na 'pista' da fé: música, festa e outros encontros culturais entre os evangélicos do...

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia NA ‘PISTA’ DA FÉ: música, festa e outros encontros culturais entre os evangélicos do Rio de Janeiro. Márcia Leitão Pinheiro Rio de Janeiro Junho de 2006

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Tese de Doutorado em Antropologia Cultural apresentada na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autora: Márcia Leitão Pinheiro, 2006.

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

NA ‘PISTA’ DA FÉ:

música, festa e outros encontros culturais entre os evangélicos do Rio de Janeiro.

Márcia Leitão Pinheiro

Rio de Janeiro Junho de 2006

II

NA ‘PISTA’ DA FÉ:

música, festa e outros encontros culturais entre os

evangélicos do Rio de Janeiro Márcia Leitão Pinheiro Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia – PPGSA, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas (Antropologia Cultural). Orientadora: Profª Drª. Regina Reyes Novaes

Rio de Janeiro Junho de 2006

III

NA ‘PISTA’ DA FÉ: música, festa e outros encontros culturais entre os evangélicos do Rio de Janeiro.

Márcia Leitão Pinheiro

Orientadora: Regina Reyes Novaes

Tese de Doutorado submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas (Antropologia Cultural). Aprovada por: Presidente, Profª.Drª Regina Reyes Novaes – IFCS/UFRJ Profª. Drª. Glaucia Villas-Bôas - IFCS/UFRJ Profª. Drª. Patrícia Farias - ESS/UFRJ Profª. Drª. Sandra Sá Carneiro - IFCH/UERJ Profª. Drª. Santuza Cambraia Naves – PUC/RJ Suplentes: Profº. Drº. Emerson Giumbelli - IFCS/UFRJ Profª. Drª. Márcia Pereira Leite – IFCH/UERJ

Rio de Janeiro Junho de 2006

IV

Pinheiro, Márcia Leitão NA ‘PISTA’ DA FÉ: música, festa e outros encontros culturais entre os evangélicos do Rio de Janeiro/ Márcia Leitão Pinheiro. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2006. XIII, 291f : il.; 31 cm; Orientadora: Regina Reyes Novaes Tese de doutorado – UFRJ/ IFCS, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, 2006. Referências Bibliográficas: f. 292-307. 1. Religiosidade. 2. Evangélicos. 3. Festas. 4. Produção Musical. 5. Indústria

Fonográfica. 6. black music gospel. 7. Disc Jockey. I. Novaes, Regina Reyes. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. III. Título Novaes, Regina Reyes. II.UFRJ/IFCS. III. Título.

V

AGRADECIMENTOS Gostaria de registrar que o momento de construção da tese foi confortável em virtude do apoio recebido. Agradeço a todos aqueles que direta e indiretamente contribuíram para a realização deste trabalho. A Regina Reyes Novaes, pois, por sua generosidade, respeito, confiança e orientação, tornou possível este trabalho. Por ela tenho imensa gratidão. Aos professores do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UERJ) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ) fundamentais para o meu percurso, especialmente, as professoras Patrícia Birman, importante presença em minha trajetória, Márcia Leite e Sandra Carneiro por oportunas contribuições. A John Burdick, por frutíferos debates sobre pesquisa, e por ter me apresentado a uma instigante literatura sobre gospel music. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia: Maria Laura Viveiros, Bernardo Sorj, José Reginaldo Gonçalves, Peter Fry e Glaucia Villas Bôas, com os quais muito aprendi. Aos funcionários da Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, em especial a Cláudia e Denise, que pacientemente me atenderam e esclareceram as dúvidas sobre as vias burocráticas da universidade. A Elizabeth Travassos, membro da banca de qualificação, pelas questões e sugestões para a tese. A Patrícia Farias, por longas e proveitosas conversas, deu-me valiosa contribuição. A Edir Figueiredo e Elielma Machado, companheiras de longa jornada, sempre presentes. Geraldo Pedro e Edileuza Lobo ajudaram-me na investigação, nas inusitadas incursões pela cidade do Rio de Janeiro. A Paulo Cezar e Márcia Baptista verdadeiros incentivadores do projeto de pesquisar as “festas”. Aos amigos Ana Paula Vieira, Fátima Cecchetto, Andréa Tubbs, Ana Cristina Machado, Cláudia Cunha, Andréa França, Cláudia Gomes, Aline Faísca, Bianca Silva, Fernando Costa, Adélia Miglievitch, Christina Vital, Alan Faísca, Adriana Vilallon, Ana Cristina Machado, Fernanda Fortes, Yara Rolim, Lourdes Benamor, Sônia Silva, Alessandro Didecco, Josemar Costa, André L. Azevedo, Rogéria Dias, Antônio de Jesus e Luiz Carlos Josephson, sempre presentes e solícitos, agradeço de coração.

Aos amigos da turma de 2001: Tânia Martins, Ricardo Lima, Maria Cristina Peixoto e Alexandre Weber, pelos momentos de apoio e companheirismo construídos durante esses anos. A Elizabeth Costa, Nilton Santos e Astréia Soares pelas rápidas e produtivas conversas.

VI

A José, meu pai, e Maurício, Rogério, Guilherme e Reinaldo, meus irmãos, pelo apoio, compreensão e paciência com as constantes ausências. A Rosane e Cristina, irmãs e amigas, que em todos os momentos acreditaram e apoiaram meus projetos. Aos casais Ângela e Alexandre, Solange e Celso pelo incentivo e acolhida em suas residências nas quais, inúmeras vezes, refiz-me no frio serrano. A Yolanda Troyack e família, parentes afetivos, não poderia deixar de agradecer pela carinhosa acolhida e respeito dado a mais este projeto. A Sérgio Leopoldo, Wenderson, Charles, Francisco, Edinho, Nanci, Denise, Renato, Otaviano, Antônia, Cleiton, Yone, Flávia, Sérgio Leal, Eliton, Jorge e tantos outros que me permitiram realizar a pesquisa, disponibilizando seu tempo, suas histórias, acolhendo-me em suas casas e lugares de trabalho e, assim, tendo fundamental importância na realização deste trabalho. A Sandra, tão presente, não poderia deixar de agradecer os momentos de tranqüilidade, de aconselhamento, de distração e também de auxílio neste trabalho – e em outros. Seria pouco agradecer, mas é como posso retribuir. Agradeço, no âmbito de recurso material, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes - pela concessão de auxílio financeiro no período de 2001 a 2003. Igualmente cito a Fundação de Amparo e Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - Faperj - pela outorga do prêmio Aluno nota 10 e bolsa de estudos de 2003 a 2005.

VII

Para Dora, minha mãe, por demonstrar

sua fé com muita festa.

VIII

Venho para a festa, sei que muitos têm na testa o deus sol com um sinal, um sinal. Eu, como devoto, trago um cesto de alegrias de quintal, de quintal. Há também um cântaro, quem manda é a deusa música pedindo pra deixar, pra deixar derramar o bálsamo, fazer o cântaro cantar, lalaiá. Fogo eterno pra afugentar o inferno pra outro lugar. Fogo eterno pra consumir o inferno fora daqui. Gilberto Gil – Palco (Unplugged)

IX

NA ‘PISTA’ DA FÉ – música, festa e outros encontros culturais entre os evangélicos do Rio de Janeiro.

Candidata: Márcia Leitão Pinheiro Orientadora: Regina Novaes

Resumo

Este trabalho tem por objetivo analisar a transformação do meio evangélico ao

focalizar as produções de black music gospel e de eventos efetivadas por leigos. Parte-se do

pressuposto de que esses formuladores dialogam com outros produtores de “música gospel”

e com as concepções oficiais acerca da atividade evangelizadora, apresentando outras

noções, bens e serviços que escapam das propostas de igrejas e empresas legitimadas,

apesar da relação entre mercado e religiosidade. Assim, as modalidades musicais e de

atividades em foco constituem empreendimentos não fundados estritamente por diretrizes

denominacionais. Seus responsáveis lidam com idéias e bens inclusos em fluxo

internacional e sublinham a produção de bens específicos com foco no entretenimento e em

propostas políticas. Trata-se de inscrição de posições no interior do meio religioso

decorrentes das ações de produtores em amplo diálogo entre si, com a tradição, com as

noções religiosas e políticas em relação ao contingente de fiéis formado por negros e por

mestiços. A black music gospel encontra resistência, desconhecimento e surgem iniciativas

voltadas à sua visibilidade. As composições, as articulações e as tensões evidenciam que os

empreendimentos e suas condições de elaboração envolvem produtores leigos e fiéis com

manifestas ações e explicitam outro modo de concepção e manifestação de fé.

Palavras-chave: black music gospel – evangélicos – indústria fonográfica – festa – Disc Jockey.

X

NA ‘PISTA’ DA FÉ – música, festa e outros encontros culturais entre os evangélicos do Rio de Janeiro.

Candidata: Márcia Leitão Pinheiro Orientadora: Regina Novaes

Abstract The purpose of this work is to analyze the transformation of Protestantism by

focusing the black music gospel and other events’ production. The hypothesis is that the

producers of such activities maintain a dialogical contact with others producers of gospel

music and with members of the official Protestant thought about what really is the

evangelical action. They present notions and also goods and services that are far from the

legitimated enterprises and churches, although they maintain, as well the members of

Protestant churches do, the link between market and religiosity. Therefore, the musical

form and the activities focused here are not strictly directed by institutionally religious

influence. Their producers deal with ideas and goods that take part of an international flux

of music, goods and services, and then they emphasize the constitution of specific goods

that have both entertainment and political goals. They inscribe their positions inside the

religious context by means of a profound dialogue among themselves, with the traditional

and religious thought and political notions related to the Afro descendent adepts. This

musical modality is received with reticence and is largely unknown; and many people act in

order to maintain it invisible. The compositions, articulations and tensions show that these

activities involve laic and adept’s manifestations and that they make explicit another way to

conceive and express religious faith.

Key words: black music gospel; Protestantism; phonographic industry; parties, Disc Jockey

XI

Sumário

Introdução 15

Entreato

De chegadas e descobertas: o trabalho de campo 27

Ponto de partida: intervenções 28

Contatos, encontros e “adoração” 31

Mudanças: novo campo e algumas questões 39

Músicas e presenças: comunicações 47

Falas oferecidas: as entrevistas 51

Capítulo 1 Histórias, falas e canções - cantar no Brasil 53

Gospel – canções e tipos 54

Vidas, dedicações e atuações independentes 58

Disseminação da fé: gravações e técnicas 67

Criações e músicas – diversidade de empreendimentos 72

Sobre canções e conexões 79

Ouvintes, “alegria” e “espírito” 84

“Mercado” e sagrado:correspondências 86

Capítulo 2 ‘Derramar o bálsamo, fazer o cântaro cantar’ 94

Surgimento de equipes e promotores 95

Locais – buscas e diferenças 105

Uma noite, uma ‘pista’ – procuras 108

O poder da ‘festa’ 112

Os objetivos da brincadeira 116

Outras presenças e inscrições 125

XII

Capítulo 3 As revelações da apoteose 130

Fantasias, descontração e seriedade 131

Distâncias, inovações e festividades 134

Reformas religiosas e combate da alegria 137

(Re) encontros religiosos e produtivos 143

O que há nas reuniões? Alianças 146

Nova visão: força e perigo 150

‘Um ritmo fora do tradicional’ 156

Capítulo 4 Outro registro do ‘gospel’–iniciativas e questões 162

Nova cena musical 163

‘Black gospel’- música de crítica e de fé 165

Canções feitas e ouvidas – o que trazem? 170

Quem fala e faz o quê 180

Falas e ações:além do entretenimento 186

Exposição de uma polêmica 189

Capítulo 5 Sobre e cor e presenças – maneiras de falar 197

Capas, cores e imagens 198

Ludicidade, força e confronto 204

Participação, diferenças e modelos 211

Consumo e presença social 214

Onde tudo começa – bairros e encontro musicais 216

A terra do batuque e dos beats: passado e presente 223

Territórios de visibilidade 226

Vozes dissonantes 229

Ações em confronto 232

XIII

Capítulo 6 Da rua ao palco: presenças e sentidos 237

Quem e por que ir à ‘festa’ 238

Retrato de uma fé 240

Causas para ir à “festa”, cantar e dançar 241

“jovens” e procuras 249

Entre o entretenimento, o estilo e a crítica 253

Animar e converter - momentos do pregador 259

Suprimir, colar, repetir e compor: fazer sonoro 266

Quem transforma fala 271

“Segurança”: o outro lado da força 276

Intervalo – considerações sobre um tema 285

Bibliografia 292 Anexos I Encartes discográficos Apocalipse XVI 308 Feliciano Amaral 310 Francisco JC 312 Gospel Night I 314 Gospel Night II 316 Mara Maravilha 317 Oficina G3 318 Rebanhão 320 Anexos II Encontro Nacional de Louvor Profético 322 Cartão Identificação 323 Cartaz 325 Salão de vendas 326 Freqüentadores 327 Anexos III Explosão Gospel 329 Convite 330 Ficha de pontuação 331 Apresentação de candidato 332 Público 334

XIV

Anexos IV Gospel Beat Componentes 335 Panfleto 336 Mensagem 337 Convite 338 Mensagem 339 Convite 340 Anexos V Gospel Night Cartaz 341 Ingressos 342 Casa de Festa 343 Clube 344 Freqüentadores 345 Gospel Night Fantasy 346 Anexos VI Soul de Cristo Panfleto 348 Filipeta 349 Cartaz 350 Cartaz de bar 351 Panfleto 352 Freqüentadores 353 Pregador 356 Conj. Musical 357 Divulgação 358

XV

15

Introdução

Esta tese aborda as produções musicais, de eventos e fonográficas1 a partir da black

music gospel, integrante da “música gospel”. O argumento central é de que as produções

contribuem e refletem a transformação do “meio evangélico”2 brasileiro, pois introduzem

níveis de porosidade, de encontros produtivos viáveis às continuidades e às rupturas

religiosas. Isso transparece nos arranjos entre leigos que confeccionam meios de

execução/recepção de canções. A ação criativa é perpassada por complexas relações

provenientes de apropriações de idéias e bens favoráveis às vinculações com o

entretenimento3 e por composições políticas. O acento está na crítica social com destaque

na desigualdade e na invisibilidade de fiéis negros4. Entende-se que as atividades musicais

configuram fronteiras menos rígidas entre religião e sociedade, e resultam em tensões, em

oposições e correspondências, desvelando níveis de alterações subterrâneas provenientes de

ações de leigos. 1 Entendo por produção musical a atividade efetivada por detentor de conhecimentos e envolvido na atividade de concepção e orientação de projeto musical. Já a produção fonográfica pode ser realizada por empresa apta à produção e registro sonoro em meios materiais como o compact disc (CD), o digital versatile disc (DVD) e o long play (LP). 2 Apesar de diversos grupos protestantes atuarem no país, inscritos em momentos históricos distintos, eles são (re) conhecidos pela designação “evangélicos”. O ponto de identificação entre eles (históricos, pentecostais e neopentecostais), apesar de suas peculiaridades, é a referência ao Evangelho - a valorização dos textos escritos na condução da vida religiosa e cotidiana. Utilizar as categorias “evangélico” e “meio evangélico” permite trabalhar com situações, condições e produtos encontráveis entre os grupos e os adeptos do protestantismo sem precisar ficar restrita às suas particularidades doutrinárias e históricas. 3 Entretenimento diz respeito às atividades, aos objetos e aos bens voltados ao uso do tempo livre com vistas à recreação, ao divertimento individual e/ou coletivo. 4 O sentido atribuído à política não está restrito às práticas partidárias e de Estado. Como termos intercambiantes, aplico política e crítica social com a finalidade de compreender as reflexões e ações de indivíduos e grupos no tocante às relações sociais em vigência no meio evangélico. Elas são apontadas como desiguais porque baseadas na cor da pele e referência cultural; atribui-se o quadro à existência de doutrinas desvalorizadoras do contingente formado por mestiços-negros e suas manifestações culturais. Diante disso, articulações, com direcionamento mais delineado ou não, são estabelecidas por leigos e por líderes religiosos com a finalidade de auferir alterações desse quadro entre os evangélicos.

16

A minha atenção recaiu sobre certa modalidade de eventos5 denominada “festa

gospel”, “baile gospel” ou “festa”6, sendo a primeira designação a mais corrente. As

manifestações são realizadas ao redor da música e da dança e são capazes de atrair grupos

de diversas partes da cidade do Rio de Janeiro interessados em certas expressões musicais e

em reuniões. Nelas são vistos freqüentadores7 de várias faixas etárias, embora os

organizadores afirmem que estão direcionadas aos “jovens”. As atividades são concebidas a

partir das noções que apresentam de “jovem” e de “juventude”8, cuja peculiaridade, para os

organizadores, seja a disposição para a diversão. Isso fica evidente com os elementos

alinhados, com as intercessões e as tensões estabelecidas e componentes da participação

daqueles que compartilham certos sentidos culturais e não, necessariamente, de recorte

pautado na temporalidade.

Na “festa gospel” ou “festa”, predominam o hip-hop, o rhythm and blues (r&b), o

soul, o drum ‘n´bass (db)9 (muitas vezes, designados black music gospel,"música negra”

[black music]10 por promotores e freqüentadores) e pode ter o registro de outras

5 Evento não é entendido somente como distinto acontecimento capaz de mobilizar interessados, inclusive os meios de comunicação. A perspectiva adotada é a de Sahlins para o qual “... apesar de um evento enquanto acontecimento ter propriedades “objetivas” próprias e razões procedentes de outros mundos (sistemas), não são suas propriedades, enquanto tais, que lhe dão efeito, mas a sua significância, da forma que é projetada a partir de algum esquema cultural. O evento é a interpretação do acontecimento, e interpretações variam” (Sahlins, 1999:191). 6 Por falta de termo adequado, capaz de definir o tipo de manifestação, utilizarei aquele predominante no meio investigado. Ele é aplicado para nomear certa modalidade de iniciativa preparada por leigos e compreende a realização de jogos, orações, apresentações musicais, danças e brincadeiras. São etapas promotoras de entretenimento, de interações entre os presentes e de relaxamento. As "festas" podem ocorrer em locais alugados e exigem de seus organizadores articulações materiais e sociais. 7 O termo freqüentador é usado para identificar o fiel religioso ou não, encontrado no ambiente de “festa” e encontros similares. Ele aparece como apto a estabelecer relações com os demais e com os bens em circulação. 8 As categorias jovens e juventude são recorrentes no universo pesquisado e indicam a ênfase na temporalidade ou em certa etapa da vida como, por exemplo, ser solteiro e/ou estudante. No entanto, essa não é a perspectiva aqui adotada. A orientação seguida é a de não adotar jovem (s) e juventude como categorias indicativas de certo momento da vida restrito à idade ou situação civil. Os termos são aplicados a fim de demarcar um grupo, suas peculiaridades e distinções a partir de orientações de ordem histórica, cultural, política e condição de classe (Abramo, 2005; Mauger, 1989). 9 No decorrer do texto, palavras surgem destacadas distintamente por aspas e/ou itálico. As aspas marcam os termos comuns ao campo investigado ou tenha correspondência com ele. No caso de expressões musicais de origem estrangeira, utilizarei o recurso do itálico, pois isto me permite indicar que seu uso não é restrito ao âmbito musical aqui investigado. 10 Segundo Maultsby (1999), em 1949, a Billboard aplicou o termo rhythm and blues (r&b) com a finalidade de identificar o antigo gospel, transformado em música popular. Para a autora, na década de 1960, o r&b passou a ser conhecido como soul com o uso do piano e o estilo vocal corrente na gospel music. Assim, o r&b possui estética, harmonia, estilos vocais e timbres próprios das canções executadas nas igrejas e popularizadas por gospel-jubilee quartets. O rap, parte sonora do hip-hop, está ligado aos grupos juvenis

17

musicalidades como o reggae, o samba e o pagode. Muitos dos organizadores estão

envolvidos com produções musicais e fonográficas (concebem e executam projetos,

compõem bases sonoras e articulam condições para prensagem e divulgação de CDs) e

terminam elaborando a “festa”. As reuniões e as expressões musicais, adotadas como bens

e serviços religiosos, não inovam somente pelo aspecto sonoro, mas também pelo corporal

e o cultural, pois as roupas usadas, o modo de perceber, de apresentar o corpo e os materiais

de propagandas veiculados marcam as especificidades da execução e da recepção.

Para os envolvidos, as reuniões, a música e a dança são elementos religiosos e não

desvinculados do aspecto social, permitindo-os expressar como vêem, sentem e refletem a

realidade. Para alguns organizadores, os bens e serviços produzidos viabilizam reflexões

sobre a desigualdade que permeia as relações sociais e atinge os artistas vinculados a black

music gospel e parte dos fiéis. Outros entendem as canções e a “festa” como importantes

por proporcionarem opções de diversão e de encontros entre fiéis de diferentes igrejas e

áreas urbanas.

A investigação da black music gospel, sem esquecer seu liame com a “música

gospel”, é importante para a reflexão sobre a transformação do “meio evangélico”, pois

indica dinâmica própria na qual idéias, objetos, valores, atividades, influências e relações

sociais constituem as produções, as promoções e as recepções. Essas podem ser diferentes

devido à ênfase em aspectos como a vinculação com a crítica social, com o entretenimento,

com a interação e com a confirmação de fé. Projetos, arranjos e rearranjos caracterizam a

“música gospel”, a black music gospel e a “festa”, pois seus organizadores estabelecem

contatos com expressões musicais e idéias não restritas ao meio evangélico e à sociedade

brasileira. Buscam produtores (culturais, religiosos) e dialogam com idéias, com iniciativas

e acessam bens culturais inscritos em fluxo mundial. Alteram sentidos e, com isso, instalam

oposições, conflitos e satisfações, afetando aqueles ligados às igrejas surgidas em períodos

distintos. Apesar da referência às Escrituras, apresentam características particulares e são

designadas históricas, pentecostais e neopentecostais.

urbanos que utilizaram a técnica dos sound systems, elaborada na Jamaica, como base sonora para os discursos improvisados, as falas ritmadas. Estas, ao lado do grafite e do break, formaram uma cena constante no espaço público (Vianna, 1988). Por fim, o db surgiu em Londres, na década de 1990, e possui traços instrumentais e jazzísticos, com batidas sincopadas e construídas a partir de samples (colagens) de várias músicas (Vianna, 2003).

18

As igrejas históricas foram instaladas no século XIX com as campanhas de

missionários europeus e norte-americanos. As primeiras décadas do século XX foram

marcadas pela instalação e difusão de serviço de evangelização ancorado na crença da

manifestação do Espírito Santo – Pentecostes. Por fim, a década de 1970 registrou a

instalação do neopentecostalismo, demarcado pelo combate aos cultos de possessão. Ao

mesmo tempo, eles foram levados para o seu interior e as sessões religiosas organizadas a

partir do destaque dado às entidades. Segundo Mafra (2001), essa oposição passou a

caracterizar parte dos evangélicos, expressando o movimento de mudança ocorrido em seu

meio religioso.

Os envolvidos com a black music gospel e com a “festa” são filiados aos grupos

protestantes – ou evangélicos, como se diz no Brasil; são integrantes da Igreja Batista e de

outras neopentecostais. Eles apresentam projetos e sentidos atribuídos à música e à

interação de fiéis - em constante diálogo com aquilo definido na esfera religiosa oficial.

O caminho escolhido para tratar aqui a questão compreende as recentes análises que

apontam para o pluralismo e a privatização como fatores da transformação religiosa no

Brasil contemporâneo. Na nova paisagem, estariam presentes os desmontes e o surgimento

de dualismos, de diálogos entre religiões e reinterpretações, de trânsitos de fiéis, de

rearranjos precários realizados por adeptos que contribuem para a inscrição de novos estilos

de atuação (Velho, 1997; Carvalho, 1999; Amaral, 2000; Sanchis, 2001; Steil, 2001;

Novaes, 2004; Brandão, 2004). Nesse âmbito, estão as ofertas de bens e de serviços

religiosos não elaborados somente por pastores e igrejas, mas a partir de outro nível de

produção e de administração (Oro e Steil, 2003).

O meio evangélico, assim, não estaria ileso ao existente fora de suas fronteiras,

mantendo proximidade com a política institucional (Burity:1997) e com as iniciativas

empresariais (Campá, 1998). Neste quadro, figura aquilo implementado por fiéis que, em

suas relações sociais cotidianas, registram ações inusitadamente criativas, empreendendo,

por exemplo, vias de mediação entre forças opostas colocadas pelo neopentecostalismo

(Birman, 1996).

19

Para compreender as atividades de leigos, aplicarei as noções de “porosidade” e de

“encontros transformadores”. Sanchis (1995; 1997), ao falar em sincretismo, observa que

no Brasil a confluência entre portugueses, indígenas e negros expressa os “encontros

transformadores” entre eles. Resultaria daí pontos de passagens, de influência cultural

demarcadora de uma “porosidade” identitária. Identidade nunca finalizada, com a

coexistência e possibilidades de ser diante de tantas inscrições religiosas, de confrontos, de

composições autônomas e reinvenções da tradição. E, em tal âmbito, os fiéis integrariam o

jogo do fazer e refazer o ser religioso.

As noções de “porosidade” e de “encontro transformador” permitem compreender

os componentes e as condições de imbricação entre crenças e produtos culturais.

Igualmente a convergência franqueia falar da transformação do campo religioso com as

produções musicais, de eventos e fonográficas. Isto é apontado porque a black music gospel

e a “festa” materializam os cruzamentos entre a religiosidade, o entretenimento e a política,

porém são iniciativas pouco visíveis.

O desenvolvimento do tema - a musicalidade como meio de expressão da

transformação religiosa – compreenderá as idéias, as ações e as criações em circulação na

esfera evangélica. Pode-se adiantar que esse conjunto, de modo aparente ou submerso,

instala tensão com a tradição. As instituições religiosas questionam a contribuição dessas

atividades musicais para o meio religioso. Pastores apontam para a “invasão da igreja pelo

‘mundo’”, para o perigo da indistinção com o “mundo”, a instância simétrica oposta da vida

religiosa; explicitam os confrontos entre específicos entendimentos do mundo e das coisas.

Apesar da visão de líderes religiosos, os produtores e os

consumidores/freqüentadores de canções e de “festa” apresentam outras concepções para

os bens e os serviços musicais - e evidenciam que a “produção de significados” não é

restrita ao âmbito das instituições (Steil, 2001). Isso configura o jogo entre antigas e

recentes relações sociais praticado por aqueles dispostos a experimentos com as ações, com

a linguagem, com o vocabulário, com a inscrição de oposições e de sentidos (Velho, 1997).

Trata-se de ação capaz de (re) criar, de combinar, e que apresenta tantos sentidos para o

grupo de fé. Assim, uma citação pode auxiliar:

20

As categorias tradicionais, quando levadas a agir sobre um mundo com razões próprias, um mundo que é por si mesmo potencialmente refratário são transformadas. Pois, assim como o mundo pode escapar facilmente dos esquemas interpretativos de um dado grupo humano, nada pode garantir que sujeitos inteligentes e motivados, com interesses e biografias sociais diversas, utilizarão as categorias existentes das maneiras prescritas (Sahlins, 1999:181, 182).

O destaque é dado aos registros de crenças e ofertas no campo religioso brasileiro,

no qual diversas tradições religiosas disputam o contingente de fiéis. Por sua vez, esses não

ficam inertes, pois podem realizar composições entre elementos e saberes de origens

variadas e assim “recriar pessoalmente seu universo religioso” (Sanchis, 1995:134).

Registra-se na contemporaneidade a crescente circulação e escolha por diversos “espaços

de experiência religiosa” (Brandão, 2004). Desse exercício, as novas gerações não estão

excluídas; relacionam-se com crenças e alternativas de fé, mesmo considerando aqueles

autoclassificados sem religião. Aqueles encontrados nessa posição podem indicar, a

despeito da não filiação institucional, a fé em algo; há também os possuidores de filiação

religiosa, praticantes de apropriações e reapropriações de elementos de outras origens

(Novaes, 2004).

Falar em porosidade e encontros transformadores é reconhecer o lugar que os

contatos adquirem no tocante às alterações (e manutenções também), pois sentidos são

produzidos, refeitos, mantidos ... Assim, é possível falar, para ser breve, em encontros

culturais, em transformação e em tensões.

Diante da questão estabelecida, tomo a produção musical e a “festa” como

reveladoras de ações propícias aos exercícios criativos (religioso, musical, discográfico e

político). Isso acarretou adotar algumas reflexões sobre festa (Mauss, 1974; Da Matta,

1979; Alves, 1980; Brandão, 1987; Durkheim, 1989; Burke, 1995; Bakhtin, 1999),

entendendo-a como evento fora do tempo rotinizado, específica linguagem compreensível e

estimulante, um ato de comunicação como espécie de ritual (Alves, 1980; Leach, 1983;

Peirano, 2001). Pode-se visualizar a produção de encontros culturais, de porosidades e,

portanto, de tensões constitutivas da transformação religiosa. Assim, os estudos sobre

manifestações populares e os historiográficos sobre festa permitem ter outra visão do

protestantismo (Thompson, 1987) e dialogar com a figura do protestante apontada por Max

21

Weber (1996). A partir desta discussão, é buscado compreender como o meio evangélico se

apresenta na sociedade contemporânea (Novaes, 1998).

Não é novidade a oferta de manifestações musicais entre os evangélicos. No Brasil,

são disponibilizadas diversas informações acerca da atividade de/para os grupos abrigados

sob a rubrica religiosa. A revista Show Gospel (veículo de edição trimestral e em seu

quarto ano de publicação, especializado no ramo musical amplamente definido como

"música gospel"11), divulga os profissionais (cantores, compositores, arranjadores,

produtores e apresentadores), as empresas especializadas e os locais de execução musical

em diversas partes do país.

Em termos gerais, o relatório da Associação Brasileira de Produtores de Discos

(ABPD), de 2003, constata que o mercado fonográfico nacional, em 2002, teve crescimento

de cerca de 3,6%, porém o aumento de unidades foi menor, ficando próximo a 1,7%, em

relação ao ano anterior. No entanto, a associação afirma que o país figura em segundo

lugar, atrás dos Estados Unidos, com o registro de 76% no tocante à produção e ao

consumo de repertório nacional. Em vendas por repertório, o religioso alcançou 14% de

vendas, 2% a mais em relação ao ano anterior, acima das cifras dos repertórios de samba e

pagode (12%) e sertanejo (com 11%). Segundo as empresas da ABPD, as produtoras

religiosas são em número de três12, entre evangélicas e católicas. Há gravadoras que

possuem cantores com repertório definido, mesmo sem vínculos com a dimensão religiosa;

esse seria o caso da Sony Music e do padre Marcelo Rossi13. Os números podem

impressionar e principalmente abrem brechas para indagações acerca dos meios de

execução/recepção musical que podem ocorrer nas igrejas ou fora delas. Por fim, o tema

não é refletido somente no Brasil (Monteiro, 1982; Cunha, 1993; Araújo, 1996; Pinheiro,

1997; Almeida e Rumstain, 2003; Nascimento Cunha, 2004), haja vista haver nos Estados

Unidos (Oliver, 1986; Maultsby, 1999; Reagon, 2001), no México (Garma, 2000) e na

Espanha (Blanes, 2005) produções musicais e de fonogramas destinadas aos filiados do

cristianismo em sua versão protestante. 11 O termo é aplicado entre os evangélicos e os não filiados a fim de identificar a música que tenha conteúdo religioso. O tema é abordado no primeiro capítulo. 12 Cito a Line Records, a MK Publicitá e a Paulinas Comep. A duas primeiras são evangélicas ligadas à Igreja Universal do Reino de Deus - Iurd e a uma família convertida, respectivamente. A terceira está ligada à Congregação Paulina, que tem por finalidade consolidar a música como eficiente linguagem a ser difundida e, assim, cumprir o objetivo da congregação em atingir os adeptos. 13 Publicação anual da Associação Brasileira dos Produtores de Discos - ABPD 2002.

22

A dinâmica musical e religiosa no Brasil também é marcada por iniciativas

artísticas de leigos responsáveis por um panorama de produção e de atividades. Essas

igualmente são orientadas por convenções (Becker, 1977) que orientam a formulação de

novos serviços e bens musicais. Não obstante, esses devem, conforme as concepções

oficiais, delinear sua distinção em relação aos similares em circulação no meio secular.

Sobre a black music gospel e a “festa” o mesmo pode ser afirmado.

As elaborações em geral mobilizam fiéis de origens e formações diversas,

possuidores de gostos, de interesses e objetivos específicos e, muitas vezes, identificados

com certas expressões musicais14. Nem sempre são organizadas por pastores, igrejas e

empresas, e não ficam restritas aos prédios religiosos - podem ocorrer, por exemplo, em

praias, em estádios de futebol, em teatros, em clubes, em restaurantes, em cafés e casas de

shows. Nesses eventos, predomina a execução de canções que ocupa boa parte do tempo,

existindo também momento de realização de breve oração conduzida por líderes religiosos,

cantores ou ambos.

No caso da black music gospel e da “festa”, conforme os envolvidos (organizadores

e freqüentadores), as canções e as iniciativas demarcam uma expressão de fé não

excludente da fruição e da efetivação de crítica social. Isso expressa e, ao mesmo tempo,

contribui para a transformação do meio evangélico, pois explicita as redefinições de

dualismos como igreja/mundo, sagrado/profano, espírito/corpo, religião/mercado. E

transparece nas discussões sobre “música gospel” no Brasil, sobre a “festa”, sobre as ações

de leigos, sobre a citada black music gospel, colocando a possibilidade de debates acerca

das noções de cor, de negritude e de territorialidade.

Para tratar a questão proposta e os temas introduzidos, uma estratégia foi

estabelecida. Não privilegiei uma igreja ou ações institucionalizadas. Optei por abordar

aquilo realizado por fiéis de diversas igrejas que estabelecem práticas e representações e,

assim, instalam tensões e negociações com aquilo apresentado pela esfera religiosa oficial.

Desse modo, são colocadas relações que indicam modo de ser e de pensar distintos e, ao

mesmo tempo, próximos daqueles defendidos pelas igrejas. O caminho escolhido

14 Expressão musical, também vista no plural, é entendida aqui como a composição caracterizada por letra de conteúdo crítico ou não; e alia estilo corporal, inserção pública e, assim, demarca posicionamentos com orientação política ou não. Isso identifica, situa determinado grupo perante os demais e é uma referência aos seus adeptos como, por exemplo, o hip-hop.

23

compreendeu a observação participante, a análise de entrevistas, de canções e de materiais

imagéticos; também foram contemplados os depoimentos e os textos elaborados por

aqueles envolvidos com as produções pesquisadas. Diante do apresentado, três pontos

norteiam o desenvolvimento desta tese.

O primeiro ponto está centrado nas constituições da “música gospel” e da black

music gospel e com os instáveis cruzamentos entre esferas distintas como a religiosa, a de

entretenimento e da política (ou crítica social). Os investimentos de organizadores para

acessar dispositivos materiais (equipamentos e locais) e a preservação de suas experiências

de cunho sonoro, religioso, profissional e político externam negociações, combinações,

arranjos e tensões provenientes do que fazem.

O segundo tem a ver com o reconhecimento de estratégias de organização, de redes

constituídas por organizadores e propiciadoras de constante reelaborações de movimentos

de distinção interna e externa. De um lado, há possibilidades de proximidade entre os

organizadores, os freqüentadores e os demais evangélicos já que têm por objetivo

evangelizar. De outro lado, os arranjos e as combinações apresentam distinções com o

vigente no meio religioso, pois contemplam a dimensão da alegria, do divertimento e da

amizade.

O terceiro ponto privilegia os conflitos em decorrência de continuidades e de

rupturas com o meio religioso a partir da adoção de expressões musicais contemporâneas e

internacionalmente circulantes. A observação das iniciativas viabiliza atingir como os bens

culturais são apropriados e aplicados na composição de idéias e veiculação de imagens. O

resultado é constituído por estilos corporais, modo de exercício religioso e de

posicionamento político que tornam visível certo contingente de fiéis. No entanto, afirma-

se serem iniciativas propiciadoras da disseminação de serviço religioso.

Os três pontos franqueiam a compreensão da dinâmica dos arranjos e das tensões

próprios de atividades musicais no meio evangélico. Igualmente possibilitam acessar as

visões e os objetivos dos organizadores e tecer um retrato daquele que ouve música e

dança. Assim, poder-se-á apreender as proximidades e os distanciamentos no tocante ao

entretenimento, ao religioso e à crítica social.

O presente trabalho está dividido em entreato e seis capítulos, que abrangem

questões diversas. Acredito ser possível, a partir deles, visualizar as especificidades da

24

atividade musical e como esta contribui para a transformação do meio evangélico. O

entreato é uma parte voltada a informar ao leitor as etapas, as condições e as situações

experimentadas no decorrer do trabalho de campo. São apresentadas a questão inicial, os

primeiros momentos, as dificuldades e as questões enfrentadas.

O primeiro capítulo apresenta um histórico sobre a “música gospel”, nos Estados

Unidos; também privilegia os percursos artísticos de cantores brasileiros com a finalidade

de delinear a construção da musicalidade no meio evangélico. Será buscado compreender a

organização e a estruturação da “música gospel”, modalidade difundida a partir dos anos de

1990 entre os evangélicos. São destacadas as canções formuladas a fim de demonstrar as

características das canções. Sem ignorar as elaborações de encontros e execução de

canções, são exploradas as concepções dos envolvidos acerca da formulação musical para

ser possível alcançar certa organização empresarial e religiosa, a elaboração e a

apresentação de bens musicais e, ao mesmo tempo, chegar naquilo que demarca a relação

entre ouvinte e música. O ponto final tem a ver com a relativa resolução diante da tensão

entre mercado e religiosidade.

O segundo capítulo está centrado na apresentação das composições dos grupos

organizadores daquilo conhecido por “festa”, modalidade de reunião que expõe a

complexidade e a organização do meio religioso. Além da descrição da atividade, os

objetivos são evidenciados, bem como as concepções dos produtores acerca dos bens e

serviços musicais dispostos. Também serão destacados os tipos de mediação que os

produtores musicais estabelecem quando inscrevem a “festa”, a black music gospel e a

“música gospel”.

No terceiro capítulo, a partir de literatura pertinente, discute-se a “festa”, a

brincadeira e as fantasias. A reunião é vista não como atividade ímpar, pois outros grupos

utilizam tais elementos para suas práticas religiosas. Serão observados os fluxos de agentes,

de entendimentos, de interesses, de arranjos, de tensões e que provocam debates. Estes

tocam em pontos sensíveis como, por exemplo, tradição e quebra de tradição, afetividade e

autocontrole, diversão e religiosidade, informalidade e formalidade. Por fim, focalizarei

também a tensão entre os produtores de black music gospel e de “festa” e os líderes

religiosos institucionalizados. Como se verá, na última parte do capítulo serão abordadas as

visões pertinentes à “festa”: de um lado, as formulações dos organizadores permitem

25

destacar o aspecto da dádiva; de outro lado, as críticas de pastores viabilizam abordar a

atividade como dimensão do perigo.

No quarto capítulo, há a retomada do termo “música gospel” para apresentar a

tensão com a circulação de outro sentido dado pelos formuladores de black music gospel

que atribuem ao gospel uma origem “negra”. Também são apresentadas algumas canções

para atingir as peculiaridades da black music gospel e de seus produtores/divulgadores. A

partir das canções e de depoimentos, busca-se demonstrar ser a black music gospel e a

“festa” não demarcadas apenas pelo entretenimento, mas tomadas como adequadas ao

debate e posições definidas e questionadoras da invisibilidade da black music gospel e de

artistas negros, de fiéis e de suas referências culturais. No meio evangélico, outros grupos

igualmente questionam e estabelecem posições diante das condições enfrentadas pelo

contingente de fiéis negros. Materiais mediáticos permitirão observar que ações

empresariais e o mercado passam a ser as condições para a visibilidade da black music

gospel.

O quinto capítulo versa sobre a black music gospel e como ela viabiliza

problematizar a temática da cor no meio evangélico. Ao explorar o material imagético será

visto como os produtores constituem via de divulgação de artistas negros, de estilos

corporais pautados na apropriação de bens culturais. Além disso, as abordagens dos

depoimentos, de produções textuais e imagéticas permitem demonstrar a vigência de

diálogos com atividades constituídas fora do meio religioso e possibilitam refletir sobre a

vigência de um território. Ele estaria pautado na relação entre cor e música e sublinha outra

concepção de cidade. Também será vista a crítica sobre a validade das inovações musicais e

das expressões musicais de referencial afro-americano para o meio evangélico. Por fim,

será observado o confronto entre aqueles voltados ao questionamento do meio evangélico a

respeito da invisibilidade do negro e de sua cultura e os defensores da black music gospel.

O sexto capítulo focaliza os depoimentos e explora a descrição do campo

pesquisado para constituir um perfil dos ouvintes de black music gospel e aqueles presentes

na “festa”. Assim, busca-se conhecer ouvintes e freqüentadores, observando-se a dinâmica

entre o entretenimento, a crítica social e a fé. A partir das concepções dos usuários, será

realizado um retorno à esfera da produção para explorar outro aspecto. São trazidas as

pregações, as canções e a descrição de campo para indicar a vigência de novos postos na

26

arena musical e de “festa”: o pregador, o DJ e o responsável pela esfera de controle do

ambiente e dos corpos.

Na conclusão são retomados diversos pontos vistos no decorrer da tese. Eles

viabilizam a discussão do dito meio evangélico que, diante de canções, imagens e ações

empresariais e religiosas, depara-se com visões distintas acerca da “música gospel” e da

black music gospel. Ver-se-á que a transformação, como o perigo, não é dada somente pela

adoção de técnicas e de expressões musicais. Existem tensões pertinentes ao estilo de vida,

ao ethos e visão de mundo, entre líderes institucionalizados e produtores musicais, são

momentos significativos. Por fim, serão apontadas as instâncias de reconhecimento e de

visibilidade da black music gospel com a retomada da composição entre mercado e

religiosidade.

27

Entreato

De chegadas e descobertas: o trabalho de campo

Para prosseguir com o tema definido na introdução, descrevo aqui as etapas, as

condições e as situações enfrentadas no decorrer da investigação. Elas abarcaram

momentos como a entrada, a condução do trabalho de campo e a definição da questão.

Inicialmente tinha por objetivo compreender a lógica da produção fonográfica no meio

evangélico e, desse modo, considerei que a pesquisa poderia ser realizada em uma empresa

fonográfica. No entanto, terminei por investigar um grupo de atividades independentes,

seus organizadores e freqüentadores. A alteração resultou de condições enfrentadas e da

necessidade em reelaborar o planejamento. Entre 2002 e 2004, entrevistei pastores,

empresários e cantores; participei de reuniões destinadas a divulgar os empreendimentos.

Nos anos de 2003 e 2004, estive presente em edições de “festa” preparadas por alguns

grupos em atuação na cidade do Rio de Janeiro. Passo, a partir de agora, a descrever o

percurso de pesquisa.

De início, achava possível ater-me a algum empreendimento estritamente

industrial a fim de saber como era concebida e organizada a “música gospel”. O acesso a

uma gravadora foi possível, mas problemas foram enfrentados como, por exemplo, a

obtenção de informações solicitadas. Além disso, outro ponto contribuiu para reajustar o

plano de pesquisa. Visava abordar quais seriam as noções dos receptores sobre as canções

disponíveis. Enfrentei certa dúvida sobre a audição musical por meio físico (CD, rádio,

televisão, computador), pois envolveria etapas de concepção e de produção empresarial e

situaria o ouvinte em lugar distante. Esse contato indireto colocou dúvidas sobre como

poderia contemplar o aspecto da recepção.

Diante disso e das dificuldades, pouco depois reformulei meu plano de trabalho e

privilegiei algo distinto daquele estritamente relacionado com as empresas fonográficas.

Considerava ser possível acessar os aspectos da produção musical, da execução e também

da recepção e, assim, não escolhi o regular serviço religioso, marcadamente formal, mas

privilegiei manifestações resultantes de atuações independentes que mantivessem, em

28

algum grau, ligações com a esfera institucionalizada. Eram atividades informais e

descentralizadas e, portanto, acreditava, teria como perceber as peculiaridades das ações

dos organizadores e do público.

Ponto de partida: intervenções

Para falar sobre a pesquisa e apresentar o campo retomo momentos anteriores.

Tenho por início a minha dissertação de mestrado, em 1997, orientada pela profª. Patrícia

Birman, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - PPCIS/UERJ, sobre o

trabalho musical realizado por "agentes religiosos" (trata-se de membros efetivos e líderes

de igrejas evangélicas) interessados em evangelizar jovens de camadas populares e

residentes em bairros não centrais da cidade do Rio de Janeiro. O ponto de partida foi em

1996 ao participar de uma pesquisa coordenada pelo antropólogo americano John Burdick

sobre a atuação religiosa e o nível de consciência racial; parte do trabalho de campo foi

realizada na Igreja Jesus é a Verdade, localizada na Ilha do Governador, Zona Norte, no

Rio de Janeiro.

Durante o trabalho de campo, observei que a música preenchia significativa parte do

tempo dos adeptos. Nos finais de semana, a preparação do templo, a organização do serviço

religioso e a permanência de fiéis não estavam desvinculadas da música. O ensaio da banda

musical ocupava a tarde de sábado e de outro dia da semana; enquanto houvesse pessoas no

local, o equipamento de som estava sempre ligado. A liderança da igreja consentia e

evidenciava que a música era importante para a permanência dos membros como, por

exemplo, os convertidos. Isso compreendia dar liberdade para manipular e tocar os

instrumentos, cantar, movimentar-se por toda a área, fazendo-os ficar por muito tempo no

prédio. Mas tudo se desenrolava sob o acompanhamento de um ou mais integrantes.

A igreja estava localizada próxima a uma favela e em seu interior era corrente a

visão de que os adolescentes convertidos poderiam ser mais vulneráveis aos apelos de um

modo de vida considerado não adequado; havia leigos que explicitavam que alguns

adolescentes teriam vivido pequenas ações ilegais. Para a liderança e leigos, o perigo era

iminente e, assim, as atividades deveriam ser atraentes para mantê-los no grupo e, portanto,

a música teria significativa contribuição.

29

Durante seis meses, observei a dinâmica da igreja e do grupo juvenil e, nos

momentos posteriores, privilegiei atividades religiosas e ensaios do grupo musical; tomei

conhecimento da existência de músicas que circulavam no meio evangélico e

privilegiavam o funk. Esta é uma expressão musical associada aos grupos juvenis urbanos e

gozava então de reconhecimento negativo na cidade do Rio de Janeiro. Ela era vista como

ligada aos "arrastões"15 registrados nas praias da Zona Sul, na década de 1990. Isso me

chamou a atenção e passei a indagar como e por que o funk se acomodava entre os

evangélicos.

Os cantores com os quais mantive contato foram César'El, convertido à Assembléia

de Deus, tendo passado para a Igreja Renascer e, posteriormente, retornado ao primeiro; o

outro foi o grupo Yehoshua, formado por pastores da Igreja Metodista – ao todo eram seis

integrantes, sendo dois convertidos e os demais oriundos de famílias evangélicas. No

discurso do grupo, havia a reflexão sobre certa juventude vista como associada ao funk e

aos "arrastões"; para os cantores, os dois – o estilo musical e o “arrastão” - eram

considerados elementos possuidores de poder negativo. Assim, era elaborada a apropriação

daquela expressão musical e feita sua transformação em potente meio de conversão.

O trabalho dos agentes religiosos compreendia tornar o funk um eficaz instrumento

de conversão e de atuação. Para os cantores, também os membros e os líderes religiosos da

Igreja Jesus é a Verdade, a música era um eficiente modo de transformação, pois

consideravam que os equipamentos faziam parte de seu trabalho evangelizador; atribuíam

ao som a capacidade de alterar a disposição dos ouvintes porque podia conduzir a atos

reprováveis ou não. Para os cantores, a expressão musical – funk - era vista como uma

sonoridade negativa e incentivava atos violentos porque incitava os sentidos e a

consciência. Por tal capacidade, esse estilo musical deveria ser recuperado e utilizado como

instrumento de evangelização, seja pelo poder atribuído ao som, seja pela penetração em

grupos juvenis urbanos encontrados em clubes e quadras localizadas em bairros e em

comunidades não centrais.

As músicas produzidas por artistas não evangélicos eram submetidas ao exercício de

transcrição que permitia o surgimento de versões, cujas letras veiculavam “mensagens”

15 Na década de 1990, a imprensa deu destaque ao conflito, nas praias da Zona Sul do Rio de Janeiro, entre grupos de jovens, provenientes de comunidades localizadas no subúrbio da cidade, que teriam agredido e subtraído pertences de banhistas. Sobre o tema, ver: Cunha, 2002; Farias, 1999.

30

como o poder divino e a guerra contra o mal. Este era entendido como o uso de drogas, o

abandono de crianças e o envolvimento com a criminalidade. Os depoimentos dos cantores

chamaram minha atenção, pois os integrantes do Yehoshua diziam que se apresentavam em

praças públicas, programas de televisão e “bailes funk”, principalmente os organizados pela

equipe de som Furacão 200016. Os cantores informaram que podiam contar com o público

da equipe de som Furacão 2000 e também eram contemplados por fiéis que iam aos bailes,

mesmo contra a posição da liderança religiosa, no caso desse grupo musical.

Com o fim da dissertação, percebi que os depoimentos prestados apontavam para a

existência de modo alternativo daquele formado pelas denominações e suas atividades -

ofertas de bens e serviços religiosos. O objetivo era atingir público constituído por

evangélicos ou não. A produção musical ao redor do funk ressaltava a proposta de

evangelização, com a apropriação de uma expressão musical considerada adequada para

penetrar em determinados grupos, com a finalidade de veicular a “mensagem” de salvação;

porém seria uma dupla salvação: oferecer uma vida próxima a Deus e longe das drogas e da

violência, ou o que entendiam ser o mal. Não obstante, pouco sabia quem eram os

organizadores, suas influências e interesses; quem consumia, qual o sentido que a música

tinha para o público, quem comprava CDs e ia aos shows. Por tudo que foi visto, considerei

que ainda haveria muito a pesquisar.

No Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia - PPGSA/IFCS,

tinha interesse em responder àquelas e a outras questões, e isso poderia ser feito ao

investigar uma produtora. Por meio do contato com uma jornalista da produtora musical

MK Publicitá, que procurara a prof.a. Regina Novaes em busca de informações sobre o

mercado fonográfico, consegui penetrar na empresa e conversar com o relações-públicas e

principal articulador da produtora desde sua fundação, na década de 1990. Porém, efetivar

uma pesquisa não foi possível, pois esse universo compreende segredos, cautelas e temores.

A MK Publicitá (MkP) está localizada na cidade do Rio de Janeiro, em São

Cristóvão. Fiz uma visita ao prédio da empresa; guiada pela jornalista, conheci alguns

setores, mas fui impedida de entrar em determinada área que poderia ser aquela de efetiva

produção de CDs. Conheci as áreas executivas, como a redação da revista editada pela

16 A Furacão 2000 surgiu na década de 1970, no Rio de Janeiro, com Rômulo Costa e Gilberto Guarani, que iniciaram a empreitada com “bailes funk” e soul. Atualmente a equipe mantém programas na TV e bailes semanais, possuindo gravadora e estúdio de som. Ver: www.imusica.com.br, acessado em 28/01/05.

31

empresa, a rádio El Shaddai, o portal Elnet, o estúdio de produção de programas de

televisão, o estúdio de gravação musical e...só! Apesar do ar receptivo, todas as minhas

investidas, contatos e pedidos eram adiados ou educadamente esquecidos pelo relações-

públicas; então, percebi que não deveria perder mais tempo. Também, nesse período, tentei

entrar em contato com uma cantora, prima de uma colega de disciplina no Programa de

Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (IFCS/UFRJ), mas foi em vão. A agenda da

artista era concorrida, registrando constantes viagens e estadas no exterior. Depois de

algumas tentativas e uma conversa telefônica, terminei por desistir.

O período entre a visita à empresa MK Publicitá e o contato com a cantora foi

eficaz, pois foi possível questionar a condução do trabalho de campo. Entendi que a estrita

abordagem da atividade industrial ressaltaria a música como resultado de planejamento

racional; enfim, seria uma mercadoria para as empresas. No entanto, não visava fazer uma

pesquisa sobre o caráter administrativo ou empresarial. Achei que poderia tomar outra via.

Assim fiz.

Contatos, encontros e “adoração”

Por um tempo fiquei pensando qual caminho poderia tomar e compreendi que as

dificuldades não seriam encontradas somente na MK Publicitá, mas em qualquer outra

produtora. Restrições ocorreriam. Literalmente fui à rua encontrar indícios, pistas sobre os

ouvintes, sobre os atores que participariam da produção de uma determinada música.

Um dia, em visita ao Mercado Popular, na parte central da cidade, conversei com

Cosme17 (proprietário de uma loja – trata-se do bazar Deus Proverá. Nele são

comercializados CDs e outros artigos com frases religiosas), anteriormente indicado por

Claudinei, da JC Produções e ex-funcionário da Associação de Músicos e Arranjadores

(AMAR)18. Este último foi entrevistado a partir da indicação de uma funcionária do

17 Convém explicitar que os nomes dos entrevistados foram alterados; porém em se tratando de artistas e organizadores de eventos, a opção foi utilizar os nomes artísticos porque estão presentes na dimensão pública, em meios de comunicação como, por exemplo, na Internet, em revistas e em jornais voltados à divulgação musical. Sobre o bazar Deus Proverá e seu proprietário, ver: informativo e-black, ano 1, 6ª edição, dez/2003, p.03. 18 A AMAR -Sombras é uma associação de músicos, arranjadores e regentes que visa administrar e distribuir direitos autorais musicais. Seu escritório central está localizado no Rio de Janeiro e possui representantes em diversos estados do país. A Sombras atua desde a década de 1970, defendendo a autonomia

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Escritório de Arrecadação de Direitos Autorais (ECAD)19 quando procurava dados sobre

consumo musical. Sobre as canções vinculadas ao meio evangélico, a interlocutora afirmara

não ter condições de explanar, porque o ECAD não fazia distinções entre as modalidades

musicais e, portanto, abrangia as execuções realizadas por diversos meios.

Cosme falou sobre os clientes e sobre suas preferências. No decorrer da conversa,

confirmou a realização de "baile evangélico" ou "festa gospel" no Rio de Janeiro (ouvira

falar sobre o assunto, por volta de 1998, pouco depois de ter finalizado a dissertação de

mestrado) e afirmou ser um patrocinador deste tipo de evento.

Esses eventos têm um caráter quase itinerante, contemplando músicas nacionais e

norte-americanas e reúnem interessados oriundos de diversas partes da cidade. A “festa” é

constituída por vários momentos (jogos, oração, brincadeiras, comensalidade e dança, por

exemplo) e configuram a atividade a partir da reunião entre entretenimento, religião e, de

modo não tão evidente, questões sobre desigualdade social e o lugar destinado aos não

brancos na sociedade brasileira.

No momento da conversa com Cosme, não me interessei muito pelas "festas", mas

entrei em contato com produtores de um programa semanal de rádio e entrevistei dois

deles: um é cantor e o outro DJ e empresário do grupo. A conversa girou em torno da

produção e da execução de músicas pautadas em recentes expressões musicais, como o rap

e o funk. Somente no fim da interlocução soube que também eram promotores de iniciativas

musicais.

Meu objetivo era investigar a produção musical oficial e, assim, tive a oportunidade

de conversar com o pastor Manga, casado, branco, dirigente de uma igreja que atua entre

surfistas e jovens da Zona Oeste da cidade − nos bairros da Barra e do Recreio dos

Bandeirantes. Após uma ligação telefônica, o pastor concordou em conceder uma

entrevista. Foi no decorrer dela que soube de sua participação na fundação e condução do

grupo de rock Oficina G320, do plantel da MK Publicitá, cujas músicas são consumidas no

do autor e passou a denunciar os grandes grupos fonográficos e o interesse em controlar o sistema autoral brasileiro. Ver: www.amar.art.br, acessado em 06/12/04. 19 O ECAD é formado "por associações de autores e titulares filiados e/ou representados " e tem por objetivo arrecadar e distribuir direitos autorais e conexos em decorrência de execução pública de obras musicais e literárias. Ver: www.ecad.org.br, acessado em 06/12/04. 20 O grupo Oficina G3 é uma banda de rock que busca divulgar mensagens de cunho evangelístico. Ver: www.elnet.com.br, acessado em 25/11/02.

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meio evangélico. Depois de sair da Igreja Renascer, foi para a Vineyard21. Contou que,

durante o período que esteve na Renascer, também promoveu "festa"; porém, com o

tempo, com a saída do grupo Oficina G3 e mudança de igreja, deu outra direção ao seu

empreendimento e passou a organizar reuniões musicais22 com perfil mais adequado aos

valores protestantes. Naquele momento, cantava e participava da organização de eventos

divulgadores da chamada "música cristã", o que faz ainda hoje.

Durante a entrevista, com o pastor Manga, tomei conhecimento do Encontro

Nacional de Louvor Profético (ENLP). A partir daí, visitei a página virtual, entrei em

contato com a comissão organizadora e conversei com um dos pastores. No decorrer da

conversa, o pastor discorreu sobre as mudanças musicais e frisou a importância do

retroprojetor na exposição de canções que poderiam ser cantadas por todos os presentes no

serviço religioso. O ENLP é interdenominacional, teve fundação na cidade do Rio de

Janeiro, em 1990; depois, no decorrer da década, passou a ser efetivado em Petrópolis,

adquirindo amplitude nacional. Seu objetivo é reunir líderes religiosos (cantores,

compositores e expositores) e o público para "louvor e adoração" a Deus através da música

e da profecia23. De três a quatro dias − atualmente há a proposta de fazer a reunião em uma

semana −, o público lota o teatro do Hotel Quitandinha, construído na década de 1940, na

cidade de Petrópolis, estado do Rio de Janeiro, para ouvir pregações dos pastores e cantar

juntamente com os líderes presentes. Diante da organização do ENLP, com a participação

de cantores e empresários do meio musical evangélico, em 2002/2003, decidi ir à

manifestação e, durante três dias, assisti a várias palestras e apresentações musicais.

O teatro pode ser alcançado pelo interior do hotel ou pelo acesso direto existente na

entrada oposta à dianteira, e precedida por um lago com o formato do mapa do Brasil.

Entrando por aí, chega-se a uma ampla recepção; depois, há uma escada que permite

alcançar o teatro, à direita, há outra escada que conduz a um salão com ampla cúpula,

21 A igreja Vineyard foi fundada nos Estados Unidos, por John Wilber, músico profissional, na década de 1970. A Vineyard procura enfatizar a adoração, o ensinamento prático das Escrituras, o treinamento para o ministério, o cuidado com os pobres e a fundação de novas unidades. Atualmente sua administração fica a cargo de um grupo formado por líderes que atuam em diversos países expandindo a denominação. No Brasil, ela está localizada nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Minas Gerais e no Distrito Federal; ver: www. vineyardmusic.com.br, acessado em 09/10/04. 22 Entrevista concedida a Márcia Leitão em 2002. Outros dados disponíveis em http://www.supergospel.com.br, acessado em 15/02/05. 23 Revista oficial do Encontro Nacional de Louvor Profético, nº05, 24 a 28/08/02.

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utilizado para exposições e igualmente ocupado por empresas e produtos religiosos. O

teatro comporta cerca de 2.000 pessoas, com dois níveis de cadeiras e palco giratório.

Abaixo do teatro, há uma área que funciona como restaurante. Ao chegar, dirigi-me à

entrada do teatro; constatei que desde cedo havia vendedores informais de produtos

comestíveis – vendiam café, bolos e biscoitos - posicionados próximos à porta. Até o local

designado para o encontro, a circulação era permitida, e encontrava-se um público

diversificado: crianças, adolescentes, jovens e adultos, observando o local ou na fila para

entrar no teatro.

Para chegar até o local designado, era necessário mostrar um cartão, com o nome e a

igreja de filiação, pois isso evidenciava a realização da inscrição com pagamento em rede

bancária. Em 2002, o valor do ingresso integral era de R$ 50,00, com depósito em conta

corrente e inscrição on line; o comprovante seria apresentado no setor de recepção, havendo

a conferência de nome e recebimento de crachá com identificação e revista com a

programação. Isso viabilizaria a freqüência nas reuniões em diversos horários. A inscrição

também poderia ser feita com o pagamento no local de quantia que poderia ser de dois

tipos: integral - permitia assistir a todas as sessões; e parcial - seu valor, menor, dava

licença para assistir as sessões programadas para o dia correspondente ao pagamento. Em

2003, a organização estabeleceu valores diferenciados para os interessados no pagamento

parcial. Assim, para assistir as pregações em um turno (manhã, tarde ou noite) o pagamento

seria de R$ 15,00; para dois períodos (manhã e tarde; tarde e noite) o valor seria de R$

25,00.

Depois de passar pela etapa de credenciamento, era a vez de sentar e aguardar o

início das atividades. Durante os intervalos, era possível ver o público explorando certas

áreas do hotel, a proximidade do hall dos apartamentos e, principalmente, o salão, naquele

momento ocupado por stands de vendas alugados a expositores de empresas – literárias,

discográficas, de vestimentas e equipamentos de som. Havia a comercialização de CDs, de

blusas com frases indicativas de filiação religiosa, de livros, de buzinas com frases de

cunho evangelizador ou ofensivo como, por exemplo, "sai, macumba!" (ou "sai,

despacho"), material de sonorização etc. Também os organizadores do evento

disponibilizavam as filmagens e as fotos correspondentes às apresentações, com valores

entre R$ 15,00 a R$ 42,00.

35

Grosso modo, o ENLP reúne pessoas de várias denominações, tanto no que tange ao

público, quanto aos cantores e aos líderes religiosos. Seus organizadores são da Igreja

Metodista, Ministério do Avivamento e Projeto Vida Nova. Os pastores convidados

também são oriundos de diversos grupos como, por exemplo, Comunidade da Graça,

Ministério Fogo e Glória e Igreja Batista Getsêmani24. Constitui um universo de música,

de sermões e de manifestação emocional, como quando os cantores conseguem, ao executar

uma canção durante 30/40 minutos, levar os presentes a certo estado emocional demarcado

por risos, choros, lamúrias e quedas ao chão.

Em relação aos organizadores do ENLP, encontrei dificuldades em conversar e

somente consegui falar, mais de uma vez, com um deles. Não foi um contato rápido; diante

da demanda do momento, indicou outro integrante da equipe, cantor e autor de livros sobre

música e evangelização. Esperei para contatar o dirigente depois que tivesse uma questão

definida. Havia outro ponto: ainda não considerava ter encontrado questão viável a ser

investigada e nem ver ali o grupo por meio do qual poderia desenvolver minhas dúvidas e

observações.

Um ano se passou. Ouvia falar das "festas" e também de bares e shows nos quais a

participação de interessados nas músicas era significativa. As atividades eram organizadas

por grupos religiosos, pela esfera pública25 ou pela iniciativa privada, sempre com a música

em voga. No meio evangélico, há termos empregados com a finalidade de identificar as

músicas produzidas e em circulação em seu interior. Assim, fala-se em “música gospel”,

"música evangélica" e, mais especificamente, "música cristã contemporânea" na tentativa

de demarcar a música produzida e consumida na atualidade e distinta da hinologia

protestante.

Aliás, a categoria "música gospel" é difundida no país, corrente entre evangélicos e

não evangélicos, para falar, em sentido geral, da música e de outros artigos com mensagens

religiosas. Atualmente, gospel ou "música gospel" é utilizado prodigamente por artistas,

produtores, programas de televisão e revistas. Para alguns promotores de "festa" − como

parte do público, o termo gospel pode ser aplicado às musicalidades ligadas aos cantos 24 Revista do Encontro Nacional de Louvor Profético, nº 06, 2003, p. 4 -7. 25 Algumas prefeituras realizam eventos como feira agropecuária, aniversário municipal, por exemplo, que compreendem a realização de shows com a participação de cantores e artistas para entreter o público. A agenda de atrações costuma ter uma noite ou uma tarde para a apresentação de grupos e cantores evangélicos.

36

elaborados por escravos nas plantações americanas e seus descendentes. Esses teriam

inspirado a black music que, por tal origem, estaria presente no meio evangélico26.

Existem tantas iniciativas e canais – impressos e virtuais – especializados na

divulgação de artistas e de atividades que são alocados sob a rubrica gospel. Recentes

análises designam a existência do “circuito gospel” integrado por igrejas, boates,

restaurantes e outros lugares (Almeida e Rumstain, 2003). Aponta-se também para a

vigência da “cultura gospel” própria de um “modo de vida” que registra alterações

superficiais; ela pouco muda o meio evangélico, posto reforçar o ethos religioso

(Nascimento Cunha, 2004).

Diante da profusão de eventos e da dificuldade em penetrar numa gravadora, em

2003, resolvi ligar para a produtora do programa Explosão Gospel (EG). Este é um

empreendimento que visa descobrir talentos musicais a fim de gravar compact disc (CD)

com os novos cantores. Para tanto, houve composição com produtora localizada no bairro

de Vila Isabel, Zona Norte, cujo diretor-artístico expressava interesses em atuar no meio

evangélico.

Tomei conhecimento do encontro, realizado no Teatro da Praia, em Copacabana, ao

ler o jornal Explosão Gospel27. Entrei em contato com Antônia, sua organizadora, que me

convidou para assistir a edição do EG. O jornal veicula notícias sobre o meio evangélico e

divulga as sessões elaboradas ao redor da música e da "caravana" − era o mesmo tipo de

atividade musical que a equipe de produção tentava implementar em outras cidades como

Campos dos Goytacazes, no Norte-Fluminense.

Antônia, ex-produtora de cantores e de baile funk, convertida à Igreja Universal do

Reino de Deus - IURD -, fala que o início do EG ocorreu após ter recebido o pedido de

uma “obreira”28 para realizar um trabalho musical. A empresária dizia ter produzido

“cantores evangélicos” sem ter se convertido; teve insucessos e optou por abandonar a

atividade. Converteu-se e, apesar dos pedidos, resistiu. Depois viu ter passado por período

26 Como exemplo de mobilização e organização, ocorreu em 2004, em São Paulo, o 1º B.Unit Festival voltado a premiar artistas da chamada black music gospel. Ver: supergospel.com.br, acessado em 05/08/04. 27 O jornal foi cedido por Edileuza, na época aluna do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Sociologia – PPGAS/UFRJ. O veículo surgiu em 2002, tem edição mensal, com distribuição gratuita; possui colunas redigidas por líderes religiosos e favorece divulgação de anunciantes (comerciante e profissionais liberais). Em maio de 2003, o jornal tinha uma tiragem de 10.000 exemplares. 28 Termo corrente na IURD e que designa aqueles que exercem atividades no templo e que complementam o trabalho do pastor. Ver: Campos, 1997.

37

de provação, para ela, imposto por Deus; entendia que teria ficado “fragilizada e,

totalmente na Sua dependência”, para que mais adiante pudesse ter um verdadeiro encontro

com Ele29.

Somente após algum tempo, cerca de dois anos, em 2001, e várias solicitações,

principalmente, de um músico da IURD, organizou uma equipe com amigos e conhecidos

seus. Atualmente, aluga o Teatro da Praia, propriedade da Igreja Maranata30, para a

execução do EG. As reuniões da equipe de produção e a seleção dos participantes ocorriam

nas tardes de sábado, nas dependências da Igreja Internacional da Misericórdia, igualmente

localizada em um edifício no bairro de Copacabana, também alocado por ela. Apesar de

registrar que não solicitaria “nada a ninguém”, Antônia tem articulações que envolvem

igrejas, empresas, comerciantes e políticos, colocando-a além da dimensão religiosa.

O EG é realizado bimensal ou mensalmente, dependendo das condições materiais da

equipe e disponibilidade em alugar o teatro. Este está posicionado na área de um edifício

residencial e tem entrada independente. Existe uma ampla portaria envidraçada, seguida por

um hall e um lance de escadas e a abertura lateral que dá acesso ao teatro. Ao prosseguir

pela escada, chega-se ao segundo pavimento no qual há banheiros e o outro nível do

auditório. O interior é composto por várias filas de cadeiras e um palco no qual o

apresentador e os candidatos se posicionam no momento de cantar. A entrada para a

programação musical era franqueada, porém na porta ficava alguém da equipe para tentar

impedir que o barulho atrapalhasse a condução do programa, pois havia alguns que

alternavam suas presenças entre conversas, a assistência da reunião e o interesse em

adquirir alguma bebida ou comestível vendido por alguém da equipe produtora. A atividade

sempre tinha início depois do horário marcado devido ao atraso da equipe organizadora ou

chegada do público. A implicação era de os presentes se retirarem, inclusive componentes

do júri, antes do término.

Por ocasião da conversa com Antônia, explicitei o objetivo da pesquisa. Fui

convidada por ela a compor o corpo de júri e, no dia, terminei por ser anunciada como

“professora de faculdade”. O lugar destinado aos encarregados pela seleção dos calouros

29 Jornal Explosão Gospel ano 2, nº 17, 05/03, p. 02. 30 Igreja evangélica fundada na década de 1970, no Rio de Janeiro. Ela prega os dons espirituais, o evangelismo com vistas à expansão, possuindo diversas unidades na cidade do Rio de Janeiro. Ver: www. igrejamaranata.com.br, acessado em 09/10/04.

38

não facilitava a observação, haja vista ser a primeira fileira de cadeiras, o que impedia ficar

atenta ao que se desenrolava no teatro. Durante outras duas vezes tentei despistar para não

ser solicitada a assumir o posto, mas foi em vão. Era descoberta e solicitada para contribuir

para a efetivação da atividade. Depois passei a chegar atrasada para escapar aos convites.

No período de minha observação e também participação como componente do

grupo de julgadores, pude perceber inseguranças pertinentes ao critério de escolha. A

informação dada por algum componente da equipe organizadora era se a canção possuía

inspiração e referência religiosa. Não foi difícil constatar que os jurados ficavam em dúvida

diante de algo inconsistente e ocorriam, em algumas edições, dúvidas sobre como votar.

Alguns encontros depois, foi posta em circulação uma ficha de avaliação (anexo), contendo

os critérios e o intervalo de pontos (1 a 10). Os aspirantes eram avaliados e selecionados

por um grupo formado por amigos, dirigentes religiosos, membros de alguma igreja,

empresários, cantores e músicos. Os convidados deveriam votar conforme alguns critérios –

(os integrantes do júri recebiam uma caderneta de anotação e nela figuravam três critérios:

letra, arranjo e interpretação).

A estrutura do EG remete ao programa de auditório, com apresentador, platéia,

torcida organizada, candidatos a cantor, às vezes, algum artista iniciante, a presença de

pastores e de empresários – integrantes de gravadoras e de emissoras de rádio; havia

também o uso de tecnologias e apresentação de canções conhecidas cuja execução era

possível pelo playback31. A presença e o uso de uma determinada estrutura comum aos

programas de auditório, as relações e os arranjos, envolvendo esferas diversas como, por

exemplo, a comercial e a política, fazem do EG uma iniciativa posicionada entre o religioso

e o empresarial.

Um ponto me fez ver o EG de outro modo; tinha relação com a dimensão da

recepção. O EG aproximava-se do modelo de programa de auditório (ou de calouros), no

qual os concorrentes finalizavam suas canções, sendo escolhidos os três melhores para a

gravação de um CD. Assim, o público se fazia presente, ocupava as cadeiras posicionadas

diante do palco no qual os calouros se apresentavam. Esses eram esperados por torcidas

organizadas, fãs, parentes e amigos e acompanhavam o candidato e, por isso, o público não

31 Trata-se do uso de gravação prévia de trilha sonora para acompanhar a execução de alguma letra musical.

39

era o mesmo na edição seguinte. A audiência era caracterizada por fluidez e laços

familiares ou amizade com os artistas; devido a isso, duvidei se contribuiria para abordar o

aspecto da recepção.

Ao integrar o corpo de júri, comecei a entender os desdobramentos, não somente do

EG, mas também da produção musical, das articulações com líderes religiosos,

empresários, artistas e políticos interessados em expor seus projetos, trabalhos e planos. A

interseção com a esfera política ficou explícita na entrevista de Antônia; ela deixou

evidente, por exemplo, a articulação com a liderança da IURD e outros líderes religiosos do

estado, ressaltando inclusive ter negado ser candidata a cargo público. Fui também

presenteada com um CD do bispo e senador Marcelo Crivella32, do qual,

significativamente, ela tinha certa quantidade; depois, o material foi distribuído aos

presentes daquela edição do EG.

Para mim, o EG apresentava inconsistência no tocante ao público e à direção.

Achei que poderia observar outros eventos a fim de visualizar a receptividade da platéia;

diante disso, passei a indagar: como seria na "festa", qual o perfil do público e a sua

freqüência, e como os eventos eram concebidos entre os organizadores? Não somente por

isso, em 2003, percebi que não seria possível continuar o trabalho de campo sem, ao

menos, comparecer a uma "festa".

De início, acreditava poder compará-la com o EG, pois considerava existir pontos

relevantes como, por exemplo, a produção independente, as relações empreendidas com

igrejas, com empresários e com políticos; a presença e a participação de grupos juvenis.

Assim, houve uma alteração no tocante ao campo e, conseqüentemente, da questão

pesquisada.

Mudanças: novo campo e algumas questões

O caminho percorrido tinha a ver com o meu objetivo em compreender os arranjos,

as lógicas e as combinações próprias da produção e do consumo de canções; para tanto, em

vez de concentrar o trabalho de investigação em alguma gravadora, fiz a escolha, por causa

das barreiras encontradas, em não ficar restrita ao aspecto empresarial. Assim, inclinei-me 32 Membro da direção da Igreja Universal do Reino de Deus, cantor e senador pelo estado do Rio de Janeiro.

40

para determinadas modalidades de atividades. Entendia que elas evidenciavam um tipo de

articulação alternativa e tinham, por vezes, intercessões com as ações empresariais e

religiosas institucionalizadas.

Após observar duas edições do ENLP, várias do programa Explosão Gospel e tantas

outras reuniões, resolvi ir à "festa" e ver como era organizada e o que revelaria sobre o

aspecto musical e o meio evangélico; no entanto, a decisão não foi repentina. Em 2002, a

profª. Patrícia Birman convidou-me para um trabalho de pesquisa sobre o “Basta! Eu quero

paz” promovido pelo Viva Rio e o Instituto Sou da Paz. A manifestação ocorreu após um

episódio ocorrido em uma linha rodoviária, conhecido como o "seqüestro do 174", cujo

resultado foram duas pessoas mortas. Isso provocou mobilizações na cidade, no estado e no

país a favor da paz 33.

A minha opção foi analisar a rede formada por artistas (grafiteiros, rappers e artistas

de teatro) e o trabalho que desenvolviam. Assim, entrei em contato com diversos

participantes e encontrei o grupo de rap Revolucionando, Evangelizando e Politizando −

REP -, cujos componentes eram evangélicos. Entrevistei três integrantes do REP, faltando

um: L’Ton, um dos fundadores do grupo e também, soube depois, produtor de black music

gospel e organizador de “festa”. Posteriormente, em conversa com ele, fiquei ciente da

consolidação da "festa", de promoção de algo relacionado com a dimensão de

entretenimento, de religiosidade e de crítica social. Suas reflexões descreveram a

manifestação por outro ângulo, pois suas atuações na dimensão artística secular motivaram

indagações sobre as relações estabelecidas34. As informações reunidas indicavam uma

complexa formulação e consolidação de eventos em certa parte da cidade.

Finalmente decidi ir à “festa” e pude contar com a companhia de Geraldo, cujo

conhecimento sobre bailes foi válido e facilitou a abordagem de freqüentadores, pois a

inscrição de uma dupla não era tão estranha ao cenário composto por grandes e pequenos

grupos, raramente algum solitário.

Escolhíamos aqueles posicionados por algum tempo diante do local. Considerava

que isso facilitaria a conversa, pois poderiam estar aguardando alguém ou algum momento

33 Ver: www.vivario.org.br, acessado em 16/10/02. 34 Antes disso, a prévia descrição realizada por Paulo Cezar, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ), que se disponibilizara em ir a uma edição da “festa”, foi fundamental.

41

especial e, portanto, não deveriam ter tanta pressa. Os grupos formados por homens e

mulheres eram igualmente contemplados por permitir obter diferentes visões. Nossa

abordagem consistia em interromper a conversa, explicar ser uma pesquisa sobre música e

religiosidade.

Os entrevistados perguntavam sobre o meu envolvimento religioso; quando

respondia ter tido educação cristã (católica), ficavam calados. Outra pergunta era sobre

minha vinculação com algum jornal ou revista, pois queriam saber se o material seria

publicado. Explicitava ser uma investigação acadêmica, para a obtenção de um título. A

permissão era constante, todos falavam e sempre perguntavam sobre a minha opinião, se

me sentira bem e se me convertera (“entregara”). Respondia achar interessante, muito

bonito e novo ... De qualquer modo, continuavam a falar. Pude contar com o auxílio de

L´Ton e de Sérgio, das equipes35 Gospel Beat e Soul de Cristo, respectivamente. Eles me

apresentaram a alguns organizadores, muito me explicaram sobre as manifestações e

descortinaram as articulações entre os organizadores de eventos, evangélicos ou não.

Na “festa”, deparei-me com a ação de duas equipes organizadoras, Gospel Night

(GN) e a Gospel Beat (GB) e depois tomei conhecimento da atuação da Soul de Cristo

(SC). Ao chegar, confesso, fiquei tensa com o leque de possibilidades ali disposto. Desse

modo, considerei ser possível, sem abdicar daquilo coletado nos dois outros momentos da

pesquisa, compreender as peculiaridades daquele fazer musical relacionado a determinado

meio religioso.

O conjunto de ações das equipes permitiu visualizar como formuladores autônomos

e efetivos consolidam seus empreendimentos sem se valer de vínculos com empresas e

igrejas. Mesmo assim, dialogam com suas concepções, estabelecem conexões com

iniciativas e idéias vigentes ou não no meio religioso. Ao focalizar isso, foi possível

construir um retrato mais nítido do evento.

As explicações dadas por Sérgio, os discursos de outros organizadores (veiculados

por meios diversos), os materiais produzidos e as falas dos freqüentadores contribuíram

para incluir a “festa” no plano de investigação. Um ponto era visível: a “festa” era 35 Denomino equipe a associação voluntária voltada a compartilhar interesses, objetivos, mobilizar recursos e forças políticas, sociais, religiosas e materiais a fim de assegurar a elaboração, a organização e a promoção musical e de atividades.

42

apresentada como algo diferente de qualquer ação proposta e efetivada no meio evangélico.

Era afirmado ser o fiel antenado com o modo de vida não religioso e, ao mesmo tempo,

tudo era feito e vivido distintamente. Os diversos níveis de diferenças a mim explicitados,

nas conversas mais elaboradas e nos depoimentos coletados sob condições pouco

favoráveis, circunscreveram uma “realidade”. Ela emergia das relações sociais e das

especificidades concebidas e descortinadas (Viveiros de Castro, 2002: 121-123).

Ao ter por interesse entender quais os objetivos, as combinações e os arranjos

peculiares à organização da elaboração e da recepção, deparei-me com vários

empreendimentos e acompanhei diversos, permitindo configurar a execução e a recepção de

canções, e ligados, de modo amplo ou restrito, à esfera religiosa. Fui a shows e atividades

que tinham a musicalidade como elemento central e, apesar das diferenças, eles permitiram

elaborar uma reflexão sobre a dinâmica que envolve a organização de eventos e também de

modos de ser evangélico.

Em 2003, recebi um convite feito por Edileuza, a mesma amiga que possibilitara o

contato com o pastor Manga, para ir ao encontro da juventude da 1ª Igreja Batista do Rio de

Janeiro, no bairro do Estácio (área central da cidade), realizado durante a primeira semana

do mês de setembro que reuniria a "juventude" da Primeira Igreja Batista do Rio de Janeiro

-1ª Pib e outras igrejas convidadas36, sob a responsabilidade dos componentes do grupo de

“jovens” da igreja.

O início das atividades foi marcado pela atuação da banda. Essa tocou um vigoroso

rock e, na segunda canção, contou com a participação de um grupo de coreografia. Após

algumas canções, foi chamado, naquela noite, o grupo da Igreja Maranata, composto por

quatro pessoas que, com os demais, executou canções por cerca de 40 minutos. Depois

houve a concessão de tempo para o "testemunho" do guitarrista, e um pastor falou ao

público. Nela estavam pais, irmãos, avós e tios, configurando não somente um encontro

musical, mas, acima de tudo, familiar.

O fim do culto foi forçado, haja vista passar de 23 horas e a banda e os demais

núcleos compostos por jovens (coreografia e "louvor") não pararem de cantar. Com o

término, todos foram para o salão, no qual ocorreu um lanche, momento de interação.

36 “No alto, aos Teus pés”- IX Congresso dos adolescentes da Primeira Igreja Batista do Rio de Janeiro (IX Conapib), 4 a 7/09/03.

43

Logo após, o público começou a se retirar, porém uma parte significativa do grupo juvenil

ficou, com a finalidade de iniciar o momento designado "social". Isso consiste em jogos e

brincadeiras entre os presentes e configura um momento de descontração.

Depois de ir a outros tipos de reuniões, como já citei, pus-me a observar se a música

seria percebida distintamente entre aqueles que participavam do encontro da 1ª Pib e os que

freqüentavam a "festa". Também perguntava quais elementos seriam ali encontrados.

Observei que a "festa" viabilizava uma associação peculiar e distinta daquela registrada nas

igrejas. Diante das brincadeiras, da música e da dança comuns, podia-se indagar sobre as

vias de filiação religiosa, entendendo que nem sempre o parentesco, a procura por cura ou o

ato de apreciar o padrão de conduta de um grupo são fatores determinantes (Fernandes,

1998:29-53).

Há uma inegável dimensão de interação, de reunir um público variado - por

exemplo, local de residência, idade, grau de instrução e filiação denominacional. Os

participantes da “festa” afirmavam ser possível ocorrer interações e essas excederiam o

grupo religioso de origem; muitos enfatizavam que se conheceram ali; outros na sala de

bate-papo de uma das equipes; outro tanto se juntou na igreja ou no local de moradia.

Apesar disso, nos ideais da "festa", notava a existência de solitários participantes, uma

minoria, diante de grupos ou de associações ocorridas na entrada dos locais; no salão,

dançavam, conversavam, tiravam fotos e brincavam.

Os freqüentadores da "festa" - também os promotores e os convidados -,

diferentemente dos participantes do encontro juvenil da Igreja Batista, do EG e do ENLP,

por exemplo, conferiam certa característica, haja vista a pressa em dançar, em conversar,

em cantar. Tudo isso, era componente da dimensão religiosa. Estava diante de uma esfera

regida por outra regulação do pensar e do agir; sua peculiaridade era a diferença diante da

maneira contida de estar no mundo, considerada própria de religiões de acentuado traço

ético-racional (Weber, 1998).

Para um grupo de organizadores, a black music gospel e as atividades organizadas

seriam promotoras de um modo diferente de ser evangélico. Um disc jockey (DJ)37 afirmou

que isso era possível porque ali se investia na “alegria” e não na “tristeza” e na “doença”,

37 Disc Jockey (DJ) é termo em vigência ao universo profissional e tem a ver com o profissional encarregado da parte musical, porém não é mero executante de canções. Com domínio técnico, pode transformar as composições e oferecer novas formulações sonoras e musicais.

44

como entenderiam algumas igrejas. Muitos freqüentadores afirmavam a “alegria” e

revelavam lidar de modo peculiar com o sagrado. Diante disso, era impossível deixar de

notar como se aliavam a estilos corporais e orientadores das modas contemporâneas e,

muitas vezes, mundialmente difundidos38. Isso pode marcar a diferença entre os primeiros

protestantes e o exercício religioso que compõem o heterogêneo meio evangélico

contemporâneo (Fernandes, 1998).

O período de observação permitiu-me acessar um aspecto também visível em outras

atividades, mas que ficava mais evidente na “festa”. Tratava-se de composições

fundamentais aos empreendimentos, mas que se distinguiam das ações dos organizadores e

igualmente das do público. Elas eram efetivadas por aqueles ocupados com atividades

complementares. Esse grupo, que passei a designar pelo termo “colaborador”, podia incluir

os encarregados pelas filmagens e pelas fotografias para exposição na Internet; os

dedicados a proferirem oração ou mensagem religiosa; e, por fim, os que atuavam na

esfera da área de “segurança”, entendida como específica da dimensão do controle e da

ordem.

Nesse caso, parece existir uma combinação que marca a atuação desses

colaboradores, ou seja, é como um jogo complexo, os DJs excitam o público à dança, ao

canto e ao desprendimento e, por outro lado, ficam aqueles que circulam entre o público de

modo a não inibir os presentes. Eles, porém, devem impor uma presença capaz de tolher as

ações que podem atentar contra a organização da reunião. A participação de colaboradores

também foi registrada em outras iniciativas e estava destinada a atividades específicas:

controlar o acesso do público aos locais do evento, manipular equipamentos eletrônicos e

apresentar os eventos. É possível pensar que existem manifestações onde há, mais do que

em outras, certa maleabilidade de controle sobre a atuação dos presentes. Isso torna a

prática mais densa do que as demais.

Um relato como esse não tem por objetivo destacar o exotismo e sim focalizar os

empreendimentos constituídos e em diálogo com a esfera da produção (fonográfica e

musical). Diante da diversidade de ações, considerei precisar observar e abordar certos

eventos e elementos presentes em sua organização.

38 Para Almeida e Rumstaim (2003), a moda e a estética figuram o "circuito gospel" e permitem "desconstruir" a imagem existente do crente que prega uma aversão ao "mundo".

45

Algo ainda pode ser dito sobre a “festa” e outras atividades musicais e religiosas.

Além da iniciativa autônoma, alguns organizadores participam de shows realizados fora do

meio evangélico, como produtores ou convidados, e ocorre de freqüentadores os

acompanharem. As atividades registram fases e atores, quando a produção musical, a

recepção, a concorrência pela oferta de bens religiosos, a música e a dança são reveladas,

vendo-se as combinações e a relevância da presença da música para a integração que

caracteriza a "festa" (Geertz, 1998:142-181).

A black music gospel e a "festa" desvelam a influência da globalização, explicitam a

relação entre religião e globalização. Elas dão destaque aos estilos musicais integrantes das

culturas do “Atlântico negro” (Gilroy, 2001)39. Os grupos envolvidos apresentam

distinções porque o entretenimento é o aspecto enfatizado. Também a crítica à desigualdade

social pode constituir o trabalho de outra associação. Isso ocorre com a proposta de

releitura bíblica, haja vista ser afirmado não ocorrer valorização da cultura africana ou

negra – incluindo o popular e o regional -, e a distinção entre negros e brancos na ocupação

de posições de liderança (Novaes e Floriano, 1985b). O serviço musical oferecido resulta

dessa reformulação e exemplifica as possíveis combinações de componentes e iniciativas

que inscrevem, de um lado, uma noção de sagrado que compreende a música e a dança; de

outro lado, a reflexão sobre a relação entre brancos e negros.

Como foi apontado, a tensão sobre a visibilidade da black music gospel e do

contingente de fiéis negros será abordada, porém sua percepção não foi algo imediato. De

início, interessei-me pelo aspecto do entretenimento, mas o acesso aos materiais imagéticos

descortinou arranjos pouco visíveis e permitiu indagar sobre a construção da noção de

negritude (Bastide, 1974; Birman, 1989; Wade, 2003). Posteriormente, outras atividades,

não somente musicais, foram contempladas para obter algo mais consistente. Existem

iniciativas como o Fórum de Música Negra e Evangelização, elaborado pelo Fórum de

Mulheres Negras Cristãs, com o objetivo de conscientizar a partir da música40. Vê-se

39 A idéia de “Atlântico negro” permite falar e refletir acerca dos fluxos e misturas culturais de matriz africana, mas não a partir de um enrijecido centro irradiador, mas de formas culturais em movimento que trafegam, cruzam mares e originam “culturas planetárias mais fluídas e menos fixas”, pois não são irradiadas de um centro. 40 Esses grupos podem operar sinais que indiquem mudanças no meio evangélico, pois os leigos e os religiosos buscam a via política e agem no interior do âmbito institucional. Ver: http://br.msnusers.com/afrodescendentesnasigrejasevangelicas, acessado em 22/11/03.

46

também a ação do Fórum de Lideranças Negras Evangélicas em marcar determinada

posição junto ao II Congresso Brasileiro de Evangelização (CEB2). Os integrantes incluem

o tema do racismo, da discriminação dos sinais caracterizadores de negros, principalmente

por igrejas neopentecostais que associam a religiosidade de referencial africano/negro com

o mal, com as ações do demônio.

A manifestação investigada destaca as expressões musicais entendidas por

envolvidos como de referencial afro-latino-americano e, portanto, alguns afirmam valorizar

parte da população a ele relacionado. Há organizadores que igualmente consideram tecer

críticas à desigualdade social e outros entendem poder construir algo próprio ao

divertimento. Os organizadores distinguem o que fazem com aquilo em vigor no meio

secular e, para tanto, destacam as características da manifestação vistas, por eles, como

positivas. É apontado não haver brigas, não ocorrer uso de drogas, não existir perigo aos

que buscam ouvir música.

Os três tipos de eventos aqui relacionados evidenciam certos arranjos divulgadores

das produções fonográficas e musicais, porém a comparação revelou outro aspecto,

conduzindo a pesquisa para outra direção. Após certo tempo, a constatação de que os

elementos pareciam desconectados e sem sentido começou a sofrer alteração. Isso ocorreu

após optar por investigar os arranjos estabelecidos, experimentados pelos atores a fim de

compreender o trânsito que empreendem na/pela cidade, como e por que estabelecem

encontros e trocas na esfera religiosa e empresarial (Magnani, 2002). Assim, passei a

refletir acerca dos elementos e dos sentidos que os eventos adquiriam no interior de cada

grupo, diante das experiências religiosas e de uma noção de sagrado. Ao me deparar com as

diferenças e repassando os estudos realizados sobre o tema é que pude chegar a outras

questões e entender as diferenças e as confluências entre os eventos estudados.

A visão, por mim seguida, consistiu em tomar, como a briga de galos, a "festa"

como modo de expressão (Geertz, 1989:278-321) realizado com a dança, com a música,

com a escuridão e com os equipamentos sonoros. Com isso, deu-se ênfase a momentos

demarcados pelo entretenimento - música, brincadeiras e dança. Eles desenham um lado

pouco visível do meio evangélico, porém não ausente, embora, em alguns momentos,

questionados, restringidos e/ou combatidos (Weber, 1996; Thompson, 1987). Desse modo,

será buscado demonstrar que o crer pode conduzir à reunião de elementos, de idéias e

47

objetos de origens ou tradições distintas e que incorre, muitas vezes, em sínteses próprias e

mínima ingerência institucional (Steil, 2001).

Músicas e presenças: comunicações

Por tudo o que já foi dito, a produção musical apresenta ligações com diversos

empreendimentos, com ações sociais e com as concepções dos envolvidos e tudo o mais

que integra os arranjos efetivados. Portanto, segui a orientação de a descrição trazer uma

reconstrução, mas não qualquer uma. Trata-se de exercício voltado a compreender o que os

informantes falam, o que entendem sobre aquilo que fazem e o que efetivamente fazem.

Tudo isso apontava para determinada via de comunicação e, conseqüentemente, de

orientações comportamentais (Geertz, 1989: 143, 144).

Na tradição antropológica interpretativa, a descrição de uma dada situação permite

compreender que ela se entrelaça com outras e, portanto, o uso de conceitos é adequado

para a produção da interpretação dos discursos sociais (Geertz, 1989). Essa anotação

procura tornar o discurso social algo acessível e compreensível a partir da apreensão e da

análise sem se perder em amplas abstrações, pois a formalidade destas impede o acesso às

elaborações dos atores em atualizações cotidianas. Ou seja, deve-se ter em mente que o

emprego de conceitos associa intimamente idéias e realidade representada - "conceitos de

experiência-próxima" -, mas não deve limitar a investigação. O mesmo vale para a

aplicação de conceitos formulados em outro sistema de entendimento - "conceitos de

experiência-distante". Isso não quer dizer que seja necessário nutrir certa empatia por

aqueles que integram o universo pesquisado, mas deve-se saber o que "eles acham que

estão fazendo"; cabe estabelecer uma conexão entre os conceitos a fim de compreender os

"elementos mais gerais da vida social" (Geertz, 1998: 87-90). Assim, visei compreender a

dimensão musical, abordando determinadas iniciativas organizadas e também o público.

Focalizei a produção de reuniões, fosse de cunho independente (autônomo), fosse

institucional. Durante a pesquisa, fui "apresentada" por alguns informantes a uma

modalidade de empreendimento. Constantemente era convidada ou avisada da realização de

algum encontro musical em determinado lugar. Ao ir a um deles, pude visualizar as

peculiaridades dos demais, suas diferenças, haja vista ter me deparado com arranjos mais

48

duros e outros não. Ou seja, alguns tinham conexão direta com a religiosidade

institucionalizada e estavam voltados à disseminação de seus valores e objetivos. Essas

iniciativas coexistiam com outras mais maleáveis e decorrentes de idéias, ações e

comportamentos indicadores de um outro modo de ligação com aquela dimensão.

Durante o trabalho de campo, deparei-me com as mobilizações, as promoções e as

circulações de grupos pela cidade. Trata-se de mais um modo de relação e seus integrantes

podem, muitas vezes, pertencer a grupos divergentes (Wirth, 1976) ou não. Desse modo,

encontrei aqueles que se deslocavam pela cidade e formavam os numerosos arranjos e

reuniões encontradas.

A partir da observação participante (Malinowski, 1975) foi possível coletar dados e

operacionalizar uma interpretação sobre o fenômeno estudado. Busquei apreender diversos

fatos e não somente os mais sensacionais. Além das entrevistas, considerei aqueles,

parcialmente ou não, declarados nos discursos dos envolvidos. Também compilei os

acontecimentos coletados no período de observação, quando ia e me diluía na multidão, na

escuridão das pistas de dança, quando sentada nos teatros percebia uma desordem ordenada

já que, a despeito da aparência, a programação era efetivada; nessas situações era possível

ver e ouvir o que nem sempre era explicitado. Também nas filas, para a compra de

ingressos ou de acesso ao interior dos locais, nas extremidades do salão ou no bar para

comprar algo, era possível conversar rapidamente com alguns participantes, destacar os

mais distintos aspectos comportamentais.

Em relação ao público de “festa”, a observação dos comportamentos no tocante à

vestimenta, o cuidado com o corpo, o modo como os freqüentadores se dispõem, a

integração que realizam e o que entendiam foram acessados também nos momentos

triviais. O instante de “louvor” ou de relaxamento, de encontro, da dança, a ida ao

banheiro, o bate-papo entre os amigos provocaram indagações acerca da música e dos

encontros, pois em relação aos freqüentadores faltaria entender o que seria a organização

social ali existente, seu traçado e também as idéias que conduziriam à intrincada atividade

(Geertz, 1989:227).

Como já foi apresentado, o período de observação desvelou um modo alternativo de

produção e recepção de canções e o vi como algo inusitado; desde 1990, tenho pesquisado

as denominações evangélicas, mas ainda não havia visto nada igual. Perguntei-me sobre as

49

razões e as lógicas dos envolvidos com as elaborações dos bens e serviços ali dispostos. O

que haveria de peculiar? Tudo era formulado e elaborado por cantores, radialistas,

compositores, DJs, músicos, empresários e outros profissionais. Esses leigos combinavam

elementos culturais, objetivos, organizavam recursos materiais e se dedicavam igualmente

em formar seu público.

Os especialistas visualizavam e organizavam certos bens e iniciativas, algumas

investigadas e outras não, e, portanto, diante delas passei a definir o grupo ao utilizar os

termos promotores ou organizadores. Alguns agem com relativo grau de autonomia, pois

promovem articulações para a feitura de canções, para sua recepção, vinculam elementos e

terminam por fornecer dois pontos aos empreendimentos: a) uma feição contemporânea ao

interagirem com outros e adotarem expressões e técnicas musicais; b) a ênfase em

assegurar o reconhecimento daquela atividade como religiosa, tendo-se a presença de

alguém voltado a executar orações e/ou tecer “testemunhos” à assistência. O percurso

compreendeu deslocamentos sociais e geográficos - proximidades e distanciamentos -, haja

vista as "viagens" realizadas que me levaram a cortar a cidade, a me deparar com outra

visão dela. Além disso, o aparentemente extravagante precisou ser refletido para que se

tornasse compreensível (Da Matta, 1983: 143-173).

Diante da amplitude das iniciativas, sabia ser preciso utilizar alguns recursos com a

finalidade de visualizar as relações e os componentes de certo atuar musical e religioso.

Desse modo, as relações entre os promotores e os freqüentadores, suas presenças no espaço

público – ruas, teatros, clubes e similares - também deviam fazer parte da investigação

(Magnani, 2002). Assim foi feito. Observei como se localizavam, posicionavam-se e

usavam locais, prédios, ruas e como entendiam os empreendimentos e áreas urbanas a

partir de suas presenças.

Desse modo, encontrei organizadores que falavam sobre a área na qual os eventos

ocorriam, percebendo-se uma concepção acerca da cidade. Foi possível “chegar” a outra

cidade, muitas vezes diferente do traçado geopolítico realizado pelo poder público, pois as

falas revelavam uma organização urbana distinta daquela que figura nos mapas. Os serviços

e as instituições até podem ser relacionados na concepção de urbano; no entanto, as falas

enfatizavam outros aspectos, como as diversas atividades e expressões musicais

encontradas. A região era pensada a partir da vigência de uma herança cultural, de recepção

50

musical, de ocupação do espaço e de equipamentos públicos. Isso desenharia as escolhas e

os posicionamentos, nem sempre rígidos, nem sempre visíveis nos atos como permanecer

na rua, ir às escolas de samba e outras instâncias de atividade musical.

Foi preciso ouvir e olhar a fim de entender como eram produzidas e vividas a

música e as atividades para sua execução e recepção. Assim, seria possível compreender o

universo dos produtores musicais (cantores, líderes religiosos, compositores, DJs e

empresários), das produções, de empresas e diferentes grupos religiosos. Isso se deu com a

observação das músicas concebidas e elaboradas por aqueles ligados às instituições

religiosas ou não; e de composições consideradas eficazes no processo de conversão -

religiosa ou política -, associando-se, então, à apropriação de expressões musicais,

relacionadas ou não com grupos juvenis urbanos.

Finalizado o período de observação e com uma prévia organização dos dados,

comecei a indagar o que poderia ser compreendido. Eu possuía horas de entrevistas, com

relatos que, às vezes, pareciam desconexos ou, outras vezes, marcados por uma única linha.

Essa poderia permitir tomar algo como sagrado e como os envolvidos sentiam tudo ali

desvelado. Era possível ressaltar a importância da audição das canções, a emoção sentida, a

dança executada. Também as fantasias e os adereços ostentados, em alguns momentos,

podiam ser destacados.

Como disse anteriormente, estava diante de coisas que, muitas vezes, não se

encaixavam e, outras vezes, ficavam mais confusas quando confrontadas com o já

conhecido. O coletado não parecia ter coerência e, para tanto, precisaria entender que os

dados, aparentemente dispersos e fragmentados, poderiam deixar de ser assim caso

passassem a compor outra elaboração, distinta daquela construída e apreciada pelos

pesquisados (Magnani, 2002). Precisaria visualizar os arranjos e como os atores sociais o

sentiam e o concebiam. Diante do que me fora dito, observara e escutara, passei a perceber

a existência de uma ligação entre os arranjos construídos e atualizados por aqueles em

constante movimento pela cidade. Foi assim que dançar, questionar, divertir-se e orar eram

aspectos que apontavam para algo além das lógicas da produção fonográfica. A constante

descrição me permitia questionar, conectar os dados e indagar sobre os elementos, as

propostas, os valores, os arranjos, as combinações e as concepções produzidas.

51

Falas oferecidas: as entrevistas

A minha presença, o acesso às manifestações estudadas e o que me foi dito foram

momentos independentes de qualquer acontecimento imprevisível. Tudo se deu com a

disponibilidade, tanto de organizadores, quanto de freqüentadores, em falar e demonstrar a

eficácia dos bens e serviços. Não dependi de algo inusitado para o grupo ser receptivo

(Geertz, 1998), pois é buscado enredar o “de fora”, enfim “evangelizar”, no esquema de

entendimento e de vida do grupo. Falar sobre a “festa”, sobre “música gospel”, sobre black

music gospel era como oferecer um “testemunho de fé”, pois integravam o mundo

religioso; curiosamente revelavam outra relação com a sociedade, com suas idéias e bens.

Essa operação indicava outra noção de “mundo” separado e recriado por complexo jogo

formado por colagens, oposições e invenções. Tudo sempre atualizado na linguagem e, para

tanto, a apropriação de bens é fundamental (Velho, 1997:147-149; Segato, 1999:229).

A facilidade em falar não era comum porque alguns líderes, envolvidos diretamente

com a esfera empresarial ou estritamente religiosa, não expressavam suas opiniões. Apesar

disso, a maioria estava apta e voltada a receber; talvez a disponibilidade em converter seja

uma constante e um novo contato possa conduzir a isso (Novaes, 1985a).

Diversas entrevistas foram realizadas, muitas músicas foram ouvidas no percurso da

investigação. Sendo mais minuciosa, o trabalho de campo compreendeu dois anos. Foram

feitas 28 entrevistas com profissionais: artistas, produtores musicais e organizadores de

eventos; também foram ouvidos líderes religiosos e freqüentadores. Coletei entrevistas com

rappers e DJs evangélicos e produtores de "festa"; em alguns momentos, recorri a

depoimentos disponíveis em sites de cunho religioso ou não. As matérias jornalísticas

(oriundas do meio evangélico ou não), os materiais promocionais - visuais e sonoros,

elaborados por aqueles envolvidos nas produções fonográfica, musical e de encontros

permitiram acessar um outro nível das formulações dos envolvidos. Ou seja, as iniciativas,

as falas, as imagens e as canções possibilitaram constituir um quadro mais consistente para

a compreensão das relações, das combinações e das tensões próprias aos empreendimentos.

Entre aqueles que consomem músicas, entrevistei não somente os freqüentadores

das atividades pesquisadas, mas adicionei ouvintes de canções consideradas de cunho

religioso, sejam executadas durante o serviço religioso, sejam contidas em compact disc

52

(CD); entre aqueles presentes em iniciativas musicais, incluindo a "festa", foram ouvidos

sete deles, entrevistas em profundidade, e cerca de 15 entrevistas curtas, não formais e

realizadas nas entradas dos locais dos eventos. Isto implicou na duração e na profundidade

das conversas, pois era preciso lidar com a atmosfera do momento e interferências diversas

(barulho generalizado, condições climáticas e intromissão de acompanhantes ou outros

participantes). Nas conversas de maior durabilidade foi possível tocar em diversos temas e

adquirir um quadro mais consistente do universo pesquisado. O acesso aos entrevistados

que constituíram essa parte foi pautado por dificuldades, por resistência em estender a

conversa. O quadro mudou graças ao auxílio de Sérgio, um organizador, ao atestar a

seriedade do trabalho. A partir disso, deparei-me com outra disponibilidade por parte dos

possíveis entrevistados.

A coleta de dados a partir da resposta a questionários mostrou-se inviável porque os

momentos anteriores, os posteriores e também durante a “festa” não eram propícios para

realizar a coleta sistemática. Para mim, a dificuldade decorria da disposição do público em

participar da atividade: ouvir música, orar, dançar, conversar e brincar. Além disso, a

distância geográfica e temporal, o retorno ou não do freqüentador foram fatores inibidores

da opção em usar questionários, pois o retorno ficava comprometido, haja vista as agendas

registrarem eventos distantes uns dos outros, alguns com ocorrências anual, bimestral (ou

mais) e mensal.

53

Capítulo 1

Histórias, falas e canções – cantar no Brasil

No Brasil, há no meio evangélico a coexistência de vários registros sonoros e

musicais. As categorias “música gospel”, “música evangélica”, “música de adoração e

louvor”, “música cristã” e “música cristã contemporânea” são aplicadas para identificar as

canções. Elas nem sempre constam nos livros de hinos e podem ser compostas e gravadas

por pastores e por fiéis. As canções veiculam assertivas de líderes religiosos, de produtores,

de músicos e de cantores que tomam a música como eficaz meio de comunicação entre os

homens e entre esses e a divindade.

A confecção e a apresentação de canções são efetivadas por empresas, por igrejas e

por grupos (independentes ou não). São apropriadas diversas expressões musicais como,

por exemplo, a balada romântica, o rock, o funk e o pagode. Além disso, são organizados

shows e atividades variadas e direcionadas aos públicos – formados por adeptos das igrejas

evangélicas.

Apesar das várias designações acima citadas, a predominante é “música gospel”. As

canções são percebidas como algo homogêneo pela associação com as Escrituras. Do

mesmo modo, os artistas, com suas atuações, intenções e adesões aos estilos musicais, são

considerados como dirigidos pelo Evangelho ou princípios concebidos como oriundos dele.

Aqui abordarei aquilo entendido por “música gospel” a fim de observar a

peculiaridade que adquire no país. A divulgação da “música gospel” desvela ser uma dada

modalidade musical. No entanto, “gospel” é a forma amplamente utilizada por cantores, por

grupos musicais, por empresas, por fiéis, por revistas e jornais relacionados aos evangélicos

ou não. Seu uso está ligado às igrejas, gravadoras ou fiéis diante da pluralidade de

iniciativas. Um sentido é conferido: seria tudo voltado a disseminar o conteúdo bíblico.

Porém, qual a referência dessa música? O que enfatizam os entrevistados quando falam das

canções e dos artistas? O que as empresas colocam nos materiais de divulgação?

54

O capítulo está estruturado para oferecer um panorama da “música gospel” e

explicitar o liame entre ela e a black music gospel. A primeira designação é aplicada aos

artistas, às canções e aos demais produtos encontrados. Já a categoria black music gospel

circunscreve certa modalidade musical, outro fluxo internacional de bens culturais e

determinadas questões – o que será demonstrado mais adiante. Por enquanto, contemplarei

a “música gospel” e sua dupla composição: o southern gospel e o black gospel, ambos

marcados por relações com modalidades musicais populares. Apresentarei também um

histórico da musicalidade no meio evangélico brasileiro, sublinhando a inscrição e a

emergência do gospel. Destacarei algumas histórias de cantores e de atuações de empresas;

também focalizarei as canções para indicar suas características; os receptores são

contemplados com a finalidade de observar como percebem as canções; por fim, buscarei

indicar a ligação entre religião e mercado estabelecida por aqueles envolvidos com a

produção e o reconhecimento do fazer musical.

Gospel – canções e tipos

Sobre a designação “gospel”, é apresentada a visão de sua relação com as igrejas

evangélicas nascidas nas comunidades negras norte-americanas. Alguns autores apontam

para essa relação com o jazz, o soul e o rhythm and blues (r&b) (Oliver, 1986; Maultsby,

1999; Young, 1997; Reagon, 2001). O termo gospel é utilizado desde o final do século

XIX, servindo para distinguir os hinos, cantados nos serviços religiosos dominicais, dos

gêneros populares de canções com os quais a comunidade buscava alguma elevação

espiritual e demarcar certa relação comunitária. Além do aspecto religioso, o gospel

também possui por característica o entretenimento e faz parte de performances e repertórios

de cantores populares (Young, 1997:xx; Goff Jr. 2002: 7). Contudo, a relação entre igrejas

com população negra não define totalmente o gospel. Também existe a variante ligada às

áreas rurais do sul do país, denominada southern gospel.

No século XIX, houve a introdução de canções com apresentação de variações

líricas e sonoras, relacionadas àquelas reconhecidamente populares. Elas concederam tons

mais vibrantes aos serviços religiosos, marcando o southern gospel. Após a Guerra Civil,

os encontros campais, realizados por protestantes, evidenciavam a adaptação de práticas e

55

visões teológicas, registrando-se liberdade emocional, gritos e danças, reveladores do

revivalismo. O cantar compreendia um momento de destaque com a atuação de coros e,

muitas vezes, recorria-se às melodias populares. Isso não somente concedia certa atmosfera

espiritual ao encontro como também teria sido um hábil modo de conversão. No fim do

século, ocorreu o espraiamento dos cultos revivalistas, sendo realizados também na área

urbana (Oliver, 1986; Goff. Jr., 2002).

A publicação de coletâneas musicais também foi uma marca do southern gospel, no

século XIX, como, por exemplo, a Sacred harp, a Kentucky harmony e a Southern

harmony. Além disso, escolas de música passaram a funcionar. Nas primeiras décadas do

século XX, houve o investimento em estações e em programas de rádios e produções

discográficas. O momento foi fundamental para o fortalecimento dos quartetos, existentes

desde o início dos encontros campais. Também no início do século passado, os

componentes passaram a receber proventos ao integrarem companhias especializadas na

edição de publicações musicais. Nas igrejas pentecostais, houve significativo investimento

na aquisição de instrumentos musicais e uso de diversos estilos musicais (Goff Jr., 2002).

Neste período, a southern gospel music teve no rádio um importante meio de

manutenção e divulgação de canções e conjuntos, contribuindo para dinamizar os canais de

investimentos (Goff Jr. 2002: 72-79).

Além do southern gospel, registra-se o black gospel, possuidor de características

peculiares, sem se voltar ao conhecimento técnico das canções rurais. Seu surgimento

também está relacionado aos encontros campais realizados no sul dos Estados Unidos nos

quais havia serviços distintos para negros e brancos. Os pregadores negros apresentavam as

canções como um modo peculiar de pregação. Assim, as canções e um modo de cantar

marcaram o surgimento de diversas igrejas nas comunidades rurais. A migração do sul para

o norte, do campo para a cidade foi também marcada por fixação de igrejas nas quais

proliferaram serviços e pregadores envolvidos em proferir exortações aos ouvintes (Oliver,

1986: 196; Reagon, 2001). As igrejas não tinham somente a tarefa de oferecer um

momento de encontro com o sagrado, mas possibilitar a adaptação e fixação daqueles

chegados ao meio urbano.

Figura exemplar desse momento foi Charles Tindley, ministro metodista, cujas

composições de hinos seriam extensões de sermões proferidos e, muitas vezes, auxiliariam

56

diante das dificuldades enfrentadas (Reagon, 2001:16,17, 20). As canções seriam marcadas

por mensagens de otimismo, ao ressaltarem um Deus zeloso e misericordioso (Oliver,

1986: 191, 192; Reagon, 2001: 17,18).

Nos anos de 1920, o termo gospel foi aplicado por Thomas A. Dorsey, músico

migrante e compositor, cuja peculiaridade estaria em utilizar acordes e arranjos associados

à música popular como, por exemplo, o blues e o jazz (Oliver, 1986: 200; Young, 1997;

Reagon, 2001), sendo o gospel veiculado como a música religiosa afro-americana (Young,

1997). Desde fim do século XIX, os quartetos gozavam de reconhecimento público, porém,

na década de 1930, Dorsey organizou o primeiro coral gospel, com o qual passou a

propagar as novas músicas (Reagon, ibid: 25). Posteriormente, o músico se tornou

presidente da National Convention of Gospel Choirs and Choruses, tornando-se influente

no meio musical protestante (Oliver, ibid:200). Além disso, atuou como empresário, fundou

uma publicadora musical e estabeleceu relações com cantores, cujo resultado foi o

surgimento da organização Gospel singers convention (Young, 1997).

As companhias de gravação passaram a contemplar a gospel music, além do jazz e

do blues, a fim de abastecer o mercado com novas ofertas (Young, 1997: xxii). As

gravações de discos por cantores aumentaram a partir de 1930 e neles muitos dos solistas

usavam técnicas de blues e de jazz (Oliver, ibid:207, 208). A apresentação em programas

de rádio foi organizada por gravadoras interessadas nas modalidades musicais emergentes

nas comunidades afro-americanas, como o jazz, o blues e o gospel (Young, ibid). Os anos

pós-guerra foram marcados por mobilizações voltadas aos direitos civis, com campanhas

embaladas por músicas gospel (Oliver, 1986: 219; Goff J., 2002: xx), também são

registradas conquistas tecnológicas, crescimento da indústria automobilística, de turismo e,

por fim, outro momento da produção musical.

A produção musical gospel não estava mais pautada nos encontros rurais, mas em

apresentações marcadas por introdução de instrumentos musicais, investimentos em

quartetos e descobertas de novos talentos (Oliver, 1986: 214, 215; Goff Jr. 2002:160, 163).

Com o advento da televisão, ocorreu a procura por novas audiências; os programas

passaram a contemplar o blues, o rhythm and blues e a gospel music, alcançando públicos

formados ou não por seguidores de igrejas protestantes (Maultsby, 1999: 179, 180).

57

A produção musical sofreu alterações, na década de 1950, diante das relações

comerciais entre empresas encarregadas por impressões musicais e os compositores. Estes

escreviam para as companhias e depois passaram a compor diretamente para os grupos, ou

seja, atuavam independentemente das companhias publicadoras e, portanto, as canções

circulavam mais libertas de imposições empresariais. Além do rádio, das apresentações em

salas de concerto, as gravações fonográficas figuraram como outro modo de encaminhar a

carreira de quartetos e cantores, possibilitando a circulação de canções. Isso teria

contribuído para influenciar os conjuntos formados por cantores brancos.

O impacto da televisão foi significativo, como o do rádio, para o fortalecimento

musical, por ser utilizada para apresentação de quartetos, a partir de 1950, em programas

musicais. Não somente a produção discográfica dimensionava a área musical, mas a

televisiva, evidenciava a organização de cantores, promotores e executivos na preparação e

realização das atividades (Goff Jr., 2002:209- 228). As estações de rádio, as gravadoras,

os concertos em teatros, as casas de espetáculos e os festivais de jazz contribuíram para a

transposição da gospel music da arena constituída por igrejas para a da indústria musical. O

resultado foi sua transformação em música popular (Maultsby, id: 173, 176). As

apresentações de cantores, de grupos e conjuntos não estavam restritas aos Estados Unidos,

pois a Europa passou a figurar nas agendas de cantores e grupos musicais (Young, 1997).

A combinação com expressões musicais populares – como o rock e o rhythm and

blues – impulsionou os limites da gospel music (Reagon, 2001). Por outro lado, alguns

cantores e quartetos, oriundos do meio musical religioso, utilizaram o estilo gospel – no

tocante ao canto, à interpretação e à pregação – em suas atuações na música popular,

redefinindo o som, o estilo e o ritmo das músicas populares (Oliver, 1986: 218, 219,

Young, 1997:9, Maultsby, 1999:178). Além da fundação de night club para a execução de

gospel music, com curta duração, cantores passaram a se apresentar em casas destinadas ao

entretenimento, enfrentando críticas de membros das comunidades religiosas. Esses artistas

se apresentavam em atividades seculares por dois motivos: as apresentações seriam para

evangelizar; e elas podiam entreter a platéia. Isso evidenciava as formulações e as

aplicações de diversas estratégias destinadas a explorar a modalidade musical para além das

fronteiras do grupo religioso (Maultsby, ibid: 178).

58

O termo Christian music ou Contemporary christian music passou a ser utilizado,

no final da década de 1960, com a emergência de novos estilos e sonoridades musicais no

meio cristão. Cooperou para isso a organização de representantes de novas gerações,

principalmente estudantes, caracterizando período de revivalismo, com a oferta de canções

de conteúdo gospel nas canções populares (Goff Jr. 2002:236 e 240). Segundo a Christian

Music Association41, a denominada Christian music é composta por diversos gêneros como,

por exemplo, o rock, o gospel, o heavy metal e o hip-hop. Seus integrantes afirmam que ela

é sintonizada com cada época, pois utiliza os meios vigentes com a finalidade de divulgar a

mensagem de fé.

Vidas, dedicações e atuações independentes

No Brasil, o trabalho missionário desenvolvido compreendeu a utilização de

cânticos com a finalidade de acompanhar o trabalho religioso e, assim, seguindo a visão

puritana de conquista da terra e salvação dos povos, houve a transposição dos referenciais

litúrgicos e musicais para o país. Segundo Barbosa (2002), o livro “Salmos e Hinos”

integrou a atividade propagandista realizada pelo casal Kalley, fundador da Igreja

Congregacional, em 1855, no Rio de Janeiro. Em 1861, ocorreu a publicação de uma

coletânea “Salmos e Hinos”, porém, na primeira edição, constavam somente letras. Freddi

Jr. (2002) afirma que, em 1868, na terceira edição, houve a apresentação de letras e de

partituras; o livro passou a ter ampla circulação nos demais grupos protestantes e suas

edições demarcaram a coexistência de técnicas, pois acompanharam a produção musical

industrial com edições até 1975 e tiragens até 1982.

A obra foi o resultado do trabalho de produção, adaptação e tradução de hinos

surgidos na dinâmica do protestantismo europeu: as igrejas de tradição calvinista

conduziam o serviço religioso e salmos eram entoados; outras como, por exemplo, as

igrejas congregacionais cantavam hinos, oferecendo outro modelo musical (Freddi Jr.2002).

Segundo Barbosa (2002), o livro do casal Kalley tinha por característica a ênfase no perdão

pela fé, a vida eterna, a regeneração da vida ao seguir uma ética social e o amor de Deus.

Barbosa observa ter, diante da propaganda católica contra a multiplicidade de igrejas de

41 Sobre a associação ver: http://www.cmal.org, acessado em 12/10/2005.

59

cunho protestante e as distinções teológicas e doutrinárias, ocorrido a adoção do livro de

cânticos a fim de constituir uma estratégia para a implantação do protestantismo. Para

Braga (1961), o citado hinário foi utilizado por igrejas protestantes, tendo a Igreja Luterana

do Brasil seguido o “Himnos e Orações”, a partir de 1920; a Igreja Batista, depois de 1891,

teve no “Cantor cristão” o seu hinário.

Hoje, o termo “música gospel” é freqüentemente utilizado no Brasil e muitos citam

as igrejas norte-americanas e a musicalidade considerada proveniente delas. Alguns

entrevistados falam também em “música cristã” ou “música evangélica” em menção aos

cantos ouvidos nas igrejas e em atividades realizadas com o objetivo de execução. É

afirmado ser essa modalidade musical divulgadora do Evangelho, fundamental para a

evangelização e contato entre o fiel e Deus. A sua produção é feita por cantores, por

“adoradores”42, por músicos, por leigos, por líderes religiosos e por empresas; todos

interessados em erguer ações pertinentes às apresentações em igrejas, em programas

televisivos e radiofônicos e tantos shows.

Para complementar a história da música entre os protestantes no Brasil, utilizo as

entrevistas realizadas com a cantora Cláudia e os cantores Feliciano e Francisco JC com a

finalidade de compreender as especificidades das músicas, de suas construções, sem ignorar

os lugares ocupados por eles. O ponto de partida foi constituído por histórias de vida, por

falas que apresentam certas experiências religiosas e musicais.

Feliciano, cerca de 80 anos de idade, viúvo, ex-pastor batista, falou sobre as

músicas encontradas no meio evangélico, do qual faz parte, e também de seu percurso

musical. Diz ter começado como cantor na década de 1940, quando ocorreram as primeiras

gravações solo no país com empreendimentos de grupos evangélicos.

Segundo Feliciano, gravou o primeiro disco, ainda de 78 rpm, em 1948, pelo

Serviço Noticioso Atlas. Nele estão registrados dois hinos do “Cantor Cristão” − como já

42 Músicos, cantores e artistas são termos recorrentes entre os entrevistados, entre os fiéis e os dirigentes evangélicos. São aplicados constantemente por produtoras, gravadoras e editoras de revistas e jornais, principalmente aquelas em atuação no meio evangélico. Isso pode indicar o percurso de estruturação da produção musical, definindo-se várias categorias profissionais, como as citadas anteriormente. As atuações buscam apresentar a música como destinada ao exercício de fé, existindo posição distinta no tocante à atividade. É registrada a designação “adorador” para definir aquele voltado ao ato de cantar e assim demonstrar a “glória de Deus”. Para o presidente da Associação de Músicos Cristãos do Brasil (AMC), a “adoração é um estilo de vida, não uma forma de prática. Não adoramos quando estamos no palco. Somos adoradores que ministram e são ministrados quando nos posicionamos no altar de Deus...” Liasch. “Músicos do palco x ministros do altar”, revista Show Gospel, ano 04, nº 13, p.22.

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citado, livro de cânticos da Igreja Batista. Durante décadas, Feliciano gravou hinos de

coletâneas de outras denominações evangélicas. O cantor conta ter se convertido, na década

de 1940, à Igreja Batista, depois de ter se tornado cantor e músico; antes de ser batista,

conheceu a fala sobre um outro modo de vida ao trabalhar na construção da rodovia Rio-

Bahia quando encontrara um antigo amigo. Esse havia se convertido e, conseqüentemente,

falara sobre o Evangelho para ele. Parece ser esse momento significativo para o

entrevistado.

Como músico, Feliciano afirma ter tocado na banda de sua cidade, no estado de

Minas Gerais. Apresentava-se em lugares específicos como, por exemplo, festividades

populares e religiosas, com o grupo de jazz no qual atuava e cantava. Logo cantou em uma

emissora de rádio da cidade e conta ter, durante o intervalo, ouvido na praça um grupo

cantando e perguntou: "meu Deus, o que estou fazendo aqui? No mundo, tocando, cantando

para agradar o mundo enquanto poderia estar na igreja cantando para Deus".

Em 1942, converteu-se e foi batizado no ano seguinte. A conseqüência teria sido o

abandono de sua prática musical, dos instrumentos tocados e da técnica de cantar. Sobre a

conversão, diz "(...) fui pra igreja e foi uma transformação da vida. Me transformou. Eu

procurei esquecer totalmente. Eu tocava instrumento e tal. Não toquei nunca mais, nunca

mais".

A fala de Feliciano ressalta o estágio de transição entre dois estados estabelecidos e

tem a ver com a passagem de um grupo para outro, para um modo de vida direcionado por

outro princípio no qual adquiriria status de fiel convertido (Gluckman, 1962:3). Nesse

sentido, cantar passou a ser exercício especial, pois entendia ser o “louvor” a “(...)

expressão mais divina da alma. Então, quando estou cantando, estou servindo ao meu Deus,

ao meu Senhor”.

Sobre o percurso de cantar no meio evangélico, Feliciano conta:

A história do disco evangélico no Brasil foi assim. Havia um missionário aqui chamado Willian Hatford Barry. Ele era diretor do Serviço Noticioso Atlas que tinha na Mayrink Veiga, toda tarde, 15 minutos de programa, tocava notícias das igrejas, nacionais e também internacionais. Então, ele pensou em gravar discos brasileiros, discos evangélicos. Ele foi a Belo Horizonte, eu tava no colégio lá. Lá havia alguns cantores: Paulo Valle, Rui Valle, Tarso Valle, Hélio Brasil, Edna Harrington, que é americana, e a figura aqui. Então, juntou aquela gente para cada um gravar um disco e mandaria para os Estados Unidos para junto da Sociedade que sustentava os

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missionários aqui, a causa aqui de um modo geral. Então, eles mandariam ... O Hatford mandaria aqueles discos para eles ouvirem e para saber se haveria condição, se havia elemento para gravar, para montar uma gravadora. Então, voltou. Eu tive a sorte de, no meio de todos eles, eu fui o escolhido. Então, foi feito o primeiro disco. Interessante que a máquina que gravava era uma caixinha pequenina. Tinha o pick up de ouvir e para cortar. Era um prato que tinha dois pinos; tinha o pino que contrabalançava e o outro que puxava. A máquina puxava o pino para rodar (...) então, foi feito o primeiro disco, o 35001, era o meu disco. Dois hinos do Cantor Cristão. Comecei com o Cantor Cristão e fui do Cantor Cristão por muitos anos, cantando o Cantor Cristão. Eram só duas músicas: uma de um lado e outra do outro, ele rodava 78 rotações. Márcia: E a capa do disco? Feliciano: Era um envelope, sem nada. Só tinha a propaganda da companhia que prensava o disco. Era a Continental. Só o selo que tinha o Atlas. Serviço Noticioso Atlas, o número do disco, a série, as músicas, o cantor e o acompanhamento solo.

Feliciano demarca sua trajetória a partir da conversão e, em sua elaboração, o antes

e o depois são recorrentes. Assim, transparece o drama da ruptura, do abandono do modo

de cantar e de vida com o acolhimento e o entendimento de determinados códigos

norteadores da conduta religiosa. Contudo, no meio religioso ao qual aderiu não via

condições para articulações individuais. Caso existissem, predominava a orientação

institucional43. Quando Feliciano descreve o percurso para a gravação do disco, cita o ato

de gravação, a existência do selo Atlas e a empresa Continental, responsável pela

prensagem, e, portanto, descreve o momento de detenção de técnicas e de equipamentos por

empresas responsáveis pela indústria fonográfica mundial. O cenário registrava novas

tecnologias de gravação utilizadas por entidades ocupadas com a atividade (Dias, 2000:36,

126), com a escolha de repertório, com a seleção dos cantores e com a divulgação.

O depoimento de Feliciano evidencia o início da atuação de produtoras e

gravadoras; apesar de haver no país estúdios de gravação, o Serviço Noticioso Atlas teria

sido o inovador na tarefa de prensagem, publicação e distribuição (Braga, 1961:384). Além

do Serviço Noticioso Atlas, foram citados o Colégio Batista como o preparador das vozes

arregimentadas, a Sociedade Batista e, por fim, a empresa Continental – que já gravava

discos para igrejas evangélicas brasileiras desde o início da década de 1940. Evidencia-se a 43 Conforme Braga (1961:380, 381 e 387), até 1932, diversas gravações musicais eram financiadas por fiéis e resultavam de iniciativas particulares. A década seguinte registrará um adensamento de ações de igrejas e empresas para a produção de discos. Mas isso não excluiu a efetivação de investimentos de leigos e uso de estúdio independente e, portanto, a apresentação de canções decorrentes de atividades paralelas às empresariais e de igrejas.

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complexa articulação para a seleção de cantores, escolha de repertórios e produções

fonográfica e musical. As gravações eram de hinos do livro batista de cânticos, porém

canções natalinas também foram privilegiadas e cantadas por corais e cantores (Braga,

ibid).

Em outro momento, o depoente observa ter o quadro persistido por alguns anos;

porém teve a adição de compositores brasileiros, contribuindo para complexificar o meio

musical evangélico. Como pastor, Feliciano continuou cantando os hinos e as composições

de vários autores, sempre acompanhado por um piano e, por fim, também integrou outras

gravadoras.

O depoente está aposentado, porém prossegue cantando em igrejas e não mantém

mais vínculos com nenhuma empresa; continua produzindo os discos independentemente.

Para tanto, aluga estúdio, contrata músicos, cuida da masterização e da prensagem, faz o

mesmo em relação às capas. Prontos, os CDs são vendidos nos locais de apresentação;

tudo ocorre com o auxílio de seu filho. Esse modo de veiculação de material fonográfico

foi apontado por outros entrevistados cientes da relação entre gravadoras, artistas e

públicos, porque o investimento exige retorno com a finalidade de assegurar a estruturação

da produção musical.

Cláudia, 24 anos de idade, solteira, graduação incompleta em Serviço Social,

moradora da Zona Oeste, oriunda de família evangélica (Assembléia de Deus), canta há

cinco anos. Seu início foi nos núcleos de atividades existentes na igreja; depois gravou seu

primeiro CD independente. Para tanto, recorreu aos amigos e parentes; participa de

atividades musicais, nas quais apresenta suas canções e tenta, como Feliciano, vender

exemplares do CD em tais momentos44. Sobre o início de seu percurso musical, Cláudia

afirma:

Bom, a minha igreja, por exemplo: tradicionalmente tem grupo infantil, de louvor, grupos jovens, de adolescentes, de senhoras. E também desde pequeno a gente trabalha nisso. A música já é trabalhada na igreja. Aí eu comecei assim, cantando no núcleo infantil primeiro; depois fui passando pros outros grupos. Só que assim, cantar no solo, no caso, eu comecei aos dezessete anos. E aí eu comecei cantando dentro da minha igreja, na

44 Esse modo de veiculação de material fonográfico foi apontado também por Bené, diretor artístico da gravadora Astral Music. Ele fala de acordo entre gravadoras e artistas com vistas a atingir o público e, ao mesmo tempo, assegurar a relação entre investimento e retorno como condições fundamentais à estruturação da produção musical.

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minha congregação; e fui começando a receber convites pra cantar em festivais. Recebi convites pra casamento, pra quinze anos, pra outros tipos de festas. Ai dali eu fui conhecendo pessoas do meio, foi quando eu comecei a desenvolver um trabalho de bem social mesmo. Gravei uma fita chamada fita demo. Aí depois é que veio a questão do CD. Mas esse início se deu aí com dezessete anos. Márcia: E você já conseguiu gravar um CD? Cláudia: Gravei um CD, fez um ano ontem do lançamento (...).

Sobre a gravação de seu CD, diz:

Bem, como eu te falei, eu comecei cantando nos festivais, cantando com a minha igreja depois fora, nos festivais e aí quando eu recebi um convite pra cantar em outras igrejas as pessoas me perguntavam se eu tinha pra CD pra vender e eu não tinha um trabalho meu. Eu cantava músicas de outros cantores. Aí surgiu essa coisa das pessoas pedirem CD e aí eu comecei a escolher o repertório e comecei a ver as músicas. Nos festivais geralmente você só canta músicas inéditas. E aí eu já tinha já algumas músicas que eu cantava nos festivais e outras eu fui conseguindo no decorrer da execução do projeto mesmo. Aí eu, eu tenho conhecidos; a minha cunhada ela é sobrinha do Jackson do Pandeiro e eles têm uma banda de forró - ela e o irmão dela. E eles conhecem muita gente nesse meio que não é evangélico. E aí, conversando com eles surgiu uma possibilidade de estar montando um trabalho que seria só pra apresentação. Eu gravaria quatro músicas, e essas músicas eu estaria apresentando em gravadoras. Aí eu fiz inicialmente essas quatro músicas, só que ainda não podia fazer um CD independente. Então eu voltei, apresentei esse trabalho pra uma gravadora e a gravadora me pediu mais músicas. Aí eu voltei pra fazer mais duas ou mais quatro músicas pra montar um CD. Só que quando eu estive nesse estúdio pra montar o CD, o rapaz, o dono do estúdio, me fez uma oferta de estar gravando dez músicas e ele estaria facilitando o pagamento pra mim e tal. E aí eu comecei a conhecer, que eram pessoas conhecidas dessa minha cunhada, do irmão dela e tal. E aí eu sei que o CD saiu, com dez músicas. Eu terminei não fazendo com a gravadora e fazendo um trabalho independente.

Francisco JC, negro, casado, 30 anos de idade, cantor de black music gospel e

promotor de “festa”, ao falar sobre seu pertencimento religioso, de seu gosto e de suas

experiências musicais, observa as transformações sonoras e a concorrência de diversas

bandas para a constituição de um determinado fazer musical. O depoente registra:

Desde criança, sempre teve uma influência musical muito grande na igreja, tanto com outros ritmos, até que na época não rolava muito essa praia. Até pra gente curtir alguma coisa de soul ou alguma coisa do gênero não era algo permitido, não era algo que se aprovasse pelas direções das igrejas. Eu era de uma igreja que o lance de se curtir mais era lance de coral, grupos de louvor e isso é que fazia predominância na

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minha vida. Depois de um tempo a gente começou a ficar adolescente, começou a ouvir outros tipos de música e até uma turma que chegava no meio gospel tocando outro tipo de música tipo o Semeador na época. Tinha umas outras bandas na época também que também tocavam algumas coisas e começaram a estimular a gente a ter uma, a acreditar que aquilo era possível, era simplesmente um tabu, que era necessário ser quebrado. E a gente começou a fazer um trabalho mesmo estando numa igreja que talvez não desse o apoio que a gente esperava que se desse, a gente começou a fazer um trabalho musical. Então, tudo teve um início porque uma coisa veio empurrando a outra. Há seis anos a gente tá no ministério Renascer. O ministério Renascer é um ministério que abre muito pra gente poder trabalhar, a gente poder tá fazendo na obra, não discriminando uma coisa tipo o ser DJ. Muitas vezes o ser DJ é algo que pode ser discriminado e a gente percebe que isso não faz parte do reino de Deus, essa coisa de discriminar o cara. O cara vai aceitar Jesus e não vai deixar de fazer o trabalho que ele fazia. O trabalho que ele fazia era algo que já era divino, dado por Deus a ele usado da maneira errada. Então, o cara conhece a Deus, conhece a Palavra, o cara de repente abandona o trabalho dele. Não e não. Ele tem que pegar aquele trabalho, reverter todo pra obra de Deus pra que aquilo seja uma maneira, uma estratégia pra ele tá libertando vidas, salvando vidas, fazendo com que as pessoas vejam e acreditem naquilo que ele acredita, naquilo que ele está vendo. E a gente vem envolvendo com isso tudo, uma coisa puxa a outra; rádio, o mesmo meio, a galera do hip-hop, a galera de soul. E a gente já vem nesses últimos, digamos assim, oito anos, muito envolvido, pelos menos com a galera do Rio e com a galera de São Paulo, a gente tem um envolvimento muito grande com as bandas do Rio com as bandas de São Paulo e a melhor coisa da minha vida, a gente faz com prazer, Tem equipes, então... JC é isso. JC não era um nome, JC era uma banda no meu início, só que eu comecei a fazer solo a partir dessa banda e parte do nome seguiu pra mim porque o pessoal me reconhecia como aquilo. Então, a gente resolveu deixar que foi uma benção de Deus pra nossa vida também, mas não me importo se me chamar de J só ou chamar só de C, ou chamar pelo meu próprio nome que é Francisco. Tá tranqüilo. Importa é o que a gente faz e a gente continua fazendo sem pretensão nenhuma que isso se espalhe, que isso venda alguma coisa ou que isso tenha alguma finalidade financeira. Não é essa a intenção de maneira nenhuma...

Cláudia, ao enfatizar o início de sua trajetória musical, aponta o grupo religioso

como a arena privilegiada de estímulo e aprendizagem. As falas de Feliciano e de Francisco

também destacam a “influência musical” vivenciada na igreja como o “coral”. A atividade

religiosa conectada com o ato de cantar, como uma prece ou ato de cultuar45, surge nos

depoimentos, constitui as trajetórias no grupo de fé e, assim, indica ser o meio evangélico,

apesar das diferentes igrejas em atuação, propício à inclusão. Daí o incentivo ao

45 Talvez aí esteja o termo “adorador” a fim de indicar alguém não voltado somente à execução de canções, mas devotado à prática do culto.

65

desenvolvimento da “prática musical” com ofertas de atividades musicais promotoras de

participação (Travassos, 1999:133).

Cláudia e Francisco JC apresentam elementos de proximidade e de distanciamento

de suas trajetórias e possibilitam observar como as musicalidades encontradas são distintas.

A entrevistada esclarece sobre o incentivo dado pelo grupo religioso, porém as condições

foram colocadas a partir de relações sociais distantes dele. O resultado foi certo trabalho de

produção, após a tentativa de seguir as orientações de representantes de certa gravadora.

Como integrante do meio religioso e também do artístico, Cláudia passou a atuar com o

objetivo de participar do cast de alguma empresa. Contudo, isso não ocorreu e terminou em

optar por produção e divulgação independentes, porém antenadas com as regras existentes

no meio religioso (Becker, 1977).

O estado de transição experimentado por Cláudia teve a ver com a sua mudança do

estado de fiel para o de cantora – seria a assunção de outro status no grupo religioso. O

mesmo pode ser dito em relação ao trabalho de Francisco JC e de Feliciano. Este, depois de

integrar o catálogo de algumas gravadoras, também acabou por incorporar o modo

independente, demarcado por atuações individualizadas interessadas na produção, na

gravação e na difusão (Dias, 2000:132,150). Enquanto Cláudia e Francisco JC visualizam a

possibilidade de contratação por alguma empresa, continuam seguindo com os seus

projetos; na exposição de Francisco, a ruptura não é parte integrante, pois, distintamente de

Feliciano, observa: “O cara vai aceitar Jesus e não vai deixar de fazer o trabalho que ele

fazia”. Indica ser a conversão não circunscrita por transição pautada pela crise, pela ruptura,

mas pela continuidade do realizado anteriormente.

Feliciano diz não estar interessado em compor o quadro de alguma empresa e

entende ser a opção seguida a mais adequada ao agir religioso. Seu percurso foi oposto, ou

seja, era cantor e se converteu, tendo obtido, da Igreja Batista, condições para retornar ao

exercício musical. Passou a cantar conforme o direcionamento dado e, posteriormente,

desligou-se e passou a constituir seus próprios trabalhos.

Na formulação de Feliciano, é possível visualizar certa alteração musical no

contexto evangélico quando destaca o interesse por produção nacional, isto é, em registrar

66

as canções executadas por cantores e por grupos brasileiros46, sendo isso realizado por

entidades religiosas e empresas seculares. Francisco também aponta para outro momento,

exatamente para os precursores de um movimento de transformação religiosa a partir da

música iniciada com os “corinhos” e com os grupos introdutores do rock. Essa iniciativa

estimularia crescente diversidade e, ao mesmo tempo, evidenciaria as restrições religiosas e

a tensão ao ultrapassar as convenções existentes. Ao escapar das determinações

institucionais, porém, sem se aventurar em grupos e empreendimentos não evangélicos,

propõe algo especifico: a black music gospel.

Francisco apresenta história próxima à de Cláudia, mas estabelece distinção por

caminhar em direção às expressões musicais não contempladas por dirigentes de sua igreja;

demonstra isso, ao afirmar “até pra gente curtir alguma coisa de soul ou alguma coisa do

gênero não era algo permitido... não era algo que se aprovasse pelas direções das igrejas”.

O depoimento desvela a posição de autoridade e o controle “moral e estético” exercidos por

líderes religiosos sobre o grupo de fiéis e as “atividades musicais” realizadas (Travassos,

1999:141).

Os registros musicais e sonoros propostos não são concebidos como algo estranho

às convenções vigentes. O cantor Feliciano continua a atuar para outros integrantes do

grupo religioso e demonstra sua integração e a de seu trabalho; igualmente Cláudia, apesar

de não compor algum quadro empresarial, difunde seu trabalho para determinado público

não avesso aos direcionamentos institucionais. Em suma, uma das características do gospel

contemporâneo é que as iniciativas – inovadoras ou não – despontam um momento

demarcado pela produção, oferta e recepção de bens em negociação com os objetivos e os

interesses institucionais, porém não são mais concebidos e controlados por líderes

religiosos. Assim, existem variações de estilos musicais, de criações próprias e de

produção independente de bens.

46 Braga (1961:379-385) observa ser gravações de corais realizadas por particulares desde 1912. A década de 1930 registraria o início de gravações de canções sacras para companhias como a RCA Victor e a Odeon, estendendo-se até o final da década seguinte quando o Serviço Noticioso Atlas passou a fazer gravações de solistas, de duetos e outras formações musicais, inclusive o coro.

67

Disseminação da fé - gravações e técnicas

A fala de Feliciano sobre o empenho do missionário Barry em gravar hinos do

“Cantor Cristão” também revela determinada fase da produção musical no país. Essa era

composta por cantores, duetos e corais responsáveis pela execução de hinos e peças de

compositores eruditos (Braga, 1961). As gravações podiam ser realizadas sob a direção de

igrejas e ouvidas durante o serviço religioso e em outros momentos. Também o cantor

destaca o Serviço Noticioso Atlas e a Sociedade Batista como os responsáveis pela

formação de grupos de cantores, pela escolha de repertórios e detentora de relações e de

tecnologia viáveis para o projeto musical.

Atualmente, para ter seus CDs, Feliciano aluga estúdio, cuida do repertório, da

gravação, da prensagem e concentra a venda. Cláudia coloca o percurso de cantora

independente, as articulações necessárias com profissionais em atuação ou não no meio

evangélico. Os entrevistados apontam certa história da produção musical e revelam que o

seu começo registraria a presença de gravadoras internacionais, a existência de estúdios

independentes e de projetos financiados por fiéis (Braga, 1961).

Desde o início do século XX havia experimentos de gravações. Alguns projetos

foram consolidados pelo selo Favorite (de origem alemã), responsável por diversas

prensagens, porém passou por fusão durante a I Guerra Mundial. Até a década de 1950, as

empresas Odeon, Continental, RCA Victor e Columbia 47 respondiam pela produção de

discos; havia as iniciativas de fiéis, de industriais, de grupos religiosos ou de

denominações. Além do Serviço Noticioso Atlas, no Rio de Janeiro, passaram a atuar o

Centro Áudio-Visual Evangélico (Cave), integrante da Confederação Evangélica do

Brasil, em São Paulo, cuja meta era produzir materiais direcionados ao trabalho de

evangelização. Depois o Instituto Bennet, no Rio de Janeiro, fundou o selo Fidelis; por sua

vez, a Gravações Regis Ltda prensava na Continental (Braga, 1961:379- 387). No entanto,

47 Essas empresas fonográficas eram estrangeiras e, segundo Dias (2000: 34-37), com as transformações tecnológicas, expressas pela passagem da produção mecânica para a elétrica, acirrou-se a luta entre as empresas, resultando em fusões. Entre 1928 a 1945, diversas empresas passaram pelo processo, que resultou nos registros da Eletric Music Industries (EMI), da RCA-Victor, da CBS, da Polydor e da Phonogram. Duas delas, a RCA e a Philips (Phonogran) detinham a produção de hardware e também de software. As décadas seguintes presenciaram outras fusões entre as empresas de comunicação.

68

esse movimento de formação de empresas era tímido, sendo dominado por gravadoras

estrangeiras.

Apesar da organização empresarial, mesmo vinculada a grupos religiosos, uma

modalidade informal foi utilizada (e continua sendo) durante o serviço religioso. Ela foi

citada por vários entrevistados e reconhecida como importante para a exposição de

composições, com o uso do retroprojetor. Esse meio informal de divulgação é denominado

pelo termo "corinho". Para Faustini, um pesquisador evangélico, trata-se de pequenos

textos acompanhados por melodias simples, não diferentes das canções populares,

memorizados facilmente e, muitas vezes, presentes nas igrejas pentecostais (apud Freddi Jr.

2002). Dornelles (2004) 48, também um investigador ligado ao evangelismo, observa ter o

“corinho” permitido a valorização de "ritmos e estilos populares no culto de adoração". Isso

foi possível por ser o culto menos rígido, menos formal, de oração livre e com o registro de

gestos. A música, aliada a tudo isso, adquiriu lugar de destaque na condução do serviço

religioso.

Freddi Jr. (2002) entende terem os "corinhos" formado repertório de letras e

músicas adaptadas, influenciando o surgimento de conjuntos musicais interessados em

renovar as práticas musicais. Isso contribuiu para a aceitação dos "corinhos", figurando

como um "produto, já estruturado por instituições paraeclesiásticas" e formado por

repertório também importado e adaptado para execução nas igrejas brasileiras.

Além dos “corinhos”, havia os grupos paraeclesiais como, por exemplo, o Serviço

de Evangelização para a América Latina – Sepal -, na década de 1960, que respondeu pela

criação do grupo musical Vencedores por Cristo – VPC. Este teve participação na inserção

de instrumentos como o violão e o órgão elétrico. Enquanto o “corinho” tinha aplicação

interna durante o culto, os conjuntos contribuíram para dinamizar o trabalho evangelizador.

Para Dornelles (2004), vigorava entre os líderes religiosos, os músicos e os teólogos

a preocupação com a vigência de um modelo religioso alienígena e rígido imposto a vários

povos em oposição a um outro mais sintonizado com as peculiaridades culturais. Desse

modo, procurou-se justificar a dança e a incorporação de diversas expressões musicais. Isso

ocorreu na esteira da crítica à cultura e ao modo de vida capitalista, nos idos dos anos de

48 Sobre a reflexão produzida na rede evangélica, ver: Dornelles, Vanderlei - Liturgia pentecostal rompe barreiras entre o religioso e o popular. www.musicaeadoração.com.br/artigos/meio/liturgia-pentecostal.htm, acessado em 29/10/04.

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1960, e teve proximidade com a proposta de alteração litúrgica no protestantismo. Ocorreu

a tentativa de implementar uma igreja protestante afinada com a cultura local e que tivesse

posicionamento político49. As reflexões sobre a música, sobre os “corinhos” – uma técnica

difundida - contribuem para entender o meio evangélico e seus momentos musicais.

Em fins da década de 1960, a comercialização de artigos religiosos (discos, bíblias e

outros impressos) era significativa entre seguidores das denominações evangélicas, com a

música ocupando lugar de destaque naquela manifestação. Na década seguinte, já havia a

presença destacada de cantores evangélicos, e a música teria sido adicionada "à parte

dramática do exorcismo e a série de profecia". Sua visualização se dava nas apresentações

públicas e em programas radiofônicos (Monteiro, 1982).

49 Para Nascimento Cunha (2004:73-76), o protestantismo no século XX foi marcado pelo ecumenismo voltado a refletir a divisão entre as igrejas. Isso permitiu a "articulação dos grupos" no Brasil e viu nascer, por volta de 1934, a Confederação Evangélica do Brasil -CEB, sem a participação da Igreja Batista. Em 1948, o Conselho Mundial de Igrejas fortaleceu a "responsabilidade sociopolítica” dos protestantes, resultando na preocupação com uma teologia afinada com as questões contemporâneas. A Confederação Evangélica do Brasil - CEB -, segundo Anivaldo Padilha, membro de Koinonia, está voltada à promoção de cooperação entre as igrejas, atuando na área de ação social, trabalhos com a juventude, educação cristã e atividades diaconais. Na década de 1950, surgiu o setor de Responsabilidade Social da Igreja e entre 1956/61 foram realizadas três conferências, tendo por tema: Cristo e o processo revolucionário brasileiro. O Conselho Mundial de Igrejas - CMI -, criado em 1948, em Amsterdã, visa proporcionar a proximidade entre as igrejas cristãs. A cada sete anos o Conselho é reunido e atualmente conta com 342 igrejas filiadas, mas a Igreja Católica não é membro do CMI, cooperando com a entidade. A proposta da CEB só encontrou penetração na sociedade brasileira, a partir de 1950, com o enfraquecimento da "ação fundamentalista antiintelectualista". Durante as seis primeiras décadas do século XX, o ecumenismo e a nova diretriz teológica permitiram a vigência de uma visão crítica capaz de contextualizar as Escrituras à diversidade cultural. A autora aponta que a visão da "responsabilidade sociopolítica, o ecumenismo e a nova teologia foram sintetizados pelas juventudes nas igrejas, produzindo líderes - leigos e clérigos - que estiveram presentes na formação e condução de trabalho social em áreas mais pobres”. Isso permitiu a alteração do protestantismo, encontrando, posteriormente, entraves como reação conservadora em idos de 1950/60 e fortalecimento com o golpe militar de 1964. A desmobilização de uma proposta cultural e social revelou crises e exílios de partidários da valorização da diversidade cultural. Ao lado disso, outras iniciativas foram igualmente rechaçadas como, por exemplo, o pentecostalismo, por trazer novos elementos e estabelecer conflitos com a concepção de igreja vigente no protestantismo. Mesmo diante de tal quadro, a autora indica – que aqueles favoráveis ao ecumenismo, apesar da oposição conservadora, estabeleceram vias alternativas, mesmo existindo na clandestinidade.

Nascimento Cunha indica ter a alteração do quadro de repressão na sociedade brasileira peso no meio evangélico, pois, no início da década de 1980, as lideranças com visão ecumênica, defensoras da leitura política e social do Evangelho, antes impedidas de atuação pelos conservadores, obtiveram lugar de visibilidade com a criação do Conselho Nacional das Igrejas Cristãs – Conic -, com algumas igrejas protestantes e a católica. Além disso, os líderes e leigos envolvidos tiveram presença em sindicatos, partidos políticos e movimentos sociais. O novo momento não foi suficiente para permitir uma inserção maior entre a população, mas o neopentecostalismo parece ter alcançado maior êxito em alterar a face do protestantismo. Isso se deu por ter inserido no cenário religioso “uma nova cultura” no país com ampla penetração na população brasileira, sendo caracterizada pela afirmação de cura e prosperidade. Maiores informações sobre o CMI, ver: http://ospiti.peacelink.it, acessado em 06/11/04; sobre a CEB: www.cese.org.br/campanhas/juventude.doc, acessado em 06/11/04.

70

A década de 1990 também foi marcada pela organização de novas empresas de

produção e gravação mantidas por igrejas ou por fiéis. Sua vigência ocorreria sob o rótulo

“gospel”, com investimentos diversos. Conta-se a fundação da Line Records (LR), a Gospel

Records (GR) e a MK Publicita (MkP), respectivamente. Surgiram programas televisivos

como o “Conexão Gospel” e o “Clip Gospel”, com ligações com a MK Publicitá e a

produtora Gospel Records, integrante da Igreja Renascer. Os programas contavam com

apresentadores com vínculos oficiais; eram destinados exclusivamente à divulgação

musical, com apresentação de cantores e exibição de filmes.

Atualmente, são muitas as gravadoras e artistas em concorrência por

reconhecimento. Como exemplo, podem ser citados: a premiação Troféu Talento,

constituído pela Rede Aleluia50, o uso da Internet para veiculação de programas musicais

realizados por empresas ou não. Assim, são a rádio 93 FM, da MK Publicitá, e a rádio GN,

da equipe Gospel Night.

No Brasil, a consolidação e a difusão do “gospel” estão relacionadas aos grupos e

bandas musicais organizados nas igrejas surgidas entre as décadas de 1970/80 como, por

exemplo, a Igreja Renascer. A marca “gospel” ganhou visibilidade, em fins da década de

1980, quando programas e shows foram realizados mesmo fora do âmbito religioso. Além

da criação de gravadoras, a marca “gospel” é aplicada a investimentos nas áreas de

vestuário, de educação e de saúde, como faz a Igreja Renascer (Siepierski, 2001:78, 85-89).

Um estudo realizado aponta ser o "movimento gospel" um "estilo" baseado no poder

divino, na guerra entre o bem e o mal, nas vitórias alcançadas por fiéis. Isso ocorre com o

consumo de produtos e os “serviços de apelo religioso”. As músicas - muitas vezes versões

de canções não religiosas -, os lugares e os eventos organizados formam o "circuito gospel"

e pode ultrapassar as igrejas, ocupar bares, restaurantes e outros locais. São explicitados

comportamentos indicadores de modo peculiar de inserção no religioso. Trata-se de exceder

50 O Troféu Talento é uma iniciativa da Rede Aleluia cuja finalidade é “divulgar a música gospel nacional”. Seu início foi por volta de 1997, tendo por finalidade impulsionar a “música gospel” ao conceder prêmios aos trabalhos destacados durante o ano. Para tanto, a eleição compreende o voto popular concedido aos concorrentes escolhidos por comissão organizadora. São cerca de vinte categorias premiadas como, por exemplo: cantor e cantora do ano, CD Pentecostal, CD Pop ou rock, Intérprete feminino, intérprete masculino, CD do ano e Clip do ano. A Rede Aleluia surgiu em 1995 e atualmente reúne cerca de 56 emissoras e atinge 22 estados do país, veiculando programações com conteúdo cristão. Maiores informações: Gadelha. “Gospel Line agora no Rio”, revista Show Gospel, ano 03, nº 11, p.27, 03/2003; www.linerecords.com.br, acessado em 11/07/02; www.redealeluia.com.br.

71

o fazer musical por tocar no gosto e na estética, com mudanças de comportamento e

apresentação corporal. Trata-se de relativa liberalização e tensiona o estabelecido e

difundido (Almeida e Rumstain, 2003).

Outra abordagem destacaria não ser o “gospel” somente movimento musical, mas

expressão cultural característica do atual meio evangélico brasileiro. Ao ser visto como um

modo de vida e de experimentar o religioso, o “gospel” registra a presença de "elementos

profanos". Esses são sacralizados e mediados por meios de comunicação. Nesses termos, a

circulação de artigos e novos modos de vivência são vistos como um "invólucro moderno"

para as atividades que conservam as características próprias do grupo religioso apesar da

alteração externa. O quadro é definido como a “... modernização apenas externalizada,

promovida por canais que lhe geram atenção; um processo que não possui transformações

de pensamento (interno) – este estaria preservado”. O conjunto das iniciativas constituiria

um processo de mudança que asseguraria a continuidades dos fundamentos (Nascimento

Cunha, 2004: 110).

Sobre as transformações registradas, afirma-se ter o protestantismo experimentado

uma “flexibilização dos costumes”. Sua característica seria o questionamento de interdições

impostas e a admissão de certos comportamentos. Passa a ser dada atenção “às

necessidades do corpo e da mente” diante do avanço do pentecostalismo. Como as igrejas

protestantes estariam perdendo fiéis, passaram a buscar o alinhamento entre a liturgia e a

vida atual. Tudo isso seria processado em decorrência de duas vertentes teológicas: a

ecumênica e a evangelical. A primeira, antenada com a mística, com a emoção e com o

carisma - elementos da pentecostalização. A evangelical colocaria a relação entre

evangelização e culturas locais, com seus representantes mais atentos aos dogmas.

O cenário descortinado era composto pela temática da contextualização e abordadas

questões como a relação entre teologia e liturgia e as culturas indígenas e negras; a mulher

e sua inserção na sociedade, na família e também na igreja; maior afirmação da religião

tradicional e secularização e, por fim, certo relaxamento comportamental. A proximidade

entre a esquerda evangélica e a ecumênica descortinou o conservadorismo voltado a obter

resultados com a admissão de instrumentos musicais, de shows e de tecnologia, por

exemplo, com a finalidade de incorporar uma forma mais antenada com os diferentes

72

públicos visualizados sem, necessariamente, incorporar o conteúdo cultural (Burity,

1997:148-161).

Criações e músicas – diversidade de empreendimentos

Os depoimentos de Cláudia e de Francisco JC ressaltam modalidades musicais e

sonoras encontradas no meio evangélico. Seja “música de louvor”, seja “música gospel”,

seja “música cristã”, seja black music gospel, seja o objetivo em atender distintos grupos de

fiéis, apontam para a complexidade do meio evangélico, para as peculiaridades sonoras e

musicais e permitem perceber a contribuição das investidas individuais. Da técnica de

gravação, enfatizada por Feliciano, ao uso de computadores, sintetizadores e outros

equipamentos51, os entrevistados indicam para a crescente introdução de novas tecnologias,

de organização de gravadoras, ligadas ou não às denominações, de formação de estúdios

domésticos e direcionados às produções musicais.

As empresas especializadas são numerosas e contrastam com o meio secular, no

qual são registradas fusões entre empresas; há também aquelas, de portes pequeno e médio,

além da produção independente, viabilizada pela tecnologia digital. As formulações

independentes expõem arranjos, combinações, estabelecem repertórios e catálogos

adquiridos por grandes produtores e definem as relações entre os distintos produtores de

discos (Dias, 2000).

Como estratégia eficiente de divulgação é dada ênfase aos meios de comunicação,

com a finalidade de atingir uma fatia maior de seu público. Para tanto, são feitos

investimentos em mídia, em tecnologia e, principalmente, na presença marcante no

universo virtual, através da produção de portais, sítios e salas de bate-papo, que

possibilitam a recepção religiosa. Nessa configuração, a música tem ampla presença e surge

na base de ações evangelizadoras de cunho institucional ou não. Os empreendimentos,

caracterizados pela produção musical, ganham amplitude, por meio da presença e atuação

de gravadoras fornecedoras de bens e atividades voltadas ao fortalecimento da participação

e da conversão.

51 Não se deve esquecer a exploração de estações de rádio e emissoras de televisão a fim de veicular os diversos programas e, por fim, a Internet. Com ela é possível a realização de programações e veiculação de informações e textos relacionados às musicalidades religiosas.

73

As ofertas musicais, os eventos, a abertura de empresas, os investimentos

institucionais e os independentes – com leigos envolvidos na exploração de capital social e

também cultural - formam canais favoráveis ao estudo do fazer musical e discográfico

por/para evangélicos. O investimento em mídias específicas – compact disc (CD) e digital

versatile disc (DVD) é significativo. Os produtores divulgam seus objetivos e definem os

bens, os acontecimentos e as ações empreendidas. Novas possibilidades surgem a partir de

ações de especialistas, de líderes religiosos e de leigos possuidores de objetivos e de

interesses; os organizadores visam, a partir de determinadas convenções (Becker, 1971),

fornecer bens definidos como religiosos. As atividades de preparação e oferta são exercidas

por diferentes organizadores e podem ter estatuto jurídico ou físico. Eles são detentores de

forças assimétricas no tocante aos enunciados, ao proposto e ao efetivado. Isso pode ser

visualizado quando são observados os empreendimentos oficiais e os independentes.

Serão apresentadas as gravadoras Line Records, a Mk Publicitá e a Vineyard Music.

As primeiras são nacionais e integram a Associação Brasileira dos Produtores de Discos –

ABPD -; a Vineyard Music tem ligação com uma igreja norte-americana e seus integrantes

têm participado em vários encontros. Além disso, serão exploradas as visões de três

depoentes: um produtor musical, um diretor artístico e a empresária de um programa

musical.

A Line Records (LR) é ligada à Igreja Universal do Reino de Deus – IURD52 -,

fundada em fins da década de 1990, no Rio de Janeiro; posteriormente foi transferida para

São Paulo, retornando ao Rio de Janeiro por volta de 200353. Em seu material de

divulgação é apontado ter rapidamente alcançado o “topo do mercado”; segundo o material,

teria sido ela que “escancarou as portas do mercado fonográfico para a maioria dos cantores

que hoje cantam e encantam o público evangélico” 54. A publicidade da empresa registra

que “através das letras, a mensagem do Evangelho é propagada em forma de música”55.

52 A Igreja Universal do Reino de Deus - IURD, uma denominação neopentecostal, foi fundada por volta de 1970, no Rio de Janeiro; a ênfase da IURD está nos rituais de cura, nos testemunhos públicos e na oposição à igreja católica e aos cultos de possessão. O patrimônio da IURD compreende emissoras de rádio, de televisão, de gráficas e de empresas. Maiores informações ver: www.linerecords.com.br, acessado em 22/04/02; www.igrejauniversal.org.br, acessado em 27/10/05. 53 Gadelha. “Gospel Line agora no Rio”, revista Show Gospel, ano 03, nº 11, p.27, 03/2003. 54 Informações disponíveis em www.linerecords.com.br, acessado em 22/04/02. 55 Disponível em http://www.igrejauniversal.org.br, acessado em 27/10/05.

74

Integrada por diversos cantores e bandas, a LR está ligada ao programa televisivo

Gospel Line (veiculado pela Rede Record) e ao Troféu Talento – iniciativa parceira da

Rede Aleluia. A estruturação da atividade musical conta com a integração entre meios de

comunicação, a igreja e os parceiros apresentados como independentes.

A gravadora e distribuidora Mk Publicitá (MkP), localizada no Rio de Janeiro, foi

fundada também na década de 1990 por uma família evangélica. Conta com numerosos

grupos e cantores e promove reuniões na cidade com a finalidade de divulgar as canções e

os artistas de seu cast. Além disso, há outras iniciativas, como o programa televisivo

Conexão Gospel, a revista Enfoque Gospel e a rádio 93FM. De acordo com o material de

divulgação, sua entrada no “mercado gospel”, para “divulgar a música evangélica para o

mercado secular, ou seja, popular”, tem consistido em investir em variadas expressões

musicais, principalmente as contemporâneas. Isso constitui a “missão de ordem espiritual”

a ser realizada num país de maioria católica56.

A Vineyard Music (VM) atua no país, desde 2001, porém, como já foi citado, surgiu

nos Estados Unidos. Seu objetivo é utilizar “recursos e músicas que despertem os corações

para um encontro com Deus de genuína adoração”57. Sua participação é registrada em

atividades promovidas por outros grupos, tendo a participação de seus dirigentes, como o

ENLP e outras atividades musicais58. Para seus dirigentes, isso contribui para a

evangelização e para a “adoração” feita “com integridade, contemporaneidade e

intimidade”59.

Além dos materiais publicitários, relaciono os depoimentos coletados entre aqueles

em atividade independente. Isto é, alguns mantêm conexão exclusiva com empresa e/ou

igreja e agem de acordo com as visões e os objetivos de cada um; outros agem sem

vinculação com entidades. As informações são dadas por Pedro, produtor musical, por

Bené, diretor artístico, e por Antônia, empresária.

Pedro, cerca de 40 anos de idade, casado, graduação incompleta em engenharia,

convertido à Igreja Presbiteriana, é sócio de um estúdio de gravação, localizado na Barra da

56 Informações disponíveis em www.mkpublicita.com.br, acessada em 11/07/02. 57 Disponível em www.vineyardmusic.com.br, acessado em 24/11/05. 58 Informações disponíveis em www.vineyardmusic.com.br, acessado em 24/11/05. 59 Costa. “Música para unir o corpo”, revista Show Gospel, ano 03 nº 11, p. 12.

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Tijuca60. O entrevistado, ao explanar sobre as canções contidas no hinário e sobre aquelas

atualmente produzidas, afirma:

É a linguagem das músicas é uma linguagem coloquial. Músicas não só direcionadas para Deus, mas direcionadas para o ouvinte, em geral; é para a pessoa, para atingir a pessoa. É um nível de comunicação horizontal. O hinário, o Cantor Cristão, ele tem uma comunicação vertical com Deus, puramente. Têm poucas músicas de comunhão, pra momentos de comunhão, casamento, mas tem, né. Tem mais uma visão vertical. E a música do Rebanhão era mais uma visão horizontal, de evangelismo. E é um movimento que tá crescendo hoje porque houve, agora nos anos 90, crescimento muito grande também da música de adoração também com uma linguagem mais coloquial: a Igreja Batista da Lagoinha, que fez um movimento grande, com David Quinlan, Casa de Davi, pastor Cirilo, de Belo Horizonte, que tão crescendo, Asas de Adoração. O movimento tá crescendo muito. Agora, esse mesmo movimento tá sentindo a necessidade de retomar também o evangelismo; também a música evangelística, o evento evangelístico através ... agora sim pode ser feito o evangelismo também com adoração, com músicas de adoração, mas com uma linguagem musical também moderna e tal para que possa atingir os jovens de hoje.

Bené, cerca de 50 anos de idade, casado, diz ser simpático ao cristianismo, porém

afirma não possuir vinculação religiosa; ele dirige projetos musicais, alguns voltados ao

tema religioso. Participa com Antônia no programa Conexão Gospel, voltado a encontrar

cantores e bandas. Ele focaliza a “música gospel” e oferece um panorama da produção

musical ao apontar dois momentos. O primeiro seria constituído por ausência de

profissionalização; o segundo demarcado por um projeto de comercialização. Bené diz:

O gospel começou, praticamente com plágio, imitavam outras músicas, copiavam. Hoje em dia não. Hoje em dia, o gospel tem uma linha própria, tem um caminho próprio que é muito legal. A mim anima trabalhar nessa área também, independente do lado espiritual, há o lado profissional também em questão. Márcia: Fale um pouco da profissionalização. O senhor falou que antes havia a versão, a cópia e agora não.

60. O entrevistado atuou como vocalista e tecladista na banda Rebanhão, surgida em 1980. O grupo investiu em sonoridades diversas como, por exemplo, o rock e o baião, a fim de efetivar seus objetivos: evangelizar e cultuar. Para tanto, suas canções falavam sobre fé – ressaltando-se a transformação individual - e também veiculavam críticas sociais. O primeiro disco foi gravado, em 1985, pela gravadora Doce Harmonia; em 1986, pela gravadora Polygram, o Rebanhão apresentou o segundo LP. Informações oriundas de entrevista concedida à autora em 2003. Também presentes em matérias jornalísticas e em verbetes: Bíblia World Net; http://geocities.yahoo.com.br/nickalexsoares/rebanho.htm, consultado em 18/08/05. Também ver: Gadelha. “Talento e Determinação”, revista Show Gospel, ano 03, nº 11, p.36. Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira; www.dicionariombp.com.br, acessado em 09/05/06.

76

Bené: Porque tudo é o início. Pra você começar qualquer coisa na vida, você precisa copiar. Agora, existe a cópia ingênua, a cópia bem feita e a cópia criativa que já deixa de ser cópia, é uma cópia mais elaborada que, a partir de um certo ponto, ela já cria personalidade própria e passa a não ser mais cópia. O gospel tá nessa fase de não copiar mais e, depois disso, muitas congregações, muitas igrejas adotaram, lideravam essa idéia, no tempo que eu tocava violão, na Igreja Batista, era muito difícil. Márcia: Como assim? Bené: Havia um certo tabu, havia um certo preconceito. Hoje em dia não. Quase todos os gêneros musicais são cantados no gospel. Até mesmo aquele gênero altamente... metal pesado, sabe que originariamente tem um perfil totalmente contra o gospel, hoje em dia ele é tocado no gospel com a letra adaptada pra gospel. Márcia: Sobre o gospel ter o lado comercial... como assim, tem um lado comercial? Como se desenvolveu, se é que sempre existiu. Bené: Não, ele não existia, esse lado não existia. Nos últimos quinze, dezoito anos, talvez, ou mais um pouco. Tenho uma noção vaga, é uma questão natural que um veículo de comunicação, uma rádio gospel, tenha que ter patrocinador senão não sobrevive, vai pagar cotas? O próprio artista gospel, hoje em dia, ele vai numa igreja e tem certo número de CDs pra ser vendido, isso é um acordo. Existe uma série de coisas que essa luta é muito importante. Não se pode trabalhar sem ganhar porque existe profissionalismo. Como eu disse hoje cedo, hoje em dia há profissionalismo no gospel, como há profissionalismo tem que haver retorno financeiro, é óbvio. Só que esse retorno financeiro tem uma importância grande, mas, o mais importante, é a palavra de Deus tá sendo divulgada. Claro, existem palavras que são divulgadas ai em vão por pessoas que gostam de esperteza, exagero, mas se for uma coisa bem dentro do conceito normal, eu acho justo. É o que ta acontecendo atualmente, existe, não sei precisar, muitas gravadoras gospel, têm muitas gravadoras. É coisa profissional porque gravadora não pode viver só de palavras, vive de retorno financeiro. É o nosso caso, nós estamos ... a Astral Music tá, aos pouquinhos, saindo do, que chamamos, popular pra assumir uma posição gospel com mais força. No próximo ano nós queremos ter em torno de quinze a dezoito artistas gospel.

O depoente também tem participado do projeto Explosão Gospel, criado e dirigido

por Antônia. Ela tem cerca de 50 anos de idade, migrante nordestina, viúva, convertida à

IURD61 e ex-produtora de baile funk. Antônia observa o percurso de construção do

reconhecido como “música gospel” e afirma:

61 Informações contidas no editorial do jornal Explosão Gospel, maio de 2003, ano II, nº 17, p.02; outros dados são provenientes de entrevista concedida por Antônia à autora, em 2003.

77

A tendência da música gospel é conquistar o espaço e crescer muito. Toda a música tem a sua época. Eu creio que a música evangélica, a qualquer momento, pode ter um grande estouro no mercado. Independente das religiões, as pessoas estão gostando, estão aceitando. Porque no início era muito difícil você colocar numa rádio secular, numa televisão, o programa evangélico. Ele não tinha esse espaço, o cantor evangélico. Hoje não. As pessoas, ao contrário, elas estão pedindo. Então, sabe aqueles que dão oportunidade para conhecer. Está crescendo. E eu creio que vá crescer muito.

Márcia: O que você acha que esteja acontecendo? Antônia: Olha, se eu for te responder pela parte espiritual, eu te digo que Jesus está voltando; se eu for te responder pelo lado normal, da razão, eu creio que é qualidade. Márcia: Como, assim, qualidade? Antônia: Antes as pessoas abriam a boca de qualquer jeito. Tinha o que eu lhe digo: muitas vezes você vai avaliar a comunhão. Eu recebo o CD completo com qualidade. Mas eu sabendo que a pessoa tem condição, é uma pessoa, que tem uma pessoa no altar, é uma vida de oração, eu vou melhorar, porque eu sei que eu posso ter um resultado maravilhoso. Se juntar isso com a qualidade. A qualidade, que antes qualquer pessoa fazia um CD de qualquer jeito que não dava nem vontade de você ouvir. Hoje não. Hoje você vai, faz um bom arranjo. Você sabe que tem música... O Marquinhos Gomes, por exemplo, o CD dele “Cinco Anos ao Vivo” é fantástico. A Cassiane, então, é maravilhoso. Eu acho que as pessoas estão passando a ver com outros olhos, devido à qualidade também. Márcia: Por quê? Antônia: Porque é sempre bom você ouvir um bom louvor, como falam. Essa música da Cassiane que “Toda a vez que o Mar Vermelho tiver que passar”, eu acho que independente de qualquer religião, você parando para ouvir, é maravilhoso! Eu acho que a qualidade, então, está contando muito.

Manga, cantor e pastor, tendo participado, desde a década de 1980, na elaboração e

disseminação de uma musicalidade considerada atraente para evangélicos e possíveis

convertidos, fala o seguinte:

Nós fomos um dos fundadores de todo esse movimento que hoje chama-se movimento gospel. Márcia: Por falar nisso Manga, o que é o gospel? O que vem a ser? Manga: Na verdade, vem da palavra americana Godspel que é Evangelho. E nos Estados Unidos, eles pegaram essa palavra godspel e simplesmente sintetizaram ela pra gospel. Então, gospel seria alguma coisa ligada ao Evangelho e uniu-se a música a isso. Por isso que ficou gospel que seria a música que tem um conteúdo do Evangelho de Jesus. Márcia: E aqui no Brasil, tem a mesma... Manga: Sim, na época sim. Em 90, né, utilizou-se um nome gospel porque vinha da concepção americana da música gospel que são as músicas mais

78

espirituais, músicas mais negras, porque hoje nos Estados Unidos o termo que eles usam é música cristã contemporânea. Márcia: Não é gospel, aqui já está usando o gospel. Manga: Aqui esse termo música contemporânea não pegou, enquanto nos Estados Unidos, hoje, eles usam música cristã contemporânea, música alternativa cristã e aqui no Brasil gospel foi o que mais agradou.

As questões despontam e favorecem a visualização dos movimentos executados e as

concepções existentes. Há, por exemplo, oscilação entre projeto comercial e outro, de

cunho religioso, e parece estruturar a designada produção musical. Às vezes, ocorre a

equivalência entre as duas esferas, quando é afirmado ser a música ouvida porque os

cantores alcançaram “as portas do mercado fonográfico”. Desse modo, “cantam e encantam

o público evangélico”, como propagado pela gravadora LR. A visão de equivalência

transparece efetivamente nas falas de Bené e de Antônia quando destacam o

“profissionalismo” e a “qualidade”, respectivamente. Não se trata somente de divulgar as

Escrituras para alcançar a dimensão religiosa, mas o “profissionalismo” passa a ser

assegurado com as articulações, com os arranjos e as exigências de empresas do circuito de

produção e de divulgação. A afirmativa de Antônia corrobora essa visão quando focaliza o

declínio da dificuldade em encontrar canais de execução. Isso ocorre devido aos

investimentos realizados, capazes de tornar aceitável a canção proveniente de alguém,

segundo ela, em estado de “comunhão” próprio de quem tenha “uma vida de oração”.

Os entrevistados indicam as concepções sobre música e descortinam aquela que

atribuem ao gospel. A modalidade seria caracterizada por veicular o Evangelho. Opera-se,

em nome disso, a inscrição de estilos e temas musicais anteriormente não contemplados,

basta rever o depoimento de Francisco JC. O pastor Manga observa ter sido a partir da

década de 1980 a adoção de uma concepção musical, segundo a qual tudo estaria

relacionado ao fortalecimento de uma visão de mundo e certa ética comportamental. Isso

fica evidente ao afirmar estar “tudo ligado ao Evangelho”.

A partir das declarações, vê-se, que para a iniciativa musical ser atrativa, a exclusão

ou a ruptura não são consideradas viáveis, mas a conjunção desenharia as propostas

surgidas. Com isso, a noção de pertencimento exclusivo vai de encontro à outra, cuja marca

é aproximar elementos distintos. Além disso, aos fiéis seria permitido participar e transitar

entre as manifestações elaboradas por leigos e dirigentes de vários grupos de fé. Tem-se

79

referência a um momento no qual é possível aproximar, reaproximar e fundir elementos

oriundos de “várias tradições” (Sanchis, 1995:133/134).

Nas divulgações das gravadoras LR e da VM são enfatizados os mesmos elementos.

A música passa a ter uma dupla constituição, porque é a ligação entre os homens, cumpre a

evangelização, e, ao mesmo tempo, caracteriza a relação homem-Deus com a “adoração”.

Assim, a música não fica restrita ao lado “espiritual”, à “comunicação vertical”. Outro

elemento, apontado por Pedro, é estabelecido, o “horizontal”; ele fica aparente no

posicionamento da MkP quando afirma visualizar o “mercado secular”. Portanto, não cabe

mais a mera “cópia”, como surge na fala de Bené, como também não é visualizado somente

o meio evangélico.

A ênfase dada ao contato mantido entre as esferas religiosa e secular é visível com

as noções de “mercado secular” ou o “secular”. Trata-se de esfera privilegiada de diálogo e

posicionamentos. Sem oposições, sem confrontos. Assim, fala-se de “uma linguagem

musical também moderna e tal para que possa atingir os jovens de hoje”, como enfatiza

Pedro. São exercícios de apropriação, de combinações e de (re) significações realizados por

cantores, por dirigentes religiosos e por profissionais. Seus empreendimentos demarcam

existir um grupo específico – de fiéis e prováveis membros - para o qual é necessário

fornecer canções e atividades consideradas expressões de uma determinada época. Daí os

shows e iniciativas diversas. Seria a “contemporaneidade” apontada pela Vineyard Music

(VM)? Isso coloca o diálogo com o outro, com o “secular” para construir um “mercado

gospel”. Despontam possibilidades de interlocução com aquilo também alocado fora dos

limites religiosos. Então, a atividade produtiva compreende a apropriação de bens culturais

e sua (re) significação, marcando a diversidade das musicalidades vigentes no dito meio

evangélico (Segato, 1999:232, 233).

Sobre canções e conexões

Os empreendimentos musicais independentes e institucionalizados são numerosos e

resultam em modalidades de canções. Quais seriam suas características? Apresentarei

quatro canções com a finalidade de ilustrar o produzido e veiculado; os trabalhos resultam

de atuações das gravadoras Mk Publicitá (MkP) e Line Records (LR) e selecionados

80

porque: a) são empresas nacionais; e b) têm origem em investimentos de fiéis, no caso da

primeira, e de uma denominação, no caso da segunda, como demonstrado anteriormente.

Além disso, as duas gravadoras são integrantes da Associação Brasileira de Produtores de

Discos – ABPD62; e são as mais citadas entre os entrevistados quando objetivam apontar as

primeiras e mais estruturadas gravadoras. Recorrerei ao trabalho da cantora Mara

Maravilha, reconhecida intérprete de baladas e constantemente citada por entrevistados.

Outro material em exposição é confeccionado pelo grupo de rock Oficina G3, da gravadora

MkP, igualmente reconhecido entre os depoentes por inovar ao recorrer ao rock.

¤

O CD “Deus de Maravilhas” é o quarto trabalho da cantora Mara Maravilha,

convertida em 1996. Antes, ela cantava e apresentava programas televisivos, infantis e

juvenis, em emissoras locais (região nordeste), em âmbito nacional63 e depois para países

de língua espanhola.64. Após a conversão, a cantora gravou CDs, contando com a

participação de outros cantores evangélicos. Em 2002, ganhou o Troféu Talento, premiação

instituída pela Rede Aleluia, voltada ao reconhecimento daqueles em destaque na chamada

"música gospel", com o CD “Deus de Maravilhas”.

Opto por analisar aqui as faixas “Deus de Maravilhas” e “Deu tudo certo”65, as

primeiras do CD, uma é a faixa título e a outra oferece imagens acerca do ato de conversão.

Apesar de a cantora ter composto algumas canções, as duas selecionadas são de autoria do

diretor artístico do trabalho, porém ambas exemplificam a peculiaridade da produção da

LR, e o público a qual é destinada. As letras são as seguintes:

Deus de Maravilhas

Não há deus maior que o nosso Deus/Nosso Deus é o Deus do Impossível/Fala com as estrelas e ordena o vento e o/mar/Igual ao nosso

Deus não há/Não há Deus maior que o nosso Deus/Do cativo faz um livre vencedor/A alma do ferido só Ele pode restaurar/Igual ao nosso Deus não

há/É o Deus de Maravilhas operando quem impedirá/É o Deus de

62 Entidade fundada em 1958 e voltada a representar as gravadoras, defender seus direitos e interesses. Ver: relatório anual da ABPD 2002, p.44. 63 Ela trabalhou em programas das redes de televisão Record e SBT. Maiores detalhes, ver: www.linerecords.com.br, acessado em 28/10/02. Kikuti.“De volta à TV”, revista Show Gospel, ano 03, nº 09, 2002, p.14,15. 64 Maiores detalhes, ver: www.linerecords.com.br, acessado em 28/10/02. Kikuti. “De volta à TV”, revista Show Gospel, ano 03, nº 09, 2002, p.14,15. 65 CD “Deus de Maravilhas”- Records Produções e Gravações – LRCD 197.

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Maravilhas que o morto faz ressuscitar/É o Deus de Maravilhas que faz a estéril dar a luz/Maravilhas faz o nome de Jesus.

Deu tudo certo Hoje eu vim aqui pra confessar que sem a fé em ti/Não dá mais pra viver Meu Senhor/O que ouvi aqui já começou a acontecer meu pai/Tanta coisa em minha vida se modificou/Porque a fé em Ti Jesus me abençoou/Deu

tudo certo Senhor/Eu vim oferecer o meu louvor/Pai de amor/Porque a fé em Ti Jesus me abriu as portas e eu vou/Deu tudo certo Senhor/Eu vim

oferecer o meu louvor/Pai de amor/Quando cheguei aqui eu vim chorando aos pés do meu Senhor/Jesus me atendeu me abençoou/Me deu sua

Palavra/ cumpriu com tudo aquilo o que falou/Fez de quem não era nada um grande vencedor.

O Deus contemplado pela canção é detentor de poder considerável, capaz de,

somente Ele, derrotar o que pudesse impedir alguém viver em plenitude, pois age sobre a

natureza. Além disso, algumas referências bíblicas estão presentes, como a ressurreição, a

concepção e o poder sobre as forças da natureza. Tudo é mesclado e fornece ao ouvinte a

percepção de ultrapassar os limites sociais e naturais que submetem o sujeito. E isso fica

evidente na referência ao fim do cativeiro, na condição de liberto. É uma referência à

liberdade auferida com a derrota das forças do mal e com as curas alcançadas, condições

obtidas com a submissão ao poder divino. Além de tais construções, a outra canção refere-

se ao momento no qual o fiel reconhece as transformações em sua vida proveniente da

intercessão divina. O centro da composição é o fiel, capaz de vencer os limites e alcançar

outro lugar após se colocar sob a guarda e a ação da divindade.

¤

No final da década de 1980, a banda Oficina G3 foi fundada, em São Paulo, na

Igreja Cristo Salva, ou, como é divulgado, na "Igreja do tio Cássio", como era conhecido

seu pastor e fundador66. Segundo Manga, ex-integrante do grupo musical e pastor da Igreja

66 Siepierski (2001:79-81), ao discorrer sobre a Igreja Renascer, comenta que a Igreja Cristã Evangélica Independente de Indianópolis, conhecida como igreja “Cristo Salva”, foi fundada por Cássio Colombo, ex-empresário, em 1975. Isso foi posterior a sua conversão à Igreja Evangélica Independente do Cambuci, da qual acabou se afastando. Antes disso, realizava reuniões com diversos jovens em sua residência, atraindo adeptos de igrejas ou não. O encontro era caracterizado por “testemunhos” e valorização musical, com o registro de inovações sonoras. Isso teria levado à formação de grupos musicais. Depois, houve o desligamento de Cássio Colombo da igreja a qual se convertera. Logo fundou aquela conhecida como a “igreja do tio Cássio”. Os futuros líderes da Igreja Renascer teriam freqüentado os encontros promovidos por Cássio Colombo. www.oficinag3.com.br, acessado em 05/12/2005. A referência também consta em entrevista concedida por Manga, ex-integrante da banda.

82

Vineyard, a "igreja de Tio Cássio" promovia "... uma reunião às segundas-feiras, que era

uma reunião muito moderna pra época; muita música, todo mundo sentava no chão. Porque

a gente tem que pensar que a gente tá em 77, aonde o movimento hippie tá acabando". A

igreja possuía três bandas e os componentes do futuro Oficina G3 faziam parte do terceiro

grupo formado para ter uma atuação interna. Segundo o depoente, no desenho institucional,

esta banda permitiria aos integrantes chegarem ao grupo principal. Com o tempo, foi se

consolidando e passou a se apresentar em diversos lugares, até se constituir na banda

Oficina G3.

Na década de 1980, ocorreu o lançamento do primeiro long play (LP); o grupo

alcançou projeção nacional e presença no circuito musical evangélico internacional67. Seus

integrantes são professores de música e colunistas de revista especializada em

instrumentos68. Para eles, as canções executadas provocaram reações num meio no qual o

rock surgia como novidade diante do predomínio de hinos.

O CD “O Tempo” possui 13 faixas. Selecionei duas, por considerar três pontos.

Primeiro, demonstram, com as letras e os arranjos, a visão da gravadora: divulgar artistas

evangélicos. Segundo, as canções são exemplares da proposta da banda: evangelizar com o

rock. Terceiro, evidenciam as peculiaridades das canções contemporâneas encontradas no

meio evangélico nacional. As faixas em questão são “O caminho” e “O tempo”69, ambas

compostas por integrantes do grupo. Trata-se da primeira e da quinta canções do CD.

O caminho Preciso viver, preciso mudar/Preciso de algo para acreditar Me sinto tão fraco/Desisto da vida/Me vejo em um beco sem saída Ouvi sobre um Deus/Que mandou seu Filho/Para que houvesse um novo/Destino ao mundo/Deus, me mostre o caminho/Deus, não me deixe andar sozinho/Agora consigo viver/Consigo pensar/Encontrei a vida/Posso respirar.

O tempo O vento toca o meu rosto/Me lembrando que o tempo vai com ele Levando em suas asas os meus dias/Desta vida passageira/Minhas certezas, meus conceitos/Minhas virtudes, meus defeitos/Nada pode detê-

67 A banda Oficina G3 conta com apresentações nos cenários nacional e internacional - Estados Unidos e Itália. Informações disponíveis em www.oficinag3.com.br, acessadas em 19/05/02. 68 Disponível em www.oficinag3.art.br, acessado em 05/12/05. 69 CD “O Tempo”, Oficina G3, MK Publicitá 109-631, faixas 02 e 05.

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lo.../... o tempo se vai/mas algo eu sempre guardarei.../...o teu amor, que um dia eu encontrei/os meu sonhos, o vento não pode levar a esperança, encontrei no Teu olhar/os meus sonhos, a areia não vai enterrar/porque a vida recebi ao Te encontrar.../... nos Teus braços não importa o tempo/só existe o momento de sonhar/e o medo que está/sempre à porta/quando estou com Você/Ele não pode entrar...

Aqui não há referências bíblicas e o grupo constrói as composições a partir da

credulidade, condição decisiva na condução da vida e para a transformação. Ela é visível no

uso de termos como “ouvir”, "mudar", "acreditar" e "fraco", que indicam o “encontro”

vivenciado e alicerçado na combinação entre “ouvir” e “crer”, compondo o “caminho” para

a mudança de vida. O passar do "tempo", as alterações e as perdas físicas são suportadas,

após o encontro com a divindade; a dimensão intangível dos "sonhos" e da "esperança" é

resguardada em decorrência da inserção numa ordem cósmica que possibilita outra

concepção: viver sob a ação da divindade. Ela eficazmente organiza as peculiaridades

humanas por ser poderosa, capaz de impedir a ação implacável do “tempo”. Quando a vida

é assim conduzida, nada mais assusta e fica possível entrar na dimensão do "sonho", na

qual a vida deverá transcorrer.

¤

Após sair do âmbito de depoimentos e de materiais promocionais, busquei

compreender a noção defendida por produtores e empresas: a de que as canções teriam por

propósito “propagar o Evangelho” em “linguagem contemporânea”. As músicas, inclusive

aquelas aqui transcritas, veiculam as imagens com as quais os compositores buscam

fortalecer a ligação entre os fiéis e os grupos religiosos. Isso ocorre ao ser instalada a

dualidade entre passado e presente, entre as condições físicas e emocionais anteriores e as

atuais - alteradas em decorrência de uma relação estabelecida com a divindade. Quem sabe,

não estaria aí aquilo que foi definido por Pedro como uma “comunicação vertical”? Ela

permitiria formular atividades e igualmente atingir público diversificado, seria sua

“horizontalidade”; ao mesmo tempo, é afirmado ser a música um modo de “adorar” em

conformidade com o tempo, próprio da “contemporaneidade”.

Assim, a música seria uma “linguagem” fundamental porque asseguraria a

disseminação de uma “imagem da realidade”, de instruções extrínsecas, voltadas a modelar

o comportamento e a existência, pois uma noção moral, uma visão estética e disposições

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(re)definem o certo e o virtuoso (Geertz, 1989: 143, 144). Tudo isso, conforme os

depoimentos, é circunscrito pela palavra “gospel” ou “música gospel” tão presente no meio

investigado.

Ouvintes, “alegria” e “espírito”

Em sessão anterior, foram destacadas algumas canções e permitiram refletir sobre o

elaborado e o cantado. Também foram vistas algumas noções daqueles envolvidos com as

formulações musicais e viabilizaram compreender porque as canções são tomadas como

eficazes para evangelizar, pois veiculam a visão de cada grupo religioso. Contudo, os

adeptos ouvem e falam sobre as canções sob outro ângulo. Vejamos o apresentado por

alguns adeptos.

Otávio, 27 anos de idade, casado, branco, morador da Zona Norte, ensino

fundamental completo, convertido há seis anos à Igreja Universal do Reino de Deus -

IURD, funcionário de uma empresa de reprografia, aponta a importância da música para a

sua filiação religiosa. Afirma sentir:

Uma alegria tremenda dentro do coração que a gente não tem nem como explicar, mas só o Espírito Santo mesmo. Márcia: Mas você sente alguma coisa em especial? Otávio: Com certeza, eu sinto o espírito de Deus, como se fosse tocando em nosso coração. Tem momento que a gente louva, que a gente louva e chora e essas músicas elas agrada Deus. Márcia: Você já sentiu isso ? Otávio: A partir do momento que eu me entreguei pra Jesus, com certeza. No começo a gente ainda tava assim engatinhando né. Agora, não. Agora a gente vê como é que é a verdade. Que a palavra de Deus é conhecer a verdade, a verdade (inaudível) libertará. Através de um louvor pode se libertar também.

Roberta, cerca de 30 anos de idade, casada, graduada em Pedagogia, moradora da

Zona Norte, oriunda de família da Assembléia de Deus e da Igreja Batista, mudando para a

Presbiteriana, é funcionária de uma instituição de ensino; para ela, a música ouvida:

É espiritual, mas é agradável aos ouvidos, por exemplo: eu gosto de músicas tradicionais antigas, como hinário, novo cântico que a gente tem lá na igreja. São músicas que foram criadas junto com a denominação. Mas não toda hora. De vez em quando, você quer ouvir uma coisa mais

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atual, mas sem perder a espiritualidade. Por exemplo: um dia que você está com algum problema, um dia que você está com conflitos ou em depressão. Se você ouve a música, alivia a alma. Márcia: Quais temas essas músicas costumam explorar mais? Roberta: Fala muito na ajuda. Levanta a auto-estima, são passagens da Bíblia que comovem, coisas que Cristo realizou quando veio a Terra e que te dá realmente uma razão de viver, de continuar lutando que, às vezes, é uma palavra, é um alívio. Como eu já te falei, é um alívio. Márcia: Então, isso seria a música mais espiritual? Roberta: A música mais espiritual. Márcia: Por que você está chamando essa melodia de mais moderna? O que seria isso? Roberta: São estilos de músicas atuais. Pop, um pouco de rock, não muito pauleira, aquele rock mais leve, mais suave. Me agrada esse tipo de música Márcia: Faz essa junção? Roberta: Faz essa junção, exatamente. Márcia: Você gosta de algum programa de música? Roberta: Olha, temos poucos, não tem muita qualidade. Na realidade, ainda estão muito artesanais. O melhorzinho, que tá acontecendo, é o Conexão Gospel que é o da Marina de Oliveira, aos domingos. Tá numa roupagem – não sei se é bem essa a palavra – bem mais atual e que você consegue ficar vendo, por uma hora, o programa sem achar que é uma coisa mal feita. Não fica muito a desejar a outro programa, entendeu?

Os fiéis e ouvintes musicais enfatizam aspectos específicos acerca das canções em

circulação no meio evangélico. Apesar de algumas referências bíblicas, há músicas que

destacam a submissão ao poder divino e as conseqüentes transformações em decorrência

da intercessão divina – vide as composições defendidas por Mara Maravilha. Também

existem aquelas centradas em visão sobre a ação da divindade capaz de transformar a vida e

a realidade, como veicula o grupo Oficina G3.

Os depoimentos de Otávio e Roberta expandem a concepção acerca do ouvido, seja

durante o serviço religioso, seja em outras atividades. Otávio diz sentir “uma alegria

tremenda” com a presença do “Espírito Santo”, não somente por tal presença, mas também

por proporcionar a “libertação” das forças da aflição. Esse ponto aparece nas canções de

Mara Maravilha, reconhecida principalmente entre os adeptos da Igreja Universal do Reino

de Deus, da qual o entrevistado faz parte.

Roberta destaca as diversas fontes musicais em circulação e que constituem um

leque de opções aos fiéis. Os hinos e as canções surgidas recentemente utilizam expressões

contemporâneas veiculadas em diversas atividades musicais, além do culto religioso. Eles

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são equivalentes entre si, pois têm, a seu ver, conteúdo “espiritual”, remetendo aos feitos

bíblicos capazes de “comover” ao falarem sobre a vida de Cristo.

A ênfase recai na ação provocada pela audição musical e explicitada quando fala em

“ajuda”, “levanta a auto-estima”, “dá razão de viver, de continuar lutando”. O ponto não é a

evangelização e, muito menos, o fortalecimento de um estado de emoção social. Os dois

depoimentos revelam outra face. Trata-se de colocar no centro o fiel, o crente apto a viver e

sentir o mundo e que, portanto, constrói explicações ao se deparar com certos elementos,

como nas canções de Mara Maravilha e aquelas da banda Oficina G3. Nesse caso, as

canções veiculariam um conjunto de informações.

“Mercado” e sagrado: correspondências

Os depoimentos e os materiais de divulgação aqui contemplados possibilitam

visualizar a mobilização para atingir o mercado secular e dispor as coisas religiosas. São

gravadoras e empresas voltadas a enfatizar isso, mas há outros encarregados de acenar a

existência de um “mercado gospel” no qual os bens são disponibilizados. Assim, a música

que constitui, segundo Pedro, a “comunicação horizontal” entre os fiéis, capaz de divulgar

o Evangelho, conforme estabelece a Line Records (LR), indica os componentes de uma

visão religiosa. São apontadas a “qualidade” e o “profissionalismo” por Antônia e Bené,

respectivamente. “Qualidade” e “profissionalismo” são indicadores e resultam de

exigências, arranjos, articulações e demarcam a música asseguradora da fé.

Líderes religiosos e produtores sublinham a vigência de um “mercado” e

estabelecem uma equivalência entre ele e o religioso. As duas esferas não estão separadas,

não são excludentes desse fazer. Eles ressaltam a vigência de um “mercado gospel” ou

“mercado cristão”70, como colocam alguns, cujas marcas são a oferta e a procura por bens e

serviços. Os envolvidos objetivam espraiar um discurso sobre a música como via de

divulgação do Evangelho e de pertencimento religioso. Porém há também o registro de

outra visão. Ela não entra em conflito com aquela, mas surge como complementar e

desenha uma visão na qual a crença não é dissociada da idéia de “mercado”. O que viria ser

esse “mercado”?

70 Tristão. “Mercado Cristão”, revista Show Gospel, out.2004, ano 05, nº17, p.32.

87

Em uma publicação, voltada a divulgar cantores, empresas e shows, foi veiculado o

depoimento de um dirigente religioso - da Igreja Batista de Contagem, estado de Minas

Gerais. Nele há elementos favoráveis ao entendimento das articulações e dos investimentos

enfatizados. Para o pastor, existem duas “montanhas” e um “vale” ocupados por todos

aqueles envolvidos com a música. Assim, diz:

O Senhor me falou a respeito de duas montanhas. Ambas são montanhas de adoração. A primeira é onde nós chegamos à presença de Deus e recebemos as canções, pregações, etc, e a outra é onde as pessoas que adquirem os CDs adoram ao Senhor enviando para o céu o fruto do que o Senhor enviou para a terra. A questão é que entre duas montanhas sempre existirá um vale. Esse vale é onde acontece a comercialização desses produtos. Produto, é assim que vida que flui de dentro do coração de Deus através de nossas poesias e acordes é chamada (...) o que escrevo não se trata de uma crítica, pois, não temos como ir de uma montanha a outra sem passar pelo vale. Seria hipocrisia criticar uma vez que também compramos e vendemos CDs. Sou grato a todos que militam no vale do comércio fazendo a conexão entre uma montanha e outra. E nesse vale todos temos que agir como empresários, pois as dificuldades contidas nele são as mesmas enfrentadas por qualquer outra empresa ou empresário... 71

As decisões técnicas, a produção e a comercialização transformam algo em

“produto” comercial, fundamental para o “objetivo espiritual”. O entrevistado Francisco

JC, diz sobre o cenário musical:

Eu posso dar, é claro que um posicionamento muito individual, né. O mercado hoje tá muito mais aberto, muito mais porque é uma necessidade muito maior. Devido a tudo que a gente já falou e a essa mesma transição, o mercado, é claro, visualizou a necessidade do jovem ouvir algo com uma musicalidade talvez um pouco mais trabalhada, mais aprimorada. Não dizendo nunca que os trabalhos dos quais você citou não são trabalhados ou aprimorados. Mas são trabalhos que têm uma visão, vamos dizer, uma visão A que atinge um público A e existem novos trabalhos que estão atingindo o público B. Assim como há no meio secular, também há no gospel. Existem pessoas idosas que querem ouvir músicas da antiga. A minha mãe quer ouvir o Jair de Paula. Então, é legal. Minha avó quer ouvir a Talita. Não que a Talita seja uma pessoa antiga, eu também gosto da Talita, pôxa, que isso. Mas existe um público A, B, C e D, existe criança. Então, a indústria tem trabalhado muito bem porque existe todo tipo de música pra todo tipo de gente. Existem bandas hoje que trabalham com axé. Quando há três anos você ia imaginar que ia acontecer isso? Tá

71 Cirilo. “As duas montanhas”, revista Show Gospel, out. 2004, ano 05, Nº 17, p. 30.

88

amarrado, né, ia tá amarrado. Tá amarrado o trabalho aí ou tá amarrado esse aí ou sai de mim ou esse tipo de coisa.

Parece ser o “vale” uma esfera livre de certos princípios e, portanto, viável ao

predomínio da técnica e exercício da criatividade com vistas a alcançar algo superior. Na

fala de Francisco JC, a indústria prepararia os bens expostos aos distintos grupos de

consumidores. As figuras do “vale” e da “indústria” estimulam a pensar sobre uma

ambigüidade em relação aos envolvidos com a produção musical. Estes podem ser vistos

como empresários em atuação no mercado e, ao mesmo tempo, ocupam lugar de destaque

no meio religioso. Assim, entre criar posições e forjar novos bens, esses ambíguos

produtores podem ser entendidos como criadores de uma arena de transição. Ou quem sabe,

ligam áreas dispares e imprescindíveis para a iniciativa religiosa. Sem conflitos. A inovação

aqui caracteriza a figura do empresário, presente na elaboração do pastor Cirilo, a partir da

situação redefinida com a atuação do profissional no campo de produção e recepção de

serviços e bens (Ortiz, 1980; Bourdieu, 1992; Oro e Steil, 2003).

A observação de Francisco JC, acerca da concorrência de modalidades musicais e a

necessidade de atingir distintos públicos, focaliza a elaboração e a organização musical

conforme os gostos e fases da vida. A seu ver, o “mercado”, e não a igreja, está “mais

aberto”, capaz de absorver novas propostas sonoras e musicais ao visualizar não existir um

público, mas vários a serem atingidos. Portanto, a “indústria” deve impor a dinâmica

musical; como exemplo, ter-se-ia a introdução de novos estilos musicais, a presença do

anteriormente excluído.

Isso provoca posições como a expressa pela afirmativa “tá amarrado esse aí, ou sai

de mim, ou esse tipo de coisa”, conforme destaca Francisco JC. Aparece aí a vigência de

uma lógica orientadora da percepção do sagrado e visível com termos como “amarrar” ou

“sai de mim” numa menção do que deve ser mantido seccionado. Essa lógica da exclusão

aparece na afirmativa de Francisco JC, e é exemplificada no drama de conversão de

Feliciano, parecendo ter sido a característica de uma produção musical e de grupos

evangélicos. Em outras palavras, a oposição entre nós/eles, entre religião/profano parece

coexistir com outra lógica, presente na fala de Francisco e na redação sobre as “montanhas”

e o “vale”.

89

As elaborações musicais não podem ser vistas a partir de interesses exclusivamente

religiosos ou empresariais, com vistas a penetrar em um “mercado”. Pode-se observar a

indicação de possibilidades inscritas. Essas podem surgir com as iniciativas

institucionalizadas e independentes (autônomas) e, muitas vezes, podem registrar

negociações ou não. Ainda assim, há referência constantemente a um “mercado”

constituído e mantido por serviços e bens formulados com vistas a alcançar os leigos, como

pode ser visto na passagem sobre “as duas montanhas” com a frase “... a outra é onde as

pessoas que adquirem CDs adoram ao Senhor, enviando para o céu o fruto do que o senhor

enviou para a terra”. Isto também pode ser visto na fala de Francisco JC e da divulgação da

gravadora que estabelece: “enquanto olhamos e vemos o mercado fonográfico secular

caindo e o mercado evangélico crescendo vemos a diferença que Deus está fazendo” 72.

Haveria um “mercado” de bens religiosos ou a religião produziria bens para o

mercado? A pergunta parece juntar duas áreas separadas, mas não é resolvida caso vigore a

visão de o interesse do mercado se apropriar de tudo próprio da esfera da fé e da

religiosidade. Talvez outra via possa existir e transparece na figura do “mercado”, entre

duas “montanhas”. Na primeira, é possível receber os dons; na segunda “montanha”,

vigoram preces e orações dos homens e, portanto, marca o lugar da relação homem-Deus.

Então, o “vale” é destinado a proporcionar a ligação do contrário, pois o “mercado”

somente cresce ao estar orientado por Deus. Eis como é possível a correspondência entre

duas áreas opostas. Pois, de um lado está a socialização comunitária e, de outro lado, aquela

pautada na troca e na concorrência entre os participantes.

A figura oferecida não veicula dualismos entre sagrado e profano, entre religioso e

“mercado”. Pelo contrário, configura a mediação entre o homem e o divino. Qual a

importância do “vale do comércio” ? Sem ele, os produtos e serviços viáveis ao exercício

de fé não seriam ofertados e acessados por aqueles voltados ao culto. Pode-se afirmar ser o

campo religioso penetrado pela lógica de mercado porque a concepção, a produção e a

oferta de bens não são mais prerrogativas das igrejas. Agora, ligadas às igrejas ou não,

surgem produções, ofertas e modos de arregimentar novos fiéis (Oro e Steil, 2003:309,310).

Para Weber (1998:493-497), o mercado é caracterizado pela diversidade de

interessados e probabilidade de câmbio apto a ligar os homens entre si. Ele pode ser regido

72 Cintra. Editorial da revista Show Gospel, ano 03, nº 13, p. 08.

90

por acordos entre os participantes ou experimentar uma ordem estabelecida por alguma

comunidade de cunho político ou religioso. Todavia, a relação de troca é impessoal e nem

sempre se dá em decorrência da ação de outro, mas pode ser estabelecida mediante os

futuros participantes e marcado por objetivos, por interesses nos bens voltados ao

intercâmbio. O autor afirma que os arranjos estabelecidos podem findar com o recebimento

dos bens, porém sua persistência advém de imperativo voltado a regular os envolvidos,

principalmente quando passam a vislumbrar a continuidade da relação de troca.

Sobre a relação entre mercado e religiosidade, Alves (1982: 15 e 17), ao analisar as

“agências de cura divina”, destaca a relação entre os especialistas e os usuários dos bens e

práticas oferecidos em busca de cura para algum mal. Isso demarcaria a “razão

operacional” e ressaltaria a vigência de visão utilitarista entre aqueles participantes da

“comercialização de bens espirituais”. Ocorre de não haver adesões duradouras entre os

envolvidos porque há a passagem de uma agência à outra com a procura por resolução de

problemas e que podem afligir alguém.

Monteiro (1982:107 e 110), com a descrição da presença pronunciada de cantores e

uso de meios de comunicação entre os evangélicos, na década de 1970, indicava a

superposição das lógicas promocional e religiosa nos programas e encontros religiosos. Os

bens eram consumidos por clientes desejosos de resoluções, de explicações para os

problemas concretos, ávidos por entender e se relacionar com os detentores de

conhecimento. A busca de cura e as apresentações de especialistas eram marcadas por

relações opostas entre doença/pecado, cura/libertação. Elas caracterizariam a atitude da

clientela flutuante das “agências de cura”; tal clientela estaria sempre em busca de

“controle das incertezas” e de respostas, explicações para os problemas vividos e

componentes do cotidiano doméstico.

No meio religioso e musical, quais seriam os elementos desse lugar de troca? Em

uma “montanha”, os dons são recebidos; com isso, ocorre a retribuição das dádivas obtidas.

Essa é a base do acordo e, por ora, pontua a dita “relação horizontal” e, obviamente, a

“vertical”. Seria a conciliação de duas dimensões antagônicas? Estes tempos de pluralidade

religiosa são marcados por complexas articulações, reaproximações, sobreposições e (re)

fusões diante de bens culturais disponíveis (Sanchis, 1995:134). Deparamo-nos com

posições favoráveis ao desmonte ou descongelamento de dualismos, de mundos

91

inconciliáveis, com suas oposições internas, possíveis de integração com as interlocuções e

as ações humanas (Velho, 1997:143). O âmbito religioso é constituído por forças internas e

elas podem estar em recomposição, viabilizando o “alargamento das suas fronteiras” em

direção aos elementos considerados opostos. Isto permitiria compor e oferecer bens e

“alternativas religiosas” (Steil, 2001:120,121).

Para os profissionais e líderes religiosos, a equivalência entre “mercado” e religião é

possível devido aos bens em oferta. Eles permitem cultuar e resultam de atuações daqueles

posicionados no “vale”. Isso é possível na medida em que o comércio é uma das arenas na

qual é permitido perpetrar e manter a relação de troca entre os homens e a divindade

(Mauss, 1974:39 e 129). Não se trata somente de receber “canções” e “pregações”, como

afirma o pastor Cirilo, mas, conforme registrado nas composições defendidas por Mara

Maravilha e a banda Oficina G3, também libertação, transformação de vida e segurança.

Ou, como indicam os ouvintes: a “alegria” alcançada e a “razão de viver”. Como a

aquisição pode ser conduzida? Exatamente a audição seria adequada em despertar, em

alterar certa disponibilidade emocional.

As procuras por resoluções e pelo “controle das incertezas” poderiam demarcar o

acesso aos bens, aos serviços religiosos e evidenciar a relação utilitarista entre os

envolvidos – especialistas e usuários. Não obstante, os ouvintes ressaltam o consumo

musical como uma eficaz via de reflexão, sendo possível, a partir dela, erigir um

entendimento acerca do mundo, da vida e do eu. Para tanto, as iniciativas registradas no

“vale do comércio” não alimentariam exclusivamente os trânsitos de fiéis entre as igrejas;

as atividades constituem algo distinto, com regras próprias no tocante ao produzir e

oferecer bens e serviços específicos. A relação de troca não é mais impessoal, isto é, a

conexão entre o ser humano e os bens deve ser íntima. O registrado no “vale” é

imprescindível, pois as relações constituem objetos, pontuam outras e, portanto, incorporam

e transmitem “idéias”, visões, “atitudes” e “julgamentos” (Geertz, 1989:105)

As formulações apresentadas indicam para uma relação entre o vivido, o pensado, o

sentido por leigos, o elaborado e o concebido institucionalmente e, assim, pontuam as

alternativas sonoras e musicais. Quando é apontado o trânsito de leigos e de empresários

entre a “montanha” e o “vale”, pode-se sublinhar a construção de caminhos que rechaçam a

disjunção. No entanto, é preciso observar que tudo isso coloca tensões, tentativas,

92

combinações e composições. Elas transparecem nas histórias transcritas, nos percursos

musicais e no criado e apresentado aos receptores.

Além de evidenciar a existência de atores voltados à produção de objetos e eventos

de acordo ou não com as regras comuns ao meio, a um “mundo” (Becker, 1971), no qual

são operacionalizadas constantes e complexas combinações (Oro e Steil, 2003), foi possível

demonstrar como as canções são concebidas distintamente por leigos e especialistas. As

falas de produtores e as divulgações de empresas diante das manifestações dos ouvintes

apresentam diferenças.

Os leigos - cantores e empresários - integram um grupo intermediário encarregado

da produção de bens, algumas vezes distintos daqueles oferecidos por pastores. Suas

manifestações circunscrevem uma integração entre religiosidade e profano quando

focalizam o mercado fonográfico ou o “mercado gospel”, o “profissionalismo” e a

“qualidade”. As iniciativas, os lugares e as qualidades caracterizam o debate com o

constitutivo do “mundo” oposto. Já os consumidores destacam a “alegria”, a “liberdade” e a

“espiritualidade” alcançadas por aqueles alocados no intermediário mundo das atividades

produtivas, mas não enfatizam essa dimensão e sim como o cotidiano é demarcado por

condições distintas quanto ouvem, sentem e cantam.

São desprendidas coexistências entre elas e tornadas equilibradas com a noção de

“mercado”. Desta forma, parece que a dimensão da produção não é mais tomada como

antítese do sagrado, mas aproxima dois âmbitos, duas áreas contrastantes concebidas pela

religião (Leach, 1983:180, 181). O “mercado” e aqueles em atuação nele têm poderes

fundamentais para sentir e viabilizar o exercício de fé. A figura do “vale” e das “duas

montanhas” bem revela a composição entre profissionais e dirigentes religiosos.

Isso contribui para a coexistência de fazeres, de iniciativas, de objetivos que

permitiriam visualizar um “mundo” não tão homogêneo e harmônico, porém ora inclusivo,

ora seletivo, caso sejam consideradas as propostas e as produções paralelas. De certo

ângulo, todas elas parecem constituir uma totalidade formada por diversas coisas e

iniciativas e, na qual, a “música gospel” passa a ser peça fundamental. Ela caracteriza

acontecimentos favoráveis à atração de “jovens”, pois transmite, apesar das mudanças, os

valores, a concepção de mundo e o modo de inserção nele (Geertz, 1989).

93

A noção de “música gospel”, a presença e as transformações musicais no meio

evangélico brasileiro foram apresentadas sem abdicar de outras histórias contadas por

envolvidos com a atividade. Tudo isso permitiu observar inscrições diversas e impedir de

apontar a exclusividade de influências culturais norte-americanas ou de empresas e igrejas.

As atuações indicam arranjos e rearranjos próprios das atividades de empresários, artistas,

técnicos, igrejas e demarcam outra história. Os lugares e as falas apresentam

correspondências e é fundamental saber quem fala e o que fala.

As constantes referências ao “mercado” são indicativas de que se está diante de

momento específico no qual várias expressões musicais são registradas e destinadas a

diferentes públicos. Configura-se, assim, um meio ávido e inclusivo (Segato, 1999:241),

capaz de recriar o constituído no mundo secular ao incluir, ao ressignificar e ao redefinir os

empreendimentos e os modos de participação religiosa e de manifestação de fé (Brandão,

2004). Com isso, entra em cena outra concepção de sagrado e de existir religioso, sendo

também mediada pela calculada e objetiva ação de produtores voltados a abastecer fiéis e

pastores com bens e serviços. Estaria resolvida a tensão entre religião e mercado? Quem

sabe?

Os fazeres independentes e institucionais podem ser complementares, paralelos ou

opostos, mas há a procura por reconhecimento e, para tanto, busca-se a Bíblia e ações

consideradas adequadas a ela para as combinações realizadas. Desse modo, foram

apontadas as especificidades, as combinações, as tensões integrantes dos momentos, dos

interesses e dos arranjos. Com eles, são visíveis as concepções de “mercado” e “mercado

gospel”.

O capítulo seguinte amplia a abordagem da designada “música gospel”,

especificamente da black music gospel. Será apresentada a “festa” como iniciativa musical

e interessante para a atuação de profissionais e atração de fiéis. Portanto, saber quem são

seus organizadores, como concebem o evento em sua especificidade (como dimensão

religiosa e de entretenimento) e o que fazem serão alguns dos pontos contemplados.

94

Capítulo 2

“Derramar o bálsamo, fazer o cântaro cantar”73

No meio evangélico do Rio de Janeiro, ocorrem atividades organizadas por leigos

com vistas a executar canções e explorar o tempo livre. Elas circunscrevem via de

participação, de integração entre os envolvidos. Tudo isso é realizado ao redor da

elaboração, da produção e da execução da black music gospel. Esta é apresentada e

consumida em algumas atividades formadas por leigos, artistas e ouvintes. Vigora um fazer

independente, cujas realizações transcorrem a partir dos objetivos e das relações

estabelecidas por aqueles encarregados da produção: musical, fonográfica e de eventos.

Conhecida pelos termos "festa gospel", "baile gospel" ou “festa” – sendo esta última

designação a mais corrente entre os envolvidos; a reunião se destaca pelas experiências

sonoras, pela exploração de tecnologias e pelas interações entre adeptos de diversas

denominações evangélicas (históricas, pentecostais e neopentecostais) e os não evangélicos.

Trata-se de encontro interdenominacional no qual ocorre o destaque de diversas canções e

de artistas.

A “festa”, por seu traçado, consistência, estrutura e organização, viabiliza a atuação

de grupos com diferentes propostas e pode evidenciar as tensões entre religiosidade,

política e entretenimento.

As atuações demarcam bens e serviços e apontam para complexo arranjo, por busca

de sucesso, por relaxamento, por participação religiosa. Resulta disso certa associação

nutrida por efusiva voluntariedade, porém pode revelar algo também sobre a produção

musical e fonográfica.

A black music gospel e a “festa” colocam algo: uma instabilidade. Tal é possível

diante do considerado próprio das igrejas: suas verdades, seu esquema de entendimento. A

“festa” seria, como definiu uma adepta do encontro, algo “contra o tradicionalismo”. Um

organizador diz ser “espaço de resgate”. As duas posições revelam as noções em trânsito,

instáveis por suas ações, por seus entendimentos e marcadoras da peculiaridade do 73 Gilberto Gil – “Palco”, faixa 14, CD Unplugged.

95

empreendimento. Uma delas é o destaque dado às expressões musicais, principalmente as

componentes do “Atlântico negro” (Gilroy, 2001: 15 e 38) com a finalidade de fornecer aos

investimentos uma feição contemporânea. Assim, há combinações entre música,

entretenimento e sagrado e, por sua vez, permitem a incorporação de temas como religião,

política e cultura.

Aqui serão explorados alguns pontos a fim de compreender como a black music

gospel e a “festa” dialogam com as questões, com os valores, com as ações e as

organizações vigentes. Serão vistos os grupos organizadores; as relações estabelecidas e,

assim, apontar-se-á os organizadores como mediadores religiosos e culturais porque

oferecem bens e serviços e têm posicionamentos entre os fiéis e o religioso. Além disso,

será oferecida uma descrição da “festa” e apresentados os objetivos para sua formulação.

Surgimento das equipes e promotores

Conforme foi explicitado, a black music gospel e a “festa” são elaboradas,

organizadas e promovidas por grupos formados por quem possua algum conhecimento em

organização de atividades e de tecnologias sonoras. Denomino essa associação pelo termo

equipe. Os integrantes são aqui denominados promotores e são os possuidores de

conhecimentos e com eles agem e articulam os empreendimentos.

Estive presente a algumas reuniões e entrevistei vários de seus promotores e

freqüentadores. Durante cerca de 24 meses, compareci aos eventos e visualizei sua

organização. Pude identificar a existência de uma rede, cujo fluxo é intenso por possuir

grupos com propostas musicais sem exclusão da religiosidade. Tudo pode ser desfeito ou

ser submetido a rearranjos com outras equipes e/ou componentes situados ou não no meio

evangélico74. Observei os trabalhos de três equipes e outras iniciativas; conversei com seus

integrantes a fim de saber mais sobre suas formações.

Cada equipe apresenta um núcleo de componentes voltado a conceber, organizar,

promover e executar as reuniões. São necessários direcionamentos técnico, empresarial e

administrativo, haja vista as exigências, como conhecimento de repertório musical e outros

74 Certa vez, Alberto, um freqüentador de “festa”, distribuía panfletos na portaria de um clube no bairro de Irajá. Soube por ele que estava começando a organiza uma “festa” em bairro vizinho e, para tanto, contava com o apoio dos integrantes de um grupo já estabelecido.

96

técnicos como locação de imóveis, equipamentos de som e apoio logístico. Estes grupos

também devem interagir com empresários, com líderes religiosos, com artistas e

convidados com vistas a constituírem apoio para a viabilização e/ou execução de

atividades.

Além disso, há outro círculo formado por alguns voltados a atividades distintas

como, por exemplo, encarregados do controle da reunião, da bilheteria (normalmente o

preço do ingresso é R$ 5,00), de filmagens e de fotografias. As tarefas podem ser divididas

entre os componentes do núcleo ou em parte atribuída a alguém com os quais mantenham

relações sociais. Nas equipes investigadas, não foi identificada a existência de uma

liderança a qual os demais devam se submeter. Como artistas – cantores e DJs – todos são

reconhecidos entre os concorrentes e os freqüentadores, dirigem-se aos encontros cientes

do talento, dom e compromisso, vistos como demarcadores de seus trabalhos e também o

do grupo.

Foram investigadas três equipes em atuação na cidade do Rio de Janeiro e voltadas

a promover “festa”, produzir canções e discos. Serão vistas as composições, propostas e

atuações das equipes Gospel Night (GN), Gospel Beat (GB) e Soul de Cristo (SC). Elas

foram selecionadas porque apresentam propostas peculiares, atuam há mais de cinco anos e

apresentam desenhos variados. Além disso, podem destacar, além do entretenimento, temas

como a desigualdade social e a percepção de ser negro no meio evangélico.

O tipo de encontro aqui descrito teve início em fins da década de 1990, porém há

imprecisão sobre quem primeiro o teria produzido. Alguns atribuem a uma equipe em

atuação e a um pastor, porém a relevância não está em encontrar o fundador, mas destacar

as articulações, as forças, as relações de trocas, as negociações e os limites estabelecidos

para a organização da execução musical.

Sobre o início da “festa”, Manga, um de seus precursores, antigo pastor da Igreja

Renascer, diz ser a estrutura por ele utilizada propriedade da igreja como, por exemplo,

local e equipamentos. Logo depois, mudou de denominação, porém havia outro dirigente

empenhado em trabalho semelhante, no município de Duque de Caxias, na Baixada

Fluminense, também da Igreja Renascer. Tratava-se do início de uma das equipes

acompanhadas por mim: a Gospel Night (GN).

97

As "festas" da GN são produzidas por Charles, Francisco JC e Marcelo75. Os dois

primeiros foram entrevistados por mim, em momentos distintos. Todos preparam a reunião

e o programa em emissora de rádio. Charles, negro76, 30 anos de idade, mora em Jardim

América, área da Leopoldina, tem ensino médio completo e é proprietário de uma empresa

de projetores para eventos e empresas. Era da Igreja Presbiteriana, foi para a Igreja

Renascer e, depois, para a Metodista. Francisco, como já citado, é casado, negro, tem

ensino médio e é morador do bairro da Penha, na região da Leopoldina. Era da Assembléia

de Deus e foi para a Igreja Renascer, onde exerce atividade no grupo de "louvor"77.

Atualmente divulga o CD solo com canções de sua autoria. Marcelo, antigo DJ de eventos

não evangélicos, converteu-se à Igreja Renascer e foi para a Igreja Restauração e Vida; tem

mais de 30 anos de idade, ensino médio completo, morador de Irajá e é representante de

uma empresa78.

O grupo também possui um programa de rádio, veiculado nas tardes de sábado, na

Manchete FM79, e segue o modelo da "festa": muita música, brincadeiras e premiações.

Além disso, dois CDs foram lançados e contém (re) composições (“remixes”); suas faixas

registram composições de cantores e grupos musicais e também dos componentes da

equipe. O primeiro CD foi produzido por ela e a distribuição feita pela mesma empresa na

qual a equipe adquire CDs e DVDs utilizados em suas iniciativas. O segundo CD, também

de produção e distribuição independentes, veicula alguns dos estilos tocados na “festa” e é

composto por remixes, algumas faixas de canções de outros cantores e grupos musicais.

Os componentes do grupo GN e os materiais de propaganda divulgam tudo ter

acontecido a partir da organização do show de um cantor de rap - integrante do cast da

gravadora Gospel Records (GR)80, cujo trabalho visa propagar o cristianismo. Um dos

fundadores da GN conta que, ao término da apresentação do rapper, o grupo percebeu a

75 Ver: www.gospelnight.com.br, acessado em 15/02/05 76 As designações cor e origem aqui registradas, também atribuídas aos demais entrevistados, incluindo os freqüentadores, decorrem de autoclassificação. Em sua ausência, a autora absteve-se em designar a cor do depoente. 77 Conforme entrevista para o informativo e-black, ano 2, 10º edição, 04/2004, p.03. 78 Conforme depoimento disponível em www.louvor.net, acessado em 11/08/04 79 Rádio de propriedade da Igreja Renascer em Cristo, localizada no centro da cidade do Rio de Janeiro. Entre 2003/04, o grupo deixou a Manchete FM e foi para a Nossa Rádio FM, propriedade da Igreja Internacional da Graça de Deus, fundada em 1980, no município de Duque de Caxias. Depois retornou à primeira emissora. Ver: www.ongrace.com, acessado em 27/04/05. 80 A Gospel Records está ligada à Igreja Renascer em Cristo e sua ênfase está na musicalidade e tem investido em cantores e na formação de grupos musicais. Ver: Siepierski, 2001.

98

ocorrência de conversões. Diante disso, e com o apoio do pastor local, foi decidido: "seria

importante existir mais eventos evangelizadores como aquele na cidade do Rio de Janeiro,

pois, até o momento, nada existia com aquele formato animado, descontraído e sincero para

os jovens"81.

A equipe passou a realizar periodicamente as reuniões em diversas igrejas da

denominação. Logo teve a produção de programa de rádio, na emissora da Igreja Renascer,

e isso contribuiu para aumentar o campo de divulgação. Segundo a equipe, a idéia é colocar

“um ritmo dançante e mantendo as mensagens, para que as pessoas possam dançar e

receber ministrações através das mesmas (remixes), músicas nacionais e internacionais,

fazendo uma programação jovem e divertida"82. Depois a equipe começou a atuar em

Jacarepaguá, ainda na Igreja Renascer, cujo dirigente instituiu o “Espaço Gospel Brasil”

com a finalidade de dar prosseguimento ao empreendimento iniciado no município de

Duque de Caxias83.

Como foi visto, o percurso de construção de associação revela a estratégia de

pertencimento, de salvação ou de acesso ao sagrado. O arranjo dependeu de relações e de

negociações com certa liderança de uma agência institucionalizada. Com a iniciativa, o

pastor tinha a freqüência do templo ampliada, tornava explícito o vínculo entre ele, os

promotores e os adeptos: a possibilidade de salvação. Isso era constituído a partir do uso

dado ao tempo livre, tempo de construção e de reconstrução de relações sociais (Brenner et

al, 2004).

O início e a manutenção da atividade revelavam a relação de troca entre o grupo de

leigos e a liderança local com marcada ascendência sobre aqueles, pois o pastor tinha o

domínio da estrutura da igreja. Ele indicava ser o evento produzido com a finalidade de

atuar entre os “jovens”; assim, a iniciativa, o apoio recebido e o resultado alcançado

apontavam ter o acordo encontrado meio adequado por ultrapassar o interesse dos

envolvidos: agir, pregar e agradecer ao divino. O sucesso da equipe é atribuído ao

“trabalho sério” e também por divulgar a palavra de Deus - com a finalidade de impedir a

81 De acordo com texto de divulgação da equipe Gospel Night, recebido em jan/2004; também disponível em www.gospelnight.com.br, acessado em 15/02/05 82 Idem 83 Idem.

99

dissolução do laço entre o fiel e o divino. Isso poderia ocorrer com a procura por diversão

e, portanto, com o perigo em conhecer atrações facilitadoras do afastamento.

Então, a integração seria em tríplice registro: entre os freqüentadores, entre os

promotores e as igrejas e, por fim, entre eles e Deus. Como diria Mauss (1974: 62-63), ao

analisar a dádiva, os homens “agem apenas enquanto representantes de espíritos. Pois,

nesse caso, essas trocas e esses contratos arrastam em seu turbilhão não apenas homens e as

coisas, mas os seres sagrados que são mais ou menos associados a eles”.

Os idealizadores da GN afirmaram ter o meio local, pertinente ao universo da Igreja

Renascer, incentivado a atividade que obteve êxito entre leigos e certos dirigentes,

principalmente no município de Duque de Caxias, pois prestaram apoio. Enquanto o

dirigente ficou na região, o grupo continuou agindo. Depois houve sua transferência para

outra igreja localizada na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Todos o acompanharam

e a “festa” continuou a ser realizada. Porém, isso não permaneceu por muito tempo, haja

vista a lógica institucional não compreender a longa estada de um dirigente em uma igreja,

com o quadro alterado periodicamente. Novamente, o pastor envolvido na atividade foi

transferido e, assim, deixou de realizar a reunião nas dependências do templo. Deu-se o

deslocamento do grupo do solo denominacional, próximo ao sagrado, para clubes e também

"casa de festa"84.

A passagem das dependências da igreja para clubes e similares tem explicações.

Teria resultado com a cobertura da imprensa que atraiu significativo número de

interessados. Então, para preservar as dependências e os equipamentos, a opção foi

transferir para outro âmbito. Outro ponto apresentado seria a procura por um lugar de fácil

acesso.

Estas poderiam ser as únicas explicações, mas há outra. Ela aparece em diversos

depoimentos coletados. Vejamos. É dito ter a equipe obtido divulgação e a atividade foi

transposta para outro espaço. Alguns entrevistados afirmam que diversos pastores não

receberam satisfatoriamente o empreendimento musical. Um promotor da GN diz que, com

o tempo, o projeto adquiriu reconhecimento de algumas antigas e recentes igrejas

evangélicas. Deixar de realizar a reunião sob a proteção da igreja exigiu nova articulação,

84 Termo aplicado para designar o local alugado para a realização de aniversários, casamentos e outras atividades, distinguindo-se dos clubes, entre outras coisas, com a inexistência de instalações e atividades esportivas.

100

não somente dentro da denominação, mas com outros grupos religiosos presentes no meio

evangélico. Assim, deu-se a busca por crédito e, para o empresário da GN, isso exigiu

construir eventos para execução musical e para a dança sem ser visto como “bagunça”. A

equipe passou a se apresentar em outras cidades ou igrejas e, assim, compor um momento

de suas programações. Tudo isso formava um meio de participação e sociabilidade, cujo

objetivo seria impedir a circulação em outras crenças ou a saída da igreja. Diante disso, a

iniciativa seria vista como “um trabalho sério”, realizado durante o ano, para oferecer

evento capaz de romper com a rotina do serviço religioso e estender mais ainda a

religiosidade sobre o tempo livre dos fiéis.

A oposição entre “bagunça” e “trabalho sério” indica uma tensão proveniente de a

“festa” ser algo perigoso (Douglas, 1966). Essa condição era auferida com a oferta de

conduzir a um estado de êxtase, de valorização do corpo e não da razão. O perigo estaria

em tal reversão, em expor o meio religioso ao “mundo”, ao colocado em separado em

virtude de certa organização (Leach, 1983:178, 179). Somente a apresentação da “festa”

como “trabalho sério”, apesar da descontração promovida, poderia alterar sua feição e

posição diante das forças institucionalizadas e representadas por sacerdotes legitimados

(Bourdieu, 1992).

A “seriedade” deveria ser evidenciada e tornada própria daqueles agentes

encontrados na esfera da organização, não representantes do quadro eclesiástico, mas que

se interpõem entre os fiéis e os pastores. Em posição intermediária, desenham suas ações

como integrantes de uma prática não definida por divertimento – apesar de defenderem a

alegria como componente litúrgico, e sim de intenso trabalho para a realização. Note-se,

aqui, que o “trabalho”, na verdade, é algo comum também entre os encarregados do preparo

e execução de festas em outros meios religiosos (Ferreti, 2001).

As iniciativas não têm por marca somente o entretenimento, pois os promotores

estão voltados a ações mais racionalizadas com a finalidade de constituir a “festa”. Assim,

ocupam-se com o aluguel de equipamentos, com a execução de projeto fonográfico, com a

divulgação e distribuição de CDs e contratação de seguranças. As músicas e os filmes

exibidos podem ser adquiridos a partir de circuito formado por amigos em viagem ao

exterior ou podem ser adquiridas em empresa sediada no centro do Rio de Janeiro e

especializada em produção e comercialização de CDs e DVDs. Quanto aos rendimentos de

101

bilheteria e de bar não obtive informações consistentes, não sendo possível definir se o

clube fica com toda a renda do bar e/ou da bilheteria. Contudo, é acordada a não

comercialização de bebida alcoólica; já a venda de materiais promocionais da equipe - CDs,

camisetas e chaveiros - parece ficar sob a responsabilidade do grupo.

A equipe Gospel Beat (GB) surgiu em 2000, e é formada por L´Ton, DJ W e Nega,

os três foram entrevistados por mim. A ênfase está na evangelização, porém consideram

inovar por não destacarem os presídios e as favelas, como outros evangelizadores,

afirmando atuarem entre a "galera black”. Indicam a música como elemento principal, com a

qual é possível construir um “exército” capaz de atuar por meio da música em um segmento

populacional, visto como diferente não pelo âmbito da moralidade, mas devido à cor.

L´Ton é gerente de uma empresa de consultoria, localizada no centro da cidade do

Rio de Janeiro; morador de Vila da Penha, área da Leopoldina, casado, negro, cerca de 25

anos de idade, ensino médio completo, é oriundo de família batista (seu pai era pastor e a

mãe integrava o coral da igreja no bairro de Madureira). Atualmente, está na Igreja

Internacional da Graça. Como produtor de “festa”, L´Ton também é conhecido como O.S.K

e é ligado ao site “os Karas”, especializado na divulgação de eventos de “música gospel”;

além disso, assina como “Visio”, quando produz cantores não evangélicos e evangélicos 85.

DJ W é funcionário de um condomínio na Zona Oeste, tem o ensino médio

completo, 25 anos de idade, negro, casado, morador de S.J. Meriti, Baixada Fluminense.

Converteu-se há mais de 10 anos à Casa de Oração, juntamente com a sua mãe, quando

residia em Santa Cruz, Zona Oeste. A equipe passou a contar com a participação de Nega,

prima de L’Ton, também de família pertencente à Igreja Batista, cerca de 30 anos de idade,

solteira, ensino médio completo, secretária de consultório dentário, no bairro do Méier,

moradora de Olaria, e filiada ao Projeto Vida Nova de Irajá (PVNI). Antiga freqüentadora

de "festas", organiza eventos em sua igreja ou fora dela. Com o tempo, fundou a Nega

Produções, empreitada cujo objetivo é organizar reuniões para evangelizar a partir da black

music.

Como Nega, os integrantes da GB e alguns da GN tiveram iniciação musical nos

grupos familiares e nos corais de suas igrejas. Essa participação é apresentada como

importante para a formação musical devido ao aprendizado de música sacra e canções 85 TR – “O ‘Proceder’ dos pioneiros do rap gospel carioca....” Disponível em www.enraizados.com.br, acessado em 22/06/05.

102

populares como, por exemplo, as possuidoras de referencial formado por igrejas

evangélicas integradas por afro-americanos. Entre os depoentes, o coral parece ser um

eficiente canal de recuperação da musicalidade entre os fiéis que atuam como, por exemplo,

instrumentistas, regentes ou coralistas (Novaes, 1985b: 59-72).

A GB realiza suas reuniões em locais alugados como "casas de festa" ou boates

existentes nas regiões de Irajá e Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Seu início está

relacionado ao grupo REP - Radicalizando, Evangelizando e Politizando86, também criado

por L´Ton, em 1998, com a proposta de evangelizar por meio do hip-hop. Os integrantes da

GB falam que a equipe resulta "da união de vários talentos diferentes com objetivo único:

levar o evangelho de Deus através da black music gospel e suas vertentes: soul, r&b, hip-

hop, blues, jazz e spiritual etc"87. Distintamente da elaboração da GN, a atuação da equipe

é definida a partir de certas expressões musicais com as quais busca caracterizar os eventos

organizados e, para tanto, realiza associações que ultrapassam o cenário religioso, tanto

com o REP, quanto com a GB.

L’Ton e W mantêm contatos com grupos musicais de cunho social em atuação fora

do meio evangélico e também participam ou formulam outras atividades 88. Além disso, os

86 Recentemente, ocorreu uma alteração no nome do grupo com a substituição da palavra “politizando” por “profetizando”, ficando, então, Radicalizando, Evangelizando e Profetizando (REP). 87 Informação disponível em www.gospelbeat.com.br. 88 Recentemente W, um dos DJs entrevistados, apresentou-se com o grupo DuGhettu (cuja ênfase está no rap, no grafite e na dança - ver: www.dughettu.com.br, acessado em 24/02/05), na festa de lançamento do DVD da cantora Sandra de Sá (conforme e-mail: " a prévia rola hoje", recebido em 17/03/04), que possui um programa voltado à divulgação da chamada música preta brasileira – mpb. Também L´Ton participa do DuGhettu e exerce a atividade de diretor técnico do grupo; em 2004, dirigiu a atividade na Universidade Estácio de Sá, com exibição de filmes, presença de atores para debate com o público e depois a apresentação da banda88, tendo as participações de integrantes do Afro Reggae ("Hip-hop em 2 tempos -Banda Dughettu. Revista Casa de Cultura, ano III, n88 35, set..2004, p.03 e 04.). Além desses, estiveram presentes diversos rappers que, juntamente com o vocalista do Dughettu, desenvolveram improvisações e rimas ao vivo a partir de temas apresentados (essa modalidade do hip hop é denominada de freestyle) como a violência, a cidade e a educação. Também foram exibidas as composições do grupo que não enfatizam somente a violência e a desigualdade racial, sendo também privilegiados outros temas. Foram realizadas releituras de músicas de Lulu Santos, Djavan, Max de Castro e Sandra de Sá, reconhecidos cantores brasileiros. No local havia em torno de 60 freqüentadores, entre 18 a 35 anos de idade, oriundos da Zona Sul, da Zona Oeste, Norte e de Vigário Geral, subúrbio da cidade. O público era, em sua maioria, formado por negros, por outros jovens não negros e também consumidores de hip-hop, demonstrando que essa expressão musical não circula somente entre os jovens suburbanos e negros. O local de moradia e a cor são dois pontos que permitem iniciar o desenho da heterogeneidade dessa expressão musical, pois o público pode apresentar distintas posições políticas, compreendendo o gosto musical, a origem social, a inserção no mundo do trabalho, o que leva ao registro de círculos distintos em relação a esses consumidores; porém podem ocorrer proximidades entre eles. Um ponto em comum pode ser a desconfiança que possuem das ações realizadas pela polícia (Novaes, 2001) e, não por acaso, o hip-hop no Brasil, em sua vertente musical, o rap, direciona críticas à desigualdade social e racial e também à violência de algumas operações policiais.

103

dois fazem parte do grupo Radicalizando, Evangelizando e Politizando – REP que, por

exemplo, integrou a manifestação Basta! Eu quero paz, promovida pelo Viva Rio (Pinheiro,

2005).

A outra equipe é a Soul de Cristo (SC) surgida em 2003, inicialmente a partir da

reunião entre um empresário convertido, um divulgador musical na cidade e outro

promotor de "festa" na Zona Oeste. Foram entrevistados dois componentes da SC: TR e

Sérgio. O primeiro é técnico em cobrança, evangélico da Igreja Batista, cerca de 30 anos de

idade, negro, solteiro, ensino médio completo, morador da Cidade de Deus, Zona Oeste da

cidade. TR, antigo DJ de hip-hop, participou, juntamente com o cantor MV Bill89, do grupo

Geração Futuro e de diversas atividades de hip-hop (Gonçalves, 1997). Após uma

temporada em São Paulo, TR fora chamado para escrever no veículo e-black90; hoje, TR

redige sobre música em um sítio especializado em entretenimento. A partir do

conhecimento adquirido dos circuitos musicais do Rio de Janeiro e de São Paulo, e de sua

vivência religiosa, TR viabilizou a equipe SC, chamando Sérgio para atuar no grupo.

O segundo integrante trabalhava como segurança em uma instituição de ensino, tem

formação técnica em marketing, negro, casado, é morador da Zona Oeste da cidade e

oriundo de família evangélica da Igreja Batista. Sérgio passou a organizar "festa" com a

equipe Gospel Planet, no bairro de Anchieta, local no qual reside. Sérgio contou ter

começado a produzir "festas" em praça na qual havia a presença de vários agrupamentos.

Com o objetivo de estabelecer um espaço de interação, de conversão, e também alterar a

feição do bairro, passou a agir entre os presentes na praça que eram vistos, segundo o

promotor, como pessoas “sem perspectivas”.

Por volta de 2004, Sérgio foi contatado por TR e passou a compor a equipe Soul de

Cristo (SC). Ela acenou com projeto para atingir outras áreas da cidade, pois contava com

trabalho de divulgação e estrutura favorável ao aluguel de clubes ou similares em outros

bairros. Atualmente, Sérgio escreve para o informativo e-black, em uma coluna sobre

“música gospel” e também no site da equipe GB.

89 Trata-se de rapper, também da comunidade de Cidade de Deus, Zona Oeste, participante do projeto Conexões Urbanas, realizado pelo Afro Reggae. O programa Conexões Urbanas visa proporcionar uma integração entre as partes da cidade a partir da realização de shows e certos serviços feitos pela prefeitura após os eventos. Ver: www.afroreggae.org.br, acessado em 12/11/04. 90 Informativo com distribuição gratuita e voltado a temas como saúde, música e política como questões pertinentes à população e à “cultura negra”.

104

Um dos integrantes afirma ter a Soul de Cristo por finalidade: "primeiro, tirar o seu

próprio auto-sustento; segundo lugar, fazer com que esse auto-sustento possa beneficiar não

só quem faz parte dela, como também nos permita entrar em presídios, nas favelas, fazer

evangelismo em lugares que ninguém faz e deveria fazer". Desse modo, o almejado é

evangelizar, fornecer aos fiéis algo voltado a transmitir “mensagens”, proporcionar

divertimentos e assegurar a autonomia da equipe para ter ação mais abrangente no sentido

de evangelizar e estabelecer pontos de atuação.

A partir de preocupação não restrita ao aspecto comercial, TR entende ser a

atividade da equipe própria para constituir canal alternativo e permitir aos cantores, aos

músicos e aos DJs divulgarem seus trabalhos. Portanto, considera atender a um contingente

não privilegiado por igrejas, por empresas e por estações de rádio. A seu ver, não existe por

parte do empresariado o investimento em artistas devotados às expressões musicais de

referencial não europeu. O trabalho é visto como de importância, porque ultrapassa outro

pautado exclusivamente na transmissão da palavra bíblica. A concepção do promotor é de

que a SC "... tá pregando uma ideologia, mas não tá pregando uma doutrina, uma doutrina

religiosa". O trabalho deve transformar não o pecador, mas o submisso, o excluído, aquele

sem reconhecimento, para, com a audição das músicas, com a apresentação de artistas

negros e, principalmente, de seus testemunhos, adquirir subsídios para a valorização deles e

fiéis considerados negros.

Para efetivar a proposta concebida, a equipe segue a mesma dinâmica das

anteriores: aluga estabelecimentos, equipamentos, contacta colaboradores para cuidar do

controle do local e do encontro – constituindo a área de segurança, e outros para a

realização de fotos e filmagens. Sobre a parte financeira, não foi possível afirmar quem

possui o controle da bilheteria e do bar, no qual são vendidos comestíveis e bebidas não

alcoólicas. Em certa reunião, um dos componentes da SC estava encarregado do controle

do bar e vendia as fichas – pequenos recortes de papel nos quais estariam escritos os

pedidos dos compradores que poderiam ser trocadas no bar por alguma bebida, comestível

ou os dois.

Foram vistas as composições, as redes estabelecidas por cada equipe, e as

participações entre elas. Também há o cuidado com a programação para não sobrepor as

atividades; isso configura alternativas aos freqüentadores, aos organizadores e aos artistas.

105

Os promotores e os artistas vão à “festa” de outra equipe, podem cantar ou se exibir como

DJs; há os exemplos do DJ Marcelo, já presente nos eventos da GB, do cantor JC,

componente da GN, participando em um empreendimento da SC. Também o DJ W e o

grupo REP têm registrado presença em "festas" programadas por outras equipes. O

patrocínio também fortalece a relativa não concorrência, pois um proprietário de loja no

Mercado Popular, na rua Uruguaiana, aparece como incentivador dos eventos,

principalmente os realizados pela GN e pela SC. Ocorre de as redes sociais dos membros

da equipe também apontarem para atividades fora do meio religioso. Esse é o caso da SC e

do convite dirigido à GN para participar de comemoração no Portelão, em Madureira91.

Durante o meu trabalho de campo, não via tantas distinções entre as atividades das

equipes. Reconhecia diferenças entre elas, sabia que uma investia mais em suas redes

sociais com a finalidade de ter presenças de cantores; outra privilegiava o trabalho de seus

componentes e também em sua rede para ter a cooperação de DJs evangélicos; uma terceira

também tinha no trabalho de seus componentes uma atração. Uma, apostava mais na

exibição de clipes, e outras nem tanto. Enfim, tudo estaria mais no aspecto operacional, mas

isso não era tornado visível em suas iniciativas. No entanto, deparei-me com outras

diferenças ao prestar atenção nas redes construídas. Isso ficava evidente nos depoimentos e

nos materiais de divulgação, o que tornava a “festa” algo mais complexo. Sua observação

descortina um mosaico de forças, intenções, combinações e concepções evidenciadas nas

relações estabelecidas dentro e fora do círculo de “festa”.

Locais - buscas e diferenças

A equipe GN é a mais antiga e atua na região de Irajá há cerca de sete anos,

alugando clubes e locais apropriados. Atualmente a GN tem realizado a "festa" no Irajá

Atlético Clube – IAC, fundado em 191292. São diversas iniciativas ocorridas no clube e ele

parece obter parte de sua renda com o aluguel de dependências para curso de informática,

para academia de ginástica, para grupos de pagode, de samba e de bailes. O IAC está

localizado na principal rua do bairro, ladeado por uma igreja evangélica e uma residência.

Diante do prédio, há uma ampla calçada – cerca de 4 metros de largura por 15 metros de 91 “Festa de 1º ano do e-black!”, informativo e-black, ano 2, 12ª edição, junho de 2004, p.08. 92 Ver:http://agrocon.sites.uol.com.br/index2.htm , acessado em 24/02/05.

106

extensão – usada como estacionamento. Logo há um portão por onde o público entra e, ao

lado, localiza-se a bilheteria.

O muro e a parede oposta formam um corredor de acesso à parte interna. Nesta há

ampla área e uma piscina localizada à direita; na lateral esquerda, ficam o muro e alguns

bancos; mais adiante, encontra-se o prédio com dois pavimentos. No térreo, são

encontradas algumas instalações e uma escada de acesso ao segundo andar, no qual as

atividades são realizadas. O salão é amplo, conta com pilastras de sustentação e janelas

responsáveis pela concentração de público num certo ponto do salão, principalmente, no

período do verão – quando facilmente a temperatura ultrapassa 40 graus. À direita da

escada, fica o palco e, do lado oposto, estão o bar e os banheiros.

A GN também utiliza uma "casa de festa", localizada na mesma rua na qual está

situado o clube. Ela ocupa uma quadra próxima a um posto de gasolina e a um posto de

saúde. O prédio conta com um pavimento e tem uma área externa usada como

estacionamento; sua entrada apresenta uma varanda e tem ao lado uma bilheteria e logo

uma porta de acesso. Entre a portaria e o salão, há um pequeno espaço no qual ficam os

seguranças e uma catraca. A área interna conta com o registro de colunas e o palco fica no

meio, mas encostado na parede esquerda, e o bar do lado direito. Por fim, na lateral do

salão ficam as mesas e as cadeiras.

No mesmo ponto, a equipe SC também efetivou suas atividades; tem igualmente

atuado em um local chamado Point Gospel, em Nova Iguaçu, área metropolitana do Rio de

Janeiro, especificamente na via Dutra – rodovia que liga os estados do Rio de Janeiro e de

São Paulo. O local tem área extensa e devassada, pois as mesas e cadeiras ocupam um

plano de certa altura, ficando visíveis a quem passa pela estrada. Segundo TR, a opção

pelo novo local foi graças ao fato de ele já ter sido dedicado a encontros efetivados por

grupos e por denominações evangélicas. Tirando a provável inserção da SC em Nova

Iguaçu, a "festa" costuma ocorrer em determinada área da cidade já reconhecida por

promotores e pelo público.

Sem ter apoio e vinculação direta com o meio evangélico, algumas das iniciativas

são organizadas com o incentivo de empresários como, por exemplo, loja de discos

localizada no centro da cidade, há lojas de roupas, lan house (local para jogos virtuais),

sites de informação e/ou entretenimento. Apesar de tais ligações, os promotores não se

107

vêem como empresários e, por sua vez, suas atividades nem sempre são tomadas como

empreendimentos demarcados por objetivos mercadológicos. Todos ressaltam a

evangelização, porém alguns promotores são explícitos quando afirmam objetivar ganhos

materiais e assegurarem a sobrevivência com canal diferenciado para a recepção de suas

músicas, de seus eventos e suas imagens – os componentes da SC e da GB deixam isso

mais evidente, enquanto os da GN consolidam suas inserções como DJs. Além da

proximidade com a esfera religiosa, há equipes com participação de pastor ou diácono com

a finalidade de realização de oração.

No entanto, não existe exigência de restrita formação teológica e/ou ocupação de

cargos entre dirigentes de igrejas, embora relações com estes sejam buscadas e mantidas. A

equipe GN, ao iniciar as atividades, tem sua história caracterizada por relações com

representantes da Igreja Renascer; a SC e a GB também trazem momentos constitutivos

onde seus membros estabeleceram contatos específicos para as propostas efetivadas. A

necessidade de alocação em postos de liderança pode inscrever posições ambíguas, capazes

de reunir características de empresário e também de líder religioso. As relações

constituídas não contemplam somente as áreas religiosa e empresarial - com vistas a auferir

apoio voltado à efetivação do encontro. Conta-se com arranjos e rearranjos com grupos,

artistas e entidades incentivadoras de projetos e valorizadoras da arte. As iniciativas

apresentadas colocam a inscrição de novos postos de liderança e inclui a busca por

profissionalização. Músicas são elaboradas e apresentadas e diversas relações são

empreendidas com empresas, com igrejas, com grupos musicais, com artistas e com

profissionais ligados ou não ao meio religioso. Assim, existe formação para a apresentação

de canções e de artistas.

A atividade musical e seus organizadores introduzem algo distinto da rotina

religiosa; isso pode ficar evidente quando comparados com outras iniciativas como, por

exemplo, o encontro da “juventude”, realizado na Primeira Pib da cidade do Rio de Janeiro;

também relaciono o Explosão Gospel (EG) e, por fim, o destinado ao “louvor” como o

Encontro Nacional de Louvor Profético (ENLP). Os serviços citados apontam para a

vigência de segmento capaz de receber e de consumir as músicas e outros bens elaborados

em conformidade com as convenções em vigor (Becker, 1971). Entretanto, há uma

diferença; ao contrário dos demais eventos citados, a “festa” não é uma atividade destinada

108

e capaz de mobilizar grupos familiares. Pode ser possível encontrar uma dupla de irmãos ou

primos, porém o arranjo predominante é aquele formado por laços de amizade e surgidos

em ambientes de vizinhança, de escolas, de igrejas ou na Internet. Pode-se até visualizar

algum “adulto” envolvido na condução de freqüentador, porém termina por ir embora ou

permanece sem interagir com o grupo formado. Para os responsáveis, a “festa” constitui

estratégia para a conversão e a manutenção de membros; isso ocorre mesmo que seja

aparentemente conflitante. Diante disso, fica a pergunta: o que é a “festa”?

Uma noite, uma ‘pista’ – procuras

A relevância do tipo de encontro aqui indicado é sublinhada porque integra a

atividade de elaborar e apresentar canções. Também é observada a realização de arranjos e

combinações entre artistas, profissionais e, por vezes, representantes do quadro de

dirigentes religiosos. Pode-se apontar para o acréscimo na oferta e procura por vias de

experiência de fé. Isso pode ocorrer a partir da adesão, da conversão religiosa ou, então, da

capacidade de leigos combinarem “culturas” e, com isso, fazem surgir bens ou modos de

lidar com a fé e com a crença.

Este estudo, de certa forma, também é uma procura. Trata-se de seguir certas pistas

com a finalidade de compreender as operações feitas, entrelaçadas e definidoras de

possibilidades de fé, de crença e de religiosidade na contemporaneidade.

Durante minha permanência no campo, alguns pontos foram estabelecidos.

Primeiro, existem múltiplas relações, tensões e concepções para a organização de reuniões

capazes de atrair centenas de fiéis e prováveis seguidores. Em segundo lugar, há específica

ordem comum aos organizadores; terceiro ponto, há amplo uso de ações e palavras por

parte do grupo promotor ou colaborador; quarto ponto, trata-se de atividades viabilizadoras

de experiências individuais e coletivas. Se a “festa” equaciona tudo isso, o que ela possui?

O que ocorre nela?

A descrição é sobre o evento promovido pela equipe GN, porém ela pode ser

exemplar mesmo diante de variações colocadas por outros grupos – algumas são

contempladas mais adiante. A intenção é relatar o efetuado em uma noite, explanar sobre a

109

peculiaridade da “pista” e, por sua vez, entender aquilo constituído para promover canções

e artistas. Vejamos.

Outubro de 2003, noite de sábado, 1º encontro de DJs no Irajá Atlético Clube –

IAC, cidade do Rio de Janeiro/RJ. Cheguei ao local (estava com Geraldo, que me

acompanhou em alguns momentos, auxiliando-me diversas vezes durante o trabalho de

campo), por volta de 23 horas, e ficamos na calçada do clube cerca de uma hora.

Conversamos com alguns freqüentadores a fim de saber quem procurava o tipo de reunião.

Havia a presença de pessoas de diversas faixas etárias, mas predominava aquela

compreendida no intervalo entre 15 a 25 anos de idade. Boa parte dos presentes formava

grupos (pequenos ou médios, ou seja, era possível encontrar formações com três, cinco, dez

ou mais componentes), organizados ali ou já constituídos previamente. Ao conversar,

descobri laços prévios e, assim, integrantes podiam ser irmãos, primos, vizinhos, amigos de

igrejas. Havia também muitos conhecidos de ambiente virtual ou apresentados por amigos

em comum. Então, chegavam de ônibus, carros particulares ou lotações; vinham de bairros

próximos ou de outras cidades do Grande Rio.

Durante o período no qual ficara do lado externo, foi possível ouvir as músicas,

tocadas por algum DJ; depois, entramos no clube. O encontro acontecia no segundo

pavimento. Ao subir os degraus, deparamo-nos com um ambiente com pouca iluminação,

algumas luzes especiais e uma névoa no ar. Havia pessoas paradas próximas às janelas e à

escada de acesso, e muitas no salão. No palco, entre as caixas de som, um DJ atuava e

tinha a seu favor uma potente aparelhagem sonora. Poderia haver naquela noite cerca de

300 freqüentadores aglomerados no meio do salão e depois dispersos, voltando a ocupar a

pista de dança, o bar, a escada e demais dependências. Em cada edição, o número de

presentes variava no decorrer do evento, dependendo de quem se apresentasse como DJ ou

cantor.

Chegamos e estava em andamento a execução do sermão da noite, acompanhado

por efeito sonoro. A fala levou alguns minutos, mas pude pegar parte da etapa e ver a

atuação do pregador e a do público. Francisco JC já estava adiantado em sua explanação,

marcava sua especificidade, pois aparecia como apresentador, como animador de público,

fazendo-o alterar sua conduta. Diferentemente do DJ, cujo recurso é formado por

equipamentos e músicas, o pregador fazia o público passar da excitação, provocada pela

110

música e pela dança, para um comportamento um pouco diferente, em evidente

demonstração do carisma como elemento importante para o empreendimento realizado.

Naquela noite, a intervenção de Francisco JC contemplava um efeito sonoro

fundamental, juntamente com a escuridão do lugar, ao controle exercido. Quando

chegamos, ele falava e os presentes reagiam, dando um ritmo ao encontro, pois o pregador

dizia o seguinte: "... Neste local Te adoramos e oferecemos nossas palmas [nesse momento,

crescia a intensidade das palmas, dos assobios e gritos], mais palmas aí" [por alguns

segundos, o público aplaudia, assobiava e gritava]. Ele continuava: " algo sobrenatural vai

começar agora porque você está aqui "[aplausos e gritos], prosseguindo: "Esta noite, com

vocês Gospel Night - tem gente santa do teu lado e você vai entender isso em liberdade.

Com vocês, Gospel Night" [mais aplausos, assobios e gritos].

O efeito sonoro passou a registrar uma voz grave que pronunciava: "prepare-se,

prepare-se ... pressão máxima... agora você está pronto; execução do sistema, execução do

sistema". Naquele momento, a mixagem dava a impressão, pelo menos foi a minha, de algo

a ser realizado em esfera não humana, não terrena (poderia ser sagrada ou no estilo dos

filmes de ficção científica). Então, ocorreu uma contagem regressiva de 10 a zero [ o

público continuava com gritos e assobios em sinal de aprovação]. O efeito prosseguiu com

montagem que lembrava rajada de metralhadora [novamente gritos e assobios]. Francisco

JC apresentou um DJ componente de sua equipe e extraiu mais manifestações de

aprovação: os presentes aplaudiam, assobiavam e gritavam. Depois de outra contagem, feita

por Francisco JC, uma música foi tocada, cuja característica seriam batidas mais

sincopadas.

Tudo foi transformado novamente com os DJs; os presentes retornaram aos

rodopios, aos passos marcados das danças, e ao bate-papo. No salão ou na pista, todos

atuavam em grupo ou individualmente e, assim, tinha-se uma unidade, sem platéias. Todos

dançavam, acotovelam-se, levantam as mãos, giravam o corpo, projetavam-no para frente

ou para trás. As coreografias não eram definidas como expressão de diversão; elas eram um

ato de “adoração”93.

93 Sobre a dança como elemento de “louvor e adoração”, ver: Coimbra. “A dança no louvor e na adoração”. Revista Encontro Nacional de Louvor Profético, 2002, nº 05, p. 17.

111

Estudos sobre o fenômeno da festa indicam que ela compreende momentos distintos

e complementares porque envolve cantos, alimentos, danças e sacrifícios fundamentais para

a vida do grupo. As diferenças rituais evidenciam a continuidade do grupo a partir do

princípio de os ritos assegurarem a capacidade de existência, despertando e fortalecendo

um estado diferenciado entre os participantes com a prática de atos comuns reveladores de

sentimentos compartilhados, como também certo estado moral e de confiança (Durkheim,

1989: 363-462). Era o que ocorria ali, no IAC, em Irajá.

Um pouco distante dali, na extremidade do salão, ficava o bar, no qual eram

vendidos comestíveis e bebidas – água, refrigerantes, mate, guaraná. Nessa área, muitos

conversavam, poucos namoravam. Os banheiros eram os responsáveis por movimentos

constantes dos presentes. Além das conversas e tentativas de namoro, notava-se a

preocupação com a aparência e, nesse caso, o banheiro era o local privilegiado para os

retoques após uma sessão de dança – maquiagens, cabelos e roupas; havia a troca de

informações sobre a próxima “festa”, um culto ou show. Além dos freqüentadores, alguns

transitavam, outros utilizavam equipamentos de fotografia e de filmagem; outros

observavam os presentes, não para apreciar e sim com a finalidade de manter o controle.

Tudo poderia ilustrar o momento profano do encontro no qual os interesses terrenos

parecem ser privilegiados e realizados.

Durante a noite houve mais intervalo, também comandado por Francisco JC,

acompanhado por Charles (outro integrante da equipe), que igualmente provocou

participação e interação do público. Isso foi realizado com a escolha de pares para o

desenvolvimento de tarefas, como dançar. Avaliada pelo público, a dupla vencedora

recebeu prêmios como CDs. Do lado oposto do palco, os demais freqüentadores aplaudiam,

assobiavam, procuravam ressaltar o instante. Novamente, como o componente encarregado

das pregações, o momento dos jogos indicava a importância da linguagem para o estado de

exaltação da reunião. Ela era pronunciada por quem fosse consagrado pelo público

(Durkheim, 1989: 68 e 264).

Depois da descrição do ambiente interno, retorno a falar sobre o período e as

conversas mantidas com os freqüentadores. Durante o tempo de permanência diante do

prédio, foi possível observar vários pontos. Do lado oposto ao clube ou contíguo, ficava um

local no qual muitos freqüentadores permaneciam por algum tempo. Lá eram vendidas

112

bebidas, inclusive as alcoólicas, e comestíveis (doces e salgados) e muitos eram atraídos

com vistas ao consumo de alimentos, de bebidas ou simplesmente conversar ou aguardar a

chegada de companheiros. Para lá fomos e permanecemos sentados, tomamos refrigerantes

e observamos a entrada do prédio e da movimentação na área na qual estávamos.

Um conhecido se aproximou e me cumprimentou. Era morador de um bairro

vizinho e costumava ir sempre àquela modalidade de encontro com os amigos e com a

namorada. Eduardo falou-me sobre as "festas", o clima de divertimento e de interação

como de maior interesse; também esclareceu sobre o horário de encerramento, que segundo

ele, costuma ser próximo às 4 ou 5 horas da manhã; isso colocava a importância de

formação de um grupo maior para aguardar o ônibus para o retorno ao ambiente

doméstico. Depois Eduardo avisou da chegada de alguns amigos; despediu-se, foi ao

encontro deles. Permaneceram por mais algum tempo em animada conversa.

Eu e Geraldo ficamos no local; súbito chegou um grupo e os integrantes iniciaram

um bate-papo na mesa ao lado da qual estávamos. Logo depois, perguntei a um dos

componentes se estavam ali por causa da reunião. A resposta foi positiva e a mesma

indagação nos foi dirigida. Porém uma componente do grupo disse não poder opinar, pois

todos estavam ali pela primeira vez. Mesmo assim, perguntei de onde eram; quais suas

igrejas de origem; e de onde se conheciam. As componentes do grupo responderam ser de

Nova Campina - município de Duque de Caxias, próximo à cidade do Rio de Janeiro cerca

de 30 km; souberam do encontro por meio de divulgação em programa de rádio. Este seria

produzido pela equipe responsável pelo encontro da noite. As componentes do grupo eram

oriundas das igrejas Metodista, Assembléia de Deus e Batista, sendo irmãs e amigas,

algumas solteiras, outras casadas; estas últimas teriam deixado os filhos com parentes e

foram, pela primeira vez, à "festa", acompanhadas pelo marido de uma delas.

O poder da “festa”

Ao observar o empreendimento, tive a impressão de ser o momento de oração

indicativo de menor intensidade. Por esse prisma, o entretenimento seria o momento mais

marcante. Isso poderia ser visualizado com as danças, as coreografias desenvolvidas no

salão, as filmagens, as fotografias feitas por integrantes da equipe promotora, o

113

acionamento de luzes especiais e de fumaça. O conjunto dava uma atmosfera encantada.

Não obstante, entendi não ser a visão mais adequada, pois, para os atores envolvidos,

constituiria algo além do mero divertimento. Não haveria um momento religioso e outro

profano. Enfim, os depoimentos coletados evidenciavam ser tais momentos componentes

de um todo entendido - pelo público e por organizadores - como um modo específico de

exercício religioso.

O apresentado até agora evidencia como sentimentos são experimentados e

manifestados em comum, pois os integrantes pareciam compartilhar de uma mesma visão e

ação, o que permitiria ao grupo um modo de reafirmar sua integração. Assim, a diversão

não é a única a ser perseguida; o riso por ele mesmo, como certo estado da vida, não

depende das razões de sua produção. A reunião, a experiência, a comunhão de certos

sentimentos, idéias e ações são, na verdade, ações de renovação do grupo.

Portanto, seja em uma cerimônia tida como estritamente religiosa ou em uma festa,

e há proximidade entre elas, vê-se a promoção de um estado de ânimo caracterizado por

desprendimento, por distanciamento do tempo e das ações ordinárias. As marcas disso são

o riso, as danças, os cantos, os movimentos mais abruptos que, em tal momento,

caracterizam o rompimento das regras, podendo conduzir à transformação. A distinção

entre os festejos populares e as cerimônias religiosas tem a ver com a proporção da

combinação entre a seriedade e o desprendimento da vida séria. Trata-se de manifestações

opostas ao tempo sério e das convicções institucionais (Bakhtin, 1999:89, 97, 191) 94.

Era possível, a partir dessas noções de comunhão e desprendimento do ordinário,

encontrar a combinação resultante de modo de subversão da condução da prática religiosa,

mesmo entre aqueles alterados por manifestações emocionais, corporais e que também

contavam com a presença musical. Havia uma atmosfera peculiar. O som, a projeção de

vídeos no telão, o jogo de luzes e de fumaça eram componentes da construção do

espetáculo sonoro e religioso, contribuindo para o efeito provocado com a participação do

condutor do show ao fazer da oração o clímax da noite. A todo instante, os sentidos eram 94 O autor enfatiza as festas, as comemorações públicas, porém não oficiais (com ênfase no corporal, no erótico e no material ao invés do espiritual e do ideal) efetuadas juntamente com as nacionais e religiosas. Assim, as festas religiosas, agrícolas ou particulares colocariam a manutenção de um “tempo alegre” com jogos, paródias em forma de profecias e de enigmas. Isso apresentava algo novo aos homens ao invés de confirmar a atmosfera sombria da Idade Média, das determinações escolásticas, eclesiásticas, o judiciário e suas verdades. Com as festas, havia a paródia dessas instituições, da organização e da visão de mundo peculiares ao período medieval; assim, o antigo seria submetido à renovação e à transformação.

114

explorados, fosse para fornecer a sensação de entretenimento, fosse para enfatizar o seu

aspecto não profano.

Isso acontecia sem existir interdições, pelo menos de modo explícito, e

determinações das ações praticadas (Durkheim, 1989). Parecia não haver essa preocupação,

pois tudo constituía uma atmosfera possível de ser tida como sagrada, isto é, o encontro não

era composto por uma fase profana e outra não. Todos os momentos constituíam a “festa”,

e eram partes de algo vivido, sentido e pensado como sagrado, conforme será visto no

decorrer do trabalho.

Outro ponto foi o destaque dado ao palco. Nele ficavam os responsáveis pelo

comando do encontro; eles não descem. Lá permaneciam os cantores e os Djs, todos

reconhecidos e admirados. Do palco cantavam, tocavam e falavam aos presentes. Atuavam

de modo a alterar o estado de ânimo de todos, mas isso não necessitava da realização de

milagres, de exorcismos, de discursos pautados nos Livros, mas do desenvolvimento de

“estratégias” e manipulações de objetos para a condução da reunião. (Rivera, 2001:235-

239; Campos, 1997:61-163)95.

Desse modo, a reunião não seria constituída por leitura bíblica, porém canções,

danças e brincadeiras marcariam o palco como o centro irradiador de uma atmosfera de

celebração e de energia (Amaral:2000: 123-144). Assim, este seria o lugar para ligar os

homens e a divindade, a terra e outra dimensão, pois registraria gestos e objetos

consagrados e fundamentais ao desenvolvimento da cerimônia (Durkheim, 1989:444, 445).

Como o púlpito, o palco coloca no âmbito da reflexão as relações, os objetivos e as

expectativas de leigos e especialistas detentores de certas prerrogativas e que contribuem

para os presentes alcançarem outro estado. Assim, no palco podem estar o DJ, o pregador,

em alguns momentos, o cantor, enfim, todos dispostos ou alternados. Eles devem e fazem

com que os freqüentadores ultrapassem a rotina do cotidiano, mantenham algum tipo de

95 Rivera afirma que nas igrejas pentecostais o púlpito é um lugar de onde emana determinado poder, pois nele está o pregador que atua no interior da igreja e, portanto, curas, milagres e exorcismos ocorrem a partir do uso da palavra e monopólio dos momentos e acontecimentos que compõem o culto. Campos, ao focalizar o neopentecostalismo como um “empreendimento religioso e cultural”, pautado no desenvolvimento de estratégias de marketing, aponta que o templo compreende um espaço composto por objetos, platéia e integrantes do serviço religioso, podendo ser entendido como um teatro. O momento do culto registra a construção do sagrado com a participação de todos os presentes e cabe ao dirigente expressar certa habilidade e obter recursos materiais como também provocar certo estado emocional.

115

participação com a esfera religiosa. Ao mesmo tempo, podem levar o público a sentir o

contato com o sagrado. Mas não somente eles estão encarregados disso.

Seja no salão, no qual os presentes devem “louvar” e “adorar”, seja em sua

extremidade, é possível visualizar a circulação de um grupo voltado a exercer o controle do

local. Não obstante, não se trata de um mero e raso jogo entre liberalidade e repressão.

Antes de tudo, o controle também ajuda a definir a atividade como não estritamente

profana, demarcada pela simples perseguição do entretenimento. A ação dos profissionais

da área de segurança também constrói a forma a partir da qual a dança, as conversas, o

cuidado com a aparência e a música pontuam as interações orientadas por uma etiqueta.

Esta é, de certo modo, reforçada com a ação de colaboradores designados para o controle

do local e dos presentes. Essa presença e a etiqueta não ficam restritas ao ato de

normatizar/padronizar os comportamentos, mas precisam compor o mosaico de forças

direcionadoras das percepções dos presentes, dos visitantes e do novato. Afinal de contas,

tudo precisa ser, ao mesmo tempo, parecido e totalmente distinto do registrado nos bailes e

nas igrejas96. Mas voltarei a isso no último capítulo.

Como diz Geertz (1989: 225-277), ao visualizar o pensamento como algo social, os

atos não constituem o mero agir, o simples atuar, porém marcam um modo peculiar de

sentir e viver, onde o realizado deve ser feito conforme as prescrições em vigência. Assim,

pode-se agradar a uma extensa gama de seres – divinos e humanos –, seguindo-se

comportamentos orientados por normas e idéias adequadas. Não somente pela virtude,

porém com alegria e certa estética, promotores, responsáveis pela segurança (o controle de

local e dos presentes), outros colaboradores e, principalmente, os freqüentadores esperam

também agradar a Deus. Contam fazer, manter e ser reconhecidos por amigos a partir de

96 Da Matta (1979) analisa o carnaval, as procissões e as paradas militares, juntamente com as festas e o cerimonial, aglutinadores da população, a partir de contrastes com as ações cotidianas. Isso é feito porque não são caracterizados pela rotina e também não são imprevistos e incontroláveis, como as tragédias, os acidentes e os milagres. Alguns destes exemplos podem ser formais e outras informais, já que a centralização, o planejamento e a personalização marcam o primeiro caso – podendo estar nessa situação as paradas e as procissões. As festividades, os cerimoniais e os rituais aproximam-se no momento em que marcam contrastes com o cotidiano e não ficam circunscritos à magia e ao místico. Ligados ao cotidiano ou ao extraordinário, os eventos, como bailes, festas e reuniões, estariam alocados na esfera do incomum, porém previstos pelas regras sociais e marcadamente hierarquizados ou descentralizados. Seja a procura de uma vida mais amena e livre ou um modo de discursar sobre certos aspectos do real, as festas, cerimoniais e rituais marcam um outro compasso de vida e também de discursos sobre o vivido pelos homens. Assim, as reuniões investigadas trazem essas peculiaridades, pois podem demarcar uma maneira de atuar no mundo, ao mesmo tempo que fala sobre ele de um modo distinto do discurso religioso institucionalizado.

116

qualidades demonstradas: bom dançarino, amigo, engraçado e “adorador” fiel. São

qualidades almejadas e tomadas como fundamentais ao meio constituído por todos.

Os objetivos da brincadeira

A descrição oferecida anteriormente apresenta o encontro e seus desdobramentos: o

ocorrido na rua, o realizado no salão de danças e em seus limites. Viu-se as atuações de

DJs, de cantores, de animadores e de pregadores, mediadores voltados a proporcionar a

audição, o entretenimento e o “louvor” – como ato de cultuar, de retribuir, de celebrar a

divindade. Como foi visto, várias equipes foram formadas - outras surgem a todo instante -

para a execução de encontros em bairros da cidade e têm mobilizado fiéis e profissionais.

Então, quais as versões sobre o realizado?

Manga, branco, cerca de 40 anos de idade e ex-cantor do grupo de rock Oficina G3,

é reconhecido como um dos precursores desse tipo de empreendimento. Segundo ele, o

baile:

Foi o primeiro que foi feito. Não havia esse termo aqui no Rio de Janeiro e nós lançamos isso dentro da igreja. Nós não fomos pra uma casa de... Nós fizemos dentro da igreja, com luzes, com DJ e com banda tocando ao vivo, mas sempre com uma mensagem, uma pregação mesmo. Eu não sei se ainda o pessoal faz da forma com que fazíamos, que era uma coisa com muita oração, com muita seriedade, visando alcançar as pessoas. E alcançar as pessoas porque queríamos vê-las transformadas e não pelo dinheiro que elas podiam trazer pra igreja. Então, nós fazíamos ... e a nossa intenção era ganhar gente pra Jesus. Sempre vai ser a minha intenção. A minha intenção sempre vai ser ganhar as pessoas pra que elas tenham uma experiência nova, mudança de vida...

Com o objetivo de converter, as primeiras "festas" foram feitas, justificando-se por

traço exclusivamente evangelizador. A atividade não podia ser definida como de produção

cultural destinada a obter ganhos; portanto, a legitimidade era dada em decorrência do

espaço no qual a "festa" era executada: o interior do templo. Além disso, era envolvida por

oração porque tratava de “transformar” os “jovens”. Isso se daria por utilizar uma

linguagem conhecida e favorável ao início de um compromisso religioso e de certa prática

no interior do grupo. Destacando a intencionalidade, o pastor atribui ao evento um caráter

de exclusividade. Isso ocorreria em esfera propiciadora da segmentação e da formulação de

117

novas atividades, de movimentos, de grupos interdenominacionais (Mafra, 1998) e o

registro de novas igrejas. Diante de sua proposta, entendida como inédita, e sua ida para

outro grupo, restava saber se o projeto persistiria e se, em outros empreendimentos, esses

traços seriam mantidos.

Edinho, promotor da equipe Zoação Gospel (ZG), cuja atuação é na área de Bangu,

Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, observa o caráter da "festa" do seguinte modo:

Porque sempre tem festa: poxa, Gospel Night - a festa! Zoação Gospel - a festa! E as pessoas, às vezes, não entendem. Por que a festa? Porque biblicamente, eu fui ver na Bíblia; no passado existiam vários tipos de festa que o povo ali se alegrava. Então, eu e os outros, baseados na Palavra de Deus, na Bíblia, nós vimos que havia, existiam essas festas, existia festa no tabernáculo, festa. Então, nós pegamos, no século que nós estamos vivendo hoje, a mesma festa, mas só que nos dias de hoje. Por exemplo, naquele tempo era um tipo de festa; naquele tempo eles precisavam do vinho pra se alegrar porque Jesus, na festa de casamento havia acabado o vinho; então, eles ficaram naquela situação: acabou o vinho. Então, Jesus transformou a água em vinho porque no passado trazia alegria pro povo. Alegria como se fosse uma festa hoje sem música. Já viu uma festa hoje sem música? Então, nós pegamos o quê? Pegamos essa festa do passado, trouxemos ela pra hoje, mas só mudamos o ritmo da música. Porque ... Jesus, acabou o vinho e todos chamaram Jesus; na festa de casamento não podia faltar vinho porque era o vinho que traz alegria pro povo. Então, nos fazemos a festa do passado, com costumes do passado e transformamos ele pra hoje. Por exemplo, o vinho que traz a alegria, nós pegamos o quê? A música que traz a alegria pra festa hoje. Márcia: Como que a música traz essa alegria? Que alegria é essa da qual você está falando? Edinho: A Bíblia diz que a alegria do Senhor é a nossa força. Muitos dançaram: Míriam dançou, Davi expressou a alegria dele através da dança. Então, nós pegamos essa música evangélica que tem uma letra, que tem uma origem e começamos a trazer ela pro nosso meio; pra nós nos divertirmos sem precisar, por exemplo, eu não preciso sair, eu não preciso sentar numa mesa, embora eu sou livre, mas essa não vai me trazer uma alegria permanente, vai me trazer uma alegria momentânea. Eu..., por exemplo, eu tô desesperado, então, eu entro no bar pra beber; aí começo a esquecer tudo, mas sendo que eu vou pra casa, eu vou deitar e vou acordar e vou continuar com os mesmos problemas. Então, através desse esquema de música, através de Nosso Senhor Jesus Cristo, nós temos uma alegria que nunca acaba, entendeu? Nós curtimos as músicas, tamos ali, tamos alegres; não vamos beber; quem bebe quer o quê? Quer esquecer; muitos vão pro bar pra beber e pra esquecer. Ela usa a droga por causa da dificuldade, ela usa, ela tá desesperada e começa a usar drogas, começa a beber pra esquecer o seu problema, esquecer o desemprego, esquecer tudo, mas sendo que vai acabar aquilo ali ela vai continuar com os

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mesmos problemas, com as mesmas dificuldades. Nós não. Nós estamos ali nos divertindo, vamos sair dali e vamos continuar alegres.

Edinho, ao recorrer à fonte escrita conhecida e reconhecida dentro de seu grupo

religioso, apresenta uma interpretação com a finalidade de explicitar a origem e legitimar

sua iniciativa. Termina por enfatizar certa disposição entre os presentes na fundação do

cristianismo e, desse modo, indica a base da orientação da conduta, expõe sua fonte de

legitimação: a Bíblia. A disposição é explicitada no estado vivido por todos e, assim,

atribui-se ao “vinho”, proveniente da água, a atmosfera da reunião. Ao se aproximar e ao se

distanciar, o depoente registra ser a “alegria” a base do elemento capaz de alterar a

disposição mental dos presentes, mas não temporariamente. Ao afirmar “nós estamos ali

nos divertindo, vamos sair dali e vamos continuar alegres”, Edinho pontua ter o povo

originário, com a transformação da água e com a dança, experimentado o estado corporal e

mental atualmente perseguido. Hoje ele pode ser alcançado com o uso de substâncias

químicas, de bebidas que ajudam “esquecer”, e conduzem à “alegria”, mas, com o término

de seu efeito, retorna-se ao estado originário marcado pelos “mesmos problemas, com as

mesmas dificuldades”.

A “alegria” apontada é alcançada e mantida com a crença na capacidade do divino

em transformar. É possível falar com Deus porque a música e a dança liberam das

limitações pessoais, instalam o extravasamento e a possibilidade de trilhar um caminho de

comunicação com o divino, também de adesão às manifestações culturais incentivadoras

do desprendimento, do alcance de estado distinto do controle diário (Durkheim, 1989: 198

e 456)97.

Para Charles, da equipe GN, a reunião promovida:

É um espaço de resgate. Fora essa atividade toda, com a igreja que eu tive, eu passei um tempo, mesmo na Igreja Presbiteriana, em que eu visitava algumas danceterias, com algumas casas, foi uma época meio rebelde com 14, 15 anos, não queria muita coisa com igreja, né? Então, eu comecei a

97 Sobre a cerimônia religiosa e festividades, Durkheim estabelece que “... tem como efeito aproximar os indivíduos, colocar em movimento as massas e suscitar assim estado de efervescência, às vezes até de delírio que não deixa de ter parentesco co m o estado religioso. O homem é transportado fora de si mesmo, distraído de suas ocupações e de suas preocupações ordinárias. Assim, de ambas as partes, observam-se as mesmas manifestações: gritos, cantos, música, movimentos violentos, danças, procura de excitantes que restaurem o nível vital etc... o mesmo se dá com as cerimônias religiosas que determinam como que uma necessidade de violar as regras normalmente mais respeitadas”.

119

freqüentar... graças a Deus, foi uma fase curta, né? Então, eu comecei a visitar alguns bares, algumas festas, e você só vê destruição. Aparentemente traz algum prazer momentâneo, mas depois você fica numa fossa danada. Então, quando eu olho pro Gospel Night, eu olho pra alguma festa, eu acho que aquilo ali é uma estratégia de resgate. Você pegar um jovem que, mesmo que às vezes seja cristão, mesmo que às vezes esteja no gospel, às vezes tem uma vida destruída. Está vivendo um Evangelho de fachada. Uma vida sem compromisso. Sem ter nenhum envolvimento com a igreja. Então, o que acontece? O Gospel Night é um tipo de resgate. Aquele jovem, que não quer nada com a igreja, que está com a vida destruída, a gente pega esse cara e resgata. Coloca ele no lugar certo. Eu vejo o Gospel Night como uma atitude de resgate. Tirar o cara da lama, tirar o cara que está se prostituindo, da mina que esteja fazendo alguma coisa errada. O cara que esteja se drogando, tirar e colocar no lugar certo. Embora seja uma loucura danada. Toda a estrutura, toda a correria, a noite de sono que a gente passa sem dormir, mas a recompensa é muito grande. Você encontra o jovem na rua. O cara fala: ‘pô você se lembra de mim? Não lembro. ‘Eu tava na festa, vocês oraram por mim. Eu estava afastado...’ Então, esses testemunhos são muito grandes. Pessoas que estavam afastadas, pessoas que estavam longe, e hoje estão na igreja, estão na família, estão casados; pô, é legal.

Ao partir de uma fase de sua vida, o depoente observa o aspecto exclusivista do

elaborado por ele. Com a oposição entre “destruição” e “resgate”, este adquire sentido

moral. Há o destaque da conversão, da condução ética, pois o objetivo da iniciativa é, após

a conversão, tirar ou impedir certas práticas. O primeiro sinal de reconhecimento é obtido

com a manifestação de alguém ao experimentar a ação moralizadora do grupo. A

transformação, a alteração de um modo de inserção no mundo, no primeiro caso, estaria

relacionada ao ânimo exaltado e, em segundo lugar, passa a ser ressaltado o aspecto moral.

No depoimento de Charles aparecem situações comprovadoras da eficácia: “tirar da lama”

(...) “o cara que esteja se drogando”.

L´Ton, da equipe Gospel Beat (GB), destaca o lúdico e sublinha a disposição do

público, não contrário a isso. Para ele,

O meu público é o público evangélico, enfim. Mas eu percebi o seguinte: o público evangélico que consome o rap, que consome o CD tem, posso dizer assim, tem vinte por cento, por exemplo, até consumiria Apocalipse 16. São aquelas coisas mais, pô, são negros que já têm uma cabeça, entende? As dificuldades, passaram por dificuldade, esses consomem. Agora o restante, os oitenta por cento, é o seguinte: “Vim para cá para curtir! Já passei a semana toda na maior ralação, cara! A melhor coisa do mundo é vir para cá, para esse baile gospel, curtir, estar feliz e dançar tranqüilo”. Pô, você tem que adaptar a música para esse pessoal. Senão,

120

os DJs mesmos, os próprios DJs gospels, não vão tocar. Ele não vai tocar uma música que a pista murcha.

Nem todos pensam assim. Integrante da mesma equipe, Nega coloca não ser os

empreendimentos entendidos a partir da opção de entretenimento, do lúdico ou de encontrar

algo capaz de expressar as angústias ou as experiências vividas, conforme L´Ton enfoca.

Há oposições entre trabalho/responsabilidade e diversão/relaxamento e delineiam os

valores, as idéias e o modo de conceber e atuar no mundo. O contraponto de L´Ton é

realizado por Nega; ela termina por ressaltar a evangelização. Assim, a entrevistada diz o

seguinte:

Eu acho que eu tenho que mostrar ao mundo; mostrar as pessoas a palavra do Senhor; juntar aquelas pessoas pra falar do amor de Cristo. Nem uma pregação, mas músicas; mostrar um ambiente saudável, mostrar um ambiente em que você pode estar conversando sem precisar de prostituição. Sem precisar utilizar drogas. E mostrar que ainda tem lugares assim. E mostrar às pessoas o amor de Cristo. Através dessas músicas, através do meu testemunho, através da minha vida. Isso é o principal, mas também pra ter um local para a juventude cristã estar junto sem precisar estar no mundo.

Sobre a dimensão do entretenimento, Nega afirma:

Não é só um lugar de lazer, mas sim um ponto de evangelização das pessoas. Através do meu testemunho. Através da minha vida. A pessoa vê, “poxa, essa menina não é igual às outras meninas. Não é igual às outras meninas. Aquele rapaz é diferente”.E você acaba conversando com aquela pessoa. E você vê a diferença no dançar. No jeito de falar... a pessoa sente. Então, você mostra isso pra pessoa. Então a pessoa fala: ‘Pó legal...’, ‘que você vai fazer domingo? Ah, domingo tem uma coisa legal pra fazer’. Você pode chamar a pessoa pra igreja. ‘poxa, vocês são assim? Eu achava que era diferente...’ muitas pessoas que eu vi acontecer assim. Eu tenho amigos que veio para igreja através de um baile. Através até de uma festa. Num tá num evangelismo estrategicamente diferente, uma coisa bem diferente que você coloca. E pra mim a festa é para isso. O propósito nosso é isso. Você estar mostrando pra pessoa um evangelizar aquela pessoa através da festa, mostrando o amor de Cristo por aquela pessoa.

Ao entender a “festa” a partir de dinâmica entre o entretenimento, a evangelização e

a exemplificação moral – medida voltada à prevenção por afastar os freqüentadores de

atividades consideradas não adequadas -, Nega, como L´Ton, explicita o ponto de distinção

121

e permite o reconhecimento de atividades. Há momentos nos quais ela sobrepõe a

evangelização ao divertimento, pois não somente a música, mas o “testemunho” de vida

sublinha a interação e também constitui o ambiente descontraído de evangelização. No

entanto, a efetivação não deve promover a impulsividade e, para isso, existem homens e

mulheres preparados para a atuação moral e física. A “festa” figura como um canal propício

ao contato e ao reconhecimento da divindade; portanto, coloca noções de sagrado e de

experiência de fé das quais a dança e a música fazem parte. A formulação de Nega ressalta

a exemplaridade, a moralidade apta a definir a reunião e igualmente a inscrição feminina

(Gillian, 1996:233) entre os formuladores de black music gospel.

Até aqui foram apresentadas as concepções de promotores. Porém há a visibilidade

de uma personagem que, no entanto, ainda não teve voz para compor o quadro de

compreensão sobre a “festa”: seus freqüentadores. Ynah, uma freqüentadora de “festa” e

ouvinte de black music gospel, diz:

Foi uma gama de pessoas que se insurgiram contra o tradicionalismo. O próprio tradicionalismo das igrejas. Já foi tema dentro da própria igreja, nos grupos jovens. É certo ou não é: ‘ah, porque jovem evangélico não pode chegar em casa de madrugada’. E a gente sempre foi contra isso de certa forma; contra entre aspas.

Lena, outra freqüentadora, fala sobre a “festa” e observa que “... o objetivo da festa

gospel é esse: é você encontrar amigos, encontrar amigos de outra igreja, comunhão, lazer,

adoração, evangelismo ... Tudo isso”.

As duas depoentes ressaltam algumas possibilidades de interação e de diversão entre

os adeptos. Conforme Lena, o momento de alegria é condição para encontrar o divino.

Tratar-se-ia de alternativa ao “tradicionalismo”, mas sem haver a abdicação de oposições,

pois é feito tudo, ou quase tudo, considerado próprio de um modo “jovem” de ser. Afirma

“o objetivo da festa gospel é esse”, sem a inscrição do que seja visto como impróprio.

O que transparece em todos os depoimentos é que as manifestações musicais podem

propiciar divertimento, jogos e interações. Tudo isso, conforme os promotores e os

freqüentadores, coloca a dimensão característica de modo de participação e de expressão de

fé do qual a música e a dança são componentes. A oposição com o modo de vida não

submetido a princípios religiosos é apresentada a todo instante, pois é ressaltado um

122

discurso moral. Há a busca pelo “resgate”, pela “conversão” para um modo de vida

balizado como próprio do cristianismo.

No mesmo jogo de oposições, os promotores e os freqüentadores apresentam

distinções interna e externa. A atividade é peculiar porque acreditam estar em oposição com

o “mundo” e isso é assegurado com rearranjos não contemplados por líderes religiosos. Em

sua oposição, na manutenção da coisa sagrada e separada, a emoção e a alegria são aspectos

significativos, seja quando enfatizam o encontro com os amigos, seja como via de

“adoração”98. Seria a insurreição “contra o tradicionalismo”, como afirma Ynah?

Como demonstrado por Edinho, ao remontar uma história considerada não somente

reveladora de um passado, mas de um tempo presente e de um futuro - porque um modo de

vida adequado, caracterizado pela alegria, poderá ser assegurado-, a “festa” deve evidenciar

uma atmosfera de transformação (na qual os elementos humanos e não humanos são

transformados - da água ao vinho, do pecador ao redimido, do solitário ao socializado, do

sofredor ao ser feliz), de integração e de excitação. Não se trata da excitação do desejo.

Esse seria mantido distante, como entre os metodistas, cuja ênfase estaria no amor maternal

e sacrificial (Thompson, 1987:250, 251). Na “festa”, são estimulados os sentidos e o

relaxamento a partir da música, da dança, da brincadeira, descortinando uma antiga tradição

popular de vigência do riso, de manifestações cômicas. No entanto, esta tradição em

determinado momento histórico foi expulsa e condenada em nome da seriedade que veicula

a verdade, a veneração e o saber oficiais (Bakhtin, 1999:62-65).

L´Ton, promotor da equipe GB, observa ser a reunião concebida como a “pista do

céu”, pois ali é possível “divertir agradando a Deus, com pureza e segurança...” 99. Portanto,

diversão é o aspecto definidor do ato de fé, excludente da sobriedade, da contrição e do

sacrifício como requisitos para a inserção e a participação em um grupo de crença

(Thompson, 1987:249). A ética protestante, seja em seu traço racional e diligente, seja pela

manifestação de sinais e cultivo da melancolia (Campbell, 2001), é redefinida ou, quem

sabe, substituída por outra, porque não cabe na “pista do céu”, no local onde se dança, e

98 Para exemplificar o clima de “louvor e adoração”, na edição do ENLP, em 2002, os cantores se apresentavam e as canções executadas por mais de 20 minutos, um refrão era repetido longamente, até que as pessoas começassem a falar, alterando a voz, dando “aleluias”, curvando-se ao chão, outras sentadas com as cabeças abaixadas, outras choravam; os dirigentes falavam que os corações ficariam “quebrantados” – tomados pela presença de Deus. 99 Conforme e-mail “espalha pra geral”, recebido em 11/03/04.

123

ocorre a ligação entre o divino e o mundo dos homens. Os promotores estabelecem

determinado estilo de ação e definem o realizado e a inserção de elementos e valores antes

excluídos por certa ética corrente no meio evangélico (Weber,1998; Thompson, 1987;

Campbell, 2001).

A partir do exposto, apesar das visões e de concepções diferentes das regras do meio

religioso, a subversão dos promotores é relativa, mesmo ao ser ressaltado o entretenimento.

L´Ton se movimenta e constrói uma intercessão entre a esfera religiosa e a do divertimento,

apostando na figura do DJ como o condutor da atividade voltada, antes de tudo, ao

fortalecimento de fronteiras e da peculiaridade do grupo de crença, como indica Nega.

Porém, ele fala em uma adaptação da música a fim de oferecer “alegria” à “pista” e, assim,

assegurar a felicidade e o divertimento. Opõe, portanto, o encontro e a realidade do

trabalho e da vida.

Os dois relacionam elementos contrastivos, mas revelam a dinâmica entre

objetividade e subjetividade. L´Ton, ao falar do público da “festa”, focaliza a força do

ambiente, capaz de agir sobre o freqüentador, ciente do cansaço, das cobranças cotidianas,

mas sabe poder ali vivenciar emoções e satisfações100. O depoimento de Lena corrobora

com essa posição, pois ir à “festa” é ficar alegre e “dançar com Jesus”. Esses são os

atributos para garantir o “estar feliz e dançar tranqüilo” e, assim, adiciona “pô, você tem

que adaptar a música para esse pessoal”, haja vista no lugar transitarem as emoções e, por

isso, o DJ pode ter uma “pista murcha” e não assegurar o “divertimento”, como coloca

L´Ton. A diferença está em Ynah porque apresenta a reunião como manifestação da

emoção. Por sua vez, Nega fala em “testemunho”, em “exemplos” e, assim, enfatiza o

meio como a esfera da qual emanam as emoções, o “amor de Cristo” não sentido, mas

evidenciado. Tudo fica centrado na exemplaridade do modo de vida, em certo controle

emocional. Para os outros promotores, a “festa” não é a alegria pela alegria, mas uma força

de moralidade.

A tensão entre os promotores não é algo inovador, pois a disciplina puritana

também compreendia o controle dos sentidos, do carnal e do afastamento de manifestações

100 Segundo Campbell (2001: 106, 107), diferentemente do mundo contemporâneo, no qual as emoções surgem no interior de cada um e os impulsionam à ação, na cultura pré-moderna as emoções seriam próprias a “aspectos da realidade” em atuação sobre os viventes. Seria um estado de obrigatoriedade diante da emoção do momento, capaz de intervir, levar à ação e ao estado de excitação.

124

culturais, caracterizando a “cultura dos sentidos” (Weber, 1996:88-96). O ascetismo não foi

uma máxima seguida na mesma medida por todos os grupos protestantes, porém foi

adotado mais fortemente por uns e menos por outros. O metodismo e os batistas se

juntariam ao tema cada qual a seu modo. O aspecto sentimental e também a relação com o

mundo tinham peculiaridades de acordo com a noção de salvação e de bem-aventurança

presentes em cada grupo religioso. No puritanismo, o prazer, a distração e a emoção foram

colocados sob determinado controle, vistos negativamente, repercutindo, juntamente com a

noção de trabalho como meio de agradar a Deus, como modo de demonstrar a “veracidade

de sua crença” (Weber, 1996: 130-134).

Mas não é só. Um estilo de crença e de demonstração de fé poderia ocorrer pela

conduta da vida sob direção cristã e poderia compreender viver como os eleitos bíblicos ou

ter uma vida prática ordenada, de ações éticas, direcionada à obra de Deus. Campbell

(2001:143-195), cujo interesse está no “sistema de consumo” e não na produção, segue um

caminho distinto do realizado por Max Weber. Campbell apresenta a existência de uma

outra ética protestante, não somente voltada a destacar o trabalho e a acumulação de

riqueza, em decorrência de atividade conscienciosa. Observa de o puritanismo ver com

reservas a vaidade, a ostentação, bem como o divertimento, as festas e os romances. A

sobriedade deveria ser admitida na organização coletiva e individual da vida a fim de

submeter o desperdício, impedir o uso irracional dos bens, guiar a conduta dos homens,

inclusive as recreações consideradas adequadas.

Curiosamente, as afirmativas apresentadas pelos entrevistados não circunscrevem

novidade, pois festas, jogos, brincadeiras estariam inscritas no mundo cristão. O rigor e o

controle moral e físico, pertinentes a uma noção de ordem, foram construídos e aplicados

ao corpo e a mente dos europeus a partir de determinada fase (Thompson, 1987:291-347;

Burke, 1995:231-265). Este ponto será desenvolvido adiante.

125

Outras presenças e inscrições

Parte da peculiaridade da black music gospel é expressa na “festa” e traz à tona uma

tensão no tocante ao comportamento, Isso, portanto, afeta a mentalidade religiosa e a

tradição. O investimento em certa produção musical, a confecção de CDs e organização de

reuniões marcam uma associação voluntária, informal, e seus elaboradores oferecem um

conjunto de bens e serviços poucos difundidos. No entanto, divergem daqueles definidos

como “música gospel”, haja vista resultarem de iniciativas registradas na esfera oficial.

Todas, inclusive a black music gospel, apresentam profissionais e pastores que alteram a

produção de bens e serviços e, com isso, formam o público voltado aos eventos (Ortiz,

1980; Bourdieu, 1992; Oro e Steil, 2003).

Os leigos e os pastores inclinados à formulação e à consolidação dessas e de outras

propostas musicais surgem como mediadores e disponibilizam diversos bens musicais e

religiosos. Com as elaborações, os formuladores musicais veiculam “mensagens” de

conteúdo político, cultural e religioso. São, então, os transmissores (Martín-Barbero,

2003:282, 283); como eles, existem outros formuladores e disseminadores de serviços e

bens. Escritores, artistas, empresários e artistas podem ser reconhecidos institucionalmente

e apresentam produção posicionada entre o Evangelho e os fiéis (como também os

prováveis “novos” fiéis). São vários aqueles em atividade; integram e apresentam o fazer

religioso, direcionam “mensagens” e atitudes aos adeptos que esperam receber e

internalizar. Igualmente existem promotores de “festa” sem reconhecimento institucional e

consideram também participar como transmissores de um conhecimento e de um modo de

vida representados por dirigentes religiosos legitimados. Nesse sentido, integram uma

“cadeia de intermediários” (Burke, 1995:98,99) com a produção de materiais sonoros,

musicais, imagéticos e escritos.

Conforme está sendo demonstrado, existem proximidades e distanciamentos entre o

apresentado por mediadores em atuação entre segmentos de fiéis e entre a cultura religiosa

e a cultura popular. Desse modo, realizam movimentos de combinações com o posicionado

fora do grupo de crença. Ou seja, buscam por expressões e técnicas musicais e sonoras

hábeis ao favorecimento da abordagem de temas, muitas vezes, não contemplados por

outros mediadores, como os pastores e os elaboradores da “música gospel”. Reconhecem

126

ser as atividades e as músicas viáveis ao divertimento, à interação e direcionadas às novas

gerações de adeptos, portanto, registram experiências com a esfera religiosa e com

expressões da cultura popular.

Os promotores de “festa” não possuem oficial e profissionalmente o saber religioso

e agem distintamente daqueles que encontram o apoio de dirigentes de igrejas e de

empresários. A contribuição à distinção é o fato de os promotores atuarem em tempo

parcial, haja vista realizarem outras atividades com as quais asseguram suas sobrevivências.

O exercício de uma profissão não impede adquirir “renda complementar” (Burke,

1995:126) com as “festas” e as canções produzidas. A dupla entrada não é favorável ao

reconhecimento como artistas por aqueles que dominam o canal de produção, de

divulgação e de comercialização. O monopólio de serviços religiosos e a organização de

atividades complementares, determinadas institucionalmente, podem não fazer parte do

horizonte de atuação dos promotores, porém eles entendem, bem como aqueles interessados

nos serviços e bens oferecidos, disponibilizar algo fundamental aos participantes.

Apesar do fazer distinto daquele empreendido por pastores e outros atores

legitimados, difusores da distinção e contrários da mistura e da efusão emocional, ou de

produtores de “música gospel”, os promotores de “festa” não formam um bloco

homogêneo. Há formuladores de bens em conformidade ou em tensão com as regras

vigentes. Pensaria haver distintas mediações. Elas surgiriam em decorrência das propostas

estabelecidas por cada equipe, por produtores musicais, por pastores. Assim transcorre o

diálogo com as regras.

As produções efetivadas e a relação mantida com as convenções permitem apontar

para a existência de tipos de profissionais. Haveria o “integrado”, o “inconformista” e o

“ingênuo”. O primeiro seria o conhecedor das regras; o segundo agiria sem se submeter às

convenções. Por fim, haveria o ingênuo, aquele que não tem formação técnica, desconhece

as diretrizes e os membros do mundo artístico (Becker, 1977).

A tipologia apresentada por Becker pode contribuir para compreender as atuações

daqueles voltados ao fazer musical. Sabe-se que eles têm por proposta atingir fiéis e

aqueles ainda não convertidos. As composições devem ser efetivadas em diálogo com as

condições e as regras estabelecidas, tal como ocorre com a “música gospel” reconhecida no

meio evangélico.

127

Apesar de existirem promotores e equipes na criação de ofertas musicais e

religiosas, os tipos registrados não são rígidos, pois existem constantes negociações no

sentido de tornar o feito algo aceitável. As apresentações dos promotores de “festa” e de

uma encarregada da produção de programa musical permitiram visualizar os caminhos

percorridos e as propostas construídas. Os arranjos – relacionados às condições de ação

dentro e fora do meio evangélico - indicam, para alguns, ser possível mesclar um tipo no

outro, ou, então, um ser justaposto ao outro.

O pastor Manga, envolvido com a “música gospel” e precursor das "festas" no Rio

de Janeiro, poderia ser um inconformado, mas é preciso ir um pouco além. Manga afirma

ter iniciado a “festa” no interior do templo e seu foco era converter os “jovens”, porém agiu

assim porque o desenho da Igreja Renascer permitia. Portanto, sua ação e sua rede de

colaboradores sempre estiveram "coladas" aos direcionamentos institucionais. Conhecedor

das regras, muito comprometido com o meio evangélico, produziu, sim, uma variação, mas

sem violar as determinações formais, pois esta sempre esteve calçada na visão oficial;

assim, Manga seguiu a diretriz de expandir o trabalho religioso.

Já Antônia era antiga produtora de “baile funk”, de peças teatrais e musicais;

converteu-se depois de enfrentar certos acontecimentos e tentar suplantar as adversidades

colocadas em sua vida. Debita seu retorno como produtora musical às orações de alguns

membros da Igreja Universal do Reino de Deus – IURD – e incentivos recebidos por parte

da liderança da igreja de adesão. O resultado foi o lançamento de um cantor, a organização

e a efetivação de um empreendimento destinado a forjar e a promover novos artistas e a

“música gospel”. Antônia e Manga apresentaram aos seus grupos de fé atividades

consideradas eficazes por ampliarem os objetivos formais. Visto por esse prisma, eles

seriam atores integrados não somente pela proposta e dedicação, porém por agirem

conforme as convenções próprias de seus pertencimentos institucionais.

Ao observar o trabalho da equipe Gospel Night (GN), as inovações propostas

pareciam estar incorporadas ao seu grupo, caso seja considerada a iniciativa de Manga e a

disposição da Igreja Renascer. Então, a inovação da equipe não foi iniciar a "festa", mas

levá-la para o exterior do templo e locá-la em clubes e similares. As atividades não seriam

dirigidas por pastor, mas por membros do grupo, talvez uma inversão do objetivo de

Manga. Nesse caso, houve alteração e a GN realizou algumas mudanças e isso foi feito

128

conforme a relação de seus promotores com as regras e os acordos vigentes. Isso adquire

consistência com os DJs porque inovaram e pouco se aproximaram do contexto secular. A

diferença está no movimento de a equipe ser reconhecida e, portanto, tornar suas inovações

aptas ao meio.

Esse movimento entre ações implementadas por organizadores integrados ou

inconformados revela não ter sido o meio evangélico a visualizar a importância da

proposta, mas ela se insinuou, a todo instante; ou melhor, seus organizadores conceberam e

implementaram bens e serviços, por vezes, opostos aos direcionamentos oficiais; porém

entendem contribuir para a ampliação da evangelização e, por enquanto, esperam por

reconhecimento. Uma demonstração disso é o fato de os promotores designarem a GN de

"ministério".

A equipe Gospel Beat (GB) segue a inovação da Gospel Night (GN) e desenvolve

uma proposta considerada por alguns líderes e pelo público como integrada ao meio

religioso. Nega entende a “festa” como exercício de fé e aponta o “amor de Cristo” como o

principal aspecto a ser alcançado por freqüentadores. Conforme ela, seria um

empreendimento integrado, porém alguns componentes não restringem seus trabalhos ao

meio evangélico e procuram outro público e, até mesmo, criam um intercâmbio entre os

componentes.

A Soul de Cristo (SC) também leva artistas do meio evangélico para tocar em

eventos seculares. A rede integrada por seus componentes viabiliza a equipe apresentar

uma proposta tida como "pioneira" por tocar na questão racial e tentar discuti-la, pois

consideram que isso não seja contemplado por evangélicos e na sociedade mais ampla.

Portanto, as expressões musicais adotadas estão direcionadas a trabalho com dupla entrada:

religioso e político. Nesse sentido, os integrantes da SC, principalmente o articulador TR,

comporiam o tipo inconformado. Esse é o conhecedor das regras vigentes, estabelece redes

de ações, de colaboradores e tenta adquirir um público específico e distinto de outros

encontros. Não obstante, as ações e as inovações implementadas buscam por um

reconhecimento da esfera artística e também da religiosa.

Os depoentes apresentam um ponto em comum quando destacam o objetivo em

atrair ou impedir a saída de fiéis, fazem parecer uma fria estratégia de convencimento. Não

obstante, há aspectos reveladores do fenômeno religioso. Ao ver uma “festa”, a primeira

129

impressão é a de considerar que os atores estão subvertendo a organização dos grupos

evangélicos, mas talvez não seja somente isso.

É corrente na sociedade brasileira a existência de acusações de intolerância

direcionadas aos evangélicos diante da religiosidade e da cultura do outro. Assim, as

atividades organizadas podem estar em uma esfera na qual parece não incentivar inovações,

as transformações das coisas existentes, mas não se trata disso. Os filiados negociam, de

modo eficaz, com os regulamentos existentes e podem levar à inscrição de novos bens e

serviços. Estes podem povoar central ou perifericamente o meio evangélico; no primeiro

caso, está a “música gospel” que conta com artistas, compositores e intérpretes, todos

balizados por gravadoras e pastores. Diferentemente, a produção de black music gospel

registra a construção de canais próprios de confecção e execução. Apesar da ênfase no

divertimento e na interação, é possível observar que os organizadores apresentam em seus

discursos algo próprio dos posicionamentos dos dirigentes religiosos: o proselitismo e a

condução moral.

Os objetivos, os percursos e as atuações das equipes são momentos de destaque da

feição do meio evangélico brasileiro. Tal como ocorre com as igrejas, a expansão ocorre

com os movimentos de ruptura e continuidade: igrejas surgem e empresas são formadas.

Isso é dito porque as apresentações e os depoimentos abrem um canal para visualizar e

entender as novas possibilidades de organização, de manifestação de fé, de sociabilidade e

de pertencimento. De acordo com Brandão (2004), falar em religiosidade no Brasil

constitui exercício de conhecimento da geografia de fé e de crença devido às tênues e

móveis fronteiras entre as tradições religiosas. Com isso, pode-se deparar com ativa e

complexa trama de significados, de “sensibilidades de fé” e de novas vias de filiação. Isso

pode estar relacionado aos arranjos mais fechados ou não no tocante à aquisição de fiéis.

A proposta do próximo capítulo é continuar a abordar a “festa” e mostrar seu nexo

com o entretenimento e sua distinção com o meio evangélico, recorrendo à literatura sobre

“festa” e cultura popular. Serão visualizadas as tensões, os arranjos e os debates pertinentes

as iniciativas aqui focalizadas. Nesse sentido, duas visões serão contempladas: aquela que

enfatiza a aliança e outra que sublinha o perigo.

130

Capítulo 3

As revelações da apoteose No capítulo anterior destaquei as composições das equipes promotoras, as relações

estabelecidas para efetivação dos encontros e como a “festa” não é concebida somente

como entretenimento, pois é feita a evocação a Deus e os presentes buscam estabelecer

contato sem, no entanto, tomar a atitude de contrição. Ainda assim, seus organizadores não

abdicam de certos componentes e tentam construir um meio de recepção pautado na

sensibilidade auditiva. Tudo isso exige outra direção estética, emocional, valorativa e moral

com a finalidade de saber que em uma “festa” o inusitado e o surpreendente têm lugar

porque os gestos, o som ensurdecedor, o falar alto e os movimentos abruptos, em

decorrência da dança executada, podem e adquirem sentidos.

Antes de abordar a black music gospel ainda me deterei na “festa”; como foi dito, é

espécie de atividade promovida e voltada à sua execução. Convém afirmar que essa

manifestação não é isolada, pois há propostas similares em vigor em outros estados do país.

Elas ressaltam um modo específico de celebração religiosa; nesse caso, o depoimento de

um pastor e DJ, especializado em black music e envolvido com a organização de

“baladas”101, contribui para explicitar mais sobre aquilo tratado até o momento. Ele afirma:

“Acreditamos que a carne também deve louvar ao Senhor” e, mais adiante “as baladas e

shows de música gospel foram a solução para trazer o jovem de volta à religião”. Por fim,

lê-se: “Deus se adequa a cada momento”102.

O material transcrito é parte de matéria jornalística realizada sobre modalidade de

atividade musical destinada aos adeptos de igrejas evangélicas. Ao me deparar com ele,

dentre muitos que encontrei durante o trabalho de campo, indaguei-me acerca das diversas

inscrições musicais e percebi que elas indicavam a vigência de arranjos, de posições

ocupadas e de sentidos produzidos por alguns empenhados com a elaboração e outros

envolvidos com a participação103. Isso permite contrastar o modo evangélico de ser

101 Assim são designadas certas atividades musicais voltadas à dança. 102 Semerene e Cunha . “O DJ é o meu pastor”, revista Capricho, 30/11/2003; p.38-41. 103 Ao falar em produção e em recepção não afirmo serem as musicalidades desenvolvidas a partir de posições rígidas, polares e excludentes. Há trânsitos entre os componentes e, portanto, as posições são intercambiantes. Assim, pode-se encontrar participantes de elaboração musical e/ou de atividades destinados

131

presente no imaginário popular e oposto ao desenhado no depoimento do pastor e DJ.

Desse modo, surge o ponto de relevância. As atividades são formuladas e organizadas por

fiéis, apresentam certa estruturação, sentidos atribuídos por envolvidos e, finalmente,

revelam algo do meio no qual são elaborados.

Neste capítulo será visto como a dimensão do divertimento é feita presente e

permite emergir outro aspecto do cristianismo. Ele compreendia festividades, brincadeiras,

jogos, teatros e outras práticas, porém mudanças alijaram tais expressões da vida religiosa.

Retoma-se como esse protestantismo teve de lidar com a sociedade brasileira marcada por

disposição ao encontro e à mescla, porém a medida tomada foi ficar distante das práticas

culturais populares. Por fim, procurar-se-á descortinar as peculiaridades da black music

gospel e da “festa”: a aliança e o perigo, como visões antagônicas em vigor diante da

celebração. Isso atravessou o segundo capítulo, esteve submerso, e permite refletir sobre as

transformações, sobre as tensões estabelecidas, sobre os sentidos compartilhados e, por

vezes, tornados conflitantes diante de práticas e de interesses específicos (Sahlins,

1999:187).

Fantasias, descontração e seriedade A dinâmica das reuniões investigadas é marcada por execução musical, por

realização de jogos (isso é comum no trabalho desenvolvido pela equipe GN e consiste na

realização de perguntas/respostas e existir premiações) e participação de alguém (pode ser

integrante da equipe ou convidado) com inserção na hierarquia de alguma denominação. A

finalidade é proferir “mensagem” considerada, por todos, possuidora de cunho religioso. Os

promotores podem privilegiar a presença de cantores, de DJs e as reuniões podem ora

divulgar o trabalho de um, de outro ou dos dois. Além disso, é realizada a “festa à fantasia”

ou gospel night fantasy, como é designada. Trata-se de reunião marcada por exibição de

fantasias e premiação daquela considerada mais original.

Pela brincadeira ou pelo prêmio, os grupos, as duplas e os solitários marcavam a

noite; os brincantes chegavam de carro, de ônibus ou transporte alternativo, com a

à execução musical. Do mesmo modo, há produtores que, em certo momento, colocam-se na posição de receptores, freqüentadores de eventos e compradores de CDs.

132

disposição em exibir personagens que podiam ser o de empregada doméstica estilizada, um

grupo de músicos mexicanos, embalagem de biscoito de polvilho, box de banheiro,

jogadores de hockey, donzela ao lado de uma “mulher das cavernas”. Esse seria o momento

do freqüentador.

A composição deixava a dimensão da diversão muito mais evidente do que em

outros momentos. Todos ocupavam o salão, circulavam, conversavam e dançavam, quando

queriam, as canções tocadas por DJs. Isso era feito sem que houvesse atividade

previamente definida para os foliões. Não havia composição de músicas e lugar

determinado para desfile, como ocorre no carnaval. Mas os presentes escolhiam a fantasia a

ser premiada.

O que era realizado no salão, na qual muitos dançavam, revelava ser algo marcado

por anulação temporária das diferenças (Da Matta, 1979:35-66); impedia a diferenciação e

o reconhecimento. Do mesmo modo, o salão não instalava a segmentação – camarotes ou

área privada – por parte dos organizadores, pois era ocupado e, próximo ao palco e as

caixas de som, a maioria dançava; em sua periferia, os presentes conversavam e/ou

ingeriam alguma bebida. Os integrantes das mais diversas denominações compartilhavam

do momento que propiciava o encontro entre sagrado e profano. O salão também passava a

ser uma “estrutura aberta”, que compreendia a participação indeterminada, os desfiles e as

brincadeiras. Os elementos que constituiriam organização considerada oposta, ou seja, a

diversão do carnaval, associada ao profano, às festas e deuses "pagãos”104, ali estavam

presentes. Assim, com a fantasia, as personagens dançavam e desfilavam; os presentes

pareciam comunicar algo entre si e estavam pouco interessados no que os de fora poderiam

entender.

As fantasias permitem a indistinção, mesmo dos iniciados, e compõem um estado

liminar, indefinido, porque colocam a ausência de indicadores de status, de papel ou classe

social e, assim, permitem ao portador tornar-se indistinto como qualquer “neófito ou em

processo de iniciação” (Turner, 1974:117, 118). No carnaval brasileiro, a fantasia viabiliza

ao público realizar “conjunção de domínios” a partir da soma do papel vivido no cotidiano

com aquele (s) imaginado(s). O ato da “brincadeira” permite suspender as linhas que

separam e compartimentalizam o social. Assim, figuras periféricas, de mundo não vivido, 104 Rodrigues. “E vai rolar a festa”, revista Enfoque Gospel, edição 19, ano 2, 2003, p52-58.

133

fazem-se presentes - mesmo estando fora ou nos “interstícios” do sistema. Na “festa”, como

no carnaval, ocorre o encontro de figuras ímpares dançantes de modo a indicar ser ali

propício à mescla de “campos antagônicos e contraditórios”, pois uma donzela aparece

acompanhada por uma “mulher das cavernas”.

Essa combinação ocorre com as brincadeiras que, desse modo, são capazes de

relacionar o mantido separado pela vigência de regras sociais, de doutrina e moralidade

delineadoras do cotidiano (Da Matta, 1979:48-49)105.

Esse tipo de “baile” é propiciado por promotores, isto é, eles programam e esperam

o comparecimento de presentes fantasiados, mas isso não quer dizer que haja organização

formal dos momentos, não há a separação entre participantes e espectadores. Muito pode

ser alterado, até porque o centro é constituído por todos os freqüentadores e promotores,

empenhados em efetuar uma comemoração (Bakhtin, 1999). Os envolvidos ocupam

indistintamente o salão no qual as fantasias e as danças são vistas e comentadas por outros.

Além de dançar e brincar, sob a ação de algum promotor, tem lugar certa

competição com a finalidade de escolher a fantasia considerada a mais original. Nesse

momento, fica visível a distinção entre público e participantes. O primeiro deve selecionar,

sob o comando do apresentador, a fantasia. Esse é o instante de maior formalidade. A

“festa” não figura como pura diversão e, ao mesmo tempo, não é algo tão sério, pois,

mesmo quando não há ações determinadas, a organização pretende estabelecer momento de

descontração, de divertimento. A atividade evidencia o riso e a seriedade do planejamento

(Burke, 1995: 206-210)106. Poderia ser, então, algo intermediário e alocado entre o sério e

105 Da Matta (1979:52) coloca ser o carnaval, ao contrário do rito histórico, a festa que escapa do controle institucional por ser organizada voluntariamente. O cotidiano sofre alterações com a manifestação dos foliões sem ser preciso seguir roteiros, direções e esquemas organizacionais. Isso fica evidente na exposição do corpo ou a não prevalência de grupos elementares, pois quem “brinca” é o folião e é ele o único a decidir como será feito. Em tal momento, as inversões têm lugar e compõem os dias festivos. Assim, tudo considerado do domínio privado - pessoas, objetos, gestos, comportamentos - pode ser encontrado na rua, domínio do público e da impessoalidade. O estar na rua durante o carnaval contrasta abertamente com aquela do cotidiano, guiada por objetivos, pois “brincar”, “ver” o carnaval não são atos direcionados por interesse racional, mas pelo prazer, pela diversão e pela alegria. Da Matta ainda apresenta as peculiaridades da festa e da parada a fim de demonstrar o existente nesses dois atos públicos, que também explicitam a organização e a hierarquia da sociedade brasileira. 106 Burke ressalta que o carnaval constituía a peça desenvolvida por toda a cidade; nele, os atores terminavam representando diversos papéis durante o desfile. Isso compreendia a organização feita por confraria ou clube, portanto, mais formal sem que houvesse a imposição de “roteiro” ou ensaios determinando o apresentado. Assim, tudo poderia acontecer em clima de diversão e, nem por isso, deveria excluir a seriedade para fazer o desfile, a competição e a encenação de alguma farsa. Essas etapas não tornavam aquele momento algo sério e imutável e, muito menos, livre de qualquer compromisso.

134

a diversão, entre a rigidez religiosa e a leveza do entretenimento. O que pode ser esse

intermediário? Configura um novo modo de refletir, de se expressar e, por isso, distinto da

estrutura em vigência (Bakhtin, 1999:171-241). Então, seria algo novo e permitiria pensar o

mundo de modo diferente por seguir seu movimento de transformação107. Seria isso que

ocorreria na “festa”?

Distâncias, inovações e festividades Sobressai na “festa” a substituição do pertencimento contínuo pela associação

transitória que, porém, de forma duradoura, não substitui aquela constituída por vínculos de

pertencimento institucional. Muitos afirmam ir à manifestação por causa da alegria

experimentada. Ela ocorre mediante a ação do DJ, do pregador, do apresentador e do cantor

que operam os equipamentos, falam e cantam. Os efeitos por eles produzidos, como as

colagens sonoras, as alterações das batidas, acompanhadas por certos efeitos como luzes e

fumaças, retirados de seus contextos originais, passam a compor arranjos nem sempre

fechados e nunca definitivos. São flexíveis, pois instrumentos podem ser inseridos e outros

retirados; os significados também podem ser alterados. Por isso, tudo compõe a “festa” e

pode ser considerado “aparato ministerial” - e viabilizar o contato com o divino.

A reunião é vivenciada como continuidade do experimentado no serviço religioso

institucionalizado. Os freqüentadores, que saem de seus templos e vão à “festa”,

reconhecem certas capacidades nas palavras, nas músicas, nos equipamentos e em outros

bens apresentados e manipulados. Com isso, expressam ser possível encontrar Deus e não

ficar vulnerável ao que consideram os perigos do “mundo”: drogas em geral, criminalidade

e relações sexuais fora do casamento. Para os promotores, os equipamentos e a “festa”

107 Bakhtin, ao analisar a transposição de ordem social – da concepção medieval para outra marcada por idéias e sentidos mutáveis - toma certas imagens e indica que as festas e os jogos populares – com suas paródias das absolutas verdades eclesiástica e jurídica que marcariam a dinâmica entre morte-ressurreição - descreveriam uma “unidade contraditória”. Também exporiam o fim e o começo do mundo – trata-se de um fim começado e recomeçado à medida que há abandono da verdade ou da fé absolutas numa época. As imagens grotescas, cínicas e efusivas trariam o sentido, revelariam a organização, seria unidade popular surgida de modo próprio e não pela lógica e força da estrutura social, política e econômica. O corpo sentiria, desenvolveria e expressaria a mutação, a capacidade em criar linguagem e seriedade diferentes da predominante até então. Conforme o autor, ter-se-ia aberto o “caminho a uma seriedade nova, livre e lúcida”. O intermediário seria essa seriedade, o falar e o refletir um modo distinto da estrutura de pensamento em vigor para o qual o mundo e as ações eram concebidos a partir de concepção imutável. Fica visível, mas é preciso apreender a lógica desse intermediário para que se possa entender não ser simplesmente o inverso.

135

demarcam outra concepção de religiosidade. Nesse âmbito, a manifestação não é

caracterizada pela proposta de curas, de prosperidade material ou combate aos elementos de

outras crenças. Como aponta um organizador, tudo estaria voltado para o freqüentador

agradecer a “vida” e a “alegria” recebidas. Faz-se isso com danças e também com cantos

porque o retribuir não precisa ser com algo ou coisa da mesma espécie. Pode-se

compreender elementos distintos e, nesse caso, o cumprimento, o aplauso, a dança e o afeto

marcam momentos e são elementos de vínculos entre os presentes.

Convém demarcar que a “festa gospel” não é única atividade no meio evangélico

brasileiro que demarcaria a “alegria”, a dança e estabelece encontros com práticas

populares. Por exemplo, cito o bloco e o trio elétrico, ativados nos dias de carnaval, na

cidade do Rio de Janeiro, cuja finalidade seria a evangelização. O primeiro é vinculado ao

Projeto Vida Nova de Irajá (PVNI); já o trio elétrico é componente da Comunidade

Evangélica Internacional da Zona Sul (CEIZS).

O PVNI foi fundado entre 1988/89 e instituiu o bloco “Cara de Leão”, composto por

cerca de quatro mil componentes e sete alas. Há mais de 10 anos, o “Cara de Leão” desfila

em avenida no centro empresarial e comercial da cidade para atuar entre os foliões da

“festa da carne”. Já a Comunidade Evangélica Internacional da Zona Sul (CEIZS), surgida

na década de 1990, mantém um trio elétrico que desfila nas ruas do bairro do Flamengo.

Afirma-se ser acompanhado por cerca de mil participantes; nas palavras de seu líder, “a

gente fica pulando para mostrar a todos que também nos divertimos. Esta alegria

contagiante tem envolvido e restaurado muitas vidas, que atualmente têm servido a

Deus”108. Além desses casos, cita-se a “Escola de Samba Jesus Bom à Beça”, fundada em

1997, em Curitiba. Em 2001, a escola ganhou o desfile carnavalesco com enredo sobre a

odisséia bíblica. Os articuladores dessas iniciativas chamam atenção para a importância em

demonstrar a alegria que constitui a vida do cristão109. Isso pode evidenciar que ser

evangelizado não incorre na abdicação de gostos e modos de vida – lembremos de

Feliciano e de Francisco JC110. Desse modo, não há a cautela em conduzir ao isolamento,

108 Rodrigues. “E vai rolar a festa”, revista Enfoque Gospel, edição 19, ano 02, p.52-58, 2003. 109 Idem. 110 No primeiro capítulo, foram oferecidas reflexões acerca da produção musical associada aos grupos evangélicos no país, e, assim, vistas as histórias de alguns cantores em atuação e detentores de estilos e percursos distintos. Feliciano afirma ter se convertido e “abandonado” um modo de viver e de cantar, a

136

em combater às práticas de diversão, como ocorreu outrora (Burke, 1995:231-265;

Thompson, 1987:300-3002).

As recentes propostas e efetivas ações evidenciam o investimento de alguns na

relativização dos princípios comportamentais e morais na busca pela disseminação bíblica

(Almeida e Rumstain, 2003). Os depoimentos explicitam as peculiaridades. Por exemplo,

lembremos da afirmativa do pastor e DJ ao afirmar “acreditamos que a carne também deve

louvar ao Senhor” ou quando Ynah fala sobre a “festa” e a black music gospel e afirma ser

algo “contra o tradicionalismo”; também quando Edinho explicita que a “alegria”

experimentada é “verdadeira” e somente sentida pelo fiel.

As concepções apontam que o meio produtivo de músicas e de eventos seria

caracterizado pela capacidade de ser igual e diferente das manifestações musicais

seculares; essa ambigüidade revelaria a produção de sentidos por nova mentalidade, por

outra noção de sagrado, outro modo de lidar e se envolver com as questões religiosas.

Seriam os fluxos de bens culturais, os rearranjos de expressão que conduzem ao desmonte

de antigos dualismos (Sanchis, 1994; 1995: 134; Velho, 1997:143)? Talvez isso explique

sua proliferação, igualmente explicite sobre as críticas direcionadas a alguns eventos

musicais.

Ao relacionar iniciativas como o bloco carnavalesco e a escola de samba, é possível

situar uma pergunta sobre aquilo visto até o momento. Assim, qual seria a peculiaridade da

“festa” em relação ao meio evangélico? Foi indicada a ambigüidade, mas ocorre a tentativa

em demonstrar a vigência de estado vivido, distante de outro desenrolado no cotidiano, e

marcado por efusão de sentimentos, enquanto o dia a dia não é.

Assim, os momentos de comemoração e de entretenimento também revelam os

aspectos, o contexto de criação, além de vivências de crença e fé no interior de grupo

religioso. Ela surge do empreendimento de alguns e disposição de outros e denota a

transformação do grupo. Essa não ocorre porque apresentam objeto, mas porque as ações

motivam novas idéias e outros sentidos são atribuídos às categorias em circulação (Sahlins,

1999: 184). Tudo isso decorre dos encontros estabelecidos por leigos próximos de outras

dimensões da vida, interagem com vários produtores e bens culturais que, em outros

técnica e os instrumentos; por outro lado, Francisco JC, não convertido, mas aponta para uma vivência pautada pela conjunção entre experiências de vida e princípios religiosos.

137

momentos, estariam fora do grupo. Assim, seus limites evidenciam os pontos de porosidade

e, portanto, de um ser evangélico em constante (re) construção.

As atividades aqui relacionadas sublinham o encontro entre a esfera religiosa e

outras manifestações culturais, configurando a transformação do meio evangélico. O

protestantismo enfatiza a existência do “mundo”, âmbito simétrico oposto, do qual deve

manter distância; parece não ser bem isso o que ocorre. A tensão é recorrente, haja vista a

busca pela distinção que inclui o controle moral, das condutas, o desapego material, o

desinteresse por práticas culturais e o predomínio do Evangelho na condução do cotidiano.

Seria isso peculiar somente ao protestantismo em vigor na sociedade brasileira?

Reformas religiosas e combate da alegria Para entender esse quadro, é preciso visualizar a implantação do protestantismo no

Brasil como um modelo ímpar de trabalho missionário. Diferentemente do registrado no

catolicismo, no qual havia o uso de expressões musicais e manifestações populares na

educação e nas festividades religiosas (Alves, 1980; Almeida, 1976), as igrejas protestantes

mantinham distância da cultura local e impunham rígidas normas de conduta (Barbosa,

2002; Nascimento Cunha, 2004). A ação protestante incluía a distância de expressões

musicais populares (Nascimento Cunha, ibid.). Exemplos podem ser encontrados em

escritos de missionários como o trabalho de Kidder e Fletcher (1941). Nele, encontra-se

visão crítica sobre a condução da vida cotidiana, sobre as manifestações populares e

religiosas (Barbosa, 2002; Kidder e Fletcher, 1941). Isso seria exclusivo aos missionários?

O que havia no protestantismo que poderia incentivar a fraca tolerância? Havia algo na

sociedade brasileira favorável ao quadro?

Talvez seja viável conhecer primeiro alguns momentos pertinentes ao

protestantismo na Europa.

Segundo Burke (1995: 231-265), no início da Reforma protestante, as canções e

outras manifestações populares eram contempladas por dirigentes religiosos para

estabelecer comunicação com as populações111; porém, isso foi perdendo espaço. As

111 Para Burke (1995), as canções populares estiveram presentes no período de instalação do protestantismo, onde o salmo não era o único cântico presente. Lutero e outros pastores “empregavam o método da Contrafaktur” quando “os hinos eram modelados por canções populares e adaptados às suas melodias. Nem

138

campanhas religiosas reformistas (protestante e católica) foram disseminadas e tiveram

momentos e acentos distintos, conforme os seus realizadores, as regiões e as épocas. O

destaque passou a ser dado à “ética dos reformadores”, pautada na decência, na ordem e no

autocontrole, em oposição à “ética tradicional”, com ênfase na generosidade e tolerância

das práticas populares.

As contestações dos reformadores tocavam em dois pontos; o primeiro, de ordem

teológica, sustentava que as manifestações seriam sobrevivências de práticas “pagãs”,

“blasfêmias”, “ofensivas” e “escandalosas”. Vigoraria a preocupação em estabelecer a

separação entre “sagrado” e “profano”, definindo e estabelecendo modo de lidar com o

religioso. O segundo, de foco moral, era formado por críticas às ações consideradas

excessivas porque exaltavam a “embriaguez”, a “luxúria”, a “violência e a vaidade”, com a

prevalência do “mundo” e da “carne”. Por esse prisma, a Reforma protestante era

caracterizada por preocupação moral e ressaltou uma atividade pautada na “eliminação”.

No entanto, em diversas regiões, o teatro, os rituais e as festividades persistiam entre os

fiéis protestantes, podendo ser utilizadas para ridicularizar o dirigente católico, marcar a

ineficácia das “superstições” e da ação do clero católico.

Com o avanço da Reforma, no século XVII, as práticas culturais foram sofrendo

constantes ataques de “reformadores mais rigorosos”. Nessa tarefa, os “pregadores leigos”

também contribuíram para a renovação dos costumes, atacando o divertimento popular. O

século XVIII foi marcado pelo prosseguimento de campanhas reformistas e o empenho do

clero em disseminar comportamento regulamentado e pautado na Palavra em favor da

reforma moral e dos costumes. O alvo seria composto por canções populares, pelas feiras,

pelas mascaradas, pelas peças, pelas baladas e pelo carnaval. Portanto, as preocupações

seriam de ordem secular - uma “reforma dos costumes” - do que especificamente litúrgica e

doutrinária.

Apesar das empreitadas de reformadores, não se pode esquecer que parte do público

foi se tornando mais letrado e, portanto, menos voltado às imagens e mais atento à Palavra. todos os reformadores aprovavam a contrafação, mas Lutero praticava-a de bom grado”. O recurso à música popular era, então, algo recorrente no início da Reforma, demonstrando não existir a distância entre a nova prática religiosa e as expressões do povo. Também indicava ser alguns reformadores mais tolerantes e esse seria o caso de Lutero, pois não se opunha tanto às manifestações populares, inclusive o carnaval. Para os reformadores, o teatro e as festas teriam lugar apto à comunicação com o público, pois, com eles, o povo lembraria e aprenderia o visto e o ouvido – como os sermões e as leituras bíblicas.

139

Também o avanço da revolução científica sublinhou o distanciamento da cultura popular

por parte do clero, dos burgueses e da nobreza em distintos lugares e épocas. Alguns

exemplos estariam na adoção de línguas, na proximidade com o conhecimento formal e na

aprendizagem de dança considerada mais refinada. O distanciamento das “classes

superiores” do considerado popular ocorreu com a interiorização de certa moral. Ela

defendia uma noção de ordem e de autocontrole e, não por nada, confortável ao ambiente

protestante. Não obstante, eram efetivadas impressões e distribuições de livros, livretos e

folhetos e o aumento da alfabetização também foram fatores favoráveis para a preservação

de contos e de canções populares.

Thompson (1987:291-347) afirma que, a partir do século XVIII, houve a imposição

de disciplina social e moral aos trabalhadores e disso a assertiva religiosa não esteve

ausente. Dos púlpitos ressoavam reprovações direcionadas às manifestações esportivas, às

festividades e outras formas de divertimento da população. Mas, o período não viu o

desaparecimento de entretenimentos considerados “mais rudes” – lutas de animais e

pugilismo. O século XIX, não foi diferente, ataques e proibições eram direcionados para as

atividades esportivas, aos festivais ou tudo aquilo que compunha as “tradições pré-

industriais” e vivenciadas pelos operários. A imprensa fazia sua parte, criticando as

manifestações e as práticas esportivas tradicionais.

O combate implementado pelo metodismo contribuiu para colocar uma “nova

disciplina” adequada à economia fabril, estimulando o desinteresse e o desaparecimento de

locais para recreação. Com a campanha, as práticas esportivas, consideradas violentas e

tradicionais, cederam lugar a outras mais sedentárias e adequadas à atividade laboral.

Soma-se a isso, o estímulo para uma vida distanciada daqueles não guiados por valores

religiosos. Apesar do quadro, a resistência marcou presença, porém a operação disciplinar

atingiu o operário “médio inglês”, figurando como mais metódico, condicionado pelo

“ritmo da produção” e menos afeito aos atos populares e considerados violentos.

O cenário descrito pode contribuir para entender a peculiaridade do protestantismo

no Brasil, por ocasião de sua penetração, no século XIX. Os missionários mantinham

distâncias das práticas culturais e religiosas em solo nacional112, onde a religião estava

112 O Brasil, no século XIX, foi marcado por empreitada protestante mais consistente, porém existe anterior presença dessa expressão religiosa. A dificuldade de penetração do protestantismo estava presente na empresa colonialista formada por holandeses calvinistas, no século XVII. Essa presença revelou ao Novo Mundo

140

fortemente ligada às instâncias social e política. A atuação protestante passou a combater o

catolicismo e a desprezar as demais manifestações religiosas e culturais ocorridas nas áreas

urbana e rural do país. Tratava-se de incômodo com aquilo proveniente do encontro entre

os diversos grupos culturais e, principalmente, com a configuração que o catolicismo

passava a ter. A reprovação das manifestações sincréticas alcançava o catolicismo, pois os

missionários entendiam que as práticas do catolicismo romano seriam marcadas por

desconhecimento bíblico de teólogos e de fiéis. Estes conheceriam precariamente os

verdadeiros princípios cristãos, vivendo uma prática religiosa perpassada por cerimônias,

por pompas, por ritos, santos e por festas (Barbosa, 2002: 61,64). Portanto, os fiéis e o

clero católico estariam perdidos em crenças e em práticas que remontavam ao cristianismo

pré-reforma visível na importância dada à água benta, às imagens, às relíquias e às

benzeduras.

Diante de tal cena, caberia aos protestantes evangelizar e converter os brasileiros. O

peso da ação dos missionários e de seus instrumentos de evangelização estava em tudo que

ressaltasse a Bíblia: cânticos, sermões e distribuição de exemplares. Os protestantes

criticavam a Igreja Católica e o modo de vida registrado na sociedade brasileira,

evidenciando a visão sobre o “bem e o mal” que os orientava. Isso teria funcionado como a

medida de relação entre os protestantes e as expressões religiosas e culturais existentes no

Brasil. Diante da igreja vigente no país, de capacidade em construir formas ritualísticas

complexas e, ao mesmo tempo, lidar com os traços das religiões africanas no catolicismo,

os missionários entendiam que “Si nós considerarmos o Brasil do ponto de vista religioso,

ficaremos admirados da soma de ignorância e superstição que aí domina” (Kidder e

Fletcher, 1941:170).

O desconforto diante da peculiaridade da cultura e da religiosidade nacionais não

seria restrito aos protestantes estrangeiros. Por razões outras, as criações populares e o

sincretismo religioso atrairiam outros olhares igualmente pouco tolerantes. Havia uma

concepção de nacionalidade que enfatizava aquilo registrado no país. Vejamos.

Segundo Pereira de Queiroz (1988:62-78), na ocupação do território brasileiro, a

igreja católica esteve presente no desenvolvimento da sociedade, porém, é pertinente

prática religiosa exclusivista e menos universalista, o que dificultaria a adesão e a acomodação das religiosidades aos “ideais cristãos” seguidos pelos holandeses (Holanda, 1993:35-36).

141

destacar, o catolicismo não era algo homogêneo, havia distinções conforme a ocupação

territorial: interior e litoral. As áreas mais interioranas do país, ocupadas também por

colonos portugueses, a suposta preservação de crenças e dos ritos do “catolicismo ibérico”

também compreendeu discreta criatividade em decorrência da ausência do clero. Figuras,

lugares e agentes alimentaram as práticas religiosas locais. Para a autora, o exercício

estabeleceu hierarquia ao compreender os “agentes de culto”. Eles seriam possuidores de

autoridade e aplicados em alimentar as manifestações de fé. Os agentes podiam ter

recebido o saber no grupo familiar ou em posterior aprendizado com alguém “mais

experiente”; havia os andarilhos, realizadores de voto de pobreza e celibatários que podiam

organizar confrarias e solicitar recursos para a construção de locais não profanos; por fim,

encontravam-se aqueles detentores de maior reconhecimento por modo de vida e realização

de milagres, reconhecidos como os “eleitos do Senhor”, com muitos seguidores. Oposto a

esse catolicismo, vigorava outro, desenvolvido no litoral, nas cidades, que contabilizava a

presença efetiva do clero, guardião de práticas oficiais do catolicismo. Tanto as práticas

religiosas “romanas” como as “rústicas” desenhavam a heterogeneidade religiosa.

A configuração religiosa e cultural brasileira não era problema para os fiéis, mas

esteve presente nas reflexões de alguns intelectuais brasileiros em momento designado de

“negação da identidade nacional”, por volta da segunda metade do século XIX. Para a elite

intelectual e o clero, a preocupação em desconsiderar o que fosse oriundo das “diferenças

culturais” indicaria investimento no considerado próprio de “homogeneidade cultural

interna”. Seria a defesa da emergência de “sentimentos nacionais”, no interesse pelo

“desenraizamento dos traços culturais africanos”, forjando a identidade do país em

conformidade com a “civilização ocidental” (leia-se européia). Posteriormente, as primeiras

décadas do século XX, a visão foi mudando diante da preocupação com os “sentimentos

nacionais”. Manifestos marcaram a exaltação da integração de expressões culturais

produzidas por povos diversos. Daí se desprenderia o desenvolvimento e a manutenção de

sentimentos de nacionalidade, questão candente na sociedade brasileira. As transformações

culturais e religiosas decorreriam de nova disposição diante de componentes culturais

142

distintos, e a mistura e a transformação seriam reconhecidas como partes de algo singular: o

“ser brasileiro”113.

Apesar da transformação da concepção sobre a cultura nacional, os grupos

protestantes aqui aportados, mesmo tendo encontrado, em certo momento, atmosfera

intelectual menos divergente, continuaram a sustentar uma visão de mundo baseada na

distinção, na separação das coisas e das manifestações populares. Entendia-se existir um

meio religioso e fiéis livres daquilo desprivilegiado, posto ser parte do “mundo”.

Acontece de a sociedade e o campo religioso serem refletidos a partir da noção de

sincretismo. A discussão sobre sincretismo aponta para interações entre grupos sociais

basilares na construção da nação (Da Matta, 1983). Contudo, a noção de sincretismo foi

tomada para falar em “mistura” e confrontar com aquilo pensado “puro”, indicando a

confusão que atravessava a sociedade. Porém, outra compreensão é possível; ela permitiria

falar em relações e novos sentidos. Daí tomar o conceito para pensar a sociedade brasileira,

onde, diferentemente de Portugal, marcado por acumulação e referência local, teve lugar

algo com características próprias com o não enraizar, a ruptura com o constituído com o

grupo local, sua persistência e história. Para Sanchis (1995), no Brasil, teria havido

confluência entre portugueses – direcionados pelas ações da Igreja e do Estado -, os

indígenas e o terceiro grupo também retirado de sua base topológica e social: o negro. A

mescla resultante expressaria os “encontros transformadores” entre os três grupos e

proporcionou uma porosidade identitária com as multiplicidades de ser. Religiões africanas,

indígenas e o catolicismo e, mais tarde, outras inscrições, como o budismo, as seitas

orientais e os pentecostais, deixam evidentes as convergências entre os grupos religiosos.

Os “encontros transformadores” proporcionaram os “cruzamentos de identidades

religiosas” processados na sociedade brasileira, não ficando, porém, restritos ao âmbito

institucional. Para o autor, fiel e instituição constituem dois níveis analíticos do exercício

sincrético. Ambos apresentam distinções relacionadas ao cotidiano do fiel e outra que

113 Exemplos são encontrados nos manifestos de Oswald de Andrade e de Gilberto Freyre para os quais o país seria pensado a partir da cultura nele produzida. Assim, Andrade (1972:5) diz: “o carnaval do Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança”. Freyre (1996: 61) diria que: “... Mas como noutras artes, as três grandes influências brasileiras e de sua estética são a portuguesa, a africana e a ameríndia, com as predominâncias regionais assinaladas”.

143

descortina articulação viável aos arranjos capazes de tensionar ou diversificar o campo

religioso.

O lado protestante - reconhecido por marcada oposição ao diferente, sendo fechado

e distante de qualquer projeto de combinação - tem evidenciado outra feição. Há casos de

igrejas constituídas com a inserção, pela oposição, de elementos oriundos de outras

tradições religiosas como, por exemplo, o caso de ataque aos cultos de possessão, mas esses

são centrais na construção do neopentecostalismo. No nível institucional a ligação entre

cultos de possessão e o neopentecostalismo pode ser vista com reservas, porém na

dimensão pessoal algo diferente ocorre. Isso pode acontecer por ela fornecer ao detentor

reconhecimento no interior do grupo familiar e de vizinhança, com a procura pela cura e de

contrafeitiçaria (Birman, 1996). Além da constituição denominacional, o trabalho de

membros e as relações estabelecidas anteriormente contribuem para a alteração do meio,

pois os fiéis, em suas localidades, (re) elaboram os fundamentos de seu grupo de

pertencimento religioso (Sanchis, 1995; Birman, ibid.).

Também a via de entendimento do que se produz e se configura na América Latina

não passa por abordar os mecanismos de separação e o que deles resulta. Para Canclini

(1997:304), seria adequado visualizar e refletir as mesclas, os cruzamentos culturais.

Portanto, a segmentação e a hierarquização que excluem pessoas, áreas e expressões

artísticas cedem lugar a algo em circulação. Por esse prisma, afirma o autor, “as culturas já

não se agrupam em grupos fixos e estáveis e, portanto, desaparece a possibilidade de ser

culto conhecendo o repertório das ‘grandes obras’”. As composições, as mesclas passam a

compor as coleções e as construções feitas e vivenciadas.

(Re) encontros religiosos e produtivos As reflexões aqui contempladas permitiram visualizar um aspecto do protestantismo

a partir de outro ângulo: a festa seria um componente do cristianismo que, porém, foi

paulatinamente exilado do protestantismo. A apresentação de meio formado por distância

de práticas culturais populares e religiosas encontrou correspondência com certa camada da

sociedade brasileira igualmente avessa àquelas manifestações. Ao lado disso, o controle

moral e emocional foi difundido e contribuiu também para caracterizar e orientar os grupos

e os adeptos do protestantismo no Brasil.

144

A configuração protestante registra a coexistência entre a visão de controle moral e

de distância cultural e outra demarcada por possibilidades de negociação. Assim, a reflexão

sobre sincretismo é favorável para compreender as inscrições de black music gospel e de

“festa”. Estas integrariam, ao lado de outras iniciativas, a segunda via, pois amplificam o

nível da vivência e, portanto, a dimensão dos “encontros transformadores”, seja do adepto

diante de nova crença, seja dessa mediante a ação do fiel capaz de ressemantizar e também

mesclar elementos e, como está sendo indicado aqui, não somente de religiões distintas. A

formulação dos promotores é viabilizada por confluências entre elementos e visões capazes

de expressar os estilos musicais e marcar determinado modo de inserção no mundo. Trata-

se de um critério de organização que delineia a crença e o religioso a partir de constantes

reconstruções. Os “encontros transformadores” ficam explícitos com as experiências e as

percepções, vigorando com a música114, com a crença, com outros leigos ou líderes

religiosos, com a política, com grupos defensores da valorização cultural e com a

tecnologia. A partir disso, certas iniciativas permitiriam indagar sobre as diferenças entre os

evangélicos e aqueles presentes em “baladas”, “shows” e “festas”.

Os entrevistados têm enfatizado a “festa” como esfera de comemoração e de

distração. Um exemplo é o pastor Manga que transformou a nave da igreja ao colocar

“luzes, com DJ e com banda tocando ao vivo, mas sempre com uma mensagem, uma

pregação mesmo”; do mesmo modo, Edinho fala de reunião peculiar, de um tempo, pois no

“passado existiam vários tipos de festa que o povo ali se alegrava”; L´Ton destaca o

entretenimento, o relaxamento, pois a “pista não pode murchar”. O templo, até então, era o

lugar da contenção, da ausência de excessos, caracterizado por modo de estar no mundo

diferente do existente nas festas populares (Alves, 1980). As atuações de DJ e de banda

musical, no lugar dos sacerdotes, manipulando luzes e equipamentos, devem ter a mesma

eficácia que as palavras e os aparatos utilizados por pastores. O diferencial está naquilo que

circunscreve a “festa” e atividades semelhantes.

O anteriormente ausente do universo sagrado e religioso passa a fazer parte dele; ou,

como dizem alguns, seria um retorno a situação anterior? Talvez seja isso que Edinho 114 Transformações e construções em outros âmbitos também decorrem de encontros. No caso do samba, a interação entre sambistas e intelectuais, o surgimento de rede de relações e de arranjos foram fundamentais para estabelecer ligações entre pontos da cidade e apresentação do samba como música brasileira (Vianna, 1995).

145

queira expressar ao falar da “alegria”, mas, no caso, sua formulação possibilita refletir uma

proximidade com uma visão religiosa protestante anterior a reforma moral, dos costumes -

e antenada com a concepção industrial. Os depoentes evidenciam não a inversão da

organização do meio religioso, mas a retomada de algo há muito abandonado, porém

argumentam a partir dos textos bíblicos. A partir disso, explicitam que o ausente passaria a

ser presente, passando-se da leitura de textos à manifestação emocional, da austeridade e do

autocontrole à descontração, ao desprendimento e ao tempo da festa e do riso, assim, saindo

do tempo marcado pela sobriedade religiosa (Bakhtin, 1999; Burke, 1995).

O outro lado que pode ser visualizado nos eventos propostos está ligado diretamente

ao destacado por Edinho e Charles, mas não somente por eles. A partir do entretenimento,

buscam englobar o freqüentador em meio moral; suas falas ressaltam o “conjunto de

instruções” peculiar ao meio evangélico. Esse investimento no controle também está

presente no trio elétrico da CEISZ, no bloco carnavalesco Cara de Leão e também na

Escola de Samba Jesus Bom à Beça, quando demonstram a possibilidade de outro modo de

vida no qual diferenças e ambigüidades transcorrem nos dias de carnaval e de festa quando

as ruas e as passarelas são ocupadas agora por fiéis atentos em arregimentar outros para sua

crença. Do mesmo modo, os clubes, as boates e as casas especializadas em comemorações

figuram na agenda daqueles em busca da disseminação de valores do cristianismo.

A escola de samba, o bloco carnavalesco e a “festa” colocam elementos pertinentes

sobre a especificidade dos evangélicos na atualidade. A musicalidade, as brincadeiras, o

destaque ao emocional e ao corporal exemplificam as muitas atividades efetivadas. Elas

podem parecer exóticas diante de outras em vigência, porém podem contribuir para

construir o retrato de segmento de cristãos. Os materiais apresentados retratam as distinções

entre as equipes, de suas propostas e preocupações no sentido de fornecer à “festa” o

reconhecimento do grupo religioso. De outro lado, a realização dos eventos é marcada por

elementos próprios às equipes, como as experiências musicais, religiosas e sociais dos

promotores. Tudo isso é formado por atividades distintas e complementares e, desse modo,

permitem a associação – seja para o entretenimento, seja por objetivo religioso – para a

qual a música e a dança são elementos básicos. Com elas, pode haver o escape do cotidiano

e das regras sociais do grupo religioso como contribuir para excitar e distrair (Durkheim,

1989:456).

146

O que há nas reuniões? Alianças A manifestação, ao ser visualizada por algum tempo, permite a impressão de o

momento para oração ser menor do que aquele voltado às outras manifestações. Essa não

seria a visão mais adequada, pois, para os envolvidos, a atividade constitui algo que

ultrapassa a diversão. Os depoimentos coletados evidenciavam estar diante de momento

peculiar para os presentes – mesmo em posições diferenciadas, como organizadores e

freqüentadores. O salão, a pista de dança, a ensurdecedora canção integravam um todo

composto por desdobramentos planejados e espontâneos – fundamentais à composição da

reunião.

Esse todo fica evidente nas edições do projeto Explosão Gospel (EG), elaborado

para a descoberta de intérpretes de canções, abertas com a oração realizada pela promotora

que, ao enfatizar a presença de Deus no local, dirigia breves “louvores”. O mesmo pode ser

observado entre os concorrentes no momento da apresentação. Também no Encontro

Nacional de Louvor Profético (ENLP), realizado anualmente e caracterizado por

apresentação de cantores e pastores, busca-se demonstrar a vigência de um “tempo de

profecias”, de “avivamento” marcado por operações divinas com a transformação da

sociedade. Há a exaltação a Deus por meio de exclamações, canções, choros, balbucios e

danças115. Os componentes não podem ser subtraídos devido os sentidos decorrentes

atribuídos à evangelização e à “adoração”.

Na “festa”, há a aparente ausência desses sentidos, caso seja ressaltado o

entretenimento. Todavia, a observação revela que aqueles e outros elementos estão também

presentes e formam o arranjo já descrito. O pregador, durante a madrugada, diz “... neste

local Te adoramos e oferecemos nossas palmas” – palmas, assobios e gritos eram

registrados – e tudo prosseguia embalado por montagem sonora. Ela depois marcava o

retorno às danças e à música. Um componente da equipe GN, ao apresentar o CD Gospel

Night I, afirmava o compromisso de todos e a importância da música, da dança e da

brincadeira para o ouvinte ficar apto a receber alguma “mensagem”. Assim, passa a

115 No encontro do ENLP, em 2002, ocorreu uma oficina sobre a dança como instrumento de adoração, ministrada por professora de dança. A seu ver, a dança conduz a integração da “congregação para momentos de júbilo, edificação, libertação e restauração na presença de Deus” (Coimbra. “A dança no louvor e na adoração”, revista do Encontro Nacional de Louvor Profético, 2002, nº05, p.17.

147

experimentar um “... contexto, uma alegria que não acaba como a droga acaba, como o

efeito do álcool acaba e vai pra casa e fica triste. É uma alegria vinda diretamente do trono

de Deus e essa alegria não acaba nunca, é uma alegria eterna...”116.

O ato em questão é ressaltado por todos os promotores, pois entendem que os

presentes recebem exemplos de vida, esclarecimentos sobre a realidade, momentos de

descontração e, acima de tudo, algo vindo do divino e transformando a vida. Essa visão

embasa as associações engendradas e indica ser a “festa” direcionada a alguém. Como as

procissões e outras festas, existe o centro em torno do qual a aglutinação ocorre (Da Matta,

1979:92).

No centro da manifestação, estariam os atos de “louvar” e o de receber; ambos

sustentariam as múltiplas relações constitutivas da “festa” e tantas outras iniciativas. Eles

marcariam outra noção de tempo e espaço, porém não o tempo rotineiro, do trabalho, das

obrigações cotidianas. Não o espaço determinado somente por exigências do mercado, da

sobrevivência117. Seria o espaço oriundo da interação entre promotores e freqüentadores.

No entanto, essa não pode ser vista da maneira mais simples, como aquela entre produtores

e clientes; ela ocorreria entre o organizador e o ouvinte-dançarino, com seu estado de

ânimo alterado com o recebido. Tudo marcado com a alegria e o “louvor”.

A música e a dança são dois elementos que circunscrevem o binômio “louvar” e

“receber”, marca da manifestação religiosa e características das transformações. Nesse

sentido, existem outras ações como, por exemplo, a proposta de culto oriunda do

questionamento da distância das raízes culturais. Daí o registro da “música gospel”, da

black music gospel, de “ritmos populares no culto de adoração”118. Esse culto seria

caracterizado pela ligação entre os homens e outra dimensão por meio da música. Sobre

isso, Manga, atualmente pastor da Igreja Vineyard, articulador de diversas reuniões

musicais no país, diz o seguinte:

116 Fragmento do depoimento de Marcelo contido na faixa multimídia do CD Gospel Night – a festa - vol. 01, BV 029. 117 Como apontado no primeiro capitulo, em visão oferecida por líder religioso, ao observar ser o culto, a “adoração”, realizado distante do comércio, representado por um “vale”. No entanto, é oferecida outra noção de “mercado” como algo não totalmente profano, mas fundamental à produção e à circulação de bens sagrados. 118 Trata-se da consideração de alguns analistas protestantes presente na reflexão de Dorneles, Vanderlei – “Liturgia pentecostal rompe barreiras entre o religioso e o popular”, disponível em: www.musicaeadoracao.com.br/artigos/meio/liturgia-pentecostal.htm, acessado em 20/10/04.

148

Aí tem o Espírito Santo por trás disso, aí já é místico, aí já é uma coisa mais... é a ação de Deus tocando, agindo na pessoa, trazendo à lembrança algumas coisas e quando vem à lembrança e a pessoa se abre, ela encontra... Ela encontra... Ela encontra algo saudável. É terapêutico porque o Espírito Santo está agindo na vida da pessoa, a música como esse elemento.

Os ouvintes de “música gospel”, não freqüentadores de “festa”, observam ser a

música importante para a experimentação da “alegria” e o alcance de outro estado de

ânimo. Para Charles, da equipe GN, o “louvor” é marcado pela ligação entre homem e

Deus, para o qual:

A música é só um complemento disso. A essência da adoração é você ter Deus na sua vida, independente de música. O louvor na minha vida representa muitas coisas. Representa intimidade. Quando você está louvando você está adorando, você tem intimidade, você tem o direcionamento de Deus para muitas coisas. É a gratidão pelo fato de você está ali, você está vivo, você está respirando, você está podendo se alimentar. Várias coisas, é momento de gratidão, é momento de celebração, é momento de entrega, de busca... muitas coisas, na área de louvor, envolve tudo isso.

Todos destacam exatamente o “louvor” como o modo de agradecer a Deus e

também de sua atuação capaz de transformar e, portanto, receber reconhecimento, gratidão

e ser celebrado. E, nesse ponto, a “festa”, como apontado até aqui, constitui o momento de

celebração.

As iniciativas aqui tratadas tiveram início, são mantidas e viabilizam intercâmbio

entre os envolvidos. Os promotores de equipe se apresentam nos eventos de outras, e

tentam elaborar uma agenda sem conflitos entre as datas de apresentação de cada grupo. Há

cooperação entre eles119, mesmo que alguns não toquem ou cantem, podem auxiliar

fazendo orações durante os encontros, como registrado por Nega. Estas composições

indicam a vigência da noção de retribuição. Com ela, são estabelecidas associações que

119 Isso não quer dizer que não ocorram conflitos. Eles são negociados também com a abertura à integração de um grupo em alguma atividade. Isso ocorreu entre a GN e a SC diante de situação entendida, por integrante da SC, como conflito. A solução foi o convite feito aos integrantes da GN para participação na comemoração do aniversário do jornal e-black, ocorrida na quadra da Escola de Samba Portela, no bairro de Madureira, área não central da cidade do Rio de Janeiro. O objetivo era reunir artistas com trabalhos reconhecidos na promoção da “cultura negra”.

149

sustentam atuações e diálogos entre os promotores e deles com o público, com o sagrado e

com as lideranças existentes nas associações institucionalizadas.

Nesse sentido, Mauss (1974: 39-129), ao analisar os fenômenos presentes nas

sociedades e marcados por prestação e contraprestação, observa que as situações sociais

podem e são marcadas por específico vínculo entre os homens. Isso coloca a “obrigação de

dar”, de receber e também de retribuir. Diversas cerimônias evidenciam esses momentos.

Para o autor, a dimensão da troca não é definida somente por bens materiais, móveis ou

não, mas “... trata-se, antes de tudo, de gentilezas, banquetes, ritos, serviços militares,

mulheres, crianças, danças, festas, feiras em que o mercado é apenas um dos momentos...”

(Mauss, ibid.). Assim, portanto, as alianças são dispostas, vividas e celebradas, conectam

seres entre si.

Os promotores estabelecem alianças, rivalizam-se e cada equipe deve superar a

outra na “festa” realizada. Tenta-se algo diferente e capaz de eclipsar os outros grupos,

melhor ainda quando os integrantes estão presentes na reunião ou participam do leque de

atrações. Assim, uma equipe pode trazer o cantor ou o DJ mais renomado, outra reúne

vários DJs em disputa ou propõe baile à fantasia; tudo isso é constante. Tentam oferecer

aos presentes a melhor “pista”, a “festa” mais incrementada – efeitos e canções – para que o

“louvor” seja realizado. Como diria Mauss, a rivalidade é registrada na forma de presentes

oferecidos aos outros e devem constar, em decorrência, em convites recebidos e, assim,

ganham reconhecimento. Tudo isso demarca modo de comunicação compartilhado, vivido,

retribuído, estendendo o reconhecer aos participantes.

Há mais. O evento é concebido com a finalidade de ser canal para a

experimentação de “alegria”, da vida e tantas outras coisas dadas por Deus e deve ser,

então, “adorado”, celebrado com a disponibilidade em dançar e “receber” a “mensagem”

através da música. É estabelecida a relação entre quem faz a doação, possuidor de poder, e

o recebedor que recompensa com danças e cantos. A retribuição compreende o retorno de

tal poder ao doador de algum bem, de coisa, de objeto, de alegria, de vida ou o que seja.

Estabelece-se nexo não definido somente por aspecto material, jurídico ou religioso, mas,

acima de tudo, para Mauss, ele é de natureza espiritual, ligando coisas, pessoas e grupos.

Conforme o autor, a ligação entre homens e deuses é estabelecida pela dádiva; esta

pode permitir o acesso à paz, afastar os “maus espíritos”, como também alcançar a alegria e

150

a vida. No caso da “festa”, o que pode ser? O depoimento de Marcelo ressalta a “alegria”,

Manga enfatiza a atuação do Espírito Santo na vida do fiel e, por fim, Charles fala da

“vida” como dádiva divina. Os promotores e os festivos freqüentadores das reuniões

apontam a “música” e a “festa” como canais de “louvor e adoração”, como diria Pedro,

produtor musical, de comunicações “vertical” e “horizontal”, entre os homens e entre eles e

o divino. Desse modo, os dançarinos e ouvintes esperam obter coisas em um mundo no

qual não detêm o domínio. Aliás, são, para os envolvidos, grandes coisas porque ganham

“vida” e “alegria” duradouras. A comemoração é composta por música, por dança, por

alegria, por equipamentos, considerados “aparatos ministeriais ”120. São coisas importantes

para os envolvidos, pois os materiais são coisas sagradas que compõem a virtude da

manifestação; ela é integrada por tantos seres e todos conectados pela dádiva que informa e

constrói o ato “... que recebe e vomita ao mesmo tempo os espíritos dos jovens iniciados”

(Mauss, 1974:121).

Ao destacar a importância da música e da “festa” para a conexão homem - Deus, de

um lado, e, de outro, impedir que os fiéis se distanciem de suas igrejas, são visíveis os

arranjos, os rearranjos e as combinações efetivadas. Elas também evidenciam um meio

heterogêneo, formado por forças, às vezes, concorrentes, conflitantes. Então, a “festa”,

apesar da atração e de forças, motiva polêmicas, e pode configurar perigo para parte de

líderes religiosos.

Nova visão: força e perigo A reserva de líderes institucionalizados diante da “festa” não é algo recente. A

oposição às práticas populares de diversão é há muito registrada no âmbito religioso,

sempre ávido por distinção. No entanto, leigos inserem diversas propostas. O esperado

termina por acontecer: os eventos, nem sempre demarcados por corpo doutrinário, acabam

resultando de ações independentes, marcadas por músicas, danças, falas, objetos e

significados circulantes e precários, devido à apropriação. Esses são eficazes em

120 Conforme depoimento de Marcelo Araújo, na faixa multimídia, CD Gospel Night – A Festa , BV 029.

151

possibilitar ao freqüentador experiências distintas daquelas vividas no cotidiano e

consideradas “sobrenaturais”121.

A descrição da reunião, o destaque dado aos grupos e as relações estabelecidas entre

os envolvidos, permitiu ver as combinações, as mesclas e as inovações apresentadas. As

interações ressaltam as alianças e os vínculos; o receber e o retribuir delineiam

determinadas práticas. Porém, não é somente isso. O desenho da “festa” viabiliza

apresentar e demarcar relações e visão contrárias, apresentadas por líderes religiosos.

As atividades musicais e religiosas inscrevem tensão, pois as práticas promovidas

parecem instalar conflitos com aquelas estabelecidas na esfera oficial, pautada no

predomínio de sermões, de tratados e de textos das Escrituras, utilizados cotidianamente.

Em tal arena, prepondera a visão de conquista (da terra, de fiéis) com vistas a validar a

designação divina e o do “ritual da palavra” (Bercovitch, 1988). Ou então, com a reedição

do Pentecostes, outras igrejas foram organizadas e passaram a enfatizar menos a memória

escrita em favor de pertencimento a partir do “êxtase coletivo”. Esse compreende a

manifestação de dons, do Espírito Santo, como também a presença de danças, de orações e,

para alguns, o enfraquecimento da memória oficial (Rivera, 2001). Com proximidades e

distanciamentos, os encontros observados contemplam as articulações de leigos e também a

corporalidade. Ambos independem da manifestação de qualquer dom ou “sistema

educativo”, pautado nos livros, e dirigido aos líderes como também aos leigos (Weber,

1998: 364-368). Isso oferece panorama do nível religioso no qual a “festa” esteja presente.

As emissões de mensagens, as músicas e a dança são defendidas, por exemplo, pelo

depoimento do pastor e DJ que afirma: a “carne também deve louvar ao Senhor”. Por esse

prisma, os envolvidos parecem agir na contracorrente de líderes institucionalizados. Estes

defendem a ruptura com o “mundano” ou com aquilo considerado próprio de expressões

religiosas caracterizadas pela possessão. Apesar dos argumentos e tentativas de promotores

em validar a “festa” como “trabalho sério”, mesmo com o reconhecimento do público,

existem críticas e oposições diante da possibilidade de indistinção com o “mundo”. A

preocupação é com as fronteiras, com as possibilidades de quebra da distinção. Isso fica

121 A “festa” da GN exemplifica isso, principalmente, quando Francisco JC, ao ter por sustentação o trabalho do DJ, diz: “algo sobrenatural vai começar agora porque você está aqui (...) Esta noite, com vocês Gospel Night - tem gente santa do teu lado e você vai entender isso em liberdade”.

152

evidente no depoimento de Sérgio, da equipe SC, sobre o início de seu trabalho. Diz ter

comunicado sua iniciativa ao pastor de sua igreja e ao pai (também pastor batista). Obteve

por resposta o seguinte: “(...) Ele chegou e colocou a opinião dele, mas não colocou

nenhuma objeção. Desde que eu não vinculasse o que estava fazendo com a Igreja Batista

que eu pertencia (...)”. Mais adiante complementa: “Por não ser um evento comum, um

evento conhecido ... Pra eles ... Eles não gostariam de chegar e, de repente, colocar a ‘mão

no fogo’ por uma coisa que eles não conheciam. Por uma coisa obscura”.

Não ocorreu a tentativa em coibir a efetivação da atividade, mas havia o temor com

a possível associação entre ela e a instituição. A posição diante da “coisa obscura” reflete a

precaução de líderes com elementos não formulados no interior da arena institucionalizada,

fora de seu campo de influência. Em meio marcado por ações e decisões, tomadas por

dirigentes legitimados e seguidores da tradição, qualquer iniciativa, surgida fora desse

âmbito, não poderia angariar reconhecimento.

A situação apresentada por Sérgio não é algo isolado, pois há os defensores de

inovações e os partidários de posição contrária. Com eles, outros questionamentos

trafegam. Debatem se tais atividades contribuiriam ou não para a construção espiritual dos

membros, como exemplo, há o pronunciamento de pastor da Igreja Batista que afirma o

seguinte:

O jovem cristão tem que entender que novidades desse tipo são brechas espirituais das quais o inimigo de nossas almas se aproveita para enfraquecer a moral cristã. Hoje, a Igreja deve cuidar para que não haja uma inversão de papéis, e o mundo invade a Igreja com o seu modo de vida, ao invés de o modificarmos através dos valores do cristianismo. 122

Os depoimentos permitem visualizar a vigência de mentalidade de distinção de

acordo com a qual os fiéis não devem ser próximos ou copiarem aquilo considerado

próprio do “mundo”. Acusações são estabelecidas porque alguém estaria auxiliando o

“inimigo” a disseminar aquilo do “mundo” de baixo – mundano e licencioso. Portanto,

visa-se preservar a conduta disciplinada, de modo controlado de estar e agir no mundo

(Thompson, 1987 e Weber, 1996). A relação entre “carne” e “louvor” aloca a quebra de

unanimidade, pois alguns entendem a necessidade em manter a oposição entre igreja e

122 Tavolaro.“Gospel na pista”, revista Enfoque Gospel, abril, 2002, p.20-24.

153

“mundo”. A tensão envolve concepções, moralidade e valores religiosos colocados em

risco diante de inovações independentes e difusas.

TR, componente da equipe SC, estabelece que a “festa” em nada concorre ou

polariza com as instituições evangélicas, e afirma:

Claro que a gente sabe que tá representando Jesus Cristo na terra. Mas, nem tampouco a gente não se iguala à condição de um pastor ou substitui como uma igreja; a gente não faz isso; o que também não é a nossa intenção...eu não tô tirando ninguém da igreja, eu não tô tirando ninguém dele; muito pelo contrário, tô trazendo gente pra ele. Eu tô fazendo um trabalho que ele deixou de fazer um tempo. De repente não tem ninguém na igreja dele que se levantou pra fazer. Então, eu tô levando o cara lá. Eu prefiro que ele vá pra igreja do cara do que ele fique na pista aprendendo besteira. Aí o pastor: “mas como que é isso? Que trabalho é esse?” Aí a gente convida o pastor pra ir, pra dar uma olhada no nosso trabalho.

O depoente reconhece não se tratar de projeto de instituir uma igreja em

concorrência com as demais, produzindo bens religiosos e apresentando corpo doutrinário e

de especialistas. O passo estaria em negociar com a posição oficial e mostrar estar a “festa”

voltada a confirmar, a seu modo, aquilo próprio do estilo de vida evangélico, e não se opor

a ele. E, portanto, TR espera surpreender e, ao mesmo tempo, obter reconhecimento por

parte de líderes religiosos.

A partir do que é dito, a relação proximidade-distanciamento deve ficar no âmbito

da forma, com certo relaxamento comportamental e comunicacional. Nada além. O

conteúdo - quem sabe, “a moral cristã” - deve ser concebido, preservado e transmitido por

aqueles detentores de posições legitimadas. Tudo isso revela o caráter conservador da

abertura evangélica em nome de estratégia eficaz a fim de converter diversos públicos

(Burity, 1997)123. Mesmo assim, a alteração da forma ainda pode ser entendida como

perigosa por líderes religiosos que atribuem a tudo isso poderes destrutivos por algumas

forças mobilizadas.

123 A pauta de mudança compreenderia debates sobre a liberalização teológica e litúrgica, com a ação política e o avanço da pentecostalização. Esses seriam fatores de adensamento do debate entre o conservadorismo e o ecumenismo diante da cultura e da prática da igreja. Do lado conservador, ter-se-ia visão acerca da eficácia evangelizadora, haja vista a utilização de recursos distintos a fim de atrair e colocar à disposição "música e linguagem informal", shows multimídias, com o recrutamento de danças e diversos ritmos musicais (Burity, 1997).

154

Outro exemplo pode ser a crítica feita à abertura musical. Existem oposições

declaradas ao uso de expressões musicais de referenciais indígenas e africanos124. Elas são

consideradas veículos do paganismo, da sensualidade e do misticismo; são consideradas

forças nocivas, incentivadoras da licenciosidade e opostas à visão de mundo cristã125. As

combinações e os arranjos pouco convencionais são vistos com cautelas em decorrência da

desestabilização possivelmente instalada. O alerta do pastor sobre as “... novidades desse

tipo são brechas espirituais das quais o inimigo de nossas almas se aproveita para

enfraquecer a moral cristã”126 demonstra a preocupação com a “poluição”, com a

contaminação, com a “mistura”, carreadas ao meio evangélico. O perigo bateria às portas

da organização, das coisas e do seu mundo, pois as alterações seriam nocivas e capazes de

quebrar simbolicamente dimensões anteriormente ligadas ou, então, conectar aquilo

mantido desligado.

Sérgio, ao registrar a reação do pastor de sua igreja diante de sua proposta em

organizar reuniões para execução musical, fala do temor diante de algo considerado

“obscuro”. Por que seria? Sérgio e os demais promotores não são pastores, o que fazem não

tem reconhecimento institucional; então, tudo por eles produzido estaria nos limites do

meio religioso e em contato com práticas culturais e expressões musicais com débil

visibilidade. A atuação nos interstícios cultural e religioso acaba por escapar da “rede de

classificação” em vigência (Turner, 1974: 117). Por esse prisma, estariam em risco o

esquema e as condições de percepção do meio evangélico.

Há alguns mediadores cujas ações motivam discursos, falas que apontam para

oposições, forças e perigos; igualmente ressaltam, temerosos, os limites, o poder, a pureza.

Uma crise que permitiria pensar em “anomalia” e em “ambigüidade”, pois é destacada a

tensão mediante o cuidado com os limites que cada grupo estabelece. As situações de

anomalia e de ambigüidade colocariam o sistema em perigo, pois a ação de ir aos seus

124 III – Música contemporânea – instrumentos barulhentos e múltiplos tambores da bateria e dança como atrativos para fazer a igreja crescer – por José Laérton Alves Ferreira, disponível em http://solascriptura-tt.org, acessado em 20/07/05. 125 O tema será abordado no quinto capítulo. 126 Sobre a crítica realizada à chamada “música cristã contemporânea”, ver: http://solascriptura-tt.org/separacaoeclesiasticafundament/Laerton-crescIg3-musicapagaMilenar, acessado em 10/02/04.

155

limites e assim entrar em contato com a fonte de poder capaz de instaurar perigo, poluição e

desordem (Douglas, 1966) 127.

Nem tudo é festa, principalmente quando toca às inovações musicais - mesmo se

apontadas como importante para a evangelização e a permanência de adeptos no meio

evangélico. Os questionamentos sobre a validade das iniciativas indicam a preocupação

com a possibilidade de dissolução dos limites, das fronteiras estabelecidas que separam a

organização daquilo considerado “mundano”. O risco de contaminação leva outro dirigente

a solicitar que a atividade realizada não fosse associada à igreja, pois, para Sérgio, da

equipe SC, não haveria o interesse em “... colocar a mão no fogo (...) Por uma coisa

obscura”. Seria desconhecida e, por isso, perigosa. Assim seria por estar próxima de outra

fonte de poder, por desestabilizar a ordem existente. Tal visão não é nova. Ela terminou por

vigorar em universo religioso e cauteloso com a distância do considerado próprio da cultura

popular, de manifestações festivas e cômicas, que ultrapassava a seriedade e as regras

oficiais (Bakhtin, 1999; Burke, 1995; Thompson, 1987).

O empenho dos promotores está em demonstrar serem os empreendimentos

adequados aos objetivos do grupo religioso e que, portanto, as atividades não seriam

nocivas. Elas também primariam pelo controle do comportamento e poderiam contar com o

apoio de outros leigos e de líderes religiosos voltados à pregação, à transmissão de

mensagens com teor evangelizador. Afinal, é “trabalho sério”, como sustenta Charles, da

equipe GN. Assim, atuam no meio evangélico e procuram estabelecer canais mais

consolidados e favoráveis ao reconhecimento e legitimidade perante as instituições e a

ampla camada de fiéis. Todavia, os integrantes dos eventos reconhecem, de modo

inquestionável, sua feição religiosa, pois ali é possível ouvir “mensagens” e acreditam,

assim, ter ligação com o sagrado.

127 De acordo com Douglas, as noções de anomalia e de ambigüidade viabilizam tratar as condições de seres, estados e coisas. A anomalia diz respeito ao elemento sem lugar no interior de conjunto ou série como, por exemplo, o melaço, que não é sólido e nem líquido. Já a ambigüidade pode compreender a dupla interpretação. Para ela, as padronizações culturais e as classificações originaram a anomalia e a ambigüidade, e definem o que entra na classificação das coisas aprovadas e o que fica de fora de modo a confirmar aquela. Desse modo, a cultura não pode ignorá-las em seu interior. Portanto, cada grupo elabora vias para lidar com o ambíguo e com o anômalo, seja eliminando-os, vendo-os como algo especial, como reforço da conformidade ao designá-los perigosos ou usá-los em rituais com o objetivo de destacar outros níveis de existência e possibilitar a percepção das coisas e do mundo.

156

“Um ritmo fora do tradicional” Vigoram na manifestação várias expressões musicais como o hip-hop, o soul, o

pagode, o samba e outras. Tudo isso é identificado pela aplicação do termo black music

gospel e coloca o fazer dos grupos não somente para organização, mas também a

combinação e ao rearranjo de noções, de forças e de relações para efetivar suas propostas.

Depara-se com mesclas entre as expressões musicais, entre o entretenimento e o religioso.

Apesar da aceitação entre o público, a modalidade musical e a reunião podem ser vistas

com alguma reserva por líderes religiosos ao indagarem se as atividades não seriam

expressões do desmonte, da falência ou da crise do religioso.

Os empresários e leigos inovam dentro do meio evangélico, estabelecem projetos

não afeitos às fechadas alocações destinadas a fundamentar as oposições e distinções como

diz Canclini (1997:67-97), por exemplo. Para o autor, a organização voltada a excluir ou

superar aquilo considerado tradicional, indígena e colonial pode recorrer a hibridações, a

entrecruzamentos, a reelaborações entre tradições e ações educativas, comunicacionais e

políticas. Há o favorecimento de instalação de cenário social transformado com a

autonomia artística, com a profissionalização e “campos artísticos autônomos”. Tudo isso

definiria os projetos criadores.

Para entender a “festa” e as músicas comuns a ela, é preciso pensar no encontro

entre promotores e público. Com ele, emerge uma arena na qual sagrado e profano

dialogam constantemente. Isso é estruturado e atualizado a partir de referência à fonte

escrita, do lido e entendido das Escrituras, o que está presente em diversas passagens até

aqui focalizadas. Por vezes, elas podem não ter ligações, mas constituem facetas e elas

proporcionam seguir certa via de compreensão.

O público e os promotores organizam e executam os vários momentos constitutivos

e a dança está presente em quase todos: ocorre a parada somente para a pregação e o jogo.

Dançar, tocar e cantar ali são atos de “adoração”, são modos de chegar ao sagrado, formam

o sagrado capaz de expulsar o profano para os limites do salão. Nessa região fica o bar no

qual se come ou é possível namorar, manter bate-papo entre os amigos; há também os

banheiros nos quais ocorrem intermináveis sessões de arrumação de roupas e maquiagem -

com empréstimos de batons, pentes, escovas e outros acessórios.

157

Outro ponto tem ligação com aquilo que Edinho, um promotor, evidencia “... nós

fazemos a festa do passado, com costumes do passado, e transformamos ela pra hoje. Por

exemplo, o vinho que traz a alegria, nós pegamos o quê? A música que traz a alegria pra

festa hoje” . E isso pode ser complementado com o pastor e DJ, cujo depoimento utilizado,

ao dizer “acreditamos que a carne também deve louvar ao Senhor”. Portanto, a visão é de a

diversão proporcionar a satisfação, o relaxamento, a “alegria” – condições de uma vivência

de fé.

As iniciativas podem ser tomadas como coisas “obscuras”, como brincadeira ou

exotismo. O encontro entre os mediadores com certas práticas e expressões populares cria

instabilidade, haja vista a posição do pastor ao registrar: “Hoje, a Igreja deve cuidar para

que não haja inversão de papéis, e o mundo invade a Igreja com o seu modo de vida, ao

invés de o modificarmos através dos valores do cristianismo” 128. No pólo oposto figura o

registro de Ynah, pois coloca:

Foi uma gama de pessoas que se insurgiram contra o tradicionalismo. O próprio tradicionalismo das igrejas. Então, já foi tema de debate em rádio. Já foi tema dentro da própria igreja, nos grupos jovens... É certo ou não é: “ah, porque jovem evangélico não pode chegar em casa de madrugada”. E a gente sempre foi contra isso de certa forma; contra entre aspas. Porque passamos as madrugadas fora de casa, porque a gente gosta desse tipo de música. E assim é um ritmo fora do tradicional. É um ritmo que assusta.

Uma interpretação da dinâmica do meio evangélico brasileiro, com serviços

demarcados pela ênfase no emocional, no exorcismo e exortar a prosperidade, aponta haver

crise com o desvencilhamento do controle institucional. A formulação de Ynah é despida

da orientação oficial. Ela ressalta a reação dos pastores e contrabalança com o prazer

sentido por ocasião da confraternização. Algo diferente, não caracterizado por estudos

bíblicos, hinários, escolas dominicais próprios de um conjunto oficial de práticas (Rivera,

2001).

A “festa” é atividade oriunda de objetivos e arranjos e instala níveis de porosidade

que abrangem os lugares de promotor e o de freqüentador. No tocante ao primeiro, ocorrem

articulações com vistas a auferir e a conservar prestígio. Procura-se cantar, tocar e/ou

128 Tavolaro.“ Gospel na pista”, revista Enfoque Gospel, abril, 2002, p.20-24.

158

convidar artistas, DJs, cujas presenças asseguram o sucesso e atmosfera propícia à

disseminação da “mensagem” de fé. Ainda assim, o promotor figura como coadjuvante.

O público é o que menos trabalha e investe material, social e espiritualmente para

preparar e executar o evento. Para sua inscrição, a manifestação exige mais dos portadores

de dons como os de cantar, tocar e pregar. Não é necessária a legitimação dada pelo

certificado, mas pela “experiência” com o “sobrenatural”, como destacado por Francisco

JC, como condição para estabelecer e sentir a proximidade com o divino. Mesmo não

reconhecidos institucionalmente, os promotores explicitam agir conforme as Escrituras,

cujo exemplo estaria na afirmativa de Edinho ao estabelecer que “nós fazemos a festa do

passado, com os costumes do passado, e transformamos ela pra hoje”. De um lado, tudo

deve estar voltado para o freqüentador ter contato e vínculo com o divino; de outro, as

relações ocorrem entre ele e os promotores e seus colaboradores. Não há como manter o

universo festivo e religioso sem o “estranho jogo de dependências e ações complementares”

(Brandão, 2004) que envolve os homens e o sobrenatural.

A alteração de modo de ser parece ser a grande questão. Em meio tradicional,

caracterizado pelo peso dado aos textos sagrados, ocorre o trânsito de fiéis, de encontros

interdenominacionais, de bens culturais e de idéias inscritos em fluxo de combinações e

recombinações (Sanchis, 1995). O bloco, a escola de samba e o trio elétrico são iniciativas

institucionais. Mesmo as críticas existentes colocam a licitude das estratégias e a cautela

das lideranças envolvidas129 e, por mais audaciosos, estariam limitados, configurando

estratégias, alteração da forma, para disseminação de valores, de entendimentos e sentidos

comuns (Geertz, 1989).

As possibilidades de combinações e recombinações de elementos e crenças

religiosas (Novaes, 2004) indicam a dinâmica de transformação do campo religioso. Nesse

sentido, estaríamos diante de organização representativa do apontado por Brandão

(2004:15) como algo revelador de “tipos, estilos e estratégias de afiliação”. Essas coexistem

e se multiplicam na sociedade brasileira e, por sua vez, revela a arena religiosa não ser tão

fechada, pois surgem “unidades de crenças” partilhadas com elementos de “imaginários

diversos”. Nesses tempos, ocorrem a possibilidade de o leigo lidar, relacionar-se com a

129 Rodigues. “E vai rolar a festa”, revista Enfoque Gospel, edição 19, ano 02, p.52-58, 2003.

159

religião, escolher e seguir de modo não definitivo um sistema de sentido (religioso, crença,

fé), desenhando percurso de não confronto com o vivenciado. Talvez seja o que Ynah,

Sérgio e o pastor e DJ tenham indicado. O registro desse cenário pode contemplar não

somente o fiel, mas os formuladores e apresentadores de novas vias ao campo religioso.

Eles podem promover encontros favoráveis a alterações do considerado tradicional. O

resultado pode ser o registro de segmento devotado a assegurar reelaborações,

entretenimentos e passam a figurar como “tipos e estilos de estratégias”.

Não há como fazer isso sem observar o conjunto e visualizar as categorias existentes

e componentes da black music gospel e da reunião, pois são muitos os presentes, alguns

mais visíveis, outros menos. Eles compõem uma “situação corporada” (Brandão,1981:88-

89), pois o efeito esperado não pode ser produzido por elemento isolado. São fundamentais

as atividades das equipes integradas por atuações distintas como as realizadas por

promotores, por pregadores, por freqüentadores e por colaboradores – seu cuidado com a

“segurança”, com a bilheteria e com a venda de bebidas e comestíveis -, por cantores e por

DJs, possibilitadores que a dança seja executada. Diferentemente do pagamento de alguma

promessa (Brandão, ibid.), o lugar fundamental é ocupado por freqüentadores, pois ali

estão para “adorar”, para “louvar”. Para tanto, existem as ações do pregador, do cantor, do

DJ. Os demais assumem lugares marcados pela importância auxiliar para que isso seja

efetivado e possam também evidenciar a diferença com a manifestação profana.

Tudo até aqui exposto tem relação com aquilo denominado “música gospel”,

especificamente com a black music gospel. Os capítulos anteriores evidenciam que a

“música gospel” - feita por empresas reconhecidas por igrejas – é a modalidade musical que

tem conduzido as alterações, posto que as produções são orientadas por determinações de

cada igreja ou gravadora. Isso ocorre apesar de se poder entender que reproduziriam o

conjunto de instruções há muito em vigor; mas são várias as igrejas, como as empresas, e

elas guardam diferenças entre si.

Por sua vez, a black music gospel e a “festa” parecem escapar das imposições e dos

controles oficiais e, portanto, quem sabe, não somente a forma mudaria, mas o conteúdo.

Isso decorreria do peso dado ao sensível, ao emocional, com o destaque dado à “carne”,

com o romper a madrugada dançando, de ouvir músicas desconhecidas. Os momentos

citados marcam o limite do controle institucional e familiar; também sublinham a crise das

160

oposições entre corpo/espírito e profano/sagrado. Deparamo-nos com combinações

personalizadas, com frágil direcionamento institucional; e elas colocam a “reinvenção da

tradição” (Steil, 2001:122,123).

No campo religioso e festivo, encontram-se as alianças, as tensões, as rupturas e os

interesses entre distintos grupos com a finalidade de construir algo. Por sua vez, as equipes

congregam promotores e colaboradores, todos com vinculação religiosa, estabelecem

relações contratuais e visam, conforme já foi enfatizado, deter reconhecimento e

legitimidade. Assim, esses “agentes de festa” (Brandão, 1981) apresentam inovações,

podem alterar a tradição. Porém há os líderes institucionalizados que podem ou não

incorporar os novos elementos e visões impetradas por aqueles. Há outros, defensores de

distâncias, detentores de certificados, de conhecimento da Palavra que desprezam a

produção e circulação dos bens apresentados. Mesmo assim, tentam disputar os fiéis e

entendem a importância em elaborar atividades distintas da “festa” e similares.

As propostas e as inovações apontam para certas tensões em meio religioso com

crescente número de agências - a partir de crises, de cortes e construções de igrejas.

Buscam constituir meios para atrair os leigos, formar o corpo de seguidores mesmo quando

no meio em questão contabiliza-se poucos cargos formais (Mafra, 1998:224-250). De modo

provável, os componentes da equipe não ocupariam cargos de direção dentro de seus

grupos religiosos – cabe saber se eles também estariam interessados -, mas poderiam criar

cargos e impulsionar percursos artístico e empresarial. Cada equipe tem sua peculiaridade

e busca atuar para dar inserção religiosa ou política. Para tanto, os promotores discutem as

estratégias e tentam estabelecer a eficácia do estilo por eles instituído, parecendo haver

constante negociação entre as visões do que seja sagrado e profano. Tudo isso pode ocorrer

apesar do parco reconhecimento das instituições e de seus líderes.

A disputa observada também se insere no campo religioso, pois há luta pertinente ao

monopólio pelo poder religioso, distinguindo-se, de um lado, instituições, líderes

(especialistas) e leigos e, de outro, estratégias e instrumentos. Sobre a concorrência entre os

especialistas, há a disputa por autoridade que envolve a “manipulação simbólica dos

leigos”. Existem aqueles que produzem certa visão de mundo e de existência, recorrendo à

força da palavra. Em oposição, estariam os agentes e instituições em cuidado da

reprodução de visão oficial a partir de método racional e cotidiano. Esses podem mobilizar

161

forças materiais e simbólicas com a finalidade de alcançar o monopólio do exercício do

poder religioso. Seus componentes exercem funções e enfrentam concorrentes; os dois

grupos desvelam as estratégias de manutenção e de transformação em vigor no meio

religioso.

Na concorrência entre os especialistas, as inovações podem ser apresentadas com a

finalidade de (re) conquistar autoridade, e isso pode ocorrer a partir de relações atualizadas

entre a demanda e a oferta de bens e serviços religiosos com vistas a alcançar os leigos. Os

agentes pertencentes ao corpo religioso institucionalizado e os produtores independentes de

bens e serviços, nem sempre reconhecidos, inscrevem duas categorias de agentes do

sagrado. Eles estabelecem relações concorrenciais com o uso da força das mensagens

proferidas e da força mobilizada pelos grupos (Bourdieu, 1992, 1996). Em disputado e

complexo meio, os promotores atuam, inserem seus objetos e serviços direcionados aos

leigos. O que mais pode ser colocado sobre a “festa” e as músicas?

No capítulo seguinte será visto que com a black music gospel emerge um debate

acerca da “música gospel”. Ao invés de ser sublinhada sua orientação no Evangelho, é

colocada em cena a temática da valorização cultural e da consciência da desigualdade

social. As propostas musicais das equipes também serão contempladas, visto que as

canções veiculam outros temas e elementos.

162

Capítulo 4

Outro registro do gospel – iniciativas e questões.

A modalidade de manifestação musical aqui ressaltada não deve ser vista como

isolada e sem correspondências com as alterações ocorridas no meio evangélico. As

apropriações musicais e sonoras – com experimentos de instrumentos e técnicas – e as

transformações comportamentais tiveram impulso na década de 1990 que, segundo

Nascimento Cunha (2004:138), foi demarcada com a vigência de um “modo de ser

evangélico com efeitos na prática religiosa e no comportamento cotidiano”. Além da

abertura musical, instrumentos musicais, shows e tecnologias estão presentes na

evangelização, com a finalidade de estabelecer formas mais antenadas com os diferentes

públicos (Burity, 1997), igrejas, produtoras, artistas e grupos independentes formulam e

apresentam seus bens musicais – e também eventos concebidos como complementares ao

empreendimento musical.

Os pontos até aqui destacados constituem aquilo denominado “música gospel”. Para

saber um pouco mais, um caminho pode ser tomado. Nesse caso, seria visualizar isso não

somente a partir das distinções entre as denominações, porém saber que evidenciam o

campo de forças que compreende igrejas, empresas e grupos minoritários. Estes tentam se

estabelecer em uma confluência entre o religioso e o empresarial, entre o religioso e o

entretenimento, entre a institucionalização e a autonomia.

Ao abordar a “festa” e as concepções sobre “música gospel” foi possível estabelecer

um modo de compreender certos aspectos das elaborações musicais, de eventos e

fonográficas. São realizadas por grupos não representantes de forças majoritárias. Os

organizadores da “festa” dizem atuar entre grupos juvenis urbanos e apresentam atividades

evangelizadoras não dissociadas da dimensão do entretenimento. Introduzem novas figuras

no campo religioso, como o DJ e o animador e pregador. Ao mesmo tempo, produzem,

distribuem, comercializam seus serviços e produtos (CDs, acessórios e programas

veiculados por estações de rádio ou via Internet), investem em recursos tecnológicos, em

163

meios de comunicação e objetos. Neste nível inscrevem certa via por meio da qual

dialogam com as empresas, com o “mercado”, com as igrejas, com os fiéis e, desse modo,

demarcam semelhanças e diferenças. É franqueado o reconhecimento de artistas capazes

de atrair os freqüentadores interessados na aquisição de bens sonoros, musicais, imagéticos

e/ou aquilo relacionado com a moda, que apresentem conformidade com as expressões

musicais privilegiadas.

Os promotores entendem ser a “festa” marcada e direcionada ao entretenimento e à

ação religiosa. É voltada ao investimento em expressões musicais contemporâneas e tem

inscrição política. As referências musicais e sonoras podem compor visões e propostas

questionadoras das relações sociais e valorizadoras de referenciais culturais. A

compreensão da “festa” e das canções pode ir além do entretenimento e visualizar a

realização de outra evangelização. Há a vigência de confecção musical disseminadora de

estilos – musical e corporal –, em consonância com expressões musicais contemporâneas.

No entanto, para além das semelhanças, existem diferenças entre as equipes e seus

objetivos. Assim, a validade da “festa” pode ser dada pelo entretenimento proporcionado

aos “jovens” – segundo uns - por viabilizar o questionamento do meio evangélico ou – para

outros - por valorizar o que entendem ser a “cultura do negro”. De acordo com alguns

idealizadores, a reunião contribui para mudar o modo como parte dos adeptos do

evangelismo é vista e percebida.

Aqui e nos capítulos seguintes, serão abordados alguns pontos sobre as inscrições da

black music gospel e da “festa”. Ver-se-á que ocorre a partir de diálogo estabelecido não

com o catolicismo, como ocorre com outras práticas religiosas (Carvalho, 1999), mas com

os grupos evangélicos no tocante à prática evangelizadora. Os pontos apresentados colocam

a tensão com o meio evangélico, distinto do meio secular. Nesse sentido, será apresentada a

vigência de outra concepção de “música gospel” para alcançar os arranjos, as proximidades

e os distanciamentos próprios a ela.

Nova cena musical

As produções musicais, de atividades e fonográficas são tomadas como partes

daquilo designado “gospel” ou “música gospel”. Como foi visto no primeiro capítulo, a

164

designação “música gospel” é corrente no meio evangélico e é utilizada para definir as

músicas produzidas a partir de formato considerado contemporâneo; elas possibilitariam

disseminar as visões dos grupos aliados ao protestantismo. As canções presentes na “festa”

também são assim concebidas, porém apresentam especificidades, porque privilegiam

determinadas expressões musicais contemporâneas. Seus formuladores dizem ter por

referência as igrejas negras norte-americanas e as populações negras urbanas.

A fim de legitimar aquilo resultante de empreendimentos independentes, é retomada

uma história acerca da musicalidade nascida nas igrejas protestantes e de freqüência negra.

Portanto, a origem religiosa é demarcada e pode assegurar o reconhecimento esperado. A

especificidade musical e sonora pode ser complementada com o material iconográfico

apresentado. Ele tem por finalidade divulgar os trabalhos artísticos; também veicula

imagens que permitem indagar sobre a noção de ser negro e sobre a visão acerca das

relações sociais.

Durante o período de investigação, o hip-hop, o r&b, o soul e outras expressões

musicais e sonoras eram constantemente citadas. Para os entrevistados, elas compunham as

atuações e os eventos direcionados aos grupos juvenis com vínculo religioso ou não. Pode-

se ter que essas canções, discos e outros bens são produzidos, têm por direção e, ao mesmo

tempo, estão inseridos no fluxo de formas culturais que constitui o “Atlântico negro”. Esta

noção será recorrente, pois, para Gilroy (2001:38), ela permite falar e refletir acerca de

fluxos e encontros culturais, ligados à diáspora negra, e adequados para a constituição de

bens e serviços. São formas culturais em movimento que trafegam, cruzam mares e

originam diversas culturas.

Nem sempre tais formas possuem uma origem uniforme e equilibrada; elas podem

compreender fluxos reveladores de desdobramentos. Nesse sentido, o processo cultural não

é linear, simples e, portanto, as culturas não são puras e estáveis. São complexas, registram

mobilizações e expansões propiciadoras de combinações, de novas percepções e

comunicações entre aqueles que as compõem (Hannerz, 1997:14, 15). Portanto, os eventos

pesquisados aqui são expressões musicais identificadas como black music gospel e, entre o

sagrado e o secular, possuem ampla circulação. Elas são reconhecidas pela relação com os

povos da diáspora e explicitam a criatividade cultural que caracteriza o “Atlântico negro”

(Gilroy, 2001; Sansone, 2004).

165

As músicas e as sonoridades são alteradas a todo instante, são fabricadas, sofrem

fraturas eletrônicas por parte de DJs. Na “festa”, esses evangelizadores contemporâneos

acreditam operar a ligação entre passado e presente, entre o templo e o “baile”. Fazem com

que a black music seja também gospel music. Aquela é vista como oriunda dos cânticos

entoados e do balanceio corporal que, para os promotores, emanavam das igrejas

protestantes norte-americanas. Com tal empreitada (de amplitude musical, empresarial,

religiosa e política) circulam também imagens de corpos negros e, ao lado da sonoridade,

divulgam outro ser religioso.

“Black gospel” – música de crítica e de fé

Nos capítulos anteriores, foram demonstradas as produções de “música gospel” e de

reuniões. A “música gospel” é efetuada por empresários e por pastores (ou reconhecidas

por estes) com a finalidade de oferecer bens religiosos porque divulgariam ou seriam

concebidos conforme as Escrituras. No entanto, estes bens podem ser tomados como

oriundos de atividades profissionais e objetivos produtivos; também podem ser tidos como

fundamentais para o alcance de um certo estado espiritual e de “alegria”. Tudo resultaria de

uma gama de ações inovadoras, porém estaria divulgando um “conjunto de instruções”, de

noção moral, de visão estética pertinente ou visto como certo e virtuoso.

Nesse caso, estariam incluídas a black music gospel e a “festa” consumidas nos

finais de semana, em bairros distantes de áreas centrais e/ou destinadas ao turismo. As

manifestações são organizadas e atraem numeroso público que almeja ouvir canções,

assistir os clipes exibidos, encontrar e fazer amizades, relaxar, divertir-se e também

expressar sua fé. Isso ocorre a partir da execução de canções que embalam a noite e parte

da madrugada dos presentes.

Os organizadores afirmam que as expressões musicais predominantes são o hip-hop,

o rhythm and blues (r&b), o soul, o drum ‘n´bass (db) e o techno. Para promotores e

freqüentadores, elas constituem a black music (pode ser designada por "música negra”).

166

Além delas, pode-se ter o registro de outras musicalidades como o reggae, o samba e o

pagode130.

Um exemplo da especificidade da reunião e das expressões musicais encontradas

em seu interior pode ser dado pela apresentação do componente da equipe SC ao afirmar:

“Serginho DJ´esus – mostra o caminho que ao céu conduz! A essência da Black Music!

Soul * R&B * Hip-Hop”. O entretenimento não é o único aspecto contemplado. Pode-se ver

como um modo de conceber e experimentar o sagrado são dados pelo enlevo possibilitado

com a audição de certa sonoridade relacionada às populações negras. Principalmente certas

expressões musicais contemporâneas.

A produção e a organização de atividade musical, realizadas por promotores,

instalam tensões e distinções no meio evangélico não somente em decorrência, de um lado,

da dimensão do entretenimento e do sentimento e, de outro lado, pela sobreposição da

música em relação ao texto escrito. Para os promotores envolvidos, a black music gospel é

distinta da “música cristã”, pois esta última não teria relação com aquela oriunda das igrejas

evangélicas freqüentadas pela população negra norte-americana. Por exemplo, L´Ton, um

dos promotores, fala sobre uma confusão no Brasil que envolve o termo “música gospel”.

Segundo ele,

Para você ter uma idéia, a música gospel não era a música evangélica em geral. Era, sim, a música evangélica cantada e tocada nas igrejas negras norte-americanas. Música que começou nas lavouras, onde os negros clamavam a Deus por socorro (Spiritual). Quando os negros conseguiram montar suas igrejas, a música dos negros era chamada de godspel que, mais tarde, viraria o gospel. Em sua grande maioria, a música evangélica americana, cantada por um grupo de brancos, é chamada de Christian music. Aqui no Brasil, se copia muito de lá de fora, foi passado pelos

130 A equipe GN realiza pesquisas sobre as opções de estilos musicais entre aqueles que conhecem sua iniciativa. Os visitantes de seu site podem votar sobre a modalidade musical preferida. No entanto, existem dois modos de divulgação: um pode ser acessado a partir da visita à página virtual; a outra pode ser recebida por correio eletrônica após cadastro no site. Caso a opção seja a primeira, a pergunta existente é: “qual o seu estilo musical favorito nas festas?”. Nesse caso, as categorias musicais são as seguintes: “dance e techno”, “hip-hop, r&b”, “louvor e adoração”, “pagode e forró”, “rock”. O registro de votos é da ordem de 4.406 distribuídos da seguinte maneira: “dance e techno” com 1520 votantes; “dance e techno” com 1456 votos; “louvor e adoração” com 700; “pagode e forró” com 268; “rock” com 462 votos. As categorias são: “charme e techno”, “louvor e adoração”, “pagode e forró”. Os dados recebidos por correio eletrônico compõem a “enquete”, cujo título é “qual sua preferência musical no Gospel Night?”, atualizada a cada dois dias. Nela, as categorias são “charme e techno”, “louvor e adoração”, “pagode e forró”. No último registro atualizado, com data de 11/05/06, são 547 votos distribuídos do seguinte modo: 367 (67,09%) optaram por “charme e techno”; “louvor e adoração” conta 135 votos (24,68%); “pagode e forró” com 45 votos (8,23%). Ver: www.gospelnight.com.br, acessado em 27/05/06; mensagem sobre enquete musical recebida em 12/05/06.

167

grandes donos de gravadoras e rádios evangélicas, que a música brasileira, diga-se de passagem, que era predominantemente branca, era gospel.

Vários dos entrevistados concordam com a observação do depoente, de que no

Brasil a apropriação do termo “gospel” teve por finalidade legitimar este tipo de música na

esfera religiosa. Manga diz ter participado do início do processo de construção dessa

musicalidade no país que aconteceu na década de 1990:

O nome gospel porque vinha da concepção americana da música gospel que são as músicas mais spiritual, músicas mais negras, porque hoje nos Estados Unidos o termo que eles usam é música cristã contemporânea.

Como determinado nome não alcançou êxito no país, outro deveria permitir fazer

imediata ligação com o Evangelho. Assim, “gospel” seria o adequado, seria possível porque

a gospel music compreende o southern gospel e a black gospel. Para Manga, foi possível

fazer isso porque “gospel seria alguma coisa ligada ao evangelho e uniu-se a música a isso.

Por isso que ficou gospel, que seria a música que tem um conteúdo do evangelho de Jesus”.

Então, como diz L´Ton, os “donos de gravadoras e rádios evangélicas” podiam afirmar ser

a música, recém-apresentada, possuidora de conteúdo e conexão com o Evangelho. Diante

da apropriação de expressões musicais contemporâneas, seria esta a articulação realizada

com a finalidade de assegurar a distinção com o secular. Talvez o termo “música cristã

contemporânea” não traduzisse a ligação com aquilo considerado sagrado, não permitiria

pontuar determinado sentido para o termo gospel (Evangelho), posto poder estabelecer uma

origem vinculada aos cristãos no Novo Mundo.

Tiago, negro, ensino médio completo, casado, 24 anos de idade, membro da Igreja

Batista Renovada, residente na Baixada Fluminense, freqüentador de “festa” e componente

da banda Acrisoul (presente nos eventos da Soul de Cristo e de outras equipes), entende

que atualmente a “música gospel” apresenta, diz, “várias vertentes. A gente tem música

rock, música country, black music ...” Sobre ela, o depoente expõe o seguinte:

A black music hoje, que no caso é a música negra, tem várias vertentes tem o hip- hop, que é música negra, tem o próprio charme que é a música eletrônica, música batida, mas com muita melodia, melodias elaboradas, vocais harmonizados que é essa base de coral... tem o hip hop, que hoje que é a grande coqueluche do momento. Hip-hop hoje, tu vai na Baixada

168

é hip-hop, tu vai na Zona Sul é hip-hop... Tem o r&b que é mais funk, funk americano, aquela questão que a gente tava falando, né, um arranjo bem trabalhado. E ... A música black hoje é isso, tem várias vertentes.

Como mosaico, o depoente destaca a particularidade da “música gospel”. A reunião

de distintas propostas musicais e dentre essas a black music e suas várias formas, mas

caracterizadas por certas batidas e harmonia. Sem ser relacionada com a dimensão

religiosa, a black music é apresentada como de visível presença na cidade e relacionada

com o entretenimento ou com a reivindicação política, no caso do hip-hop. Ynah, negra,

solteira, graduação em Turismo, 24 anos de idade, integrante da Comunidade Evangélica

Zona Sul, residente em Irajá, freqüentadora de “festa”, diz:

Eu chamo de black music todas as... o rock por exemplo ele veio do Jazz. Black music pra mim é o soul, o rap... todos fazem parte do black music que a própria palavra fala música negra. Que é esse tipo de som que surgiu nos Estados Unidos.

Tiago e Ynah, como os outros depoentes, evidenciam ser a “música gospel”

integrada por sobreposição de expressões musicais, entre elas a black music, concebida

como formada por musicalidades produzidas por negros norte-americanos, mas com fraca

penetração no meio evangélico brasileiro. Nesse sentido, Nega, integrante da equipe Gospel

Beat (GB), observa que tal modalidade musical permite:

Resgatar e mostrar ao povo brasileiro – aí já vem pra cá – que tem essa parte da música black. Essa música gostosa. Como também tem a música africana. A africana é mais complicada. Porque na música africana, todo mundo toca atabaque, aí é coisa do diabo. Entendeu? Porque aí tem o “Xangô”, aquele negócio todo no meio evangélico. O meio evangélico acha que ... Eu tenho uma fita de um coral africano que... é muito show. É evangélico.

Com pouca penetração e visibilidade na esfera institucional evangélica, a black

music passa a compor o escopo de atuação de promotores. Esses são limitados por certa

concepção acerca da África e tudo a ela relacionado e disponibilizado por eles (Burdick,

1998). Talvez por isso as igrejas norte-americanas sejam recorrentes para construir uma

origem.

169

Os depoimentos revelam a construção de determinada black music gospel quando

um grupo passou a agir, a inovar e a apresentar músicas, porém de referência africana e

assim efetivar a ligação com o religioso. Remontar às igrejas norte-americanas é

fundamental e, assim, tenta-se demonstrar que essa música integra o “gospel”, pois as

expressões musicais privilegiadas são vistas como tendo ligação histórica com o cantado

nos templos. Essa referência estará presente e retomada na constante citação e

(re)construção de certa história da “música gospel”, de peculiar expressão religiosa negra e

sempre, como tudo o mais, capaz de mudar diante da realidade que se apresenta (Bastide,

1974:192 e 193).

As diversas expressões musicais são alocadas sob a designação “gospel” e a história

faz a ligação entre elas, a partir do sagrado criado e vivido nas igrejas. São formas não

puras e elaboradas, pois resultam de complexas realidades e transformações históricas e

políticas. Sobre isso, Hall (2003:343) visualiza que tais formas decorrem de

Sincronizações parciais de engajamentos que atravessam fronteiras culturais, de confluências de mais de uma tradição cultural, de negociações entre posições dominantes e subalternas, de estratégias subterrâneas de recodificação e transcodificação, de significação crítica do ato de significar a partir de materiais preexistentes.

Trata-se da introdução de elementos inseridos no fluxo de bens culturais, no jogo de

posições, interesses e objetivos capazes de figurar como significantes e marcadores de

campo de forças. Assim, no Brasil, o termo “gospel” pode designar tantas coisas como as

expressões musicais com inscrição secular e que demarcam as relações entre posições

diferenciadas. A partir dela, alguns promotores trilham caminhos e apresentam aquilo

denominado black music gospel. Com ela, falam sobre ser negro, tecem uma noção de

negritude131 e questionam as relações existentes no meio religioso e no empresarial

voltados ao produzir musical.

131 Refiro-me à negritude como algo não essencial e fechado, mas uma construção reveladora da consciência da diferença e do pertencimento a grupo incluso na diáspora negra (Gilroy, 2001:86-87). A noção de negritude pode ser formulada e reformulada conforme o local, os interesses e os objetivos em jogo e, portanto, resulta de especificidades temporais e espaciais, evidentes quando a “África” passa a ser recorrente em discursos (intelectual e/ou nativo) para reconstruir a tradição ou o passado (Birman, 1989). Ou pode acontecer de ser destacado os “poderes mágicos, o corpo, a sensualidade e a sexualidade como provenientes e específicos àqueles que guardam alguma ligação com a “África” (Sansone, 2004: 9-35). Recorro a essa noção porque cada grupo, cada ator envolvido na atividade musical, privilegia elementos e referenciais culturais

170

O apresentado delinea outro sentido para a “música gospel” e configura a dita black

music gospel que, para os produtores, deve inscrever uma noção de ser evangélico. Isto é

feito, pensado, ou seja, a idéia compartilhada entre todos e reatualizada nas narrativas

consolida e trafega determinado sentido. Isso ocorre porque circulam imagens, eventos,

histórias, sentimentos, símbolos e idéias com os quais têm-se a ligação entre os homens,

fornecendo significados à vida. Nessa esteira, a apresentação de origem, o apontamento do

surgimento e o recurso a um certo passado permitem compartilhar a narrativa fundacional e

a condição de expressão de um povo apresentado como desprivilegiado (Hall, 1999:50-57).

Portanto, as produções musicais, de atividades e fonográficas aqui abordadas veiculam

imagens e idéias que são compartilhadas e tal exercício contribui para que as canções

existam, sejam consumidas porque têm e carregam determinados sentidos.

Canções feitas e ouvidas – o que trazem?

Um dos sentidos atribuído à “música gospel” no Brasil passou a ser aquele

especificamente vinculado ao Evangelho. Nao obstante, os produtores de black music

gospel fazem relação entre as canções e as igrejas compostas por afro-americanos. Foi dito

no segundo capítulo que os promotores tiveram inserções em corais e isso seria

significativo ao desenvolvimento de seus gostos e consciência. Além disso, a influência

familiar e a participação em grupos de hip-hop também são citadas e surgem como

fundamentais aos percursos, ao construir atividades e inserção na esfera musical. Para os

entrevistados, essas vivências viabilizaram, de maneiras diferenciadas, conhecer as

expressões musicais e as histórias de populações de cor nos Estados Unidos, no Caribe, no

Brasil e em outras regiões. Eles citam cantores com inscrição religiosa132 ou não133 e

específicos a fim de falar do sujeito negro na sociedade e no meio evangélico contemporâneo. Nesses termos, pode-se ver as expressões musicais apropriadas, componentes da black music gospel, e os encontros musicais formulados. 132 Um dos cantores mais citado é Luiz de Carvalho; suas canções seriam ouvidas pelos pais dos entrevistados. Braga (1961) coloca que Luiz de Carvalho, na década de 1950, já atuava na produção fonográfica em estúdio de sua propriedade. 133 Além de cantores evangélicos, é destacado o ambiente familiar como fundamental ao ouvido e feito na esfera musical. Promotores destacam que seus pais ouviam as big bands e cantores como Elvis Presley e Nat King Cole. O sambista brasileiro Luiz Ayrão é citado como exemplo da ambiência musical familiar.

171

também falam de artistas com projeção nacional e internacional nos anos de 1970/80134

com a já propalada black music, detentora de atenção da indústria fonográfica. Alguns dos

referenciais musicais são assim pronunciados e reconhecidos como fundamentais aos

arranjos propostos e realizados.

Parte das canções executadas na “festa” resulta de atividade de pesquisa de músicas

e de tendências sonoras. Os promotores, ao manipularem mídia adequada, transformam,

cortam, recortam, distorcem canções, sobrepõem e alteram as batidas e os vocais; também

acontece de haver a produção de suas músicas. Por fim, as duas atividades permitem obter

aquilo tocado nas “pistas”. Tudo isso revela redes sociais duradouras e efêmeras nas quais

gravadoras e, principalmente, iniciativas autônomas estão direcionadas para a produção

musical e fonográfica designada black music gospel.

A equipe GN produziu seu primeiro CD e este foi encomendado a Sonopress135 pela

BV Films136, também encarregada da distribuição. O segundo CD foi feito, encomendado e

distribuído pela própria equipe; a prensagem realizada pela empresa Novodisc137 a partir de

encomenda realizada em nome de Charles. A divulgação é realizada no site e nas edições

da “festa” da GN. O procedimento de encomenda direta de prensagem fonográfica foi

utilizado na confecção do primeiro disco de Francisco JC, componente da GN, licenciado

em seu nome. A elaboração dos CDs levou a recorrer a estúdios particulares, destoando de

L´Ton, da equipe GB, cuja produção do disco da equipe e os trabalhos de outros cantores

são feitos em estúdio próprio.

134 Toni Tornado e Carlos Dafé são exemplos dos cantores nacionais ouvidos. Entre os norte-americanos, são citados Barry White, os irmãos Jacksons e Diana Ross. A partir da década de 1970, com a consolidação do long play (LP), capaz de conter mais faixas e produzido com custo mais baixo; os investimentos no setor fonográfico aumentaram e diversas indústrias se instalaram no país e outras foram criadas. Houve segmentação da música brasileira – regional, MPB, rock e samba, por exemplo, e produção estrangeira – norte-americana, italiana e francesa -, diante do domínio tecnológico e vantagens obtidas no mercado, era consistente. Assim, a black music teve presença no país e terminou inspirando a organização de atividades juvenis denominados Black Rio. Algumas empresas como, por exemplo, a Top Tape, a Continental, a WEA e a Phonogram investiram na atividade com a finalidade de descobrir novos talentos (Morelli, 1991; Dias, 2000). 135 A empresa atua no Brasil, desde 1987, e tem fábricas em Manaus e em São Paulo destinadas à fabricação e comercialização de CDs. Além disso, realiza masterização, autoração, fabricação, comercialização de DVDs etc. www.sonopress.com.br, acessado em 23/07/05. 136 Localizada na região central da cidade do Rio de Janeiro, a BV Films é distribuidora de produtos gospel para o país. São CDs, DVDs, VHS, revistas e livros, ultrapassando 300 títulos. Maiores detalhes ver: www.bvfilms.com.br, acessado em 23/07/05. 137 A Novodisc está instalada no Brasil desde a década de 1990, tendo surgido, na década anterior, na Espanha, como parceira da gravadora Polygram, componente do grupo Phillips. www.novodisc.com.br

172

Os produtos elaborados são constituídos distantes de grandes produtoras e

gravadoras, e existe a colaboração entre as equipes e os artistas. Isso pode ser percebido nos

vocais das canções, em “remixes” realizados e na divulgação em programa de rádio e em

site na Internet. O trabalho de produção é feito em virtude da obtenção e uso de tecnologia.

Pode ocorrer a montagem de estúdios com a aquisição de computadores e manipulação de

programas específicos com produção e gravação a baixo custo. O uso de estúdios

particulares e a encomenda de prensagem por parte do artista ou componente do grupo – o

empreendimento é executado sob a figura de pessoa física – não são procedimentos

exclusivos aos promotores. Outros artistas recorrem a eles, como os cantores Feliciano e

Cláudia. Isso configura momento demarcado por iniciativas de pequenos grupos

especializados na produção e na gravação musical. Bandas e/ou artistas podem recorrer a

esses serviços e apresentam produtos ao público e às grandes empresas. Essas podem ter

interesses nos artistas e nos repertórios surgidos a partir de articulação independente (Dias,

2000).

Além da produção, a distribuição dos discos é realizada por canal próprio sem ser

necessário recorrer também às empresas. Nem sempre é possível encontrar os discos em

lojas especializadas ou de departamentos que comercializam CDs e DVDs. No Mercado

Popular, existe uma loja na qual os discos de black music gospel e convites podem ser

adquiridos138. O valor dos CDs fica entre R$ 13,00 e R$ 18,00. Os promotores também

investem na venda realizada pela Internet ou disponibilizam canções em seus sites139.

Apesar de vozes afirmarem não existir interesse empresarial por artistas de black

music gospel, convém frisar que os profissionais aliados a essa musicalidade não agem

independentemente, haja vista haver cantores vinculados a arranjos empresariais140, são

convidados para apresentação em “festas” e atraem numeroso público. Há certa

organização de atividade empresarial capaz de assistir artistas como, por exemplo, a CON-

3. Ela, como será visto mais adiante, organiza festival de black music gospel e, por fim,

138 A venda ocorre no bazar Deus Proverá no qual são vendidos os convites para as reuniões das equipes aqui tratadas. 139 A comercialização de bens pela Internet é presente e pode ser incentivada por crescente uso entre os evangélicos. Por fim, os próprios locais de “festa” podem ser utilizados para a comercialização de produtos como camisetas, chaveiros e discos. Já a divulgação pode ser realizada através da Internet e de programa mantido pela equipe GN - nos finais de semana em rádio local. 140 Pode-se citar o grupo paulista de hip-hop gospel Apocalipse XVI, vinculado a gravadora 7 Taças, fundada por seus integrantes, e o DJ Alpiste, integrante da gravadora Gospel Records.

173

uma produtora norte-americana designada You Entertainment141, passou a atuar

recentemente no país.

As canções denominadas “gospel” podem abordar temas variados; seu foco está

concentrado naquele que, sob a ação divina, pode vencer o mal ou ter seu existir

transformado. Na “festa”, porém, estas canções nem sempre estão presentes, pois nela

vigoram outras modalidades de canções. São aquelas denominadas black music gospel ou

“música negra” que apresentam batidas e vocais peculiares - são citadas, ouvidas ou

adquiridas por diversos meios. Mas o que têm as canções? O que os cantores e os

compositores privilegiam para apresentar músicas cujo objetivo seria evangelizar?

Serão focalizadas três letras; a primeira de um componente da equipe GN; um da

equipe GB e outra do grupo paulista Apocalipse XVI ( presente nas “festas” da SC e

reconhecido pelo público).

¤

Francisco JC, componente da Gospel Night (GN), nas manifestações costuma

exercer a tarefa de apresentador, de animador e faz a oração da noite. Além disso, segue a

carreira de cantor, tendo lançado o CD solo “Minha vida não pára”, com treze faixas, de

produção independente. Outras composições suas constam no segundo CD da equipe GN.

Escolhi a letra da música “Minha vida não para”, por ser de autoria do cantor, ser a faixa

título do CD e, por fim, evidenciar as suas influências musicais; particularmante as

expressões r&b e hip-hop. A letra diz o seguinte:

Minha vida não para

Vou falar do JC outro cara que há muito tempo aqui Se entregou, se humilhou, sua vida deu e vc o rejeitou

Mais de 2000 anos se passaram Toda dor e sofrimento nos condicionaram

Agora obstáculo pra mim é nada Se o inimigo se atrever hoje toma na lata

E digo: sai da minha frente Hoje eu não vivo mais carente Tô armado, tô de 12, tô de HK

Calibre unção vai te pegar

141 Leal. “You entertainment and You gospel”, revista Show Gospel , ano 05, nº 20, p.22-23.

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Minha vida não para Minha vida não para

Se vc bem deixar sua vida

Ele pode transformar Mas se não pode crer

O inferno vai estar a te esperar Saque isto, esse mundo é nada

O diabo é lixo e quer te levar pra lata To te indicando a solução

Olha que o paiol está em suas mãos E diga, sai da minha frente

Hoje eu nao vivo mais carente Tô armado, tô de 12, tô de HK

Calibre unção vai te pegar

Se já sabe a diferença entre certo e errado Toda influência de amor e pecado E nao adianta me olhar de lado

Como se eu estivesse errado (preste atenção) (não demore não)

Sua vida está por um fio Aceite este desafio

Arme-se, prepare-se

E diga sai da minha frente...

A canção fala da caminhada realizada por alguém voltado a seguir certo exemplo de

vida de Cristo. Por isso, adquire força e é capaz de vencer as adversidades e os inimigos e

revela o pouco tempo para adquirir outro modo de vida. A linguagem utilizada é constituída

por sentido fornecido a elementos associados ao universo da criminalidade. Nesse caso, a

menção a tipo de armamento, calibre142 e depósito de armas constituem recursos

lingüísticos. Do mesmo modo que a arma é capaz de disparar munição e ser letal, a música

teria a mesma potência de atingir com velocidade, mas para salvar. Também o cantor expõe

a Bíblia como fonte, o “paiol”, de sua força e com poder de destruir o mal e também

transformar e preservar a vida. Mas voltaremos a este ponto mais adiante.

142 As designações 12 e HK referem-se ao calibre de cartucho e tipo de arma; HK é um tipo de fuzil e de submetralhadora.

175

¤

A outra composição é de L´Ton, da equipe Gospel Beat (GB), e deverá constar no

CD “Proceder”, produção independente, a ser lançado com treze faixas143. “Mãos pra cima”

é a canção de trabalho, disponível no site do grupo, exemplifica a concepção de

evangelização e da vida contemporânea. Combinação de hip-hop, r&b e outras

modalidades musicais, a composição focaliza situações consideradas peculiares a um

segmento da população que pode constituir o público da GB e do REP. Assim, a letra diz o

seguinte:

Mãos pra cima

(Intro)

Fibra (yeh) Sem Stress - Masta Basta Nelboy Dasta Burtha (Nelboy) L-Ton (L-Ton)

GOSPEL BEAT

Mãos pra cima (É pra por a mão pra cima - Meu Deus) Os caras as minas, eu quero ver (Mãos pra cima) Nelboy, Masta Basta todo mundo (Mãos pra cima)

L-Ton (Gospel Beat)

Vem no clima (hã) vem curta essa batida Feita pra você curtir e te deixar no clima

Geral de mão pra cima pois as bençãos vem de cima Com esse som do céu quero te ver feliz da vida Sem intriga sem problemas, sem cair o padrão

Sem tirar chapéu para comédia vacilão Que vive de conversa, blábláblá - Caô

Que quebra a corrente em qualquer lugar que for Aí acusador, me mira mas me erra

Pode atirar em mim quero ver se tu me acerta Desvio da tua seta assim que nem matrix

pois não faz minha cara ter a vida por um triz Diz, então me diz, o que eu posso fazer

Pra ajudar você mudar de vida e proceder Te ajudar largar na vida tudo aquilo que não é bom

Te ver sorrir de novo então aumenta o som

Mão Pra cima (How)Os caras e as minas, vem comigo aumenta o som geral de mão pra cima (Ok) Os caras e as minas, geral de mão pra cima pois as bençãos vem de cima

143 Informação contida na entrevista “O ‘Proceder’ dos pioneiros do rap gospel carioca”, disponível em www.enraizados.com.br, acessado em 22/06/05.

176

Essa é minha missão, o meu compromisso Libertar você do inferno astral do mal do vício

Te avisar do precipício, pra (vo)cê não cair Depois que caiu é mais difícil pra subir

Mas lembre-se que uma andorinha só não faz verão Então chega junto aê, dê-me sua mão

Nossa união fortifica a corrente Que contra o inimigo se torna mais resistente

Se quiser uma força anote aí, acesse www.gospelbeat.com.br

E pros acomodados e traíras de plantão www.solamento.com

Na era da Internet, mantenho o sonho vivo Se quiser ajudar pra vencer conte comigo

Daqui "O.S.K144” mandando idéia pra somar Mesmo perdendo o jogo Deus dá um jeito de virar

Refrão

Aí, quem diria que um dia seria assim? Tudo tranqüilo tanto pra vc e para mim

A gente brindando (tintin) pra comemorar a vitória Esquecendo frustrações, medos e derrotas Escrevendo uma nova história na canção Sem treta, sem tiro e sem sangue no chão

Esse é o som, para alegrar a sua vida Te fazer feliz e levantar sua auto estima

Sem abandonar o time, sem trair ninguém Com os parceiros da G.B. (hã) eu vou além

Mantendo o respeito aí, daquele jeito Tudo misturado sem caô sem preconceito

E aí? curtiu o som? quer algo mais? Se quiser ajuda pode vir que eu sou da paz

Geral de mão pra cima sem perder o proceder É isso que eu desejo para mim e pra você

Refrão

O aspecto moral aparece em destaque com a finalidade de apresentar maneira de

celebrar a vida na qual a traição, o “vacilo” e as intrigas são rechaçadas. Diante de situações

aflitivas ou consideradas impossíveis, têm-se a solidariedade, a “corrente”, mantida por

aqueles que compartilham de compromisso com a retidão e a felicidade. Os bens e a

tecnologia aparecem como os veículos da relação consolidada com o dar e o receber.

144 A sigla é uma menção ao site Os Karas, cuja atuação é divulgar eventos musicais no dito meio evangélico.

177

¤

A última canção é do CD solo “Revoluoção”, do rapper Luo, com divulgação

independente e ligado ao selo 7 Taças145, da qual faz parte o grupo APC XVI. O CD duplo

“Revoluoção”, contém 29 canções, foi lançado na “festa” da SC, sendo o hip-hop a

influência de Luo – essa expressão musical também é a mesma que está na base de

trabalho da equipe promotora do evento. A música “Mó blef”, uma das mais executadas, é

a 13 do segundo CD146, cujo título é “Nova Ordem”, e revela a proposta do trabalho. A

Letra de autoria de Luo coloca o seguinte:

Mó blef

Têm vozes inimigos de você, uns ocultos, outros declarados Mas não não tem nada não, o Senhor é por nós

Ouça minha voz e guarde ela até morrer Lembra dela tipo um hino que foi feito em homenagem a você

Pra te proteger daqueles que querem te corromper Em troca de dinheiro, em troca de status

Dizem ser seus parceiros, mas não passam de ratos Atos, falhos, negros que na televisão fazem papel de otários

Tem vários, pagodeiros, rapper, jogador, roqueiro é tudo isqueiro Pronto pra acender uma bomba que quando explodir só vai machucar você

Escravos da mídia, capitães do mato, trocam você pelo dinheiro dos brancos Assistem mães aos prantos e, mesmo assim, entregam semelhantes pra sofrer no tronco.

Tipo igual aqueles roqueiros, maconheiros que eu não passo um pano Em troca de dinheiro, eles viciam os próprios manos

E o hip-hop adere a toda essa patifaria Cadê o amor eterno jurado à periferia

Se transformou em ganância, virou orgia Você agora é menos importante que o produto da joalheria

Pensa nisso, você não é bandido, pensa nisso. Pra mim você é irmão Esquece essa história de pagar pau pra ladrão Pensa nisso, louvor a Jesus Cristo, pensa nisso

Bota fé em Deus, prestigie aquele que sincero no rap Não perca tempo com outros lados, pé no breque

Pois o sistema, hum! É mó blef. Só te ama de verdade Aquele que nunca te esquece e o resto, hum, hum, é mó blef

Blef, mó blef, é mó blef A polícia ta programada pra matar, raramente ela vai dar boi pra você

145 A gravadora, fundada em 1998, é a primeira de hip-hop voltado ao segmento evangélico. O nome é oriundo de certa passagem bíblica contida no livro de Apocalipse e, para os fundadores (dentre os quais está Luo), tem a ver com a proposta de “simbolizar arrependimento e mudança de vida”. Maiores detalhes, ver: www.7tacas.com.br, acessado em 23/08/02. 146 O primeiro CD é denominado “Arquitetura e destruição” e contém 18 canções.

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A política ta cheia de ladrão que sempre vai mentir. O que não falta nesse Mundo é safado. O futuro ta escuro, sendo que era pra tá azul

Era pra ter emprego pra todos, igual empreguei as vogais Mas o sistema transforma uns em sofredores, outros em vagais

Estamos longe demais do conforto. Domingo à noite ele joga dinheiro no ar, Enquanto a tiros outro irmão é morto. Passa um sufoco, viu a morte de perto Será que agora vai aprender que o mal que você faz sempre volta pra você

Fomenta nos pobres a ganância pela grana, esbanja quem quer dinheiro, joga pro ar depois não reclame ser um favelado, viver numas de querer te seqüestrar

(...) blef, mó blef, é mó blef

Aquele maluco do rap ali é mó blef, aquele político ali é mó blef Aquela mina ali é mó blef, aquele polícia ali é mó blef, aquele rico

Podre é mó blef. Mas eu vou citar quem é o blef pior mentiroso Aquele que deu origem a todos os outros, tipo nojento asqueroso

Pai da mentira e de tudo que não presta (...)

blef, mó blef, é mó blef

A crítica feita à sociedade integra aquilo propagado como “rap positivo”, cuja

peculiaridade é denunciar as injustiças, valorizar a imagem feminina e mostrar uma solução

para os problemas sociais. Estaria também alocado sob a rubrica o ato de divulgar o

Evangelho, como fonte de “redenção”, a não desvalorização de outras crenças e expressões

musicais147. Na composição há a lista de atos possíveis de levar o homem ao sofrimento

como impor precária condição de vida: o desemprego, a exposição degradante em busca de

reconhecimento e o dinheiro como elemento mais importante. Nesse quadro ninguém fica

de fora, a polícia, os políticos, os traficantes, os usuários de drogas, aqueles que dominam a

mídia e o rapper, capazes de se opor à exploração, enfim, todos submissos ao poder do

dinheiro e também corruptores. O “sistema” e seus componentes constituem o “blef”, a

“goela”, a enganação exercitada por todos; nesse momento, uma gargalhada,

eletronicamente distorcida, integra o arranjo sonoro. Ela representa o engodo e, portanto, o

sofrimento impingido ao ser humano.

¤

Essas composições trazem à cena dois pontos. O primeiro tem a ver com outras

produções musicais e fonográficas apresentadas à sociedade brasileira e não dependem

147 Maiores detalhes, ver: www.7tacas.com.br, acessado em 23/08/02.

179

somente da transposição de referências sonoras e musicais. Diante de questões pertinentes

ao meio evangélico, os promotores utilizam técnicas digitais facilitadoras de combinação

ou transformação de sonoridades. Esse exercício depende do conhecimento de cada

profissional e da detenção de técnicas desenvolvidas globalmente. Resulta em inovações

digitais com cortes, com acelerações ou não das batidas, com o uso ou não de vocais e

demonstram as possíveis e, nem sempre, imagináveis recriações. Diria não ser isso

resultante do mero transplante das coisas, são sínteses de obras geradas localmente e aliadas

ao uso de experimentos vanguardistas que desvelam a capacidade de artistas em ação na

América Latina (Canclini, 1997:79/81).

O segundo ponto tem a ver com a disseminação de proposta de evangelizar ao falar

em problemas atuais e sobre as condições de vida. Ao combinar política e religiosidade, a

crítica é a característica do rap do APC XVI, e tem por recurso disseminar a idéia de que a

salvação e a danação são as alternativas. Ter-se-ia então a música de missão

evangelizadora, que visa cumprir o objetivo de pregar aos ouvintes. A letra apresenta

denúncias sobre a realidade, ao mesmo tempo, busca demonstrar o correto “proceder”,

concebido conforme as Escrituras.

Os trabalhos apresentados, independentemente da adesão ao hip-hop, têm por

característica denunciar as injustiças sociais, conscientizar os moradores de áreas não

centrais e, por fim, a missão evangelizadora (Novaes, 2003:29). A característica das

canções é a busca por contextualização e recorre-se a problemas contemporâneos ou aquilo

entendido como tal.

Do mesmo modo, o rap apresenta modalidades: existe o religioso elaborado por

evangélicos; há também outro que mistura “tradições cristãs e afro-brasileiras” e opõe

sagrado e profano ao usar símbolos religiosos sem vincular a instituição religiosa (Novaes,

2003). Esses rappers são os propagadores da fé cuja condição é a relação entre a visão

política e a religiosidade não voltada a enfatizar outra vida, mas aquela desenrolada no

cotidiano e sensível ao agir diário (Novaes, 2003). Ao observar as músicas, esses aspectos

estão presentes e também tecem um quadro da vida e da sociedade contemporâneas no

qual, para uns, o uso inadequado de recursos materiais conduz à desigualdade; outros

apontam não somente os problemas e as soluções, mas a tecnologia como canal para

alcançar estado de unidade na sociedade.

180

Como o rap, as músicas produzidas e executadas nos eventos revelam as

características e as distinções entre elas. Encontra-se aquela possuidora de conteúdo de

missão, ocorre junção entre crítica social e religiosidade e, por último, outra sublinhada por

discurso de valorização do fiel. Tocadas e dançadas a partir da combinação entre sagrado e

temas terrenos, as músicas revelam a coexistência de arranjos e concepções no meio

evangélico e não divulgam somente mensagem de salvação; não da salvação fora do

mundo. Então, os artistas procuram intervir no cotidiano de leigos e ouvintes.

Quem fala e faz o quê

Anteriormente foi vista a inscrição de grupos, de equipes voltadas a integrar o meio

evangélico. Apresentam ações pontuadas pela diferença e anunciam possuir base bíblica.

Ao aprofundar mais a observação desses grupos, foi possível ver que as alterações não são

pertinentes ao aspecto do entretenimento, não buscam proporcionar somente o

divertimento, apesar de não abdicar dele. As equipes expressam e os promotores tomam e

combinam vários elementos e estendem suas ações. Ao ter, por ponto de partida, como os

promotores entendem suas atuações, seja em relação à música, seja em relação às reuniões,

foi perguntado a TR qual seria a proposta da equipe SC. Sua resposta foi no tocante ao que

seria transmitido, pois:

A mensagem também é uma mensagem black; é uma mensagem mais voltada pro negro. Não quer dizer que os brancos não venham fazer parte do contexto, sendo que tudo que acontece nesse mundo, principalmente no Brasil, no Rio de Janeiro, é tudo pros brancos. Então, eu quero mostrar pro negro que ele também pode ter uma parada pra ele também na igreja: ‘oh, isso aqui é teu, meu irmão, a parada também é sua’. Por quê? O branco... O negro está sempre disposto a ta inserido no projeto do branco, fazendo parte do projeto do branco e isso passou a ser natural. Quando você faz uma parada às avessas nego já começa a dizer que tá agindo de racismo, que é racismo ao contrário, e não quer mais. Pô, cara, todo já se acostumou a ver o negro não reivindicar, quando reivindica qual o motivo... ‘Mas o cara tá querendo, mas, o cara não sei o quê’. Pera aí, meu irmão. O cara não tá na faculdade e você tá, o cara come mal e você come bem. Tá errado, meu irmão. Tu tá errado, deixa o cara dá o grito dele mesmo, tem que dá; eu bato palma do outro lado.

181

TR faz a relação imediata entre Evangelho, música e temática racial e reconhece a

pouca participação de negros148 ou de iniciativas voltadas ao contingente formado por

estes. Assim, elabora a relação entre a desigualdade no meio evangélico e a existente na

sociedade brasileira, ao apontar as condições religiosas e sociais inadequadas. Também

relaciona as condições de vida, a incapacidade e/ou o não reconhecimento de reivindicação

quando realizada. Diante disso, considera a promoção de eventos como vetor de

valorização, no interior do cenário religioso e também artístico, da população negra e da

cultura a ela associada.

Sobre a proposta da SC, TR complementa que:

A única coisa que a Soul de Cristo quer fazer é dar voz a quem ainda não tem. Existem excelentes e talentosos artistas negros no cenário evangélico que não têm espaço. Porque cantam r&b, porque fazem blues. Porque fazem tudo que não tá dentro do contexto que foi criado pelo sistema evangélico, porque existe um sistema. Então, quer dizer, as gravadoras não gravam esses artistas, as rádios não dão oportunidade a essas pessoas; mal ou bem, elas têm um testemunho bom pra passar e elas tornam referência justamente para aqueles que não são evangélicos.

Também ao falar da "festa", o depoente destaca o contexto musical associado ao

meio evangélico e indica que os cantores vinculados a determinados estilos musicais, não

encontram condições favoráveis ao desenvolvimento de carreira. Existem gravadoras e

emissoras de rádio que investem em outra inscrição musical – principalmente a balada

romântica. Então, seria uma organização empresarial excludente de artistas; isso ocorreria

por causa da associação com determinada inscrição musical, cuja ascendência seja

desprivilegiada. Para TR, existiria a necessidade em constituir canal alternativo de atuação,

de veiculação musical e de mensagens capazes de atender o âmbito da fé e o da vida

material.

Outro exemplo pode ser dado pela equipe GB, pois ela estabelece ser a "festa"

produzida verdadeiramente black, voltada a atingir público determinado. Assim, a

apresentação do grupo é a seguinte: 148 De acordo com documentos e discursos proferidos pelos entrevistados, o termo negro (s) define a posição ocupada por alguém ou grupo em decorrência da cor da pele e da origem cultural. Estes elementos, então, pesam na organização do meio religioso em questão. No decorrer deste trabalho, a aplicação da categoria possibilita indicar a vigência de orientações entre determinados evangélicos que se apresentam como conscientes das relações sociais consideradas desiguais, seja em âmbito político, econômico e educacional.

182

Nosso ministério é restaurar vidas, utilizando a música para tocá-las, buscando as impactar com a sonoridade black aliada a letras desafiadoras e objetivas. Discursos abertos, retos e diretos enfatizando o arrependimento e o relacionamento com Deus. Vidas transformadas é a meta. DJ's, MC's, cantores, músicos, produtores e simpatizantes são os soldados que formam esse ministério - jovem e ousado, onde a base é muita oração e ação/ muito som e pregação; estratégias dadas por Deus quando nos incumbiu de fazer sua vontade. Uns pregam em hospitais para enfermos, outros pregam em cadeias para os presos, outros evangelizam estrategicamente no carnaval, nós evangelizamos a "GALERA BLACK". Onde essa galera estiver, ali estaremos sendo luz para a vida deles149.

Cabe conceder ao canto poder evangelizador; essa música é eficaz devido aquilo

definido black – letras, sonoridades e origem. Ela permite a realização de certa ação e

inscreve novos atores no cenário religioso. Sem a presença de autoridade legitimada

institucionalmente, o texto apresenta outras personagens aptas a compor o trabalho de

evangelização. Assim, profissionais como DJs, MCs, cantores, empresários e músicos

passam a ser os manipuladores de conversão sonora e musical.

L´Ton, componente da equipe GB, fala da importância da “festa” por ele produzida

na cidade do Rio de Janeiro e explicita ser ela percebida como algo além de um canal de

transmissão religiosa, pois, para ele:

Em sua maioria, os jovens que vão para essa festa são negros. Por isso, tentamos passar para eles a cultura negra e gospel que não é muito difundida no meio evangélico. Como nosso país foi colonizado por europeus, o próprio evangelho que foi difundido por eles veio nos “moldes” do homem branco. Por isso, nos bailes tentamos resgatar essa cultura que se perdeu. Hoje os jovens e o público gospel já começam a identificar essa divisa. Mas é um trabalho árduo. Por isso, damos preferência a esse tipo de música, a nossa música. Afinal, hoje, os principais produtores de bailes são negros e sabemos o que sofremos para conquistar nosso espaço (de chamarem nossa música de música mundana, diabólica e etc.). O trabalho que fazemos sem falar muito, mas com muito som, clipes e etc, é justamente ajudar as pessoas a entender que se louva a Deus com música negra (charme, hip-hop, samba etc), assim, levantando o negro e colocando em seu devido lugar dentro das igrejas.

149 Disponível em www.gospelbeat.com.br, acessado em 07/04/05.

183

O trabalho da equipe é alterar a concepção teológica norteadora dos evangélicos. O

depoente atribui a essa esfera e à empresarial o desconhecimento do negro. Empreendendo

ação também de ordem cultural, revela invalidar visões difundidas e informar o

freqüentador de que os elementos ali oferecidos devem estar presentes para que os próprios

adeptos possam se reconhecer como fiéis e integrar o meio religioso.

As propostas da SC e da equipe de L´Ton apresentam congruências. Busca-se ter

trabalho de transformação não do pecador, mas do submisso, do excluído, daquele sem

reconhecimento. Nesse sentido, a importância estaria em ultrapassar a evangelização

pautada exclusivamente na transmissão de concepção bíblica150. Os DJs podem ser vistos

como os disseminadores de uma nova visão religiosa e visam alterar a sociedade. Suas

pregações destacam a vida cotidiana, as questões sociais, políticas e econômicas

(Thompson, 1987; Novaes, 2003). A partir da audição das músicas e da apresentação de

artistas, haveria a aquisição de subsídios sem visar o mercado musical abrangente e

consumidores não negros (Gillian, 1996). Para as duas equipes, sem dúvida, o

entretenimento é um atrativo. Não obstante, seria possível afirmar que a GB e a SC

vislumbram associação inovadora e sensível aos problemas sociais, políticos e materiais.

Concebem, admitem arranjos e combinações entre reivindicação política, recreação e

religiosidade (Bastide, 1974:188-192) 151.

150 Burdick (1998:119-147), ao estudar o cristianismo popular no Brasil, indica que, em São Paulo, certa liderança em atuação no meio evangélico critica o racismo e reflete acerca da presença do negro na Bíblia e também mantém proximidades com o movimento negro paulista. 151 Para o autor, a participação de negros no cristianismo, nas versões protestante e católica, não marca somente o aspecto místico da religiosidade. Há de enfatizar o desenvolvimento de associações nas Américas, reveladoras de reações das populações negras diante da nova realidade social e econômica e enfrentariam com o fim da escravidão. Na América do Norte, principalmente com a migração para as cidades do norte, com problemas característicos da dinâmica urbana, os negros encontraram na vida religiosa terreno ao desenvolvimento de comunidades não restritas à esfera religiosa. Essas associações teriam interesses pelas condições materiais e políticas que atingiam o negro. Portanto, cuidariam de questões como o desemprego, a moradia e a discriminação social, atuando entre os jovens a fim de estabelecer grupos recreativos que oferecessem alternativas aos atrativos da vida de rua. Na América Latina, o clero, ao afastar do âmbito da igreja as cerimônias realizadas entre os negros, conduzindo-as às bordas do catolicismo, não eliminou as associações nas quais um folclore negro e mestiço foi desenvolvido e continuou a dar aos seus freqüentadores inserção comunitária. Ao lado de antigos agrupamentos, Bastide aponta que as associações desenvolvidas no ambiente urbano permitiram o surgimento de entidades de caráter reivindicatório e recreativo. No primeiro caso, estariam aquelas em atuação contra os preconceitos e na defesa de interesses econômicos e sociais. Ao mesmo tempo, essas associações favoreciam o encontro entre os negros e, portanto, o fortalecimento de valores e condutas importantes para a continuidade da vida comunitária. Já entre as organizações recreativas e marcadamente urbanas, estariam as escolas de samba e os bailes, que figurariam como compensações diante da situação de marginalidade social.

184

O arranjo proposto visa reformular o meio religioso ao colocar de modo, mais ou

menos, direto a diferença que envolve as relações entre brancos e negros no meio

evangélico e também do distanciamento dos traços da cultura brasileira (Novaes, 1985b).

Os articuladores de black music gospel e de “festa” surgem como os atuais propagadores de

religiosidade, de distinta religiosidade. Estabelecem um “campo de polêmica” com ênfase

não em outro mundo, não na salvação pós-morte, mas naquilo que seja imediato, real e

renova o lugar da religião no mundo contemporâneo. Neste sentido, há confluência com os

rappers brasileiros, envolvidos com o rap e a leitura bíblica, norteados por visão de uma fé

como expressão cultural, cujo destaque está em alcançar resultados de ordem política

(Novaes, 2003:43 e 35) e buscam atingir em relação a um segmento de receptores. No

âmbito musical, ocorre reinterpretação bíblica pontuada por crítica religiosa e social.

TR delineia sua proposta: questionar a esfera institucional e a própria sociedade a

fim de atingir parte da população. Diz também: "a Soul de Cristo não quer ganhar o espaço

dela dentro da igreja; ela visa ganhar um espaço na sociedade, ela quer abrir uma porta...".

Questionar as relações estabelecidas entre negros e brancos, seja na sociedade, seja na

igreja, parece ser o ponto para os disc jockeys da equipe. Como os componentes da SC, a

GB coloca o mesmo elemento em sua proposta, mesmo que L´Ton, um de seus

componentes, destaque o entretenimento, a equipe se apresenta como tendo objetivo

específico: atuar entre a dita “galera black”.

Anteriormente foi visto que os promotores de “festa” sublinham tratar de iniciativas

direcionadas aos jovens urbanos, enfatizando a dimensão do entretenimento. Porém, outro

contingente é privilegiado por suas ações. O empresário da GN especifica ser o seu público

formado por grupos juvenis urbanos, ao contrário das outras duas equipes. A temática da

desigualdade social, racial e arranjos que destaquem uma negritude não constituem seu

escopo de atuação. Apesar disso, o material promocional é construído sobre determinada

estética e, além das expressões musicais, contribui para indagar acerca da percepção de cor

e a concepção de ser negro.

Na "festa" da GN, negros e mestiços têm presenças significativas, sendo também

utilizadas expressões musicais que expõem as influências dos organizadores. São

vinculadas às populações de cor, seja no Brasil ou em outras paragens, principalmente nos

Estados Unidos. Porém, isso não significa existir imediata problematização das relações

185

sociais ou de os envolvidos relacionarem música e atividades como componentes daqueles

definidos negros.

No meio religioso e fora dele, as equipes realizam negociações, estabelecem

tensões, diferenças, alianças com outros atores sociais e ampliam o raio de suas ações. São

processados questionamentos acerca do meio evangélico e, desse modo, sobre a ambígua

presença do “negro”, haja vista compor boa parcela de fiéis e, ao mesmo tempo,

permanecer ausente na liturgia152. Alguns promotores, como os da equipe SC e da GB,

apresentam críticas ao meio evangélico pela valorização e pela disseminação de prática

religiosa pautada na cultura européia – difundida por missionários - em detrimento de outra

expressão cultural. Assim, a distribuição de poder na esfera religiosa e na sociedade é

questionada por eles, pois visam transformar esse quadro153; o começo pode ser pela

valorização de artistas e bens culturais.

Estes dois pontos não ficam restritos ao meio religioso, pois os organizadores de

“festa” e da black music gospel dialogam constantemente com outros formuladores de

eventos musicais e de black music. Quando aqueles falam de suas iniciativas apresentam

uma concepção de cidade, expõem outra topografia urbana. A despeito do traçado

administrativo, os integrantes da GB e da SC vêem a região a partir da concentração de

práticas culturais desenvolvidas fora do meio evangélico: o jongo, o samba e o “baile

charme”. Essas são algumas das expressões culturais citadas e viáveis para falar sobre a

importância de negros para a constituição histórica e cultural da sociedade.

As equipes podem apresentar proposta em atuar e conscientizar a população não

branca, valorizar expressões musicais e estéticas e constituir certa modalidade cultural e

religiosa. Não se trata de atuações encetadas por ativistas, mas elas também permitem

observar como certas questões podem estar presentes e não somente constituir meras

152 Existem outros grupos formados por leigos e líderes que discutem diretamente as desigualdades sociais e raciais, principalmente as pertinentes aos direitos, à valorização e ao reconhecimento político da população não branca. Tudo isso é realizado a partir de reflexões acerca do fluxo, de transposição de homens e mulheres da África para terras americanas. A base dessa reflexão pode ser formada por escritos acadêmicos e literários produzidos por estudiosos evangélicos ou não. A partir daí falam das constituições das igrejas e o que deve ser cobrado delas. 153 Nas “festas” da SC foi possível encontrar freqüentadores que apresentavam uma reflexão mais elaborada sobre o tema ou ostentavam objetos – camisas e boinas – com palavras, frases escritas ou compostas por cores que remetem à Jamaica, ao rastafarianismo e ao som do reggae; estes são disseminados e marcam mobilizações voltadas à crítica ou à exaltação da cultura relacionada à população de cor negra. Não obstante, há de considerar que esses objetos podem constituir comunicação entre os presentes talvez porque sejam bens produzidos e disseminados internacionalmente e desenham modo de integração ao mundo contemporâneo.

186

estratégias. Os promotores não são os únicos em falar e em produzir eventos viáveis à

inserção de discussões sobre ser “negro”, ser “afro-descendente”, bem como seu lugar no

meio evangélico. Existem outras iniciativas e elas compõem, juntamente com as “festas”,

pistas para entender as produções musicais, de reuniões e fonográficas e, assim, as

transformações do meio evangélico. Vejamos algumas delas.

Falas e ações: além do entretenimento

O meio evangélico brasileiro é caracterizado por determinada visão de práticas

culturais religiosas como a umbanda e o candomblé. Isso abrange os grupos pentecostais,

neopentecostais e históricos. Na Igreja Metodista, apesar da vigência do discurso de não

“acepção de pessoa”, não há valorização da cultura afro-brasileira ou afro-latino-americana

e são ressaltados aspectos da cultura anglo-saxã também difundidos por missionários

(Novaes, 1985b).

No pentecostalismo, não há tanta diferença (Burdick, 1998; Contins, 1995).

Também vigora o discurso de igualdade entre os adeptos e é expresso não ser a cor da pele

elemento determinante na construção de identidade religiosa. Isso está presente nos

“testemunhos”, nas falas marcadas por referências ao cotidiano, que ressaltam a sociedade

mais ampla e nela, aí sim, ocorrem as distinções relativas à cor da pele e de origem cultural

(Contins, 1995: 99,185). Como entre os históricos, no pentecostalismo é visto

negativamente aquilo considerado conectado à África - esta é concebida como região

tomada pela “idolatria” – e os cultos passam a combater os cultos afro-brasileiros. No

entanto, existem protestantes, e pentecostais também, voltados a desenvolver leitura bíblica

e, assim, negociar outros posicionamentos com os fiéis (Burdick, 1998: 144-146).

Durante o período de pesquisa deparei-me com ações empreendidas por leigos e

líderes religiosos que visavam valorizar e aproximar o repertório teológico com expressões

culturais negras. É feita relação entre crença, música e visibilidade social e religiosa. Cito o

Fórum de Música Negra e Evangelização (FMNE), elaborado pelo Fórum de Mulheres

Negras Cristãs (FMNC), e o Fórum de Lideranças Negras Evangélicas (FLNE).

187

O FMNC154 visa conscientizar o meio evangélico e a música aparece como

importante condição. Para suas integrantes, o objetivo do fórum é desenvolver “o

conhecimento sobre nosso espaço histórico-social e teológico, e nos fortalecendo

mutuamente chegaremos a criar e recriar nossa identidade enquanto mulheres negras

cristãs”155. Com a visão antenada com diversos movimentos de emancipação de grupos

politicamente minoritários, as integrantes do FMNC propõem a atuação feminina e de

negros a partir de concepção formada por três dimensões: o passado - pontuado por

desvalorizações; a atualidade social - com a exclusão; a teologia - com a invisibilidade. A

construção de agentes políticos recobertos por auto-estima exige a inversão de tal quadro

em relação às mulheres negras. Assim, está em andamento articulação para viabilizar uma

alteração do meio evangélico. Ela pode colocar em debate a participação em postos de

comando e de decisão na hierarquia religiosa (Machado e Figueiredo, 2000:127); neste

sentido, a inscrição feminina negra tece um diálogo indireto com a visão institucionalizada

de igualdade já que é buscado conhecer “nosso espaço histórico-social e teológico”156.

Diante da dimensão legal defensora de inserção e da não discriminação de cidadãos,

de expressões culturais e religiosas, há de registrar também a ação do FLNE. Seu início se

deu em São Paulo, quando houve a reunião de líderes religiosos, leigos e pesquisadores

voltados ao desenvolvimento de ações no tocante “à questão da negritude nas igrejas

evangélicas”. Seus participantes enfatizam a necessidade de refletir a “questão do afro-

descendente” no âmbito religioso e, assim, buscar vias para efetivar “políticas de ações

afirmativas”157. Estas devem abranger a teologia, as cotas e bolsas de estudos nas

154 Sua fundação ocorreu na década de 2000, em São Paulo, e reúne participantes de várias denominações evangélicas. 155 Conforme mensagem recebida em 2004. 156 A inscrição do FMNC pode provocar uma reflexão sobre a “festa” quando é reconhecida diferença entre as iniciativas. Nega – única mulher envolvida com as equipes organizadoras de “festa”. No segundo capítulo foi visto aquilo como os promotores entendem a realização de “festa”. Nega falou sobre a importância para ela em “...mostrar um ambiente em que você pode estar conversando sem precisar de prostituição. Sem precisar de utilizar drogas”... O propósito nosso é isso. Você estar mostrando pra pessoa um evangelizar aquela pessoa através da festa, mostrando o amor de Cristo por aquela pessoa”. Ao comparar com as integrantes do FMNC, a reflexão de Nega coloca ênfase na exemplaridade moral e na força da oração como requisitos para atuação. Eles figuram como os componentes da inserção e do reconhecimento feminino; portanto, a honra é fortalecida e ampliada a partir da ligação com o divino (Gillian, 1996:233). 157 Sobre ação afirmativa e política de cotas, principalmente a medida federal e as ações implementadas no Estado do Rio de Janeiro, ver: Ayres Machado, 2004.

188

instituições de ensino denominacionais158. Além disso, observam que as igrejas

neopentecostais associam o mal aos cultos religiosos identificados com a população negra.

Isso ficaria visível nas doutrinas por elas pregadas159.

O FLNE encaminhou reivindicação ao II Congresso Brasileiro de Evangelização -

CBE2 - como modo de questionar o meio religioso. A busca é pela alteração da vigência

das posições desiguais no âmbito religioso. Seus integrantes entendem a necessidade de

dar:

Um basta na omissão da Igreja Evangélica brasileira e quebre o silêncio dos púlpitos com a temática negra e que não fique só nas palavras, nos sermões e nas declarações, mas também através de ações concretas: programas, campanhas, ações afirmativas e reparações 160.

Estas discussões apontam para a existência de um campo de diálogo do qual

participam alguns promotores de black music gospel. O FLNC e o FMNE colocam em

debate alguns direcionamentos doutrinários e mesclam com outros que permeiam a

sociedade abrangente com promoção da igualdade: as políticas de reparação e afirmativas;

assim, indicam a procura por caminhos de valorização do “negro” e do “afro-descendente”.

O primeiro é aplicado para denunciar e discutir aquilo que entendem ser a invisibilidade do

negro no meio evangélico, pois a teologia, a liturgia, a estética corporal e musical não

contemplam sua origem e presença; seu uso determina o grupo de fiéis identificados pela

cor da pele e identidade cultural. O segundo termo define o ser coletivo e remete ao âmbito

da luta política contra a marginalização econômica e política161.

158 Ver: Relatório do Fórum de Lideranças Negras Evangélicas, disponível em http://br.msnusers.com/afrodescendentesnasigrejasevangelicas, acessado em 22/11/03. 159 Ver: Fórum de Lideranças Negras Evangélicas, http://br.msnusers.com/afrodescendentesnasigrejasevangelicas, acessado em 22/11/03 . O texto “A Ética e a Igreja” veicula a crítica sobre a relação entre a cultura negra e o demônio, maiores detalhes: http://br.msnusers.com/afrodescendentesnasigrejasevangelicas, acessado em 02/04/04. 160 Ver: Manifesto do Fórum de Lideranças Negras Evangélicas para o CBE2, disponível em http://br.msnusers.com/afrodescendentesnasigrejasevangelicas, acessado em 22/11/03. 161 Entre os integrantes do FLNE, “negro” e “afro-descendente” são termos utilizados constantemente e, por vezes, são intercambiantes. A aplicação ocorre para debater condições sociais e religiosas que consideram pontuadas pela desigualdade e invisibilidade que atingem a população negra e aqueles que se reconhecem tendo ligação com os antepassados escravos. Nesse sentido, os “manifestos”, “relatórios”, convites e informativos produzidos pelo FLNE, pelo FMNC e grupos integrantes tentam atingir os “evangélicos”, colocando em foco reivindicações de cunho religioso – as alterações do culto, a invisibilidade da população negra – e outras de âmbito político – políticas de ações afirmativas e exclusão social. A utilização da categoria “afro-descendente”, apesar de “negro” ser recorrente, é marcadamente em relação ao aspecto político; caso seja visto o convite para a participação no “Encontro Metodista Afro-descendente”, do “Ministério de ações

189

A proposta dos fóruns é de haver releitura da teologia com a qual passe a ser

contemplado como sujeito do trabalho religioso. Essas mudanças são inscritas com

atuações de leigos e líderes religiosos no interior do âmbito institucional e demarcariam um

“movimento negro evangélico” voltado, como as ações militantes existentes na arena não

religiosa, às reparações de cunho social, político, histórico e econômico. Assim, os grupos

integrantes tentam mobilizar forças162, congregar adeptos, estabelecer confrontos no

interior do próprio meio evangélico para aceitação de suas propostas por instituições

religiosas.

Além do FMNC e o FLNE, existem outras inscrições, não exclusivamente no

âmbito religioso, mas no empresarial, envolvendo produção musical e organização de

atividades. As articulações são veiculadas por certa imprensa e são vistas também no

ambiente virtual. O reconhecimento de artistas de canções constituem os temas das

atuações.

Exposição de uma polêmica

A empresa de divulgação CON-3 163 realizou, em 2004, na cidade de São Paulo,

festival voltado a premiar as bandas e cantores de black music gospel – rap, soul, r&b e

corais de spirituals - denominado 1º.B.Unit Festival164. Sua organizadora diz ser a idéia

surgida do acompanhamento isolado de artistas e bandas. Muitas vezes, ela esbarrava em

afirmativas para afro-descendentes”, realizado em 2005, o informativo do FMNC, denominado “Ciranda de Informações”, de 2004, noticia a presença do FMNC na “Conferência Nacional de Políticas Públicas para Mulheres”. Neles, apesar de haver referência constante à participação das “mulheres negras”, ocorre o destaque “às questões dos afro-descendentes” que atingem temas como “ações afirmativas”, “racismo” e “preconceitos”. 162 No caso, há o Movimento Negro Evangélico – MNE –, formado por grupos oriundos de diversas igrejas evangélicas. Os integrantes são: Grupo Evangélico Afro-Brasileiro; Simeão, o Niger; Cenacora; Sociedade Cultural Missões Quilombo; Associação Evangélica Palmares; Fórum de Mulheres Negras Cristãs de São Paulo; Fórum Permanente de Mulheres Negras Cristãs do Rio de Janeiro; Fórum de Mulheres Negras da Bahia; Grupo de Reflexão Martin Luther King; Comafro; Comando Revolucionário Cristão; Ministério Asuza; Coral de Resistência de Negros Evangélicos; Grupos de Cristão de Herança Africana; Grupo de Negros da Escola Superior de Teologia; Ministério Internacional de Afro-descendentes; Pastoral de Combate ao Racismo da Igreja Metodista. Maiores detalhes ver: http://br.msnusers.com/afrodescendentesnasigrejasevangelicas, acessado em 26/06/05. 163 A CON -3 tem ligação com a empresa AW Produções – esta é especializada na promoção de cantores e bandas de black music. 164 “B.Unit Festival”, disponível em www.mundonegro.com.br, acessado em 25/06/05; “festival tem como objetivo premiar o melhor da black music nacional”, disponível em www.blackgospelbrasil.yahoo.com/groups/blackgospelbrasil, acessado em 05/08/04.

190

problemas pertinentes à divulgação de suas apresentações e de dificuldades em encontrar

investimentos165. Para a premiação, foram estabelecidas diversas categorias como, por

exemplo, “melhor rapper”, “melhor coral” e “banda revelação”. Para a integrante da CON-

3, no festival seria possível premiar e também:

Trazer um reconhecimento do trabalho que eles têm executado pelo nosso país. Inclusive para resgatar um pouco da história, pois está chegando muita gente nova que faz parte deste ‘segmento’ e não tem noção, nem respeito para com aqueles que começaram este ‘movimento’166.

Os diretores da CON-3 complementam com o seguinte:

Queremos através deste evento trazer uma unidade para o segmento e prioritariamente trazer a essência da verdadeira missão dos músicos da black music gospel, que vai muito além de cantar bem e saber improvisar muito, é necessário ter uma vida de comunhão com Deus que é manifesta através da vida diária destes músicos e perceptível através do louvor que sai da vida deles quando sobem num púlpito ou num palco em suas apresentações167.

Dois pontos transparecem nas falas dos empresários. O primeiro diz respeito ao

reconhecimento dos artistas e de seus trabalhos; o segundo aponta para a capacidade

específica do artista negro. Os responsáveis destacam a ausência de interesse e organização

empresarial capazes de beneficiar os artistas componentes da black music gospel. Isso

ficaria explícito na falta de reconhecimento dos trabalhos e da história daqueles envolvidos

com a construção de parte da música em circulação. De acordo com componentes da CON-

3, são esses artistas, apesar das dificuldades enfrentadas, empenhados em manter contato

com Deus, não somente nas apresentações, mas em sua existência. Exatamente isso

demarca sua especificidade. Tratar-se-ia de dons, como a capacidade de improvisar e a de

cantar.

A atividade da CON-3, em promover o B. Unit Festival, não é a única iniciativa

voltada para a divulgação da black music gospel. Parte da mídia existente no meio 165 A direção entende que isso ocorre porque as empresas, em virtude do produto que comercializam – bebidas alcoólicas e cigarros –, não têm interesse em associar seu produto ao segmento evangélico. Além disso, o público tem em suas igrejas canais de execução musical sem que seja preciso mexer no orçamento familiar porque nas igrejas a apresentação é franca. Esses pontos desencorajariam os investimentos. 166 Mensagem recebida em 29/08/04. 167 Depoimento disponível em: www.mundonegro.com.br/noticias, acessado em 25/06/05.

191

evangélico, principalmente aquela voltada à produção musical, veiculou matérias sobre o

tema. Elas indicam elementos para a reflexão das vias de visibilidade, de reconhecimento

de artistas e da black music gospel.

Em 2005, a revista Show Gospel168divulgou a instalação do grupo You

Entertainment169 no Brasil. A empresa atua nos Estados Unidos no setor da mídia impressa

e digital com produção de CDs, de DVDs e de shows. A matéria explicita ser o objetivo

da empresa instalar a gravadora You gospel e, diz Smith, mentor do projeto, “divulgar os

artistas em rádios e eventos não evangélicos, pois a forma na qual nossos produtos estão

sendo apresentados possibilita isso”. Para o fundador da You gospel, no Brasil o “gospel” é

“semelhante ao americano, principalmente os afro-descendentes se expressam de maneira

parecida. Espero contribuir para que haja uma proximidade entre os evangélicos de

diferentes raças...”170. Outra matéria, voltada a temas gerais e sem vínculos religiosos ou

políticos, veicula o objetivo da empresa na voz de seu executivo-chefe que diz “nosso

negócio é música. Mas essa conexão existe porque vamos dar voz aos afro-brasileiros na

indústria do entretenimento”171.

Na matéria, é possível ter acesso a depoimentos de alguns artistas contratados. Uma

cantora, iniciada no canto em igreja evangélica na favela do Jacarezinho, cidade do Rio de

Janeiro, diz o seguinte “acho uma pena a falta de investimento no negro brasileiro. É muito

interessante a You Entertainment abraçar a causa negra e a causa do artista

desconhecido”172. Outro cantor observa: “todos nós, negros brasileiros, sentimos os limites

que a raça branca nos impõe. Precisávamos de alguém que advogasse em nosso favor com

expertise e dinheiro”173.

O empresário e os artistas compartilham da visão de haver frágil visibilidade para o

artista negro e suas expressões musicais. Os artistas fornecem o tom da invisibilidade ao

apontar, “a causa negra” ou a relação social desigual, como causa do desconhecimento dos 168 Editada trimestralmente por Nova Jerusalém Pub. e Com., é uma publicação adquirida por assinatura e especializada em divulgação da citada “música gospel”. 169 O grupo You Entertainment compreende a revista Essence, surgida na década de 1970, direcionada ao público afro-americano, e organização de festivais nos Estados Unidos. No Brasil, além do setor musical, o grupo registra empresa de turismo Avocet que atua no nordeste brasileiro e traz negros norte-americanos ao país. Ver: Leal. “You entertainment and You gospel”, revista Show Gospel, ano 05, nº 20, p.22-23; Aziz.- “Black money”, www.terra.com.br/istoé. 170 Leal. “You entertainment and You gospel”, revista Show Gospel, ano 05, nº 20, p.22-23. 171 Aziz – “Black Money”. www.terra.com.br/istoe, revista nº1844, 16/02/05, site acessado em 08/07/2005. 172 Idem. 173 Idem.

192

artistas, ou melhor, do “artista desconhecido” e, portanto, impeditiva da obtenção de

reconhecimento. O cantor indica as condições para a alteração do quadro: o investimento

econômico e o conhecimento empresarial. Esses seriam fatores para aproximar

“evangélicos de diferentes raças e que muitos tenham vontade de conhecer os artistas

brasileiros”, como coloca Smith174. O problema pode ser histórico e a solução passa a ser

questão de organização empresarial, ao equacionar recursos – financeiro e humano – para

concretização.

Em portal da Internet, da produtora Mk Publicitá, duas matérias jornalísticas foram

veiculadas e tinham por núcleo a “música afro” e a “música gospel”. Essas definiriam o

rap, o hip-hop, o soul, as baladas e outras expressões musicais como “ritmos afro”175. Para

um pastor metodista e compositor176, a “música afro”, definida como “música negra”,

como black music, seria aquela oriunda da África. Assim, a posição da “música negra” se

deve ao fato de “o swing, as interações, a unção e a liberdade de se expressar faziam com

que o mercado não enxergasse esse tipo de música como um produto rentável”. Afirma

existir trabalhos de qualidade e artistas reconhecidos, porém não há interesse por essa

música. Todavia, na reportagem, o pastor vislumbra a saída ao sustentar que “devido a

trabalhos missionários e interesses dos governantes, o Brasil está mais próximo da África”,

concluindo que “nunca nós sentimos tão africanos, mesmo com tanta influência americana

(...) Seremos uma grande nação em termos de ritmo para a glória de Deus”. Então, as

dificuldades oriundas do desinteresse do mercado e da visão existente no interior das

igrejas seriam vencidas, pois o entrevistado afirma:

Eu sinto que vários intérpretes da música cristã têm recebido um novo paladar e a Igreja está assimilando uma nova linguagem de adoração. Foi-se o tempo em que podiam desdenhar da música gospel. Cada vez mais ela está profética, poderosa e objetiva177.

Ao opor mercado e “profecia” e, em segundo momento, juntá-las, o pastor termina

por indicar como o “mercado” se abre diante do poder da profecia, revelando a noção de

174 Leal. “You entertainment and You gospel”, revista Show Gospel, ano 05, nº 20, p.22-23. 175 Dias. “Música afro ainda enfrenta o desafio de não ser comercial”; “A origem da música gospel e secular vem da África”. Disponível em: www.elnet.com.br, acessado em 11/02/04. 176 Dias. “Música afro ainda enfrenta o desafio de não ser comercial”. 177 Idem.

193

equivalência entre os dois campos. No depoimento também há referências a cantores não

negros e possuidores de receptividade no meio evangélico. Eles estariam ligados aos

empresários e apresentam trabalhos que contemplam expressões musicais relacionadas às

populações negras brasileiras e norte-americanas.

Em outra matéria, é demonstrada a origem da “música gospel” e são citados dois

pastores cantores e outros dois cantores de renome entre os evangélicos brasileiros. Vê-se a

tentativa em demonstrar como o desconhecimento foi um dos fatores prejudiciais ao uso de

certas expressões musicais em virtude da ligação e da imagem existente da África. Para um

dos entrevistados:

Cristo é capaz de resgatar as melodias que estão presas a conceitos culturais e, às vezes, Deus quer usar exatamente o estilo que é discriminado. O ritmo pelo ritmo gera incerteza e questionamento. Devemos saber a essência da motivação que é engrandecer o nome do Senhor 178.

As reflexões sobre relações assimétricas ou aspectos que demarquem a percepção de

diferenças culturais entre o grupo de fiéis não são correntes, pois surge sempre afirmativa

de igualdade perante Deus. Em meu trabalho de campo tal posicionamento era corrente –

na “festa”, nas atividades do programa Explosão Gospel e do Encontro Nacional de Louvor

Profético - existindo cerimônias sempre falando no amor e no poder de Deus. Apesar disso

e da visão de não haver contemplação da cultura afro-brasileira, encontrei situações nas

quais existia referência direta a determinada musicalidade considerada de origem africana

ou com as comunidades negras norte-americanas.

Em 2002, estive no Encontro Nacional Louvor Profético – ENLP – no qual ocorreu

a apresentação de um cantor – também pastor - que dizia ser a sua canção possuidora de

mensagens em idioma umbundo179. Entoou o cântico180, utilizou instrumentos de cordas, e

desenvolveu coreografia logo seguida por todos os presentes. Ela era composta por 178 Dias. “A origem da música gospel e secular vem da África.” 179 Umbundu é a língua falada em Angola, na área situada abaixo do rio Cuanza, na região de Benguela. Juntamente com outras línguas, tem-se o diversificado tronco banto. Miller (1997) destaca que o umbundo, presente no altiplano central, era difundido entre agricultores que praticavam pilhagens de rebanhos bovinos. Segundo Prandi (2000), existem estudos que confirmam a presença no Brasil de elementos lingüísticos dos ramos umbundo, quicongo e quimbundo. Os termos congo, cabinda e angola marcam essas permanências no país, sendo o último utilizado de modo ampliado e abarca o que seja considerado banto. Tal presença pode ser focalizada nas dimensões cultural e religiosa. 180 A letra era a seguinte: Kakuli walisoka la Iesu (3x)- Ninguém é igual a Jesus (4x)/ Já procuramos por todo lugar/ Já apalpamos por todo lugar/ Já rodeamos todo lugar/ Kakuli walisoka Ia Iesu.

194

movimentos pendulares, as mãos sendo estendidas como se algo fosse procurado; a seguir

uma volta inteira sobre os calcanhares e, por fim, um pulo para o alto. Enquanto a canção

era entoada, o cantor falava da vinda de Jesus, que mudaria o lugar com a glória divina.

Como aconteceu quando outros artistas e/ou pregadores se apresentaram, houve a

manifestação dos presentes, com muitos gritando, pulando, curvando-se ao chão e dizendo

“aleluia”. Isso perdurou todo tempo de execução da canção, cerca de 20 minutos.

Em reportagem, esse cantor e líder religioso depõe sobre suas composições e diz

“não fiz essas canções propositalmente, foi de uma forma espontânea. Está no sangue. São

minhas raízes africanas”181. Na mesma matéria, conclui “o africano é muito criativo. A

forma como eles processam e sentem a música mexe com os sentimentos de quem

ouve”182. A noção apresentada traz um arranjo nutrido por prática religiosa e contadas

capacidades favoráveis para desenhar determinada noção de negritude. Essa surge como

essencial com a relação entre “sangue” e “raízes africanas”. Esta relação desenha

rigidamente uma negritude composta pela “espontânea” criatividade conduzida

biologicamente. Nesse ponto, a biologia é recurso constante na reflexão acerca da diferença

e de demonstração de posicionamento.

Os materiais indicam relação entre cor e sagrado, cor e dom espiritual, com a qual o

“negro” daria demonstração e efetivamente teria modo de estar em contato com Deus. Isso

não é algo inusitado. No pentecostalismo, os cristãos definidos como negros teriam

capacidade natural para a música e, ao adotarem expressões musicais comuns ao meio

secular, alcançariam o objetivo de evangelização. Segundo Burdick (1998: 142, 143), entre

os pentecostais haveria a presença de uma visão ambivalente: o negro teria mais poder

espiritual – podendo ir do perigo à salvação, do sensual ao espiritual, permitindo visualizar

determinada diferença a partir da combinação entre cor, origem e espiritualidade.

Embora as situações aqui descritas apresentem diferenças entre si, elas resultam das

conexões estabelecidas. De um lado, os fóruns colocam ações de cunho político; de outro

lado, certa imprensa aponta para atividades pertinentes aos âmbitos musical e empresarial,

especificamente o mercado.

181Dias . “A origem da música gospel e secular vem da África” . 182 Dias. “A origem da música gospel e secular vem da África”, disponível em www.elnet.com.br, acessado em 11/02/04.

195

Líderes e leigos, pertencentes aos fóruns, falam sobre o meio evangélico e indicam

como as relações sociais e a noção de ser negro são concebidas e vividas. Fala-se nos

sentimentos, na invisibilidade do “negro” na teologia, na capacidade de cantar, em se

relacionar com o sagrado, sobre o poder das formas culturais relacionadas à população de

cor, de seu reconhecimento cultural e social. A partir disso, focalizam a religiosidade

concebida em tensão com a visão sobre as relações sociais, políticas e religiosas. Assim,

ocorre outra inscrição de um ser negro e os termos “negro” e “afro-descendente” confluem

para definir os níveis de ação do FLNE: as mensagens espirituais dos púlpitos; as “ações

concretas” próprias da política.

Por sua vez, os pronunciamentos de artistas e empresários apontam para as

oportunidades empresariais e as articulações econômicas. Estas são vistas como capazes de

findar a desigualdade e de abalar certa construção que tem tornado o negro historicamente

invisível no meio religioso, estabelecendo a comunicação entre os “evangélicos de

diferentes raças”. Assim, confrontam com a iniciativa política feita pelos fóruns e as visões

de pastores cantores, propagadores da herança espiritual ou sangüínea.

As situações relatadas permitem indicar como determinados bens musicais,

considerados inclusos em fluxo constituído por formas culturais negras, são tomados e

contribuem para desenhar a negritude (Gilroy, 2001:86,87). Esses casos franqueiam indagar

sobre a inscrição musical e, além de indicarem as inovações aplicadas na produção de bens,

integram forma de expressar a fé, contribuem para divulgar a visão da organização da

sociedade e do meio religioso. Também trazem elaborações paralelas e/ou mescladas sobre

cor, origem, posição, participação e reconhecimento de fiéis e artistas.

Assim, deparei-me com peças de quebra-cabeça não restritas ao entretenimento ou

ao político. Elas fomentam questionamentos acerca da presença de artistas e fiéis no meio

evangélico. Alguns responsáveis por organização de “festa” apresentam intenções e

preocupações em agir entre jovens urbanos, mas a “festa” revela outros elementos em

circulação que indicam ser possível compreender o que vem a ser a música ali presente.

O fim não é aqui, pois, para pensar mais acerca dessas diferenças, outros pontos

precisam ser abordados. O material imagético das equipes permite prosseguir com a

reflexão sobre as concepções de black music gospel, de negritude, de modos e inscrições no

âmbito religioso e artístico. Também a atuação em determinada área da cidade e o tráfego

196

de estilos - roupas e modo de apresentar o corpo -, compartilhados por promotores e

freqüentadores, podem estabelecer uma comunicação entre eles e, por conseguinte, uma

participação diferenciada no fluxo cultural de amplitude global. Bem, isso fica para o

capítulo seguinte.

197

Capítulo 5

Sobre cor e presenças - maneiras de falar

Até o momento, foram vistas as propostas das equipes produtoras de black music

gospel e de “festa”. A característica delas é aliar religiosidade, entretenimento e visão

política e, assim, oferecer canções com certo conteúdo. Isso é realizado por causa da

concepção acerca da “música gospel” e do trabalho evangelizador. Para alguns produtores,

a música veicula mensagens definidas biblicamente, “recebidas” e, como ato de “orar”,

enviadas ao divino. A peça da cadeia entre homens e deuses seria formada por aqueles cuja

atuação caracteriza a “música gospel” - portadora de “profissionalismo” e de “qualidade”.

Seu fazer escapa das mãos de sacerdotes, porém esses contribuem ao reconhecimento dos

encarregados e dos bens e serviços confeccionados.

Com a “música gospel”, diversas atividades têm lugar e, ainda assim, a black music

gospel compõe circuito específico, ações e arranjos peculiares. Diferentemente, seu

reconhecimento e de seus formuladores independem da esfera religiosa, pois outra conexão

é estabelecida. A música e a “festa” colocam em cena encontros com dimensões como o

entretenimento e a crítica política. Mas não são os únicos, há escola de samba e bloco

carnavalesco. Eles integram a relação entre religiosidade e diversão; também existem os

fóruns (Fórum de Mulheres Negras Cristãs -FMNC - e Fórum de Lideranças Negras

Evangélicas - FLNE). Eles colocam discussões sobre religiosidade e posicionamento

político e interesse por reformulações litúrgicas e doutrinárias.

A partir das afirmativas dos promotores, dos bens e atividades produzidas a procura

foi estabelecer a especificidade da black music gospel. Passei a indagar se as questões

indicadas estariam restritas ou não ao ato de falar. Se não, qual caminho poderia ser

seguido? É possível pensar que a música e o canal de registro de outros elementos, como a

dança, a moda, também a visibilidade do corpo, de comportamentos e de concepção de

cidade, explicitariam o diálogo político e outra dimensão da musicalidade.

O tema aqui disposto coloca certo percurso inevitável a fim de compreender as

especificidades das produções musicais e fonográficas direcionadas a black music gospel e

198

à promoção de eventos musicais. Para tanto, a opção foi analisar materiais imagéticos

produzidos para propaganda e permitem visualizar as representações acerca da iniciativa e

das influências culturais dos envolvidos.

Outro ponto tem a ver com o modo como a cidade é concebida, ao ser

operacionalizada a relação entre a black music gospel e iniciativas musicais não religiosas.

Os eventos são concentrados em determinada região e isso permite compor um ponto que

coloca não somente certa concepção acerca da cidade, mas também evidenciam como as

manifestações são distinguidas e relacionadas com outras atividades. A relação apontada

tece específica cidade quando ressaltadas proximidades culturais e históricas com outras

iniciativas.

Por fim, depois de demonstrar a existência de mobilizações com vistas a promover

o reconhecimento musical e cultural e a reformulação teológica e litúrgica, apresento a

existência de debate sobre a “validade” da black music gospel. Mesmo que existam

mobilizações no meio evangélico voltadas ao questionamento de condições de vida e de

reconhecimento cultural e social – já demonstrado no quarto capítulo -, registra-se tensão,

haja vista apontamentos de não haver conjunção entre os interesses de líderes e leigos

empenhados na produção e disseminação da chamada black music gospel.

Capas, cores e imagens

Existem penteados, pinturas, acessórios, roupas, objetos e estilos difundidos

internacionalmente e na “festa” adquirem outros sentidos. Isso permite indagar: em tal

meio, o uso desses bens pontua o que seja “negro”? Se sim, o que é selecionado?

Vários pesquisadores já apontaram que os blocos surgidos na Bahia, por exemplo,

são caracterizados por vestimentas, coreografias e pinturas corporais. Tais elementos

viabilizam construir a proximidade com o candomblé, expressar a peculiar inscrição da

África e repensar uma identidade negra (Guerreiro,1997; Hall, 1999; Agier, 2003; Sansone,

2004). Os objetos ligados ao corpo, ao comportamento e aos costumes materializam

determinada cultura – no caso a “cultura negra” -, caracterizam a moda de um período; para

isso, específicas roupas, acessórios e cabelos – penteados, cortes e submissão ou não a

tratamentos químicos – são elementos acionados (Sansone, ibid).

199

Ao tomar o diagnosticado sobre os blocos afros de Salvador, pode-se pensar nos

bens oferecidos ao público ouvinte de black music gospel e da “festa” no Rio de Janeiro.

Talvez seja possível compreender a produção, a organização e a concepção dos promotores.

O ponto de partida aqui estabelecido foi constituído por imagens confeccionadas,

divulgadas e relacionadas com as atividades musicais, fonográficas e de organização de

“festa”. Isso pode ser feito em decorrência de traços concebidos, associados e colocados em

circulação como o hip-hop, o “grafite”, o break, a black music e o rap. Além desses, outros

sinais são apresentados como, por exemplo, penteados e acessórios; eles integram a

composição de imagem do “corpo negro” (Sansone, 2004). Esse amplo conjunto poderia

apontar para a vigência de estéticas corporais e permitiriam entender a música e a “festa”

não somente como bem de consumo, mas também como cenário para a apresentação de

diferenças em constante construção.

Durante o trabalho de campo me deparei com o material promocional e de

composição de CDs. Esse conjunto de imagens pôde ser adquirido nos eventos

freqüentados por mim, outras vezes, recebia por correio eletrônico ou adquiria parte, fosse

em revistas, fosse por meio de CDs. Ao focalizar os materiais visuais das equipes, tentei, e

espero ter conseguido, organizá-los a partir das concepções estéticas, não no sentido da

publicidade. Assim, via, além de produto potencialmente consumível, objeto eficaz em

demonstrar níveis de expressão. Capas, encartes, filipetas e páginas virtuais veiculariam o

quê? Como e quais aspectos eram integrados? O que e como falavam da vida?

Boa parte não era constituída por fotografias na qual se procura registrar certa

imagem do cotidiano; estava diante de composições a partir do uso de fotografias, de

desenhos e de combinação dos dois a fim de comunicar algo. Além do falado e praticado,

havia outro modo de expressão, de explicitação de relações e também, por que não, de

ações. Não me ative ao produzido pela equipe GN, e contemplei as elaborações das equipes

GB e da SC. Diante de mim estavam materiais com duplo pertencimento: podiam expressar

concepção do real, podiam estar destinados ao âmbito artístico ou ao religioso, podiam ter

apelo artístico ou político.

As filipetas, os encartes de CDs e os conteúdos de páginas virtuais podem ser vistos

como parte de um todo, como algo concebido além da propaganda, além de objetivos

comerciais. Buscava compreender como os promotores atuavam, traziam semelhanças e

200

diferenças e, assim, explicitavam suas interlocuções e encontros capazes de recriar

pertencimentos e práticas religiosas. Essa possibilidade compreende o agir e as relações

estabelecidas e, assim, há inscrições de sentidos por parte dos praticantes envolvidos em

dado esquema cultural. Assim, os materiais imagéticos podem e comunicam algo aos

freqüentadores - os ouvintes e os visitantes.

As imagens evidenciam as influências, os estilos tomados para as composições de

representação do corpo. A noção de estilo viabiliza falar não somente do aspecto musical,

mas de concepções e imagens apresentadas e disseminadas com a diretriz de expressar a

inscrição do corpo e modo de ser. Contudo, não se trata de falar de um estilo negro, mas

como determinados elementos, idéias, valores e sinais são associados. Eles permitem

refletir a construção e a presença de um grupo na sociedade quando escolhe e se posiciona

diante de bens internacionalizados.

O material com o qual trabalhei não faz parte de organização particular, pois a

preocupação com esse tipo de comunicação está presente entre outros artistas. Estes,

mesmo tendo inserções diferenciadas no meio evangélico, consideram a importância, por

exemplo, de encartes de discos na relação com o público. Em entrevista, o cantor Feliciano,

um dos primeiros a gravar hinos religiosos, a partir de 1948, conta utilizar capas de LPs que

tenham por motivo diversas paisagens. Há um LP cuja capa tem a sua foto, porém o projeto

de veicular sua imagem não obteve êxito. Ele optou por compor as capas a partir do tema

desenvolvido na primeira faixa do disco e, desse modo, diz: “a gente procura, dá a idéia

daquilo que a gente vai cantar”183. O título e o desenho do encarte formam representação

daquilo que o disco, o todo, é e deve transmitir aos fiéis.

Os encartes de CDs de Mara Maravilha e da banda Oficina G3184 evidenciam como

os materiais são aplicados na produção do bem. O encarte apresenta fotos da cantora em

figurinos que exploram cores claras, tons suaves e tecidos leves. As montagens passam

atmosfera específica, onde ela aparece acompanhada da caixa de instrumento de cordas e

sua feição demonstra estado de enlevo; todas as fotos exploram seu sorriso, mesmo quando

ela parece reflexiva. Existem oito fotos nas quais a intérprete figura acompanhada de

microfone e, como se estivesse cantando, posa para as câmaras, ora como se estivesse

183 Entrevista concedida à autora em 2003. 184 Sobre os artistas ver o primeiro capítulo. Já os encartes podem ser visualizados em anexos I.

201

exultante, expressasse estado de ser agraciada, ora como se cantasse para alguém

posicionado acima.

O encarte do CD do grupo Oficina G3 é formado por fotos com os integrantes da

banda. Na parte interna, vê-se, em plano fechado, o grupo alinhado, com seus relógios

deixados evidentes; sua posição é de reflexão ou contemplação. A ênfase está em indicar o

peso do tempo e de coisa não realizada. O lado externo é formado por três composições,

todas em plano aberto. Todos aparecem diante de um portão, com tintura envelhecida, e

envolvido pelo nome do grupo e o nome do CD, grafados em cor branca. As outras fotos

estão centradas em ambiente composto por parede de tijolos maciços. Diante dela, todos

aparecem posicionados sobre um sofá, de desenho atual e, ao lado, um rádio,

provavelmente da década de 1940/50. A disposição indica para a noção de o som, tal como

o aparelho, ser fabricado, pois o nome do grupo, em tamanho ampliado, surge como ondas

projetadas pelo aparelho. Também a mescla entre objetos que expressam o novo e o antigo

aponta para uma noção de ser o tempo composto por sobreposição entre coisas passadas e

presentes, como surge na canção do grupo: tudo passa, porém algo permanece185.

Pedro apresenta situação sobre a formulação da capa do LP “Mais doce que o mel”,

do grupo Rebanhão186, gravado pela empresa Doce Harmonia, em 1985187; O encarte

veicula as fotos dos integrantes em um quadro que limita suas figuras. A descrição

fornecida por Pedro permite extrair indícios sobre a importância da imagem e como ela

completa certa relação com o público. Nesse sentido, diz:

Geralmente, a capa era dada a profissional que estava acostumado a fazer capa e eu conversava com ele e coisa e tal. Na época, a primeira foi uma foto que a gente tirou e aconteceu uma coisa engraçada. O Janires saiu com a camisa aberta na foto. Ai lançaram o LP com a camisa aberta, e deu um polêmica. Daí botaram uma... no LP parecia que tinha aquele negócio de

185 Menção à canção “O Tempo”, contida no CD “O Tempo”, Oficina G3, MK Publicita 109-631, faixa 05. O encarte fonográfico pode ser visto em anexos I. 186 Grupo muito citado no meio evangélico e reconhecido como sendo um dos precursores da transformação sonoro-musical, a partir da década de 1980, com a utilização do rock e de expressões regionais como, por exemplo, o baião e temas relacionados com a sociedade contemporânea, compondo “mensagem” a fim de alcançar vários segmentos – etário e denominacional – presentes no meio evangélico. Atualmente, Pedro é compositor e produtor musical e sócio de estúdio musical na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Ver: Gadelha. “Talento e determinação”, revista Show Gospel, ano 03, nº11, p.36. 187 Em 1986, a banda Rebanhão gravou o LP “O Semeador” com a empresa Polygram. Na década de 1990, com a compra da Polygram do Brasil Ltda, pela empresa canadense Seagram, a empresa passou a ser conhecida por Universal Music. Informações em www.universalmusic.com.br, acessado em 23/05/06.

202

filme; tinha a foto e assim parecia que tinha um rolo de filme. Aí botaram aquela tarja tampando a camisa dele, na segunda prensagem188.

Não é seguido o corte evolucionista, pois o uso de paisagens, destacado por

Feliciano, e fotos de componentes e outros motivos coexistem e estão presentes em

diversos trabalhos. Isso ocorre porque os depoentes produzem antenados com as

tecnologias e guardam preocupações com as capas que acompanham seus trabalhos

musicais. As situações descritas permitem visualizar a história da produção fonográfica no

meio evangélico e revelam as concepções resultarem em bens distintos e visíveis quando

disponibilizados. Contudo, as distinções não podem ser ignoradas. No depoimento de

Pedro, vê-se a imagem como elaborada no interior de campo de forças, composto por

empresários e liderança religiosa. Seus compromissos contribuiriam para estabelecer

objetos e, assim, dialogar com o adepto e também com a sociedade.

Pedro coloca que a imagem foi submetida a último movimento porque a reação

revelou a dissonância com o pensamento predominante. Portanto, não poderia ser

enrijecida com a finalidade de materializar determinado modo de pensar (Farias, 2003:211).

A tarja utilizada para cobrir a camisa aberta pode ser vista como tentativa de comunicação

com os adeptos e demonstração de que o bem, o LP, apesar das inovações e aparências dos

artistas, vedaria transformações comportamentais e imagéticas. Era a tentativa de transmitir

a preservação da moral e dos valores em circulação. O depoente indica ser a capa tomada

como metonímia, que Feliciano também explicita. Assim, os encartes, as imagens, devem

veicular o que acompanha o modelo de adepto encontrado no meio evangélico, como é

possível ver no material do CD de Mara Maravilha e da banda Oficina G3.

É possível prosseguir um pouco mais. Segundo o depoente, o recurso da tarja não

constava no projeto gráfico inicial, porém foi acionado para compor determinada imagem.

A saída foi utilizar algo que parecia um rolo de filmes. O dispositivo seria viável para

resolver uma situação, porém coloca uma ambigüidade. De um lado, anteciparia o

congelamento de certa visão, de algo retido na memória; de outro lado, instala o

188 Entrevista efetuada pela autora em 2003. Convém explicitar que Janires, citado no depoimento, era integrante e fundador do grupo. Pedro o lembra como alguém que não correspondia a imagem do evangélico em vigência na sociedade brasileira. Segundo ele, Janires inovou sonora, musical e comportamental, pois se apresentava com roupas e penteado distintos e, portanto, teria contribuído para posterior alteração imagética do evangélico. O encarte fonográfico pode ser visualizado em anexos I.

203

movimento, a transformação com a sucessão de cenas. Com o depoimento, entende-se o

cuidado de produtores em veicular a noção de ser a imagem do evangélico, usuário de

roupas sóbrias e recatadas, preservada com o congelamento. Contudo, a fita é composta por

quadros, por imagens em sucessão e o entendido como conservado pode ser tomado como

passível de mudança. A possibilidade de sucessão dos quadros ocorreria com o tempo -

dispositivo de alteração.

Os depoimentos colocam a importância da imagem como a chave de divulgação, de

mediação com o fiel, com o consumidor. No caso da produção fonográfica e musical,

entrevistas feitas com os artistas e/ou releases, as montagens descritas não atuam

estritamente para despertar o desejo de aquisição de algo. Ao observar os encartes, vejo as

fotografias configurarem, juntamente com as canções, tipo de composição visual-auditivo

constituído a partir da vigência de imaginário com apelo no real (Spera, 1998), fundamental

para alicerçar o discurso destinado a afetar os ouvintes. As fotos, em dimensão expositiva,

adquirem e explicitam seu sentido ao se articularem com a imagem auditiva.

As imagens, de acordo com o estabelecido por Pedro, surgem a partir e em

decorrência de ações e sentidos em campo de forças. Desse modo, são estabelecidas

interlocuções entre os produtores, e entre estes e os consumidores que estão inseridos no

âmbito da publicidade, formando discurso destinado a dizer o que se consome “através dos

objetos”, sendo, por sua parte, também produto destinado ao consumo ao passo de ser a

“manifestação de uma cultura” (Baudrillard, 1972: 174-175). Então, a publicidade divulga

os estilos de vida, os modos de comportamento e valores de uma época (Canevacci,

2001:154-155). Talvez aí se entenda o lugar atribuído aos encartes de discos, a preocupação

com a imagem (alguém com a camisa aberta), expressão cultural, transmissor de valores e

de comportamentos.

O selecionado, organizado e tornado público não pode ser descartado, pois integra

um todo estruturado: a produção musical. Com ela, busca-se atuar na sociedade de modo a

converter e manter os fiéis. As composições de imagens de parte do material musical, com

a aplicação de técnicas como fotografias e desenhos, dão visibilidade às produções

fonográfica e musical e, ao mesmo tempo, permitem observar ser elas heterogêneas, como

o próprio meio evangélico.

204

Como Pedro e Feliciano, os promotores consideram poder realizar o trabalho

religioso; investem em fotos, em desenhos e em textos com a finalidade de compor

conjunto imagético voltado, de um lado, à definição de seus trabalhos musicais, de outro,

como parte capaz de antecipar o conteúdo do disco ou exemplificar o procedimento no

grupo religioso. Vários pontos podem ser observados, como as diferenças e as

equivalências existentes mediante as estratégias, as concepções, as propostas e as inserções

no meio evangélico, fonográfico e musical. O apresentado ultrapassa o objetivo religioso e

também o comercial, pois com as imagens produzidas, mesmo com referências e

concepções distintas, pode ser visualizado como entendem a realidade e dialogam com as

idéias vigentes. As composições resultam de imaginário com vistas a atuar no real porque

constituem discurso coerente e definido (Spera, 1998:73).

Ludicidade, força e confronto

As formulações iconográficas revelam os valores, os comportamentos e o meio nos

quais são formuladas e demonstram as orientações artística e social, haja vista agir na

realidade. Assim, pode-se entender aquilo designado estilos e visualizar as especificidades

das equipes em atuação. Não estou equiparando estilo à moda, pois não se trata somente de

usar roupas e acessórios eleitos para estação ou temporada. O estilo pode ser visto como

algo próprio a grupo para o qual objetos, posturas, ocupação e visibilidade no espaço

público são seus componentes.

A cultura urbana popular compreende saberes e relatos não dóceis à “colonização

tecnológica”. As operações efetivadas guardam ligações com a existência cotidiana, com

as trocas sociais, com as invenções técnicas e com a “resistência moral” (Martín-Barbero,

2003:126-127). Então, estilo também é aplicado para analisar as inserções de práticas

culturais na contemporaneidade. É entendido a partir da relação de oposição com a cultura

dominante ao acenar com possibilidade de subverter o modelo vigente (Hebdige, apud

Rose, 1999:194). Assim, o punk e também o hip-hop, vistos como estilos, participam da

formação identitária de jovens urbanos. Estes usam bens e formulam visibilidade,

negociam com a hierarquia e a desigualdade sociais e, ao mesmo tempo, usufruem

reconhecimento local (Rose, 1999:194). Os grafites, a dança, a música, a roupa e o

205

comportamento constituem esse estilo hip-hop. Os modos de falar, de vestir e de andar

apontam para a apresentação e a inserção do corpo na sociedade, porém não dissipam a

“condição social periférica” porque ressaltam essa condição no cenário urbano e em áreas

fora da periferia (Novaes, 2003). Portanto, não se trata de algo rígido e capaz de se impor

na sociedade. O que o faz existir e confere sentido ao estilo é o modo como é vivido, como

as biografias e o agir são marcados por ele. E os sentidos? São adquiridos conforme a

localidade e com aqueles que passam a atuar e a se posicionar socialmente ao aderir a um

estilo.

Estilo é algo construído por cada grupo, é modo de expressar valores, idéias e

crenças. Não somente como se dança, como se canta (o que é cantado) ou como se ore, mas

também o modo de vestir, de andar, de olhar, os gestos, os penteados, os acessórios, as

pinturas também constituem o estilo com o qual a comunicação é estabelecida. E no caso

pertinente aos materiais imagéticos em circulação no âmbito de elaboração e produção da

black music gospel e da “festa”?

Ao obter o CD da equipe GN, fiquei surpresa com a qualidade do material, com a

faixa multimídia, com as falas de seus organizadores. Acima de tudo, o encarte não poderia

ser ignorado. Não era somente por causa das cores vibrantes. Perguntei-me se aquele

engraçado boneco e os cenários nos quais perambulava poderiam revelar algo sobre o

grupo formado por cantor e DJs.

Sobre o assunto, conversei com um deles, DJ e empresário do grupo, e com o

desenhista, também músico e evangélico. Segundo eles, não haveria intenção em transmitir

“mensagens” com conteúdo favorável ao desenvolvimento de consciência social e tomada

de posição com valorização da origem social (e cultural). A intenção seria demonstrar que o

“evangélico não é quadrado”; isto é, interessava veicular certa imagem capaz de notificar

ser o fiel antenado com as tendências da moda sem ser necessário o desligamento do grupo

religioso. Assim, achavam ser possível atuar eficazmente entre os jovens urbanos.

Outra versão oferecida era de o desenho resultar de brincadeira, ser homenagem a

componente do grupo189. Contudo, certa ligação entre o material visual e a problemática ao

189 Há controvérsia em quem seria alvo da homenagem, pois, em certo momento, foi-me dito que seria Charles, o empresário do grupo; em outro, seria Francisco JC, cantor, animador e pregador. Não sei até que ponto seria fundamental depurar essa informação, porém terminei optando por entender que alguém detinha papel de destaque, recebendo tal reconhecimento.

206

redor da cor ou da questão racial começou a ocorrer. Isso aconteceu quando relataram a

preocupação com a aceitação do desenho. Por ocasião da composição, indagaram sobre a

reação de responsáveis daqueles que formam o público alvo. Além disso, ao contrapor os

materiais visuais confeccionados por outras equipes com os oferecidos pela GN, entendi

que as coisas começavam a ter sentido, pelo menos para mim.

O encarte do primeiro CD Gospel Night – A Festa – tem um boneco, que aparece

sorrindo e caminha por cenário integrado por ruas e edifício. Os desenhos mostram a

caminhada noturna finalizada em reunião na qual muitos dançam. Seu visual é formado

por penteado e roupas que ressaltam estilo corporal difundido na década de 1970 com o

black power - penteado que consistia em deixar o cabelo arredondado. Tal personagem ora

anda pela cidade, ora comanda o pick-up190 e, ao fundo, um grupo dança. O segundo CD

veicula a mesma personagem já acompanhada por outras: uma menina mestiça, um rapaz

negro e outro branco (anexos I).

No site do grupo, há o mesmo boneco ocupado em aspergir spray e, com isso, faz

menção a um dos elementos do hip-hop. As referências ao hip-hop e ao estilo em vigor nos

anos 1970 são recorrentes para compor os materiais e, com eles, expressar a "festa" como

favorável ao encontro e caracterizado por adesões a estilos juvenis.

A primeira orientação de estilo é caracterizada por valorização de determinada

moda e modo social de ser. A orientação era oriunda da idéia black is beautiful, vigente na

sociedade americana da década de 1970 (Farias, 2003: 210-220). Todavia, não era restrita à

sociedade norte-americana, porque foi tomada peculiarmente no Brasil (Arce, 1999). Não

somente isso, haja vista existir outro direcionamento. Trata-se da noção de corpo instalada

pelo hip-hop, pela crítica social, pela dança e atenção ao consumo (roupas e bijuterias), que

aponta para a cultura e modo de presença pública marcadas por insubordinação, com

questionamentos e via própria de expressão de jovens urbanos e pobres (Rose,1999). Nesse

sentido, pode-se compreender não somente o consumo, mas são diferentes estratégias de

visualização elaboradas por grupos subordinados (Pardue, 2005).

O material visual dos CDs produzidos e a página mantida na Internet pela equipe

GN descortinam as vias de interação e de visibilidade. Eles veiculam as referências dos

integrantes da equipe, de suas propostas e como seriam compreendidas no meio religioso.

190 Trata-se de aparelho específico para tocar disco de vinil, mais conhecido por long play (LP).

207

Sobre esse trabalho de composição gráfica, Charles fala da reserva na adoção da primeira

personagem, pois:

Muita gente reclamou que não tinha imagem. A gente não queria fazer uma capa com desenho que é pra não agredir muito. Márcia: Como assim não agredir? Charles: Pra não criar uma barreira. Criar um boneco black power com uma beiça desse tamanho. Você há de convir que cria sim uma certa barreira.Mas é um desenho bonito. Eu o acho lindo, mas há certas lideranças e tal.... ia chocar um pouco. Márcia: Chocar? Como? Charles: É. Ia chocar. De colocar.... É não vai ficar muito legal mas acabou quebrando a cara. Porque o pessoal... todo CD que a gente pega, a capa do CD é essa. O pessoal inverte. Todo mundo quer colocar o Negão na capa. Porque na verdade quem faz é um amigo nosso um cara super-talentoso que é desenhista.

No meio evangélico, é corrente a visão de não existir distinção entre os adeptos,

haja vista a concepção de todos serem criados por Deus. Mesmo assim, o depoente revela a

precaução ocorrida entre os envolvidos com o projeto do CD. O temor da equipe esbarrava

na aceitação do material visual ao veicular imagem e certo estilo. Talvez ali não fosse o

lugar para veicular a personagem, apresentar trabalho considerado, por eles, inovador e

contrário ao pensamento dominante. Charles fala como o desenho entrou na composição

quando:

A gente colocou o boneco porque a gente achou maneiro, legal. A galera pegou toda essa época de black power. Então vamos botar essa coisa legal. Mas não teve essa intenção de colocar, de dar um suporte, de dar uma base pra um ‘movimento black’. A gente achou o boneco engraçado pra caramba.

O depoente observa que o grupo não estaria voltado à elaboração de questões com

apelo ideológico e político. O projeto do encarte teria seguido as referências afetivas e

experiências de alguns e, no caso, despertadas por viés lúdico. Isso pode ter encontrado a

aceitação de freqüentadores, que teriam achado o desenho “engraçado”. Robson, músico e

responsável pela concepção e confecção dos desenhos, fala que tudo começou em um clima

de descontração:

208

Foi engraçado. Na verdade, o desenho surgiu tipo numa brincadeira. O desenho, assim a forma do desenho, porque o JC fez aniversário e aí a gente fez um bolo pra ele. Aí eu desenhei em cima desse bolo, fiz um muro pichado, aí eu coloquei esse boneco aí do lado assim. Ele lembra o visual anos 80, visual black power, aquele movimento black power americano e tal. Aí eu desenhei o boneco. Aí eles viram aquele boneco a idéia: ‘pôxa, a gente pode articular ... a gente começou a bolar. Mas na verdade, o intuito, era fazer desse desenho o ícone da juventude nesse estilo de baile. Porque esse baile é mais focado em black music, música americana, e o visual do boneco remete a esse período.

Robson expõe que a concepção do desenho se deu com a relação entre o grafite e o

estilo difundido no Brasil, entre os anos 1970/80. Refere-se ao black power, diretriz de

estilo, de expressão, de concepção política e relacionada com a população não branca. Sua

vigência teria ligação com a onda dos movimentos por Direitos Civis nos Estados Unidos,

com a contracultura e, conseqüentemente, com a inserção na cena política-cultural de novos

atores sociais: os hippies e os negros.

Estes, com o lema black is beautiful, procuravam mudanças na sociedade com a

visibilidade e tomada de posição com vistas à transformação de condições de vida. Essa

diretriz chegou ao Brasil com efeitos sobre a concepção e a expressão corporal. Surgiram

atividades pautadas no discurso de “resgate da auto-estima do negro” (Farias, 2003:219).

Isso se daria com os “blocos afros”, em Salvador, com referências ao “poder negro”

(Risério apud Farias, 2003:219; Guerreiro, 1997: 102-103; Godi, 1997: 76). Na cidade do

Rio de Janeiro, bailes eram organizados e atraíam numeroso público juvenil - cujo ídolo era

o cantor James Brown (Arce, 1999: 86-87).

Além do citado black power, Robson associa o grafite como indicativo do hip-hop e

aponta para outra inscrição política e de estilo, surgido, nos Estados Unidos, a partir da

década de 1970. Essa expressão musical não é restrita a uma sociedade e é, portanto,

disseminada entre outros como os jovens hispânicos, caribenhos e afro-americanos. Eles

simbolicamente tomam o espaço urbano com “atitudes”, danças, estilos, efeitos sonoros e

criticam as condições políticas e sociais. Ao mesmo tempo, possibilita a afirmação das

identidades (individual e de grupo) e experiências sociais. O uso de sprays viabiliza o

registro de escritos em paredes de transportes e de prédios, sendo uma peculiar forma de

grafia. Esta não torna somente o grafiteiro conhecido por toda cidade, mas é a via de

transmissão de crítica social efetivada (Rose,1999).

209

A combinação, oferecida por Robson – com o estilo black power e o grafite -,

desvela a dupla indicação política utilizada pelo depoente, ambas marcam momentos

históricos caracterizados por certa valorização do ser negro, realização de crítica à

sociedade e visibilidade de jovens pobres negros ou de outros grupos minoritários.

Posteriormente, sua composição ampliou os sinais do hip-hop e o boneco continuou a ter

presença. No entanto, os depoentes apontam para o esvaziamento da questão da cor, de

reflexão acerca das relações raciais e/ou o considerado próprio de modo de ser negro,

apesar de citarem constantemente artistas negros nacionais e internacionais e seus estilos de

vestir.

Os encartes e os depoimentos indicam as referências seguidas, onde o hip-hop é

recorrente. Não obstante, apesar de possibilidades de críticas e reflexões sobre as condições

de vida no mundo contemporâneo, na expressão musical sobressai traços e visões

valorizadoras do entretenimento e não da dimensão política, de crítica. Porém, em nível

menos consciente, os materiais da equipe podem transparecer outra diretriz e não somente a

diversão. Ou quem sabe, o entretenimento e o sorriso desvelem certas transformações.

Compreendo auxiliarem na visualização de sinais e elementos presentes nas formulações de

outras equipes.

Os materiais imagéticos da SC e da GB, empregados em suas divulgações, também

trazem elementos que permitem investigar suas orientações. O site da equipe Gospel Beat

(GB) veicula objetos, posturas corporais e desenham certo estilo contemporâneo. L´Ton e

DJ W aparecem vestidos com roupas coloridas e amplas, com bonés e lenços amarrados

nas cabeças. O pano de fundo é um equipamento de execução de discos, com uma mão em

cena, dando impressão de sua manipulação. Na extremidade esquerda do campo, há um

medalhão, preso com grossa corrente, e no centro o nome da equipe.

Essa composição é complementada ao ser explorada a posição ereta de seus corpos,

os braços cruzados ou flexionados, seja com as mãos unidas, seja com a palma aberta no

sentido horizontal, que é complementada com a outra em punho cerrado. Na filipeta do

grupo, vê-se o rosto de homem negro, vestindo casaco e a cabeça coberta por capuz. O

braço esquerdo estendido, o punho cerrado e anel no dedo mínimo191.

191 Para visualizar o material descrito, ver: www.gospelbeat.com.br, acessado em 07/07/05. Pode ser visto também em anexos IV.

210

Os materiais visuais da Soul de Cristo (SC) veiculam os artistas presentes em seus

empreendimentos. A divulgação do DJ Alpiste ressalta uma vestimenta indicativa de sua

adesão ao hip-hop, haja vista o pesado casaco, anéis e correntes utilizados. Em outro

trabalho, componentes do grupo paulistano Apocalipse XVI, sentados em lugar parecido

com palco, vestem camisetas e jeans. O líder aparece com o braço direito levantado, no

sentido horizontal, o punho cerrado e segurando o microfone; o braço esquerdo flexionado

e o punho também cerrado como se estivesse preparado para luta. Acima fica o nome da

equipe Soul de Cristo, com o “T” em vermelho como se fosse uma cruz192; do lado

esquerdo dos rappers aparecem três letras alinhadas, em cor branca, formando a palavra

Luo193. O outro componente é mostrado careca, igualmente sentado, com as pernas

abertas, cotovelos, mãos apoiadas e antebraços envolvidos por protetores esportivos.

As mãos aparecem sustentadas com a direita fechada encontrando à esquerda

espalmada. As imagens são construídas com a aplicação de três recursos: o uso de objetos,

referências a lugares e foco na figura humana. Com isso, demonstram representação de

corpo e demarcam discurso sobre as limitações e as possibilidades de atuação (anexos VI).

Esses quadros formam espécie de narrativas tanto sobre a percepção como sobre os

trabalhos executados. A observação de como o corpo é representado requer certa atenção,

haja vista a diferença com que é veiculado. A figura existente nos materiais da equipe

Gospel Night (GN) é a de um boneco cuja silhueta não é robusta, mas demonstra vigor. Vê-

se um andarilho desbravador e explorador das potencialidades noturnas da cidade. Esta

surge como o cenário de sua caminhada à diversão, onde é possível dançar, grafitar e tocar

para outros dançarem. Essa concepção é constituída pela ludicidade e o corpo, torcido e

retorcido, aparece como capaz de se adequar plasticamente às exigências da diversão.

Os materiais das equipes Gospel Beat (GB) e Soul de Cristo (SC) circulam outra

visão, pautada na virilidade das figuras. Elas compreendem posturas, objetos e sinais que

enfatizam posições de confronto, com olhares, mãos e braços associados a objetos –

192 As fontes utilizadas constituem recursos presentes – basta visualizar as capas de CDs – e integram significativamente as representações visuais e permitem também conhecer a produção fonográfica (Pardue, 2005:14). 193 Luo é o nome adotado pelo líder do grupo. Segundo ele, trata-se de menção à tribo queniana luo e permite fazer a ligação dele com a África. Considera fazer a distinção com os demais rappers que, para Luo, desconhecem a origem de seus nomes.

211

protetores esportivos e microfones - e remetem a situação de luta. Em nenhum momento, os

olhares deixam de fitar frontalmente o observador.

Por esse prisma, ficam em destaque os elementos visíveis e favoráveis à

identificação das referências culturais. Eles integram uma publicidade de superfície, não

destaca certas áreas recônditas - nas quais seriam processadas a beleza e a limpeza. Nas

imagens, o corpo e os gestos são combinados e remetem ao clima combate, não executável,

como ocorre com os lutadores de catch (Barthes, 1982: 12-15,58-60).

Os promotores da GB e da SC, diferentemente dos integrantes da GN e a ênfase na

ludicidade, propõem o estilo do confronto com investimento em elementos orientados para

a composição de imagens desafiadoras e, ao mesmo tempo, de orgulho. As figuras de

corpos são exibidas não somente como parte dos cenários. As iconografias são centrais na

construção das propostas, do que podem e devem comunicar em relação aos artistas e à

população de cor. Elas constituem estratégias de visibilidade dos eventos e dos atores

sociais que ocupam posições subordinadas. Trata-se de desafios, não verbalizados, quem

sabe, dirigidos ao meio evangélico e à sociedade brasileira.

Participação, diferenças e modelos

Sobre o que foi exposto na sessão anterior, outra coisa pode ser apreendida e

relacionada ao falar em possibilidades de participação. Quando TR, da equipe SC, expõe

sobre a black music, discorre acerca da importância de sua auto-afirmação como negro em

decorrência da participação no hip-hop. Ele diz que a SC foi criada também para que seja

possível “... mostrar pro negro que ele também pode ter uma parada pra ele também na

igreja”. Em momento inicial, diz: “a gente começa mostrando pras pessoas que existem

artistas negros, são bons no que fazem, existe o rap, que ele é melhor porque ele não traz

só o conceito da crítica social, mas também traz Jesus como solução...”. O projeto da equipe

é constituir canais nos quais os artistas e a black music gospel possam ser apresentados e

adquirir reconhecimento194.

194 A questão não é peculiar à equipe Soul de Cristo. Em 2003, fui ao “II Fórum de DJs de black music – RJ”, realizado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no qual foi debatida a visibilidade a ser conquistada pela black music e os Djs.

212

O depoimento do promotor é viável para compreender as imagens aqui tratadas.

Estas e outras falas apresentadas revelam proximidades e diferenciações entre as iniciativas

desenvolvidas ao redor da música ou de questões direcionadas a problematizar a presença

de negros no meio evangélico. O depoimento de TR é exemplo, pois aponta para

dificuldades sobre a existência de atividades que contemple determinado grupo no meio

evangélico. Trata-se de oferecer via de participação na qual e com a qual o fiel se sinta

representado. Não somente na assistência, mas em posto de liderança como, por exemplo, a

condução de serviço religioso. Isso não é algo restrito à equipe SC, pois está presente na

proposta da GB e nos fóruns formados por leigos e líderes religiosos. Todos voltados ao

questionamento da participação e da presença no meio evangélico daqueles considerados

negros.

A fala de TR, contraposta ao amplo registro de negros e mestiços nas igrejas

evangélicas (principalmente nas neopentecostais), permite indagar sobre a dificuldade de

obtenção de posto na hierarquia de denominação evangélica (Mafra, 1998), haja vista as

séries de limitações a serem vencidas. Isso desenha a direção religiosa como área “dura”.

Os entraves começam com a formação em curso em teologia195, e continuam com as

limitações existentes em decorrência de doutrinas e visões cerceadoras da igualdade. Pode

estar em vigor a percepção da diferença na qual a cor e a origem constituem elementos de

limitações de reconhecimento e de ascensão (Burdick, 1998; Contins, 1995).

Apesar da constatação de haver fraco incentivo a cantores de black music gospel,

figura a esfera artística como aquela na qual, apesar das dificuldades apresentadas, pode-se

encontrar negros em posição de destaque. Nesse sentido, a arte e a dimensão do

entretenimento são reveladas como mais maleáveis e viabilizam novas frentes de ação. As

produções musicais, de reuniões e fonográficas apontariam para outras possibilidades de

ação dentro do campo religioso, para além da existência de restrição para ser pastor (Mafra,

1998).

Mas a inovação não está somente em apresentar outras inscrições musicais e de

atividades. Os promotores, mesmo não interessados em problematizar as relações raciais,

trazem e apontam vias alternativas de inserção e obtenção de reconhecimento. Elas podem

ser dadas com os exercícios de cantar e/ou organizar encontros, mas podem ser tomadas 195 O Fórum de Lideranças Negras Evangélicas pode vislumbrar uma “política de cotas” no interior do meio evangélico para que os fiéis negros possam ter maior acesso às instituições religiosas de ensino.

213

peculiarmente por novas gerações em atuação e em processo de consumo de determinada

orientação. Esta contempla, de forma diferente da tradicional, os símbolos existentes e

marcadores de negritude (Sansone, 2004:78-81). Esta viabiliza compreender como é

operacionalizada a autopercepção dos jovens evangélicos, haja vista não se colocarem

como diferentes já que estão inclusos no moderno sistema de consumo. Isso fica evidente

com afirmativa muito recorrente entre freqüentadores e produtores musicais sobre a

participação no mundo, pois constantemente é dito que “o evangélico não é quadrado”.

Entre os promotores de “festa” e outros cantores em ação, as elaborações imagéticas

não formam caso isolado e não estão relacionadas ao objetivo de indicar a excentricidade

de empresários e de artistas. Como foi visto, os encartes e capas de discos fazem parte de

articulações voltadas a transmitir mensagens – não somente religiosas - ao receptor. Ele

pode visualizar o tema do trabalho; pode receber informações acerca dos valores e idéias ali

presentes.

Nos materiais imagéticos das equipes SC, GN e GB, a tecnologia, a moda e o uso de

cores fortes são explorados e viabilizam expor outras formulações. Diferenças são

estabelecidas entre estas e as imagens utilizadas por outros cantores evangélicos e os

promotores de “festa”, isto é, a diferença entre as produções musicais é visível no material

de divulgação – os depoimentos de Feliciano e de Pedro sobre as capas de seus discos são

reveladores.

As distinções são perceptíveis nos bens formulados para a divulgação das reuniões,

pois, além dos objetivos de suas iniciativas, pode-se relacionar a percepção dos corpos

expostos e as orientações dos estilos. Os encartes dos discos, as páginas virtuais, as

propagandas e parte significativa dos CDs veiculam imagens dos cantores e associam os

artistas com modo de vida contemporâneo. Seus articuladores, atentos aos avanços

tecnológicos e às tendências da moda, visam demonstrar nova concepção religiosa, cujas

características são a recepção de sons, de imagens, de sentimentos e de idéias. Todos

acionados não de modo isolado, mas inseridos no fluxo global do “Atlântico negro” e

localmente alinhados em uma posição de crítica que toca os contatos sociais, os

impedimentos enfrentados por artistas da vertente black music gospel – e aos evangélicos

dos fóruns quando discutem ações afirmativas.

214

Os componentes da GN investiram em composição caracterizada por múltiplas

informações, cuja principal referência está nos anos 1970, com a conhecida mobilização

definida como black power. Já o referencial e as concepções da GB e da SC são outros. Os

“corpos negros” estão majoritariamente presentes, marcando, guardadas as devidas

proporções, oposição com a publicidade na sociedade brasileira. Esta, durante a década de

1970, teria por característica pálidas imagens de mulheres e homens negros em situações

subalternas196.

A particularidade dos materiais aqui focalizados é o investimento e o uso de

elementos diversos para compor outro discurso político. Ele abrange a participação e a

constituição de noção de negritude. Os encartes, as páginas virtuais e os panfletos

constituem narrativas organizadas, concebidas de acordo com os materiais musicais, e

podem ser confrontadas com aquilo que direciona a proposta da produção – seja política,

religiosa ou lúdica. Nesse sentido, os materiais das equipes SC e GB veiculam imagens de

corpos masculinos, compostas a partir da associação de elementos e posturas. Nas figuras,

os corpos são apresentados como diferentes e, ao mesmo tempo, pela associação a

determinados objetos, surgem integrados ao mundo contemporâneo. Trata-se de integração

negociada com bens e imagens consumidos por diversos grupos.

Consumo e presença social

Anteriormente foi descrita a opção de freqüentadores de “festa” por vestimenta em

conformidade com as tendências em vigor (Almeida e Rumstain, 2003). De acordo com o

destaque dado ao corpo e presente nas imagens em circulação, perguntei a alguns

freqüentadores e organizadores de eventos como gostavam de se vestir e em quais modelos

se inspiravam. Citaram vários artistas norte-americanos e brasileiros como exemplos de

bom gosto no vestir e se pentear. Entre os homens, foram citados cantores negros norte-

americanos e alguns brasileiros como, por exemplo, Luo, do APC XVI e Francisco JC, da

GN. As mulheres falaram gostar do estilo das artistas norte-americanas e citavam seus 196 As propagandas existentes estavam voltadas para enfatizar a nacionalidade com referência ao futebol, também surgem quando se trata da diversidade da sociedade brasileira; nas divulgações de produtos e empresas ligadas à moda; em promoções de festividades populares ou de turismo regional, como o carnaval e a cidade de Salvador (Farias, 2003: 212-215).

215

longos cabelos, as roupas amplas e com brilho. A sensibilidade por modos de vestir e vistos

como próprios de artistas internacionais e nacionais, reconhecidos como modelos, e o

destaque dado ao corpo, perceptível nos materiais promocionais, podem indicar para o

predomínio do hedonismo.

Na sociedade contemporânea, o hedonismo não é constituído somente pela

satisfação das sensações, e sim pelo prazer alcançado com a criação ou a concepção de

imagens. Os produtos disponíveis e consumidos permitem o enlevo e promovem a

imaginação, podendo o consumidor identificar-se com os personagens ou acessar os artigos

componentes da moda de certo momento. A afluência de bens e imagens, fortemente

produzidos ou relacionados com o Ocidente, auxilia para o gosto de ser constantemente

atualizado conforme o “discernimento estético” do consumidor (Campbell, 2001:114-139).

Não somente centrado no indivíduo e na incansável corrida pela moda, o estudo de

Veblen aponta para o consumo como possibilidade de comunicação; indica também

semelhanças e distinções em virtude de objetos, de produtos, de serviços e, diria, de

imagens oferecidas. Tudo isso demarca gostos, modos de vida, grupos, perspectivas e

desejos dos envolvidos no ato de aquisição. Então, o que e como algo é consumido são

momentos, como as coisas adquiridas, reveladores não somente da capacidade pecuniária

de alguém (Rocha e Barros, 2003: 181-208).

Em países como Holanda, Brasil e Estados Unidos, há fluxos constantes de

símbolos, muitos oriundos do “Atlântico negro”, relacionados diretamente ao corpo, ou

melhor, ao “corpo negro”. Este passa a expressar modo de “se relacionar com a

modernidade” e, muitas vezes, é construído a partir de relações com objetos que veiculam

status. Tais podem estar ligados à Jamaica, ao reggae, aos Estados Unidos e ao Reino

Unido e possuem alcance global. Contudo, são e podem ser reinterpretados conforme as

experiências locais, fornecendo aos jovens vias de visibilidade e percepção de não

marginalidade (Sansone, 2004: 211-243).

Quando os entrevistados citam os artistas e descrevem suas roupas, ou têm nos

negros norte-americanos exemplos de modelos, revelam ser as imagens dos corpos negros e

os artigos oferecidos fundamentais ao ato de se imaginar ou se identificar com os usuários.

Os modelos exibidos contribuem para a disseminação de moda, diante da qual o

consumidor não deve ser visto como passivo, pois contribui para isso o gosto e a

216

imaginação. Além disso, o consumo permite estabelecer pertencimentos e distinções e os

produtos, as atividades – os serviços prestados -, as imagens produzidas e veiculadas, não

revelam somente o poder pecuniário. Trazem informações sobre os pertencimentos e fluxos

étnicos, com o corpo apresentado a partir de parâmetros assim formulados.

Cabe afirmar que a noção de participação em vigor na “festa” apresenta algo

específico, porque passa a ser revelado que não somente os princípios morais e teológicos,

difundidos no meio evangélico, são o critério orientador do pertencimento. A condição e o

lugar de fiel ocorrem a partir de tensão entre se ver como semelhante e, ao mesmo tempo,

distinto. Isso tem lugar em relação ao fiel voltado a exaltar a distância discursiva de

negação do “mundo”. As diferenças são repensadas e expressas diante de imagens de

corpos e de redefinição da participação. Isso é realizado com a associação e a apropriação

de sinais definidores de estilos culturais e de vivência religiosa.

Sobre os promotores, é possível dizer que avançam constantemente em direção a

outras esferas e produções, demarcam o feito, apontam convergências culturais e, assim,

procuram balizar suas atuações com referências não somente ao meio religioso. Desse

modo, as atividades, as músicas e as falas apresentadas descortinam a visão acerca da

cidade, redefinida a partir da sonoridade e da musicalidade, ao mesmo tempo,

descortinando outro nível de integração.

Onde tudo começa – bairros e encontros musicais

Para o elaborado e inscrito no meio evangélico, os promotores executam o reggae, o

soul, o samba, o r&b e o d&b. A adoção dessas expressões não é ditada pelo modismo, mas

figura dimensão entendida como importante ao efetivado. Os promotores afirmam ter por

opção atuar entre grupos juvenis, muitos não pertencentes às classes de maior poder

aquisitivo e, muito menos, residentes nos bairros mais abastados da cidade do Rio de

Janeiro. Sabedores haver parte significativa dos freqüentadores classificada como formada

por negros e mestiços, os promotores observam ser a “festa” e as expressões musicais

favoráveis ao trabalho de conscientização. Isso não é prerrogativa das equipes, pois há

outros arranjos em vigência fora do âmbito religioso. São vistos por alguns promotores

como afinados com suas propostas: divulgar a black music e atuar entre parte da população.

217

O resultado é o adensamento da discussão e do questionamento sobre as iniciativas em

destaque no meio religioso. Quando isso é realizado, apresentam a reconstrução da cidade a

partir da criação e recriação musical.

A cidade do Rio de Janeiro, localizada entre a montanha e o mar, tem na paisagem

um de seus destaques. Além disso, o balneário é conhecido por ser palco de atividades

culturais de repercussão nacional e internacional como, por exemplo, a bossa nova, o samba

e o carnaval197. Este último mobiliza parte da população local na preparação de desfiles de

escolas de samba e atrai significativo contingente de expectadores - residentes e turistas.

Também existem os blocos que saem às ruas e são compostos por interessados em brincar o

carnaval.

Durante o ano, a música é o motor de tantos eventos produzidos em arenas

destinadas para esses fins – iniciativa pública ou privada -, em ruas e praças. Nelas é

possível ver exibições de trabalhos para público diversificado e presente nos logradouros e

casas especializadas. As expressões musicais e o desenvolvido ao seu redor como, por

exemplo, as relações entre os artistas, entre grupos e patronos, os eventos e a organização

de associações (Ribeiro, 2003; Fernandes, 2001; Cavalcanti, 1995; Vianna, 1995),

descortinam forças e interesses componentes da cidade e distinguem suas áreas.

A “festa” teve início nas dependências de igrejas e, posteriormente, passou a ocorrer

em outro tipo de construção. Assim, os promotores passaram a alugar clubes, “casas de

festa” e boates, durante os finais de semana em determinados bairros da cidade. Ali é

efetuada a montagem de palco, a instalação de equipamentos de som, de telão, de projetor

de imagens, de canhão de fumaça e de luzes, organiza-se bar e pista de dança. A

mobilização costuma ocorrer nas áreas Norte e Oeste da cidade, e nos eixos ferroviário,

metroviário e viário, formado pela Av. Brasil – estrada que liga a cidade do Rio de Janeiro

a outros municípios.

A preferência de todos é por Irajá e adjacências, com Madureira, Bangu e Campo

Grande citados constantemente. Sobre isso, DJ TR expõe que “... Irajá foi um ponto 197 A Associação das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro – AESCRJ - , entidade em atuação desde 1975 (em substituição da União Geral das Escolas de Samba do Brasil, fundada em 1934), representa cerca quatro dezenas de escolas de samba. A Liga Independente das Escolas de Samba – Liesa - , fundada na década de 1980, concentra as catorze agremiações que integram o grupo especial. Suas componentes desfilam em duas noites do carnaval na Passarela do Samba. Ligadas às agremiações do Grupo Especial, existem as escolas mirins formadas por muitas crianças residentes nas comunidades. www.aescrj.com.br, acessado em 13/07/05; www.rio.rj.gov.br, acessado em 13/07/05.

218

estratégico, por exemplo, próximo à linha do metrô, não muito distante de Madureira.

Então, as pessoas podiam ter acesso ali pra você chegar em qualquer parte do Rio”. Alguns

promotores justificam a seleção da região por ser próxima às suas residências e possuir

ampla rede de transportes - trem, metrô, ônibus e “vans” 198 –, por atrair e assegurar a

circulação da população com as atividades musicais oferecidas. Por Madureira, caso seja

considerado a oferta de vias de transportes, chega-se à Zona Oeste, aos bairros do ramal

férreo de Leopoldina, à Av. Brasil e também aos municípios limítrofes, como Duque de

Caxias e Nilópolis, integrantes da Baixada Fluminense.

De acordo com o Plano Estratégico, realizado pela Prefeitura Municipal do Rio de

Janeiro, o espaço urbano é visualizado conforme semelhanças topográfica, populacional,

cultural, histórica e geográfica. Assim, a Região de Irajá é formada por oito bairros199 e

alcança a extensão de 2.500 hectares e mais de 300 mil/hab. Destes, 42 mil moradores estão

empregados nos ramos de comércio e de serviços e geram aproximadamente R$ 200

milhões de ICMs200.

Madureira, encravada nas margens da linha férrea Central do Brasil, de acordo com

o Plano Estratégico, integra a Região Norte, uma das mais populosas da cidade, juntamente

com outros vinte e três bairros. Os recursos econômicos movimentados são da ordem de R$

405,9 milhões de ICMs, provenientes de atividade comercial com cerca de 64 mil pessoas

empregadas201.

198 Trata-se de transporte alternativo, nem sempre legalizado, realizado com o uso de utilitários, desenvolvido em decorrência de insuficiência da rede de transporte. 199 São os bairros de Colégio, Irajá, Penha, Penha Circular, Vicente de Carvalho, Vila Cosmos, Vila da Penha e Vista Alegre. 200 Dados presentes no Plano Estratégico da Prefeitura Municipal da Cidade do Rio de Janeiro e Instituto Pereira Passos. Maiores informações ver: www.rio.rj.gov.br, acessado em 13/07/05. 201 A Região Norte possui mais de 6 mil/hectares e 700 mil/hab. É formada por 23 bairros: Acari, Anchieta, Barros Fº, Bento Ribeiro, Campinho, Cascadura, Cavalcanti, Coelho Neto, Costa Barros, Engº Leal, Guadalupe, Honório Gurgel, Madureira, Mal. Hermes, Osvaldo Cruz, Pq. Anchieta, Pq. Colúmbia, Pavuna, Quintino Bocaiúva, Ricardo de Albuquerque, Rocha Miranda, Turiaçu e Vaz Lobo. Informações contidas no Plano Estratégico da Prefeitura Municipal da Cidade do Rio de Janeiro e Instituto Pereira Passos. Maiores informações ver: www.rio.rj.gov.br, acessado em 13/07/05.

219

Cidade do Rio de Janeiro

Fonte: Armazém de Dados/ Instituto Pereira Passos – IPP.

No mapa acima, aparecem as regiões de Irajá e Norte, limítrofes entre si, vistas

como distintas pelo poder público – os critérios são arrecadação, atividade econômica e

índice de empregos. No entanto, para os promotores, não existem somente

correspondências entre as áreas a partir de critérios oficiais. Visualizam os bairros como

algo único, o que fica evidente quando alguns aspectos são apontados. Eles viabilizam

compreender sua eleição para a efetivação das atuações. Ao lado da presença e do trânsito

populacional, além de condições de transportes, a característica cultural é decisiva para o

desenho do território. Sobre isso, TR enfatiza:

Não é que tenha muita gente de Madureira, mas Madureira é um foco de concentração da massa negra no final de semana. Já foi lá no baile do viaduto? Antes de fazer o Soul de Cristo, eu pude levar o Alpiste pra tocar lá.

220

Madureira passa a ter prevalência na paisagem urbana a partir da presença de

interessados residentes na localidade, em bairros e em cidades consideradas vizinhas. Eles

são atraídos por eventos culturais, por exemplo, o “baile do viaduto”. Ele surge na fala do

promotor e permite imaginar a cidade de modo distinto da divisão espacial em vigor. Isso é

feito mediante a referência ao trânsito populacional e ao registro histórico-cultural com

escolas de samba, blocos de carnaval, jongo e outras iniciativas. As referências têm

permitido estabelecer concepção urbana própria. Nela, a cidade surge integrada, mesmo que

sejam registrados conflitos decorrentes do tráfico de drogas e políticas voltadas à região

(Ribeiro, 2003:80-93).

O citado “baile do viaduto” ocorre nos finais de semana, há quinze anos, sob o

viaduto Negrão de Lima. Reúne público considerável para dançar black music e hip-hop 202. Segundo TR, seu surgimento se deu com a mobilização de alguns vendedores que

faziam ponto nas ruas e procuraram criar alternativas de diversão em adição ao baile

realizado no clube Vera Cruz, em Abolição. A seu ver, este “baile” “é uma prova real deste

relacionamento amoroso com o povo afro-carioca foi o nascimento de uma de suas filhas

mais novas: a ‘black music’”203. Ocorre, assim, o desenho urbano, entendido por ele como

“afro-carioca”, cujos ingredientes são a música e a cor. Com esses, a cidade é inserida no

fluxo cultural comum aos povos da diáspora.

Para L´Ton, da GB, parte da cidade seria mais ampla, mas com fronteiras

demarcadas, pois afirma:

O público dele curte isso, que é um público mais do que... Mas lá para cima, para Bangu, para a Zona Oeste é um lance mais de guetos, lá predomina. A galera sai de lá pra ir ao Circo Voador, em Madureira204. Então, da fronteira de Madureira para lá predomina a música negra, predomina a black music, o hip- hop, o samba, o pagode, isso predomina

202 Monteagudo e Motta. “Charme sob a ponte”, jornal O Dia, 24/03/04. 203 Ver: “15 anos de Rio Charme – o baile das escolas de samba tradicionais e do jongo comemora a debutância de sua filha mais nova: a black music”. “happy hour à moda subúrbio”, informativo e-black, materiais disponíveis em www.pcg.com.br/eblack, acessados em 14/07/05. 204 Convém frisar que em Madureira não há “Circo Voador” – espaço voltado à atividade musical -, porém vigora em Marechal Hermes – integrante da Região Norte – e na Lapa, no centro da cidade, em vigência há mais de 20 anos, contando com recursos da Prefeitura. Além disso, há as “lonas culturais”, projeto originado do Teatro de Arena, criado em 1958. Seis bairros da cidade (Anchieta, Bangu, Campo Grande, Realengo e Vista Alegre) contam com instalações da “lona cultural”, iniciativa surgida em 1993, com incentivo da Prefeitura. Em Madureira, existem o “baile do Viaduto” e a instalação do Serviço Social do Comércio – Sesc - que também registram apresentações de artistas e conjuntos musicais. Ver: www.lonacultural.com.br, acessado em 15/05/06; www.circovoador.com.br, acessado em 15/05/06.

221

lá. Então, por isso que eu quis subir. ‘Bom, vamos subir, vamos subir para lá para fazer um lance para um público que a gente curte’. E tem aquela história, é toda uma... além de fazer para o público curtir, se sentir legal, mas há todo um pensamento. Por exemplo, durante todas as festas, nem vou dizer que todas, mas sempre eu vou estar. Mas, vira e mexe, o REP vai trazer os convidados. E isso fortaleceu meu grupo. Porque eu sei que meu público é lá de parte de cima, Zona Oeste, Baixada Fluminense, é esse meu público, e de Niterói. Então, eu estou fortalecendo o REP 205.

Nos depoimentos, os referenciais culturais passam a contribuir para outra

organização espacial, a despeito da concepção político-administrativa. Estes colocam a

cidade como paisagem cultural formada a partir da oposição entre alto e baixo. Madureira é

vista como “foco de concentração”, pois “uma de suas filhas mais novas” também constitui

a força de atração e, ao mesmo tempo, de delimitação, já que TR indica ser ali a inscrição

da cidade no fluxo mundial de bens culturais.

Desse modo, a fala de L´Ton contribui para descortinar que tudo tem início e centro

em Madureira; a partir dali a cidade é pensada como formada por dois mundos206: aquele

posicionado acima e o outro localizado abaixo. Essa concepção não tem correspondência

com a topografia urbana207. O mundo, de “cima” do qual Baixada Fluminense, Niterói e

Bangu fazem parte, é constituído por atividades musicais e sonoras ali presentes. Trata-se

de outra cidade, de pólo irradiador de poder. O mundo de “baixo” é aquele no qual são

encontradas maiores elevações topográficas e é formado por regiões próximas ao centro

urbano e à Zona Sul. A divisão é assegurada pelas presenças de manifestações musicais

associadas ao contingente populacional identificado com a “música negra”. O mundo de

“baixo” surge como sem força e sem poder; nele nada acontece pela ausência da música

demarcada por percussão. Isso imobiliza e enfraquece. A saída de tal estado é possível

quando se começa a “subir” para área na qual as elevações não registram altitudes

205 Trata-se do grupo de “rap gospel” formado pelo entrevistado. REP é abreviação de “Radicalizando, Evangelizando e Politizando”, cujo nome foi alterado para “Radicalizando, Evangelizando e Profetizando”. 206 Cabral (1974:61) observa que, no início do século, poderia entender que a cidade do Rio de Janeiro comportava outra cidade. Tratava-se da cidade do interior, modo de vida distinto daquele apresentado no centro urbano. 207 O solo e a paisagem da cidade do Rio de Janeiro são irregulares com áreas planas e outras com alta declividade. Nas regiões de Irajá e Norte o quadro é bem específico porque a primeira apresenta áreas com suaves ondulações e outras planas; a segunda tem localidades planas, com ondulações inferiores a 50 metros. Isso contrasta com as regiões sul, tijuca e centro onde são registradas altas e relativas declividades e também áreas planas. Maiores informações, ver: www.rio.rj.gob.br, acessado em 13/07/05.

222

significativas, porém atravessada por expressões culturais formadoras e integradoras da

cidade.

Como ocorre a eleição das regiões Norte e de Irajá? A escolha não é orientada por

quantidade de templos evangélicos e/ou por predomínio de evangélicos na população208. A

base de suas atuações é o encontro com público e com referências sonoras pautadas pela

percussão e capazes, assim, de assegurar a coesão do grupo musical. Com a oposição,

L´Ton define o território a partir da música, das batidas e da concentração de conhecedores

da linguagem sonora. Assim, por meio dela e com ela todos vivem e se comunicam. Sua

referência não é constituída pela seriedade oficial e distante de manifestações populares. Na

verdade, são essas, próprias do mundo de baixo, que definem certa vida citadina e

constituem um modo de expressão de fé.

A partir das falas dos depoentes, pode-se visualizar a organização urbana não

restrita ao planejamento e gerência institucional, nem tampouco definida pela divisão do

trabalho conforme os interesses de corporações econômicas. A reunião da população pode

ser orientada por sentimentos, gostos, temperamentos e qualidades dos habitantes, forma

conjunto com peso na caracterização de cada região (Park, 1976).

Não obstante, o modo e os elementos com os quais concebem, aproximam e

distinguem parte da cidade podem seguir ou não o registro de determinadas iniciativas

histórica, cultural e sonora. Madureira e adjacências figuram como pólo de atração de

populações deslocadas de seus bairros e cidades e dispostas em compor um centro no qual

as raízes são cultivadas e asseguram as identidades – de sambista, de rapper, de negro. A

tensão estabelecida com o ordenamento espacial oficial aponta a lógica em vigência. Há de

adicionar que as manifestações culturais registradas são concebidas pelos entrevistados

como “autênticas” como o samba, a black music gospel, a “música negra” por construção

histórica e territorial.

208 A opção pela região não é justificada pela presença maior ou menor de templos evangélicos. Conforme o censo de 1991, cerca de 12% da população do Grande Rio seria evangélica e asseguraria a ida à parte das 52 denominações registradas no estado do Rio de Janeiro (Fernandes, 1998).

223

A terra do batuque e dos beats: passado e presente

Alguns grupos realizam determinadas produções musicais a partir de relação

estabelecida com certas expressões musicais de circulação global. A ligação apresentada

está na base de elaboração e de efetivação de reuniões voltadas aos populares. Além disso,

o entretenimento faz parte dessa proposta e ocorre adição de reflexões sobre o lugar e a

invisibilidade atribuída ao negro - e as práticas culturais a ele associadas. As atividades

ocorrem em parte da cidade vista por sua capacidade em atrair significativo contingente

interessado nas alternativas de diversão oferecidas. Irajá, Madureira, Bangu e outros bairros

são relacionados a partir da característica cultural. Mas como adquiriram essa

peculiaridade? Pode ter sido em decorrência do fluxo populacional? Seria em virtude das

atividades musicais?

Saber por que a área em destaque é considerada a “caixa de ressonância”, para

alguns entrevistados, tem relação com a própria construção musical da cidade. Tinhorão

(1988) observa que os folguedos realizados por negros e, posteriormente, por mestiços, nos

campos e nas cidades brasileiras, conservavam elementos das danças africanas. O próprio

samba, surgido no início do século XX, guardava componentes presentes nos folguedos,

denominados batuques. Segundo Fernandes (2001), no Rio de Janeiro, no século XIX,

ouvia-se lundu, modinha, polca, maxixe e choro, por exemplo, alguns deles transformados

e considerados possuidores de características brasileiras. Além disso, o carnaval contava

com desfiles de corsos, de “sociedades” e, no final do século, grupos de ranchos. Esses

grupos teriam surgido entre os moradores dos bairros centrais e possuíam por marca a

execução musical e a caminhada por ruas. Reuniões festivas na casa da baiana tia Ciata,

área central da cidade, teriam sido o sítio de “criação” do samba, no início do século XX,

com a gravação e repercussão da música “Pelo telefone” (Fernandes, 2001; Santos, 2004).

O samba estava presente na cidade e não era algo criado ou restrito a grupo ou

classe social. Isso se deu devido a complexo processo social pautado em encontros entre

artistas populares, intelectuais e políticos (Vianna, 1995). Além da “criação” do samba, a

forma de desfile alterou o quadro de carnaval, com o surgimento da “Deixa falar”, na

década de 1920, na área do Estácio, vista como a primeira escola de samba (Cavalcanti,

224

1995; Fernandes, 2001) 209. Os blocos, as escolas de samba, os grupos de frevo e rancho

foram se espraiando pela cidade, das áreas centrais aos morros, bairros e subúrbios,

acompanhando o crescimento da cidade (Vasconcellos, 1971).

Da Região de Irajá surgiram os bairros vizinhos a partir de desmembramentos

efetivados no decorrer do tempo210. Eles não ficaram imunes ao crescimento urbano e a

diversidade cultural, possíveis com a presença de migrantes e ex-moradores do centro da

cidade. Esses se dirigiam aos bairros surgidos ao longo da ferrovia e passaram a compor a

população formada por negros, brancos, mestiços, pequenos funcionários públicos e

militares (Ribeiro, 2003). Tudo isso contribuía para a ocupação de bairros por uma parte da

população que, detentora de “maiores oportunidades no mercado de trabalho”, não se

dirigia diretamente às favelas. Porém isso não impedia de haver proximidades entre as

“manifestações culturais” presentes nessas áreas (Cabral, 1974:61). Além do jongo e do

samba, blocos e escolas foram criados em Irajá e adjacências; podem ser citados o

“Baianinhas de Osvaldo Cruz”, com sambistas da Portela, e o “Quem fala de nós come

mosca”, da baiana tia Ester. Os dois blocos foram fundidos e surgiu o “Vai como pode”,

que depois passou a se chamar “Portela”.

Irajá contava com as escolas “Unidos de Irajá”, a “Recreio de Irajá” e blocos como

“Bafo de Minhoca”, “Urubu Cheiroso”, “Dragão de Irajá”, “Onda Braba”, entre outros.

Mesmo com o fim de algumas destas agremiações, o bairro continua a apresentar sambistas

e sambas para as diversas escolas da cidade (Lopes, 2003).

209 Cavalcanti (1995) chama atenção para a importância de relativizar as afirmativas relacionadas ao que se toma por “primeiro” na esfera do samba. Cabral (1974:62) afirma que o bloco “Vai como pode”, posteriormente “Portela”, antecedia a “Deixa falar” em estrutura, mas o termo “escola de samba” estaria vinculado aos “bambas” do Estácio. 210 A freguesia de Irajá surgiu por volta de 1647, como fornecedora de produtos agrícolas para a cidade e, anos após a sua criação, originou as regiões de Jacarepaguá e de Campo Grande. No século seguinte, surgiram Inhaúma e Engenho Velho. Com a instalação da ferrovia D. Pedro II e o desmembramento de fazendas e engenhos, outros bairros também surgiram. A região experimentou mais modificações com a saída de parte da população do centro da cidade, fosse em decorrência da reforma empreendida durante a gestão do prefeito Pereira Passos, no início do século XX, fosse em virtude do aumento do preço do aluguel. Esse atingiu os pequenos funcionários públicos e o contingente se dirigiu à região constituindo sua população, juntamente com os negros já existentes. A área de Madureira e adjacências receberam migrantes de Minas Gerais, do Norte Fluminense, do Vale do Paraíba e do nordeste do país (Ribeiro, 2003). O fluxo migratório, principalmente daqueles oriundos de Minas Gerais, do Norte Fluminense e do Vale do Paraíba, pode ter propiciado o surgimento do jongo a partir de relações entre famílias residentes (parentes e amigos). Música, dança e religiosidade afro-brasileira seriam os ingredientes do jongo e da sociabilidade local. Além do envolvimento com o jongo, as famílias participaram também de fundações de blocos e escolas de samba da região (Ribeiro, 2003).

225

Já Madureira apresenta escolas como a Tradição, a Portela, a Império Serrano e a

Império do Futuro (Ribeiro, 2003). Na extensão do samba, outros bairros como Realengo,

Padre Miguel, Bangu, Campo Grande possuem agremiações carnavalescas e blocos que

integram a paisagem cultural da cidade (Vasconcellos, 1971). Além do samba, blocos

“afro” (Ayres Machado, 1996), grupos de jongo e outras iniciativas musicais, como

pagodes e “bailes”, revelam ser essa parte da cidade pólo musicalmente não homogêneo,

pois atividades ao redor de expressões como o “charme” (r& b), o funk (Cecchetto, 2004;

Ribeiro, 2003) e o hip-hop coexistem. Nos clubes ocorrem bailes “charme” e funk (este

último também vai movimentar as atividades de entretenimento nas comunidades).

Para TR, os “bailes charme” são reconhecidos como adequados para ouvir e

executar a “música negra” (nacional e internacional); a mídia também divulga que estes

bailes contribuem para a “...difusão da cultura negra no estado do Rio de Janeiro” 211. As

músicas asseguram a freqüência nos finais de semana em clubes e em encontros realizados

em áreas públicas. As atividades registram a concentração de interessados e são efetuadas

próximas a áreas de circulação das camadas populares como, por exemplo, estações

ferroviárias e viadutos. Há o baile “Rio Charme”, sob o viaduto Negrão de Lima, em

Madureira, o “Ponto Chic”, em Padre Miguel, o “Charme de Graça”, na estação ferroviária

de Vasconcelos, e o “Hip-Hop Novo”, sob o viaduto de Campo Grande. Para alguns

militantes, os bailes não teriam nada a ver com a luta pela posição de poder, mas o

“charme” é demarcado por “valorização da estética” sem que seja, em todos os termos,

considerado por seus freqüentadores uma “militância política” (Cechetto, 2004:206).

Apreciadores, dançarinos, DJs e cantores buscam constituir manifestação por eles

considerada popular e na qual muitos se apresentam e gozam de reconhecimento e

prestígio. Na rua ocorre a propagação musical, pois registra fazeres marcados pela

autonomia de seus realizadores. Estes contam com redes sociais favoráveis aos artistas, tal

como TR conduziu o DJ Alpiste, “rapper gospel” paulistano, para apresentação no “baile

do viaduto”. Atividade artística constituída desse modo não é novidade. Os “artistas

anônimos”, em atividade desde o século XVIII, faziam-se ouvir nas ruas e mobilizavam os

ouvintes (Tinhorão, 2005)212. Nos primeiros anos do século XX, eram diversos os locais

211 “ 15 anos de Rio Charme...” disponível em www.pcg.com.br/eblack, acessado em 14/07/05. 212 Segundo o autor, os músicos tocavam a partir de seus interesses ou podiam ter seu tempo contratado para apresentação. Além desses, havia na cidade os artistas que se apresentavam em salões e, mais tarde, nos

226

para execução musical com possibilidades de profissionalização para muitos artistas

(Travassos, 2000:12).

Territórios de visibilidade

Para os organizadores, algumas expressões musicais presentes nos “bailes” são

oriundas das populações negras norte-americanas, e outras são remanescentes de encontros

populares, com estreitas ligações com os negros brasileiros. Nos depoimentos, expressões

musicais são citadas e explicitam o vigor de batidas capazes de mobilizar a população e

formadoras de território definido por interação e, para tanto, a música e outras tantas

expressões culturais são fundamentais. Com isso, parte da cidade passa a ser o ponto de

referência dos promotores.

Alguns dos organizadores e também freqüentadores, com os quais pude conversar

mais demoradamente, citam o baile “Rio Charme” como a reunião mais conhecida e alguns

afirmam ter tido relativa assiduidade. Durante o meu trabalho de campo, encontrei com TR

e Sérgio da equipe SC no “baile charme Tangará”, na Cinelândia, centro da cidade. Nega,

Tiago e outros entrevistados afirmam ter deixado de ir aos “bailes charme” realizados fora

do meio evangélico à medida que a “festa” adquiriu consolidação e/ou eles passaram a

experimentar maior comprometimento com o grupo religioso.

Os depoentes repensam a disposição espacial da cidade a partir da associação entre

música e entretenimento, a partir da qual distintas sonoridades mobilizam moradores e

vizinhos para os eventos. Seu registro compreende ruas, escolas de samba e clubes. Por

outro lado, os organizadores de “bailes” de black music e de hip-hop inscrevem-nos a

partir da constante relação com os bairros negros norte-americanos, das reivindicações e

lutas políticas e sociais. Já alguns promotores de “festa” apresentam similaridades com os

produtores de “bailes charme” e vêem a cidade não somente a partir das diferentes e

potentes batidas de origem norte-americana. Percebem que está tudo relacionado ao que

consideram ter sido construído por negros brasileiros e de outras paragens. Isso viabiliza

apreender como as músicas e as manifestações são elaboradas e, para os organizadores,

teatros do Rio de Janeiro e Bahia, e que, portanto, podiam escapar da autonomia em virtude de arranjo contratual.

227

tornam as populações e suas reivindicações também visíveis, assim como seus gostos,

temperamentos e sentimentos.

O “baile charme” e as expressões musicais são relacionados e demarcam a noção de

cidade e, com isso, é indicada a semelhança entre as iniciativas populares. Essas são

empreendidas fora do meio evangélico e caracterizadas por relação com sonoridades

oriundas dos Estados Unidos e também com o samba e o pagode. Esta inscrição da “festa”

e de black music gospel permite ser operada diferença com outras iniciativas correntes no

meio evangélico. Além disso, as formulações oferecidas contribuem para a montagem de

desenho no qual surge a subversão do desenho político-adminstrativo: o “centro” da cidade

é a região extensa que se estende de Madureira a Campo Grande, caracterizada por ações

alternativas, independentes e norteadoras de encontros e de execução musical. Com isso,

artistas e profissionais encontram condições adequadas. Eles trafegam sem vínculos com

empresas fonográficas e especializadas em organização de shows e outros eventos. Além

disso, contribuem para a representação de parte da cidade como “território de consciência

cultural” definido a partir daquilo posicionado na parte debaixo; assim, são circunscritos os

posicionamentos acerca da peculiaridade e ascendência cultural.

A cidade do Rio de Janeiro não é caso isolado em relação ao apontado. Os blocos e

os trios elétricos na Bahia redesenham a cidade e estabelecem territórios distintos. Isso

ocorre não somente em virtude das musicalidades pertinentes a cada um; muito menos em

decorrência da articulação entre música e entretenimento. Nos bairros de origem ou de

apresentação dos blocos, há atividades musicais e de cunho político-social marcadas pela

disseminação de expressões culturais formadas local e globalmente. Então, as danças, as

linguagens, os penteados e as vestimentas utilizadas caracterizam os grupos. A partir disso,

os jovens se identificam com bairros e áreas da cidade que inscrevem “fluxo de

“africanização”. Oferece-se outro desenho urbano, agora composto distintamente a partir

de específica relação afetiva e simbólica na qual sobressai a consciência da negritude

(Guerreiro, 1997).

Ao contrário disso, os trios, organizados por componentes das classes médias, são

marcados exclusivamente pela dimensão do entretenimento, e não ocorre a inscrição de

proposta étnica ou política. Com os trios, o centro da cidade e os clubes de bairros nobres

são ocupados durante todo o ano a partir de organização capaz de atrair jovens baianos e de

228

outras cidades e estados. Surge outro território, no qual não prevalecem relações de cunho

simbólico ou afetivo com os bairros, porém vigora a participação na carnavalização do

cotidiano e a garantia de diversão.

A África, as raízes ou origens negras são referências constantes e podem

caracterizar as atividades musicais cujo surgimento tenha ligação com a atividade religiosa,

com os organizadores ou com o local. Assim, pode-se ultrapassar a organização espacial

oficial e pautada em critérios objetivos. A delimitação pode ser feita na base dos

sentimentos ou ter a ver com os gostos, com os envolvimentos musicais e políticos de

organizadores e de públicos. A escolha pode estar relacionada com a busca do puro

entretenimento, com ideologias definidas e/ou ter diretriz religiosa (como a ligação entre

bloco afro e religiosidade como o Ilê Ayê e o Ara Ketu, na Bahia, e a “festa”, no Rio de

Janeiro).

Tais construções desnudam como os envolvidos recorrem às “fontes culturais”, aos

elementos de diversas origens, daquilo entendido como africano ou afro-americano para

apresentar algo próprio de “afro-baianos”, “afro-cariocas” ou “afro-brasileiros”. Tudo isso é

definido por músicas e sonoridades nas quais a percussão e as batidas eletrônicas são

componentes fundamentais, pois o modo como são concebidas permite compor território e

identificar seus integrantes. Portanto, esses empreendimentos colocam vinculações,

posicionamentos e interações que conduzem a existência de “ethos negro” (Frigerio,

1992:184).

A “festa” e a musicalidade como bens e serviços religiosos, de entretenimentos e,

para alguns, como forma de ser negro, colocam níveis de distinção e de semelhança. Nesse

sentido, observar o evento e as canções a partir de uma certa percepção da cidade, onde há

proximidade com algo não alocado no âmbito religioso; a ênfase está na oposição

alto/baixo registrada quando a cidade é representada. Ela revela as estratégias de construção

de sentidos, de contestação e de visibilidade (Hall, 2003:341). Esse é somente um dos

níveis inseridos por promotores, pois não voltados somente ao espiritual. Porém não há

como ficar aqui. Caso sejam tomadas a “festa” e a black music gospel, como componentes

de meio musical negro, entende-se dialogarem com outras iniciativas, enfrentarem

oposições e lidarem com as mesmas referências pautadas na música, nas temáticas da cor e

racial. Assim, será vista a tensão entre a black music gospel, suas estratégias de

229

visibilidade e de reconhecimento e a composição política do Fórum de Lideranças Negras

Evangélicas – FLNE.

Vozes dissonantes

As inscrições de certas expressões musicais contemporâneas e atividades são

criticadas por líderes religiosos. Estes duvidam de que tais expressões consigam manter a

desejável distinção com o “mundo” e também se as canções com referencial africano e

afro-americano viabilizam a “adoração”. As idéias, as músicas, os objetos e os lugares

expressam suas especificidades e, por outro lado, a proximidade e diferença mantidas com

iniciativas localizadas no meio evangélico.

As tensões não acometem somente os não comprometidos com as concepções

comuns aos leigos - religiosos e empresários – sobre a população de cor. Acusações e

críticas podem surgir e envolvem outras formações voltadas a certo segmento de fiéis;

dentro do grupo voltado ao tratamento das temáticas da desigualdade social e negritude,

sobressai polêmica sobre a black music gospel. De um lado, está o integrante do FLNE e,

de outro lado, em resposta, o promotor de “festa” da SC. Apesar da organização de

empresas e de atividades de disseminação de produções musical e fonográfica

especializadas em mensagens de cunho religioso, existem tensões. Elas surgem com

algumas vozes dissonantes e questionadoras, seja sobre a origem das expressões musicais

adotadas, seja sobre sua validade na conscientização de fiéis. Essas visões dissonantes serão

contempladas aqui.

Durante o meu trabalho de campo, encontrei defensores de experimentos musicais e

de interação, porém me deparei também com críticos. Um cantor declara ser a música

desenvolvida atualmente a imitação da “música mundana”. Para ele, a causa seria “um

relaxamento dos dirigentes” e a insegurança na manutenção do grupo juvenil. Por causa

disso, a apresentação de grupos musicais é vista com restrição porque, diz o depoente, “têm

grupos que toma a maior parte do tempo do culto”. O objetivo em manter e estender o

corpo de fiéis fez com que os dirigentes ampliassem a presença musical e diminuíssem

aquele tempo destinado ao sermão, à leitura de textos sagrados, por conseguinte, invertendo

a hierarquia do grupo. O resultado seria a música considerada de fraco conteúdo religioso,

230

mas eficaz, segundo o cantor, para atrair os jovens por ser “...chamado às emoções. A

emoção para o público, prazer do corpo...”. A crise é dada pela ínfima manifestação do

pastor diante da promoção da emoção e do corpo, cujo alcance é o desmantelamento do

culto baseado nas Escrituras.

O cantor não é o único a se opor e a fazer coro com o pastor em estado de alerta ao

constatar a invasão da igreja pelo “mundo”. Como foi visto no terceiro capítulo, vigora a

visão de inovações musicais carrearem perigo ao grupo religioso. A visão também é

encontrada entre os envolvidos com texto em circulação na Internet sobre a “música

contemporânea” nas igrejas evangélicas. No material, é expresso que as canções “populares

afro-latino-americanas” seriam possuidoras de estreitas relações com cultos de adoração a

demônios. Eles seriam oriundos da África e chegados às Américas com os primeiros

escravos. O rock, o r&b, o samba, a congada, o mambo, enfim, a musicalidade de origem

afro-latina-americana apresentaria ligações com atividades demoníacas e, diante disso,

seriam justificadas as oposições às expressões culturais213. Sobre os cultos e as canções, é

demonstrado que:

A contextualização da música chamada falsamente de ‘contemporânea’, pois tem sua origem na antiqüíssima música de invocação demoníaca indígena e africana, tem introduzido na Igreja a sensualidade, o paganismo, o misticismo, a atividade maligna, que através, dos ritmos, tambores (bateria), e danças têm entronizado Satanás nas igrejas mundanas, no lugar de Cristo – transformado o culto, aparentemente em show, mas o que acontece é bem pior - a Igreja torna-se um templo de Satã 214.

A música não somente leva ao enfraquecimento da autoridade pastoral como

também é aquela que veicula o mal - não por ser do “mundo”. Suas qualidades negativas

decorrem das ligações mantidas com os povos afro-americanos. Assim, o sensual, com a

dança, e o sentimento, frutos de músicas percussivas, são apontados como responsáveis por

estado de descontrole. Desconhecimentos, prazeres e distância do pólo do bem, ou daquilo

entendido como tal, são resultados de proximidade com os povos que contribuíram para

213 Maiores detalhes ver: http://solascriptura-tt.org/separaçãoeclesiastFundament/Laerton-crescIg3-musicaPagaMilenar, acessado em 10/02/04. 214 III – Música contemporânea – instrumentos barulhentos e múltiplos tambores da bateria e dança como atrativos para fazer a igreja crescer – por José Laérton Alves Ferreira, disponível em http://solascriptura-tt.org, acessado em 20/07/05.

231

formar as culturas locais. Prossegue o distanciamento da proposta em estabelecer leitura do

Evangelho voltada à cultura de cada povo (Nascimento Cunha, 2004).

Existem manifestações de intelectuais evangélicos que pontuam para a inviabilidade

de adoção de determinadas expressões musicais. Ao apontar o curso da “revolução

litúrgica” em processo no cristianismo, Dornelles (2005b) indica a ruptura de fronteira apta

a separar o profano e o sagrado. A música popular tomada por igrejas cristãs transforma o

culto racional em emocional. O autor entende ser a música no Ocidente influenciada pela

“música africana”, conduzida do terreno orgiástico, mágico e maligno do “vodu” –

disseminado pelo Caribe e África –, presente no rock, no jazz e no blues. Essas formas

musicais são vistas como perniciosas, excitantes e descomprometidas com “idéias

espirituais”, como no “período clássico”, e pesa para a decrepitude da tradição no meio

religioso. Theodor (2005) destaca a inviabilidade do soul ser empregado na “adoração”,

porque estaria ligado à população negra norte-americana e oriunda do blues. Este é visto

como canto “melancólico” do negro escravo. Por sua constituição emocional e também por

não seguir o critério bíblico de “temor e reverência”, o soul e o blues são expressões

musicais consideradas inadequadas ao culto daquilo considerado divino.

Esses autores apresentam argumentos para criticar não somente as inovações

musicais, também preocupação dos críticos da “festa” e eventos similares. As expressões

musicais são condenadas porque estariam vinculadas a certas práticas religiosas ou

demarcariam modo de expressar os sentimentos comuns aos povos não brancos. O destaque

do perigo, do orgiástico, do emocional, da feitiçaria e da tristeza aponta para a concepção

na qual alguns povos, ou melhor, sua cultura, sua moral e sua religiosidade estariam

submersas em mundo de “idolatria”, de perigos e de irracionalidade. A sombra do perigo

paira sobre as canções e as atividades porque, para alguns, contemplam sensualidade,

sentimentos, paganismo e outros elementos delatores da impureza, da transformação do

“culto” em “show” e do domínio da “igreja” por “Satanás”. Ao contrário do observado até o

momento, a coexistência é vista como desestabilizadora e torna frágil o esquema

organizatório (Douglas, 1966) que teria regido as igrejas – fiéis e propagadoras do

considerado “original” e “puro”. São feitos alertas sobre os limites, as fronteiras, não

físicas, mas cósmicas, a serem resguardadas a fim de garantir a homogeneidade (musical,

cultural e religiosa), como se existisse de fato.

232

A visão apresentada por autores evangélicos não é inusitada, pois encontra respaldo

também nas reflexões do século XIX. Essas apontavam diferenças entre as raças, indicavam

a superioridade de brancos e a inferioridade de negros e indígenas. Esta visão ganhava

robustez com a vigência de reflexões científicas. Uma delas destacava o intelecto, as

manifestações morais e as propensões animais como qualidades que distinguiriam negros,

amarelos e brancos. O negro seria portador de débil intelecto, de acentuada animalidade e

pálida moralidade e, assim, seu lugar passaria a ser definido na composição da sociedade

(Da Matta, 1983:72). Nos aspectos religioso, moral e cultural, os povos negros, distantes

da divindade cristã, estariam condenados. Mesmo quando próximos da religiosidade

considerada adequada, poderia haver o culto equivocado. Os aspectos negativos estariam

em vigência, caracterizando, portanto, as manifestações culturais dos contingentes de cor

negra (Barbosa, 2002; Kidder e Fletcher, 1941).

Os pronunciamentos contundentes e preocupados com a continuidade da tradição

diante de reelaborações musicais e cultuais estabelecem confrontos e dão a proporção do

jogo de posições, de forças e de interesses entre componentes de grupos distintos. Os

líderes religiosos apontam o perigo da mistura não somente no plano terreno; também

alertam para inversões de poderes no plano espiritual. Isso ocorreria com aquilo

posicionado em nível inferior e conduzido para o serviço religioso e, ao mesmo tempo, seja

cultuado. Não obstante, não é aqui o fim dos confrontos. As enunciações em circulação

proporcionam descortinar a desvalorização de herança cultural e de fiéis com ela e por ela

definidos, principalmente por critério de cor de pele e pertencimento cultural. Por outro

lado, há o investimento em expressões musicais, em relacionar as canções a certa

ancestralidade – do considerado africano - e defender revisão da liturgia. Com isso, ficam

as tensões em decorrência de posicionamentos acerca do realizado.

Ações em confronto

O FLNE tem por proposta refletir a situação do “afro-descendente”, integrante de

igrejas evangélicas, e busca agir para reverter certa situação em âmbito educacional,

doutrinário e litúrgico, haja vista a situação material, a fraca participação em postos de

direção e a relação entre o mal e as expressões culturais com referência à África. Dentre os

233

componentes do FLNE sobressai Hernane, dirigente religioso em atuação no estado de São

Paulo. Ele critica as igrejas neopentecostais brasileiras porque contribuem para difundir o

racismo com a “teologia da prosperidade” e a “doutrina da maldição hereditária”. A seu

ver, a primeira defende o sucesso material como marca da benção divina; a segunda

sustenta ser o “povo negro” descendente de outro que teria recebido uma maldição divina:

sua libertação ocorreria com a aceitação de Jesus e a negação dos “antepassados”. Hernane

aponta ser a visão neopentecostal propagadora de visão restritiva, pois concebe ser

necessário que o negro “faça uma espécie de cura interior se desvinculando de todos os

seus antepassados, ou seja, não sendo mais negro”215.

Em igrejas históricas como, por exemplo, na Igreja Metodista, o pertencimento

conduz ao “embranquecimento”, cujos componentes são a certificação da competência, os

títulos universitários e o distanciamento de “traços importantes” da cultura brasileira, com a

adesão a valores e elementos culturais em vigor no meio religioso. A música, o samba, o

“folclore nacional, a cultura afro-brasileira e afro-latino-americana” são preteridos em

benefício da “marchinha americana”, do “folclore americano” presentes no hinário do

grupo (Novaes, 1985b). No pentecostalismo, apesar da rejeição do considerado ligado à

África, existem iniciativas de líderes como a de Hernane, voltadas a desenvolver, a ampliar

o “discurso pentecostal afro-brasileiro” e contemplar os problemas que afetam os negros.

Nesse sentido, busca-se combater as associações entre negritude e mal sem que haja

proximidade com o movimento negro, devido a sua ligação com as religiões de possessão

(Burdick, 1998:205).

A polêmica entre o FLNE e igrejas evangélicas ressaltam a existência de campo

discursivo. Ele é composto por forças antagônicas e em confrontos posicionais e políticos

no tocante à ascendência cultural e à cor da pele (Hall, 2003:345). De acordo com a visão e

propostas encontradas no FLNE, seguidas por Hernane, outro confronto, outro jogo de

forças, é estabelecido. Hernane pondera em relação a black music gospel e, por sua vez,

encontra resposta e, assim, amplia as interlocuções.

De acordo com Hernane, no interior do “movimento negro evangélico” estaria o

“movimento black gospel”, surgido nas igrejas neopentecostais brasileiras no decorrer da

215 A reflexão de Hernane Quilombo, denominado “As igrejas evangélicas neopentecostais e os afrodescendentes”, integra o artigo “Movimento Negro Evangélico - um mover do Espírito Santo”, disponível em http://br.msnusers.com/afrodescendentesnasigrejasevangelicas, mensagem recebida em 2004.

234

década de 1990. Para ele, não existe integração entre ambos. Isso ocorreria porque a

doutrina neopentecostal inviabiliza em seus adeptos a reflexão militante de “busca de

transformação social”. Critica, assim, a black music gospel, pois sua atuação fica restrita ao

canto, sem provocar reflexões entre parte significativa de seu público. As canções não

fomentariam questionamentos sobre o sofrimento, o cativeiro e a perseguição de liberdade

em Deus216.

Ao contrário disso, o “movimento negro evangélico” busca transformar a sociedade

ao instituir a “teologia contextualizada e negra”. Apesar disso, Hernane aponta ser o

“movimento black gospel” integrante do “movimento negro evangélico” porque se

originam da mesma “raiz negra”, pois o “movimento pentecostal surgiu no mesmo

ambiente que gerou a música negra. Assim como o pentecostalismo é negro a sua música

também é”. Entende ele que a integração entre os dois “movimentos” seria interessante por

ser a música capaz de mobilizar significativo contingente 217.

O argumento do integrante do “movimento negro evangélico” suscitou resposta

entre os produtores de black music gospel e de “festa”, principalmente entre os

componentes da equipe Soul de Cristo. Sérgio, por meio do site e-black, argumenta existir,

há muito, aqueles comprometidos com a “música gospel” e divulgam a “Palavra de Deus”.

Para tanto, buscam em “nossas raízes africanas, conceitos de que Jesus veio para todos os

povos”. Assim, indica estar em andamento a conscientização e, para exemplificar, cita

vários cantores que valorizam a “cultura africana” a fim de divulgar a “mensagem que

Jesus nos deixou”. Para Sérgio, a proximidade entre os dois depende de o “movimento

negro evangélico se utilizar da música como elo de divulgação de seus conceitos” 218.

A partir de referências bíblicas e culturais, ocorre a reconstrução de uma África não

para procurar refúgio, porém para confrontar o considerado demasiadamente branco no

meio evangélico. A organização do “movimento negro evangélico” demarca como parcela

minoritária no direcionamento das igrejas busca construir a estratégia de visibilidade. Essa

incorre em ressaltar a origem a fim de visualizar o exercício de crença. Por isso, a “raiz

negra” remonta ao passado reinventado quando buscam a história protestante. Esse passado

216 Ver também: Burdick(1998). 217 Sobre o assunto, ver: “Movimento negro evangélico, um mover do Espírito Santo”, http://br.msnusers.com/afrodescendentesnasigrejasevangelicas, mensagem recebida em 23/05/04 218 “O movimento black gospel e o movimento negro evangélico, disponível em http://pcg.com.br/eblack, acessado em 11/06/05.

235

é, em outro momento, conduzido para fora do âmbito teológico e alocado no cultural, haja

vista serem procurados nas “raízes africanas” os elementos para a consolidação de leitura

do Evangelho. Desse modo, Sérgio entende a peculiaridade da black music gospel porque

permite redefinir o que seja “negro” e evangélico.

Os materiais de divulgação revelam peculiaridades acerca do elaborado em direção

à música. Estilos são apresentados, povoam os empreendimentos musicais e de eventos e

transmitem imagens acerca do realizado. Surgem composições imagéticas do corpo e este

aparece como integrante de esquema de entendimento e de expressão das concepções das

equipes; também há arranjos com atividades musicais e expressões culturais não religiosas

por meio dos quais a cidade é repensada e suas áreas distinguidas.

As produções musicais, de eventos e fonográficas colocam como a dimensão da

música favorece a instalação de níveis de distinções e de proximidades entre as iniciativas e

os arranjos formados em seu interior e fora dele. As músicas e os eventos produzidos,

orientados por certa percepção de cor e origem, têm contribuído para o surgimento de

tensões, confrontos e forças com a mobilização de líderes religiosos e de leigos. Por último,

a tensão entre o “movimento negro evangélico” e a black music gospel denuncia a falta de

integração e fragilidade entre os leigos e suas propostas porque operam em condições

distintas. Em movimento pendular, os promotores polarizam entre o entretenimento e a

diretriz política; como a atuação da CON-3, o reconhecimento não decorrerá do meio

religioso. O FMNC e o FLNE confrontam a doutrina e a política para apresentarem o

direcionamento ao fortalecimento de fiéis, do contingente de evangélicos negros. Por isso, a

discussão e os arranjos estão orientados também pela dimensão legal e política com a busca

pela igualdade com a indicação de “estratégias compensatórias” (acesso às escolas

vinculadas aos grupos protestantes).

Até aqui foi visto o que é a “festa”, o que a constitui e como é organizada; também

foi apreciada a dimensão musical e apontado como é tida pelos envolvidos em sua

produção. As tensões e os arranjos viabilizam compreender ser o exercício musical

efetivado a partir de movimentos diversos. Esses podem ser complementares,

confrontantes, paralelos e cruzados. Isso envolve inscrições de vários grupos,

proximidades e distanciamentos de concepções institucionalizadas e de ações posicionadas

fora do meio evangélico e também em seu interior.

236

Também tem sido apontada a vigência de grupos independentes, designados pelo

termo equipe, compostas por cantores, DJs e empresários envolvidos com a produção e

execução musical. Esses promotores estabelecem redes para suas iniciativas e delas obtém

parcerias com colaboradores. Há igualmente os freqüentadores, consumidores de CDs, de

informações e que movimentam um circuito musical no qual interagem e exercitam sua fé.

Saber quem são os freqüentadores, como concebem a black music gospel e a “festa”, são

pontos fundamentais para conhecer mais sobre o exercício musical e de eventos. Ao

considerar as falas dos freqüentadores, serão focalizadas as características das atividades de

DJ, de pregador e de “segurança” a fim de compreender porque a “festa” e as músicas

constituem algo específico.

237

Capítulo 6

Da rua ao palco – presenças e sentidos

Nos capítulos anteriores foram destacadas as produções musicais, de reuniões e

fonográficas direcionadas aos adeptos de igrejas evangélicas. Também foram apontadas as

participações de empresas, de gravadoras e de emissoras de rádio. Além disso, há cantores,

DJs e produtores que agem fora da esfera institucional e passam a configurar mobilização

independente. Eles apresentam visões peculiares acerca da citada “música gospel”; para

alguns, esta pode estar vinculada à mensagem de cunho religioso; para outros, coloca certa

visão pertinente ao âmbito evangélico. As transformações não ocorrem por mera

apropriação de expressões culturais, porém a partir de relações com idéias e com bens. Isso

demarca os encontros estabelecidos e, por conseguinte, as vias de porosidade: o

entretenimento e a visão política.

As manifestações organizadas têm por objetivo divulgar os artistas, executar as

canções e, por fim, constituir meio no qual seja possível atuar entre os presentes e ouvintes.

Nesse sentido, trata-se de executar canções e também proferir “mensagens”, com conteúdo

evangelizador - religioso ou político, para confirmação daqueles inseridos em denominação

evangélica. As iniciativas também estão voltadas ao entretenimento e à divulgação de

artista, porém isso não está desvinculado e não deve ser visto isoladamente. Enfim, ouvir

música, cantar, tocar, dançar, proferir “mensagens” são momentos das atividades de artistas

e de empresários. A análise do fazer musical evidencia tensões, confrontos, lógicas e

coexistências que regem as combinações e os arranjos.

Foram vistas as propostas, as elaborações e as noções daqueles ocupados nos postos

de produção e de divulgação, seja musical, seja das atividades destinadas aos fiéis. Também

foram abordados os sentidos apresentados pelos envolvidos com a prática musical e tudo

atrelado a ela. Todavia, não foi contemplado o que os freqüentadores entendem sobre tais

iniciativas e seus resultados. Os promotores visualizam atingir os freqüentadores e, assim,

definem o que operacionalizam. No entanto, o sentido não é construído unilateralmente, e

238

muito menos, é algo cristalizado. As relações sociais não estão restritas aos envolvidos com

a produção e a organização musical e de empreendimentos, pois existem os receptores -

não possuidores de lugar passivo. Eles também formulam sentidos e dialogam com aqueles

apresentados por promotores e com os expressos por líderes institucionalizados.

A partir do exposto, buscarei me alongar mais em algo que já apontei em momentos

anteriores do texto, ou seja, as concepções entre os freqüentadores sobre a “festa” e as

músicas. Assim, será possível dar mais consistência a outro ângulo do que seja apresentado.

Também serão indicadas as semelhanças e a heterogeneidade do público – possuidor de

diversas experiências culturais, origens e inserções religiosas.

Foram ouvidos 23 freqüentadores, sendo que cinco depoimentos foram realizados

fora do âmbito da “festa” e são, portanto, mais extensos. Os demais aconteceram antes da

entrada do local de encontro e isso determinou o tempo e a profundidade das entrevistas,

porém permitiu alcançar suas visões acerca do disponibilizado.

Além de focalizar os receptores, será procurado definir outros tipos de profissionais,

pois além do cantor, existem posições-chave e, nesse caso, aparecem os pregadores e os

DJs, reconhecidos diante do elaborado, apresentado e alterado por eles no decorrer das

reuniões. Também será abordada a importância de colaboradores, especificamente aqueles

em atuação na área de controle (ou de “segurança”), haja vista que os freqüentadores e os

promotores ressaltam como característica da “festa” a tranqüilidade, a ausência de

confrontos físicos e de excessos generalizados. Para eles, isso conduz ao reconhecimento

daquilo produzido e recebido.

Quem e por que ir à "festa"?

Ao descrever a reunião219, foi possível tecer um quadro a partir das ações e das

formulações dos organizadores. Vejo ser prática não dissociada da dimensão da fé e, em

princípio, sublinha participação marcada pelo entretenimento e por críticas e reflexões

acerca do fortalecimento político e de expressões culturais. Mas, para a tessitura ser

consistente, a abordagem passa a compreender também os participantes. O período de

observação e as conversas mantidas com os freqüentadores são dois pontos que permitem

219 Veja a descrição sobre a “festa” no segundo capítulo.

239

oferecer certo ângulo sobre as canções e os eventos. Saber quem e o motivo para ir à

“festa” são questões a serem respondidas.

Em uma noite de sábado a qual me dirigi à “festa”, realizada pela equipe Gospel

Night (GN), entrevistei um grupo de mulheres. As componentes do grupo eram irmãs e

amigas, solteiras, casadas, integrantes das igrejas como, por exemplo, Metodista,

Assembléia de Deus e Batista. Os filhos teriam ficado sob a guarda de parentes e, assim,

foram pela primeira vez ao evento, acompanhadas pelo marido de uma delas.

Segundo foi dito, todas as integrantes estiveram no serviço religioso de suas igrejas

e depois seguiram para a reunião; concebiam ser aquele momento diferente do que

costumavam realizar. Caso não estivessem ali - isso foi explicitado entre tímidos sorrisos -

teriam ficado em casa vendo televisão, ido à pizzaria ou estariam voltadas aos cuidados das

crianças. O que teriam ido fazer ali? Foi a pergunta que esperava fazer. Uma integrante

terminou por falar que, após a audição do programa de rádio, havia organizado grupo para

ir à “festa”, dizendo que todos esperavam ouvir música de “adoração”, “mensagens” e

encontrar membros de outras igrejas. Então, estava resumido o que a maioria diz encontrar

ou, ao menos, espera encontrar. Nele há possibilidades de interação, de entretenimento e de

vivência religiosa. Provavelmente tudo isso pode ser oferecido, procurado e construído por

todos os presentes.

Em outro encontro produzido pela GN, com o registro de numeroso público

interessado na exposição de fantasias, observava aqueles dedicados ao ato de dançar. Era

possível ouvir o barulho feito pelos mais próximos quando utilizavam suas máquinas

fotográficas; postada no fim do salão, próxima à escada de acesso – responsável pela

ligação entre o térreo e o segundo pavimento – encontrei Ynah, uma das entrevistadas, e

conversamos sobre o som, sobre os DJs, as fantasias. Foram ressaltadas a criatividade das

roupas e a animação dos presentes; depois, a interlocutora dirigiu-se ao bar e, pouco depois,

conversava com casal de freqüentadores. O grupo era acrescido por Nega, da equipe GB,

presente há muito no salão e que encontrara o grupo naquele momento; o grupamento

permaneceu em animada conversa.

Para mim, esse momento permitiu ver a "festa" como propícia ao encontro e não

restrita aos serviços religiosos. As canções e a “festa” promovem a inclusão porque

mesclam certos valores do grupo e interesses individuais: pode-se dizer que a adesão

240

religiosa é fortalecida sem abdicar da diversão, do encontro com amigos, da possibilidade

de ouvir música e dançar. Na "festa" ocorre inversão do definido como profano em algo

orientado para confirmar a integração entre os freqüentadores.

As conversas mantidas, apesar de rápidas, revelaram que os freqüentadores

associam diferentemente a reunião ao entretenimento, ao religioso, ao sagrado e ao

questionamento político. A condição de conexão é dada pela música, com o momento para

a audição de “mensagens” proferidas por componente de alguma congregação. Tudo isso

confere atmosfera peculiar, seja em relação aos serviços religiosos institucionalizados, seja

com o existente na esfera secular. A sua especificidade estaria nas músicas, no contato com

o que entendem ser sagrado, com o que caracterizaria o grupo religioso e, ao mesmo

tempo, na disposição para a diversão.

Retrato de uma fé

Como já citei, durante o trabalho de campo, conversei com 23 dos presentes e pude

perceber a distinção entre eles. Alguns estavam indo pela primeira vez, outros há um ano,

outros cerca de três anos e aqueles assíduos há seis anos. Muitos eram oriundos de

municípios vizinhos como Belford Roxo, Duque de Caxias, Nova Iguaçu e São João de

Meriti, localizados na Baixada Fluminense. Há também os moradores de bairros como

Méier, Centro, Acari, Jacarepaguá e outros. Muitos dos que vão à "festa" têm ensino

médio e graduação completa. Desses 34,8% cursaram o ensino médio, 17,4% concluíram a

graduação (pedagogia, análises de sistema, música e turismo), 4,3% possuem o ensino

fundamental e 43,5% não responderam. Parte dos entrevistados revelou ter tomado

conhecimento da atividade via programa de rádio, mas foi o contato pessoal o modo

preponderante na divulgação.

Existe consistência no tocante ao registro dos eventos, não somente pelo tempo de

realização, mas decorrente da manutenção de antigas e de recentes inscrições. Isso contribui

para desenhar a “festa” como propiciadora da interação. Nesse sentido, 21,8% estariam

marcando presença entre 1 mês e um ano; 21,8% pela primeira vez se dirigiam à “festa”; os

mais antigos, que oscilam entre quatro a seis anos, perfazem 17,4%; 13 % voltaram-se aos

eventos há três anos. O total de presentes há dois anos é de 13%; e 13% não responderam.

241

Antes de entrar no clube, nos locais das "festas", é possível abordar as pessoas e elas

falam, mesmo ansiosas para entrar e dançar. Isso talvez aconteça porque há compromisso

entre os evangélicos de ser a fala, o “testemunho”, eficiente instrumento de proselitismo.

Essa disponibilidade foi importante para coletar parte dos dados e ter conhecimento da

diversidade do público – alguns são de igrejas históricas e (neo)pentecostais. Há

freqüentadores convertidos há pouco tempo, outros de famílias evangélicas e outros têm

inserção em ministérios em igrejas nas quais congregam. Do Projeto Vida Nova de Irajá

foram inquiridos 17,4%; 13% são da Igreja Batista; 13% de membros da Assembléia de

Deus; 13% da IURD; da Igreja Nova Vida seriam 8,7% de depoentes; 4,4% da Batista

Renovada; da Comunidade Zona Sul encontramos 4,4%; 4,4% de filiados da Igreja

Adventista; 4,4% da Igreja Quadrangular; 4,4% são pertencentes da Comunidade Graça e

Verdade; 4,3% para a Metodista e Igreja Evangélica Pentecostal Cristã. Isso demonstra a

heterogeneidade dos freqüentadores de atividade voltada a atingir certo segmento dos fiéis

evangélicos.

Caso sejam confrontados, os dados revelam o predomínio de neopentecostais,

seguidos por pentecostais e históricos, respectivamente. A presença de membros de igrejas

históricas (batistas e metodistas) pode ser entendida em virtude de lideranças caminharem

em direção à renovação com ênfase no Espírito Santo como, por exemplo, o Encontro

Nacional de Louvor Profético (ENLP), surgido na Igreja Metodista e dirigido por pastor da

mesma denominação. Talvez a organização de atividades alocadas na periferia do meio

evangélico permita indicar a proximidade entre as propostas de “festa” e os

neopentecostais. Esses formulam e reformulam ações, estabelecem opiniões, oposições e

diálogos. Então, igrejas surgem decorrentes de rupturas, nem sempre por iniciativas

tomadas a partir de poder centralizado, mas, às vezes, reveladoras de carisma.

Causas para ir à “festa”, dançar e cantar

Os entrevistados disseram e demonstram ir às "festas" por causas diversas e suas

falas revelam as diversas maneiras de entender e atribuir sentidos aos empreendimentos. A

incessante música, em alto volume e com efeitos especiais, figura como o carro chefe de

algo orientado para atrair e reter os presentes.

242

Carlos, dançarino de break dance, convertido à Igreja Batista, solteiro, residente em

Belford Roxo, ex-freqüentador de “baile funk”, há 10 meses vai à “festa”; ele exemplifica a

importância de tais eventos e revela como a fé é vivida:

Porque o jovem cristão ele nunca tem lugar pra sair. Ele sempre fica sexta, sábado e domingo dentro de casa. Às vezes, não tem culto... Pô, você está acostumado a sair num baile e aí fica meio ocioso. Então, eu fiquei sabendo pelos meus amigos que comentaram e eu vim pra cá.

Sobre o lugar, afirma ser:

O melhor lugar para o jovem esta porque quando eu tava lá fora eu nem entrei, mas eu sei que aqui não rola; quando eu tava lá fora... sei que rola muita droga e o cara não tem muita personalidade ... vai muito pela água dos amigos. Inclusive eu mesmo fui um, mas graças a Deus conheci o break dance e saí dessas paradas.

Ynah, graduada em Turismo, 24 anos de idade, negra, solteira, trabalha em empresa

de telemarketing, residente em Irajá, é assídua freqüentadora de “festas”; acompanha o

empreendimento da equipe Gospel Night há sete anos. Então, a depoente diz ir à “festa” por

ser:

Um motivo mais do que maravilhoso pra encontrar todo mundo que eu amo e todo mundo que tem andado comigo durante todo esse tempo. O pessoal do gospel, do charme, a Nega, o Serginho e outras pessoas que a gente só se encontra – até porque a gente mora longe um do outro – então a gente não tem muita forma de se ver. Então, a gente já sabe que nestas festas a gente vai encontrar a maioria das pessoas, e é muito bom. E a gente sempre que se encontra fala, “caraca, quanto tempo! A gente quando começou não ia imaginava que ia dar nisso tudo, olha quanta gente”. Sempre que eu me encontro com Marcelo, do charme, uns meninos famosos, que está lindo, maravilhoso. Eu chamo nós porque foi uma gama de pessoas que se insurgiram contra o tradicionalismo. O próprio tradicionalismo das igrejas. Então, já foi tema de debate em rádio. Já foi tema dentro da própria igreja, nos grupos jovens... É certo ou não é: “ah, porque jovem evangélico não pode chegar em casa de madrugada”. E a gente sempre foi contra isso de certa forma; contra entre aspas. Porque passamos as madrugadas fora de casa, porque a gente gosta desse tipo de música. E assim é um ritmo fora do tradicional. É um ritmo que assusta. É um ritmo diferente da Cassiane e outros nomes evangélicos que as pessoas estão muito acostumadas. Por exemplo, dar num Kleber Lucas. Então, são músicas muito diferentes. Muito parecido com o que a gente ouve no mundo secular; as igrejas, muitas fecharam as portas, teve problemas porque o primeiro baile foi feito lá na Renascer,

243

em Jacarepaguá. Aí os meninos tiveram que sair de lá, aí tiveram que fazer em Caxias, mas depois também não deu. Aí eles começaram a procurar lugares que não fossem bater de frente com isso, que não fossem na igreja. Então eles buscaram os clubes e as casa de festas 220.

Lena, outra freqüentadora, solteira, ensino médio, negra, funcionária pública,

moradora no centro da cidade, 25 anos de idade, visualiza a “festa” do seguinte modo:

No sentido evangelístico, é trazer os jovens para Cristo e, quem já está em Cristo, tenta se alegrar e se divertir, dançar com Jesus. Márcia - Isso é colocado o tempo todo, é enfatizado. Lena - Para os jovens ? É que você pode se divertir, você pode ... Por quê? Porque o baile não evangélico, ele tem a intenção de quê? De as pessoas se encontrarem, fazer amizade, beber, fumar, prostituição... têm vários objetivos e o objetivo da festa gospel é esse: é você encontrar amigos, encontrar amigos de outra igreja, comunhão, lazer, adoração, evangelismo ... Tudo isso.

Yara, outra participante, oriunda de família evangélica, solteira, graduada em

pedagogia, professora, branca, integrante da Igreja Quadrangular, residente em Realengo,

25 anos, há quatro anos circula por “festa”; diz ter sido convidada por duas amigas. Ao ir

pela primeira vez esperava encontrar:

Bastante pessoas de outras igrejas, denominações e me divertir porque é uma festa, né? Pra dançar, me divertir e encontrar pessoas. Márcia: Por que achou estranho? Yara: Porque ... É meio que um tabu, né, no meio evangélico. Porque... Por causa das danças, das danças e tal. Um tabu por causa da dança por quê? Os evangélicos aqui no Brasil.. Pra você ver, tem evangélico na Argentina que bebe cerveja, lá é normal. As tradições aqui no Brasil ... A igreja que veio pra cá... As primeiras igrejas que vieram pra cá foram muito tradicionais: Assembléia e tal. Então, não tinha esse negócio de evangélico dançar e tal. Agora, como é uma festa que não tem drogas, não tem álcool, todo mundo que tá ali é gente como a gente. É evangélico. Então, faz a gente se sentir bem. Márcia: E a diversão? Como é se divertir na festa? Como era antes? Yara: A gente se diverte, como eu disse, com as pessoas da sua tribo, né. Como eu disse, ali tem menos ... Vamos dizer: os pais e as mães dos jovens que são evangélicos. Então, na igreja, a preocupação deles e deles

220 O leitor encontrará passagens no depoimento que podem ser explicados para alcançar uma leitura mais consistente. Quando a depoente fala no “pessoal do gospel” ela compreende ser o meio evangélico possuidor de diversas musicalidades e o “gospel” é algo peculiar. Ele tem referência cultural religiosa bem marcada: as igrejas negras norte-americanas (abordado anteriormente). Assim, ela distingue os cantores de “louvor” Cassiane e Kleber Lucas daquilo veiculado nas manifestações aqui tratadas.

244

começarem a ir para um baile e se viciar; como tem muito por aí. Ali não. Ali você vai se divertir com pessoas como você que não vai ter droga, não vai ter bebida, não vai ter prostituição, essas coisas.

Maria conta dois anos de participação em “festa”, é convertida, membro do Projeto

Vida Nova de Irajá; Ivo, há três anos marca sua presença nos locais onde os promotores

atuam, morador de Belford Roxo, também participa do Projeto Vida Nova de Irajá; Luís,

também há três anos vai aos eventos e é da Igreja Evangélica Pentecostal Cristã. Eles foram

ouvidos e observaram o seguinte:

Ivo: É muito importante, porque a gente pra poder curtir um ambiente desse evangélico é muito difícil, entendeu? Conheço várias pessoas que vem de vários lugares para curtir o Gospel Night. Márcia: Por que é difícil? Ivo: Não é uma coisa comum de ser realizada, principalmente pelo tamanho que é o Gospel Night. Márcia:Antes de vir para cá, o que fazia no tempo livre ? Ivo: Como não tinha o Gospel Night a gente tentava reunir os amigos e “poxa, vamos lanchar”. Simplesmente ir ao cinema. Nós evangélicos não temos muitas opções de sair à noite, de poder sair... como os não evangélicos que têm várias casas de shows ao mesmo tempo. Pô, isso aqui foi um benefício muito grande pra nós que Deus abriu pra gente, poder expor, dançar, curtir a noite na presença Dele, adorando Ele, em espírito e em verdade. Márcia: Mas se é para ouvir música e dançar não poderiam ir a qualquer outro lugar? Qualquer outro clube? Qualquer outro baile? Ivo: Depende... Luís: Olha só. Nós seguimos uma religião. Nós somos evangélicos e a gente, por ser jovens, a gente não gosta de um sábado à noite estar em casa assistindo Zorra Total e A Praça é Nossa221. A gente gosta de sair também, gosta de se divertir. E pra gente não se misturar, porque o mundo tem uma visão da gente, daquele povinho certinho. Aí, se por acaso, estiver numa festa do Olimpo222 agora vão dizer: “Poxa, aquele cara é crente’, entendeu? Aqui é um espaço evangélico, onde todo mundo é evangélico, a Palavra que a gente ouve aqui é a mesma coisa que a gente ouve na igreja que nós freqüentamos. A gente aqui ... O pessoal tem o mesmo pensamento, a mesma crença e se torna um ambiente legal porque ... é tudo de cara limpa, não tem aquela coisa... Não rola bebida. A gente não gosta. Eu, pelo menos, não sou contra, mas eu não gosto pra mim. Não é porque o pastor falou, mas porque a minha pessoa mesmo, Cristo tocou meu coração, não gosto disso. Então, se a gente começar a ir pra outro tipo de baile ou qualquer outro ambiente que não seja evangélico alguém que nos conhece vai ver e vai dizer: “ Pô, aquele cara

221 Programas humorísticos veiculados por canais de televisão no sábado à noite. 222 Casa de show localizada em Vila da Penha, Zona da Leopoldina da cidade do Rio de Janeiro.

245

é crente? Tá nesse lugar”? Aqui, entendeu, é um pedacinho da igreja, é uma continuação da igreja. Márcia: Como uma continuação da igreja? Luís: Porque, quando a gente vai na igreja, é um ambiente um pouco mais diferente. É um ambiente um pouco mais formal, vamos dizer assim, cadeira, banco... Aqui não. Aqui a gente tem um ambiente um pouco mais livre, entendeu? Márcia: Como assim? Maria: Tem mais liberdade pra se soltar, você pode conversar porque geralmente na igreja você tem que ter reverência, você não pode bater papo dentro da igreja. Não que você não possa se comunicar, mas, enquanto tiver um culto, você tem que prestar reverência. Aqui não. Já é pra isso. É um ambiente que você pode adorar a Deus, que você pode ouvir a Palavra, mas, ao mesmo tempo, se divertir com moderação, entendeu, dentro da presença de Deus, conhecer outras pessoas, entendeu? É um ambiente onde todo mundo se reúne com um objetivo só: ouvir a palavra de Deus, receber algo do Senhor, mas também se divertir e passar alegria um pro outro. Maria: Porque, antes de eu me converter, eu sempre fui... Eu era funkeira. O que acontecia? Eu ia pro baile com uma intenção de me divertir, de zoar, de fazer e acontecer. Hoje em dia a diferença que tem entre antes e depois da transformação, é a seguinte: eu venho com o objetivo de ouvir algo do Senhor, de me encontrar com os meus irmãos e me alegrar na presença de Deus sem precisar beber, sem precisar cheirar, sem precisar fumar, sem precisar fazer coisas que não convém aos olhos de Deus, entendeu? Então, qual é a diferença? A diferença é que antes eu dançava, como ele falou que acontecia; tudo o que eles falaram hoje é verdade. Eu dançava para me satisfazer, eu tinha planos, eu tinha sonhos e não tinha ninguém para adorar, não tinha ninguém para referenciar. Eu não ia pra poder te rever porque estava com saudade dele ou dele, pra brincar. A gente ia pra brigar, pra zoar, já era certa aquela coisa. Hoje em dia já é diferente. A gente vem, viemos pra cá pra nos divertir, pra adorar a Deus. Hoje em dia é diferente. Até o meu dançar, quando eu danço, eu sinto a presença de Deus. Deus falando comigo. Quando você dança, você também tá adorando Deus, como Davi. Davi dançou porque foi o modo dele expressar sua alegria. Só que a diferença é que Davi tirou a roupa e nós não podemos tirar, mas Davi dançou e Mirian também porque era o modo de adorar a Deus com o seu corpo. Porque o seu corpo é o templo do espírito santo, a Bíblia diz. Então, quando você levanta as suas mãos você está adorando, quando você dança você também ta adorando. A diferença é essa.

As entrevistas evidenciam a relação entre o entretenimento, a audição musical, a

dança, o encontro com os amigos – amizades provenientes de vizinhança, da igreja, do

ambiente virtual ou da “festa”, mas também indicam diferenças entre os freqüentadores e

caracterizadores do empreendimento. Esse adquire a dimensão de sagrado com o

pronunciamento do pregador, as “mensagens” por ele proferidas, as músicas tocadas

246

porque, ao lado de coisas, sons e palavras também passam a ter esse caráter (Durkheim,

1989: 369).

A especificidade da “festa” compreende a proximidade e o distanciamento com

aquilo próprio da ordem religiosa. Apesar da ênfase em demonstrar ser algo diferente,

quase insurreição contra a “tradição”, os entrevistados não consideram estabelecer

polarizações com o presente no meio religioso: a oposição com o considerado do “mundo”

é mantida. Nesse sentido, o “baile funk”, o uso de substâncias químicas e a liberalidade

sexual surgem como algo a ser afastado por ser próprio da esfera oposta, do “mundo”.

Isso compreende não somente a oposição entre deus e demônio, entre

comportamento eticamente dirigido e outro pontuado por excessos, para alguns,

dilapidadores da força e da razão humanas. Sem oposições absolutas, o arranjo apresentado

permite a percepção de estar inserido no grupo para diversão e para cultuar. O corpo e a

música são tomados como dimensões específicas do sagrado, sentido e vivido

diferentemente. Transparece outra noção de atividade religiosa e principalmente são

atribuídos poderes ao fazer juvenil, como explicitado por Carlos ao afirmar “mas graças a

Deus conheci o break dance e saí dessas paradas”; do mesmo modo, Maria ressalta “a

gente ia pra brigar, pra zoar, já era certa aquela coisa. Hoje em dia já é diferente. A gente

vem, viemos pra cá pra nos divertir, pra adorar a Deus”. Na fala de Maria transparece a

distinção entre a “festa” e o “baile funk” como o similar profano com a procura do prazer

alcançado com a integração e o reconhecimento de fonte de poder. Esse difere do prazer

individual e caracterizador do ambiente de desordem moral que, para ela, está associado ao

“baile funk”. A participação religiosa e o lidar com o sagrado ocorrem diante de

possibilidades inscritas pelos próprios crentes, que dosam os princípios institucionais e suas

experiências.

Foi explicitado ser nas edições da “festa” difícil ver alguém parado; todos dançavam

sozinhos, em dupla, em grupo, executavam coreografias mais simples ou mais elaboradas.

Além da dança, eles interagiam com o DJ, com o cantor, acompanhando as músicas, fosse

cantando, fosse dançando. E todos com os quais conversei destacaram os eventos como

algo importante por ser atividade social e, ao mesmo tempo, religiosa. O que é dito por

fiéis dançarinos e ouvintes que deslizam pela pista de dança? Muitas falas foram proferidas

e nelas razões ressaltadas para ir aos encontros. A partir daí, construiu-se um ranking das

247

causas mais citadas. Ele foi formulado ao contemplar o primeiro registro de cada

entrevistado, evitando-se repetições que contribuíssem para entendimento equivocado.

Ranking 1: Por que ir à “festa”?

Causas % casos

Diversão 26 6

Ouvir ‘mensagens’ 17,4 4

Encontrar amigos 13 3

Dançar 13 3

Ouvir músicas 8,8 2

Segurança 4,4 1

N R 17,4 4

Total 100 23

São vários os elementos apresentados e indicam a constante reelaboração do sentido

por não ser definido somente por promotores. Esses podem e apresentam diversas

construções, mas os freqüentadores visualizam algo além dos aspectos da evangelização,

do entretenimento e do político - conforme indicam os componentes da equipe Soul de

Cristo.

Anteriormente, foi visto como os apreciadores de “música gospel” percebem a

música. Ela conduz a estados individuais de “alegria”, de “emoção”, de alcance de

“espiritualidade” e também de introspecção do ouvinte. Parece não ser esse o caso dos

consumidores de black music gospel. Alguns vão com a finalidade de ouvir “mensagens”;

outros entendem ser a dança e a audição musical preferíveis; a diversão e o encontro com

os amigos são também elementos recorrentes. É defendida a ida à “festa” por ser lugar

seguro no qual não haverá brigas ou transações de substâncias consideradas nocivas –

álcool, cigarro e cocaína etc.

Pode-se observar o ato de “ouvir mensagens”, dita por componentes da equipe

organizadora, como registro significativo e confirma ser a “festa” tomada a partir da

248

concepção do grupo religioso. Portanto, é também concebida como canal com o sagrado.

Os registros viabilizam leituras distintas. Diversão é o ponto mais citado para 26%

dos freqüentadores. Há a confirmação e fortalecimento desse aspecto quando ocorre a soma

de 13% daqueles que vêem a “festa” propícia ao encontro com os amigos. Portanto, 39%

seriam suficientes para atribuir esse sentido como o definidor do empreendimento. Porém,

outra leitura é possível. Vejamos. Como a música é reconhecida como meio de transmissão

de “mensagens” e, por conseguinte, a dança passa a ser vista como meio de “adoração”,

pode-se relacionar a dança com 13% entre os depoentes, ouvir música com 8,8% e ouvir

“mensagens” tem 17,4%. O resultado é da ordem de 39,2%, que indicaria ser o religioso e o

sagrado também orientadores da adesão dos freqüentadores.

As informações permitem ver como a música e a "festa" são concebidas e fazem

delas extensão da atividade religiosa conforme suas experiências e expectativas. Como

atividades religiosas, também são marcadas pelo entretenimento, ampliando o leque de

participação, apesar das diferentes inserções religiosas. A "festa", ambiente privilegiado

para veicular música, para dançar, para encontrar amigos; também a proximidade física –

os contatos no salão, no bar, no banheiro, na rua - promoveria a sociabilidade223 entre

grupos juvenis evangélicos ou não. Além de qualquer objetivo ressaltado sobressai

interação na qual e com a qual possam se sentir iguais: dançarinos e ouvintes prontos ao

intercâmbio e ao diálogo, que, portanto, suplantam as barreiras espaciais e denominacionais

- vinculações que permitiriam estabelecer distinções no interior do campo religioso.

A compreensão das atividades e de tudo relacionado a elas pode contemplar o

grupo de freqüentadores; daí entender a dança, a “festa” e os efeitos sonoros que integram

os empreendimentos. Os freqüentadores demonstram ser a produção musical e a “festa” não

definitivamente acabadas, pois muito pode ser arregimentado para compor a “alegria”, a

“emoção”, para, como afirma Ivo, “curtir a noite na presença Dele”. Essa condição decorre

porque a todo instante, e pode ser encontrada em outros grupos religiosos, elementos e

situações são reinterpretados e constituem vias de fé (Amaral, 2000).

223 Simmel (1983) destaca a sociabilidade como uma interação não direcionada por “conteúdos”, e, portanto, afirma: “...visto que é abstraída da sociação através da arte ou do jogo, a sociabilidade demanda o mais puro, o mais transparente, o mais eventualmente atraente tipo de interação, a interação entre iguais. Devido a sua verdadeira natureza, deve criar seres humanos que renunciem tanto a seus conteúdos objetivos e assim modifiquem sua importância externa e interna, a ponto de se tornarem socialmente iguais ...”

249

Os depoentes indicam a existência de diálogo constante com as configurações

religiosas e culturais; a partir daí surgem derivações, recriações de ser religioso e de como

“lidar com o sagrado” (Sanchis, 1995:134; Brandão, 2004:7); as falas e as opções revelam

isso, indicam para o fluxo de valorizações capaz de redefinir o lugar do bem e do mal. Isso

seria próprio de época caracterizada não pelo fim, mas pela reformulação no trato com a

tradição, com o institucionalizado a partir da ação criativa dos fiéis (Sanchis, 1995; Velho,

1997; Brandão, 2004). A “festa” e a black music gospel não fomentam o levante, não há

complô contra a tradição, mas criativas composições com elementos de origens variadas

(Sanchis, 1995). Também por isso muitos vão à “festa” e vibram com as canções.

Os deslocamentos de ordem geográfica e simbólica (entre distintas áreas da cidade,

do culto à "festa", da razão ao êxtase), marcadores da passagem do profano ao sagrado, do

entretenimento ao político, do entretenimento ao religioso e ao sagrado, demarcam as

qualidades reforçadas, neutralizadas ou minimizadas. Isso pode ser evidente nos

empreendimentos dos promotores e também no agir do púbico. Os movimentos de saída de

casa ou do culto para o clube marcam alterações e pouco tem a ver com o que ocorre

quando se chega a casa ou ao local de trabalho. Nos deslocamentos realizados por

freqüentadores, algo ocorre e fica expresso quando os grupos são formados e acontece a

entrada no salão. Fica a pergunta: o que é buscado por todos? Nesse momento, o público

pode afirmar ser possível encontrar o sagrado, sentido para a existência, confirmação de fé

e estabelecimento de amizades. Trata-se de algo nada concreto e pode ser encontrado entre

aqueles com os quais se possui ou seja possível constituir laços de afeto e de fé por meio da

crença (Da Matta, 1979).

“Jovens” e procuras

Nas “festas”, o número de participantes pode variar, tendo-se centenas a cada noite.

Alguns são oriundos de famílias evangélicas, outros convertidos, outros estiveram afastados

e retornavam ao grupo de crença. Vê-se a diversidade dos freqüentadores e como as

atividades são por eles percebidas.

A questão passou a ser outra, porém nada distante do exposto até o momento. Ao

observar a diversidade própria ao grupo de freqüentadores, passei a indagar aos depoentes

250

sobre o uso do tempo livre. As respostas foram variadas; as mais recorrentes seriam a ida

aos bailes, aos shows de cunho evangelizador, a presença nas igrejas e visitas aos

domicílios de amigos. As respostas permitiram construir o ranking das atividades.

Ranking 2: Uso do tempo livre

O tempo livre pode estar comprometido com atividades diversas, e apesar do

registro de 13% em “baile funk” e 4,4% voltados à permanência nas ruas, termina por

serem recorrentes respostas vinculadas ao âmbito religioso. Nesse caso, 30,5% estariam

envolvidos com idas aos templos, presenças em shows evangélicos e participações em

conjuntos musicais vinculados ao meio religioso. Estudar teria escolha inferior ao registro

ida ao “baile funk” e equiparado ao item “ficar na rua”. Portanto, o entretenimento não

ficava ao acaso, mas vivenciado no disposto e presente em áreas populares: o “baile funk”.

Ainda assim, as opções no âmbito religioso eram vivenciadas como integrantes ou

propiciadoras de diversão, pois escapariam da formalidade do serviço cultual.

A pesquisa Perfil da Juventude Brasileira revela que 18% dos jovens entrevistados

utilizam o tempo livre para ir a bailes, outros 18% dirigem-se aos serviços religiosos e 10%

vão a shows musicais, predominando as atividades incentivadoras de contatos diretos entre

os jovens. Nesse sentido, Brenner et al (2004:175-214), ao analisar o uso do tempo livre e

as alternativas culturais voltadas aos grupos juvenis, observam ser o tempo livre entendido

além da perspectiva de entretenimento. Dá-se a construção de relações sociais que

Atividades % Casos Ir às igrejas 21,7 5 Baile funk 13 3 Ficar em casa 13 3 Shows evangélicos 4,4 1 Estudar e trabalhar 4,4 1 Tocar em conjunto musical 4,4 1 Ficava na rua 4,4 1 NR 34,7 8

Total 100 23

251

viabilizam, devido aos interesses, o atendimento de necessidades, a efetivação de vínculos,

seja de ordem espiritual, seja social.

Carlos, Yara, Maria, Luís e Ivo colocam outro dado sobre a pergunta apresentada.

Entendem ser a “festa” alternativa de diversão, lugar no qual o jovem evangélico pode ir e

encontrar os amigos. Esse ponto também é sustentado por promotores que colocam

implícita ou, caso queira, explicitamente a percepção sobre os jovens e sobre a juventude.

Ao afirmar: “as baladas e shows de música gospel foram a solução para trazer o jovem de

volta à religião”224, o pastor e DJ estabelece ser o “jovem” marcado por modo não

convencional de vivenciar o âmbito religioso. Também os responsáveis por efetivação da

“festa” da GN apontam ter por finalidade oferecer algo “descontraído e sincero para os

jovens” e, assim, “... as pessoas possam dançar e receber ministrações através das mesmas

(remixes), músicas internacionais e nacionais, fazendo uma programação jovem e

divertida225”. Não somente os componentes dessa equipe, mas o de outras acenam com

visão acerca da experiência religiosa juvenil. Ela é apresentada como marcante na vida por

ser eficaz força de interação (Novaes, 2004; Santos e Mandarino, 2005).

Nas afirmativas dos promotores, “juventude” e “jovem” não são condições definidas

somente a partir do aspecto biológico, mas são apresentadas a partir de situações

consideradas comuns como, por exemplo, características comportamentais e de gosto. São

definidores da atuação no mundo e capazes de determinar o produzido, o oferecido e como

será feito226. Trata-se de saber como um ciclo da vida é constituído e vivido (Abramo,

2005: 42-44), pois “jovem” e “juventude” são categorias sociais aplicadas para definir

coisas próprias de etapa da vida, diferente da infância e da vida adulta, concebidas como

naturalmente definidas. Desse modo, anulam-se as peculiaridades históricas e as condições

224 Semerene e Cunha – “O DJ é o meu pastor”, revista Capricho, 30/11/03 p. 38-41. 225 Ver: www.gospelnight.com.br, acessado em 15/02/05. 226 Pensar e falar sobre os “jovens” e as “juventudes” presentes no meio evangélico não são aspectos restritos aos organizadores de eventos musicais. Diversos entrevistados falaram sobre o tema e ele está presente entre líderes e leigos. Um exemplo pode ser dado pela reflexão de uma “professora de Escola Dominical”, da igreja Projeto Vida Nova de Irajá – responsável pela escola de samba que desfila no carnaval carioca. Muitos freqüentadores de “festa” são oriundos dela como também alguns envolvidos com o evento na posição de organizador. A “professora” entende a “juventude” como “estado” marcado pela “alegria, entusiasmo, beleza e sonhos” porque o jovem “é aquele que vive em novidade de vida”, podendo nunca envelhecer caso não seja perdido o “encanto pela vida”. Maiores detalhes ver: Cristina Fontana – “Juventude não é um período da vida”, disponível em http://www.projetovidanova.com.br, acessado em 07/08/05.

252

de classe que contribuiriam para evidenciar as diferenças e particularidades de alguém ou

de um grupo (Mauger, 1989).

Existem líderes que entendem a necessidade de a igreja acompanhar e participar das

peculiaridades de cada época da vida e, para tanto, precisam englobar o entretenimento em

sua ação. Com isso, os “jovens” devem ser visados, principalmente aqueles com

dificuldades para acessar as ofertas culturais e de diversão – teatro, cinema e shows, por

exemplo. A iniciativa das igrejas passa a ser vista como:

Muito interessante, muito interessante porque o jovem tá podendo ter o seu espaço, tá podendo se expressar, tá podendo botar a sua adrenalina pra fora, então, isso é muito interessante. Eu acho extremamente produtivo e proveitoso aquilo que eles estão fazendo.

Não somente se explicita a missão evangelizadora, entende-se que os grupos juvenis

e os “jovens” passem a compor o cenário religioso. Este, em contrapartida, deve contemplá-

los em diversos instantes e necessidades, sejam de ordem cultural e religiosa. Nesse

aspecto, “jovem” e “juventude” são dois termos construídos a partir de visão pautada na

ausência. Eles definem momento da vida marcado por necessidades que devem ser

correspondidas institucionalmente com a organização de atividades direcionadas também

ao divertimento. Tal posição é compartilhada por L´Ton e demais promotores de “festa”.

A pesquisa realizada sobre o “funk” dirigido aos evangélicos, e que resultou em

minha dissertação de mestrado, registrou que as atividades elaboradas ao redor da música

traziam concepção acerca dos jovens, principalmente aqueles vistos como o alvo dos

objetivos de cantores e dirigentes de grupos juvenis. Para esses, havia conjunto de

elementos orientadores das ações direcionadas aos jovens ou à juventude de baixa renda.

Entendiam ter inscrição no espaço público e na mídia com a prática de certas incursões

criminosas, envolvimentos em conflitos e/ou fragilidade diante do nomeado como o mal:

uso de drogas, criminalidade e abusos diversos. Isto poderia decorrer por residência em

áreas consideradas perigosas ou participação em atividades ligadas a traficantes de drogas.

Os jovens e as juventudes eram vistos como “perigosos” ou integrantes de atmosfera

nociva. Para isso, práticas musicais e lúdicas eram incentivadas restritivamente e

integravam atividades ou momentos nas igrejas – o “culto da juventude” ou os ensaios da

banda. (Pinheiro, 1997 e 1998).

253

Quando se fala em música e em “festa”, as noções de “juventude” e de “jovens” são

diferentes daquelas apresentadas por quem produz “funk”. O “perigo” divide lugar com

outras visões, principalmente procura favorecer práticas incentivadoras da dança. A alegria,

o despertar da consciência, o fortalecimento de alianças, o prazer e a identidade são

aspectos citados. Isso não quer dizer que a figura do perigo esteja ausente, mas ela pode

estar alocada em outra dimensão, como no “mundo” (não envolto por concepção de

sagrado) ou na idéia de alguém invadir a reunião e introduzir modalidades de ameaças.

Contudo, não é o perigo a característica dos “jovens” e da “juventude”, pois ela

pode ser dada pela alegria de viver, por procura de diversão, de interação e de participação.

Porém aí o perigo ressurge. Pois não somente o que vem de fora, mas a curiosidade, a busca

por diversão pode conduzir ao afastamento do grupo religioso, de seu modo de vida, ao

experimentar estilo de vida dissonante.

As formulações musicais, de atividades e fonográficas contemplam o “jovem” e a

“juventude”, e isso instala também outro ponto. Os empreendimentos provocam

mobilização e circulação com variadas relações, interesses, objetivos e gostos.

Diferentemente de associações marcadas por procura de prestígio, de reconhecimento, de

experiências transcendentais ou devido a laços de parentesco (Fernandes, 1998), as

atividades musicais em questão, do ponto de vista do freqüentador, podem revelar outros

elementos: conhecer, fazer amigos e diversão. Para os promotores e freqüentadores, isso

coloca outro modo de participação por combinar, com variada intensidade, o controle sobre

a conduta – com a presença de seguranças e o encaminhamento a grupo religioso – e certo

relaxamento no posicionamento diante de tudo considerado não religioso ou próprio dessa

esfera. Isso é operacionalizado em meio demarcado por constante estímulo dos sentidos

(audição e tato), da inscrição do corpo e do diálogo com outros estilos de vida e com a

clássica imagem do protestante controlado e desprendido de elementos irracionais.

Entre o entretenimento, o estilo e a crítica

Os integrantes do público falam sobre a “festa” e afirmam ter se conhecido ali,

passeando juntos, conversando no ambiente virtual na busca de fazer mais amigos. O tempo

254

livre, parte dele, é dedicado à participação com os amigos em “festas” e em outras

atividades decorrentes daí.

Encontrei diversos freqüentadores firmes em divulgar terem ido à “festa” “para

adorar” a Deus, encontrar e dançar com os amigos. Durante o trabalho de campo, era

comum visualizar a formação e a manutenção de grupos para conversas, danças e risos.

Portanto, os promotores podem enfatizar a questão religiosa, mas há os sentidos dados por

freqüentadores. De acordo com eles, com os quais pude conversar ou observar os diálogos

mantidos na rede virtual, a “festa” é o local no qual o tempo livre favorece o encontro com

o outro, a participação em corpo interativo possível com a música, com a dança, com o riso

e com a fala. Com isso, ocorre a construção de relações sociais e de vínculos diversos

(Brenner et al, 2004:175-214).

Sobre a “festa” e a black music gospel, alguns promotores enfatizam que elas são

eficazes para possibilitar o entretenimento, uma vivência religiosa e favorecer reflexões

pertinentes ao lugar do negro na sociedade brasileira e no meio evangélico. Sobre este

aspecto, algo pode ser dito. Em reunião da SC, vi um grupo de jovens com camisas

portadoras de frases de conteúdo crítico, porém componentes de certa moda urbana.

Camisas semelhantes são encontradas no “baile charme”, realizado na Cinelândia, e em

alguns eventos da GN. Os dizeres ostentados constituíam, aliados a outros sinais, cenário

franqueador de reflexão sobre os empreendimentos e os presentes, interessados também nas

músicas executadas. Ainda há o registro de outros freqüentadores com roupas e acessórios

com as cores da Jamaica e vários sinais indicadores de proximidade com outras iniciativas

nas quais a visão crítica possa ser corrente. Lembro-me de estar na "festa" da SC e

encontrar grupo formado por três rapazes e quatro garotas; os primeiros portavam camisetas

com tais dizeres; perguntei se poderia fotografar o grupo e obtive permissão e logo

estabeleceram organização surgindo a frase: "poder para o povo preto, fé" (anexos VI).

Eles entenderiam a black music gospel e a “festa” tal qual os promotores?

Indaguei se as músicas veiculariam outra mensagem além da evangelização. Os

depoentes ofereceram respostas distintas e indicam aspectos como a diversão e o “louvor”.

Laís, Sidney e Carolina, componentes de pequeno grupo, com idades entre 17 e 21 anos,

estudantes do ensino médio, são integrantes de igrejas como a Adventista, a Assembléia de

Deus e o Projeto Vida Nova de Irajá, respectivamente - há um ano circulam por “festas” -, e

255

afirmam que aplicavam o tempo livre em bailes e em shows evangélicos. Colocaram o

seguinte:

Laís: Uma outra informação que a gente aprende aqui é que nada é do diabo, entendeu? Por exemplo, a gente ouve pagode, hip hop, rap e não é do diabo não. Se mudar a letra, colocar um louvor, entendeu, nada é do diabo. Carolina: Eu acho também que é uma mensagem importante, justamente para quem não freqüenta. No meu caso, por exemplo, que não freqüenta a igreja e que vem aqui, é que você pode estar se divertindo e louvando ao mesmo tempo, né. Principalmente para quem está de fora, eu acho que a mensagem mais importante é que você vem e se diverte de forma segura, encontra gente com o mesmo propósito que você, sai bem daqui e você tava louvando, tava orando, tava sentindo e assim por diante. Márcia: Além disso, a “festa” e as músicas possibilitam uma reflexão sobre a cidade e seus problemas ... Sidney: A violência, tiros ... Márcia: É. Vocês percebem isso aqui? Laís: Não! Esse tipo de preocupação a gente tem a todo momento, mas, como nós vamos lá para louvar a Deus, nós não vamos louvar a Deus pensando em problemas, entendeu? Pensamos em soluções que Ele já deu pra gente, entendeu? Sobre a violência, eu andei até pensando ultimamente que as festas gospel não podem muito abrir mão da segurança porque agora essa história de pit boys, excluídos de festas, eles vão começar a procurar festa pra arrumar confusão, entendeu? Cristão não é de arrumar confusão, mas se chegar batendo? Como é que vai ser? A gente não vai poder devolver, como é que faz? Então, eu acho que tem que ter uma segurança reforçada aqui também, mesmo não tendo pit boys porque se eles procurarem lugar pra arrumar confusão. Sidney: Antigamente aqui começava às dez e acabava às quatro e pouca; agora já passou pra oito exatamente por causa disso. Carolina: Mas, de qualquer forma, ainda é a forma de diversão mais segura e pra quem tá em casa esperando você voltar é uma segurança.

O contato com o divino pontua as colocações dos depoentes; no entanto,

demonstram não abdicar da visão de as canções e a “festa” possibilitarem o entretenimento

e a interação. Essas não são coisas separadas do que entendem ser o exercício de cultuar.

Sobre as canções, Ynah diz:

É ótimo. Desde as músicas do tipo, desde as músicas do tipo black são ótimas. Vários ritmos de vários grupos... são músicas americanas, mas as letras são sempre voltadas para o gospel. Porque ... Também é muito importante pra quem vai escutar porque é música americana ela coloca qualquer música. Ah, todo mundo vai engolir essas músicas. Até porque no meio secular toca muitas músicas evangélicas que em inglês as

256

pessoas, na maioria das vezes, não entendem. E toca no meio secular e todo mundo gosta e quando vai tocar no baile todo mundo: “eu já ouvi essa música na rádio tal”. O baile estava tocando exatamente essa música. Não sabem que essa música é gospel, foi feita por uma pessoa evangélica. Não entende a letra.... a preocupação dos meninos sempre foi levar a música gospel em português ou em inglês. Desde que seja gospel. Tem assim depois de meia-noite, tem as variações. Aí toca samba, toca rock, essas coisas. Claramente eu e o pessoal, a gente esfria um pouco nessa hora. A gente vai lá pra fora, a gente conversa mais. Porque, enquanto a música esta tocando... a gente não consegue nem falar. Depois a gente acalma, vai comer alguma coisa, vai conversar. Depois dessa coletânea de música. Aí a gente já começa a ficar mais devagar.. Aí o Marcelo, ele volta novamente as músicas mais do soul. Aí a gente volta de novo pra poder estar mais dançando mais um pouquinho até acabar. Marcelo fala muito isso. Por ele, ele tocava soul a noite inteira. Mas tem o público que gosta do pagode. Gostam um pouco do rock, gostam um pouco do techno. Eu também gosto de um pouquinho de tecno. Duas horas na minha cabeça eu não agüento. Mas pelo menos uma horinha, uma meia hora... eu agüento. Márcia: Você entende que essas músicas fazem parte de black músic? Ynah: Eu chamo de black music todas as... o rock, por exemplo, ele veio do Jazz. Black music pra mim é o soul, o rap... todos fazem parte da black music que a própria palavra fala música negra. Que é esse tipo de som que surgiu nos Estados Unidos. Em muita igreja era proibido bater palmas. Então, muitas pessoas ficaram com aquela coisa de que crente não dança. E era um equívoco. Coisa do passado de muito tempo atrás. De uns anos pra cá as coisas tem evoluído muito mesmo e teve a concepção, ela pra ser bonita ela não precisa ser pornográfica, ela não precisa ser vulgar, não precisa agredir ninguém. Dançar é você expressar com o corpo o que você está ouvindo com os ouvidos, eu vejo dessa forma. Então, a maioria das igrejas tem ministérios de dança. Que é uma coisa mais recente. Mas ele tem se empenhado muito disso.

As características evocadas revelam o alcance de estado de excitação proveniente de

determinadas batidas, modulações e propiciadoras da distinção com o espaço secular.

Tiago, outro entrevistado, integrante da Igreja Batista Renovada, casado, morador da

Baixada Fluminense, 24 anos de idade, ensino médio completo, fala ser a “festa” eficaz ao

entretenimento e ao proselitismo. Afirma freqüentar porque:

Eu vou, foi aquilo que eu te falei, quando mais o tempo passa... O ser humano tem essas necessidades. A própria Bíblia diz que tem tempo pra tudo; tem tempo pra plantar, tem tempo pra colher, tem tempo pra dormir, tem tempo pra acordar, tem tempo pra se divertir também. Então, assim, eu vejo essas festas como um momento de diversão, pra mim é um momento de diversão, mas também, em nenhum momento, tiro da minha mente a necessidade ... tem pessoas ali que precisam ouvir do Evangelho e que essas e uma das maneiras que eles têm pra pregar esse Evangelho.

257

Gospel Night mesmo teve, um momento lá, o bispo trouxe uma palavra e várias pessoas ... muitos se converteram naquele momento a Cristo e outros se realinharam nessa visão de Cristo, de estar em comunhão com Deus. Isso é muito legal. Acho super importante, mas, no meu caso, eu vou pelo divertimento, para curtir a música que eu gosto, poder dançar, poder ver os meus amigos, tá no meio .... que é o meu meio mesmo, assim, é onde eu me sinto legal, é onde eu tô bem com os meus amigos. Da mesma forma que eu vou no domingo na minha igreja, em outros cultos, durante a semana, na minha igreja eu me sinto bem. É meio que isso. É uma extensão da minha igreja, é onde estão os meus irmãos, onde está a minha galera, onde está o meu povo mesmo, aqueles com quem eu me identifico. Já tive a oportunidade de estar em festa no meio secular e não me identificar mesmo. Estar ali, curtir a música porque a música é legal e tal, mas não me identificar com aquilo que estava sendo participado ali naquele momento.

O depoente costuma ir ao “baile” realizado no viaduto de Madureira para dançar, se

divertir e ouvir black music. Para Tiago, o “baile” era local privilegiado porque:

Eu sempre fui muito musical. Então, eu curtia muito música de igreja, mas só que na época a gente não tinha um leque de oportunidades de música black dentro da música cristã. Ou era música tradicional ou era música brega.

Mesmo que haja, entre alguns promotores, a concepção de as músicas e as

manifestações permitirem atuar com a finalidade de conscientizar os participantes acerca

das condições sociais vivenciadas, deparei-me com depoimentos que pontuam outros

sentidos. Em diálogo com o formulado por promotores e diante do estabelecido por líderes

religiosos, sobre o adequado exercício de fé, os freqüentadores apontam para a busca por

entretenimento e de interação. Esses não são percebidos em si mesmos, mas como

componentes de algo especificamente religioso; isto é, os depoentes ressaltam a música, a

dança, a diversão, o encontro com os amigos como momentos de exercício maior de

expressão de fé.

Por mais que os organizadores indiquem a proposta política com críticas ao meio

evangélico no tocante à visibilidade e oportunidade concedidas aos fiéis negros e, por sua

vez, outros destaquem a evangelização como próprios da “festa”, os freqüentadores

inscrevem o entretenimento, a interação, o culto, a excitação e, com isso, estabelecem ser a

258

execução e a recepção musical contíguas ao religioso, como Tiago expõe ao afirmar ser

“uma extensão da minha igreja”.

Então, “divertir” e “louvar” são momentos possíveis e demarcadores de experiência

que não contempla a separação entre essas esferas. Ao adicionar a manifestação de 30,5%

na relação entre o uso do tempo livre e de religiosidade, pode-se visualizar a convergência

entre diversão e culto diante do desmantelamento de posições valorativas pautadas em

polarizações destinadas a definir aquilo próprio ou não ao religioso e ao divino. Talvez o

encontrado no pentecostalismo, capacidade de apropriação, “inovações e transformações”

realizadas individual ou coletivamente, auxilie em outra relação com o sagrado (Brandão:

2004; Sanchis, 1995). Desse modo, as falas de Ynah e Tiago traduzem o espaço musical

como religioso e de identidade a partir da vivência no grupo de “irmãos” ali organizado ao

redor da musicalidade.

De acordo com suas inserções e experiências, os depoentes acenam para aspectos

diversos e indicam como a recepção pode ser distinta do visado por produtores. Os

sentidos, por vezes, são diferenciados e constituem o colocado em disponibilidade para o

consumo (Villas-Bôas, 1995:232,233).

O que falar sobre as canções e a “festa”? Elas atraem significativo público, não

somente, mas marcadamente afro-descendente. No entanto, podem ser concebidas de modo

específico. Os receptores dialogam com as propostas correntes e, antes de tudo, apresentam

permeabilidade. O conhecimento de outras atividades de produção e de divulgação de bens

culturais internacionalizados ou o conhecimento de determinada origem musical e de culto

podem contribuir para conceder outro sentido ao ouvido e visto. Isso ocorre pela não

passividade, haja vista as conexões realizadas com a experiência cotidiana (Jauss, 1993). A

despeito do enunciado por alguns promotores, os depoimentos descortinam suas

experiências, suas informações culturais fundamentais para seus entendimentos227.

227 Recorro à noção de “horizonte de expectativas” formulada por Jauss. O "horizonte de expectativas" delineia a recepção interpretativa que se concretiza quando o público recorre a experiências anteriores, explicitando que toda obra está inserida num processo constante de criação e transformação do "horizonte de expectativas" e circunscreve a relação da obra com as outras que perfazem determinado gênero, sua significação histórica, e as obras anteriores do autor. Desse modo, tem-se um "critério de apreciação" não determinado pela mera sucessão de fatos, mas o reconhecimento, a apreciação de algo que ocorre a partir da conexão e da comparação entre a obra em foco e as demais que contribui para constituir a experiência do leitor, do autor e de críticos contemporâneos, anteriores e posteriores.

259

A experiência permite interpretar o apresentado, pois a capacidade e a sensibilidade

não estão dissociadas da cultura de época, fazem parte dela. O homem cria e o faz ao operar

em meio no qual o “instrumento de sua arte” possui reconhecimento e significado ao estar

inserido em época própria, faz parte dela, como também a capacidade e a sensibilidade para

compreender (Geertz, 1998:150, 1765). Pois bem, experimentar não é algo exclusivamente

individual, é também social, por estar inserido em universo de significação compartilhado

por artistas e público. Nesses termos, as experiências dos freqüentadores de "festa", seu

conhecimento musical, sua participação na esfera religiosa, o conhecimento e/ou presença

em “baile funk” ou “baile charme” não são fatores favoráveis para a circulação de visões

distintas. São pertinentes aos cantos, aos empreendimentos e aos deslocamentos por parte

do público, já visto como não homogêneo.

Sobre os freqüentadores, ficarei por aqui, porém alguns pontos sublinhados serão

tomados. Foram deixados para agora porque surgem também nas falas daqueles e não

somente emitidas por promotores. Os entrevistados (os freqüentadores) falaram sobre o que

concederia certa atmosfera à “festa”: a pregação, a música e a segurança. Os três são vistos

por freqüentadores como os zeladores daquilo que coloca a black music gospel e a “festa”

como componentes do meio religioso. Assim, o pregador, o DJ e o colaborador na área de

segurança participam da composição da “festa” e também da música; eles e seus feitos são

igualmente reconhecidos. Os promotores são os mediadores daquilo vivenciado por todos

como religioso, porém o que caracteriza essas posições e faz delas algo fundamental ao

produzir e ao ouvir musical? Como são elaboradas e contribuem para demarcar o

encontro?

Animar e converter – momentos do pregador

Nos encontros caracterizados por execução e recepção de canções, há intervalo para

a realização de oração ou pregação. Um dos integrantes da equipe GN é o responsável em

proferir mensagens aos presentes. Trata-se de Francisco JC, também cantor, integrante da

Igreja Renascer. A partir de 2004, a GN tem contado com pastor da Igreja Renascer. Já a

SC registra a presença de diácono também da Igreja Renascer, negro, convertido, cerca de

25 anos de idade, proprietário de microempresa de reciclagem de cartucho de impressora,

260

que atualmente integra grupo de pagode voltado ao meio evangélico. Por fim, na equipe

GB o pronunciamento fica por conta de L´Ton, também integrante do REP, oriundo de

família evangélica, 25 anos de idade, morador de Vila da Penha. Eles mantêm certa ligação

com as organizações religiosas, haja vista exercer ou ter exercido alguma posição na

hierarquia.

Quem veicula mensagem exerce certa capacidade, já que deve paralisar a dança e

deter a atenção do público durante 10-15 minutos. Para todos, esse momento de

manifestação consolida o reconhecimento de identidade religiosa e não secular ao

empreendimento.

A investigação de atividades programadas e devotadas à execução musical

evidenciou o destaque dado ao pregador. Isto terminou por fomentar três perguntas. O que

é veiculado nesse momento? O que demarca a presença do pregador? Quais as

peculiaridades do DJ e do colaborador? Como os freqüentadores participam?

Apesar das vinculações formais dos promotores, seja como fiel, seja como leigo

(por atuar próximo ao dirigente religioso), suas iniciativas aparecem como independentes.

O mesmo pode ser dito acerca daqueles que dividem o palco com os DJs. O tempo

concedido à veiculação de mensagens constitui um dos pontos esperados e de efeito entre

os presentes.

Uma característica dos protestantes está no relevo dado ao "ritual da palavra". Esse

é constituído por sermões, tratados e textos das Escrituras e destinados ao uso cotidiano por

fiéis (Bercovitch, 1988). A fidelidade aos livros sagrados e o saber teológico são elementos

centrais do culto, sendo o último legitimador da posição do dirigente (Rivera, 2001:146).

Qual a importância do sermão?

A prédica consiste em transmitir saber contido nos livros sagrados com a finalidade

de educar os adeptos. A ênfase no discurso pode ser mais acentuada em grupos com

ausência de dispositivos sacramentais e mágicos. O sermão é momento específico,

realizado por sacerdotes, porém leigos podem formular e disseminar mensagens voltadas ao

ensinamento e divulgação de ética peculiar ao meio. Portanto, aquele encarregado da

mensagem pode estar vinculado à esfera tradicional ou a meio independente, laico, com o

qual os seguidores do saber oficial deverão lidar (Weber, 1998:373-376).

261

Conforme a realidade, o pregador não teria sua ação voltada somente à formulação

de prédicas restritas a temas religiosos. Sua atuação pode contemplar aspectos políticos,

sociais e condições materiais da comunidade e, assim, passar a organizar associações

destinadas a atender os membros em vários campos – recreação, falta de emprego e contra a

discriminação (Bastide, 1974:188,189). Pode-se destacar o estilo desenvolvido por

pastores, cuja pregação não pode ser vista independente de gestos corporais, de temas

abordados e do tom de voz. Prédicas sobre moralidade, sobre questões práticas e vida

adequada são pontos presentes e integram a autoridade do dirigente.

Em meio às manifestações dos presentes, os pregadores inscrevem variações de

culto mesmo quando a mensagem do oficiante é proferida após execução musical. O

serviço religioso registrado na Primeira Igreja Batista (Pib) do Rio de Janeiro, dedicado aos

jovens, teve início com a execução de canções, depoimentos de componentes da Mocidade,

por fim, do pastor e depois outras canções. Essa estrutura está presente em outros serviços

os quais tenho presenciado. Nas edições do encontro Explosão Gospel (EG) havia momento

destinado à oração, realizado pela organizadora do encontro, e depois as apresentações dos

concorrentes e de convidados. No tocante à “festa”, não há divergência, pois seu início

também é demarcado por execução musical e em seguida a manifestação de alguém com a

finalidade de falar aos presentes. Nesse caso, o oficiante não precisa ser legitimado

institucionalmente, mas pode sair do grupo de organizadores - como no caso da equipe GN;

ser convidado, como no evento da SC; ou o articulador da equipe também estar

encarregado, como ocorre nos eventos da GB. No caso da equipe GN, o executante da

“mensagem” também atua como animador de programa, dirige as brincadeiras, os jogos, o

cantar e, por fim, veicula mensagens consideradas de teor religioso.

Em outros momentos, essas características não estão concentradas em única

personagem; são encontrados componentes que figuram como apresentador e alguém fica

incumbido de enunciar prédicas e orações. No caso da equipe GB, o articulador pode ficar

encarregado pelo momento de demonstração de fé e pela execução de canções.

Concentrando as atividades ou não, ocorre, como no “funk”, a invenção e consolidação de

tipos relacionados com os trabalhos registrados (Souto, 1997:62), seja no tocante ao campo

profissional, seja no campo religioso.

262

Mesmo em domínio marcado por ações formais na figura de sacerdotes, com seus

estilos, temas e atuações entre os membros, pode-se ter a presença de leigos que cooperam

para a consolidação de atividades e também direcionam sermões aos participantes. Isso

pode ocorrer paralela ou complementarmente ao trabalho do dirigente. No segundo capítulo

foi vista parte da mensagem proferida por Francisco JC – encarregado também da prédica.

Atualmente, a “festa” da GN registra a presença de pastor da Igreja Renascer228. Sua

participação está mais centrada no pronunciamento de mensagens, podendo contar com

mixagens ou com recursos sonoros. Em noite marcada pela apresentação dos conjuntos de

black music gospel Templo Soul e REP, o pastor tomou o palco, passou a gesticular, andar,

balançar o corpo, subir ou minimizar o tom de voz. Desse modo, demarcou o que seria o

ponto alto da noite. Em certo momento do evento, disse o seguinte229:

Hoje é dia de você, então, declarar: eu preciso me entregar completamente pra esse amor que vem de Deus. Tem muita gente aqui que precisa desse encontro. Sabe por quê? Para encerrar o que tô falando. Tem muita gente que confunde e não sabe o significado da palavra conversão. Até religiosamente virou uma babaquice “você é convertido”? E o cara não sabe o que significa isso. Conversão é mudança de direção, é você está no âmbito da morte e, de repente, você entra num evento como esse e muda de direção e começa a rumar para a vida. Você ta na maior deprê porque alguém meteu um pé na sua bunda, tava no chororó ‘ ah, eu não sei o que vou fazer’. Aí você vem numa festa como essa, agita pra caramba e sai daqui cheio de energia porque encontrou ... Saiu de casa tava a maior discussão, a maior confusão, a maior baixaria, os seus pais não se entendem. É a maior loucura a sua casa, você entra aqui e a paz de Cristo está com você e você sai daqui cheio de reconciliação. É essa conversão que to dizendo pra você. Hoje você tem que sair daqui convertido e esse papo de você ta indo à igreja não significa nada, xará. Porque, às vezes, você freqüenta um grupinho X ou A; por que, às vezes, você ta no meio de uma galera, da igreja mesmo, mas você não tem uma experiência profunda de amor. Não existe conversão, mas um desrespeito com o declarante e como as cadeias estão quebradas ali. E você vai sair dali com uma experiência de conversão, não pra mim, nem comigo, não uma conversão religiosa, farísaica, não uma religião cheia de dogma, cheia de preceitos. Uma conversão de você mesma declarada a si: ‘eu não posso mais dar passos em direção ao caminho que tenho escolhido; eu não posso mais dar passos em direção a essa loucura que tenho experimentado, está na hora de um basta’. Então, xará, eu digo pra você,

228 Talvez a presença de um dirigente religioso possa ser atribuída ao relativo afastamento de Francisco JC para a divulgação de seu CD solo. Em 2004, entrei em contato com ele e soube do investimento destinado à divulgação de seu trabalho, apresentando-se em outras cidades e estados. 229 No site da equipe, pode-se ver a participação do pastor e parte da “festa” com a edição preparada por promotores. Ver: www.gospelnight.com.br, acessado em 07/09/05.

263

com toda autoridade que Deus tem colocado sobre a minha vida. Hoje à noite é a sua hora...

No evento da SC, o diácono da Igreja Renascer realiza a pregação e afirma:

Estamos aqui, nesse evento maravilhoso, mas o que eu tenho para lhe dizer, meu irmão, que você não está aqui à toa. Vocês estão aqui porque Deus tem uma ação em suas vidas. Vocês podem até estar pensando assim: Pôxa, lá vem aquele cara querendo nos convencer”. Não, irmão! Eu não vim aqui para oferecer uma religião. Porque a religião não leva ninguém a lugar nenhum. Muito pelo contrário, a religião faz o homem entrar dentro de um avião e voar em direção a um prédio gigantesco. A religião faz o homem colocar uma bomba no próprio corpo, se matar e matar várias outras pessoas com ele. A religião faz uma pessoa, em determinada época do ano, sair cortando seu próprio corpo para ficar livre dos pecados. Eu não vim aqui oferecer uma religião. Eu vim apresentar Jesus Cristo. Aquele que veio para te dar vida e vida em abundância. Ele vai transformar a sua vida independente da (...). Sabe aquele problema que não tem jeito? Ele tem a solução para você. Sabe aquela doença que o médico falou que já era? Ele tem a cura. Sabe aquele sonho que você deseja viver há muito tempo? Ninguém acredita que vai acontecer na sua vida, nem mesmo você acredita. Ele pode realizar . Pode ser que você tenha (inaudível) a Jesus porque você já aprontou tudo aquilo que você tinha que aprontar na sua vida. Mas, sabe o que Ele disse? De que adianta o homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma. Então, eu te pergunto amigo. O que adianta você ter casa, carro , dinheiro, do que adianta você desfrutar de todos os prazeres que o inimigo pode te oferecer se você não pode conquistar a maior vitória que o homem pode conquistar na sua vida que é a vida eterna em Jesus Cristo. Eu queria convidar a todos, por favor todo mundo, vamos fazer uma oração, prometo ser rápido, por favor. Vamos ouvir a palavra do Senhor. Ó, Meu Deus. Você está aqui, irmão, não foi à toa. Eu sei de experiência própria porque Deus transformou a minha vida. Eu era um cara que andava em perigo o tempo todo. Não tinha nenhuma perspectiva de vida. Então, Deus transformou toda essa situação. Deus me fez um homem feliz, alegre, um empresário que está, cada vez mais, protegido. Isso tudo tem acontecido em minha vida porque um dia eu decidi fazer uma guinada para Deus. E muitas pessoas estão pensando que nós fazemos esse evento aqui porque nós queremos encher nossos bolsos de dinheiro. Isso é uma grande mentira. Nós fazemos isso aqui porque nós nos preocupamos com a sua vida que é muito preciosa para Deus. É a sua vida que Ela ganha hoje, amém?! Por favor, coloque a mão no coração esse momento. Por favor, eu gostaria que todos, todos repetissem comigo. Senhor Jesus, por favor, todos. Senhor Jesus, muito obrigado porque nessa noite eu ouvi a Sua Palavra e, por isso, eu declaro, confesso com a minha boca, que o Senhor é o Salvador da minha vida. A partir de hoje, viverei a Sua vontade que é boa, perfeita e agradável para a minha vida. (...) Senhor eu quero te entregar essas vidas, em seu altar, ter essas vidas transformadas, sair daqui e viver um novo tempo e, como está escrito no livro da vida, encontrar a Ti, meu Pai, para viver aquilo que o

264

espera, muito mais aquilo que espera, e está reservado ao lado de Jesus. Que ele saia daqui marcado, meu pai, pelo seu poder para viver uma vida diferente. Em nome de Jesus, amém. Vamos lá, uma salva de palmas pra Jesus. Glória a Deus. (palmas e assobios).

As duas transcrições explicitam os elementos constitutivos das atuações dos

pregadores. Não se pode deixar de registrar a participação dos freqüentadores que

gritavam, assobiavam e aplaudiam, fosse a pedido do encarregado pela pregação, fosse

espontaneamente em certa parte da atividade230.

Dois pontos são proeminentes; o primeiro tem a ver com a capacidade de

mobilização231; o segundo tem relação com a estrutura dos discursos oferecidos. O

efetivado pelos pregadores é visto como o exercício de dons, capacidade fundamental no

momento da pregação. Este constitui o ponto nevrálgico, no qual o carisma é fundamental

para mobilizar os freqüentadores e, ao mesmo tempo, pode prescindir ou ter a participação

do disc jockey (DJ). Assim, o que é alcançado por Francisco JC entre os presentes tem a ver

com o que fala e a atuação daquele encarregado em produzir novas sonoridades e efeitos e,

assim, compor a base para ressaltar a fala do oficiante. Já no encontro da SC, a ausência da

ação do DJ é absoluta; fica o pregador com o objetivo de anular o clima de dispersão e

enlevo dado pela condição de entretenimento. Ele deve conduzir todos, em certo instante,

para atmosfera de compenetração e, em outro momento, busca fomentar estado emocional

com palmas e respostas aos discursos proferidos.

230 Rivera (2001:166, 170, 230) observa que na América Latina a característica do protestantismo foi também o sectarismo. Apesar da ênfase na razão presente nos momentos de instrução (próprios de escolas dominicais, de estudos bíblicos, de jornais e de revistas), o sermão marcaria o primeiro momento de ação. Ele estaria centrado na disseminação da noção de “experiência fundamentalmente emocional” como marcadora da conversão. Com isso, o sermão conduzia e marcaria o distanciamento da “explicação racional” sobre o sagrado e sobre a conversão. Esta era obtida em decorrência da capacidade e habilidade oral do oficiante. Apesar de a emoção estar presente, posteriormente havia o destaque a razão. Efetivamente o discurso era destinado ao intelecto para ocorrer um convencimento sobre a existência cotidiana, resultando em “crise emocional”. Isso tudo ocorria conforme a doutrina e a Bíblia, esta como fonte da instrução. Segundo o autor, o pentecostalismo inaugura outro momento com ênfase nas “experiências espirituais” sem existir preocupação com uma futura instrução, com a transmissão do texto escrito. O sermão deve promover o êxtase e é alcançado com as atividades de exorcismo ou de cura. 231 Campos (1997: 401-406), ao focalizar a Igreja Universal do Reino de Deus – IURD -, constata que o dirigente em atuação no púlpito pode ser visto como um ator no palco. Sem a exigência de uma formação escolar, mas baseado em um treinamento cotidiano, não voltado à ruptura com “as raízes sócio-culturais”, segue um script definido formalmente, podendo ser relacionado com o já vivido. Desse modo, pode-se conceder aos fiéis um espetáculo com fins práticos, ou seja, a assistência aguarda ser o pastor eficaz na condução de desafios a um Deus e também oferecer novos sentidos para a vida e apontar soluções para os problemas vividos.

265

As duas intervenções contribuem para compreender o proposto e o realizado por

promotores. Destinadas a atingir os presentes, no que comunicam não há referências a

qualquer fonte escrita; os discursos enfatizam a transformação do modo de vida, pois é

ressaltada a possibilidade de “mudança de direção” como, por exemplo, é dito “Deus

mudou a minha vida”. Nesse sentido, há o distanciamento de conhecimentos teológicos e

proximidade de interpretações individuais, pois é afirmado que “Ele tem a solução para

você”, como diz o diácono em atuação na “festa” da SC.

O foco está na experiência, na exemplaridade, sem citar os atos coletivos, sem

reflexões pertinentes a dimensão política. Isso transparece quando os depoentes falam que a

conversão não está atrelada ao “dogma” e ao “preceito”, ou quando é afirmado: “a religião

não leva ninguém a lugar nenhum”. Passa a ser sublinhado o vivido, ao ser registrado “eu

não posso mais dar passos em direção a essa loucura que tenho experimentado” ou “Deus

transformou a minha vida. Eu era um cara que andava em perigo o tempo todo”.

Os discursos são compostos por falas acerca de problemas individuais, com

destaque de efeitos sonoros – mais utilizados por membros da equipe Gospel Night -,

alterações constantes do tom de voz, gestos e empenho em movimentar os ouvintes de seus

lugares. Não há preocupação em estabelecer noção de comunidade. Os apelos visam

fomentar a manifestação individual. Tudo isso é destinado a exacerbar estado emocional

entre os presentes, conduzindo-os a atmosfera individual de contato com o sagrado, mesmo

que efêmero. Estaria explicitado o carisma do pregador por ser o regulador desse

momento, chegando ao ápice com muitos se “entregando” ou “aceitando a Palavra”.

Promotores e freqüentadores afirmam ocorrerem na “festa” numerosas adesões no

momento da prédica.

Este é considerado o momento eficaz para (re)conversões232, com o direcionamento

aos presentes de mensagens litúrgicas que confluam com as propostas de “festa”. A fala

marca e legitima os valores da ordem social; o pregador surge como o representante

religioso, o detentor dos meios e dos modos legítimos de manipulação local do sagrado

(Brandão, 1987).

Isso tudo é realizado e não ocorre a separação do caráter informal e mediador

comum à “festa”. Como etapa combinada, a pregação integra o encadeamento do som, da 232 Alguns presentes podem ser levados pelo apelo e querer integrar o corpo de adeptos de alguma igreja; outros afirmam ter presenciado o retorno de alguém ao grupo religioso.

266

música, da dança e dos equipamentos, componentes do fazer musical. Isso, por ora,

consolida a imbricação entre os aspectos da festa e do religioso. De um lado, a festa

evidencia o popular, pelas manifestações espontâneas; de outro, é marcada por atuações,

cujos executantes são possuidores de autoridade. Estes podem ser representantes do

sagrado, compõem os vários momentos da “festa” e contribuem para neutralizar as

diferenças entre eles como, por exemplo, formalidade/informalidade, seriedade/diversão,

oração/jogos (Alves, 1980:26,28).

Suprimir, colar, repetir e compor: fazer sonoro

Fui a diversos eventos musicais e pude verificar a visível heterogeneidade que

demarcava as propostas, as iniciativas e as concepções vigentes. No Encontro Nacional de

Louvor Profético – ENLP – o destaque era dado ao pastor e ao vocalista, e esses

mobilizavam a audiência. Quase sempre o cantor reunia a posição de pastor e de ser

reconhecido por sua capacidade de compor e de cantar. Os músicos figuravam de acordo

com os comandos emitidos pelo vocalista, pois cabia a ele o papel principal. Distante do

palco, em atuação na mesa de som, ficava o grupo de técnicos responsável pela estabilidade

do show-culto.

Nas edições do programa Explosão Gospel (EG) não havia preocupação com a

qualidade e a estabilidade sonora. Os candidatos se apresentavam com acompanhamento

sonoro, normalmente uma banda possuidora de equipamentos e/ou de músicos; caso

contrário, o recurso do playback 233 era acionado ou, por fim, um componente da banda

Explosão Gospel poderia acompanhar, utilizando o violão ou a guitarra.

Nos demais momentos, o destaque sempre era concedido ao vocalista que poderia

ser designado para transmitir “mensagem” aos presentes. Assim, a oralidade figura como

fonte de criação e transmissão de visão destinada a evocar nos presentes estado de

disposição. Diferentemente da “festa”, a prédica era marcada pela introspecção e, como a

“festa”, ocorria procura por intensificação dos laços de fé e o contato com o divino. A

diferença entre as iniciativas realizadas por empresas, por fiéis ou por igrejas é dada com a

233 Trata-se do uso de gravação prévia de trilha sonora para acompanhar a execução de alguma letra musical.

267

“festa”. Nela não somente o pastor tem visibilidade, pois o DJ também tem sua inscrição

no palco e atua para que os presentes alcancem certo estado emocional e/ou espiritual.

O DJ é figura com crescente visibilidade na cena de entretenimento contemporânea,

caracterizada por produção, execução e recepção musical. No final dos anos de 1960, na

Jamaica, a retenção de sons das músicas de reggae em detrimento das letras continuou com

a remontagem não linear, a combinação de sons e, assim, caracterizou outro modo de fazer

e de pensar a música (Vianna, 2003). Nos guetos de Nova York, na década de 1970,

passou-se a disseminar o modo de produzir sons com a operação marcada por repetição,

algumas vezes, de frase contida na música; também era buscado girar a agulha em sentido

oposto ao da rotação do disco e extrair sons variados. O operador do equipamento musical

passou a ser fundamental para os empreendimentos (Vianna, 1988; Arce, 1999; Dayrell,

2005).

A presença do DJ em eventos voltados ao entretenimento não é algo recente. Os

anos de 1970 marcaram a presença de bailes black, realizados na Zona Sul e depois na

Zona Norte, do funk e do hip-hop, conduzidos às áreas ocupadas por camadas populares na

cidade do Rio de Janeiro. Esses não foram fenômenos restritos e são registrados em outras

localidades (Arce, 1999; Dayrell, 2005).

O profissional não toca somente as canções e permanece oculto por equipamentos.

Ele passa a ser a principal atração234, a atrair significativo público, sendo que muito disso

se deve à capacidade de (re) criar sonoridades e canções (remix)235. Ele não é

especificamente músico ou engenheiro de som, não exercita atividade excludente por

operar toca-discos e específicos equipamentos, expressões de tecnologias musicais. Ele

pode desmembrar e reconstruir composições musicais e sonoras, quebrar a concepção linear

com colagens, repetições e distorções. A (re) construção de canção compreende colagens de

palavras, frases e inclusões de sons nem sempre existentes na versão original (sampler). 234 Os sites especializados, as sessões de jornais e revistas voltadas à divulgação de entretenimento desvelam o lugar que possui a figura do DJ com encontros que conta com sua presença ou foram organizados exatamente para sua atuação. Como exemplo, a excursão de Moby, cantor e DJ, por cidades brasileiras, tendo participações de DJs brasileiros. Ver: “Moby, um gênio da música eletrônica”; ver: www.estadao.com.br, acessado em 19/09/05. 235 Do mesmo modo, as atividades, realizadas por membros de grupos evangélicos, também apresentam esse desenho. Um DJ pode ser a atração da noite, esperado pelos presentes e obter reconhecimento. A equipe Gospel Night (GN) organiza um encontro cuja atração vêm a ser a apresentação de alguns DJs; a Gospel Beat ressalta a presença de DJs como, por exemplo, na divulgação da black gospel party, ocorrida em 2005, que apontava a participação de dois reconhecidos DJs, integrantes da produção musical no meio evangélico, como as atrações da noite.

268

Essas possibilidades são peculiares ao agir do DJ e colocam indagações sobre autoria

musical (Santos, 2004).

As (re) criações, as experimentações, as colagens e as combinações de sons

conduzem a estados alterados porque a música passa a ser condutora de estados de êxtases

e de relaxamento (Lasén, 2003), haja vista a sonoridade compor a exaltação do divino ou as

transformações ocorridas na vida do fiel, resultado de sua subordinação. Os sons, as letras e

as danças são componentes de “experiências religiosas transcendentais” (Barros, 2000:56,

57), porém, no caso da “festa”, a sonoridade pode e deve ser constantemente alterada a fim

de alcançar efeitos no ato de “louvar”; situação distinta ocorre nos cultos de candomblé,

pois, nesse caso, as canções obedecem a uma “seqüência musical” mantida constante, e

ordenadora das partes de um discurso religioso. No entanto, as alterações dos cânticos

podem ocorrer por causa da linguagem da comunidade, da “nação” do grupo religioso, ou

do “virtuosismo” do especialista musical – mas são raras.

O fazer caracterizado pela inscrição de algo voltado à transformação, como o do

bricoleur236, usuário de componentes disponíveis, muitas vezes díspares, torna-se

específico por estar fundamentado no uso de técnicas e de recursos tecnológicos com os

quais dialoga. Também guarda algo de magia, posto possuir conhecimento com o qual pode

alterar a realidade, contando que o grupo reconheça sua capacidade (Lévi-Strauss, 1997:

247; 1996:195). Capacidade incontestável de conduzir ao êxtase.

Em relação às tecnologias sonoras, o DJ pode ser editor voltado a mixar e a colar as

diversas partes constitutivas de composições. Ele pode surgir como “educador”, porque os

eventos executam as músicas eletrônicas resultantes de nova concepção, não somente de

música, mas de mundo. A velocidade de transmissão de informações e a incorporação de

elementos diversos são pontos integrantes de mundo cada vez mais complexo no qual a

música é marcada por beats (batidas) mais rápidos, distintos, que expressam a tecnologia

existente. Portanto, a música e as sonoridades em circulação contribuem para ampla

educação, pois os sentidos, o físico, a percepção e a técnica a constituem e caracterizam o

presente da crescente velocidade tecnológica (Vianna, 1997).

Ir à “festa” exige breve preparo, para adaptação ao clima - formado por intensas

luzes especiais, por canhões de fumaça e por sons eletrônicos em constante aplicação. A

236 Sobre a noção de bricoleur, ver: Lévi-Strauss (1997:32, 33).

269

escuridão do salão é cortada pela iluminação; os passos são conduzidos por intensas batidas

e distorções musicais. No palco ou entre os equipamentos, fica o DJ, em movimento

frenético; como os dançarinos, mexe os braços para alcançar os efeitos desejados, e o corpo

se movimenta com a mesma intensidade. A cada instante, os presentes gritam ou silenciam,

sem deixarem de executar a dança, expressão de certo estado de êxtase. A partir do exposto,

pode-se indagar sobre as composições dos DJs.

Em primeiro lugar, tem-se dito sobre a (re)criação como característica do

apresentado pelo DJ, independente de ter ou não inserção religiosa. Durante o trabalho de

campo, não foi possível coletar as canções, mas há edições em CDs e constituem acesso ao

produzido por componentes e convidados das equipes GN, GB e SC. Além do som

percussivo, as músicas podem ter vocais que, em geral, para o que esteja sendo dito, dão a

impressão, ao ouvinte, de registrar variações “sobre um único tema”: a ordem para que a

insistente batida domine a cena, o corpo e a mente dos presentes (Vianna, 1997).

Muitos dos freqüentadores entrevistados afirmaram ser a “festa” não somente lugar

de mera execução musical, mas seria momento marcado por contato estabelecido com

Deus. Os DJs apontavam perseguir isso e, portanto, ir além do alcance de estado de euforia

não transitório. Então, o que constitui suas (re) construções, colagens e repetições musicais

e sonoras?

No CD Gospel Night – a Festa (vol. II), da equipe GN, existem duas canções e aqui

podem ser demonstrativas. Uma foi realizada por DJ Marcelo, a outra por DJ Charles,

ambos da equipe. A primeira faixa é intitulada “Desejamos a Tua Presença”; a segunda é

“We found a cure”. A composição de Marcelo possui o fragmento da gravação em fita K7

de um culto, há muito esquecida237. “Desejamos a Tua Presença” tem 4:15s de execução,

possui duas linhas de sons, entremeadas por batidas variáveis, cortes e sons mais longos e

batidas mais rápidas. Seu início é constituído por batidas repetidas e graves; a seguir outra

linha sonora é instalada, e contabiliza batidas invariáveis e menos repetidas. Após 1:30s de

linhas sonoras é introduzido o vocal238, de voz feminina distorcida. A letra é a seguinte:

237 Informação presente na entrevista com o DJ Marcelo Araújo, em www.louvor.net, acessado em 11/08/04. 238 De acordo com Marcelo Araújo, apesar da gravação não possuir boa qualidade, a opção foi aplicar o vocal original, para preservar a intensidade da oração no momento de sua realização.

270

Nós estamos aqui reunidos debaixo do nome de Jesus. E nós não poderíamos estar reunidos debaixo de outro nome. E nós não poderíamos querer outra voz que não fosse a voz do Senhor. Por isso, nós vamos declarar: Senhor, desejamos a tua Presença.

O tempo é de 17s; durante 7s a frase “Desejamos a tua Presença” é repetida e

distorcida. Mais um tempo de som e introdução de vocal distorcido com a frase (isso ocorre

quatro vezes). A faixa tem cerca de 40s de vocal, e o tempo restante é constituído por linhas

sonoras, graves e agudos, e tantos efeitos.

A composição de Charles tem o título We found a cure, possui 3:46s de duração e

possui três partes integradas. A primeira apresenta três linhas de batidas e efeitos: a

primeira é formada por batidas agudas, rápidas e variadas; a segunda é instalada aos 28s de

execução juntamente com o vocal “Jesus Christ” (com duração de 5s); soma-se então a

terceira parte com os efeitos. Em seguida, a primeira parte é alternada com a segunda,

formada por batidas rápidas, graves e altas. Novamente a primeira parte, entrando o vocal

“We found a cure” (com duração de 22s) caracterizado por voz grave e distorcida. Duas

linhas de sons são executadas e o vocal “Jesus Christ” (tem a mesma duração).

A música da equipe GB, cuja letra foi transcrita no quarto capítulo, intitulada “Mãos

pra cima”, com 3:40s de duração, tem início com batidas mais sincopadas e entremeadas

com outras mais graves. A música apresenta duas bases sonoras, executadas em tempos

distintos, e apresenta efeitos sobrepostos. No início e no final, introduz batidas mais

intensas.

As composições conduzidas pelos DJs não são pautadas por única linha sonora

contínua que juntamente com o vocal resulta na música, cuja execução exige a expressão

verbal; muitas vezes, sublinha excessivamente a palavra com a finalidade de expor a

“intenção” da composição (Barthes, 1982:109-111). Isso não caracteriza a produção

musical aqui abordada, que é integrada com várias linhas, numerosas e dinâmicas.

Subvertem a ordem musical, nem sempre há fim e começo, mas possibilidades de fusões

(Vianna, 1997). Nesse caso, trata-se de outra concepção, pautada na inscrição de base

sonora sobre a qual sons são mesclados, construindo–se camadas sonoras sobrepostas

(Silva, 1998).

271

Quem transforma fala

Diante disso, as perguntas se tornaram inevitáveis. A primeira tem a ver com a

demarcação do fazer do DJ no meio evangélico. Já a segunda diz sobre a concepção dos

entrevistados sobre suas práticas.

O DJ tem lugar, ora como produtor de bailes, ora como produtor musical, ora como

(re) construtor de sons239. As festas, os bailes, os shows, as casas destinadas ao

entretenimento e a indústria fonográfica não prescindem do profissional. De um lado, sua

atividade assegura a atração de público disposto ao entretenimento; de outro lado, a técnica

e o conhecimento permitem-no atuar juntamente com músicos e cantores.

Muitos são apenas DJs, alguns cantores e todos estão envolvidos com a organização

de “festa” – propícia às suas atuações. Eles passaram por aprendizagem informal, atuam no

meio secular ou se aproximam de DJs não evangélicos. Marcelo, da equipe GN, antes de se

converter, apreciava o trabalho de alguns DJs, sentindo-se estimulado a seguir o mesmo

caminho240. Charles, criado na Igreja Presbiteriana, conta ter recebido educação musical na

igreja e na família, pois seu pai é cantor profissional e isso facilitou seu contato com a

música popular norte-americana. A mudança para a Igreja Renascer possibilitou o

desenvolvimento de trabalho musical, ocorrendo o encontro com Marcelo e Francisco JC.

Deu-se início a atividade de evangelização. O resultado posterior foi o surgimento da

equipe Gospel Night. Para Charles, essa iniciativa marcou seu início como DJ.

O percurso de TR, integrante da equipe Soul de Cristo (SC), foi diferente. Sua

família é da Igreja Batista e reside na Cidade de Deus, Zona Oeste. Diz ter recebido

influências musicais dos pais e das irmãs consumidoras de música popular nacional e norte-

americana. Na localidade integrou grupo de hip-hop constituído por alguns adolescentes,

cujo nome era “Geração Futuro”. A partir daí, passou a atuar como DJ e, com o objetivo de

conscientizar os jovens da região, interagiu com outros grupos. Com o tempo, estes foram

contatados pelo Centro de Articulação de Populações Marginalizadas – CEAP – e,

posteriormente, constituída a Associação Atitude Consciente – ATCON – voltada a

239 A descrição de Arce (1999) sobre o funk e a visão que fornece sobre a atuação do DJ Marlboro, visto como peça chave na articulação do estilo musical, fundamenta a afirmativa realizada. 240 Entrevista de Marcelo Araújo, disponível em www.louvor.net, acessado em 11/08/04.

272

fortalecer os grupos disseminadores da expressão musical, cuja característica era realizar

crítica social.

Nesse período, L´Ton, da equipe Gospel Beat (GB), aproximou-se da Atcon e

aprendeu a construir bases sonoras para as músicas do grupo REP – Radicalizando,

Evangelizando e Politizando. DJ W, também da GB, entrou para a Igreja Casa de Oração,

juntamente com sua mãe. Lá passou a operar o som e aprendeu a tocar bateria. Afirma ter

sido influenciado por um primo e, a partir daí, começou a apreciar a black music. Sua

entrada no REP se deu quando Nega apresentou-o a L´Ton; com isso, W e L´Ton

construíram bases sonoras para as composições do REP.

No meio evangélico, a figura do DJ surge como central no intercâmbio entre o

público e a esfera religiosa. Ela teve condições favoráveis em igrejas que tentam disseminar

suas ações entre grupos juvenis presentes na cidade. Para tanto, composições são veiculadas

em CDs, em estação de rádio, em eventos e disponibilizadas na Internet. Trata-se de

possibilidades de audição e de aquisição de outra modalidade musical.

Uma revista destinada ao público juvenil fez reportagem sobre os encontros

musicais destinados aos evangélicos. Um pastor e DJ delineia não somente o realizado, mas

a concepção acerca do apresentado. Assim, especializado em trance e em drum´n´bass, o

depoente diz que “dar som é oferecer um louvor a quem está dançando. Sempre faço uma

oração antes de cada composição”241. A matéria de outra revista, voltada ao meio

evangélico, veicula a fala de outro DJ, de São Paulo, que diz: “gosto de ver essa molecada

divertindo-se sem desviar-se dos caminhos do Senhor”242. Os depoimentos coletados não

demonstram posições divergentes com aqueles apontados anteriormente. DJ Marcelo, da

GN, afirma ser necessário ter o “´feeling´ do que a galera quer escutar e não o que ele quer

ouvir”; mais adiante coloca:

Quando comecei a tocar, gostava de ver as pessoas cansadas das lutas da vida em uma festa, depois de algum tempo, via as mesmas pessoas cantando e dançando. Aquilo era o meu combustível acima da grana ou de qualquer outra coisa. Por isso, não me importo em toca ‘qualquer’ coisa, mas, é claro, tudo tem limites 243.

241 Semerene e Cunha. “O DJ é o meu pastor”, revista Capricho, 30/11/2003, p.41. 242 Tavolaro. “Gospel na pista”, revista Enfoque Gospel, 04/2002, p.24. 243 Entrevista de Marcelo Araújo, disponível em www.louvor.net, acessado em 11/08/04.

273

W atua nos eventos promovidos pelas equipes GB, SC e GN, além de outros

organizados no meio secular. Para ele:

O DJ basicamente é o animador da festa. É o cara que vai trazer novidades pro público. Vai mostrar o que está acontecendo na parte musical gospel, no caso. Como vários estilos que não são divulgados no meio evangélico. Essa é a situação do DJ nos eventos. É mostrar a nova roupagem da música evangélica e também animar o público do evento.

Mais adiante, W expõe sobre a atuação entre o público:

Eu acho que no meio evangélico rola até mais do que no meio não evangélico. Porque há a vontade de falar da mensagem. Como aquele estilo é novidade, há muita necessidade do DJ falar com o povo e animar a galera. Acho que o DJ evangélico é até um pouco mais, como posso lhe dizer, mais sugado em seu trabalho do que o DJ de um baile não evangélico. Muitos bailes aí o cara vai só tocar e acabou. Ali não. A gente tem que ter aquele lance de entretenimento da pessoa senão o pessoal se dispersa um pouco. Tem que ter aquela conversa, aquela atenção com a galera senão não flui.

Ao entender a música como marcador de um entretenimento e de inserção religiosa, W

diz: Eu acho legal porque é legal tu ver quando um ex-drogado fala ‘pô... eu fui pra igreja por causa daquele evento’. ‘Eu sou um cara que tinha um certo estigma e não fui para a igreja por causa daquele estigma’. O mundo, às vezes, chega na porta da igreja pela dor. ‘Ai meu Deus me ajuda’. Mas é muito bom que a pessoa vai à igreja quando está bem, quando ele não precisa de dinheiro, quando não tem problema da saúde. E aí nós entramos. Mostramos que ele pode ir à igreja não só pela dor, mas pela alegria também. Porque, basicamente no mundo hoje, a pessoa vai na igreja pela dor mesmo. Nós estamos propondo outra coisa. Que ela vá por ser uma coisa prazerosa de ir. Não por ela ser forçada porque ela precisa de alguma coisa. Mas porque ela quer ir. Ela quer estar lá.

L´Ton ao falar sobre o público e o consumo registrado coloca:

No gospel ... o meu público são os ... o público evangélico, enfim. Mas eu percebi o seguinte: o público evangélico que consome rap, que consome CD, tem, posso dizer assim, tem vinte por cento, por exemplo, até consumiria Apocalipse 16. São aquelas coisas mais, pô, são negros que já têm uma cabeça, entendem as dificuldades, passaram por dificuldades, esses consomem. Agora o restante, os oitenta por cento, é o seguinte: ‘vim para cá para curtir! Já passei a semana toda na maior ralação, cara! A melhor coisa do mundo é vir para cá, para esse baile gospel curtir, estar feliz e dançar tranqüilo’. Pô, você tem que adaptar a música para esse pessoal, senão os DJs mesmos, os próprios DJs gospels, não vão tocar. Ele não vai tocar uma música que a pista murcha.

274

Na faixa multimídia do CD Gospel Night, os três componentes estão presentes e

falam sobre a equipe. Charles e Marcelo apontam os elementos necessários utilizados no

direcionamento do grupo. Assim, o primeiro enfatiza:

Gospel Night – a festa – é realizada no Rio de Janeiro, já tivemos a oportunidade de visitar outras cidades também levando, através da música, com muita iluminação, telão, com toda essa infra-estrutura, a preocupação de estar levando a Palavra, acima de qualquer coisa. A festa é uma celebração onde, através da dança, nós levamos, nós celebramos Nosso Senhor Jesus Cristo e vários jovens, através disso, têm se convertido (...)244.

O depoimento de Marcelo é constituído por imagens alternadas e tem início com

imagens das pick-ups245, de aparelhos de efeitos, de imagens de danças executadas. Tudo

isso no decorrer do depoimento e, assim, os equipamentos e o efeito de sua ação são

apresentados. Em seu momento, Marcelo explicita a iniciativa do grupo ao afirmar:

Esse é o nosso objetivo causando no jovem esse impacto. É um evangelismo de impacto. O jovem que não é evangélico sente a música: ‘pôxa, que música legal, gosto de ouvir esse som. Mas quando ele ouve a letra, ele recebe uma mensagem vinda diretamente do trono de Deus para a vida dele. Esse é o nosso objetivo. Então, a gente começa com essa idéia de tocar uma música dançante, com luzes, com caixa de som, com todo esse aparato ministerial para quando chegar a hora certa. E quando chegar a hora certa, quando chegar a hora de parar e a Palavra do Senhor é ministrada (...)246.

De um lado, há o destaque dado aos equipamentos como efetivos meios de

realização do encontro; porém, de outro lado, os instrumentos são definidos como “aparatos

ministeriais”, pois são eficazes na disseminação de estado de recepção. Nesse sentido, a

partir do exposto até o momento, o DJ, como produtor de sons, surge não somente como o

operador de equipamentos e discos. Na fala de L´Ton, o entretenimento aparece também

nas elaborações dos DJs evangélicos, não sendo momento profano, mas parte do todo

concebido sagrado. 244 Depoimento contido no CD Gospel Night – A Festa, vol I, BV Music 029. 245 Aparelho específico para tocar discos de vinil (conhecidos por long plays ou LP). 246 Depoimento contido no CD Gospel Night – A Festa, vol I, BV Music 029.

275

Os depoimentos apontam elementos específicos e marcam a distinção com a noção

de protestante apresentada por Weber (1998). Ele enfatiza o comportamento ascético e a

distância de atividades condutoras do êxtase ou disseminadoras de modo de ser distinto da

sobriedade e do autocontrole. Os discursos oferecidos revelam a organização do

pensamento dos DJs. Nas falas de Marcelo, W e L´Ton surgem os pares constrastivos com

os quais suas concepções são sustentadas como, por exemplo, “lutas da vida”/“festa”,

“cansaço”/“cantar”, “dançar”/“falar”, “tocar”/“falar”, “dor”/“alegria” definem as propostas

e as ações. As oposições colocam questões terrenas com as quais tecem negociações e

tentam auferir posições no campo religioso.

As falas enfatizam a alegria, o relaxamento, a diversão como os condutores eficazes

de “mensagem” e componentes de estado diferenciados. Os equipamentos são utilizados

contra a “ordem da produtividade industrial” e, por que não dizer, também protestante

ascética. É feita a promoção de êxtase coletivo no qual o DJ é a figura central, pois voltado

à “educação dos sentidos, educação física, educação filosófica” em tempo de velocidade

inimaginável do som, da informação, da interação entre homens e máquinas (Vianna,

1997).

Nessa temporalidade, estaria também o DJ no meio evangélico pronto a preparar os

presentes para a religiosidade, para certo modo de expressão de fé não negadora de

sentidos, do êxtase, do transe alcançado com a velocidade das batidas eletronicamente

produzidas. Muito mais do que operadores de instrumentos sonoros, os DJs são os

sacerdotes e os manipuladores específicos de “aparatos ministeriais” capazes, como os

violeiros, de conduzir os homens à dança e marcar o sagrado também quando se toca e

dança para Deus e para os santos (Brandão, 1981:65,66,153). O estado de exaltação

produzido entre os freqüentadores de “festa” é caracterizado por dança, alegria e fruição;

não há a separação do sagrado e do profano, não distingue os presentes, como também não

opõe diversão e sagrado. Dançar por diversão não circunscreve o profano; diversão é parte

do sagrado.

O êxtase proporcionado é registrado no “baile funk”, marcado por interação entre os

presentes - os DJs, os MCs e o público – conformado por negociações de “códigos de

violência”. O DJ surge como o detentor da capacidade de potencializar a tensão e conduzir

às brigas (Cecchetto, 1997:100,101). Ao contrário disso, os depoentes apontam para a

276

capacidade de o DJ aliar relaxamento, proselitismo e contato com o divino. Charles e

Marcelo trazem a relação complementar entre preocupação e celebração, palavra e dança,

música e “mensagem”. Com isso, ocorre a integração e a excitação visíveis quando L´Ton

afirma que a pista de dança não pode "murchar", ou seja, não deve ocorrer desinteresse e

dispersão dos presentes. Portanto, ao DJ cabe proporcionar o encontro com a música; daí a

excitação e a felicidade (Lasén, 2004).

“Segurança”: o outro lado da força

A realização de reuniões orientadas à execução e à recepção musicais exige a

articulação de outro grupo e revela a divisão de tarefas para sua efetivação e condução. No

caso da “festa”, os promotores ocupam o palco, cantam, tocam e discursam para o público.

Por sua vez, o encontro registra a presença de manipuladores de equipamentos fotográficos

e de filmagens; há também o grupo destinado ao controle e responsável por resguardar a

manifestação de excessos cometidos pelo público. Além desses, registra-se vendedores de

CDs e acessórios com a marca de um dos grupos – a GN tem produtos como CDs,

camisetas, chaveiros e etc -, de bebidas e comestíveis e divulgadores de cursos de

informática. Esses colaboradores evidenciam as múltiplas relações mantidas e contribuem

para os envolvidos afirmarem ser a “festa” eficaz para a audição de canções, porém distinto

e semelhante com o existente no meio secular.

Um ponto constante nas falas dos freqüentadores é pertinente ao controle ou à

“segurança”. Essa é constituída por grupo cujos componentes, em sua maioria, são do sexo

masculino e utilizam coletes com a palavra “Apoio” ou camisetas com o nome da equipe

organizadora. Eles têm por atividade circular pelo local, enquanto muitos dançam; também

devem guardar a bilheteria247 e controlar o fluxo de entrada do público. Em alguns

eventos, o grupo chega a revistar os freqüentadores e utilizar detector de metais.

247 A composição da equipe que cuida da bilheteria depende da rede relacional do grupo. Em visita à rádio, na qual a equipe GN estava realizando o seu programa semanal, encontrei uma das mulheres que vira outras vezes na bilheteria da "festa", cujo valor do ingresso é de R$ 5,00. Na atividade da SC, estava Sérgio no caixa do bar. Esse aspecto do evento é pouco visível e dificilmente é percebido, inclusive porque a bilheteria fica atrás de uma parede que possui pequenos retângulos por onde o dinheiro e o ticket passam. Já os caixas ficam, como nos bares, distantes da pista de dança e ninguém costuma fica perto deles, mas do balcão. Não poderia dizer que isso ocorre pela dissociação entre dinheiro e religiosidade, mas a questão financeira é um tema que até aqui se mostrou intocável – é uma parte da "festa" que não se vê e não se fala e, curiosamente, aqueles que

277

Segundo os promotores, esses colaboradores são originários do próprio meio

religioso e são encarregados em exercer o controle. Trata-se de serviço de segurança, não

exclusivo ao tipo de evento observado, pois presente em atividades públicas e privadas

religiosas ou profanas. Ele pode ser oriundo de ação voltada a racionalizar a atividade com

predomínio do controle moral e corporal, perfaz o lado harmonizador e educativo da

proposta salvadora.

Nos empreendimentos seculares, também é aplicado naqueles voltados aos grupos

juvenis, como o “baile funk”, atividade na qual sua presença circunscreve certo tipo

profissional em mercado (Carrano, 2002; Souto, 1997) de bailes e similares. Essas

iniciativas também compreendem outras inscrições profissionais como iluminador, técnico

de som e dançarinos (Souto, 1997). Porém, o serviço de controle é parte constante da

organização de bailes e de diversos outros empreendimentos. Pode ser que em alguns,

caracterizados por confronto entre grupos opostos, o serviço de segurança não coíba a

bélica manifestação; então, quando ela ocorre, não por falha, talvez confirme algo

celebrado e próprio da concepção local (Cecchetto, 2004:115-126).

Os depoimentos coletados nas “festas” mostram, para os envolvidos, que a presença

de cantores, de DJs e a realização de pregação é vista como constitutivo do grupo religioso;

como diria Geertz (1989:147), seus valores, sua moral e a compreensão que afirmam acerca

das coisas. Nesses termos, a presença de colaboradores com a finalidade de agir como força

de controle foi, para mim, significativa. Fui tomada por dúvidas sobre sua presença,

principalmente diante da afirmativa de a “festa” ser segura, de ninguém se sentir

incomodado devido o comportamento excessivo, de não haver o consumo de drogas lícitas

e/ou ilícitas.

Alguns freqüentadores enumeravam a especificidade da música, da “mensagem”

veiculada e sublinhavam a sensação de “segurança”: “você vem e se diverte de forma

segura” ou “festas gospel não podem muito abrir mão da segurança”. Outra entrevistada

afirmou que “... ali você vai se divertir com pessoas como você que não vai ter droga, não

vai ter bebida, não vai ter prostituição, essas coisas”.

Controle, resguardo do ambiente e do corpo perfazem os enunciados. Repousa no

corpo aquilo próprio da atmosfera de “segurança”, distinto do abuso, do desrespeito, pois lidam com o dinheiro, seja na GN ou na SC, se tornam invisíveis durante a "festa"; enfim, todos da equipe são vistos, menos eles.

278

regulado e com a intimidade vigiada (Douglas, 1998:26, 27). Neste sentido, para os

entrevistados, a atuação do grupo de segurança é pontual e tem relação com a manutenção

de um estado considerado chave na condução do proposto e realizado.

Após ter ido à “festa”, perguntei-me quem seriam aquelas pessoas e o que faziam.

Lembro-me de dois episódios. Certa vez, em uma “festa” da equipe SC, os colaboradores

utilizavam camisetas de malha na cor preta com a inscrição Soul de Cristo. Depois de

algum tempo, fiz o movimento de ir embora. Muitos entravam no salão e foi preciso tomar

o caminho no contra-fluxo. Eu e Geraldo atravessamos com demora os poucos metros até o

exterior do prédio. Entre o salão e a rua, ouvi de um dos colaboradores: “a irmã já vai

embora”?

Outra vez, fui a um bairro pouco conhecido por mim e não sabia a direção a ser

tomada para chegar à Avenida Brasil248. Indagamos a um dos responsáveis pelo controle da

entrada, como chegaríamos à estrada. A informação foi obtida e, ao fim, uma saudação, não

me lembro literalmente dela, mas sei que remetia a vínculo de fé. Os dois momentos e as

falas dos freqüentadores aguçaram a curiosidade em saber o motivo de suas presenças.

No site da equipe Gospel Night imagens das atividades são veiculadas em formato

de fotografia e filmagens, com duração de alguns minutos. Nesse material é possível ver o

momento de preparação daqueles responsáveis por atividades realizadas durante a “festa”,

principalmente os encarregados pelo “Apoio”. Antes da entrada dos freqüentadores,

aparecem em formação circular, de mãos dadas e, apesar da canção que serve de fundo à

cena, parecem realizar orações.

Segundo alguns promotores, os colaboradores fazem parte de suas redes relacionais

e possuem vínculos com igrejas evangélicas. No encontro da SC, os homens encarregados

da portaria e do controle no interior do salão vestiam camisetas com nome da equipe: Soul

de Cristo. No decorrer da noite, houve a apresentação do diácono da Igreja Renascer que

participara do controle do público no salão. Dada a especificidade do empreendimento, os

promotores afirmam que não poderiam contratar qualquer pessoa para impedir as brigas e o

comportamento não adequado ao evento: momento de diversão e religioso. Portanto, os

248 Por via terrestre a av. Brasil é uma importante via de acesso e saída da cidade do Rio de Janeiro. Por ela, chega-se à rodovia Presidente Dutra, destinada a ligar os estados do Rio de Janeiro e o de São Paulo. O plano urbanístico, surgido no governo do prefeito Henrique Dodsworth (1937), compreendia a construção da av. Presidente Vargas, a esplanada do Castelo e a av. Brasil. Maiores informações: www.bperj.rj.gov.br, acessado em 23/09/05.

279

integrantes que fazem parte da “segurança” são membros ativos de denominações

religiosas, principalmente aquelas de filiação dos organizadores. Isso fica evidente no

seguinte depoimento de Charles:

A gente tem algumas pessoas que fazem a segurança... que não são seguranças. Márcia: Uma empresa? Charles: São pessoas do próprio meio. Irmão de um, primo de outro, justamente pra cuidar. Pessoas que são do gospel. A gente não coloca seguranças... Márcia: São evangélicos? Charles: É. Porque tem que saber abordar. É diferente de você colocar um segurança e o cara chegar ali e dar um tapa num garoto.

Como o controle do evento é exercido por aqueles oriundos do meio religioso,

Charles expõe as orientações passadas aos encarregados da tarefa e evidencia:

A gente coloca: concentração de jovens, aglomeração de pessoas, sempre tem que ter esse cuidado. Pra não ter tumulto... esse empurra na hora da fila. Graças a Deus, até hoje a gente ainda não teve nenhuma confusão... Ou então, o cara chega lá dentro, não sabe que é um evento cristão, quer namorar, quer fumar, quer beber ... Então, a gente chega e conversa numa boa. Por isso, que a gente chama a pessoa que é do gospel, que é pra saber abordar. Porque se a gente coloca um ex-policial ou cara que não é do meio, o cara vai chegar abordando, vai dar um basta ou vai fazer alguma coisa, que é normal de você ver: o cara pega pelo braço, suspende o cara e bota pra fora. A gente não faz isso.

A importância também de ter adeptos de igrejas evangélicas é por acreditarem na

preparação espiritual, no autocontrole que assegura modo distinto de lidar com o público. A

distinção na relação com o público é esperada, pois, se houver caso de conversão entre os

freqüentadores, será preciso realizar abordagem capaz de amparar e conduzir o novato ou

aquele que estiver em momento de dúvida no tocante à fé. Sobre isso, o mesmo

entrevistado expõe que "... a gente sempre tem a nossa galera que sempre anda identificado

nas nossas festas com blusa ou um crachá. Justamente pra pessoa abordar e saber que é

gente de nossa equipe".

Charles focaliza o uso da força como qualidade do trabalho realizado por alguns

com a finalidade de preservar a integridade do empreendimento e de seus freqüentadores.

Diante de ação destoante, o diálogo é preferencial ao invés de aplicação de abrupta

abordagem feita por alguém despreparado para lidar com específico público. Ao enfatizar o

280

trabalho de condução inteligente da proposta de execução musical, a atividade de

“segurança” não está voltada somente a impedir os conflitos fortuitos; ela visa dar suporte

aos promotores em conduzir um ato, marcado pela dança, pela presença juvenil e muita

música. Isso revelaria o momento de fiscalização exercido pelo grupo sobre os corpos dos

freqüentadores.

A presença do consumo musical e da dança contribui para a liberalização do corpo,

para a mudança de comportamento entre os evangélicos (Almeida e Rumstain, 2003).

Todavia, há a preocupação com a disciplina, com o controle, pois interessa aos promotores

o reconhecimento do que realizam como atividade religiosa.

Nega, freqüentadora e também promotora de "festas" da GB esclarece sobre a rede

relacional e o serviço de “segurança”. Diz:

Isso é o principal, mas também pra ter um local para a juventude cristã estar junto sem precisar de estar no mundo. Às vezes não tem nada a ver estar lá. Mas aí quando sai uma briga aí você está ali. Não vou falar que nas festas gospel, não tem, mas a gente tem uma cobertura, a gente olha. A gente pede ao Senhor que guarde as pessoas que chegam àquela festa. As pessoas que vão chegar, as pessoas que vão sair.

Mais adiante, afirma:

Eu ficava muito em arrumar um convidado... um convidado você arruma... você enfeita.... às vezes fica atrás fazendo um evangelismo, orando. Tem uma parte das pessoas que ficam orando né, na hora do apelo ou até na hora do baile. Você ser um segurança feminino, você fica nessa área.

Os colaboradores devem controlar o ambiente e os comportamentos, mas isso não

ocorre somente no aspecto da força física. A atuação está subordinada ao exercício da

força da oração, em pedir proteção a todos. Mais do que vigilância ostensiva dos

comportamentos, os colaboradores devem ter o preparo espiritual para orar e, assim,

resguardar a reunião e os freqüentadores. A força exercida não é a mesma acionada em

iniciativas seculares com a finalidade de coibir excessos, de frear a disposição de alguém,

de controlar a celebração da violência com violência (Cecchetto, 1997). A eficácia de sua

ação está na força da oração e na proteção divina capazes de assegurar a “cobertura” e a

“guarda”.

281

Assim, ao invés de demarcar a “festa” e a recepção com dualismo entre sagrado e

profano, os depoentes confirmam os momentos formadores do sagrado, tudo balizado pela

força emanada por aqueles em trânsito silencioso entre os alegres brincantes. A atuação é

complementar no que toca à realização e em assegurar o sagrado; o público interage com os

promotores e com o grupo da “segurança” a partir da oração, da intercessão e desenha a

reunião. Nesta pode existir configuração na qual os colaboradores da “segurança”, que

contribuem para dinamizar o ato, primar pelo controle emocional.

Ao ouvir as falas dos entrevistados, é possível visualizar o que atrai os

freqüentadores. Além da audição musical, outros fatores são destacados para que o

momento seja extensão da atividade religiosa. No tocante a isso, as experiências e as

expectativas viabilizam o estabelecimento de outras formas de participação – esses pontos

também fazem parte da agenda dos promotores. As "festas" formam tipo de participação

religiosa e inscrevem possibilidades de sociabilidade entre os jovens evangélicos, os não

evangélicos e aqueles em processo de conversão. Os eventos não estabelecem radical modo

de vida e visão de mundo, pois é possível se sentir evangélico e não oposto ao que

transcorre no "mundo". E tudo isso é visto como válido por disseminar a crença e modo de

vida. Desse modo, as distintas inserções religiosas contribuem para formar algo não

homogêneo, mas eficaz no fortalecimento de suas inserções.

A investigação permitiu compreender certa prática musical, certas atividades,

arranjos, sentidos e lugares atribuídos à música, às juventudes, ao divertimento, à dança e

outros elementos. Ao mesmo tempo, eles evidenciam a constante mudança do meio

religioso e é possível observar as viabilidades comportamentais de promotores e

freqüentadores. Assim, pode-se perguntar se há mudanças.

Ter ido aos encontros, conversado com os integrantes do público, com os

promotores, evidenciou ser o meio evangélico visto como integração absoluta (Brandão,

2004). Deparei-me com redes relacionais e biografias que o extrapolam, enredam relações,

idéias, ações e introduzem vários elementos no campo de diálogo e, desse modo, compõem-

se dualismos como, por exemplo, negros/não negros, “festa”/serviço evangelizador, black

music gospel/“música gospel” e carne/espírito. Destaco também que, apesar das relações e

das biografias, os eventos pesquisados fornecem meios para os fiéis se sentirem integrados,

participando dos grupos institucionalizados e de outros que exploram o tempo livre.

282

Outro ponto foi composto pela identificação dos tipos-chave existentes no universo

pesquisado. As mensagens, o som e a segurança são pontos sublinhados, apresentando o

pregador, o DJ e os colaboradores na área de segurança. Falar e ouvir são momentos

singulares de produção e recepção musical. Quem fala, deve e pode falar.

O uso de tecnologias da comunicação está inserido no meio evangélico, cujo

exemplo é dado por grupos neopentecostais. Rádio, televisão e, principalmente, a Internet

são os meios mais utilizados. Falar é o ponto. Na “festa”, destinada à execução musical, a

palavra não está e não pode estar ausente. Ela é elemento constitutivo de algo religioso; ela

perfaz momento de conexão com o sagrado. A ênfase não recai sobre as Escrituras porque

elementos da experiência são feitos presentes. Gestos, sons, tons e falas são componentes

da atuação daquele que fala aos presentes, também ali para ouvir música e para dançar.

Todos aguardam o momento. Ele é breve e seu realizador precisa suplantar, por

curto período, a capacidade do DJ. Para promotores e freqüentadores, não se trata de

momento menor, pois o objetivo é evangelizar, é divulgar outro modo de vida, é indicar o

caminho da “transformação”. Quem faz isso possui certo reconhecimento no grupo, pode

ocupar posto institucional, tem o dom da fala. Ela procura se tornar oficial, legitimada, e,

para isso, é fundamental a presença de locutor com reconhecimento institucional (Bourdieu,

1998:85-87). Também quem enuncia, mesmo não legitimado institucionalmente, pode e

faz. Seu fazer igualmente é caracterizado pelo dever, dever de falar. Tem obrigação e seu

reconhecimento repousa não somente sobre o dom, porém sobre esse exercício feito

premente. Trata-se de demonstrar “domínio sobre as palavras” e, assim, causar

“embriaguez” nos ouvintes (Clastres,1978:107, 113).

Outro momento de demarcação do sagrado é, sem dúvida, a execução musical, e na

“festa” ele é constituído, muitas vezes, com a atuação do DJ. É o manipulador de

determinados “aparatos ministeriais”, precisa “falar com o povo e animar a galera”. Nesses

termos, é sacerdote e manipulador de coisas e objetos possuidores de caráter sagrado. Seu

fazer demarca culto de confirmação e de renovação do sagrado. Os “aparatos” utilizados

eliminam a escrita, subvertem a ordem existente, pois apelam aos sentidos e reconhecem na

perícia do DJ, na tecnologia e nas máquinas os componentes de canal de conexão com o

divino. DJ Marcelo afirma que com a música o ouvinte e dançarino “recebe uma mensagem

vinda diretamente do trono de Deus para a vida dele”. Isso ocorre como se os gestos,

283

seguidos pelos presentes, produzissem atualização e renovação do pensamento oferecido ao

divino (Durkheim, 1989:393-420). A conexão enfatizada por DJ Marcelo ocorre com a

tomada do corpo e da mente por potentes sonoridades que permitem a mediação. Por isso, o

DJ não pode prescindir da tecnologia, ela própria mediadora, chave de circuito de

comunicação. É a partir do DJ que a música constitui o liame entre homens, Deus e a

máquina, e ocorre a “mensagem vinda diretamente do trono de Deus...”.

Um pastor e DJ afirma que “as baladas e shows de música gospel trazem o jovem

de volta à religião”. E, mais adiante conclui “ (...) a carne também deve louvar ao

Senhor”249. Como se vê, não há a busca pela descorporificação com vistas a alcançar o

êxtase, não divorciado de prazeres e de satisfações, comum, por exemplo, na mística

vigente no ciberespaço (Felinto: 2001). A presença do DJ coloca as máquinas como

companheiras do homem em empreitada espiritual, possível com a ruptura entre o

tecnológico e o biológico (Vianna, 1997). Isso ocorre porque vivemos em mundo no qual a

política, a economia, a medicina e o cotidiano revelam o acoplamento entre o humano e a

máquina, de estado de transe com a intrínseca relação entre os dois.

Os equipamentos e a tecnologia constituem a ação do DJ, sua extensão. Ele é o

produtor de velozes BPM – batidas por minuto -, componentes da fé, de valorização

cultural e de definição territorial. Isso exige a manifestação corporal, certo estado de

excitação dos sentidos e de disposição provocados com as máquinas e a tecnologia

(Haraway, 1991).

Como os freqüentadores, os pregadores e os DJs, os colaboradores da área de

“segurança” fazem parte dessa peculiar produção musical, fonográfica e, por que não

afirmar, de expressão de crença, de participação caracterizada por integração entre homens

e tecnologia. É uma atuação não dependente de força física; trata-se de força espiritual

acionada sob a voz do pregador, sob os beats (batidas sonoras) e orações de bastidores.

As experiências de lidar com o sagrado, individual ou coletivamente, reinscrevem

um “campo religioso mais plural e competitivo” (Brandão, 2004). Nele é possível se

deparar com possibilidades de escolhas, com encontros transformadores, com passagens,

com reinterpretações diante de contatos estabelecidos (Sanchis, 1995). Esses integram

práticas subterrâneas, mas, nem por isso, menos potentes na transformação religiosa.

249 Semerene e Cunha. “O DJ é o meu pastor”, revista Capricho, 30/11/03, p.38 e 39.

284

Surgem arranjos e rearranjos entre elementos de crenças ou espiritualidades específicas e

demarcam as “possibilidades sincréticas” (Novaes, 2004). Portanto, a visão daqueles

voltados a black music gospel e a “festa” é pautada por viabilidades de conciliações,

integrando o fazer (re) criativo comum aos promotores e aos freqüentadores.

285

Intervalo – considerações sobre um tema

A fim de tecer comentários sobre aquilo tratado até o momento, retomo o ponto

condutor da tese. O objetivo era indicar como as produções musicais, de atividades e

fonográficas contribuem para a transformação do meio evangélico brasileiro. Recorri às

noções de “encontros transformadores” e de “porosidade” para falar sobre o confronto entre

percepções e bens.

Para Sanchis, as atuações são sublinhadas por contatos, entre sistemas simbólicos,

que não provocam confusões. As elaborações ou as percepções de elementos – bens, idéias,

sentidos e ações – existentes em outro universo e os contatos viabilizam transformar o

próprio meio e construir reinterpretações daquilo posto em conexão.

Os contatos são demarcados por dupla desigualdade, pois, primeiro, ocorre no

interior de um campo de relações de poder entre líderes que impõem algo e outros que

resistem em nome daquilo considerado “puro” ou “autêntico” (as posições de “prestígio e

rejeição” podem ser invertidas em outras realidades históricas e culturais).

A segunda desigualdade ocorre com a valorização contrastiva dos elementos vistos

como integrantes do universo do outro. Seu sistema simbólico é constituído por certas

relações que podem ser utilizadas para a percepção das coisas e do vivido. Nesse sentido,

os grupos em situação de contato na sociedade ou no meio religioso estabelecem

posicionamentos diante dos elementos externos. Essa situação de confronto é demarcadora

da reinterpretação, da percepção e da própria alteração do entendimento do mundo e das

coisas.

Os pontos acima foram condutores da abordagem da “música gospel”, da black

music gospel e dos eventos, permitindo refletir sobre os posicionamentos de crítica social,

de busca por visibilidade de fiéis e da dita “cultura negra”. A reflexão acerca de encontros e

de porosidade proporcionam o entendimento do âmbito musical religioso. Como uma via

de mão dupla, viu-se que a “música gospel”, a “festa” e a black music gospel propiciaram

investigar os posicionamentos de artistas, de empresários e de igrejas diante do

entretenimento e da política. Foram apontadas proximidades e discussões com práticas

culturais não religiosas; igualmente a construção de modos de visibilidade da black music

gospel e de seus artistas.

286

Foi observado que a “música gospel” evidencia organização de rede formada por

ações e empreendimentos institucionalizados ou não e peculiares por inscreverem

combinações e arranjos feitos por empresas, igrejas e leigos em conformidade, mais ou

menos, com as regras estabelecidas (Becker, 1977). Isso é realizado ao serem adotadas

algumas expressões musicais, tecnologias e organização empresarial para a criação de um

bem religioso (cabe lembrar aqui que os entrevistados sublinharam a “comunicação

vertical” e a “horizontal”, a “qualidade” e o “profissionalismo”). Para falar sobre isso,

foram ressaltados momentos diferentes demarcados por rupturas, por continuidades e por

contatos com elementos apropriados e que passam a constituir o âmbito musical e também

religioso. Tais momentos têm a ver com aqueles produtores de “música gospel” e também

com os de black music gospel, pois ocupam posições e defendem visões diferentes.

Os especialistas, os pastores concebem e/ou reconhecem as canções abrigadas sob a

categoria “música gospel”. Elas falam de elementos diferentes; trazem concepções

distintas: uma pode falar sobre as vitórias e a prosperidade alcançadas; outra enfatiza a

transformação interior com a adesão e manifestação de fé. A capacidade dessa modalidade

musical está em transmitir a visão de mundo e o ethos religioso (Geertz, 1989). Apesar das

inovações, as canções não colocariam o esquema de pensamento em risco, a organização e

os sentidos não seriam confrontados (Sahlins, 1999), pois ocorre o cuidado com a

disseminação das visões institucionais.

A atividade de cantar não está mais restrita ao agir missionário, como parte da

inserção religiosa. Diferentemente disso, há outro ato de cantar, e este exige atuações

especificamente técnicas. Ocorre a reconfiguração do meio religioso, pois profissionais da

música também ficam encarregados da produção e da manipulação do sagrado. Têm-se

contatos e conciliação entre “mercado” e religiosidade. A liderança religiosa posiciona-se,

valoriza a proximidade com o mercado, reinterpreta a relação e sua composição.

Entre técnicos e pastores, o destaque é dado ao “mercado” como instância de

formulação daquilo considerado religioso e sagrado. A ligação advém do produzir o

destinado ao âmbito religioso e os encarregados possuem dupla inserção: estão “recebendo”

e, embaixo, no “vale”, elaboram o que esteja destinado ao alto, à “montanha”. Com a

produção musical, ocorre tentativa em reverter valorativamente a tensão entre mercado e

atividade religiosa. A formulação de canções constitui nível de passagem com práticas,

287

conhecimentos e produtos apropriados e capazes de ligar esferas opostas. Nesse sentido, o

encontro produtivo figura como contribuinte da estabilização.

Outras iniciativas foram abordadas e descortinaram um conjunto delas, ainda com

pouca visibilidade na sociedade e no meio religioso; trata-se da “festa” e da black music

gospel. Elas colocam o relaxamento das orientações comuns ao cotidiano – com cultos,

ensinamentos religiosos e trabalho voluntário –, e expressam a junção entre religiosidade,

entretenimento e política. Sua relação com o mercado resulta de arranjo cultural não rígido,

pois coloca relações de (re) combinações e de alterações de conceitos e da realidade

(Sahlins, 1999: 16, 185, 193).

É possível entender, assim, a black music gospel e a “festa” como viabilizadoras e

resultantes de ações produtivas de bens e de sentidos. Acontece a inserção de expressões

musicais de circulação mundial associadas aos povos da diáspora. Com isso, são

redesenhados os limites do grupo religioso a partir de diálogo entre distintas culturas. A

“festa” circunscreve novas possibilidades de associação, principalmente aos residentes em

áreas não centrais da cidade. Ela permite indicar que as influências musicais invadem o

meio religioso, compõem a percepção dos envolvidos acerca do mundo e dos problemas

sociais. Nesse sentido, há a inscrição de possíveis vias de proximidade e distanciamento

com o meio evangélico e com a esfera secular, seja em relação ao trabalho de

evangelização, seja com adoção de expressões musicais contemporâneas.

Fruto de iniciativa autônoma, a black music gospel coloca tensões, pois os

produtores buscam indicar sua raiz religiosa e, ao mesmo tempo, fortalecer segmento

artístico e concepções culturais. Com ela e com a “festa”, são visíveis os sentidos e os

lugares que a música, as juventudes, o entretenimento, a dança e outros elementos passam a

ter. Para alguns, os eventos e as canções formam atmosfera favorável ao desprendimento

das preocupações imediatas, das exigências da "vida séria" e vivência de fé. Também a

evangelização pode sobressair nas falas e ser cumprida com o investimento no

entretenimento, com a busca de bens inseridos em circuito internacional.

No entanto, as apropriações divergem, porque evangelizar não é o único objetivo;

ou melhor, evangelizar é tomado peculiarmente, pois proporcionar diversão, investir no

tempo livre e compor modo de entretenimento são pontos associados. Visto por esse

ângulo, pode-se compreender porque a adesão é constante e revela mudança no meio

288

evangélico, pois com a inscrição de relaxamento comportamental, de práticas e bens

inovadores, o proselitismo e a moralidade religiosa são repensados, reescritos.

A black music gospel revela não existir integração absoluta entre as diversas

atividades musicais, como com a “música gospel”. Deparei-me com redes relacionais e

biografias que extrapolam a atividade musical, pois enredam tantos elementos, colidem

com os consensos e inscrevem outras oposições. Digo isso ao focalizar o público e os

promotores. Sobre os freqüentadores, chamou-me a atenção saber como percebem as

músicas, os discursos, as imagens e a interação. Somente assim foi possível saber como as

canções e a "festa" constituem a “pista” de dança na qual ocorre o encontro entre os

dançarinos – de diferentes igrejas, com os artistas, com os DJs e, principalmente, com o

sagrado. Apesar das críticas feitas por líderes institucionalizados, muitos fiéis ultrapassam

as imposições.

Os produtores de "festa" e de música agem à margem do contexto institucional, e

atuam independentemente de suas igrejas de adesão. Alguns são diáconos, outros dirigem

grupos juvenis, porém, no tocante à formulação das atividades, não recebem apoio explícito

de suas denominações. O modo de tornar legítima sua iniciativa é investir na articulação

com alguma igreja ou contar com a presença de algum pastor ou possuidor de cargo na

hierarquia religiosa.

Os formuladores de black music gospel mantém contatos diferenciados com o meio

evangélico, exercem atividades profissionais, buscam converter e também refazem, como

os freqüentadores, os dualismos como, por exemplo, sagrado/profano, religião/mercado

bem/mal, igreja/ "mundo", alto/baixo, espírito/corpo, eles/nós. As ações de produção são

capazes de instaurar novas oposições (nunca definitivas), permitem inscrever outras vias de

interações, como novos produtores e manipuladores do sagrado.

Com isso, ocorre a redefinição e separação dos pólos sagrado, puro e superior

daquele tomado como comum, impuro e inferior. Isto é, a festa revela uma transformação

com a qual a “carne”, como diria certo pastor e DJ, e a “festa” são alçadas ao pólo superior.

Desse modo, é dada demonstração do modo de fé. Não é a fé exclusiva, não proponente de

“mundo” radicalmente invertido, pois desliza por entre as amarras das instituições (Sanchis:

1994). Assim, em nome da fé, para dar “testemunhos” dela, os leigos produtores e os

fiéis/receptores também desmontam as oposições vigentes (Velho, 1997) e, assim, indicam

289

que o “tradicionalismo” deve ser discutido. Para alguns pastores, as iniciativas colocariam

em risco constante, enfraqueceriam os limites com o “mundo”, debilitariam a “tradição”.

A apropriação de bens internacionalizados e as práticas registradas descortinam a

relação entre igualdade e desigualdade. Há tentativas em difundir a consciência crítica entre

os ouvintes de black music gospel. Deve contribuir para isso a produção imagética que

desenha o estilo do confronto apto a fazer frente não somente ao meio religioso, mas ao

empresarial. Isso indica a condução de um circuito artístico independente. As canções

trazem críticas à sociedade, às condições de vida, adicionam à linguagem elementos antes

incompatíveis com a proposta de uma distinta religiosidade Seus elaboradores, apesar de

não ocuparem postos de liderança, posicionam-se, valorizam aquilo produzido fora do meio

religioso, porém apropriado e reinterpretado no âmbito da crença.

Os organizadores de “festa” e de black music gospel e outros interessados na

conversão política e valorização cultural dialogam, buscam construir ambiente comum com

as atividades musicais existentes na cidade. Assim, apresentam outro desenho urbano, ao

ressaltarem áreas consideradas periféricas como dotadas de poderes. Os produtores

descortinam possibilidades de diversão resultantes de arranjos distintos daqueles em

vigência na Zona Sul da cidade. Além disso, não figuram somente como incentivadores de

práticas musicais, mas suas ações são concebidas com vistas a alterar a realidade com a

disseminação de crítica social; seriam os propagadores de nova maneira de expressão e de

conscientização para a qual a arte, elementos religiosos, visão política e valorização

territorial são fundamentais (Novaes, 2003).

Questões políticas estão em outras manifestações e não limitadas aos

empreendimentos musicais, mas podem contemplá-las. Elas têm lugar com aqueles

interessados também em questionar a organização do meio evangélico e articular

posicionamento político. Suas atividades apontam as assimetrias que envolvem as relações

sociais e divulgam suas exigências que tocam os níveis doutrinário e litúrgico. São inscritas

denúncias de discriminações e requisições de medidas favoráveis ao atendimento dos

interesses do segmento de fiéis composto por afro-descendentes250. Porém, o confronto

entre os evangélicos com inserção política e os produtores musicais escreve um impasse.

Os artistas são apontados como distantes de ações “militantes”, pois estariam preocupados 250 Em 2005, ocorreu no estado de São Paulo, o “Encontro Regional Afro-descendente” realizado pelo “Ministério de ações afirmativas para afro-descendentes”, da 3ª região eclesiástica, da Igreja Metodista.

290

com a musicalidade (possuidora de “raiz negra”; a mesma das igrejas neopentecostais) e

integrariam um meio não favorável à transformação social. Nesse sentido, a black music

gospel não teria ênfase política, seu âmbito seria exclusivamente o da cultura; mesmo

assim, teria importância para os militantes por sua capacidade em atrair o público.

A modalidade black music gospel e seus artistas enfrentam ainda outro impasse. O

reconhecimento não depende da esfera religiosa, dos pastores e das igrejas. As ações não

são reconhecidas institucionalmente; no entanto, seus produtores divulgam estar tudo

relacionado aos textos sagrados. Mas não parece ser isso que é entendido. Os promotores de

“festa” indicam o desconhecimento, o não reconhecimento da black music gospel. São

propostas contrastantes, pois a black music gospel não transmitiria aquilo peculiar ao meio,

mas contribuiria para sua alteração, desestabilizaria o ethos e a visão de mundo, já que seus

elaboradores instalam a “festa”, uma peculiar manifestação considerada inadequada ao

protestantismo. Também seria introduzida uma musicalidade não compatível com o serviço

religioso moldado em hinos e cantos produzidos por missionários europeus e norte-

americanos.

O surgimento de empresas, o questionamento de alguns produtores, a participação

de certa mídia são demarcadores de uma discussão que passa a ser alocada na dimensão do

mercado, mas de modo diferente daquele que atinge a “música gospel” - feita por

detentores de postos religiosos e que podem ocupar posições na ordem produtiva. Por sua

vez, os materiais investigados indicam que na esfera do mercado a black music gospel e os

artistas podem ser reconhecidos. O contato é diferente, pois a submissão ao princípio do

mercado define o caráter não sagrado da música e da “festa”; isso indica para posição de

poder e de status no meio religioso. Os pastores decidem como algo adquire

reconhecimento. Foi visto que o mercado e a política surgem como a esfera de

determinação de diálogo, de visibilidade e de valorização da black music gospel, de artistas

e de fiéis negros. O mercado e a política seriam os ordenadores da vida social, cabendo ao

primeiro a capacidade de reconhecer a black music gospel e os artistas. Diferentemente, a

“música gospel” é concebida fora do mercado, por ele produzida, mas não legitimada; não

obstante, depende do mercado em ver a black music gospel, a “música afro”, como

modalidade viável aos seus interesses. Então, aquilo que se deseja ser religioso somente

assim será declarado pelo equivalente profano.

291

Tudo isso abre caminhos que podem ser explorados e permite saber sobre as

transformações, e como os envolvidos percebem os bens, os serviços, as atuações, os

conflitos e as tensões com as atuações empresariais e artísticas. Os empreendimentos são

formulados por promotores detentores de técnicas, de inserções políticas e, assim,

inscrevem fluxos e nós. Desse modo, atuam no meio evangélico, estabelecem proximidades

com produções e idéias externas, igualmente integradas em fluxo internacional de bens

culturais e políticos e, assim, procuram angariar reconhecimento.

A sociedade brasileira possui pontos de porosidade, registra tantos encontros. Ao ser

visto o meio evangélico, as práticas estudadas resultam de encontros culturais produtivos

viáveis às continuidades, e fundamentais à diversificação do meio evangélico. Tudo isso

ocorre a partir de conflitos explícitos e velados, com proximidades e “rejeição”, com tantas

reinterpretações e valorizações. Assim as canções são feitas e circulam e, por fim, tantas

festas são apresentadas.

292

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ANEXOS I

i - Encartes Fonográficos

Apocalipse XVI

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310

Feliciano Amaral

311

Feliciano Amaral /verso

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Francisco JC

313

Francisco JC / verso

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Gospel Night I

315

Gospel Night I/ verso

316

Gospel Night II

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Mara Maravilha

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Oficina G3

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Oficina G3 / verso

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Rebanhão

321

Rebanhão / verso

322

Anexos II ii - Encontro Nacional de Louvor Profético Revista

323

Cartão de identificação

324

Cartão de identificação

325

Cartaz

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Salão de vendas Empresas

327

Freqüentadores

328

Freqüentadores

329

Anexos III iii - EXPLOSÃO GOSPEL

Propaganda

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Convite

331

Ficha de Pontuação

332

Apresentação de candidato

333

Apresentação de candidato

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Público

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Anexos IV

iv - Gospel Beat Componentes

www.gospelbeat.com.br

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Panfleto / frente

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Panfleto/ verso

Mensagem

Assunto: Gospel Beat - Black Gospel Party - 19 de agosto

Fala Povo Black...

Dia 19 de agosto, a Zona norte do Rio de Janeiro vai ferver movida a sonoridade black gospel. É a segunda edição do ano da Festa Black

"GOSPEL BEAT".

Estamos na sexta edição da festa, segunda nesse ano. Em junho o salão de festas Paraná balançou ao som dos melhores DJ's cariocas de black gospel apresentando as novidades e seus remixes exclusivos e da Jam

Session do Grupo R.E.P e convidados.

Seguindo a mesma fórmula com muito som e unção, estaremos de volta no dia 19 de agosto pra fazer você dançar e curtir um bom som, uma boa

música com gente bonita que ama a Deus.

Nas pickups os DJs: Dj "W" (R.E.P), Marcelo Araujo (Gospel Night).

Dia 19 de agosto, o povo black do Rio de Janeiro se encontra na Gospel

Beat - Black Gospel Party.

Gospel Beat (Black Gospel Party) Dia 19 de agosto às 21hs

Av. Vicente de Carvalho, 80 - Vaz Lobo. Ingressos a R$ 5,00

Paz a todos e vejo vcs lá. L-ton "O.S.K"

www.gospelbeat.com.br PS.: Segue em anexo a filipeta da festa

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Convite – frente/verso

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Mensagem

Olá a todos,

Enquanto o site do G-hertz não sai, estou disponibilizando abaixo o link do "My Space" do G-hertz, estúdio de produção de black music no

Rio de Janeiro.

Lá você escutará 04 poup porri's de alguns trabalhos de produção que desenvolvemos nesse ano:

- Rapper Fydell (FWOS)

- Bossa Rap / Vinicius Terra - R.E.P

- Geração Hip Hop (SESC - Rio de Janeiro)

Aproveitamos para informar que o cd do R.E.P está pronto somente aguardando resolução de algumas burocracias para prensagem.

www.myspace.com/visioghertz

Paz a todos,

VISIO www.gospelbeat.com.br

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Convite

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Anexos V v - Gospel Night / cartaz

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Ingressos

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Entrada de “casa de festa” /Irajá

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Clube / panorama Irajá

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Freqüentadores /Irajá

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Freqüentadores Gospel Night Fantasy

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Gospel Night Fantasy

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Anexos VI vi - Soul de Cristo Panfleto – frente

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Filipeta

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Cartaz /Irajá

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Cartaz de bar

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Panfleto – frente/verso

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Freqüentadores

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Freqüentadores

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Freqüentadores

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Pregador

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Conjunto Musical

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Divulgação