terão sua nomeação publicada no Diário Eletrônico da Defensoria Pública
do Estado do Amazonas.
6) Sobre os critérios de desempate
Edital Esaf 2017 16.1.1 - Havendo empate na totalização dos pontos, terá preferência o candidato com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, na forma do
disposto no parágrafo único do art. 27 da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso).
16.1.2 - Persistindo o empate, o desempate beneficiará o candidato que, na ordem a seguir, tenha obtido, sucessivamente:
1º - o maior número de pontos na prova discursiva;
2º - a maior pontuação na prova objetiva 2;
3º - a maior pontuação na disciplina D-3;
Edital Cebraspe 2018 19.1 Em caso de empate na nota final na primeira etapa do concurso para o cargo de Delegado de Polícia Federal, terá preferência o
candidato que, na seguinte ordem:
a) tiver idade igual ou superior a sessenta anos, até o último dia de inscrição neste concurso, conforme artigo 27, parágrafo único, da Lei nº
10.741, de 1º de outubro de 2003 e suas alterações (Estatuto do Idoso);
b) obtiver a maior nota na prova discursiva (P2);
c) obtiver a maior nota na prova oral;
d) obtiver a maior nota na prova objetiva (P1);
e) obtiver o maior número de acertos na prova objetiva (P1);
f) tiver maior idade;
g) tiver exercido a função de jurado (conforme artigo 440 do Código de Processo Penal).
Edital FGV 2016 10.1 Em caso de empate, terá preferência o candidato que, na seguinte ordem:
a) tiver idade igual ou superior a sessenta anos, até o último dia de inscrição neste concurso, nos termos do artigo 27, parágrafo único, do
Estatuto do Idoso;
b) obtiver a maior nota no Grupo II;
c) obtiver a maior nota em Língua Portuguesa; e
d) persistindo o empate, terá preferência o candidato mais idoso.
Edital FCC 2017 10.3 (...) na hipótese de igualdade de nota final, após observância do disposto no Parágrafo Único do artigo 27 da Lei nº 10.741, de 1º de
outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), sendo considerada, para esse fim, a data limite para correção de dados cadastrais, estabelecido no item
7.8 do Capítulo 7, deste Edital, terá preferência, para fins de desempate, o candidato que, sucessivamente:
a) obtiver maior nota na Prova Discursiva-Estudo de Caso;
b) obtiver maior nota na Prova de Conhecimentos Específicos;
c) obtiver maior número de acertos nas questões de Língua Portuguesa, na Prova de Conhecimentos Gerais;
d) tiver maior idade;
e) tiver exercido efetivamente a função de jurado no período compreendido entre a data de entrada em vigor da Lei nº 11.689/2008, e a data de
término das inscrições para este concurso.
235
7) Sobre as vagas destinadas a portadores de necessidades especiais
Edital Esaf 2017 7.1 - O candidato que se julgar amparado pelo Decreto nº 3.298, de 20.12.99, publicado no DOU de 21.12.99, Seção 1, alterado pelo Decreto
nº 5.296, de 2.12.04, publicado na Seção 1 do DOU de 3.12.04, poderá concorrer às vagas reservadas a pessoas com deficiência, fazendo sua
opção no pedido de inscrição no concurso.
Edital Cebraspe 2018 5.1 Das vagas destinadas a cada cargo/área, 5% serão providas na forma do § 2º do artigo 5º da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, e
suas alterações, do Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, e suas alterações, da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, e da decisão
proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nos autos do Recurso Extraordinário nº 676.335/MG, de 26 de fevereiro de 2013.
5.1.1 Caso a aplicação do percentual de que trata o subitem 5.1 deste edital resulte em número fracionado, este deverá ser elevado até o
primeiro número inteiro subsequente, desde que não ultrapasse 20% das vagas oferecidas por cargo/área, nos termos do § 2º do artigo 5º da Lei
nº 8.112/1990 e suas alterações.
Edital FGV 2016 6.1.1 Do total de vagas para os cargos e das vagas que vierem a ser criadas durante o prazo de validade do Concurso Público, ficarão
reservadas 10% (dez por cento) aos candidatos que se declararem pessoas com deficiência, conforme disposto na Lei Estadual nº 2.298, de 28
de julho de 1994, e na Resolução CNMP nº 81, de 31 de janeiro de 2012, desde que apresentem laudo médico (documento original ou cópia
autenticada em cartório) atestando a espécie e o grau ou nível da deficiência, com expressa referência ao código correspondente da
Classificação Internacional de Doenças – CID.
6.1.1.1 Caso a aplicação do percentual de que trata o item 6.1.1 resulte número fracionário, este deverá ser elevado até o primeiro número
inteiro subsequente, desde que não ultrapasse 20% (vinte por cento) das vagas, conforme previsto no art. 5º, § 2°, da Lei nº 8.112, de 1990.
Edital FCC 2017 5.2 Em cumprimento ao disposto no § 2º do artigo 5º da Lei Federal nº 8.112/1990, bem como na forma do art. 37, §1º do Decreto Federal nº
3.298/1999, ser-lhes-á reservado o percentual de 5% (cinco por cento) das vagas existentes, das que vierem a surgir ou das que forem criadas
no prazo de validade do Concurso.
5.2.1 Caso a aplicação do percentual de que trata o item 5.2 resulte em número fracionado, este deverá ser elevado até o primeiro número
inteiro subsequente, desde que não ultrapasse a 20% das vagas oferecidas, nos termos do § 2º do art. 5º da Lei Federal nº 8.112/90 e do
Enunciado CNJ nº 12/2009.
8) Sobre prazo para recursos quanto às provas aplicadas
Edital Esaf 2017 15.1 - Quanto às provas objetivas:
e) o recurso deverá ser formulado e enviado, via internet, até 2 (dois) dias úteis, contados a partir do dia seguinte ao da divulgação dos
gabaritos, no endereço www.esaf.fazenda.gov.br, seguindo as orientações ali contidas
Edital Cebraspe 2018 9.12.2 O candidato que desejar interpor recursos contra os gabaritos oficiais preliminares da(s) prova(s) objetiva(s) disporá das 9 horas do
primeiro dia às 18 horas do segundo dia (horário oficial de Brasília/DF) para fazê-lo, a contar do dia subsequente ao da divulgação desses
gabaritos.
Edital FGV 2016 11.2 O candidato que desejar interpor recurso contra o gabarito oficial preliminar e contra o resultado preliminar da prova escrita objetiva,
mencionados no subitem 11.1, disporá de dois dias úteis para fazê-lo, a contar do dia subsequente ao da divulgação destes.
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Edital FCC 2017 11.2 Os recursos deverão ser interpostos no prazo de 2 (dois) dias úteis após a ocorrência do evento que lhes der causa, tendo como termo
inicial o 1º dia útil subsequente à data do referido evento.
9) Sobre a ausência do programa das provas
Edital Esaf 2017 Apresenta um anexo intitulado “ANEXO I – PROGRAMAS”
Edital Cebraspe 2018 24.2.1 Nas provas, serão avaliados, além de habilidades, conhecimentos conforme descritos a seguir. (...)
Edital FGV 2016 Apresenta um anexo intitulado “ANEXO I – CONTEÚDO PROGRAMÁTICO”
Edital FCC 2017 Apresenta um anexo intitulado “ANEXO II - CONTEÚDO PROGRAMÁTICO”
10) Sobre a previsão de vagas para negros
Edital Esaf 2017 8 – DAS VAGAS RESERVADAS AOS CANDIDATOS NEGROS (Observação nossa: reveja as tabelas no item 8)
8.1.1 - Além das vagas previstas neste Edital, das que vierem a ser criadas durante o prazo de validade deste processo seletivo, 20% (vinte por
cento) serão providas na forma da Lei nº 12.990, de 09 de junho de 2014.
Edital Cebraspe 2018 6 DAS VAGAS DESTINADAS AOS CANDIDATOS NEGROS (Observação nossa: reveja as tabelas no item 8)
6.1 Das vagas destinadas a cada cargo/área, 20% serão providas na forma da Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014, e da Portaria Normativa nº
4, de 6 de abril de 2018.
Edital FGV 2016 Não se aplica. Concurso estadual.
Edital FCC 2017 Não se aplica. Concurso estadual.