na noite da questão palestina – 1ª parte · ... não percebemos que corremos o risco de comprar...

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Emilio Gennari Questão Palestina Os primeiros onze capítulos deste texto foram publicados em 2004 pela Editora Achiamé, no livro “Questão Palestina – da Diáspora ao Mapa do Caminho”. As atualizações nasceram de estudos posteriores. Ao reproduzir este material, total ou parcialmente, cite a fonte.

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Emilio Gennari

Questão Palestina

Os primeiros onze capítulos deste texto foram publicados em 2004 pela Editora Achiamé, no

livro “Questão Palestina – da Diáspora ao Mapa do Caminho”. As atualizações nasceram de

estudos posteriores. Ao reproduzir este material, total ou parcialmente, cite a fonte.

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Índice

Apresentação 03

Introdução 04

1. Da diáspora aos primeiros passos do movimento sionista 05

2. Árabes e judeus na Palestina 12

3. Da segunda guerra mundial ao primeiro conflito árabe-israelense 20

4. Do fim da guerra aos novos passos da resistência palestina 29

5. A guerra dos seis dias 38

6. Da estratégia do terror à guerra do Yom Kippur 47

7. Líbano: da guerra civil à ocupação israelense 58

8. A resistência palestina: da derrota do Líbano à Intifada 68

9. A “paz” de Oslo 79

10. O governo Barak e a segunda Intifada 89

11. Do massacre de Jenin ao Mapa do Caminho 101

Bibliografia 114

Atualizações 117

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Apresentação.

Com certeza, você já deve ter percebido que os enfrentamentos entre palestinos e israelenses

marcam presença constante nos meios de comunicação. Fotos, entrevistas e reportagens trazem

detalhes que parecem pintar um retrato fiel dos conflitos que, há mais de um século, marcam as

relações entre os dois povos.

O problema é que, na maioria das vezes, as notícias acabam ocultando o que, supostamente,

se propõem a revelar. Sei que parece um paradoxo, mas basta resgatar alguns momentos do passado,

para perceber que elas se comportam como as imagens de um espelho. Os traços precisos garantem

se tratar de um retrato perfeito quando, na verdade, podem não passar de um reflexo que inverte a

realidade diante dos nossos olhos.

Apressados, não percebemos que corremos o risco de comprar gato por lebre justamente

quando nos damos por satisfeitos em conhecer os últimos acontecimentos. A sensação de estar por

dentro nos impede de ver que, para entender os fatos, é necessário fazer um esforço que vai além

das nossas atenções com o desenrolar do presente. Neste sentido, reconstruir os passos pelos quais o

quotidiano da história foi ganhando as dimensões atuais, averiguar como os atores sociais

responderam às contradições do seu tempo e trazer à tona o contexto em que suas opções foram

viabilizadas são etapas essenciais para superar o cômodo nível das aparências.

Consciente deste desafio, o estudo que aqui inicia se propõe a resgatar os dados que

permitem mergulhar no conflito palestino-israelense, desvendar o jogo de interesses e entender as

relações que se ocultam nos reflexos que estão ao nosso alcance.

Para dar conta desta tarefa, lançamos mão de um recurso literário insólito num trabalho deste

tipo. Desde as primeiras linhas, os momentos que marcam a história da Questão Palestina são

resgatados através de um diálogo franco e aberto com uma coruja.

Sim, você entendeu bem. Trata-se de uma conversa entre um ser humano e uma

representante do mundo das aves que, por contar com uma visão capaz de enxergar nas noites mais

escuras, traz à luz o que as sombras das aparências impediam de ver.

Apesar do estilo descontraído, todos os dados foram pesquisados e comparados durante dois

anos de intensos estudos cuja abrangência supera abundantemente as citações bibliográficas

colocadas no fim do texto.

Como não queremos prolongar a espera, vamos ceder logo a palavra à Nádia, a coruja, para

que, ao iluminar os caminhos do passado nos ajude a entender melhor o presente e, sobretudo, a

transformá-lo.

Boa leitura.

Emilio Gennari.

Brasil, setembro de 2003.

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Introdução.

Os primeiros raios de sol começam a penetrar o véu escuro da noite.

Deitado na cama, o corpo saboreia os instantes que precedem a hora de levantar. A cabeça

flutua docemente entre o sonho e a realidade enquanto os ouvidos captam os movimentos da vida

que desperta.

Na bizarra mistura de vozes e ruídos, o coração identifica um gemido de cansaço e de dor.

Incitadas pela curiosidade, as pernas deixam o abrigo dos lençóis. Os olhos tateiam entre as

sombras tentando guiar os pés rumo àquele sinal de sofrimento que se torna cada vez mais próximo.

Com a ajuda dos óculos, a visão começa a identificar o contorno da figura que parece familiar.

Sentindo-se observada, ela vira vagarosamente o corpo.

Ainda sonolenta, a voz expressa a surpresa do reencontro:

- “Nádia é você?”, pergunta a língua incrédula.

- “Em carne e osso!”, responde a coruja com voz cansada enquanto ajeita sob a asa um graveto em

forma de forquilha que lhe serve de muleta.

Preocupados, os olhos percorrem o corpo da ave salpicado de poeira, queimaduras e

pequenos cortes. Sem esperar maiores comentários, Nádia dirige o olhar a seus ferimentos e começa

a responder às interrogações silenciosas presas na garganta.

- “Estes foram por causa de um míssil que, por pouco, não me derrubou em pleno vôo; aquela é a

marca deixada por uma pedra arremessada da rua; e o machucado na perna é obra de uma bala que

passou de raspão enquanto estava em cima de um telhado”.

- “Vai ver que você foi enfiar o bico onde não devia!”, comento em tom de preocupada reprovação.

A coruja me lança um olhar penetrante, apóia uma asa no encosto do sofá enquanto com a

outra aponta a muleta em minha direção. Segurando-a com a frieza de quem faz pontaria antes de

disparar um tiro certeiro, Nádia aperta o gatilho das palavras: “O maior problema da sua cabeça não

é o fato dela servir para separar as orelhas e carregar um nariz no qual você apóia estes óculos

inúteis, e sim dela ser incapaz de perceber que as injustiças cometidas contra qualquer ser humano

são uma séria ameaça a todos os demais.

O fato de ninguém revelar as razões pelas quais elas ocorrem fortalece os poderosos que,

protegidos pelo silêncio, levarão a outros países os ventos de morte que empurram suas ações. A

indiferença e a apatia são as condições que garantem a sua impunidade, ajudam a ocultar seus

verdadeiros interesses e o combustível que alimentará seus próximos passos.

Fui à Palestina não para xeretar no que não devia e sim para penetrar com meus olhos a noite

daquelas terras e desvendar o que poucos conhecem”.

Atingido e envergonhado, procuro me recompor sentando no sofá.

A coruja baixa o graveto em direção à almofada e, disfarçadamente, coloca as condições

para a trégua: “Eu sei que não é fácil tirar os olhos do próprio umbigo quando tudo ao seu redor diz

o contrário. Mas seria um bom começo se, no lugar de ficar me olhando com ar de peixe morto,

você me ajudasse a pôr no papel a história dos povos que hoje se enfrentam numa luta que parece

não ter fim”.

Com a obediência de quem pede perdão pelo próprio erro, sento à mesa e me apresso a

resgatar da bagunça um velho caderno de anotações e uma caneta que se esconde entre duas pilhas

de livros.

Nádia acompanha cada movimento e, ao me ver pronto, ensaia, pensativa, o começo do seu

relato: “Vejamos... bom... talvez... não... isso. Sim. Isso sim! É melhor começarmos por descrever a

situação do povo judeu...

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1. Da diáspora aos primeiros passos do movimento sionista.

- “Pelo amor de Deus, Nádia, de que diabo você está falando?”, pergunto sem fazer cerimônias.

A coruja coça a cabeça, olha para o alto, respira profundamente e com voz pausada

responde: “Pra início de conversa, você precisa saber que, dois mil anos atrás, a Palestina estava sob

o domínio do império romano. É contra ele que se dirigem as rebeliões pela independência

conhecidas pelo nome de 1ª e 2ª guerra judaica ocorridas, respectivamente, nos anos entre 66-73 e

132-135 depois de Cristo.

Durante a primeira, e precisamente no ano 70, os romanos derrubam o Templo de Salomão,

um dos principais símbolos da fé e da identidade dos hebreus. Na segunda, em 135 depois de Cristo,

a repressão do império termina com a sua expulsão da cidade de Jerusalém. Impossibilitada de

continuar vivendo em seu país de origem, a maior parte deles se dispersa pelo mundo num

movimento desorganizado conhecido pelo nome de diáspora, que quer dizer dispersão.

Por sua vez, a palavra sionista vem de Sion, que é o nome da colina de Jerusalém onde

estava o templo destruído pelos romanos. Como vou explicar mais adiante, trata-se de um

movimento que se forma no âmbito das perseguições contra os judeus da Europa, ocorridas nas

últimas décadas do século XIX. Sua proposta central é a criação de uma pátria judaica em terras

palestinas para a qual parte dos hebreus da diáspora se dirige num movimento de retorno aos lugares

que marcaram a história dos antepassados”.

- “Mas, Nádia, por que você começa de um período tão distante se o que interessa entender é o que

está acontecendo hoje?”, questiono assustado pelo trabalho que me espera.

Sem perder a pose, a coruja pisca os olhos e com a calma típica de quem não se impacienta

em relatar o resultado de suas pesquisas repele a investida da minha preguiça: “Simples, meu caro

secretário. Como dizia um velho conhecido, o presente é o túmulo do passado e o berço do futuro.

Sem resgatar a história que nos trouxe até aqui, dificilmente podemos entender os acontecimentos e,

menos ainda, delinear o que pode ocorrer de agora em diante.

No caso dos judeus, a necessidade de percorrer os séculos é ainda maior. Sem este rápido

passeio, não é possível entender porque este povo é perseguido e nem as verdadeiras razões que vão

dar origem ao movimento sionista”.

Resignada a mão aproxima a caneta do papel, enquanto a coruja saboreia satisfeita o

gostinho de mais uma vitória. Sem perder tempo, limpa a garganta e continua: “Vejamos... onde é

que estávamos? Ah! Sim. Isso mesmo. Estava dizendo que depois da poderosa máquina de guerra

do império romano ter esmagado o movimento de independência judaico, o povo hebreu se dispersa

pelo mundo. Encontramos traços da sua presença no Egito, no Irã, na Tunísia, em Marrocos, na

Espanha, na Itália e em outros países da Europa.

Via de regra, ao longo de toda a idade média, os hebreus participam ativamente da vida

cultural, política e econômica das regiões onde moram. O comércio e a agiotagem são as principais

atividades que identificam os judeus na sociedade feudal e que alimentam junto ao povo simples a

fama de indivíduos avaros e exploradores.

A bem da verdade, é necessário dizer que, de uma forma ou de outra, todos os setores da

sociedade se relacionam com eles e têm razões para hostilizá-los.

De um lado, confiando em seu desempenho, reis e nobres entregam aos judeus a tarefa de

cobrar os impostos e de fornecer-lhes os produtos finos que suas cortes almejam. Porém, de outro,

não faltam ocasiões em que se vêem na necessidade de contrair empréstimos junto aos usurários

hebreus, ora para financiar as expedições comerciais, ora para ampliar o exército e, com ele, o

controle sobre as próprias atividades do reino, ou, ainda, para bancar as compras de bens de luxo.

Artesãos e camponeses vêem o judeu como representante do senhor feudal e nutrem por ele

um ódio ainda maior por ser o explorador imediato. Se isso não bastasse, como o aumento dos

impostos ocorre, sobretudo, em épocas de más colheitas e poucos negócios, é comum eles terem que

recorrer aos empréstimos extorsivos dos agiotas hebreus para quitarem suas obrigações em relação

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ao poder ou financiar suas atividades. Quanto maior o peso de suas dívidas, maior o ódio em relação

a eles.

Por sua vez, a nascente burguesia local, tanto comercial como financeira, vê neles um

concorrente indesejado e um obstáculo à consolidação de suas atividades. Além de marcar presença

no lucrativo comércio dos produtos para a corte, a relação dos judeus com a nobreza e a casa

reinante acaba sustentando a dominação destas e colocando empecilhos à expansão dos bancos que

estão se formando.

Neste contexto, não é difícil perceber que o ódio em relação aos hebreus tem como base o

papel por eles desempenhado na sociedade e é cuidadosamente alimentado pela imagem de

explorador e parasita veiculada pela própria elite em suas relações com o povo simples. Ao agir

desta forma, a corte e a nobreza utilizam a perseguição aos judeus como uma válvula de escape para

canalizar e esvaziar o descontentamento social. E como artesãos e camponeses têm razões de sobra

para manter azeitado seu sentimento de vingança, é só a classe dominante dar o sinal verde para que

verdadeiras matanças sejam rapidamente organizadas.

Com estas medidas, os poderosos retomam também o controle das atividades econômicas e

administrativas confiadas aos súditos de origem judaica e, em meio às hostilidades, não hesitam em

apropriar-se de seus bens”.

- Mas, Nádia, eu sempre ouvi dizer que tudo isso ocorria em função de diferentes crenças religiosas

ou de atitude moralistas?”, pergunto incrédulo e desconcertado.

A coruja sorri, sacode a cabeça e com a ponta das asas na cintura responde: “Engraçado.

Apesar de limpas, as lentes de seus óculos não lhe permitem enxergar além da cortina de fumaça

alimentada ao longo dos séculos.

Os motivos religiosos, bem como a suposta natureza perversa dos judeus, que constituem a

essência do anti-semitismo desta época, são o biombo atrás do qual as elites ocultam os objetivos de

suas hostilidades. Em nome da religião, o povo simples apóia a matança e a expulsão que acabam

atingindo os hebreus independentemente da função por eles exercida na sociedade. Ao fazer isso,

porém, ele não está se libertando de um sistema opressor, mas tão somente de alguns de seus

incômodos representantes. O gostinho da vingança realizada desafoga o descontentamento popular

ao mesmo tempo em que permite a seus algozes reciclarem suas formas de dominação e se

fortalecerem para uma nova rodada de exploração.

Em 1215, as perseguições que ocorrem em algumas regiões da Europa ocidental obrigam as

pessoas de origem judaica a morarem em determinados bairros da cidade. Esta espécie de

confinamento acaba fortalecendo sua identidade coletiva. É assim que os judeus passam a vestir-se

de forma diferente, a criar laços comunitários e a falar uma língua própria, o idiche.

Mas isso não é tudo. Perseguidas na Europa ocidental boa parte das comunidades se dirige

para a Polônia em fluxos migratórios que se intensificam nos séculos XIV e XV.

Chegados na nova pátria, os judeus não demoram a conquistar a proteção do rei graças à sua

competência nos negócios e à fidelidade que lhe demonstram. Em pouco tempo, recebem dele a

permissão de atuar nos setores que antes eram monopólio da corte: extração mineral, caça, pesca,

criação e exploração das feiras, comércio do sal, administração das tabernas e cunhagem das

moedas.

É bom lembrar que administrar estas concessões significa também poder decidir o conjunto

de taxas e impostos a serem cobrados de todos aqueles que, direta ou indiretamente, dependem

delas para viver. Some a isso, as já consagradas habilidades nos ramos do comércio e da agiotagem,

agora plenamente utilizadas para desenvolver e expandir a exportação e a importação de produtos

com o ocidente, e não terá nenhuma dificuldade em entender porque esta é considerada a época de

ouro da migração judaica.

Esta ampliação do papel dos hebreus na Polônia deve-se, basicamente, à ausência de uma

burguesia local organizada e preparada. Ainda assim, a corte não deixa de manter os judeus a rédeas

curtas e não titubeia em usar o anti-semitismo para restabelecer o seu domínio sobre as atividades

por eles desempenhadas. Em breves palavras, o ódio dos camponeses em relação àqueles que lhe

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cobram tributos, cujo dinheiro tomam emprestado a altas taxas de juros e em cuja taberna bebem é,

mais uma vez, um ingrediente indispensável a ser aproveitado pelos poderosos no controle das

relações sócias, econômicas e políticas do reino”.

- “Nádia, explica uma coisa pra mim. Com certeza, nem todos os judeus eram ricos ou

desempenhavam funções outorgadas pelo poder. Como é que eles se relacionavam entre si?”

- “Uhm! Fico feliz em ver que está querendo enxergar um pouco mais longe”, diz a coruja satisfeita

com a pergunta. E segurando a muleta como uma maestrina que se prepara para dar início a um

concerto continua: “Meu pequeno humano de óculos, você precisa saber que no início do século

XVI, há judeus espalhados por todo o reino polonês.

O fato de participarem da sociedade e serem por ela rejeitados leva a um aprimoramento de

sua organização comunitária. Em geral, esta se baseia na keilá, ou seja, numa associação de judeus

que moram na mesma cidade, têm sua sinagoga, seus rabinos, seu cemitério e cuidam dos demais

serviços. Toda keilá tem uma direção formada por um comitê executivo e um conselho, além de

várias comissões que se encarregam da educação, do ensino religioso, da assistência, das questões

jurídicas, etc. Via de regra, os membros destes órgãos são escolhidos no interior de um seleto grupo

composto pelos mais ricos e mais cultos da comunidade.

As contradições entre ricos e pobres, consideradas parte da vontade divina, são

escamoteadas pela assistência social prestada aos mais necessitados ou recém-chegados, pelo fato

dos mais abastados serem os únicos a pagarem as contribuições comunitárias e a auxiliarem as

famílias de menor poder aquisitivo na hora de quitar os impostos reais. É assim que o paternalismo

e a ausência de uma relação direta de exploração no interior da comunidade judaica não permitem o

surgimento de grupos de oposição. As poucas vozes discordantes não passam de protestos

individuais que se diluem com o passar do tempo.

Ao longo do século XVI, a educação passa a ser um requisito necessário para a educação do

bom judeu. No interior da keilá, a análise e a discussão dos temas religiosos, bem como a prática

dos mandamentos divinos, são elementos importantes para manter a coesão da comunidade. Neste

contexto, os sofrimentos provocados pelas perseguições levam a aprimorar um sentimento

messiânico. A espera de um redentor, de um salvador do povo de Israel, e, através dele, de toda a

humanidade, conduzem à idealização de um passado feliz e de uma solução sobrenatural para as

humilhações do presente.

Ainda assim, enquanto a sociedade feudal proporciona condições de vida relativamente

boas, os judeus não pensam em criar um estado para eles. Além disso, entre os hebreus da Europa

ocidental que não haviam migrado em função das perseguições, já há vários ricos que tendem a se

integrar aos costumes dos países onde moram. Até o final do século XIX, as ligações com a cidade

santa de Jerusalém, na Palestina, são meramente religiosas, de peregrinação aos lugares sagrados”.

- “Pelo que você acaba de dizer, então, esta situação de equilíbrio das contradições no interior da

comunidade judaica deve ter durado por séculos?”

Nádia fecha os olhos. Suspira. Levanta a asa em minha direção e com a ponta chamuscada

de suas penas faz um gesto que adianta a resposta negativa à minha interrogação. “As relações entre

os hebreus começam a mudar em 1648, quando Bohdan Chmielnitski lidera uma revolta dos

cossacos apoiada pelos camponeses ucranianos, dos quais os nobres poloneses vinham cobrando

impostos absurdos através dos judeus. A revolta marca o início de uma série de ataques que atingem

a economia das principais cidades da Polônia. Estes destroem as propriedades dos hebreus e levam

uma parte significativa das comunidades a procurar refúgio no interior.

Na impossibilidade de levar adiante os velhos ofícios, os judeus procuram novas atividades.

A principal delas é a fabricação e distribuição de bebidas alcoólicas, mas a maioria dos migrantes

tenta sobreviver como músico, artesão, vendedor ambulante, dono de albergue ou através de

qualquer biscate capaz de garantir a comida diária. Aqueles que mantêm as velhas funções de

cobradores de impostos ou agiotas passam a ser odiados pelos próprios judeus que são por eles

explorados. Diante da situação de empobrecimento, a vida comunitária da keilá se desestrutura

ainda que seus antigos membros mantenham os sinais externos que os identificam como hebreus.

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Se isso não bastasse, entre 1772 e 1795, Rússia, Áustria e Prússia se encarregam de eliminar

a Polônia do mapa europeu. Desta forma, o império czarista, que até então se recusava a aceitar a

entrada dos judeus em seu território, acaba herdando alguns milhões deles. De início, a elite russa,

preocupada com a colonização das áreas recém-conquistadas, autoriza os hebreus a adquirir terras

para a lavoura e garante a eles 5 anos de isenção de impostos. Aos que não têm recursos é entregue

uma pequena propriedade acompanhada da promessa de não pagar tributos por 10 anos e de ter

direito a um empréstimo.

Mas a falta de tradição agrícola da comunidade judaica somada à não concessão dos

benefícios prometidos criam uma situação insustentável para a maioria do povo judeu. Somente sob

o czar Nicolau I (1825-1855), em alguns distritos, as colônias judaicas que se dispõem ao trabalho

agrícola recebem pequenas vantagens, entre as quais a dispensa do temido serviço militar.

Na metade do século XIX, as indústrias russas precisam de uma boa quantidade de força de

trabalho para compor o quadro de funcionários e, sobretudo, como massa de desempregados cujo

papel é de manter baixos os salários a serem pagos. É assim que, no governo de Alexandre I (1855-

1881), os judeus perdem todas as regalias já conseguidas e não podem mais se cadastrar como

agricultores. Anos depois, só têm direito à posse de áreas que se encontram em regiões remotas e,

em 1892, são proibidos de viverem fora das aldeias ou das cidades”.

- “Nádia, pelo que sei, o processo de industrialização costuma levar consigo mudanças sociais

profundas. O que acontece com as relações entre os hebreus e destes com a Rússia da época?”.

- “Bom querido secretário, vamos por partes. Em primeiro lugar, eu já disse que o avanço da

industrialização leva consigo a formação de um grande exército de desempregados desejosos de

assumir um lugar na produção. Nesta situação, que atinge a própria comunidade judaica, parte

significativa dos hebreus, deixado o trabalho nas roças, está empregada nas fábricas ou disputa uma

vaga. Ao mesmo tempo, porém, setores da elite judaica se tornam proprietários de pequenas

manufaturas, levam adiante atividades

comerciais ou vivem da velha agiotagem.

Sabendo que desemprego é sinônimo

de miséria, descontentamento e revolta, não

é difícil imaginar a postura do czar para sair

dos apuros causados por esta realidade:

culpar os judeus pelo fato deles ocuparem o

lugar dos russos na produção, explorá-los

nas manufaturas ou através do comércio e da

usura. E o culpado apontado pela elite

czarista é facilmente identificado: tem uma

religião diferente, fala outra língua, segue

tradições suspeitas, vive em grupo, usa

barbas cumpridas, chapéus e longos capotes

pretos. Graças a esta intervenção do poder

central e dos governantes locais, as massas

são levadas a perseguir os judeus como verdadeiros inimigos do povo.

Por outro lado, a divisão no interior da comunidade judaica russa vai aumentando com o

passar do tempo. Diante das greves, não faltam rabinos que, comprometidos com os hebreus ricos

dos quais dependem economicamente, condenam o proletariado judeu alegando que sua atitude, por

ser ilegal, atrai a ira do governo contra toda a comunidade. Por sua vez, a elite empresarial judaica,

além de colocar as forças policiais contra os líderes operários, não titubeia em contratar cristãos

para furar as greves promovidas pelos judeus. Sabia, de fato, que ninguém iria impedir o trabalho

deles através de ações violentas, pois as mesmas poderiam desencadear a repressão orquestrada

pelas autoridades.

Apesar destas atitudes hostis, em algumas regiões, o operariado hebreu tece relações com o

movimento socialista, chega a usar as sinagogas como locais de reunião, não hesita em lançar mão

Judeus mortos durante as perseguições

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da ação clandestina para organizar seus movimentos e subtraí-los à repressão policial. Não poucas

vezes, seus panfletos e materiais impressos acusam as lideranças da comunidade judaica de

apoiarem a luta dos capitalistas contra os trabalhadores no interior da própria comunidade e não

hesitam em afirmar que o povo judeu está dividido em duas classes que se opõem de forma

inconciliável”.

- “Tudo bem, Nádia, mas o que eu ainda não consegui entender é a relação entre o movimento

sionista e a realidade dos judeus na Rússia. Será que você poderia ser um pouco mais clara?”.

A coruja faz um gesto com a asa pedindo que me aproxime. Alegre por ganhar alguns

instantes de descanso, a mão solta a caneta como se estivesse se livrando de uma pesada ferramenta.

O corpo se espreguiça vagarosamente fazendo o sangue correr livre pelas veias. Sem impacientar-se,

Nádia introduz suas palavras com um sorriso: “Agora que está devidamente acordado, tenho certeza

que vai entender o que vou dizer.

Pra começar, é necessário lembrar que, na segunda metade do século XIX, o judeu russo

Leão Pinsker, integrante da Sociedade para a Difusão da Cultura entre os Judeus da Rússia, é um

dos que debatem temas relativos ao judaísmo. Através de suas intervenções, ele prega inicialmente

um processo de assimilação da língua e da cultura russas por parte das massas judaicas.

Suas idéias, porém, são abaladas pelas perseguições de 1871, em Odessa, e totalmente

revistas a partir de 1881 quando estas se espalham por toda a Rússia. Diante do anti-semitismo e da

situação de inferioridade em que se encontra a maioria dos hebreus, Pinsker começa a divulgar a

necessidade desta constituir-se enquanto nação. Para viabilizar a idéia, ele propõe a fundação de

uma espécie de diretório, liderado pela elite hebraica, cujo objetivo seria o de criar um lar seguro e

inviolável para o excedente de judeus que vivem como proletários nos diversos países e são um

fardo para os cidadãos nativos.1

Em outras palavras, o primeiro passo seria o de separar a elite judaica do proletariado

hebreu. Na visão de Pinsker, caberia a ela organizar-se para criar um refúgio seguro não para si, e

sim para os judeus pobres cujo excedente vem trazendo problemas sérios à própria elite judaica em

processo de integração na sociedade russa. Pouco importa onde este lar está localizado ou se nele já

estão morando outros povos. O essencial é produzir uma dupla solução para a questão judaica: de

um lado, a emancipação das camadas mais altas no interior de cada país e, de outro, a criação de

uma pátria para o grande contingente de pobres, desempregados, artesãos e operários judeus que

representam um fardo tanto para os russos, como, sobretudo, para os que buscam se emancipar. Se o

problema é o excedente de proletários e proletárias do povo hebreu, a saída é, literalmente, exportá-

lo pra bem longe. Com Pinsker, o sionismo ensaia os primeiros passos.

Os atritos no interior da comunidade judaica, porém, não se limitam à realidade criada pelo

desenrolar da situação na Rússia. As violentas perseguições levam milhares de hebreus a migrarem

para a Europa ocidental. Transformados em força de trabalho abundante e disponível, se dirigem

para os países mais desenvolvidos à procura de algo que garanta o seu sustento. No entanto, a sua

vinda inquieta os judeus destas nações que, há décadas, haviam se integrado na sociedade burguesa

e lutavam pela manutenção dos direitos de cidadania.

O fato é que a chegada dos barbudos, incultos e maltrapilhos membros do proletariado

hebreu russo, à procura de trabalho num mercado saturado, poderia oferecer o pretexto para reavivar

o anti-semitismo, nunca efetivamente superado, e reativar o vendaval de hostilidades do qual

haviam sido vítimas no passado. É neste contexto que surge e ganha consistência o movimento

sionista impulsionado pelo intelectual, advogado e jornalista Theodor Herzl”.

- “Bom, diante da situação que você acaba de descrever, deve ter sido fácil para ele viabilizar a

aceitação do Estado Judeu junto à elite hebraica...”, comento para mostrar que estou vislumbrando

as próximas etapas da narração.

Nádia pisca os olhos e espetando o meu ombro com o graveto-muleta solta um

surpreendente: “Não. Por incrível que pareça!”, que me deixa desorientado. E continua: “Pelo que

1 Jaime Pinski, Origens do Nacionalismo Judaico, pg. 109.

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lembro, é em 1894 que Herzl levanta, pela primeira vez, a bandeira do Estado Nacional Judaico. Em

seguida, ele procura alguns membros da elite hebraica da Europa ocidental para transformar seu

sonho em realidade. Mas, apesar de seus esforços, não consegue obter adesões significativas. Nem

mesmo o Barão Hirch, que três anos antes havia fundado a Associação

para a Colonização Judaica com a finalidade de despachar o excedente

do proletariado hebreu da Rússia para a Argentina e a Palestina, se

interessa pelo seu projeto.

Ao perceber as razões do mal-estar dos judeus emancipados das

nações européias, Herzl começa a dialogar com eles. Em fevereiro de

1896, publica a primeira edição de O Estado Judeu na qual escreve: A

questão judaica existe. Seria tolice negá-lo. É um pedaço da idade

média desgarrado em nossos tempos e do qual os povos civilizados,

ainda que com a melhor boa vontade, não podem se desembaraçar.

Apesar de tudo, deram prova de generosidade, emancipando-nos. A

questão judaica persiste onde quer que vivam os judeus em número

apreciável. Onde não existia foi levada pelos imigrantes judeus.

Procuramos, naturalmente, aqueles lugares onde não nos

perseguem e aí, todavia, a perseguição é a conseqüência do nosso

aparecimento. Isto é verdade e permanecerá verdade por toda parte,

mesmo nos países de civilização adiantada – a França é uma prova – por tanto tempo quanto a

questão não for resolvida politicamente. Os judeus pobres levam agora consigo o anti-semitismo à

Inglaterra, depois de já o haverem levado à América.2

Você entende que se a culpa da existência da questão judaica é dos hebreus pobres, já que a

média e alta burguesia deste povo haviam se emancipado com sucesso, a solução só poderia ser a

que Pinsker havia apontado: exportar o problema pra bem longe. Além de ocultar que a presença do

proletariado judaico poderia ser o pretexto, mas não a razão, do anti-semitismo, cujas explicações

deitam raízes no papel da própria burguesia judaica no interior das nações, o texto não deixa

dúvidas quanto ao fato de que a questão religiosa da volta à terra santa não é o motivo inspirador do

sionismo.

Diante dos passos dados por Herzl nesta direção, a elite hebraica rejeita a idéia de criar um

Estado Nacional Judaico alegando que, como cidadãos de diferentes países, seus membros devem

lealdade aos povos que os hospedam. O interesse em defender o status de cidadão leal tem como

base o temor de que a idéia do nacionalismo judaico acrescente a pecha de Traidor da Pátria ao

sentimento anti-semita europeu.

É nesta situação que, em 29 de

agosto de 1897, Herzl funda a Organização

Sionista Mundial como resultado do

Congresso que se desenvolve em Basiléia,

Suíça, e do qual participam entre 200 e 250

delegados de 24 países. Após duras

polêmicas, a Palestina é definida como

morada do povo hebreu e objetivo do

sionismo. Para acalmar os membros da

elite judaica, Herzl garante que um Estado

Judeu na Palestina não iria solicitar que

eles se mudassem para lá, já que eles são

ingleses, franceses, alemães, etc., de fé

mosaica. Além disso, a existência deste Estado facilitaria o seu processo de integração na realidade

européia e americana e acabaria com o problema do proletariado judaico migrante.

2 Jaime Pinski, texto citado, pg. 129.

Theodor Herzl

Foto do Congresso de Basiléia

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Entendido o recado, a burguesia hebraica muda de posição sem perder a chance de reafirmar

suas convicções. É assim que, por exemplo, em setembro de 1897, a Liga dos Judeus Britânicos faz

questão de esclarecer que seus objetivos são:

2. Preservar o status de súditos britânicos que professam a religião judaica;

3. Resistir à alegação de que os judeus constituem-se em nacionalidade política separada;

4. Facilitar o estabelecimento na Palestina dos judeus que desejam fazer dela o seu lar.

E continua: A Liga dos Judeus Britânicos foi fundada para preservar os princípios pelos

quais nossos pais lutaram e pelos quais conseguiram para nós a emancipação e a completa

igualdade de direitos. (...) Os súditos britânicos que professam a religião judaica não têm e não

podem ter nenhuma outra nacionalidade política a não ser a do Império Britânico, que eles

ajudaram a construir e para o qual estão orgulhosos em ter oferecido suas vidas.3

Vencendo as resistências da elite, o movimento sionista começa a crescer. Seu maior

impulso, porém, não vem da atividade de convencimento junto à burguesia hebraica, mas sim da

onda migratória de Leste para Oeste que percorre a Europa após as perseguições promovidas pelo

governo czarista entre 1903 e 1906, bem mais graves e violentas das anteriores”.

- “Nádia, agora fiquei curioso. Como é possível levar milhares de pessoas a migrarem para uma

terra distante? Além do sentimento de insegurança, trata-se de algo que não pode ser feito da noite

para o dia”.

A coruja mexe a cabeça em sinal de afirmação e, após alguns instantes, retoma o relato:

“Você tem razão. É difícil. Mas o que você ainda não conhece são os passos que Herzl daria para

viabilizar sua empreitada. A ação dele se desenvolve em duas frentes simultâneas. A primeira busca

mostrar à pequena burguesia, aos artesãos e aos migrantes desempregados que o retorno à Palestina

prevê uma possibilidade real de ascensão social.

Ao descrever o sonho sionista, ele não titubeia em dizer: Para isto é preciso, antes de tudo,

fazer tabula rasa de muitas idéias antiquadas, passadistas, atrasadas, confusas e estreitas. Assim,

espíritos limitados pretenderão, antes de mais nada, que a migração, saindo da civilização, deverá

dirigir-se ao deserto. Absolutamente! Ela se efetuará em plena civilização. Não desceremos a graus

inferiores; ao contrário, elevar-nos-emos. Não ocuparemos choças de barro e palha, mas belas

casas modernas que poderão ser habitadas sem perigo. Não perderemos os bens adquiridos, mas

os valorizaremos. Cederemos os nossos direitos apenas para outros melhores. Não nos

separaremos de caros hábitos, mas os levaremos juntos. Não abandonaremos a nossa velha casa

antes que a nova esteja acabada. Só partirão aqueles que têm certeza de assim melhorar a sua

sorte. Primeiro os desesperados, depois os pobres, depois os remediados e, por fim, os ricos. Os

que partirem na vanguarda, ascenderão às camadas mais altas que então enviarão os seus

membros. A migração será ao mesmo tempo um movimento de ascensão de classe.4

Com este anseio de ascensão social, em seguida colocado em segundo plano, o movimento

sionista incorpora também as idéias messiânicas e a visão do retorno à terra dos antepassados que se

mantinham vivas ao longo dos séculos. É assim que o ideal abstrato da volta à Jerusalém, celebrado

nos rituais religiosos, adquire vida e impulsiona a realização do sionismo entre as camadas mais

pobres da comunidade judaica.

A segunda frente diz respeito a como conseguir terra para dar início à colonização hebraica.

Nesta época, a Palestina integra o Império Turco (Otomano) e não é terra de ninguém. Por

importantes que fossem, os financiamentos vindos dos magnatas judeus para comprar terrenos dos

proprietários árabes conseguem apenas dar origem a um processo de ocupação vagaroso e

extremamente limitado. No máximo, eles ajudam a abrigar com dificuldade os proletários hebreus

que saem da Rússia direto para a Palestina. Mas, dificilmente, podem sustentar, por si só, a

formação de um Estado Judeu. O jeito, então, é tentar amolecer o coração das grandes potências, ora

3 Idem, pg. 127.

4 Idem, pg 134-135.

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apelando ao seu desejo de expansão colonial, ora aos possíveis benefícios que elas teriam ao

proporcionar uma pátria aos hebreus da diáspora.

De início, Herzl procura o kaiser alemão Guilherme II que não se entusiasma pela idéia. Em

seguida, é a vez do sultão turco Abdul-Hamid ao qual tenta mostrar, sem sucesso, que a chegada de

judeus dedicados ao trabalho e com bons recursos financeiros traria vantagens e bem-estar ao seu

império.

Diante do fracasso, a saída é abrir caminhos em direção à França e à Inglaterra. É neste

sentido que o próprio Herzl escreve: Para a Europa constituiríamos aí um pedaço de fortaleza

contra a Ásia, seríamos a sentinela avançada da civilização contra a barbárie. Ficaríamos como

Estado Neutro, em relação constante com toda a Europa, que deveria garantir a nossa existência. 5

Anos depois, quando a Palestina passa a integrar os domínios da Inglaterra, a perspectiva

sionista de um Estado Judeu protegido por uma grande potência colonial começa a ganhar

consistência. Mas este é um assunto que vou tratar melhor no próximo capítulo que você pode

chamar de...

2. Árabes e judeus na Palestina.

- “Bom, Nádia, ao falar das relações entre os dois povos, gostaria que contasse como é a vida nesta

terra antes da chegada das migrações sionistas. Ao que me consta, são os judeus a trazerem a

civilização para uma região árida e bem pouco povoada”, pergunto para dar mostras dos meus

conhecimentos.

A coruja ouve atentamente o meu pedido. Suspira. Sacode a cabeça e, mancando, começa a

andar de um lado a outro do sofá. Sem cruzar o meu olhar, levanta a ponta da asa para o alto

sinalizando que quer o máximo de atenção para as palavras que está prestes a pronunciar. “Os

humanos são um caso sério. Vivem dizendo que são seres inteligentes e superiores aos demais, mas

têm uma capacidade surpreendente de comprar gato por lebre. Isso acontece porque no lugar de ir

além das aparências estufam o peito com o que todos repetem. Crentes de que já possuem uma

explicação para os acontecimentos, os bípedes da sua espécie não percebem que aceitam como

verdades o que nós corujas sabemos não passar de velhas mentiras”.

Nádia vê que o rubor toma conta do meu rosto. De rabo de olho, acompanha os gestos

silenciosos com os quais o corpo anuncia a retirada estratégica atrás da mesa sobre a qual estão os

papeis com o seu relato. E desenhando círculos no ar com o graveto que, até poucos instantes, lhe

servia de muleta, continua: “Voltando ao nosso assunto, você precisa saber que a palavra de ordem

uma terra sem povo para um povo sem terra, assumida pelos sionistas em 1901, não passa de

propaganda enganosa. E a dizer isso não sou eu, pobre representante do reino das aves, e sim Achad

Há’am, um judeu originário da Ucrânia. Ao narrar suas impressões após uma viagem à Palestina

realizada em 1891-92, ele assinala: Do exterior somos inclinados a acreditar que a Palestina hoje é

um país quase completamente vazio; um deserto onde cada um pode comprar tantas terras quanto

desejar. A realidade é bem outra. É difícil encontrar neste país terras aráveis que não sejam

cultivadas... Não são apenas os camponeses, mas também os grandes proprietários que hesitam em

vender sua boa terra. Numerosos de nossos irmãos vieram aqui para comprar terras e tiveram que

permanecer no país durante meses, percorrendo-o de cima a baixo, sem contudo encontrar o que

procuravam.6

Na época em que Achad faz a sua viagem, a população palestina é de, aproximadamente,

700 mil pessoas, 35% das quais mora nas cidades. Quase inteiramente construídas pelos árabes

palestinos, Jerusalém, Nablus, Nazaré, Acre, Jaffa, Jericó, Ramallah, Hebron e Haifa estão entre os

principais centros da vida urbana onde uma indústria pouco expressiva convive com o artesanato e

intensas atividades comerciais.

5 Idem, pg. 137.

6 Helena Salem, Palestinos os novos judeus, pg. 20.

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A agricultura é, sem dúvida, um setor de fundamental importância para a economia da

região. Na primeira metade do século XIX, a terra pertence aos moradores dos cerca de 500

vilarejos que, mesmo sem poder contar com sistemas de irrigação, cultivam cereais verduras e

frutas, sobretudo na faixa úmida da planura costeira.

As formas de propriedade já existentes se mantêm praticamente inalteradas até pouco depois

de 1850, quando o aumento dos impostos por parte do governo turco provoca um progressivo

empobrecimento dos vilarejos. Pressionados pelas dívidas, os agricultores se vêem obrigados a

venderem seus terrenos aos notáveis da cidade cujas riquezas vêm da cobrança de tributos e das

atividades comerciais com o Ocidente. Mas, como esta elite mora nos grandes centros, ou até

mesmo fora do país, os camponeses acabam ficando na mesma terra na condição de arrendatários.

Com a formação dos pomares de frutas cítricas destinadas ao mercado europeu, o preço dos

terrenos agrícolas aumenta dando a seus distantes proprietários uma boa razão para vendê-los. A

chegada dos migrantes sionistas eleva o número de compradores e, com ele, o valor a ser pago, o

que torna os negócios ainda mais lucrativos. Incentivados pelas boas ofertas, entre 1878 e 1908, os

grandes proprietários cedem aos judeus cerca de 400 dos 27 mil quilômetros quadrados do território

palestino.

Apesar de se instalar numa parte extremamente pequena das terras dos vilarejos, a

colonização sionista começa a alterar as relações amigáveis entre árabes e judeus que existiam antes

de 1882, ano em que chega um bom número de migrantes vindos da Rússia”.

- “Nádia, você poderia dizer de quantas pessoas está falando e o que isso representa para os

camponeses árabes?”, me atrevo a sugerir na tentativa de ganhar tempo para esticar os dedos.

Sem ceder à razão da minha investida, a coruja coloca uma asa atrás das costas e fingindo

não ouvir os estalos, continua: “Os dados que você pede são poucos e imprecisos. Mas alguns

historiadores calculam que, de 1882 a 1914, devem ter entrado na Palestina cerca de 65 mil judeus,

boa parte dos quais se instala nas 44 colônias agrícolas que se formam neste período. Dos relatos

que chegam até nós, sabemos que os colonos sionistas organizam a vida da nova comunidade

judaica sem levar em consideração as regras e os costumes já existentes, numa forma que os árabes

consideram ofensiva.

Mas o que vai minar a relação entre árabes e hebreus é algo bem mais sério. Acontece que,

em geral, quando um território é colonizado por um outro povo, além das riquezas naturais, este

costuma explorar a força de trabalho local. Na Palestina, após um primeiro momento em que os

nativos são empregados nas colônias judaicas ou nas demais atividades dirigidas pelos sionistas,

eles passam a ser progressivamente substituídos pelos hebreus recém-chegados do exterior. É assim

que, caçados das terras onde sempre viveram e tiraram o seu sustento, empobrecidos,

marginalizados e sem ter pra onde ir, aos palestinos não resta outra escolha a não ser a de tentar

garantir a sobrevivência saqueando os assentamentos dos judeus.

De início, os sionistas não apelam para o uso das armas por temer que esta opção faça

precipitar a situação. Mas em setembro de 1907, um grupo de ativistas hebreus funda uma

organização armada e semiclandestina com o objetivo de zelar pela defesa dos assentamentos: a

HaShomer. Seus membros, pagos pelos colonos, passam por um treinamento militar, aprendem a

língua e os costumes dos árabes além de se vestir como eles para melhor realizar as tarefas de

infiltração nos vilarejos.

Paralelamente a isso, alguns intelectuais hebreus buscam promover relações de amizade

entre árabes e judeus. Boa parte deles, porém, não esconde que mantém esta postura com a

preocupação de buscar soluções capazes de garantir um mínimo de convivência pelo menos até que

a presença sionista se torne irreversível.

Em ritmo mais lento, com poucos recursos e sem contar com o apoio da elite que se delicia

com o dinheiro da venda das terras, os palestinos ensaiam as primeiras respostas. Em julho de 1914,

um panfleto anônimo convoca os árabes a defenderem a pátria com unhas e dentes. Ao resgatar as

razões deste apelo prossegue: Tenham piedade de sua terra e não a vendam como mercadoria (...).

Façam pelo menos com que seus filhos herdem o país como vocês o herdaram de seus pais.

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Homens! Quereis acabar como escravos e servos de um povo famigerado no mundo e na

história?Quereis ser escravos dos sionistas vindos para expulsar-nos do nosso país, afirmando que

a eles pertence?7 Marginalizado, o povo começa a trilhar o caminho da resistência”.

- “O que eu ainda não consegui entender é como a Inglaterra apóia o tal lar judeu na Palestina?”,

questiono para retomar um assunto que ficou pendente no final do capítulo anterior.

Nádia coça a cabeça, olha para o alto e segurando o queixo com a ponta da asa fica

pensativa. Depois de alguns “Vejamos..., bem...., sim..., talvez seja melhor ir por aí...” retoma o

relato com a serenidade de um violinista que conhece cada nota da partitura: “Pra começar é bom

lembrar que o império turco governa a Palestina entre 1517 e 1918. Na segunda metade do século

XIX, quando ocorrem as primeiras migrações, o território palestino integra a província da Grande

Síria que incorpora os atuais estados da Síria, Líbano, Jordânia, Israel e, obviamente, a Cisjordânia.

Ao longo da administração otomana, algumas províncias do império manifestam seu

descontentamento em relação ao poder central, mas não chegam a criar um verdadeiro movimento

de independência.

No início do século XX, o império turco perde uma ampla região dos Bálcãs, cede o controle

do Egito e do Canal de Suez à Grã Bretanha e, em 1912, é forçado a entregar a Líbia à Itália. Com a

1ª Guerra Mundial, em 1914, a Turquia sente que pode vir a perder as províncias árabes devido às

novas investidas imperialistas dos exércitos franceses, italianos e britânicos. Sob o impulso das

hostilidades em relação à Rússia e convencido de que a Alemanha sairia vitoriosa do conflito, o

império otomano se alia a ela. Ao mesmo tempo, porém, setores nacionalistas dos atuais estados da

Arábia Saudita, Iêmen, Omã e Emirados Árabes Unidos, cujos territórios vinham gozando de uma

relativa autonomia, vêem a possibilidade de caminhar rumo á sua independência caso a Turquia

venha a ser derrotada.

Ameaçada pelas ambições de França, Rússia, Alemanha e Áustria-Hungria, a Grã Bretanha

teme perder suas posses na África e, sobretudo, o controle do Canal de Suez por onde passam as

rotas comerciais para a Ásia. Neste contexto, pôr as mãos na Palestina, porta de acesso para o Canal

de Suez, passa a ser de importância crucial para o governo de Londres. Mas para dar conta desta

empreitada, o dinheiro e as armas britânicas teriam que alimentar a rebelião árabe nos territórios

controlados pela Turquia. Com uma revolta interna

enfraquecendo o império otomano, obter o controle

da Palestina seria como tirar um doce da boca de

uma criança. Os territórios árabes ficariam

independentes da Turquia e, longe de se constituir

imediatamente em Estados soberanos,

permaneceriam sob a proteção britânica

interessada em viabilizar melhores condições de

acesso às jazidas de petróleo da região.

O problema é que a França, aliada da

Inglaterra no conflito mundial, também está

querendo ampliar seu domínio sobre estas terras. É

assim que, para evitar uma situação desgastante,

em janeiro de 1916, ingleses e franceses assinam

um acordo secreto conhecido pelo nome de Sykes-

Picot. Pelos termos do tratado que leva o nome dos

principais negociadores, uma vez derrotada a

Turquia, os britânicos estenderiam o seu controle sobre Iraque, Palestina e Jordânia, enquanto a

França ficaria com o Líbano e a Síria. Os demais países da península árabe manteriam suas

autonomias ainda que à sombra do império britânico.

7 Benny Morris, Vittime, pg. 89.

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Mas nem tudo funciona de acordo com o previsto. Em 1917, Alemanha e Áustria parecem

estar a ponto de impor uma derrota aos adversários e o movimento insurrecional dos povos árabes é

lento e pouco significativo. A Grã Bretanha, então, não tem outra escolha a não ser a de encontrar

no sionismo um aliado confiável para executar as tarefas que considera indispensáveis. Em

novembro do mesmo ano, o governo de Londres oficializa o seu apoio ao Movimento Sionista

através da Declaração Balfour, do nome do Lorde que havia negociado com a França e os Estados

Unidos a sua viabilização. Nela se expressa que O Governo de Sua Majestade é favorável ao

estabelecimento em Palestina de um lar nacional do povo hebreu e dará o melhor de si para fazer

com que este objetivo seja alcançado, ficando claro que não será dado nenhum passo que venha a

prejudicar os direitos civis e religiosos das comunidades não judaicas da Palestina, ou os direitos e

o status político que os hebreus gozam em qualquer outro país.8 Com esta redação, a Inglaterra trata

de ganhar os judeus sem atiçar a desconfiança dos árabes.

Em terras palestinas a resposta é imediata. O recrutamento no interior da comunidade

judaica garante aos britânicos a formação de três batalhões. Se, de um lado, isso proporciona a força

que faltava, de outro, ao se tornarem soldados e oficiais, os colonos judeus recebem armas e

treinamento bélico, elementos escassos em suas fileiras.

Enquanto isso, a Turquia continua mantendo as duras medidas repressivas implementadas

desde o início do conflito mundial. Em território palestino ela confisca tudo aquilo que pode ser

usado no esforço de guerra. Milhares de árabes são recrutados para integrar as mal-equipadas tropas

otomanas ao mesmo tempo em que o império lança mão da tortura, das prisões arbitrárias e do

exílio para sufocar possíveis focos insurrecionais. Os mais atingidos são os intelectuais e os setores

médios da sociedade, ou seja, aqueles que teriam condições de articular uma força de oposição à

administração turca. Ainda assim, na medida em que a repressão se torna mais pesada e os fatos

evidenciam a possível derrota da Turquia na guerra, um pequeno grupo de palestinos abraça a causa

da rebelião árabe como meio para obter a independência.

Com o fim da primeira guerra mundial, policiais e soldados britânicos marcam presença na

Palestina. As condições de vida dos camponeses árabes pioram e não demoram em reacender as

hostilidades com os judeus. É neste contexto que a Associação Islâmica-Cristã de Jaffa expressa

com palavras duras o antagonismo de interesses que permeia a realidade: Jogaremos os sionistas no

mar, ou serão eles a expulsar-nos para o deserto.9

- “Nádia, confesso que estou assustado. Estas últimas palavras soam como uma verdadeira

declaração de guerra. Mas, será que havia razão para isso?”

A coruja ouve atentamente e, com a ponta das asas na cintura, se prepara para dar uma de

suas sacudidas. “Meu pequeno humano de óculos, você precisa entender que quando os propósitos

de convivência pacífica são negados pelo agravar-se das contradições, não há como esperar dias de

paz. Enquanto não se resolvem as razões que dão origem aos conflitos, estes vão continuar

revelando que os discursos de fraternidade entre os povos não passam de uma miragem que

desaparece na medida em que caminhamos em direção a ela. Se tiver paciência em me ouvir, vai

entender o que acabo de dizer.

Pra início de conversa, você precisa saber que, com a chegada de gordos recursos em libras

esterlinas, os sionistas ampliam a compra de terras daquela elite árabe que vive bem distante delas e

das condições de vida dos camponeses seus arrendatários. Entre 1920 e 1929, a comunidade judaica

dobra o tamanho das áreas destinadas à colonização. Isso significa que a quantidade de agricultores

palestinos privados dos meios de subsistência não pára de aumentar.

Sabendo que isso vai complicar as relações entre os assentamentos e as comunidades árabes,

os sionistas dissolvem a HaShomer e, no início de 1920, criam a Haganah, uma força militar que,

pouco a pouco, ganha consistência e treinamento suficientes para passar da defesa dos

8 Benny Morris, idem, pg. 101.

9 Idem, pg. 120.

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assentamentos judaicos ao ataque dos palestinos. E em 1930-31, alguns oficiais da Haganah criam o

Irgun, um grupo clandestino treinado para realizar ações de represália.

No fim dos anos vinte, a Palestina é atingida por uma seca prolongada que perdura até 1934

reduzindo substancialmente a produção agrícola. Os vilarejos árabes e as pequenas cidades do

interior conhecem um progressivo empobrecimento e uma forte migração dos palestinos rumo a

Jaffa e Haifa cujos arredores se enchem de favelas.

Em 1935, diante da substancial redução dos recursos que vêm do exterior e da necessidade

de dar emprego aos judeus recém-chegados, os sionistas passam a demitir os árabes que trabalham

como assalariados em seus empreendimentos. É nesta situação que o secretário da federação

sindical judaica de Jaffa declara: Pouco importa quantos árabes estejam desempregados, eles não

têm direito a nenhum emprego que poderia ser ocupado por um hebreu. Nenhum árabe pode ter

direito a vagas nas empresas judaicas. E, melhor ainda, se os árabes puderem ser expulsos também

dos demais empregos. 10

O sentimento de revolta palestino aumenta ainda mais em outubro de 1935 quando se

descobre que um suposto carregamento de cimento destinado a um importador judeu é composto de

800 fuzis e 400 mil projeteis. Some a isso o sucesso da revolta contra o domínio inglês na cidade do

Cairo, no Egito, e não terá nenhuma dificuldade em entender o acirrar-se da insatisfação e do

radicalismo árabes.

Suas primeiras manifestações ganham corpo em 25 de novembro de 1935 quando as

organizações políticas palestinas enviam um protesto ao Alto Comissariado britânico reivindicando

o fim da imigração e da venda de terras aos hebreus, além da instalação de um governo democrático

que seja expressão da maioria árabe. Na tentativa de contornar a situação, os ingleses tentam montar

um Conselho Legislativo no qual Londres se reserva o direito a dizer a última palavra”.

- “Isso parece mais uma provocação do que uma tentativa de acordo pacífico...”, sugiro ao

vislumbrar assustado o desenrolar dos novos acontecimentos.

De pé, apoiada no graveto que lhe serve de muleta, Nádia atende solene à minha inquietação.

“É verdade. A saída encontrada pelos britânicos só é boa para eles mesmos. E ainda que por razões

diferentes, tanto os palestinos quanto os sionistas acabam rejeitando-a e suspendendo as

improdutivas negociações que se arrastam até abril de 1936 quando uma greve geral marca o início

da primeira rebelião palestina.

Impulsionado por jovens nacionalistas, o movimento é organizado e dirigido pelo Alto

Comitê árabe composto de 8 membros representantes das principais facções políticas locais. Suas

reivindicações centrais são o fim da imigração e da compra de terras por parte dos sionistas e a

implantação de uma assembléia legislativa eleita pelo povo. A greve tem uma adesão limitada, mas

consegue provocar escassez de produtos agrícolas na cidade e atrasos na construção civil onde os

palestinos constituem a maior parte da força de trabalho. Ao mesmo tempo, grupos árabes atacam as

hortas e os pomares dos assentamentos judaicos derrubando árvores frutíferas e causando sérios

prejuízos.

A administração britânica na Palestina percebe logo que seus dois batalhões de infantaria e

as forças policiais não conseguem conter os ataques dos rebeldes, cada vez mais freqüentes e

imprevisíveis. Diante do agravar-se da situação, Londres envia cerca de 20 mil soldados para a

região, recruta 2 mil e 700 policiais hebreus e distribui farto armamento aos colonos judeus.

Os sionistas sabem que as razões da insatisfação árabe convergem para a disputa de uma

terra onde não há lugar para os dois povos. Nas primeiras semanas, procuram garantir apenas a

defesa dos assentamentos por temer que eventuais ações de represália possam ampliar a extensão do

conflito. E com a chegada dos contingentes britânicos, deixam a eles a tarefa de assumir o ônus de

esmagar a resistência dos rebeldes.

Na metade de maio, as tropas impõem o toque de recolher, invadem repentinamente bairros

e residências palestinas, realizam emboscadas e ações de patrulhamento contando com o apoio dos

10

Idem, pg. 159.

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sionistas. Encurralados pela repressão, os militantes árabes se refugiam nos vilarejos mais distantes.

Neles a adesão ao movimento não é imediata. O fato de a rebelião ocorrer nas semanas que

antecedem a colheita, o receio de enfrentar as tropas britânicas e o esvaziamento dos vilarejos em

função das migrações internas rumo aos principais centros do país são elementos que, inicialmente,

freiam o envolvimento dos camponeses palestinos.

Mas, em agosto de 1936, boa parte das regiões rurais se rebela. O repúdio à dominação

estrangeira, a aversão e o medo em relação aos sionistas que ameaçam sua sobrevivência fazem com

que até mesmo as tradicionais rivalidades entre os clãs sejam deixadas de lado. Além de atacar

postos policiais e assentamentos, grupos guerrilheiros levam adiante ações de sabotagem contra

linhas telefônicas, pontes e ferrovias.

Em resposta, a administração britânica passa de medidas de contenção da revolta a

verdadeiras ações de contra-insurreição. As casas dos camponeses palestinos, acusados de dar

abrigo aos rebeldes, são derrubadas e seus pertences confiscados ou destruídos. Vilarejos inteiros

são arrasados e uma violenta repressão se abate sobre todos os suspeitos de integrar o movimento.

Nestas condições, o prolongar-se da luta esgota rapidamente os poucos recursos dos

militantes e a perspectiva da derrota leva o Alto Comando árabe a abrir negociações com os

britânicos. Ao mesmo tempo, os governos autônomos da Arábia, Iraque, Iêmen e Jordânia

pressionam os palestinos a pôr fim à greve e às ações guerrilheiras. Isolados, sem recursos e com as

tropas britânicas prontas para desfechar o ataque definitivo, não resta aos rebeldes outra saída a não

ser a de suspender a luta.

Os britânicos restabelecem a ordem e garantem a continuidade da imigração judaica. Em

novembro de 1936, a Comissão Peel, do nome do seu presidente Lorde William Robert Peel,

começa os trabalhos de avaliação dos acontecimentos e apresentação de possíveis soluções.

O relatório final, em julho de 1937, não surpreende quem conhece o desenrolar das relações

entre a Grã Bretanha e o movimento sionista. Depois de puxar as orelhas dos administradores locais

pela fraqueza demonstrada na hora de encarar o início da revolta, recomenda a divisão da Palestina

em dois territórios. Aos judeus seria destinado pouco menos de um quinto do país. A Grã Bretanha

manteria o controle sobre Jerusalém, Belém, Haifa e outras três cidades menores. Os palestinos

ficariam com o deserto do Negev, a Faixa de Gaza e a atual Cisjordânia. Juntos, estes três territórios

formariam com a Jordânia um estado árabe independente.

A Comissão recomenda ainda que haja uma troca de população pela qual 225 mil palestinos

sairiam da área destinada aos judeus, enquanto mil 250 hebreus em terras árabes fariam a mesma

coisa. A razão que justifica esta medida é muito simples: sem a transferência, o estado sionista teria

uma população árabe quatro vezes maior do que a judaica, e isso representaria uma ameaça

constante à tranqüilidade da ordem interna. Os sionistas que haviam sugerido a exportação da

Europa dos hebreus pobres como forma de resolver o problema das perseguições, agora encontram

no governo de Londres um aliado de peso para defender a mesma medida em relação aos palestinos,

legítimos moradores daquelas terras”.

- “Nádia, agora fiquei curioso. Como é que as partes envolvidas no enfrentamento reagem ao

relatório da Comissão Peel?”, pergunto na tentativa de apressar o relato.

A coruja sorri. E depois de um “Você não consegue mesmo imaginar as reações?”, que deixa

no ar uma mistura de ironia e suspense, começa a dar a resposta. “Os judeus, obviamente, não têm

outra coisa a fazer a não ser comemorar um resultado tão favorável aos seus projetos. Numa carta ao

filho, Ben Gurion, um dos líderes mais importantes e respeitados da comunidade judaica, escreve:

Um Estado hebreu numa parte da Palestina não é o ponto de chegada, mas sim de partida. A posse

de uma região seria importante não só pelo que representa, mas ela nos tornaria mais fortes, e

tudo aquilo que nos fortalece é destinado a facilitar a conquista do país inteiro. Fundar um

[pequeno] Estado será como fornecer uma alavanca à nossa histórica tentativa de resgatar toda a

região.11

11

Idem, pg. 179-180.

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18

Do outro lado, em julho de 1937, o Alto Comitê árabe rechaça categoricamente o relatório

da Comissão Peel, cujas conclusões entregam aos hebreus as melhores terras e 87% dos pomares

palestinos. Em outras palavras, além de condenar a população árabe a um nível de vida bem

inferior, a posição britânica possibilita as condições materiais para ampliar a chegada dos migrantes

judeus e, de conseqüência, as futuras lutas de conquista do território. Mescle isso ao fato dos

palestinos se sentirem legítimos habitantes de uma terra que sua religião considera sagrada e o

resultado é que, em 14 de outubro do mesmo ano, a revolta árabe explode mais uma vez.

Além dos assentamentos judaicos, policiais e soldados britânicos se tornam alvo dos grupos

guerrilheiros que atingem, inclusive, as residências dos árabes que se opõem ao movimento. Os

enfrentamentos se intensificam em 1938 e se encerram definitivamente em setembro de 1939”.

- “Ao longo deste período de quase dois anos, qual é o comportamento dos grupos armados

judaicos?”.

- “Parte deles se dedica ao mais puro terrorismo”, responde a coruja com voz seca e firme.

- “Mas, Nádia, será que você não está se enganando? Desde que me conheço por gente, eu sempre

ouvi dizer que atentado terrorista é coisa de palestino...”, murmuro perplexo e de queixo caído pela

resposta inesperada.

A coruja sacode a cabeça. Em seguida, senta no sofá e com a calma de quem se prepara para

contar uma história que espera seja ouvida e entendida, aponta o graveto-muleta em minha direção.

Depois de um “Preste muita atenção ao que vou dizer” que cutuca os neurônios mais preguiçosos,

Nádia pisca os olhos e acrescenta: “Quem não conhece a história cai facilmente nas armadilhas dos

poderosos que levam a associar o termo palestino ao de terrorista. Eles fazem isso para que, ao

desqualificar toda forma de luta e de resistência deste povo, sejam esquecidas as razões históricas

que lhe dão origem. A reconstrução dos acontecimentos mostra que o terrorismo, no verdadeiro

sentido da palavra, é assumido pelos judeus como forma de enfrentamento bem antes de se tornar

uma arma nas mãos dos palestinos.

Entre 1937 e 1938, grupos do Irgun se encarregam de semear o terror entre a população

árabe. O primeiro atentado ocorre em 11 de novembro de 1937 num posto rodoviário de Jerusalém:

dois palestinos são mortos e outros cinco feridos. Três dias depois, bombas explodem

simultaneamente em várias regiões rurais. O Irgun passa a comemorar o 14 de novembro como o

dia do fim da abstinência da violência.

As ações se sucedem. Em 6 de julho de 1938, um militante deste grupo judaico detona

grandes quantidades de explosivo num mercado árabe de Haifa. Resultado: 21 mortos e 52 feridos,

todos palestinos. Passados nove dias, outro atentado mata 10 árabes e fere mais de 30 na cidade

velha de Jerusalém. Em 25 de julho, o mercado de Haifa é novamente sacudido por uma explosão.

Desta vez, o saldo é de 39 palestinos mortos e mais de 70 feridos. Estes que acabo de listar são os

resultados das principais ações terroristas do Irgun. Houve outras que foram menores, mas não

menos eficientes na tarefa de espalhar o terror entre a população árabe.

Neste contexto, a Haganah muda de papel. Além da defesa dos assentamentos, passa a

realizar patrulhamentos e ataques preventivos. No início de 1939, por ordem de Ben Gurion, é

criada uma unidade secreta de operações especiais para executar represálias contra vilarejos e

militantes árabes, eliminar informantes e atacar instalações britânicas com o intuito de desencadear

a repressão contra alvos palestinos. Quem desempenha um papel importante nesta transição da

Haganah da autodefesa a uma postura agressiva é o jovem oficial escocês Charles Orde Wingate, da

Quinta Divisão britânica.

Além do corpo de operações especiais, em junho de 1938, mais de 60 soldados ingleses e

uma centena de hebreus formam os Esquadrões Especiais Noturnos. De acordo com o próprio

Wingate, eles são parte de um plano mais amplo para espalhar o terror entre os palestinos: Os

árabes acham que a noite é deles porque durante a noite a polícia e as tropas britânicas se fecham

nos quartéis, mas nós hebreus [sic] lhes mostraremos que podemos acabar com seus planos. Não

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desistiremos até que tiverem medo da noite assim como agora eles têm do dia.12

No primeiro mês

de atividade, os Esquadrões interceptam e matam mais de 60 árabes, parte dos quais em ações de

represália contra os vilarejos usados como bases de operação dos rebeldes palestinos. Terminada a

rebelião, a estratégia e razão de ser destes grupos são incorporadas por destacamentos da Haganah.

É também nesta época que os judeus aprimoram seus serviços de inteligência que se ocupam

tanto de questões políticas como militares. Seus membros são recrutados entre comerciantes,

agricultores, carteiros, entregadores, encanadores, garçons, pastores, policiais e vendedores de gado.

Trata-se de pessoas que entram em contato com um grande número de cidadãos e que, por sua vez,

arregimentam outros informantes, muitos dos quais são árabes atraídos pelas recompensas em

dinheiro ou pela possibilidade de prejudicar o clã adversário.

O clima de terror é alimentado também pelas tropas britânicas que, sem fazer cerimônias,

destroem casas, pomares e vinhedos das famílias suspeitas de protegerem os rebeldes. Se isso não

bastasse, entre 1937 e 1939, são enforcados mais de cem árabes e não são poucos os palestinos que

acabam amarrados nas locomotivas como escudo humano contra possíveis ataques. Se isso não

bastasse, imitando o que Hitler faz com os hebreus na Alemanha, a população árabe é obrigada a

usar sinais de identificação e seus deslocamentos são controlados com rigor. Além disso, os

britânicos limitam as exportações palestinas de frutas cítricas para impedir que parte dos recursos

seja usada no financiamento da guerrilha.

O saldo de mortos entre o início de 1938 e setembro de 1939, quando se encerra a rebelião,

revela o peso da aliança anglo-judaica em relação às forças rebeldes. Ao todo são 114 britânicos,

349 hebreus e cerca de mil e 500 árabes.

Com os principais líderes mortos, presos ou no exílio, com os suprimentos cortados, com

centenas de simpatizantes e militantes assassinados e com o apoio popular destruído pelo terror, a

rebelião não tem como se sustentar”.

- “Confesso que agora estou meio atordoado. Você se importaria de delinear o desenrolar desta

chuva de acontecimentos?”, peço na tentativa de vislumbrar os passos que as forças em jogo estão

prestes a dar para garantir seus interesses na região.

Animada pela pergunta inesperada, a coruja se apóia no graveto com uma asa enquanto com

a outra usa o encosto do sofá para se levantar. De pé, com o olhar atento do capitão que acompanha

cada momento da navegação, Nádia se prepara para alinhavar as conclusões que, como sempre,

devem ser também o ponto de partida da próxima etapa desta viagem pela história da questão

palestina. Ajeitadas as plumas do peito, com voz solene, solta um “Muito bem, vejamos” que

sinaliza o início do relato. “Em primeiro lugar, é necessário dizer que, já em 1938, a Grã Bretanha

volta atrás quanto à divisão da Palestina. Apesar de reapresentá-la como solução para o conflito no

relatório da Comissão Woodhead, criada para examinar esta questão, o império sabe que suas

conclusões não têm a menor possibilidade de serem aplicadas e, por isso, não se esforça para

viabilizá-las.

Acontece que diante das ameaças de uma nova guerra mundial, o Oriente Médio, rico em

petróleo, ponto de passagem das rotas comerciais para a Ásia e sede de importantes bases militares

britânicas, é uma área estrategicamente crucial para o governo de Londres que vê a necessidade de

trabalhar para não alimentar os conflitos existentes. Neste contexto, a situação da Palestina

preocupa na medida em que pode atrair sobre o império britânico a inimizade de dezenas de milhões

de árabes e de centenas de milhões de muçulmanos. E a nível econômico e militar os povos árabes

pesam muito mais do que a comunidade judaica e seus aliados internacionais. Apoiar os hebreus

significa correr o risco de atiçar o sentimento antiimperialista árabe e empurrá-lo para uma possível

aliança com as forças de Hitler e Mussolini. Isso quando aos sionistas não resta outra opção a não

ser a de permanecer do lado da Grã Bretanha.

Mas, ao agir desta forma, Londres acaba alimentando tanto a desconfiança dos palestinos

como dos judeus.

12

Idem, pg. 192.

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20

E não é pra menos. Diante das pressões pelo fim da imigração e da venda das terras, a

administração britânica aceita limitar a 80 mil o número de hebreus que podem entrar na Palestina

nos dez anos seguintes, estabelece regras para reduzir a compra de terras e propõe a criação de um

Estado palestino independente cuja implantação se daria no prazo de uma década.

Estas medidas, além de não satisfazer a comunidade árabe, elevam o descontentamento dos

sionistas para os quais a Grã Bretanha parece decidida a abandonar a Declaração Balfour e a ceder

às pressões locais justo no momento em que os hebreus da Europa começam a sofrer a perseguição

nazista. É assim que, semanas depois, os protestos dos judeus conseguem garantir a entrada de 75

mil migrantes num prazo de 5 anos (isso sem contar os que chegariam clandestinamente com

Londres fazendo vista grossa na tentativa de evitar atritos com os sionistas). Quanto às compras de

terras, se nos anos da rebelião palestina haviam nascido cerca de 36 novos assentamentos, não seria

agora que o império iria pôr fim a esta realidade.

Graças ao trabalho de fortalecimento da infra-estrutura e aos recursos vindos do exterior, a

economia judaica na Palestina se desenvolve. Além de conseguir ampliar a produção dos

assentamentos, os hebreus montam oficinas especializadas na blindagem de veículos e empresas

para a produção de material bélico. Podendo contar com uma estrutura própria de suprimentos, a

Haganah cresce e se fortalece.

Do lado árabe, a repressão anglo-judaica e as lutas internas haviam destruído centenas de

casas, plantios e pomares. Entre civis e rebeldes estima-se que os dois momentos de revolta tenham

custado entre 3 e 6 mil mortos enquanto pelo menos outros 6 mil palestinos haviam sido presos.

Com a economia destruída, a miséria e o desemprego aumentando a olhos vistos, com a maior parte

de suas lideranças na cadeia, mortas ou no exílio, a possibilidade de rearticular imediatamente uma

resistência à altura das necessidades é, praticamente, nula.

O início da segunda guerra mundial traz novos ingredientes que elevam o grau de hostilidade

entre árabes e judeus e deterioram o controle do império britânico sobre a Palestina. Sabendo que

vêm mais coisas, é bom você tomar um café enquanto me preparo para falar do período que vai de

1939 a 1949, ou seja...

3. Da segunda guerra mundial ao primeiro conflito árabe-israelense.

Renovadas as energias, o corpo se aproxima vagarosamente da mesa sobre a qual Nádia

espera impaciente a sua volta. Sem desgrudar o olhar do relógio de parede, a coruja bate

repetidamente o graveto-muleta no livro debaixo de suas patas na que parece ser uma frenética

cronometragem da sua ausência. E dirigindo a ponta da asa para a cadeira vazia expressa toda a sua

ansiedade: “Vinte e três minutos e quarenta e oito segundos para esquentar meio litro d’água, coar o

café e tomar dois dedos de líquido quente misturado com um pingo de leite frio! Francamente! Este

não é um intervalo, e sim um monumento à preguiça!”.

- “Mas, Nádia...”

- “Nada de mas, porém, tente entender ou outras solenes introduções para desculpas esfarrapadas. Já

conheço todas e você bem sabe que não adianta apelar a elas para justificar esta demora”, diz a

coruja para apressar a minha volta.

Ao ver que a mão já segura descansada o instrumento de trabalho, a ave pisca os olhos e

aponta a muleta para a caneta parada no início da folha. Limpada a garganta com um sonoro “Hem!

Hem!”, a voz pausada revela que, apesar do atraso, Nádia não perdeu o fio da meada: “Escreva:

como a Grã Bretanha havia previsto, a comunidade judaica não hesita em declarar o seu apoio ao

governo de Londres logo no início da segunda guerra mundial. Com este gesto, os sionistas esperam

que sua lealdade seja compensada com o fim dos limites à imigração e com a defesa aberta da

necessidade de criar um Estado judaico na Palestina.

Para os árabes, a escolha é mais difícil. Os britânicos controlam o Oriente Médio e têm

fortes contingentes armados no Egito, Iraque e Palestina. Neste contexto, uma atitude abertamente

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hostil significaria correr o risco de reviver a dura repressão sofrida ao longo da revolta recém-

esmagada pelas forças anglo-judaicas. Do ponto de vista emotivo, o desejo de vingança levaria a

apoiar a Alemanha e seus aliados, mesmo porque Hitler promete garantir a independência dos países

árabes no amanhã da derrota do exército inglês.

Ao mesmo tempo, porém, a política de discriminação racial do nazismo assusta e ofende os

povos do Oriente Médio. Entre as expressões que retratam este clima de indefinição está a anotação

que Khalil Sakakini faz em seu diário na metade de 1941, ao dizer que os palestinos festejaram

quando o enclave britânico de Tobruk se rendeu aos alemães. E não foram só os palestinos a

festejar, mas o inteiro mundo árabe, tanto no Egito, como na Palestina, Síria, Líbano e Iraque, e

não porque ame os alemães, mas sim porque não suporta os ingleses por causa de sua política na

Palestina.13

A eclosão da segunda guerra mundial vai congelar o enfrentamento entre ingleses, judeus e

palestinos”.

- “Bom, acredito que, por parte dos hebreus, isso se deve também às preocupações humanitárias

com as vítimas do holocausto”, me atrevo a sugerir na tentativa de esclarecer esta questão.

Nádia pára. Imóvel sobre a pilha de livros parece reunir os elementos que respondem à

minha indagação. Depois de breves instantes de silêncio, a ave abre um sorriso desconcertante.

“Você fala em preocupações humanitárias como se estas constituíssem a nova razão de ser do

sionismo. Pois fique sabendo que, diante da perseguição dos hebreus nos campos de extermínio, a

reação inicial da comunidade judaica na Palestina é permeada pela avaliação dos possíveis efeitos

negativos sobre o projeto sionista.

Em dezembro de 1938, dois anos antes do holocausto, Ben Gurion observa: Se soubesse que

posso salvar todas as crianças [dos hebreus] alemães transferindo-as para a Inglaterra, ou somente

metade delas levando-as para a comunidade de Israel, escolheria salvar a metade porque o cálculo

não pode limitar-se àquelas crianças, mas sim deve incluir o destino histórico de todo o povo

hebreu.

Quatro anos depois, quando o holocausto já é uma realidade, o mesmo Ben Gurion declara:

A catástrofe dos hebreus europeus não é uma questão que me diz respeito de forma direta. E, ainda:

A destruição dos hebreus europeus é o dobrar dos sinos que anunciam a morte do sionismo.14

Trocado em miúdos, isso significa que o projeto de construir o Estado judaico na Palestina

está acima de tudo, orientando as ações e as preocupações da comunidade hebraica local. De fato,

sem um fluxo migratório constante, a concentração de judeus em território palestino não atinge um

nível suficientemente elevado para justificar o seu reconhecimento como Estado independente. É

por isso que, com o início da guerra, a organização de uma rede para a imigração clandestina torna-

se uma prioridade. Para os judeus é imprescindível desafiar abertamente as limitações impostas pelo

governo de Londres que, preocupado em não alimentar reações adversas dos povos árabes, toma

algumas medidas para deportar parte dos judeus que entram ilegalmente em território palestino.

Para forçar o império a abrir mão das restrições, em novembro de 1940, a Haganah detona

um velho navio ancorado no porto de Haifa com 1700 imigrantes clandestinos à espera de sua

deportação. Mas o que devia soar como um ato de protesto se transforma em tragédia. A quantidade

excessiva de explosivo utilizada na ação acaba matando 252 hebreus.

As ações de “convencimento” não param por aí. Um mês depois, um grupo de operações

especiais da Haganah coloca uma bomba no Centro de Imigração de Haifa, enquanto grupos

semiclandestinos se preparam para garantir o aumento do fluxo de imigrantes.

Ainda assim, não são muitos os judeus que conseguem escapar da repressão nazista.

Calcula-se que, de 1939 a 1945, cerca de 92 mil conseguem entrar na Palestina. Menos da metade

dos 217 mil que aí chegam para construir o seu lar entre 1932 e 1938.

13

Idem, pg. 208. 14

Idem, pg. 209.

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Com as notícias do holocausto se espalhando pelo mundo, a Grã Bretanha teme ser acusada

publicamente de agir contra o respeito à pessoa humana e, pouco a pouco, começa a fazer vista

grossa diante das imigrações clandestinas.

Paralelamente a isso, os próprios Estados Unidos começam a simpatizar cada vez mais com

a idéia de garantir um refúgio aos hebreus perseguidos. Aproveitando a fragilidade do governo de

Londres, Tio Sam ensaia as primeiras paqueras com a comunidade judaica na Palestina”.

- “Então, pelo que acaba de dizer, de agora em diante, a relação entre sionistas e britânicos só vai

conhecer momentos de tensão?”, questiono sorrindo na certeza de pegar a coruja em aberta

contradição com o esfriamento do conflito entre judeus, ingleses e palestinos que ela apontava no

início do capítulo.

Nádia sacode a cabeça e percebendo as minhas intenções desce dos livros, se aproxima e

apoiando a asa no meu ombro diz: “O fato dos humanos darem uma de espertinhos apenas denuncia

sua vontade de usar a ironia para ocultar a falta de conhecimento. No mundo das corujas as coisas

não são assim. A nossa tarefa é a de desvendar a realidade, constantemente ambígua e contraditória,

que está sob os nossos olhos. Por isso, limpe seu veneno, ajeite os óculos e abra os ouvidos para

entender direitinho cada elemento desta história tão complexa”.

De cabeça baixa, tento amenizar a dor do tiro que saiu pela culatra evitando o olhar de

Nádia, fixo no rubor que pinta o meu rosto.

- “Bom, onde é que eu estava?”, pergunta a coruja com jeito de quem sabe que acertou no alvo.

“Ah! Sim. Na relação entre os sionistas e o governo britânico. Você precisa saber que se, de um

lado, há atritos quanto à questão da imigração, de outro a comunidade hebraica pressiona a Grã

Bretanha para que ela organize e treine um exército de judeus da Palestina.

Você não pode esquecer que outro elemento capaz de garantir a existência de um futuro

Estado independente é a organização de um contingente de forças armadas capazes de assegurar

tanto a defesa como sua possível expansão.

A idéia de criar um exército de judeus conta com o apoio do primeiro ministro inglês

Winston Churchill que, em outubro de 1939, propõe o recrutamento de milhares de hebreus da

Palestina com a finalidade de manter a ordem na região e transferir parte das tropas britânicas para

os campos de batalha da Europa.

As resistências iniciais, fruto dos protestos árabes, são vencidas pelo avanço das tropas

alemãs e italianas que, em 1940-41, estão a um passo de conquistar o Egito. Até o fim do conflito, a

Grã Bretanha vai alistar, treinar e armar de 25 a 28 mil judeus, além de alguns milhares deles como

policiais destinados a serviços especiais.

Aproveitando-se da situação, a Haganah compra ou subtrai muito material bélico dos

arsenais britânicos do Egito e da Palestina. Com a ajuda dos ingleses, cria as Palmah, companhias

de assalto integradas por cerca de 2 mil soldados de elite. Ao terminar a guerra, suas fileiras contam

com cerca de 36 mil homens fortemente armados, um verdadeiro exército.

Aos palestinos o conflito mundial traz poucas mudanças. A situação econômica conhece

alguma melhora em função dos gastos e dos investimentos dos aliados, mas, nada muda do ponto de

vista militar e político. Os cerca de 5 mil combatentes que se unem às tropas anglo-americanas

representam bem pouco diante do contingente judaico treinado e armado por Londres”.

- “Sabendo que diferenças de tratamento tão evidentes alimentam a desconfiança da parte mais

prejudicada, como é que a Grã Bretanha consegue manter o controle da região?”

- “Para entender o desenrolar das relações do império inglês com os países do Oriente Médio, é

necessário levar em consideração alguns dos principais acontecimentos que marcam o conflito

mundial.

No segundo semestre de 1942, a Alemanha é derrotada pelas tropas britânicas no norte da

África ao mesmo tempo em que os soviéticos lhe impõem severas perdas em Stalingrado e no

Cáucaso. Tirada a Hitler qualquer possibilidade de almejar o controle dos povos árabes, Londres

começa a agir para agradá-los na tentativa de evitar que sua hegemonia seja substituída pela dos

Estados Unidos e da União Soviética.

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Paralelamente a isso, o extermínio dos hebreus nos campos de concentração nazistas cria

centenas de milhares de refugiados. Os países ocidentais e os EUA se recusam a aceitá-los. Esta

atitude fortalece a pressão sionista para que eles migrem para a Palestina e, com ela, a opinião

pública internacional, horrorizada diante do holocausto, começa a ser marcada pela necessidade de

criar um Estado para os judeus em território árabe.

Para obter alguma concessão, os palestinos teriam que aprimorar sua organização política e

social, mas, com os principais dirigentes no exílio, o ritmo das atividades não está à altura das

necessidades.

É neste contexto que a Grã Bretanha decide incentivar a unidade dos povos árabes como

forma de tentar garantir o seu apoio. De 25 de setembro a 7 de outubro de 1944, delegados de sete

países se reúnem em Alexandria, Egito, para fundar a Liga Árabe. Os palestinos conseguem enviar

um observador ao qual, em seguida, é reconhecido o status de delegado.

Nos documentos finais do encontro há uma parte que reza: qualquer violação dos direitos

dos árabes [da Palestina] prejudicaria a estabilidade e a paz do inteiro mundo árabe. Os Estados

da Liga declaram não estar depois de ninguém em lastimar os sofrimentos impostos aos hebreus

europeus. (...) Mas o problema daqueles hebreus não deve ser confundido com o sionismo, porque

não poderia ter injustiça e violência pior do que resolver o problema dos hebreus europeus (...)

cometendo uma injustiça em relação aos árabes da Palestina.15

Os Estados da Liga Árabe apóiam as principais reivindicações dos palestinos, mas se

reservam o direito de decidir quem deve representá-los nas reuniões da Liga até eles serem

independentes. Em outras palavras, as decisões em relação ao avanço sionista seriam tomadas no

Egito e não na Palestina.

Enquanto isso, na Conferência de Yalta, em fevereiro de 1945, Roosevelt, presidente dos

Estados Unidos, declara que ele mesmo se sente sionista. Um mês depois, na tentativa de não atrair

a desconfiança da Liga Árabe, declara que não aprovará nenhuma iniciativa que possa prejudicar os

povos que ela representa. O jogo pela disputa da hegemonia sobre a região acaba de dar mais um

passo.

O fim da segunda guerra mundial anuncia a retomada das lutas pela independência em

território palestino. Os sionistas retiram sua solidariedade à Grã Bretanha, que tenta se equilibrar

entre árabes e judeus, e pressionam para aumentar os fluxos migratórios”.

- “Não sei dizer porque, mas isso me cheira mal...”, digo pressentindo o teor dos próximos

acontecimentos.

- “Põe mal nisso!”, responde Nádia em tom nada animador. “Com o cessar das hostilidades na

Europa, as tensões na Palestina aumentam a olhos vistos. Entre maio e junho de 1945, a revolta da

comunidade hebraica contra a política britânica de conter as imigrações está prestes a explodir.

Grupos armados judaicos inauguram uma série de atentados contra postos policiais, linhas

telefônicas, pontes, estradas atingindo até mesmo o oleoduto da Companhia de Petróleo do Iraque,

controlada pelo governo de Londres. No começo de outubro, a Haganah lança o Movimento da

Rebelião Hebraica e, na noite do dia 9, comandos da Palmah atacam o campo de Atlit, libertando os

208 judeus imigrantes ilegais aí confinados. Em novembro, membros desta mesma força de elite

sabotam as ferrovias palestinas em 153 localidades.

Os britânicos ensaiam uma reação. Penetram em alguns assentamentos judaicos acusados de

esconderem os soldados da Haganah e abrem fogo matando 9 civis e ferindo outros 63. A

hostilidade sionista em relação a Londres aumenta. Em 17 de junho de 1946, onze pontes que ligam

a Palestina à Jordânia, Síria, Líbano e Egito explodem simultaneamente.

Apesar do acirrar-se das hostilidades, a imigração clandestina não pára. Calcula-se que, entre

agosto de 1945 e maio de 1947 chegam ao território palestino cerca de 71 mil hebreus.

Diante desta situação, os árabes não demoram em manifestar seu descontentamento. Em 2 de

novembro de 1945, aniversário da Declaração Balfour, manifestações anti-sionistas ocorrem no

15

Idem, pg. 221.

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Egito, Líbano, Síria e Iraque. Em Alexandria, o povo saqueia lojas, casas e sinagogas dos hebreus.

Na Líbia, governada pelos britânicos, uma centena de judeus é massacrada.

Presa entre o prego e o martelo, Londres vive um dilema: aceitar a entrada em massa dos

judeus significa acirrar e estender a revolta árabe a outros países do Oriente Médio. Recusar-se a

fazer isso, implica em sofrer o aumento da pressão judaica e empurrar os sionistas para os braços

dos Estados Unidos, cuja posição é clara: garantir a imigração imediata de 100 mil hebreus, pôr fim

às restrições sobre a compra de terras, apoiar a divisão do país e a criação de um Estado judaico.

Para ganhar tempo e tentar esfriar os ânimos, a Grã Bretanha cria uma comissão para avaliar

o destino dos hebreus refugiados, desta vez com a participação de representantes dos EUA. A

Haganah decide dar uma trégua.

Instruídos pela Agência de Emprego Hebraica e por membros da própria Haganah, os judeus

dos campos de refugiados da Polônia expressam à comissão o desejo unânime de migrar para a

Palestina. Diante deste pedido e do persistir do anti-semitismo naquele país, o relatório final,

apresentado em 1º de maio de 1946, sublinha a necessidade de apressar ao máximo a livre entrada

na Palestina dos sobreviventes do holocausto. Além disso, descarta a divisão do país e sugere a

criação de um Estado único com duas nacionalidades. A administração britânica permaneceria na

região, mas, por sua vez, estaria submetida à Organização das Nações Unidas.

Frente a estas conclusões, o governo de Londres propõe excluir a imigração em massa até

que as milícias e as comunidades judaicas sejam desarmadas, pois, sem esta medida, seria

impossível enfrentar ao mesmo tempo a inimizade de hebreus e palestinos.

Estes últimos rejeitam as conclusões da comissão e promovem protestos e manifestações em

vários países. A Liga Árabe promete recursos e armamentos à resistência palestina.

Os hebreus, que esperavam algo mais, apóiam timidamente as conclusões do relatório e, em

junho, retomam os ataques a alvos britânicos. No mês seguinte, os corpos de elite da Haganah

promovem uma série de atentados terroristas. O mais grave atinge uma ala do Hotel King David, em

Jerusalém, que hospeda o quartel geral militar e administrativo da Grã Bretanha. A explosão deixa

um saldo de 91 mortos.

Diante do agravar-se da tensão e de seu desgaste na região, em 14 de fevereiro de 1947, o

governo de Londres decide afastar-se da Palestina e deixar às Nações Unidas a tarefa de dar uma

solução para o caso”.

- “Pelo visto, trata-se de um belo abacaxi...”, comento espontaneamente ao perceber o avolumar-se

de contradições e acontecimentos que agravam a tensão na região.

Em silêncio e de olhos fechados, Nádia balança a cabeça para confirmar a constatação que os

lábios acabam de emitir. Um longo suspiro parece anunciar que este é só o começo das dores. E

recostando o corpo numa das pilhas de livros, a coruja se prepara para retomar o seu relato. Em voz

baixa e compenetrada, introduz o que aparenta ser mais um complicador desta intricada história:

“Incumbida da tarefa de encontrar uma saída, a ONU cria uma comissão especial que, em 1º de

setembro de 1947, recomenda, por voto majoritário, a entrada de 150 mil migrantes judeus no prazo

de dois anos, a divisão da Palestina em dois Estados e a administração internacional das cidades de

Belém e Jerusalém.

Ciente da importância dos resultados, o lobby sionista pressiona os países membros a

votarem pela criação do Estado de Israel. E, em 29 de novembro de 1947, a plenária da ONU aprova

a Resolução 181. A toque de caixa, e sem consultar o povo palestino, os judeus que representam

37% da população assentada em 7% do território acabam de receber das Nações Unidas 55% de

toda a Palestina”.

- “Mas isso é jogar gasolina no fogo!”

- “Bingo!”, responde Nádia sem alterar o tom de voz. E continua: “Logo após a sua aprovação, os

países da Liga rejeitam a Resolução da ONU e declaram que qualquer tentativa de aplicá-la iria

desencadear uma guerra.

Os sionistas têm consciência de que a transformação de uma resolução em realidade concreta

significa preparar-se para o enfrentamento. Além de contar com grandes quantias de dinheiro vindas

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do exterior, em 1945, os representantes da Haganah nos Estados Unidos já haviam conseguido

comprar máquinas para a fabricação de armas e, meses depois, a Tcheco-Eslováquia começaria a

fornecer equipamentos bélicos.

No final de 1947, as oficinas judaicas produzem a todo vapor grandes quantidades de

morteiros, granadas e munições de todos os tipos, além de adaptar armas em aviões civis para que

os mesmos possam auxiliar nos combates. A Haganah está pronta para colocar nos campos de

batalha cerca de 20 mil soldados bem equipados e treinados e conta com mais de 40 mil reservistas.

Frente a esta realidade, em setembro de 1947, a Liga Árabe cria um exército de cerca de 20

mil palestinos voluntários vindos de todo o Oriente Médio. Mal-armadas e pouco treinadas, as

forças árabes são o símbolo de uma realidade que não demora a aparecer: os apelos inflamados dos

governantes a libertar a Palestina dos sionistas carecem de ações capazes de colocá-los em prática.

A bloquear as atitudes que os próprios palestinos gostariam de ver realizadas, está o receio que cada

país árabe alimenta em relação aos demais quanto aos desejos destes de se aproveitarem da situação

para ampliar o próprio território.

Os discursos radicais, seguidos de tímidas realizações, não passam de retórica, cada vez mais

necessária para conter as pressões populares favoráveis a uma intervenção armada contra a

implantação do Estado de Israel e capazes de desestabilizar seus regimes que, por sinal, não gozam

de legitimidade junto ao povo.

Um dia após a aprovação da Resolução 181, grupos árabes dão vida a reações espontâneas.

Ataques a ônibus, depredações e saques são realizados em regiões que iriam integrar o Estado

judaico e onde há uma maior concentração de hebreus.

Teoricamente, Londres ainda governa a Palestina e suas tropas estão em todo o território. De

início, palestinos e sionistas temem que elas possam intervir para reprimir suas ações. Mas a

realidade revela que, até março de 1948, a presença dos soldados apenas impede a intervenção dos

exércitos árabes e dá proteção aos comboios e assentamentos judaicos.

Desorganizadas e contando apenas com 10 mil fuzis e 3 mil voluntários enviados pela Liga

Árabe, as forças palestinas não demoram em constatar sua situação de inferioridade. Ainda assim,

não deixam de atacar as vias de comunicação pelas quais trafegam os comboios”.

- “Ao que tudo indica, a Resolução da ONU que cria o Estado de Israel marca também o início da

que parece ser uma guerra civil...”

- “Sim, você tem razão. Os enfrentamentos desta guerra vão de dezembro de 1947 a abril de 1948”.

- “E, ao longo deste período, qual é o comportamento das forças armadas a serviço da comunidade

judaica?”.

- “De início, a Haganah adota uma postura defensiva por temer a repressão britânica. Mas, após a

análise das forças em jogo, se dedica a atacar vilarejos e centros palestinos, quase sempre em ações

de represália ou através de atos terroristas. Esta postura faz com que se passe de desordens

esporádicas a uma verdadeira situação de conflito.

Enfrentamentos e atentados, promovidos por ambos os lados, se multiplicam. Mas, devido à

falta de recursos, os palestinos levam a pior. Uma vitória esmagadora das armas da comunidade

judaica é vista como necessária não só para desmoralizar as forças palestinas como para demonstrar

ao mundo que os hebreus detêm elementos políticos, econômicos e militares suficientes para bancar

a criação do seu Estado. E para isso as milícias judaicas não hesitam em agir com requintes de

crueldade.

Entre os exemplos mais tristemente famosos, está o ataque ao vilarejo palestino de Deir

Yassin, nas proximidades de Jerusalém, em 9 de abril de 1948. Vencida a resistência local, famílias

inteiras são metralhadas e sepultadas debaixo dos escombros de suas próprias casas. Dos homens,

mulheres, crianças e anciãos que não conseguem fugir, ninguém escapa do massacre. Soldados

sionistas, observadores e jornalistas relatam que em Deir Yassin são assassinadas a sangue frio não

menos de 254 pessoas. Objetivo do massacre: aterrorizar os palestinos e obrigá-los a deixar o país.

Sempre em abril de 1948, a Haganah conquista uma série de vilarejos a leste de Jaffa e os

bairros árabes de Safed, centro político e comercial da Galiléia ocidental. Em seu rastro de

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destruição, seus soldados repetem uma frase que dispensa comentários: Se vocês não fugirem logo,

serão massacrados e suas filhas violentadas.16

O balanço dos enfrentamentos é amplamente favorável aos hebreus. A estrutura social e a

força militar dos palestinos sofrem golpes mortais. Áreas importantes que a Resolução 181 havia

destinado a eles, ou ao controle internacional, são ocupadas pelos hebreus. Centenas de milhares de

árabes, vítimas do terror judaico que arrasa vilarejos

inteiros, são obrigados a fugir e a se refugiar nos

países vizinhos.

Ganha a guerra civil e demonstrada ao mundo

a sua força militar, em 14 de maio de 1948, a

comunidade hebraica ouve Ben Gurion ler a

Declaração de Independência e o anúncio do

nascimento do Estado de Israel”.

- “Mas, Nádia, notei que ao longo desta última parte

do seu relato, as nações da Liga Árabe quase não

aparecem. Significa que elas estão dispostas a aceitar

isso como fato consumado?”, pergunto na tentativa

de entender o que ocorreu com um ator que, de

repente, parece ter assumido o papel de espectador.

Vagarosamente, a coruja se levanta e,

demonstrando satisfação em relação ao meu súbito

interesse pelo assunto, solta um “A elas não resta

outra opção a não ser a de preparar-se para invadir o

Estado vizinho recém-criado” que aumenta a minha

curiosidade, mas, também, os meus temores.

- “Quer dizer que terminada uma guerra vai começar

logo outra?”

- “Infelizmente, sim. Mas antes de entrar na

cronologia deste novo conflito, é importante resgatar

alguns elementos sem os quais é impossível entender

o que está pra ocorrer.

Em primeiro lugar, vale a pena ressaltar que,

ao longo da guerra civil, a Haganah deixa de ser uma

milícia integrada por corpos independentes para

tornar-se um exército que obedece a um comando único capaz de coordenar e tirar o melhor

proveito possível de cada um dos seus setores. Em julho de 1948, as Forças de Defesa Israelenses

somam cerca de 65 mil homens (que chegarão a 115 mil sete meses depois), dispõem de muitas

armas leves, mas só de um punhado de tanques, blindados, canhões e aviões de combate.

No fim de maio do mesmo ano, as milícias árabes na Palestina não contam com mais de 28

mil soldados e, no papel, a inferioridade no número de tropas é compensada por 75 aviões de

guerra, 40 tanques, 500 blindados e 360 canhões. O detalhe é que boa parte deste equipamento não

tem plenas condições de uso. E o que ainda funciona está prestes a virar sucata em função do

embargo internacional (imposto pelo Conselho de Segurança da ONU em 29 de maio de 1948) à

importação de armas por parte dos países envolvidos no que seria chamado de primeiro conflito

árabe-israelense.

Mas esta medida que deixa o exército da Liga Árabe sem armas pesadas, munições e peças

de reposição, acaba não atingindo as forças israelenses. Além de contar com a produção das

próprias indústrias bélicas, elas se beneficiam de uma ampla rede secreta de fornecedores tanto nas

Américas como na Europa. Com os milhões de dólares vindos dos hebreus no exterior, não é difícil

16

Idem, pg. 271.

Localização dos principais vilarejos

palestinos arrasados por Israel em 1948.

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para o exército judaico negociar suas compras diretamente com as empresas ou através do governo

da Tcheco-Eslováquia.

Se isso não bastasse, o único consenso no interior da coalizão árabe é em relação aos

discursos que vaticinam a eliminação do Estado de Israel. Fora isso, as nações não se entendem

sobre os objetivos da guerra e nem têm um comando militar unificado capaz de coordenar e

uniformizar procedimentos e estratégias de ataque. Esta situação faz com que setores das forças

árabes mudem de plano de acordo com os interesses imediatos e a influência que seus governantes

exercem sobre as tropas por eles enviadas.

A falta de coesão tem explicação numa realidade que anunciei agora há pouco: em nome da

Palestina, cada regime oculta interesses expansionistas. A Jordânia, por exemplo, há tempo vinha

negociando secretamente com a comunidade judaica o reconhecimento do seu Estado em troca do

controle da Cisjordânia. Por sua vez, o Egito, temendo que isso pudesse realmente acontecer, opta

por ocupar militarmente a Faixa de Gaza e o deserto do Negev e criar instituições de um futuro

governo palestino dirigido pelo Cairo.

O fato de que o drama vivido pelo povo palestino só interessa aos países vizinhos na medida

em que atende aos desejos nem sempre confessáveis de seus governantes se torna ainda mais

evidente ao analisar o comportamento das tropas da Liga Árabe em relação aos pequenos grupos da

resistência palestina. Longe de fortalecer o que restava de suas milícias após as investidas das forças

anglo-judaicas nos anos anteriores, os dirigentes árabes optam por neutralizar os militantes

confiscando suas armas.

Ao lembrar deste momento, o próprio Arafat comenta: Quando os exércitos árabes entraram

na Palestina, eu estava no território de Gaza. O oficial egípcio se aproximou do meu grupo e exigiu

que entregássemos as armas. De início não podia acreditar no que os meus olhos viam.

Perguntamos a ele o porquê. O oficial respondeu que eram ordens da Liga Árabe. Protestamos,

mas não adiantou. O oficial me deu um recibo pelo meu fuzil. Disse-me que poderia recuperá-lo

quando a guerra tivesse terminado. Naquele momento, soube que aqueles governantes haviam nos

traído. Eu mesmo fui vítima de sua traição”.17

- “Nádia, para ser sincero, tenho a impressão de que o seu relato se assemelha àquele ditado que diz

quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece...”, murmuro para expressar a surpresa diante

dos novos acontecimentos.

A coruja levanta o graveto-muleta e o balança acompanhando os movimentos da cabeça que

indicam uma resposta negativa à minha constatação: “Não, não é nada disso. Já dizia um velho

conhecido que a história só surpreende quem da história nada entende. Nela não há nenhuma

assombração, truque, passe de mágica ou intervenções de almas penadas, mas somente um

movimento ininterrupto de atores cujos verdadeiros interesses raramente são visíveis.

A tarefa de uma coruja é justamente a de desvendá-los, de trazê-los à luz, de desmascarar os

mitos pelos quais a repetição de velhas mentiras os transforma na mais pura verdade. Vocês,

humanos, deveriam aprender a fazer isso; ou, pelo menos, a analisar e juntar as peças do quebra-

cabeça da realidade sem se limitar ao mero conhecimento de um punhado delas. Bom, mas onde é

que eu estava?”

- “Se não me engano, está na hora de você falar do conflito entre Israel e as nações da Liga Árabe”.

- “Sim, é isso mesmo!”, diz Nádia levantando a ponta da asa para o alto. “Acontece que, de 15 de

maio a 11 de junho de 1948, o exército do Egito ataca o sul da Palestina invadindo a Faixa de Gaza

e parte do Negev. A Síria entra pelo norte, enquanto Jordânia e Iraque ocupam a região leste que,

grosso modo, corresponde à atual Cisjordânia.

Em 11 de junho, há uma trégua e os combates param por um mês. O balanço dos primeiros

25 dias de enfrentamento aponta as maiores perdas entre os exércitos árabes, mal-treinados,

desorganizados, com dificuldade de garantir os suprimentos e com pouco conhecimento do campo

de batalha. Apesar do elevado número de mortos, Israel consegue bloquear a ofensiva conservando

17

Alan Hart, Arafat – biografia política, pg. 66.

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para si quase todas as regiões da Palestina (à exceção do Negev) destinadas pela ONU à criação do

seu Estado.

Diante dos fatos, no fim de junho, o mediador do conflito enviado pelas Nações Unidas,

Folke Bernadotte, propõe que a Palestina seja dividida em 2 Estados: o Estado judaico incluiria

todas as áreas designadas pela ONU (menos o Negev, mas com uma grande parte da Galiléia

ocidental); e o outro que incorporaria as regiões árabes da Palestina à Jordânia. Os Estados assim

definidos formariam uma federação. Durante os dois primeiros anos, a imigração judaica ficaria sob

o controle da ONU enquanto os refugiados palestinos poderiam voltar sem restrições aos seus

lugares de origem. Jerusalém integraria a zona árabe enquanto os bairros judaicos da cidade teriam

autonomia administrativa”.

- “Parece uma proposta sensata”.

- “Só para quem não entende o peso das forças em jogo”, retruca Nádia mostrando que não gostou

da interrupção. “Um plano assim, só pode ser rejeitado tanto pelos árabes como pelos judeus. Os

primeiros alegam que ele se limita a reafirmar a divisão da Palestina contra a qual haviam se oposto

desde o início. Os segundos por avaliar que suas forças armadas têm condições de garantir mais

território do que aquele que está sendo estipulado pela ONU.

É assim que, no dia 8 de julho, os árabes rompem a trégua, mas os enfrentamentos acabam

com várias vitórias israelenses. Onze dias depois, os exércitos da Liga aceitam uma nova trégua que

se estende até 15 de outubro, quando os combates começam com Israel centrando fogo nas tropas do

Egito no deserto do Negev.

As razões desta opção estão no fato de que o exército egípcio é o mais numeroso, sua

presença representa uma ameaça potencial, tanto para a região de Tel Aviv, como pelos

assentamentos judaicos a norte do Negev, e por acreditar que esta área poderia absorver milhões de

migrantes judeus vindos do exterior.

Israel ataca em várias frentes e suas tropas se dirigem para a península do Sinai, Mas, ao

fazer isso, acaba entrando numa região onde a Grã Bretanha zela pelos seus interesses ligados ao

controle do Canal de Suez, graças a um acordo de defesa recíproca assinado com o Egito em 1936.

Diante do avanço dos soldados israelenses, Londres avisa os Estados Unidos de que pode

intervir no conflito e levantar o embargo de material bélico aos exércitos da Liga. O presidente dos

EUA, Harry Truman, entende o recado e envia um protesto oficial ao governo judaico. Com a

oposição das grandes potências, cuja mudança de postura poderia ser fatal para Israel, Ben Gurion

se vê obrigado a retirar suas tropas.

Em março de 1949, ocorrem os últimos combates. Israel amplia seus territórios em relação

ao que havia sido estabelecido pela ONU. A Jordânia incorpora a Cisjordânia, ocupada pelas suas

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tropas desde o início do conflito, e o Egito fica com a Faixa de Gaza. A parte da Palestina destinada

pelas Nações Unidas a seus legítimos habitantes é simplesmente varrida do mapa.

A derrota dos exércitos árabes traumatiza as populações de seus países e abala seus regimes.

Os ganhos territoriais obtidos por Egito e Jordânia não compensam o esforço de guerra despendido

e servem apenas para mostrar ao povo que os sacrifícios não foram totalmente inúteis. As

economias das nações da Liga saem da guerra enfraquecidas pelo endividamento externo. O elevado

número de refugiados palestinos em seus territórios é uma espécie de bomba-relógio que aumenta a

fragilidade das estruturas de poder locais.

Para Israel, os prejuízos econômicos não são grandes e acabam sendo rapidamente

compensados graças às ajudas vindas dos hebreus no exterior e aos empréstimos internacionais. Se

a agricultura é o setor mais prejudicado pela guerra, a indústria dá sinais que para ela o conflito

funcionou mais como um estímulo do que como um obstáculo”.

- “Nádia, acho que em seu relato você não falou da situação em que se encontram os refugiados

palestinos”, peço desejoso de conhecer o que aconteceu com esta massa enorme de pessoas que o

terror israelense havia obrigado a deixar suas terras.

A coruja me olha, levanta a asa em minha direção como quem procura deter um pedido

impaciente e diz: “Tenha calma. Deixa só eu molhar a garganta que, já, já, vou falar deles ao tratar

dos anos que vão...

4. Do fim da guerra aos novos passos da resistência palestina.

Atendendo ao pedido da minha “chefa” vou até à cozinha. Os gestos lentos tentam prolongar

ao máximo este intervalo inesperado. Mas enquanto as mãos mal acabam de pegar o copo, Nádia

lança um “Você foi buscar água na vizinha ou será que ainda tinha na torneira da cozinha” que

acelera cada movimento.

Três goles, um rápido passar da asa no bico e a coruja me olha radiante, totalmente

recuperada e pronta para mergulhar novamente nas suas reflexões.

- “Força, pegue logo papel e caneta que agora vou tratar com mais detalhes da situação dos

refugiados. Como dizia no final do capítulo anterior, a Palestina destinada pela ONU a seus

legítimos habitantes é simplesmente varrida do mapa. Se isso não bastasse, ao longo da guerra, as

forças israelenses haviam destruído não menos de 250 dos 863 vilarejos árabes que nela se

encontravam.

O terror provocado pelos ataques militares e pelos massacres obriga cerca de 800 mil

palestinos a deixarem suas terras e a procurarem abrigo nos campos de refugiados que se formam na

Cisjordânia, Jordânia, Faixa de Gaza, Síria e Líbano, sendo que comunidades mais reduzidas se

dirigem para o Egito, Iraque e demais países da península árabe.

Em 16 de junho de 1948, o governo judaico decide bloquear a qualquer preço a volta dos

refugiados e ordena ao seu exército que complete a destruição dos vilarejos e dos bairros árabes das

cidades conquistadas. Ao mesmo tempo, corta as vias de acesso e zela para impedir que os

palestinos cruzem as fronteiras. Aqueles que teimam em permanecer nas proximidades de setores

estratégicos recém-ocupados pelas tropas são ameaçados e forçados a venderem suas terras

engrossando, assim, o número de exilados. Sobre os escombros das regiões árabes, começam a

nascer os novos assentamentos israelenses.

Esta situação assombrosa ganha o respaldo de uma série de leis criadas a toque de caixa. De

acordo com estas normas, as terras dos proprietários árabes são declaradas abandonadas e passíveis

de serem expropriadas pelo Fundo Nacional Judaico que, do ponto de vista legal, é quem possui a

terra de Israel para todo o povo hebreu.

Diante da gritante violação do direito universal de poder voltar aos próprios lugares de

origem, em 11 de dezembro de 1948, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprova a Resolução

194. Por ela os refugiados que desejarem devem ser permitidos de retornar a seus lares o mais

rapidamente possível e de viverem em paz com seus vizinhos e devem ser pagas indenizações a

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título de compensação pelos bens daqueles que decidirem não regressar a seus lares e por todo

bem perdido ou danificado, uma vez que, em virtude dos princípios do Direito Internacional, tal

perda ou dano deve ser reparado pelos governos ou autoridades responsáveis”.

- “Com certeza, a ONU deve ter dobrado a vontade israelense de colocar obstáculo à volta dos

refugiados?”, pergunto esperando uma resposta afirmativa.

- “É aí que você se engana!”, responde seca Nádia enquanto espeta o meu ombro com a muleta.

“Sob a alegação de que a entrada no país de um grande número de árabes hostis seria um suicídio

para o Estado hebraico, o governo de Tel Aviv se nega a cumprir a Resolução 194.

Diante das fortes pressões internacionais, Israel chega a formular duas propostas de retorno

parcial dos refugiados no âmbito de um amplo acordo de paz com os países vizinhos. Em julho de

1949, o Estado judaico se declara pronto a acolher 100 mil deles em troca da paz com as nações de

fronteira e do compromisso destas arcarem com os outros 700 mil. A segunda proposta, não menos

indecente, é a incorporação da Faixa de Gaza ao território israelense que, em seguida, abrigaria 200

mil refugiados.

A resposta dos governos árabes só pode ser negativa. E não porque a integração dos

palestinos à população local seria impossível. O que ocorre é que a aceitação dos refugiados implica

em admitir a tragédia palestina como fato consumado e, ao legitimar a ocupação israelense, se

chancelaria também a perda definitiva dos direitos nacionais palestinos. Esta postura por parte das

nações da região não é definida só pelo fato delas quererem usar esta questão como uma arma

contra Israel, mas, sobretudo, porque refugiados e exilados se recusam a abrir mão de sua história na

Palestina, do seu direito a terra na qual viveram durante séculos. Apesar das diferentes

possibilidades de inserção legal e de obtenção de outra cidadania, um palestino nunca deixa de ser e

de reafirmar sua identidade palestina”.

- “Sendo assim, pelo menos os povos árabes devem ter prestado todo tipo de ajuda aos campos de

refugiados que se encontram em seu território?”

- “Nada disso!”, retruca Nádia sacudindo a cabeça. O que você sempre esquece é a distância entre o

discurso e a prática dos governos da região. Tanto na Faixa de Gaza, controlada pelo Egito, como

em Jordânia, Iraque, Síria e Líbano, os campos de refugiados funcionam, inicialmente, como uma

verdadeira prisão. Sabendo que as precárias condições de vida seriam um bom caldo de cultura para

Foto de um campo de refugiados palestinos no Líbano, em 1952.

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eventuais movimentos de resistência, as elites locais querem evitar qualquer possibilidade de um

movimento independente dar vida a ações que atraiam as represálias israelenses. Por isso, os

refugiados são impedidos de dar declarações, ler ou escrever sobre o conflito e de consolidar

qualquer tipo de organização. Infringir as regras implica em correr o risco de ser preso e torturado.

É nestas condições extremamente adversas que a resistência palestina começa a dar os

primeiros passos.

Exilado no Egito, Arafat se afirma como liderança estudantil na Universidade do Cairo, onde

freqüenta o curso de engenharia civil, e obtém das autoridades a permissão de lançar uma revista: A

Voz da Palestina. Dirigida à diáspora da guerra árabe-israelense, ela começa a ser distribuída

clandestinamente em Gaza, Jordânia, Síria, Iraque e Líbano com o objetivo de ser um instrumento

de contato e debate rumo à formação de células militantes palestinas.

Ao mesmo tempo, setores da intelectualidade começam a agir nos países onde se encontram

exilados com o objetivo de convencer os governos árabes de que o retorno dos refugiados a seus

territórios de origem deve se tornar um elemento prioritário da política da região. E para isso, diante

da postura do governo de Tel Aviv, seria necessária uma intervenção bélica conjunta contra Israel.

Cientes das reações das elites, os palestinos optam pelo ataque a posições israelenses a partir

dos territórios onde estão sediados. Agindo assim, esperam que Israel responda com retaliações que

forçariam os governos árabes a iniciar uma guerra contra o Estado judaico ainda que esta viesse a

ser só uma questão de honra”.

- “De honra?”, pergunto para ter certeza de que ouvi direito.

- “Sim. De honra”, responde Nádia como se estivesse falando da coisa mais normal do mundo. E

percebendo a minha dificuldade em entender as razões desta colocação acrescenta: “Lembra da

questão dos refugiados? Pois então, dos 800 mil palestinos que se encontram nestas condições quase

a metade está na Jordânia, mais de 200 mil se apinham na Faixa de Gaza, outros 100 mil no Líbano

e cerca de 60 mil na Síria, isso sem contar os que moram em outros países. A sua presença na região

é como uma ferida aberta cuja dor aumenta o ressentimento árabe na medida em que representa a

memória viva da humilhante derrota imposta por Israel.

Neste contexto, os campos de refugiados se tornam uma pedra no sapato das próprias elites

da região na medida em que seu drama passa a ser ponto de referência e razão de descontentamento

da própria população gerando pressões que desestabilizam os regimes locais. A estratégia palestina

de provocar a represália israelense, levaria o ressentimento dos povos árabes a forçar uma resposta

armada por parte de seus governos nem que fosse apenas para vingar os ataques sofridos.

Mas a decisão da guerrilha de criar esta situação tem que acertar as contas com a falta de

recursos. Convencidos ou obrigados pelo desenrolar de sua ordem interna, nos primeiros anos da

década de 50, alguns países árabes se dispõem a fornecer armas e treinamento aos comandos

guerrilheiros na Faixa de Gaza com a condição de que a escolha dos alvos e o controle das

operações sejam submetidos aos oficiais dos seus serviços de inteligência. O número de ações dos

fedayn (nome dado aos integrantes da guerrilha que significa “aqueles que se sacrificam por uma

causa”) aumenta entre 1954 e 1956. Boa parte de seus atos, porém, mais do que uma provocação,

acaba sendo uma resposta às incursões israelenses na Faixa de Gaza.

Controlada fundamentalmente pelo Egito, a resistência palestina não consegue viabilizar

seus propósitos e permanece refém dos acontecimentos que se avolumam ao seu redor”.

- “Agora fiquei curioso. Como se comporta o governo israelense depois de sua vitória em 1948?”

- “Boa perguntam querido secretário”, responde Nádia com um indisfarçável sorriso de satisfação.

“Pois saiba que é justamente a resposta a esta sua indagação que vai me permitir descrever os

caminhos que levam ao próximo conflito armado”.

- “Mais um?!?”

- “Sim. Mais um. Mas vamos por partes.

Em primeiro lugar, é necessário reconhecer que Israel sai fortalecido do seu primeiro

enfrentamento contra as nações árabes. A prioridade do governo judaico do pós-guerra é a

consolidação da economia e a rápida imigração do maior número possível de hebreus para ocupar as

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terras que, até pouco tempo atrás, eram dos palestinos. Graças à forte ajuda financeira das

comunidades americanas, entre 1949 e 1952, Israel recebe e assenta cerca de 700 mil judeus.

Nos territórios ocupados, o Estado judaico é chamado a lidar com uma minoria palestina de

não mais de 150 mil pessoas numa população total de 900 mil. Na melhor das hipóteses, ela é

tratada como uma incógnita, e, na pior, como uma constante ameaça à ordem existente. Em relação

a este grupo, o governo vai adotar medidas que criam uma situação de marginalização e submissão

da qual vou falar mais adiante.

Entre os problemas a serem enfrentados, está o fato de que as novas fronteiras israelenses

não acompanham nenhum relevo ou outro tipo de separação natural entre os países. Isso sem contar

que, em alguns casos, elas chegam a cortar em dois o mesmo vilarejo ou a separar grupos árabes de

seus lugares de origem ou dos familiares que, agora, estão no interior do território por elas

delimitado. Isso faz com que as tentativas dos povos da região de entrarem clandestinamente no

Estado judaico sejam algo corriqueiro e um dos elementos que contribuem para elevar a tensão nas

áreas de fronteira.

Entre o final de 1948 e 1949, as principais ocorrências dizem respeito a colonos palestinos

que tentam voltar a seus locais de origem. Eles fazem isso ora para ter uma idéia da situação de suas

antigas propriedades, ora para tentar recuperar parte das lavouras ou das ferramentas abandonadas

na fuga, ou, ainda, para visitar parentes e procurar reconstruir suas vidas em outra cidade dos

territórios ocupados. Também não são poucos os casos dos que atravessam a fronteira em busca de

pastagens para o gado ou para subtrair utensílios, cereais, animais domésticos e outros bens dos

colonos judeus recém-instalados em suas antigas terras”.

- “Pelo que acaba de dizer, a guerra trouxe sérios problemas sociais aos palestinos. Sabendo disso,

será que não há um mínimo de compreensão por parte de Israel?”

Nádia pisca os olhos e, sorrindo, começa a sacudir a cabeça. Poucos instantes depois, seus

gestos são acompanhados por um “Não, mas não mesmo!”, que chega a dar arrepios. “Acontece que

Israel só enxerga os seus interesses e ao redor deles constrói e justifica todas as ações que garantem

a implantação dos mesmos ainda que a custos humanitários altíssimos. Todo o período após o

conflito árabe-israelense é, literalmente, aproveitado para limpar o terreno do maior número

possível de palestinos. Por isso, todo árabe que tenta atravessar clandestinamente as fronteiras é

recebido à bala. Pouco importa se estiver se tratando de um soldado inimigo, de um pastor, de um

possível guerrilheiro ou de um refugiado que procura voltar à sua terra. O que o governo de Tel

Aviv quer evitar por todos os meios é que os árabes comecem a ocupar as regiões de fronteira do

lado israelense elevando novamente a sua presença em território judaico. A coisa é tão escancarada

que, de acordo com algumas estimativas, entre 1949 e 1956, os soldados encarregados desta tarefa

matam mais de 4 mil palestinos, a maior parte deles desarmados.

Se isso não bastasse, Israel começa a expulsar todos os árabes suspeitos de ter entrado

ilegalmente no país. E aqui o show de arbitrariedades não diz respeito somente à escolha de quem

deve ser deportado, mas também ao tratamento que lhe é reservado. E a reconhecer isso são os

próprios hebreus.

Por exemplo, em 1950, um morador de um assentamento judaico presencia a passagem de

um comboio que se dirige à fronteira sul do país. Assustado pelo tratamento dispensado aos

supostos clandestinos, descreve a cena com palavras que não deixam dúvidas: Esperávamos um

meio de transporte perto de um dos grandes campos militares (...). De repente, aparecem dois

grandes caminhões carregados de árabes com os olhos vendados, (homens, mulheres e crianças).

Alguns dos soldados que os vigiavam desceram para beber e comer alguma coisa enquanto os

demais ficavam vigiando. “Quem são aqueles árabes?”, perguntamos. “Clandestinos”, nos

responderam “que estão indo para a fronteira”. Em cima dos caminhões, os árabes eram

pisoteados de forma desumana. Em seguida, um soldado chamou um colega, “especialista” no

assunto, para pôr ordem. Aqueles de nós que estavam perto do caminhão não tinham visto nenhum

gesto agressivo por parte dos árabes, que estavam sentados cheios de medo, quase que amontoados

uns sobre os outros. Descobrimos logo o que aqueles militares entendiam por “pôr ordem”. O

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“especialista” subiu num caminhão e começou a bater nos olhos vendados dos árabes; terminado o

serviço, começou a caminhar sobre eles e deu tudo por encerrado com uma sonora gargalhada,

satisfeito com o seu gesto de heroísmo. Aquele espetáculo vergonhoso foi um trauma para todos

nós. 18

Situações como esta se repetem inúmeras vezes entre 1949 e 1956 quando mais de 10 mil

árabes são expulsos do território israelense”.

- “Mas, Nádia, será que isso não se deve também as ações dos fedayn ao longo da fronteira do

Estado judaico?”, questiono na tentativa de encontrar uma explicação racional para tamanhos

absurdos.

- “A desculpa é boa, mas não cola”, diz a coruja apontando a muleta em minha direção. “Acontece

que, entre 1949 e 1953, são muitas as infiltrações em território israelense vindas da Jordânia e da

Faixa de Gaza, mas raramente têm a finalidade de realizar atentados. A idéia pela qual clandestino é

sinônimo de terrorista contribui para legitimar a ascensão das atrocidades e justificar as represálias

contra os vilarejos árabes mais próximos das linhas de fronteira. Os ataques dos fedayn apenas

acirram esta situação. Em 14 de outubro de 1959, por exemplo, Ariel Sharon, na época major de

uma unidade encarregada de realizar represálias noturnas, ordena a seus homens de mandar pelos

ares um certo número de casas do vilarejo de Qibya. Resultado da ação: pelo menos 60 pessoas

assassinadas a sangue frio.

Ao desvendar as conturbadas linhas desta história, os elementos do clima de rancor

alimentado por Israel aparecem em toda a sua crueldade. O fato de privar os árabes nativos de

qualquer meio legal para fazer valer os seus direitos históricos, faz com que as ações do Estado

judaico joguem cada vez mais lenha na fogueira da guerra e do terror.”

- “Se bem me lembro, você mesma disse que a estratégia da resistência palestina é a de provocar

uma guerra entre Israel e os países árabes. Como é possível relacionar isso ao que acaba de dizer?”.

- “Bom, vamos retomar algumas idéias. Após o conflito de 48, os palestinos estão sem um único

metro quadrado da terra destinada pela ONU ao seu Estado, boa parte de seus vilarejos está arrasada

e ocupada pelos hebreus, contam com 800 mil refugiados e não têm recursos para enfrentar as

forças judaicas. Ao mesmo tempo, a reação israelense não deixa a eles outro caminho a não ser o de

apostar numa guerra de libertação do seu território. Graças a ela, os líderes árabes, que não

reconhecem a existência de Israel, e não param de ameaçá-lo verbalmente, se encarregariam de dar

passos para resolver a questão palestina através do uso da força.

É assim que, após as primeiras tentativas de diálogo entre Israel e o Egito nos primórdios

dos anos 50, as relações entre os dois países se complicam quando Jamal’Abd Al-Nasser se afirma

como chefe supremo do governo egípcio. Suas ambições de tornar-se uma liderança no mundo

árabe e muçulmano repousam na necessidade de pôr fim à hegemonia britânica no Egito e em

afirmar-se como ameaça concreta para os hebreus, posição esta que aumenta as esperanças

palestinas.

Neste contexto, após uma intensa campanha política e de guerrilha contra a presença das

tropas britânicas no Egito, entre 1952-1954, Londres chega a um acordo com o governo do Cairo,

pelo qual se compromete a retirar suas bases militares da região de Suez.

Israel teme que, com as saída dos soldados ingleses, cuja presença poderia representar um

obstáculo em caso de ataque egípcio ao seu território, o próximo item da agenda de Nasser seja a

questão palestina.

A partir da segunda metade de 1955, a relação entre os dois países se torna cada vez mais

tensa com incursões e provocações de pequenos grupos armados tanto do lado egípcio como

israelense. Inicialmente, as tropas judaicas não têm grandes dificuldades em contra-arrestar e retaliar

as ações dos comandos fedayn e do exército do Cairo. Mas as coisas se complicam quando, em 27

de setembro de 1955, o Egito anuncia um acordo com a Theco-Eslováquia (na verdade com a

18

Benny Morris, Vittime, pg. 347-348.

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URSS) pelo qual, em menos de um ano, o país receberia equipamento bélico suficiente para alterar

o equilíbrio militar da região.

Temendo o pior, o governo de Tel Aviv prepara sua resposta planejando a compra de

grandes quantidades de armas e estudando a possibilidade de uma guerra preventiva enquanto o

Egito encontra-se relativamente fraco. Mas o primeiro obstáculo a este plano é colocado pela

resposta estadunidense. Decididos a não atrair a inimizade do mundo árabe e a reconduzir o Egito

para a área de influência ocidental, os americanos procuram ganhar tempo e só em março de 1956

informam o governo israelense de que não lhe venderiam o material bélico solicitado.

Pressentindo este desfecho, Ben Gurion e Shimon Peres começam a negociar com a França

e, em novembro de 1955, assinam com ela um contrato de fornecimento de tanques, blindados e

aviões de combate. O acordo só é possível porque Nasser, ao proteger e abastecer de armas os

rebeldes da Frente de Libertação Nacional que lutam pelo fim da colonização francesa na Argélia,

acaba de ganhar a inimizade do governo de Paris, interessado em impor-lhe uma derrota.

Entre junho e outubro de 1956, há uma série de encontros secretos entre representantes da

França e de Israel aos quais se une a Grã Bretanha, contrariada pela nacionalização unilateral de

Canal de Suez, promovida pelo Egito no final de julho do mesmo ano. Em 24 de outubro, o acordo

final está pronto: Paris e Londres se encarregariam de retomar o controle do Canal e reativar os

quartéis abandonados pelos britânicos 4 meses antes. A Tel Aviv caberia a tarefa de aniquilar as

forças egípcias no Sinai e as bases dos fedayn na Faixa de Gaza, anexando os territórios

conquistados. Além disso, Israel se compromete a não atacar a Jordânia e a Grão Bretanha a não

apoiar militarmente o Estado árabe caso ele resolva intervir ao lado dos egípcios.

A estratégia de ataque é simples: Israel iria invadir o Egito pela península do Sinai

ameaçando a região do canal. Britânicos e franceses interviriam num segundo momento para separar

os combatentes e proteger o Canal de Suez.

Em 29 de outubro de 1956, 400 pára-quedistas israelenses são lançados na região do canal

enquanto o exército judaico invade o Sinai isolando as tropas egípcias na Faixa de Gaza. No dia

seguinte, França e Inglaterra lançam um ultimato ao Egito e, após a recusa de Nasser em aceitar seus

termos, entram em ação aniquilando a força aérea do Cairo em menos de 48 horas.

Entre os dias 2 e 3 de novembro, a Faixa de Gaza é ocupada pelos soldados israelenses

enquanto os destacamentos egípcios no Sinai recuam na tentativa de escapar da destruição, dada

como certa. Os dias que seguem são caracterizados por um banho e sangue. Além de executarem os

soldados egípcios capturados na retirada, as forças armadas dos hebreus massacram cerca de 500

civis palestinos durante as operações em Gaza.

A invasão da região do canal pelas tropas anglo-francesas começa em 5 de novembro, mas

dois dias depois é bloqueada por uma série de fatores: as pressões da ONU, as ameaças de retaliação

econômica vindas dos Estados Unidos e o fato de egípcios e israelenses terem assinado o cessar-

fogo.

A crise de Suez acaba com o prestigio de França e Inglaterra no Oriente Médio e levanta a

suspeita de que as duas nações cultivam novas ambições imperialistas sobre a península árabe. Os

EUA aproveitam do clima de desconfiança e trabalham para ampliar sua influência na região. Ao

mesmo tempo, a União Soviética, que havia fornecido armas ao Egito, se ergue a protetora dos

estados árabes progressistas aos quais disponibiliza linhas de crédito, equipamento bélico e

assessores militares.

Cessados os enfrentamentos, a retirada do exército israelense dos territórios ocupados é lenta

e só ocorre devido às fortíssimas pressões internacionais. Ao deixar o Sinai na última semana de

novembro, as tropas judaicas adotam a política de terra arrasada. Instalações militares egípcias são

completamente destruídas, as ferrovias são desmanteladas e o material é levado para Israel; algumas

estradas são dinamitadas e inutilizadas enquanto outras são transformadas num verdadeiro campo

minado.

Em março de 1957, a Faixa de Gaza é devolvida ao Egito com a condição de que este

deixaria os navios israelenses transitar pelo golfo de Ácaba e pelo Canal de Suez”.

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- “Até que, desta vez, os estragos não foram tão graves”, comento na tentativa de fazer um primeiro

balanço do conflito.

Nádia pára. Seu rosto assume uma expressão séria. Em silêncio, a asa levanta a muleta

enquanto, aos pulos, a ave se aproxima da mão esquerda. A coruja permanece imóvel por alguns

instantes. Um clima de suspense se estabelece entre nós dois, quando...

- “Ai! Esta doeu!”, grito a ter a ponta dos dedos atingida pelo graveto que acaba de servir de

palmatória.

- “Lentes de mais de cinco graus em cada olho, cérebro de humano que pousa de animal inteligente,

título de estudo superior e total incapacidade de enxergar a um palmo do próprio nariz. Esta sim que

é uma maravilha da natureza!”, comenta a coruja colocando a outra asa atrás das costas e se

distanciando sem dar bola às minhas reclamações.

A vontade de mandá-la praquele lugar é grande. Mas os lábios ainda estão ensaiando uma

resposta à altura quando um “Agora preste muita atenção!”, pronunciado em alto e bom som, corta

qualquer possibilidade de revide. Sem virar o corpo em minha direção, Nádia respira fundo e

indicando o número um com a ponta da asa dá início a que parece ser uma lista das conseqüências

da crise de Suez. “Em primeiro lugar, a ação levada adiante por França, Grã Bretanha e Israel

levanta uma onda de radicalismo em todos os países árabes que recoloca na ordem do dia a

necessidade dos governos unificarem suas forças sob a direção de Nasser.

Segundo: depois da crise, as políticas pró-ocidente de Iraque, Jordânia e Líbano se tornam

um fator que alimenta a desconfiança da população nas elites locais e, de conseqüência, a

desestabilização da ordem interna. É assim que, em 14 de julho de 1958, as forças armadas do

Iraque dão um golpe de estado e assumem o poder. Pouco mais de um ano antes, na Jordânia, o rei

Hussein havia conseguido driblar o descontentamento dos militares golpistas que contavam com o

apoio do Egito. Mas, agora, sob o efeito das notícias que vêm do Iraque se vê obrigado a pedir ajuda

às tropas britânicas para conter os ventos de desestabilização do regime que sopram no país.

Ainda em 1958, após a criação da República Árabe Unida (união política de Egito e Síria), o

Líbano, tradicional aliado da França, começa a sentir os efeitos das mudanças que percorrem a

região. Contando com o financiamento egípcio, as forças radicais libanesas se fortalecem. Com elas,

as lideranças muçulmanas e de esquerda pedem que o país integre a República Árabe Unida (RAU),

mas encontram a oposição dos cristãos. Os enfrentamentos entre os dois grupos se agravam e

arrastam o país à beira de uma guerra civil.

Assustado, o governo libanês, dominado pelos cristãos, acusa a RAU de fomentar as

desordens e, após o golpe no Iraque, não hesita em pedir a intervenção estadunidense para garantir a

manutenção do regime. De julho a outubro de 1958, a presença dos marines americanos em Beirute

permite a superação da fase mais aguda da crise institucional. Nas eleições que ocorrem em seguida,

o general Fu’ad Shihab assume a presidência e forma um governo que, para acalmar os ânimos

tende a apoiar as posições de Nasser.

Na linha de fronteira entre Egito e Israel a aparente calmaria é mantida pela presença das

forças das Nações Unidas. Temendo a retaliação do exército judaico, o governo do Cairo retira o

apoio à resistência palestina”.

Nádia abaixa a cabeça. Em silêncio, ajeita as plumas do peito com ar de quem espera uma

reação por parte do seu ouvinte. Decidido a me recuperar da desastrada intervenção anterior cutuco

com a caneta o graveto e, em voz baixa, comento: “Você esqueceu de dizer o que vai acontecer com

a resistência palestina...”.

- “Fiz isso só pra ver se está acordado”, retruca Nádia sem parar de se ajeitar. Desafiada pela caneta,

a muleta responde com três batidas que parecem anunciar uma nova investida da coruja. Depois de

um solene “Muito bem... vejamos...” a ave suspira profundamente e retoma o seu relato: “Acontece

que após a crise de Suez, as ações dos guerrilheiros palestinos tendem a desaparecer. O fracasso da

estratégia de provocar uma guerra capaz de unir os povos árabes contra Israel, a retirada dos

recursos fornecidos pelo Egito e a determinação de Nasser de impedir suas ações forçam os líderes

fedayn a reverem seus planos.

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36

Entre 1956 e 1959, este processo leva à criação de Al Fatah (vitória, em árabe).19

Seus

militantes definem a violência revolucionária das massas populares como o único caminho para

libertar a pátria da ocupação sionista. Isso significa que a ação de Al Fatah deve ser independente

dos partidos e das nações árabes da região”.

- “Você está querendo dizer que eles querem massacrar os judeus?”, pergunto desconcertado.

- “Não seu bobo. Não se trata de responder aos absurdos do passado com novos massacres. Adu

Salam, membro da direção de Al Fatah, deixa isso bem claro ao explicitar o que o seu grupo quer

dizer quando propõe a destruição do Estado sionista: Por favor, preste atenção, eu disse eliminar o

Estado sionista e não o povo judeu. É muito diferente. Queremos a criação de um Estado

democrático na Palestina, onde judeus, cristãos e muçulmanos tenham o direito de viver em paz. 20

Esta formulação permite integrar no interior da organização uma ampla frente de tendências

e posições da resistência palestina que flutuam entre o marxismo e o nacionalismo.

Ainda em 1959, Al Fatah cria a revista Nossa Palestina. Através dela, procura alertar o

maior número possível de compatriotas quanto ao erro em que incorrem ao esperar de Nasser e dos

governos árabes um compromisso sério com a luta pela libertação do país. Ao mesmo tempo, tenta

convencê-los de que a única alternativa possível consiste em fazer com que os próprios palestinos

assumam a luta por sua libertação.

Divulgada na clandestinidade, a revista é considerada altamente subversiva pelas nações da

região. Preocupados com a possibilidade de perder o controle da situação, Egito e Síria ordenam a

seus serviços secretos que tomem todas as medidas necessárias para impedir sua distribuição. Na

caça às bruxas que se desenvolve a partir desta decisão, não são poucos os refugiados palestinos a

serem presos e torturados pelo simples fato de terem sido encontrados lendo a revista.

Mas o que poderia ser um obstáculo para o avanço de Al Fatah, acaba arranhando o clima de

confiança gerado pela criação da RAU. As prisões, os interrogatórios e as torturas comprovam as

teses da revista e mostram que já existe uma organização palestina clandestina e independente, o

que facilita a criação de novos núcleos no interior dos campos de refugiados.

Em 1961, a República Árabe Unida se desfaz. A divisão de Síria e Egito questiona ainda

mais a posição dominante pela qual a unidade árabe é o elemento central para a libertação da

Palestina.

Apesar das inúmeras dificuldades, a ação clandestina de Al Fatah no período que vai de

1956 a 1967 consegue evitar que a própria questão palestina seja varrida debaixo do tapete e acabe

sendo esquecida tanto pelos governos árabes como pelos demais países. Ao mesmo tempo, seus

líderes viabilizam a criação de instituições democráticas, incluindo uma espécie de parlamento

clandestino no exílio”.

- “Será que agora os governos árabes vão oferecer um apoio mais consistente?”

- “Nada disso. Em janeiro de 1964, temendo que a ação da resistência leve o Egito a uma nova

guerra contra Israel, Nasser procura minar as bases de Al Fatah criando a Organização para a

Libertação da Palestina (OLP). Com ela, os palestinos ganham um fórum oficial no qual expressar

seus anseios e formular propostas, sendo que a última palavra, de qualquer forma, cabe a Nasser.

As nações árabes apóiam a proposta do Cairo. E, para mostrar que a coisa é seria,

estabelecem que a OLP deve ter seu próprio braço armado, o Exército Palestino de Libertação

(EPL), a ser criado em Egito, Síria, Jordânia e Líbano e cujas unidades estariam submetidas às suas

forças armadas.

Parece contraditório, mas o fato é que, para além dos discursos inflamados, as elites destes

países já aceitam a criação do Estado de Israel como fato consumado. O problema é que a paz com

os judeus e a manutenção da ordem interna dependem, entre outras coisas de sua capacidade de

evitar o ressurgimento do nacionalismo palestino. A aposta numa OLP facilmente manipulável,

19

A palavra Al Fatah é composta pelas iniciais invertidas de Haramet Al Tahrir Al Falestin (Movimento para a

Libertação da Palestina). 20

Helena Salem, Palestinos os novos judeus, pg. 61-62.

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portanto, é vista como a saída possível para, de um lado, esfriar os ânimos da resistência e, de outro,

aparentar um compromisso sério com a causa palestina.

A falta de raízes profundas na vida dos campos de refugiados faz com que a criação da OLP

leve ao desmonte de boa parte das células de Al Fatah. Animados pelo renovado espírito da unidade

árabe, seus comandantes militares migram para o EPL por acreditar que, graças a ele, a missão de

libertar a Palestina seria realizada em tempos bem menores.

Com a desintegração de sua rede clandestina, Arafat percebe que ou Al Fatah começa a

realizar ações armadas como forma de restabelecer a identidade palestina e questionar o imobilismo

da OLP ou estaria perdida para sempre. Neste sentido, a única saída possível é a de fortalecer suas

bases na Síria e atacar Israel a partir deste território. É assim que, no início de 1965, a guerrilha

realiza algumas operações usando o nome de Al Assifa (a tormenta) como disfarce para proteger os

seus membros.

Diante dos acontecimentos, Israel responsabiliza os países árabes pelas atividades terroristas

dos palestinos. Surpresos, Egito, Jordânia e Líbano ordenam a seus serviços secretos que procurem

as células guerrilheiras e prendam seus líderes.

O aspecto mais curioso desta história é que a salvar Al Fatah são justamente as ameaças de

Israel e a caçada promovida pelos países árabes. Ao falar deste momento, Abu Yihad, um dos

principais líderes da organização, diz: Se os dirigentes israelenses tivessem se mantido em silêncio

diante das nossas primeiras ações militares, os governos árabes e seus serviços de inteligência

teriam acabado conosco em pouco tempo. De início, os jornais árabes eram proibidos de publicar

nossos comunicados militares. Editores e jornalistas tinham instruções neste sentido, e, além do

mais, não acreditavam no que dizíamos. Para eles, a idéia de que um punhado de palestinos

estivesse atacando Israel sem o apoio dos governos árabes era tamanha loucura que não podia ser

expressa com palavras. Assim, ninguém sabia de nós. Não há dúvidas de que estávamos metidos

numa bela confusão. Sem propaganda, não podíamos atrair a atenção do nosso povo e, menos

ainda, do povo árabe. Sem propaganda, não teríamos conseguido sobreviver à tentativa árabe de

acabar conosco. Mas o Primeiro Ministro e Israel, Levi Eshkol, fez um discurso no qual ameaçava

os governos árabes e confirmava nossas atividades. Foi aí que as coisas mudaram para nós. Israel

nos salvou.21

A confirmação israelense de que algo está acontecendo e a perseguição do mundo árabe,

levam um crescente número de pessoas a se colocar questões incômodas: Quem são estes palestinos

que se atrevem a atacar Israel? Será que eles contam com o apoio secreto de Nasser e de outros

dirigentes árabes, ou estão sozinhos? Seja como for, estes não falam, fazem”.

- “É desta vez que os líderes árabes mudam de postura?”, pergunto cada vez mais intrigado com os

inesperados desdobramentos do relato.

- “Errou, de novo!”, responde Nádia me deixando ainda mais desconcertado. “As elites árabes

percebem que estas interrogações podem fazer com que a situação fuja do seu controle. Além de

apertar o cerco em torno de Al Fatah, começam uma ampla campanha para desqualificar o

movimento palestino acusando-o de ser financiado pelos serviços secretos ocidentais, interessados

em levar os árabes a uma guerra da qual sairiam destroçados.

Ao ver que sua propaganda não alcança os objetivos desejados, Egito e Líbano apressam o

passo no caminho da repressão e da tortura prendendo e interrogando inúmeros suspeitos. O

problema é que ninguém conhece Al Assifa e isso acaba dificultando a ação policial.

Na Jordânia, a mão de ferro do rei faz sentir todo o seu peso somente após as represálias

israelenses em Qalqilya, Jenin e Chuna. E isso não porque a elite se negasse a fazer o dever de casa

junto aos colegas, mas tão somente devido ao receio de que uma onda de repressão aberta e

injustificada transformasse em inimigos os numerosos palestinos presentes em seu território.

21

Alan Hart, Arafat – biografia política, pg. 151.

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Em setembro de 1965, os serviços secretos árabes estão prestes a pôr as mãos no grupo

dirigente de Al Fatah e, em novembro, a organização já não tem recursos para manter suas

atividades.

Se isso não bastasse, em fevereiro de 1966, a Síria sofre um golpe de estado. Para além dos

discursos inflamados dos novos governantes, a realidade mostra claramente que o governo está

decidido a evitar uma guerra contra Israel e quer que Al Fatah se torne seu instrumento para tirar o

Egito da liderança dos povos árabes. Ao recusar este papel, a guerrilha palestina se torna alvo fácil

do governo de Damasco. Em seu lugar, o partido Baath, agora no poder, cria o grupo chamado Al

Saika (o raio) cujo programa propõe a criação de um Estado árabe, unitário e democrático na

Palestina, rumo à formação de uma grande nação árabe socialista (no estilo da Síria) em todo o

Oriente Médio.

Fortemente nacionalista, Al Saika começa a agir abertamente em 1967 a partir do território

jordaniano. Até 1970, o grupo influencia a política da própria Jordânia e a resistência que se

desenvolve nos campos de refugiados de El Ouahdah, Zizya e El Hussein. Em seguida, vai perdendo

espaço e fica mais limitado à Síria. Em 1968, seus quadros dirigentes passam a integrar a OLP”.

- “Pelo visto, isso vai acalmar as relações com Israel...”.

- “Não se iluda com esta possibilidade. Ao mesmo tempo em que a elite árabe não titubeia em

reprimir Al Fatah, ela tem plena consciência de que precisa continuar hostilizando Israel para

garantir um mínimo de apoio por parte de seus povos. É assim que, nos anos 60, o antagonismo

entre as nações da região e o governo de Tel Aviv passa por uma nova fase de radicalização.

Apontado pelos árabes como braço armado do imperialismo no Oriente Médio, Israel volta a

ser objeto de discursos e intervenções que propõem sua aniquilação. Some isso às tensões nas

regiões de fronteira e não terá nenhuma dificuldade em ver que estamos indo a passos rápidos rumo

a um novo enfrentamento.

Por isso, pare de me olhar com esta cara de peixe morto, arrume seu queixo caído e sacuda

seu espanto porque, daqui a pouco, vou falar da...”

5. A guerra dos seis dias.

Cansado, o corpo dá sinais de que precisa de uma trégua e, vagarosamente, começa a afastar

a cadeira da mesa. Percebendo seus insólitos movimentos, Nádia arregala os olhos e lança um

“Aonde você pensa que vai?”que paralisa seus músculos.

Inconformado, o rosto assume uma expressão de revolta e o silêncio sublinha a necessidade

de uma pausa nos trabalhos. De olhos entreabertos, a coruja assume um ar de severa compreensão:

“Já sei, já sei, está pedindo um tempo para uma rápida espreguiçada. Dois minutos e quero vê-lo de

novo ao seu lugar!”, diz ao dirigir o olhar para o relógio de parede.

- “Você não está levando em consideração os meus direitos de secretário!”, afirmo categórico na

esperança de conseguir algo melhor.

Nádia começa a rir, balança a cabeça e acompanhando meus gestos de rabo de olho, não

deixa por menos: “Como se eu não conhecesse cada uma de suas artimanhas para sair de fininho e

deixar tudo pra depois...”. Em seguida, sobe num livro e, passados alguns instantes, começa uma

irritante contagem regressiva: “10, 9, 8, 7...”.

- “Entendi, estou indo...”.

- “Tempo esgotado!”, diz a coruja com ar de satisfação. Depois aponta a muleta para a cadeira onde

o corpo, sem pressa, se acomoda. Ao perceber que já pode dar início ao relato, Nádia levanta a

cabeça, limpa a garganta e, com voz solene, proclama: “Antecedentes da Guerra dos Seis Dias”. E,

concentrada no novo assunto, continua: “No final de 1963, Israel avisa Síria e Jordânia que, em

breve, vai bombear parte da água do chamado Mar da Galiléia para o centro e o sul do país.

Temendo que a construção do sistema de irrigação possa dar vida a novos assentamentos e

reduza a já escassa quantidade do precioso líquido à disposição dos dois países, a cúpula árabe,

reunida no Cairo em janeiro de 1964, recebe o recado como uma declaração de guerra. Em resposta,

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a Síria apresenta um estudo para desviar o curso do rio Jordão a norte do Mar da Galiléia, rumo ao

interior do seu território. Com esta medida, a Jordânia continuaria tende acesso à água, mas Israel só

poderia contar com um volume bem menor, comprometendo o abastecimento de suas cidades e a

produção dos assentamentos que dele dependem.

O projeto aumenta a tensão entre os dois países e o governo de Tel Aviv eleva a

concentração de tropas ao longo da fronteira com a Síria. Enfrentamentos de pequeno porte

começam a se tornar corriqueiros e aumentam nos primeiros meses de 1967 quando, ao lavrarem

seus campos, os colonos judeus ultrapassam a linha de fronteira para expandir o tamanho de suas

propriedades.

Diante dos acontecimentos, Nasser aumenta a presença do exército egípcio no Sinai como

forma de dissuadir o Estado judaico quanto a uma possível invasão do aliado árabe. Entre 15 e 18

de maio de 1967, o governo do Cairo tenta forçar a barra e pede o afastamento dos 3 mil e 400

homens das forças de segurança da ONU destacados para as posições do Sinai e da Faixa de Gaza.

Em seguida, fecha o acesso dos petroleiros e demais navios judaicos a Elat, um dos principais

portos de Israel.

O que havia sido pensado como um gesto de ostentação do poder de fogo das forças egípcias

acaba provocando uma crise político-militar.

Sentindo-se ameaçado, Israel começa a reagir. Até o final de maio, suas tropas já estão

prontas para a guerra. Informado dos preparativos, o governo dos Estados Unidos comunica a Tel

Aviv que, mesmo condenando a ação dos egípcios como ilegal e desastrosa para a paz, ele se opõe

a qualquer iniciativa unilateral.

Nos dias seguintes, o clima de tensão já não permite discernir a encenação dos reais

preparativos para a guerra. Em 30 de maio, Egito e Jordânia assinam um tratado de defesa recíproca

e, pouco depois, é a vez do Iraque fazer o mesmo. A crise parece concretizar o antigo sonho da

unidade árabe que, por sua vez, alimenta a euforia popular, convencida de que chegou a hora da

vingança. Os noticiários de rádio Damasco divulgam repetidamente uma mensagem que dispensa

qualquer comentário: Povos árabes, chegou o seu dia. Corram aos campos de batalha. (...) Digam a

eles que enforcaremos o último soldado imperialista com as tripas do último sionista. 22

Com as saídas diplomáticas se fechando uma após a outra, Washington dá carta branca a

Israel”.

- “Se eu entendi como andam as coisas por aquelas bandas, a guerra deve estar próxima”, expresso

sem medo de errar.

- “Na mosca!”

- “Viu como estou ficando bom em prever a evolução dos acontecimentos?”, me aventuro a dizer

com ar de superioridade.

Sem perder a pose, Nádia me devolve um “Também, em situações como esta, é difícil errar

o alvo!”, que faz meu ego baixar as orelhas e voltar à necessária humildade dos aprendizes. Em

seguida, a coruja pisca os olhos e segurando o graveto-muleta como uma espada pronta para o

combate diz: “Sabendo da inferioridade dos próprios equipamentos bélicos, Israel opta por não

deixar ao Egito a chance de dar o primeiro golpe.

Na manhã do dia 5 de junho de 1967, a força aérea judaica ataca de surpresa as bases

militares egípcias inutilizando as pistas de pouso e destruindo 304 aviões de combate estacionados

em suas proximidades. Na parte da tarde, os ataques da aviação israelense atingem alvos na Síria,

Jordânia e Iraque. Até o fim do dia serão mais 91 caças destruídos.

Anulada qualquer possibilidade dos países árabes poderem contar com seus aviões militares

e com sua força aérea praticamente intacta, Israel começa o ataque por terra. Suas tropas avançam

pelo Sinai rumo a Canal de Suez, ocupam a Faixa de Gaza, as colinas de Golan (na fronteira com a

Síria) e entram na Cisjordânia.

No dia 10, a vitória israelense é fato consumado.

22

Benny Morris, Vittime, pg. 392.

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40

Devido à política de terra arrasada do exército judaico, a guerra deixa um pesado rastro de

destruição em território árabe.

A cidade de Qalqilya e vários vilarejos da Cisjordânia são arrasados. Jericó é atingida pelos

combates que obrigam 70 mil pessoas a deixarem suas casas. Aproveitando da situação, as forças

hebraicas transformam Mughabi, bairro muçulmano de Jerusalém, num amontoado de escombros.

A contas feitas, cerca de 250 mil palestinos são expulsos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza.

A eles se somam outros 90 mil moradores da Síria obrigados a deixarem as colinas de Golan. Estes

contingentes vão tornar ainda mais precária a já difícil situação dos campos de refugiados”.

- “E quanto a Israel?”

- “A Guerra dos Seis Dias coloca o país no centro das atenções mundiais. Os Estados Unidos

começam a tratar o Estado judaico como potência regional e precioso aliado na disputa com a União

Soviética pela hegemonia político-militar no Oriente Médio.

Em termos de ganhos territoriais, os

israelenses ocupam toda a península do Sinai até o

Canal de Suez, a Faixa de Gaza, a Cisjordânia, e

as colinas de Golan que ampliam as possibilidades

de controle do rio Jordão.

O verdadeiro desafio agora é transformar o

triunfo militar em sucesso político, negociando a

paz e o reconhecimento oficial do seu Estado por

parte dos países árabes em troca da concessão de

territórios recém-ocupados.

Mas esta postura sugerida por alguns

ministros não é unânime nem no interior do

próprio governo nem da sociedade israelense. Em

setembro de 1967, setores importantes ligados a

tendências nacionalistas, fundam o Movimento da

Terra de Israel cujo objetivo é promover a rápida

instalação de novos assentamentos onde o exército

havia varrido os sinais da presença árabe. Sob o impacto de renovados sentimentos messiânicos e

nacionalistas, inúmeros hebreus se dirigem às regiões recém-ocupadas em busca de terras para as

novas colônias.

Não pense que este processo é casual ou fruto de uma reação popular espontânea. Na

verdade, ele conta com o apoio explícito de instâncias governamentais. Em quase todos os casos,

além da autorização legal, o governo fornece todo o apoio necessário para o sucesso dos novos

assentamentos: soldados para proteger construções e lavouras, geradores de energia elétrica,

caminhões-pipa para o abastecimento de água, empréstimos com baixas taxas de juro, ou a fundo

perdido, e todos os recursos capazes de garantir o processo de auto-sustentação das novas colônias.

É assim que, motivados pela construção do Grande Israel, milhares de hebreus se transferem

para as regiões ocupadas durante a guerra”.

- “Pelo visto, a vida dos palestinos vai virar um inferno”.

- “Se não for isso, falta pouco”, comenta Nádia em tom nada animador. “Acontece que ao lado de

medidas que garantem a liberdade de acesso aos lugares sagrados da cidade de Jerusalém, Israel

impõe uma administração militar nas áreas sob o seu controle. Nelas implementa e mantém uma

forte estrutura repressiva que busca impossibilitar o surgimento de qualquer reação adversa.

Para piorar as coisas, no segundo semestre de 1967, muitas terras são confiscadas a seus

antigos donos e milhares de palestinos, vítimas do desemprego, da insegurança e da piora

sistemática de suas condições de vida, se vêem obrigados a migrar. Aos que ficam, a administração

judaica nega o acesso aos financiamentos e à água, cria obstáculos à implantação de novas

indústrias e não perde a chance de dificultar ao máximo a vida dos antigos moradores. É assim que,

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entre 100 e 150 mil palestinos, não têm outra opção a não ser a de se tornar força de trabalho barata

e duramente explorada nos empreendimentos judaicos.

Ao lado destas medidas, Israel adota outras que visam apagar a memória e a identidade do

povo. O pouco ensino destinado aos palestinos é reestruturado e expurgado dos conteúdos

considerados contrários à política do Estado judaico. Uma censura eficiente submete qualquer

publicação e meio de comunicação a um rígido controle das autoridades. Centenas de obras

literárias são feitas desaparecer e nem mesmo o Mercador de Veneza de Shakespeare escapa da

acusação de anti-semitismo.

A implantação destas medidas aumenta o ódio dos palestinos. Suas primeiras manifestações

de descontentamento ocorrem em julho de 1967 através de pequenos protestos e pichações. Entre

agosto e setembro, são realizadas várias greves dos setores de transporte e comércio varejista nas

quais manifestantes armados de pedras enfrentam soldados israelenses.

A reação do governo judaico é dura: imposição do toque de recolher, suspensão dos

transportes públicos, fechamento das lojas que haviam aderido aos protestos, bloqueios nas estradas,

mandatos de busca realizados a qualquer hora do dia e da noite e toda espécie de ação intimidatória.

Some isso à delação, à tortura, às sentenças sumárias e à desinformação e não terá nenhuma

dificuldade em perceber que a aparente situação de normalidade nas regiões ocupadas se mantém às

custas da aplicação quotidiana de medidas repressivas.

Além disso, a manutenção de um nível relativamente baixo de resistência civil se baseia

também na cooptação de setores da sociedade palestina. Licenças comerciais, alvarás de construção,

permissões para atravessar os postos de controle e até mesmo os poucos empregos disponíveis são

distribuídos de forma seletiva a quantos se dispõem a colaborar com Israel”.

- “Nádia, confesso que este capítulo está me deixando perplexo e desconcertado. Mas agora eu

queria que você falasse alguma coisa sobre os palestinos que já moravam em território israelense

antes de 1967. Será que eles recebem o mesmo tratamento reservado aos compatriotas dos

territórios recém-ocupados?”

- “Com eles as coisas são um pouco diferentes...”, responde enigmática a coruja.

- “Ainda bem...”, murmuro satisfeito em ver que nem tudo parece estar tão ruim assim.

Mas a breve sensação de alívio é bruscamente interrompida por um “Se eu fosse você não

ficaria tão animado...”, que traz de volta o gosto amargo da realidade.

- “Como assim? Será que nem em Israel os palestinos conseguem ter sossego?”

- “Se você lembra da história que nos trouxe até aqui, não vai ter nenhuma dificuldade em entender

que o governo de Tel Aviv mantém estes palestinos numa situação de apartheid. Com a

proclamação do Estado de Israel, em 1948, os não-hebreus que vivem em seu território vêem seus

direitos serem sistematicamente reduzidos em relação aos que detêm a cidadania plena. Explorados

como força de trabalho barata pelos judeus, moram em bairros dormitório onde, em geral, partilham

uma crescente situação de pobreza. Já antes de 1967, os árabes de Israel são submetidos às regras de

um regime de ocupação militar criado para controlar, dobrar, manipular, aterrorizar e interferir em

cada aspecto de suas vidas, do nascimento até a morte.

Além de serem objeto de constante desconfiança, as autoridades os consideram indivíduos

aos quais é necessário impedir o desenvolvimento de toda forma de consciência nacional que

represente uma ameaça à ordem existente. Mesmo parecendo exagero de minha parte, dá pra dizer

que todo palestino é tratado como filhote de cobra: útil, mas extremamente perigoso. Por isso, o

Estado não hesita em implantar todas as medidas que possam levá-lo a conformar-se com sua

situação de inferioridade e de humilhante dependência de suas instituições.

Para ter uma idéia do que isso significa, basta pensar que no final dos anos 60, o território de

Israel conta com uma população de 400 mil árabes dos quais só 500 têm graduação universitária.

Este número é estarrecedor se você pensa que nos campos de refugiados fora do Estado judaico,

onde as condições de vida são piores, há, em média, 11 estudantes universitários para cada mil

palestinos.

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A situação de discriminação não melhora quando analisamos o número de diplomados nas

escolas profissionais. Do lado árabe, há 19 escolas profissionalizantes com um total de 1048

estudantes. Enquanto isso, os hebreus contam com 250 institutos onde estão matriculados 53 mil

847 alunos judeus.

Se isso não bastasse, outra grande preocupação do governo israelense é que a escola sirva

para incutir nos árabes um sentimento de lealdade em relação a Israel e a consciência oprimente do

seu isolamento no interior deste Estado. E a dizer isso não são os palestinos, mas sim as próprias

conclusões da comissão governamental para as mudanças dos cursos no setor árabe, citadas numa

matéria publicada em 19 de março de 1971 pelo jornal israelense Há’aretz. Nela, Sabri Jiryis

escreve: Os programas de história, de língua árabe e hebraica são ricos de importantes temas

políticos. Até mesmo uma análise apressada do programa irá mostrar que isso visa celebrar a

história dos hebreus e a apresentá-la na melhor roupagem possível, enquanto a árabe é deformada

a ponto de beirar a falsidade: esta é explicada como uma série de revoluções, matanças e seguidas

intrigas de forma a diminuir completamente as conquistas. Além do mais, também o tempo

dedicado ao estudo da história árabe é bem pequeno. Na quinta série, por exemplo, os estudantes

de 10 anos passam dez horas aprendendo noções sobre os “hebreus” e somente cinco sobre a

“península árabe”. E também no estudo desta última a atenção é centrada, conforme estabelecido

pelo programa, sobre as comunidades hebraicas da região. Na sexta série, trinta em sessenta e

quatro horas são dedicadas ao estudo da “História Islâmica”, do começo até o fim do século XIII,

incluído o estudo de Moisés, dos Maimónidas e do poeta hebreu espanhol Irn Gabirol. Não há

referência à história árabe em sétima, mas um sexto das horas de história são dedicadas ao estudo

das relações entre os hebreus da diáspora e Israel. Em oitava série, passa-se a estudar por trinta

horas “O Estado de Israel” e só dez são dedicadas à história dos árabes do século XIX até hoje,

deixando assim uma lacuna de cinco séculos”. 23

- “Estou perplexo...”, reconheço ao deixar cair a caneta sobre as folhas.

Insensível à minha situação e temendo se tratar de um pedido de descanso, Nádia me encara

com um “Então é bom você se refazer logo do susto”, que faz a mão agarrar novamente o

instrumento de trabalho. Com a muleta apontada em direção ao dedo ainda doído, lança um

“Prepare-se, pois chegou a hora de falar das repercussões internacionais da Guerra dos Seis Dias”,

que sinaliza mais uma passagem importante do seu relato. E continua: “Entre as nações envolvidas

no conflito, o Egito é a que paga o preço mais alto. Seu exército está praticamente destruído, o

Canal de Suez (boa fonte de renda) está fechado por tempo indeterminado em função da tensão que

se instala entre o lado egípcio e israelense, o petróleo do Sinai está nas mãos dos judeus, o turismo

despenca e há uma perda de prestígio junto aos demais países árabes. O regime de Nasser está à

beira do abismo. Sua precária sustentação se deve à ajuda bélica e alimentar fornecida pelo bloco

soviético e à manipulação da mídia.

Na Síria, o partido Baath exerce um controle ferrenho sobre os meios de comunicação e os

ambientes militares. Apesar de alguns percalços, o regime se mantém e adota como prioridade o

fortalecimento das forças armadas rumo à reconquista das colinas de Golan e a um mais amplo

acerto de contas com Israel.

A União Soviética aproveita do apoio americano a Israel e das necessidades de assistência

dos países derrotados para facilitar a penetração no mundo árabe, onde suas armas, assessores e

diplomatas começam a integrar o cenário quotidiano das relações de poder na região.

Longe de fazer uma avaliação profunda de sua fragilidade, os governos árabes repetem seus

discursos em relação a Israel. Em agosto-setembro de 1967, a cúpula de Cartum (Sudão) delibera

que estes devem se unir para varrer as conseqüências da agressão judaica e forçar a sua retirada dos

territórios ocupados durante a guerra. Os líderes aderem também a uma série de princípios: 1.

Nenhuma paz com Israel; 2. nenhum tipo de reconhecimento do Estado judaico; 3. nenhum acordo

com Israel em futuras negociações; 4. o direito do povo palestino de construir um Estado próprio.

23

Em Edward W. Said, La questione palestinese, pg. 131-132.

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Diante do clima de tensão, em 22 de novembro de 1967, o Conselho de Segurança da ONU

aprova a Resolução 242. De acordo com o seu conteúdo, a paz justa e duradoura prevê, de um lado,

a devolução dos territórios ocupados por Israel em junho de 1967 e, de outro, a renúncia das nações

árabes à sua beligerância, o reconhecimento da integridade territorial e da independência política de

cada Estado e do seu direito de viver em paz no interior de fronteiras seguras e reconhecidas. A 242

afirma também a liberdade de navegação nas águas internacionais da região e a necessidade de

resolver o problema dos refugiados”.

- “Ao que tudo indica, a ONU parece ter encontrado uma solução honrosa para a crise!”, afirmo

animado pela esperança de ver terminada a longa sucessão de guerras que aflige o Oriente Médio.

- “O que você não consegue perceber é que a Resolução 242, que quer servir de base para uma

solução justa e duradoura, ignora exatamente a essência do problema que está na base do conflito.

Pela sua redação, o centro das preocupações é a necessidade de evitar uma nova guerra entre Israel e

os países árabes. Isso não pelas mortes que ela traria, mas sim pela alta dos preços dos

combustíveis, promovida pelas nações da península árabe, que causaria sérios prejuízos à economia

mundial.

A questão palestina, que está na origem dos enfrentamentos, é tratada apenas como um

problema de refugiados. Em outras palavras, a resolução 242 nega que os palestinos tenham direito

à autodeterminação e representa um retrocesso em relação às anteriores que chegavam a prever a

volta dos refugiados a seus locais de origem com direito a indenizações pelos danos sofridos. Com a

242, Israel se vê livre desta obrigação incômoda e os países árabes são convidados a enterrarem pra

sempre a questão palestina. Uma coisa é acreditar nas aparências, outra, bem diferente, é fuçar no

emaranhado de interesses que se escondem atrás delas”.

- “Bom, Nádia, mas será que pelo menos o Egito vai aderir ao esforço de paz das Nações Unidas?”

- “Nada disso. O que você não entende é que sem o desejo de reconquistar o Sinai e a Faixa de

Gaza, perdidos na guerra, o povo não perdoaria a humilhante derrota sofrida em junho de 1967.

Nasser tem consciência desta realidade e não hesita em pressionar os soviéticos para que

recomponham rapidamente o seu arsenal com armas mais modernas.

As tentativas de chegar a um acordo de paz com Israel fracassam. Em setembro de 1968, as

tropas do Cairo iniciam uma guerra de desgaste com disparos de artilharia e ações de comandos

egípcios contra as posições israelenses na margem oriental do Canal de Suez.

Provocações e enfrentamentos se multiplicam de ambos os lados até que, em junho de 1969,

os Estados Unidos aprovam o uso da aviação de guerra judaica. Nos combates aéreos, as forças do

Cairo (bem equipadas, mas pouco treinadas) sofrem as maiores perdas. Diante do agravar-se da

situação, em dezembro do mesmo ano, soviéticos e americanos tentam levar Egito e Israel a um

acordo de paz. As negociações não chegam a nenhum resultado positivo e Nasser obtém da União

Soviética a entrega de novos e mais sofisticados equipamentos militares, além de um esquadrão de

assessores e especialistas que cuidariam de sua instalação e do treinamento dos soldados egípcios. O

clima de tensão esquenta e, entre novembro de 1969 e fevereiro de 1970, ocorrem mil 754

incidentes ao longo do Canal de Suez. A guerra de atrito ameaça entrar numa nova fase.

Diante da crescente possibilidade de conflito e de envolvimento direto da URSS, o governo

de Washington tenta colocar água na fervura atrasando a entrega a Israel de novos aviões Phanton e

Skyhawk. Mas você não pense que ele vai deixar seus pupilos desprotegidos, já que Tio Sam cuida

de repor imediatamente todos os equipamentos perdidos ou danificados.

Com a instalação das baterias de mísseis ao longo do Canal de Suez, as forças egípcias

fortalecem suas defesas e aceleram os preparativos para a que chamam de guerra de libertação.

Porém, em 27 de setembro de 1970, Nasser morre vítima de um infarto e Hanwar Sadat passa a ser

o novo homem forte do Egito”.

- “Nesta confusão toda, você tem alguma informação sobre a resistência palestina?”, pergunto

temendo o pior.

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- “Acontece que, ao deixar clara sua intenção de permanecer nos territórios ocupados e ao fechar

qualquer possibilidade de diálogo, Israel leva os palestinos a escolherem entre a resignação e a luta

armada.

Em 12 de junho de 1967, dois dias após o fim do conflito, os dirigentes de Al Fatah se

reúnem em Damasco. Entre as decisões do encontro, está a de retomar a guerrilha só a partir dos

territórios ocupados por Israel e de iniciar uma campanha de arrecadação de fundos. Com eles a

organização compraria armamentos, criaria novas células na Cisjordânia e na Faixa de Gaza e

prepararia suas bases ao longo das fronteiras com o Líbano e a Jordânia.

Os recursos afluem dos campos de refugiados, da Síria e do Iraque. Em 31 de agosto de

1967, Al Fatah realiza um congresso clandestino que aponta a retomada das ações militares como

meio para suscitar uma guerra popular de libertação na qual os palestinos se levantariam contra

Israel. Na primeira semana de setembro, os fedayn começam suas operações nas cidades de Nablus,

Ramallah e Jerusalém.

A reação do Estado judaico é dura: prisões em massa, interrogatórios, torturas e destruição

das casas dos suspeitos de abrigarem os guerrilheiros. As represálias visam distanciar a população

dos grupos fedayn no intuito de subtrair-lhes importantes bases de apoio. Até dezembro de 1967,

200 membros da guerrilha palestina são mortos e mais de mil estão presos.

No dia 11 do mesmo mês, faz seu aparecimento a Frente Popular para a Libertação da

Palestina (FPLP) fundada e liderada por George Habashe, médico cuja família havia se refugiado no

Líbano após a guerra de 1948. De caráter marxista, a FPLP reconhece o povo palestino como o

principal responsável pela sua causa, em função da qual deve manter a independência em relação às

exigências dos países árabes. Pregando a luta armada revolucionária contra o sionismo, em 1970,

quando adere à OLP, o grupo já tem cerca de 2 mil integrantes.

Em abril de 1968, Ahmed Djibril rompe com a FPLP e funda a Frente Popular para a

Libertação da Palestina – Comando Geral (FPLP-CG). Acusando Habashe de sacrificar a luta

armada ao embate político, seus integrantes vêem a ação militar como o único caminho para

derrotar o sionismo. Embora integrando a OLP, a FPLP-CG não vai passar de um pequeno grupo

com pouca inserção na massa palestina. Ao longo dos anos 70 e 80, seus integrantes realizarão

vários atentados terroristas contra alvos israelenses e ocidentais.

Longe de formar um bloco homogêneo, a resistência palestina vai dar origem a outros

grupos sendo que Al Fatah, de Yasser Arafat, se mantém majoritário no interior da OLP”.

- “Mas, Nádia, se eu entendi direito, os fedayn devem ter sofrido um duro revés entre setembro e

dezembro de 1967. Os que restam são impossibilitados de permanecerem nos territórios ocupados.

Estou errado, ou nesta altura a causa palestina parece estar mais morta do que viva?”

A coruja coça a cabeça. Põe a asa debaixo do queixo e por alguns instantes reúne pensativa

os dados que permitem responder à minha indagação. E, desenhando círculos no ar com o graveto-

muleta que até poucos instantes segurava o peso do seu corpo, dá início a uma resposta que, pelo

jeito, não será tão breve quanto desejo.

- “Realmente, em janeiro de 1968, a situação de Al Fatah é extremamente difícil. Contando com não

mais de 400 militantes, o centro de suas discussões não é como ganhar, mas sim como manter viva a

idéia da luta. A esperança de uma insurreição popular nos territórios ocupados havia se revelado um

erro e aos guerrilheiros não resta outra opção a não ser a de atacar Israel a partir de bases situadas

fora dos territórios ocupados.

Em Damasco, o governo da Síria deixa claro que não vai permitir que os fedayn usem o seu

território para este fim. Arafat e seus homens só poderiam ter como bases o Líbano e a Jordânia.

Israel não dá moleza e pune cada ação guerrilheira com uma dura represália. Mas,

ironicamente, o que poderia destruir a resistência palestina é exatamente o que lhe dá novo alento”.

- “Como assim?”

- “Em março de 1968, uma mina colocada pelos fedayn faz explodir um ônibus escolar israelense

nas proximidades do assentamento de Beer Ora, matando 2 adultos e ferindo 10 crianças. A

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represália judaica se dirige ao vilarejo jordaniano de Karama, sede do quartel geral avançado de Al

Fatah. Lá, centenas de civis convivem com cerca de 900 guerrilheiros dotados de armas leves.

Mesmo contando com equipamento superior, o exército israelense sofre graves perdas.

Encurraladas pelos palestinos e por soldados jordanianos, as tropas judaicas são obrigadas a recuar.

Apesar de destruir cerca de 175 casas, a represália não consegue aniquilar o enclave de Al Fatah.

Ainda que não se possa falar de um triunfo palestino e jordaniano, Karama se torna um

símbolo da possibilidade de vencer as forças armadas israelenses. Atraídos por ele, milhares de

jovens palestinos a se integrarem às fileiras de Al Fatah que, em poucos meses, chega a ter entre 10

e 15 mil militantes.

Diante dos acontecimentos, os povos árabes passam a apoiar os fedayn com dinheiro e

armas. A eles se unem os exilados que começam a remeter regularmente parcelas mensais de seus

ordenados. A resistência palestina dá início à implantação de uma ampla rede de serviços. Nas

proximidades dos campos de refugiados nascem escolas, hospitais e orfanatos. Passo a passo, são

criados programas de ajuda aos veteranos, redes de abastecimento, grupos estudantis e grêmios

femininos. Com a formação e o treinamento militar caminhando juntos, a cultura renasce e fortalece

a identidade dos refugiados enquanto povo palestino.

Em poucos meses, as bases guerrilheiras e os campos de refugiados na Síria e na Jordânia

assumem as feições de um Estado no interior de outro Estado. Graças ao apoio popular, os fedayn

ganham grande liberdade de ação nos países árabes. O problema é que, com tudo isso, começam a

chegar também a burocracia e os abusos de poder que, em pouco tempo, geram atritos com as forças

armadas locais e no próprio interior do movimento.

Sob o impacto destes acontecimentos, em julho de 1968, se reúne no Cairo o 4º Congresso

Nacional Palestino ainda sob a presidência de Shukeiri, eminência parda a serviço dos interesses

egípcios. Mas o descontentamento em relação à OLP (que funciona como uma espécie de direção

executiva do Congresso Nacional Palestino) toma conta de suas bases que vêem as aspirações da

massa palestina serem sistematicamente colocadas em segundo plano.

No calor dos debates, Yehya Hammouda é eleito presidente do Comitê Executivo da OLP e

encarregado de contatar as organizações guerrilheiras com as quais deve preparar o 5º Congresso

num prazo máximo de 6 meses. A sua realização no Cairo, em fevereiro de 1969, é marcada pela

eleição de 4 representantes de Al Fatah e de Yasser Arafat na direção da OLP.

No dia 22 do mesmo mês, o grupo de Nayef Hawatmeh rompe com Habashe e funda a

Frente Democrática para a Libertação da Palestina (FDPLP). Sua principal crítica à FPLP é a

ausência de um programa político que seja realmente marxista e capaz de definir as etapas da luta

palestina contra o sionismo. Para Hawatmeh, o objetivo estratégico final é a construção de um

Estado democrático na Palestina, onde israelenses e palestinos possam viver em paz e com os

mesmos direitos. O longo caminho nesta direção pressuporia etapas que prevêem a recuperação de

direitos nacionais, a criação de uma autoridade nacional palestina independente nos territórios da

Cisjordânia e Gaza, o retorno dos refugiados a seus lugares de origem. Num segundo momento, a

luta seria pela volta à partilha estabelecida pela ONU, em 1947, com a criação de um Estado árabe

palestino e, finalmente, a construção de um Estado democrático em toda a antiga Palestina.

Pequena quando do seu nascimento, a discussão política introduzida pela FDPLP ganha

espaço no interior da OLP a partir do final de 1972”.

- “Pelo visto, o fortalecimento dos grupos guerrilheiros anuncia uma nova onda de ataques contra

Israel...”, comento ao fazer um gesto que parece unir passado, presente e futuro.

- “Mmmh!”, murmura Nádia numa expressão de surpresa. “É bom constatar que seus olhos

humanos estão começando a enxergar nas entrelinhas da história. Só espero que o cérebro, que em

tamanho perde feio pela barriga, não esqueça de uma realidade já constatada em inúmeras ocasiões:

para cada ação palestina, há uma reação israelense e uma resposta do mundo árabe que, volta e

meia, está em rota de colisão com os grupos guerrilheiros”.

- “Não entendo o que você quer dizer com isso?”

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- “Espere e verá”, responde a coruja em tom de mistério. Após instantes de silêncio, a ave pisca os

olhos e com um sorriso desafiador diz: “Vamos começar pela Faixa de Gaza. Em 1969, nesta

pequena língua de terra, ocorrem quase 700 enfrentamentos entre os fedayn e as forças israelenses.

No ano seguinte, a FPLP assume o controle de um bom número de campos de refugiados. Às

ações contra alvos israelenses se somam agora os assassinatos de dezenas de palestinos suspeitos de

colaborarem com os serviços secretos judaicos.

Em 2 de março de 1971, uma granada mata duas crianças e fere seus pais, todos hebreus. É a

gota d’água para uma ampla represália liderada pelo general Ariel Sharon. A antiga fronteira entre

Israel e a Faixa de Gaza é fechada com arame farpado e várias ruas são abertas no meio dos campos

de refugiados para facilitar a ação das patrulhas. Os soldados israelenses têm ordens de abrir fogo ao

primeiro sinal de provocação enquanto uma unidade secreta, chamada Rimon, se encarrega dos

trabalhos de inteligência e da execução sumária do maior número possível de supostos terroristas.

Dezenas de suspeitos presos são assassinados nas cadeias com um tiro nas costas sob a alegação de

infundadas tentativas de fuga.

Em novembro de 1971, com mais de 100 guerrilheiros mortos e outros 700 presos, o

movimento de resistência em Gaza é completamente neutralizado”.

- “Meu Deus!?!”

- “Espere, você ainda não sabe da metade das coisas. Outra frente da luta palestina é a que tem

como base os campos de refugiados do sul do Líbano. Em 1969, os fedayn lançam os primeiros

mísseis contra a cidade israelense de Qiryat Shmona. Temendo retaliações, o exército libanês

investe contra as bases guerrilheiras que, além de receber apoio da Síria, contam com a ajuda de

grupos muçulmanos locais interessados em desgastar o poder da elite cristã.

Após vários enfrentamentos com os palestinos, chega-se a um acordo pelo qual a região de

Arkoub, próxima à fronteira com Israel, seria uma espécie de território autônomo fedayn. Em troca,

a guerrilha aceitaria as restrições do governo de Beirute no sentido de limitar ao máximo as

investidas contra o território judaico a partir da fronteira libanesa.

Alguns comandantes de Al fatah se rebelam aos acordos assinados por Arafat, ao mesmo

tempo em que aumentam as represálias israelenses e as tensões com o exército libanês. O agravar-se

da crise nas fileiras palestinas é evitado graças à intervenção da Argélia, cujo embaixador abre as

portas para que o principal líder rebelde Abu Yusef Al Mayed possa se exilar no seu país.

Para compensar as restrições impostas pelo Líbano, ao longo de 1972, Al Fatah concentra

mais soldados nas regiões de fronteira entre Israel e a Síria de onde sai a maior parte das ações. Em

outubro-novembro de 1972, as forças armadas judaicas lançam pesados ataques contra as bases

palestinas neste país. Estes não poupam os povoados da Síria num claro recado de que a ajuda

prestada aos fedayn tem um alto preço a ser pago. Não demora muito para que o governo de

Damasco negue aos guerrilheiros o acesso a Israel através de seus territórios”.

- “Só falta você dizer que a Jordânia também...”

- “Falou e disse! Paralelamente à situação que acabo de descrever, o crescimento das bases

guerrilheiras na Jordânia eleva o atrito entre fedayn e forças armadas locais e as pressões sobre a

monarquia, encurralada pelo descontentamento do exército, dos fedayn e do povo, atingido pelas

represálias israelenses.

Para evitar uma possível queda do regime, em 9 de julho de 1970, as tropas jordanianas

aproveitam de uma tentativa guerrilheira de libertar alguns fedayn presos para abrir fogo contra os

campos de refugiados nas proximidades de Amã. Quatro dias de enfrentamento deixam cerca de 400

mortos e 750 feridos. Nas semanas seguintes, a caravana do rei sofre um atentado e a FPLP realiza

um ataque após o qual mantém como reféns 33 estrangeiros hospedados em Amã.

Com a assinatura do cessar-fogo entre Egito e Israel em 7 de agosto de 1970, a Jordânia se

sente fortalecida em sua ação para conter os guerrilheiros e o rei avisa a OLP de que não vai tolerar

qualquer desafio à sua autoridade.

Ao mesmo tempo, os Estados Unidos suspendem os recursos regularmente enviados à corte

jordaniana para pagar seus gastos e os soldos do Exército e que, na verdade, eram uma forma de

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vincular a casa reinante aos interesses estadunidenses. Trata-se, portanto, de um aviso dirigido a

Hussein de que os EUA podem abandoná-lo, e até mesmo provocar sua queda, caso não se decida a

agir contra a OLP.

Em resposta, no dia 30 de agosto, o exército da Jordânia investe contra as posições da

resistência palestina. Ao ataque seguem duas tentativas de assassinato do rei e o seqüestro de dois

aviões por parte da FPLP. Mas, diante das crescentes pressões internas e externas, no dia 17 de

setembro, Hussein ordena uma ampla ofensiva contra os campos de refugiados e as bases da OLP

em Amã. De acordo com fontes palestinas, no ataque morrem 900 guerrilheiros e 350 civis.

Perdidas as bases em Amã, os fedayn mantêm alguns comandos nas proximidades da fronteira com

Israel que, nos meses seguintes, terão vários enfrentamentos com as tropas regulares jordanianas.

Em 13 de julho de 1971, o rei ordena que seja varrida do mapa toda posição guerrilheira

presente em seu território. Após seis dias de combates, o governo de Amã anuncia a prisão de 2 mil

e 300 fedayn. Os que conseguem fugir se refugiam antes na Síria e, em seguida, no sul do Líbano

que se torna a maior base de operações da OLP. Mais uma vez, os palestinos estão sozinhos na linha

de frente da luta contra Israel”.

- “Reconheço que esta parte do relato está me deixando sem palavras. Ainda assim, tenho mais uma

pergunta. Sabe, Nádia, lembro que lá pelo início da década de 70 eu ouvia falar muito de ataques

terroristas palestinos não só no Oriente Médio, como também na Europa e em regiões da África.

Você esqueceu de falar disso, ou está escondendo o peixe?”, pergunto em tom indagador.

A coruja sorri e sem dar sinais de intimidação prepara uma resposta que parece ter gosto de

convite: “Não há porque esconder o que a história já revelou. O importante é explicar o porquê dos

acontecimentos para entendê-los no interior do emaranhado de relações que trazem em seu bojo. Por

isso, prepare seus ouvidos porque vem aí o capítulo sobre o período que vai...

6. Da estratégia do terror à guerra do Yom Kippur.

Ajeitada a muleta, Nádia começa um vaivém silencioso. Cada passo parece recuperar uma

idéia, um acontecimento, enfim, uma peça do quebra-cabeça da questão palestina.

Aproveitando da concentração da coruja, o corpo afasta a cadeira enquanto os pés se

apressam no caminho da cozinha. O trabalho de redigir os relatos estimula aquela fominha cuja

fronteira com a gula dificilmente pode ser demarcada. Em outras palavras, está na hora de assaltar a

barra de chocolate escondida atrás das compras do mês.

Ansiosas, as mãos afastam pacotes e latinhas até chegar ao precioso tesouro. A boca se

enche d’água. Faltam poucos instantes para a língua se deliciar com este manjar dos deuses quando

os ouvidos são atingidos por uma frase capaz de amargar qualquer doçura:

- “Depois se queixa porque fica gordo...”, comenta Nádia em tom irônico.

- “Ah, não! Agora você também resolveu pegar no meu pé?”.

- “Só quero poupá-lo da bronca do médico na hora dele ver o resultado do próximo exame de

colesterol. Por isso, sugiro que largue o chocolate e volte ao trabalho”.

Sentado ao meu posto, coloco num canto da mesa alguns pedacinhos do tablete. As mãos

mal-acabam de pegar a caneta quando Nádia devora em rápidas bicadas o precioso botim.

- “Se o chocolate faz mal, por que você come?”, questiono raivoso e frustrado.

- “Ora, porque aquilo que em você vira banha, para mim é energia necessária para continuar nesta

longa jornada, querido secretário”.

- “Era só o que me faltava. Agora que a danada desta coruja acaba de abastecer não vai ter quem a

segure...”, murmuro entre os dentes.

- “Pare de resmungar e vamos ao que interessa! No final do capítulo anterior você pedia que falasse

da estratégia do terror palestino. Pois, aqui estão as minhas conclusões.

Após sofrer a violenta repressão da Jordânia e com os espaços se fechando na Síria, a mídia

internacional não titubeia em afirmar que a OLP está acabada.

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No calor das discussões que ocorrem em seu interior, um setor da militância de Al Fatah

funda uma organização que, nas palavras de Abu Iyad, tem o objetivo de fazer com que o mundo

perceba a existência do povo [palestino].24

È assim que, entre agosto e setembro de 1971, nasce o

que seria conhecido como Setembro Negro, cuja estrutura e comando são, desde o início,

independentes da OLP.

De 1970 a 1976, as forças da FPLP e de Setembro Negro vão realizar seqüestros de aviões e

atentados terroristas não só em território judaico, mas também contra alvos israelenses no exterior.

Entre 1971 e 1973, há um aumento significativo destas ações numa seqüência que não dá

trégua a Israel e à opinião pública internacional. Entre elas, a que vai deixar marcas profundas

ocorre durante as olimpíadas de Munique com o seqüestro de 9 atletas da delegação de Israel, em 5

de setembro de 1972.

Os olhos do mundo inteiro acompanham e condenam o trágico desenrolar da ação terrorista.

Mas, como sempre, não vêem a resposta do Estado judaico que cobra com juros altíssimos a conta

da chacina: um pesado ataque aéreo e terrestre contra as bases da OLP no Líbano que destrói

povoados inteiros matando cerca de 400 palestinos, a maior parte deles, civis. A imprensa se cala ou

limita-se a descrever esta retaliação com palavras que justificam a atitude israelense.

Diante da escalada de violência, em maio de 1972, o governo de Tel Aviv cria uma

organização antiterror conhecida pelo nome de Ha Mossad, ou Instituto para Missões Especiais. A

idéia de seus fundadores é de recorrer aos métodos terroristas para acabar com os grupos terroristas.

Ou seja, trata-se de assassinar líderes guerrilheiros em regiões do Oriente Médio, ou fora delas, com

boa parte das autoridades governamentais fazendo vista grossa diante dos acontecimentos.

A espiral de violência, alimentada pela situação desesperadora em que se encontram os

palestinos e pelas ações israelenses, faz com que, em vários casos, o terrorismo de Setembro Negro

e das demais frentes de resistência não tenha só a tarefa de atrair os holofotes sobre a questão

Palestina, mas também de responder às incursões das forças armadas hebraicas numa assustadora

seqüência de golpes e contragolpes”.

- “Desse jeito, o olho por olho, dente por dente ganha uma versão palatável...”, sugiro em tom de

aberta provocação.

Compenetrada, Nádia suspira profundamente e, em seguida, aponta a asa em minha direção

na atitude de quem pretende dirimir qualquer dúvida em relação às suas posições: “Pois, fique

sabendo que não é nada disso! Ao colocar frente a frente as causas e conseqüências do terror

palestino e israelense não pretendo justificar um pelo outro. Faço isso apenas para levantar os

elementos que permitem entender o caldo de cultura que dá origem a ambos e apontar as

contradições e as responsabilidades que os governos, direta ou indiretamente envolvidos, têm nos

fatos que a história registra”.

Um pesado silêncio de reflexão se estabelece entre nós. Constrangida pelo gosto amargo por

ele deixado, a língua resolve rompê-lo com uma pergunta que não tem outra pretensão a não ser a de

retomar a conversa: “Mas... as ações de Setembro Negro vão durar até que ano?”

- “Pelo que se sabe, elas começam a diminuir sua intensidade quando os líderes da OLP percebem

seu efeito contraditório: ao mesmo tempo em que atrai a atenção do mundo sobre a situação dos

palestinos, o terror desgasta a simpatia das pessoas para com a sua causa e isso acaba prejudicando

as relações diplomáticas dos próprios dirigentes da OLP a nível internacional.

Mas nem todos os grupos aceitam suspender suas atividades e uma parte deles vai realizar

uma série de atentados que se mantém até 1976.

De acordo com alguns historiadores, outro elemento que vai pesar na decisão de deter a

estratégia do terror seria o plano de Sadat, presidente do Egito, de levar os árabes a uma nova guerra

contra Israel. Neste contexto, os guerrilheiros palestinos teriam sido convidados a reduzir suas ações

para não correr o risco de atrair a represália judaica sobre Síria e Egito, enquanto estes países se

preparam para o conflito”.

24

Benny Morris, Vittime, pg. 477.

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- “Você está querendo dizer que, em 1973, o Oriente Médio está no limiar de uma nova guerra?”,

pergunto entre a surpresa e o espanto.

- “Acertou em cheio!”

- “Eu achava que...”

- “Sim. Já sei, você achava que, com o cessar-fogo entre Israel e o Egito em agosto de 1970, as

nações árabes teriam encontrado o caminho da paz. O problema é que a suspensão das hostilidades

não impede que o Egito leve adiante os preparativos para uma nova guerra ao ver que suas

demandas são barradas pelo governo de Tel Aviv”.

- “Como assim?”

- “Em 28 de dezembro de 1970, Sadat fala explicitamente de um acordo de paz com Israel em troca

da retirada de suas tropas dos territórios egípcios ocupados em 1967. Na verdade, a sua iniciativa

tem como base a proposta que o próprio Ministro da Defesa israelense, Moshe Dayan, havia

delineado à Primeira Ministra, Golda Meir, três meses antes: afastar em 30 quilômetros as tropas

judaicas para permitir a reabertura do Canal de Suez e a reconstrução de cidades e povoados ao

longo de sua extensão como primeiro passo rumo a um acordo de paz.

Semanas depois, em 4 de fevereiro de 1971, o presidente do Egito formaliza a sua proposta

junto ao parlamento: a retirada israelense do Canal de Suez em troca de um cessar-fogo duradouro.

Após algumas consultas, o governo judaico rechaça a proposta de Sadat e, em 13 de março,

Golda Meir declara enfática que Jerusalém, as colinas de Golan e o Sinai (desmilitarizado) devem

continuar sob controle israelense.

O Egito responde pedindo um acordo que caminhe rumo a uma completa retirada de Israel

do Sinai. Apostando na boa vontade do Cairo e diante da necessidade de reduzir os gastos militares,

Dayan reapresenta a sua proposta. Em resposta, os membros do governo sugerem que as tropas

judaicas se distanciem, no máximo, 10 quilômetros a leste do Canal de forma a mantê-lo no raio de

ação de suas unidades militares. Além disso, deixam clara sua recusa de vincular um acordo interino

a uma paz futura que implique a completa retirada do Sinai, por entender que esta medida colocaria

em risco o acesso dos navios israelenses ao golfo de Ácaba e ao porto de Eilat.

Diante dos acontecimentos, em maio de 1971, o governo do Cairo está convencido de que a

guerra é a única opção que lhe resta. Não para invadir o território israelense, pois Tel Aviv poderia

responder à agressão usando as armas nucleares fornecidas pelos EUA, mas tão somente para

recuperar uma faixa de terra que possibilite a reabertura do Canal, lave a humilhação sofrida na

Guerra dos Seis Dias e sacuda o imobilismo diplomático de Israel e da comunidade internacional”.

- “Será que, depois do desastre da Guerra dos Seis Dias, a URSS vai apoiar o Egito nesta

empreitada?”, questiono incrédulo.

Nádia pisca os olhos, levanta a muleta e desenhando círculos no ar dá a impressão de que a

resposta seja um sim, porém não: “O interesse dos soviéticos em manter sua influência na região

leva o governo de Moscou a aumentar o fornecimento de material bélico ao Cairo ao mesmo tempo

em que se mostra arredio quanto à necessidade de uma nova guerra. Temendo a repetição do

desastre de 1967 e a possibilidade do conflito descambar numa queda-de-braço com os Estados

Unidos, os militares soviéticos no Egito começam a semear nas tropas locais opiniões contrárias a

um novo enfrentamento com Israel.

Esta atitude vai esfriando as relações entre os dois países. O ressentimento de Sadat aumenta

quando, após a visita do presidente norte-americano, Richard Nixon, a Moscou, em maio de 1972,

as duas potências divulgam um comunicado conjunto que parece congelar a situação do Oriente

Médio em nome da redução da tensão entre elas.

Decidido a ir para o tudo ou nada, Sadat força a barra com a União Soviética. Em julho de

1972, expulsa milhares de assessores militares do Exército Vermelho e exige o fornecimento de

armas de última geração. Sabendo que os egípcios têm dificuldade de manusear os equipamentos

bélicos já instalados, Israel e os EUA se convencem de que o Egito está renunciando à idéia de uma

nova guerra. Isso ao mesmo tempo em que, temendo perder terreno no Oriente Médio, Moscou

começa a fornecer a contragosto as armas pedidas por Sadat.

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Além de preparar o próprio exército para o confronto, em abril de 1973, o Egito chega a um

acordo com a Síria para que os dois países ataquem simultaneamente os territórios ocupados por

Israel em 1967. O início das hostilidades seria na noite entre o dia 6 e 7 de outubro, data na qual

coincidiriam três elementos importantes para o ataque: 1. o fato de ser uma noite sem lua ajudaria a

ocultar as manobras das tropas egípcias; 2. a diferença entre a maré baixa e alta seria mínima

facilitando as operações de construção das pontes de barcos pelas quais as tropas atravessariam o

Canal; 3. muitos soldados israelenses estariam com suas famílias para os rituais da festa do Yom

Kippur, que, além do jejum de 27 horas, prevê a suspensão de todos os serviços públicos e de

qualquer programa de rádio e televisão, meios através dos quais Israel mobilizaria a população para

a guerra. Em outras palavras, o sistema defensivo judaico reduzido ao mínimo indispensável, a

escuridão e a maré favorável potencializariam o efeito surpresa, ponto forte do plano árabe”.

- “Você esta querendo dizer que as forças armadas judaicas não conseguem perceber as manobras e

a movimentação de tropas que estão acontecendo debaixo de seus olhos?”

- “O problema não é este. Ver, elas estão vendo, mas o sentimento de superioridade que permeia

seus contingentes faz com que o alto comando seja incapaz de interpretar a realidade.

Os serviços de inteligência, por exemplo, há tempo vinham dando por certo que, após

décadas de derrotas, os árabes estariam convencidos da impossibilidade de ganhar do exército

judaico. Logo, nenhuma nação arriscaria seus homens num novo enfrentamento.

O próprio governo de Tel Aviv considera Sadat um presidente medíocre, superficial e

indeciso. Por isso, as ameaças de guerra, seguidamente reafirmadas até setembro de 1973, são

recebidas em Israel como um mero esforço de propaganda pessoal com poucos efeitos práticos.

Também é necessário dizer que, nos meses que antecedem seus ataques, Síria e Egito

realizam movimentações políticas e militares capazes de enganar os observadores mais atentos. Até

setembro de 1973, Sadat mantém vários contatos oficiais com numerosos representantes americanos

e das Nações Unidas a respeito de algumas propostas de paz para a região. Os dois países fazem

amplo uso da mídia para divulgar a idéia de que, em termos políticos e militares, as duas nações

vêm agindo de forma rotineira sendo que, entre o final de setembro e o início de outubro, os

noticiários falam de grandes discordâncias entre os dois presidentes.

Para desviar ainda mais a atenção dos serviços de inteligência israelenses, há pouco mais de

uma semana do início dos combates, os guerrilheiros da Al Saika atacam um trem que transporta

judeus soviéticos da Tcheco-Eslováquia a Israel. Temendo pela vida dos reféns, o governo da

Áustria aceita o pedido dos seqüestradores de fechar as instalações de Schönen, na periferia de

Viena, usadas como ponto de apoio pelos migrantes que se dirigem ao Estado judaico. Esta postura

leva Golda Meir a voar para a capital austríaca na tentativa de convencer o governo local a voltar

atrás em sua decisão. A situação dos reféns, as negociações e as investigações em relação ao

ocorrido acabam tirando a atenção dos israelenses dos preparativos de guerra árabes.

Quanto ao treinamento dos soldados, só os altos comandos do Egito e da Síria sabem da

realização do ataque. Por meses, os oficiais das linhas de defesa na margem ocidental do Canal de

Suez realizam exercícios militares de atravessamento do Canal. Como, desde 1968, esse tipo de

manobra havia se tornado corriqueiro, a movimentação de homens e equipamentos bélicos não

chega a levantar suspeita. Para confundir ainda mais os serviços secretos judaicos, algumas

unidades do exército egípcio são mantidas em alerta sob a alegação pública de que Israel poderia

aproveitar do cansaço dos treinamentos para atacar as linhas de defesa do Cairo.

Some estes elementos e verá que, apesar de Dayan acreditar na possibilidade dos árabes se

vingarem, não é difícil entender porque o governo de Tel Aviv é pegue de calça curta.

É assim que, às três da tarde do dia 6 de outubro de 1973, a Síria ataca as posições

israelenses nas colinas de Golan e à noite é a vez do Egito fazer o mesmo ao longo do Canal de

Suez”.

- “Isso deve ter levado à derrota das forças armadas hebraicas...”, comento diante do que parece ser

o óbvio desfecho de uma ação meticulosamente preparada.

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- “Eu, no seu lugar, não teria tanta certeza...”, retruca Nádia desafiando o final apontado pelas

aparências.

- “Você não está querendo dizer que...”

- “Sim, querido secretário, a história revela que, apesar dos duros golpes lançados pelos adversários,

Israel consegue reorganizar suas defesas e, no dia 8 de outubro, começa a reverter a situação. Seis

dias depois, suas tropas entram na Síria e chegam a apenas 30 quilômetros de Damasco.

Na frente de batalha do Sinai, as coisas não são diferentes. Obrigado a enviar a maior parte

dos contingentes para a Síria com o objetivo de proteger os numerosos assentamentos judaicos ao

longo de sua fronteira, Israel deixa que o Egito conquiste facilmente uma faixa de território de 10

quilômetro a partir da margem oriental do Canal. Mas, uma vez ganha a batalha pelas colinas de

Golan, em 20 de outubro, é a vez do exército judaico começar a ofensiva que, em poucos dias, o

levará a reconquistar o território ocupado pelos soldados egípcios e a dirigir seu contingente rumo

ao Cairo.

Conscientes de que a derrota do Egito está próxima, Estados Unidos e União Soviética se

reúnem para formular um acordo de cessar-fogo que seja aceito pelos países em conflito e pelos

governos das duas superpotências. Em 21 de outubro, o Cairo abre mão da retirada de Israel de

todos os territórios ocupados durante a Guerra dos Seis Dias e pede à URSS que apresse os tempos

da negociação, pois as forças judaicas estão a um passo da capital. No dia seguinte, o Conselho de

Segurança da ONU aprova a Resolução 338 que prevê o fim das hostilidades no prazo máximo de

12 horas e o início das negociações para um acordo duradouro que tenha por base a troca de terra

por paz prevista pela Resolução 242.

Mas, por várias razões, os enfrentamentos continuam e, nos dias 23 e 25, a ONU emite mais

duas resoluções no mesmo tom. Só que desta vez o apelo à trégua é sustentado pela ameaça de uma

intervenção soviética que leva os dois lados a deporem as armas.

Além dos danos materiais, a guerra se encerra com um saldo de 2 mil e 300 mortos, 5 mil e

500 feridos e 294 presos do lado israelense. A Síria amarga a perda de 3 mil soldados, além de 5 mil

e 600 feridos e 411 presos. Mas é o Egito a pagar a conta maior: 12 mil mortos, 35 mil feridos e 8

mil e 400 presos”.

- “Ao que tudo indica, o conflito acaba em tragédia para o governo do Cairo. Diante desta realidade,

as relações entre Sadat e Israel anunciam tempos de paz ou o renovar-se das antigas ameaças?”,

pergunto receoso de me deparar com a notícia da preparação de um futuro enfrentamento.

Ajeitada a muleta, Nádia desce vagarosamente do livro e se aproxima. Apoiando a asa no

meu ombro e, apontando o graveto para as folhas do relato, com voz pausada, diz: “Sei que está

ansioso por um anúncio de paz de minha parte, mas já deve ter percebido que diante das profundas

contradições presentes na história das nações do Oriente Médio, a linha divisória entre a paz e a

guerra é muito tênue. Pacificar os povos sem resolver as questões de fundo que os levaram a um

enfrentamento armado é como pôr panos quentes na realidade. De imediato, parece que as coisas se

acalmam, mas, em seguida, as velhas contradições voltam a produzir novas ameaças”.

- “Isso quer dizer que...”

- “Que pra início de conversa, terminada a guerra, as negociações mediadas pelo secretário de

Estado norte-americano, Henry Kissinger, conhecem uma longa série de encontros e desencontros.

Após dois anos de idas e vindas, em 4 de setembro de 1975, Egito e Israel assinam em Genebra,

Suíça, um pacto pelo qual se comprometem a não recorrer às ameaças ou ao uso da força e a

resolver eventuais conflitos através de meios pacíficos.

O texto prevê também a retirada do exército judaico do Sinai e a presença das forças de

segurança da ONU ao longo de uma faixa de 30 a 40 quilômetros de largura entre a fronteira

israelense e o território egípcio. O governo do Cairo obtém também a possibilidade de explorar as

jazidas de petróleo na região controlada pela ONU e permite que os navios de Israel utilizem o

Canal de Suez.

Com o passar do tempo, a base deste compromisso é consolidada por outros entendimentos

entre israelenses e estadunidenses e destes últimos com os egípcios. O governo de Washington se

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compromete a satisfazer as necessidades judaicas de suprimentos bélicos, de abastecimento de

combustíveis, de financiamentos e a não reconhecer a OLP até que esta aceite a criação do Estado

judaico e as resoluções 242 e 338 das Nações Unidas.

Encerrado o conflito, Tel Aviv instala uma comissão destinada a apurar as responsabilidades

pelo desgaste sofrido com a guerra do Yom Kippur. Os trabalhos, que duram cerca de 2 anos,

acabam minando as bases do Partido Trabalhista de Golda Meir e abrem caminhos para que o

direitista Likud, de Menachen Begin, vença as eleições de 17 de maio de 1977. Defensor

intransigente da manutenção da Cisjordânia e da Faixa de Gaza como partes integrantes do território

israelense, o governo Begin se nega a congelar o avanço dos assentamentos judaicos nos territórios

ocupados e a reconhecer aos palestinos qualquer direito à autodeterminação. Esta postura esfria as

relações com os EUA e dificulta o já complexo processo de paz.

Na tentativa de desbloquear a situação, em 1º de outubro de 1977, Estados Unidos e União

Soviética emitem um comunicado conjunto que reafirma a necessidade de Israel retirar suas forças

armadas dos territórios ocupados durante a Guerra dos Seis Dias e de respeitar os legítimos direitos

dos palestinos.

Mesmo não incorporando as reivindicações dos povos árabes, aceitando implicitamente a

interpretação israelense da Resolução 242 (que restringe a devolução a alguns dos territórios

ocupados em 1967) e não mencionando nem a OLP, nem uma eventual pátria palestina, o texto é

duramente atacado pela comunidade hebraica dos EUA e pelos políticos israelenses que acusam o

presidente norte-americano, Jimmy Carter, de ceder às pressões árabes e soviéticas. A pressão do

lobby judaico nos Estados Unidos é tão forte que, dias depois, Carter é obrigado a divulgar outro

comunicado no qual recua em relação às posições anteriores”.

- “Bom, diante deste intenso vaivém de acontecimentos, o acordo de paz devia estar por um fio...”,

pondero sem levantar os olhos do papel.

- “E teria naufragado se Sadat não quisesse se aproveitar dele para ampliar suas relações com

Washington realizando um gesto inesperado: ir ao encontro do governo israelense em Jerusalém”.

- “Quer dizer, então, que isso não foi por amor à paz?!?”

- “Meu caro bípede de óculos, você precisa enfiar nesta sua cabeça dura – diz Nádia enquanto

aponta o graveto-muleta em direção à minha testa – que a viagem de Sadat, realizada em 19 de

novembro de 1977 não pretende viabilizar apenas o que você imagina ser um pio desejo de paz. Na

verdade, o presidente egípcio vê a continuidade das negociações como a possibilidade de alcançar

objetivos econômicos bem precisos.

Acontece que, apesar dos financiamentos recebidos da Arábia Saudita, a guerra do Yom

Kippur havia esvaziado os cofres da nação e o país não tinha como dirigir os poucos recursos

disponíveis para a continuidade da luta contra Israel. Se isso não bastasse, em janeiro de 1977, as

manifestações populares e os violentos enfrentamentos com a polícia quando do corte dos subsídios

aos gêneros de primeira necessidade haviam alertado a elite do Cairo de que a ordem interna e a

própria estabilidade do governo corriam perigo.

Neste contexto, a manutenção do processo de paz com Israel não significa só poupar as

fatias do orçamento antes gastas em equipamentos bélicos, mas, sobretudo, poder contar com a

ajuda econômico-financeira dos EUA e abrir o país aos investimentos do capital externo. De acordo

com o general Kamal Hasan Ali, entre 1978 e 1982, os Estados Unidos fornecem ao Egito um

montante de 6 bilhões e 600 milhões de dólares, sendo que, após a melhora das relações entre os

dois países, esta quantia vai girar em torno dos 2 bilhões de dólares ao ano”.

- “Só não entendo como é que Sadat vai fazer engolir um sapo desse tamanho à OLP e ao mundo

árabe”, comento entre a dúvida e o desconcerto.

- “Digamos que, por muito que tente, os resultados não são animadores. Vislumbrando o rumo dos

acontecimentos, a Síria rompe as relações com o Egito e no Iraque ocorrem imponentes

manifestações contra Sadat. Nos demais países, a visita a Israel é recebida como uma traição.

Com certeza, os mais decepcionados são os palestinos que vêem sua causa ir pro vinagre.

Em 22 de novembro de 1977, a OLP divulga um comunicado no qual condena a iniciativa do

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presidente egípcio e, anunciando estar pronta para anular os resultados da visita, convida o povo do

Egito a opor-se à traição da nação árabe. Em resposta, no dia seguinte, Sadat ordena que os

escritórios da OLP e sua emissora de rádio, a Voz da Palestina, sejam fechados.

A partir da viagem a Jerusalém, tanto Israel, como o mundo árabe e os próprios Estados

Unidos não têm dúvidas de que o Egito caminha rumo a um acordo de paz definitivo. Mas a

seqüência de encontros secretos e oficiais esbarra em não poucos obstáculos e a delegação egípcia

chega até mesmo a abandonar a mesa de negociação. As pressões internas e externas aos dois países

se multiplicam e, em fevereiro de 1978, Begin e Sadat voltam a se encontrar em Camp David, nos

EUA, a “convite” de Carter.

Enquanto o presidente do Egito enfrenta um crescente isolamento em relação ao mundo

árabe, o Primeiro Ministro de Israel tem que lidar com as ações dos integrantes do movimento

pacifista “Paz Agora” e dos membros do comando das forças armadas que vêem com bons olhos a

devolução de todo o Sinai em troca da paz.

As negociações são tensas, mas ninguém abandona Camp David no entendimento de que o

primeiro a jogar a toalha seria acusado de fazer naufragar o processo de paz perdendo assim

prestigio e poder tanto a nível internacional como no interior do próprio país.

Um dos elementos-chave para a superação dos impasses é a oferta final do presidente norte-

americano: a garantia de empréstimo de 3 bilhões de dólares para Israel compensar os prejuízos

oriundos do desmantelamento dos assentamentos erguidos naquela região e construir duas modernas

bases aéreas no deserto do Negev em substituição daquelas que o Estado judaico deveria deixar ao

sair do Sinai.

Na noite de 17 de setembro de 1978, Carter, Begin e Sadat assinam os primeiros documentos

do compromisso de paz. Israel aceita se retirar de toda a península do Sinai em troca do

reconhecimento diplomático por parte do Egito, da paz e da normalização das relações entre os dois

países. Os navios israelenses podem transitar livremente pelo Canal de Suez, pelo estreito de Tiran e

pelo golfo de Ácaba. O Sinai vai ser amplamente desmilitarizado sendo que o Egito é autorizado a

manter um limitado número de tropas a não mais de 50 quilômetros da margem oriental do Canal de

Suez. O acordo restringe também a presença das forças armadas judaicas ao longo da linha de

fronteira sendo que o território entre ela e as posições dos contingentes egípcios no Sinai só pode ser

patrulhado pela polícia do Egito e por unidades das Nações Unidas”.

- “Que você lembre, os documentos chegam pelo menos a citar a questão palestina?”, indago

apressado e temeroso.

Nádia suspira, põe a asa atrás das costas e com voz preocupada retoma o seu relato: “Falar,

falam, mas o que dizem a este respeito está longe de representar um compromisso sério com a sua

solução. Os textos do acordo abordam a possibilidade de uma futura negociação da questão

palestina que envolveria representantes do Egito, Israel, Jordânia e do povo palestino.

Os encontros se desenvolveriam em três fases. Na primeira, se trataria de garantir uma

transferência pacífica e ordenada da autoridade na Cisjordânia e na Faixa de Gaza mediante a

adoção de soluções transitórias. A população árabe destes territórios teria autonomia plena e Israel

desmantelaria progressivamente suas estruturas de governo civil e militar que seriam substituídas

por uma autoridade árabe livremente eleita.

Cumprida esta etapa, iniciaria a segunda, durante a qual Egito, Israel e Jordânia negociariam

as formas pelas quais tal autoridade seria constituída, seus poderes e responsabilidades e caberia às

delegações egípcia e jordaniana a escolha de incluir, ou não, em sua composição palestinos da

Cisjordânia e Gaza, ou outros representantes deste povo, de comum acordo com os governantes

israelenses. A progressiva retirada das tropas judaicas seria acompanhada pela criação de uma

polícia local formada por habitantes das duas áreas a serem colocadas à disposição dos palestinos.

O último passo iniciaria com um período de transição de 5 anos contado a partir do

nascimento da autoridade para o auto-governo dos territórios cedidos ou da criação de um conselho

para a administração dos mesmos. As negociações entre os representantes de Egito, Israel e Jordânia

(e os palestinos por estes indicados e aprovados) iniciariam no máximo 3 anos após a criação da tal

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autoridade, definiriam o status final de Cisjordânia e Gaza, além de suas relações com os países

vizinhos podendo chegar, inclusive, a um tratado de paz entre o Estado judaico e o governo de Amã.

Os diálogos teriam também a tarefa de demarcar as fronteiras, estabelecer normas de segurança e

reconhecer os novos direitos do povo palestino.

No que diz respeito à questão dos refugiados, o documento se limita a uma menção

extremamente vaga que em nada altera a situação de calamidade em que se encontram”

- “Bom, Nádia, não me parece tão ruim”.

- “Para Israel é ótimo!...”

- “Como assim?”

- “Vejo que suas lentes inúteis não conseguiram a proeza de fazê-lo enxergar que as decisões

básicas sobre os procedimentos que viabilizariam uma solução para a questão palestina são tomadas

sem a presença de representantes palestinos e ignorando seus anseios. Além disso, enquanto os

documentos tratam com clareza a relação entre Egito e Israel, os itens que se referem aos palestinos

são vagos e sujeitos às mais variadas interpretações. Quer ver?

Por exemplo, qual seria o papel da OLP nas negociações? De onde se retiraria o exército

israelense e que posições manteria nos territórios ocupados? Qual o status da cidade de Jerusalém?

Quem seria escolhido para integrar a polícia palestina? Quem definiria o futuro da terra e dos

recursos hídricos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, elementos essenciais para os assentamentos

judaicos nas duas regiões e para o próprio abastecimento das cidades israelenses? O que aconteceria

com os assentamentos dos hebreus nas áreas a serem cedidas?

Nenhuma destas questões é respondida pelos acordos!”

- “Sim, eu sei, mas ainda assim acho que você está sendo radical demais já que tudo isso pode ser

objeto de futuras negociações que extrapolam as possibilidades de resposta de Camp David!”,

afirmo em tom de desafio e provocação.

A coruja se aproxima vagarosamente e, com voz impaciente, não deixa por menos: “O que

não entendo é como um bípede da sua espécie, dotado de cérebro inteligente e olhos equipados com

instrumentos de visão cientificamente aprovados e regularmente aumentados, é tão míope a ponto

de não perceber que está na frente de um jogo de cartas marcadas.

Se você tivesse prestado atenção ao meu relato já teria percebido, pelo menos dois

problemas. O primeiro diz respeito ao fato de que, apesar dos acordos preverem a retirada do

governo militar israelense e sua substituição por instituições palestinas autônomas, os poderes reais

destas instituições ainda seriam definidos por Egito, Israel e Jordânia. Ora, considerando que as três

partes devem chegar a um consenso, é evidente que Israel vai vetar tudo aquilo que não o favorece.

Isso significa que a “completa autonomia” da qual fala o texto só pode se realizar no interior dos

estreitos limites traçados pelo consenso entre as três nações.

O outro problema é que a participação palestina no processo de negociação apontado pelos

acordos não passa de uma farsa. Pelos documentos, Egito e Jordânia podem incluir palestinos em

suas delegações desde que cada um deles receba a aprovação de Israel. As implicações deste

pequeno detalhe não são poucas. Entre elas vale a pena destacar que a escolha dos representantes

palestinos fica a critério dos dois governos árabes e não do povo cujo futuro vai ser decidido. E

como cada nome deve passar pelo crivo de Israel, os líderes da OLP e dos movimentos de

resistência que a integram, com certeza, ficariam de fora.

Se isso não bastasse, toda proposta vinda dos palestinos deve contar com a aprovação de

Egito e Jordânia. Com esta medida, o que os representantes palestinos consideram necessário pode

não ser encaminhado pelas delegações árabes, ao mesmo tempo em que tudo aquilo que acharem

inaceitável pode ser colocado na mesa de negociação pelos governos egípcio e jordaniano.

Acrescente a isso o fato de que cada uma das propostas deste meio ainda deve ser submetida à

aprovação israelense e não terá dificuldade em perceber o abismo que se estabelece entre os

interesses palestinos e a real possibilidade deles serem viabilizados.

Pelo conteúdo dos acordos, as eleições para o autogoverno da Cisjordânia e Gaza vão

acontecer sob a ocupação militar israelense. Não se prevê sequer a suspensão da legislação militar

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durante o processo eleitoral o que, no mínimo, vai cercear a liberdade de expressão das forças que

vão disputar o pleito.

Uma vez criado o autogoverno palestino, iniciará o período de transição programado para

durar 5 anos. Isso significa que esta autoridade autônoma vai governar um território sob ocupação

militar estrangeira e não tem sequer a liberdade de apontar as regiões das quais as tropas judaicas

devem se retirar. E tem mais. Esta parte do acordo acaba legitimando uma ocupação militar que a

nível internacional é considerada ilegal”.

- “Tudo bem, Nádia, você venceu. Mas se esta é a dura realidade, como é que o mundo reagiu ao

acordo de paz assinado pelo Egito?”, pergunto enquanto a coruja parece secar com a asa as gotas de

veneno saídas do bico ao longo de sua investida anterior.

Já recomposta, a ave deixa que alguns instantes de silêncio se estabeleçam entre nós para

que o relato possa ser recebido com clareza e objetividade. Depois de alguns “Muito bem,...

vejamos.... Sim.... é isso mesmo...”, Nádia fecha os olhos e com expressão compenetrada continua:

“Em maior ou menor grau, os países do Ocidente saúdam os acordos de Camp David como um

passo rumo à pacificação do Oriente Médio.

A União Soviética, deixada à margem das negociações e substituída pelos EUA no papel de

aliado do Egito, critica o acordo de paz dizendo que favorece Israel em prejuízo dos povos árabes.

Síria e Iraque expressam duras críticas, enquanto Jordânia, Arábia Saudita e Kuwait, cuja

política externa é mais próxima às posições ocidentais, assumem uma atitude de espera, ainda que

não deixem de sublinhar que o governo do Cairo escolheu o caminho da paz em separado com Israel

em prejuízo dos palestinos.

No Egito, as reações vão do entusiasmo e da sensação de alívio pelas perspectivas de uma

paz duradoura a vozes discordantes que falam em traição. Boa parte das críticas vem do ambiente

universitário, enquanto nas mesquitas são duros os sermões contra os acordos.

O Comitê Executivo da OLP condena Sadat e os textos de Camp David como conspiração

antipalestina e convida a população dos territórios ocupados a realizar uma greve geral de protesto

contra os acordos.

Na primeira semana de novembro de 1978, a Liga Árabe decide aplicar uma série de sanções

ao Egito, caso este venha a assinar o documento final dos acordos, transfere sua sede do Cairo para

Tunis e destina 3 bilhões e meio de dólares para financiar atividades de resistência contra o Estado

judaico.

Em Israel, a grande maioria da população apóia o tratado de paz e os debates no parlamento

se concluem com o voto favorável de 84 dos 120 legisladores.

Até a assinatura dos documentos finais, em 26 de março de 1979, os acordos de Camp David

passam por momentos críticos tanto em função da ascensão, no Irã, do regime fundamentalista

islâmico liderado pelo Aiatollah Khomeini (que aumenta as pressões sobre Sadat e Carter), como

pela ampliação do número de assentamentos judaicos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Ainda

assim, o texto final reafirma o espírito e o resultado das negociações já realizadas.

Na mesma época, Israel e Estados Unidos assinam um memorando no qual delineiam os

passos do governo norte-americano em caso de violação do tratado por parte do Egito e garantem o

fornecimento de petróleo e derivados à nação judaica por um prazo de 15 anos.

A paz com o Egito não só deixa Israel com um inimigo a menos, como torna remota a

possibilidade dos demais países árabes atacarem o seu território. Sem o apoio do exército do Cairo,

qualquer tentativa de enfrentar os judeus em campo aberto seria fadada ao fracasso.

A determinação de não fazer concessões aos palestinos não está presente apenas na redação

dos textos de Camp David, mas se torna palpável no esforço de criar novos assentamentos nos

territórios ocupados. Em maio de 1977, os judeus assentados na Cisjordânia e na Faixa de Gaza não

passam de 4 mil. Um ano depois chegam a 7 mil e 500, em 1979 este número sobe para 10 mil, até

alcançar os 16 mil em 1981.

Considerando que se trata de uma pequena região densamente povoada pelos árabes, a

criação de novas colônias judaicas eleva o grau de tensão na região. Diante desta flagrante violação

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das convenções internacionais sobre territórios ocupados (já que a colonização permite a posse de

territórios sem ter que anexá-los e sem reconhecer os direitos dos árabes que moram neles), em 20

de junho de 1979, o Conselho de Segurança da ONU aprova a Resolução 452 condenando a política

israelense de ampliação destes assentamentos.

Dois anos depois, Sadat e Begin voltam a se encontrar em Alexandria para discutir o

progredir das relações entre os dois países e agendar a retomada das negociações sobre a questão da

autonomia palestina. Mas, em 6 de outubro de 1981, Sadat é assassinado por membros de uma

organização fundamentalista islâmica que se opõe à paz com Israel e considera o presidente do

Egito um tirano. A elite do Cairo teme que o atentado seja parte de um amplo complô para

desestabilizar o país. Mas, apesar de algumas manifestações isoladas, a população continua

apoiando o tratado com Israel. Dias depois, Hosni Mubarak assume o comando do Egito”.

- “Nádia, agora que você fechou a parte relativa ao acordo de paz entre egípcios e israelenses, estou

curioso de saber a quantas andam as relações e as principais posições dos grupos que integram a

resistência palestina. No começo, ficou evidente a passagem de uma estratégia baseada em ações

terroristas para uma posição de espera diante do aproximar-se da guerra do Yom Kippur. E, depois,

o que aconteceu com os palestinos?”

A coruja abre um sorriso que, se não fosse pelas pequenas dimensões do bico, diria que é de

orelha a orelha. Em seguida, a ave volta a assumir uma expressão preocupada como se, ao delinear

os rumos da resistência, estivesse apontando também para um momento de angústia e de dor. “Pra

início de conversa, devemos lembrar que no começo da guerra do Yom Kippur é difícil vislumbrar

algum futuro promissor para a OLP. Desgastada internacionalmente pela ampla utilização das ações

terroristas, a organização liderada por Yasser Arafat vai enveredar nos caminhos da luta política.

Neste processo, em agosto de 1973, surge a Frente Nacional Palestina dos Territórios

Ocupados (FNP). Baseando-se no fato de que o tratamento dispensado pela ocupação israelense na

Cisjordânia e na Faixa de Gaza não diferencia operários, camponeses, comerciantes, proprietários

de terras, empresários e religiosos, a FNP nasce para responder às tentativas sionistas de romper a

identidade e a unidade do povo palestino. Reunindo tendências que vão do marxismo ao

nacionalismo liberal, o programa desta Frente reconhece a OLP como legítima representante dos

palestinos e aponta como objetivo de sua luta a instalação de uma autoridade nacional palestina nas

áreas libertadas da ocupação israelense.

No início de 1974, FNP, FDPLP, Al Fatah e Al Saika chegam a concordar com o fato de que

é preciso lutar com todas as forças para obrigar o governo de Tel Aviv a deixar a Cisjordânia e

Gaza, territórios onde se instalaria uma espécie de mini-Estado palestino. O problema é que esta

postura assumida pela direção majoritária da OLP implica em direcionar a luta para conquistar o

reconhecimento de somente 30% da antiga Palestina, objetivo que, naquele momento, seria

rejeitado pela maioria dos militantes da OLP.

Na análise de Arafat, e do seu grupo, com o caminhar das negociações de paz entre Egito e

Israel, outros países árabes seriam incentivados a fazer o mesmo sem levar em consideração os

palestinos. Daí a urgência de consolidar um programa político que as nações do Oriente Médio

pudessem apoiar. Sem ele, a possibilidade dos palestinos voltarem a ter uma pátria, ainda que numa

pequena porção da antiga terra natal, seria cada vez mais remota.

É neste sentido que, entre 1974 e 1975, Al Fatah realiza um amplo trabalho de

convencimento com cada um dos 300 delegados do Conselho Nacional Palestino. Um por um, e

sempre que as circunstancias o permitem, Arafat os convoca para uma conversa particular no seu

quartel geral de Beirute, no Líbano. Quando a proposta é apresentada ao Conselho, em 1979, os

votos a favor do mini-Estado são 296. Entre as forças que se opõem ao trabalho deste grupo de

facções estão a FPLP e a FPLP-CG que, com a Frente Árabe de Libertação, rejeitam a idéia de um

poder palestino em Gaza e na Cisjordânia e criam a chamada Frente da Recusa, contrária a qualquer

negociação com o governo de Tel Aviv”.

- “Sabendo disso, qual é a postura da ONU e da Liga Árabe em relação à OLP?”

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- “Bom, entre os acontecimentos que respondem à sua pergunta está a realização da cúpula árabe de

26 de outubro de 1974 na qual a OLP é reconhecida como única representante do povo palestino e

onde seu grupo dirigente ratifica a proposta de criar o mini-Estado.

Pouco menos de um mês depois, em 22 de novembro, a comunidade internacional, à exceção

dos Estados Unidos e Israel, aprova a Resolução 3236 na qual a ONU reconhece o direito dos

palestinos à autodeterminação, à independência e à soberania. Pouco depois, outra Resolução, a

3237, concede à OLP a condição de observador na plenária das Nações Unidas.

Diante destas medidas, o embaixador de Israel na ONU pronuncia um duro discurso no qual

acusa as Nações Unidas de convidar o líder de uma organização assassina (Arafat) a dirigir a

palavra à comunidade internacional e, quanto ao futuro, o representante de Tel Aviv não deixa

margem a dúvidas: Não permitiremos o estabelecimento de uma autoridade da OLP em parte

alguma da Palestina.25

Em 13 de dezembro de 1974, Arafat fala pela primeira vez na Assembléia Geral das Nações

Unidas. Em seu discurso, convida os judeus a saírem do isolamento moral em que se encontram e

renova a proposta de uma convivência pacífica numa Palestina democrática: Propomos o

estabelecimento na Palestina de um Estado democrático no qual cristãos, judeus e muçulmanos

vivam em justiça, igualdade e fraternidade. Recordamos que os judeus da Europa e dos Estados

Unidos são conhecidos por terem conduzido as lutas do secularismo e da separação da igreja do

Estado. Também são conhecidos por combaterem a discriminação baseada na religião. Então,

como podem negar este paradigma humano para a Terra Santa? Como continuar, então, a apoiar

a mais fanática e fechada das nações em sua política?

Anuncio aqui que não desejamos o derramamento de uma só gota de sangue, seja árabe ou

judeu. Tampouco nos alegramos com a continuação de matanças que devem cessar de uma vez por

todas logo que seja restabelecida uma paz justa, baseada nos direitos, nas esperanças e nas

aspirações do nosso povo. Aqueles que lutam contra as causas justas, os que entram em guerra

para ocupar, colonizar e oprimir outro povo, esses são terroristas. São suas ações que devem ser

condenadas, são eles que devem ser chamados de criminosos de guerra.

A justiça da causa determina o direito da luta. Sou um rebelde e minha causa é a liberdade.

Sei muito bem que muitos dos que hoje estão aqui estiveram uma vez na nossa mesma posição de

adversidade em que me encontro agora e contra a qual devo lutar.

Vim trazendo um ramo de oliveira e o fuzil de um lutador pela liberdade. Não deixem que o

ramo de oliveira caia da minha mão. 26

Seis dias depois, 4 civis israelenses morrem num atentado terrorista promovido pela Frente

Democrática Popular (FDP), um pequeno grupo que, quinze anos antes, havia se separado da Frente

Popular para a Libertação da Palestina. Ao assumir a autoria do atentado, a FDP diz que o ato é para

mostrar ao mundo que o fato de Arafat ter em mãos um galho de oliveira não significa que os

palestinos abandonaram a luta armada e que estão dispostos a dialogar por não terem outras saídas,

mas sim que vão negociar partindo de uma posição de poder.

O atentado faz com que Arafat e a OLP fiquem desacreditados ao mesmo tempo em que

revela a impossibilidade da própria OLP controlar as ações dos vários grupos que compõem a

resistência palestina.

Diante dos acontecimentos e do desenrolar das negociações de paz com o Egito, Israel se

depara com a questão de como lidar com a OLP. A possibilidade de reconhecê-la e aceitá-la como

representante dos palestinos é descartada ao mesmo tempo em que ganha espaço a idéia de liquidá-

la através de uma intervenção militar”.

- “Você não vai me dizer que, já, já, vai falar de outra guerra? Vai?”

25

Alan Hart, Arafat – biografia política, pg. 345. 26

Helena Salem, Palestinos os novos judeus, pg. 93-94.

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- “De uma não, de duas!”, Responde Nádia com expressão preocupada. “Mas este assunto é

complexo demais para ser resolvido em poucas linhas. Por isso, passe uma água no rosto para tirar

essa cara de espanto que, daqui a pouco, vou falar do...

7. Líbano: da guerra civil à ocupação israelense.

A necessidade de aliviar a angústia diante do anúncio de novos conflitos faz com que as

pernas se apressem a levar o corpo até a pia do banheiro. Lavar o rosto não altera a história, mas

ajuda a espantar o cansaço e a devolver aos neurônios a capacidade de raciocínio que decifra seus

enigmas.

Enquanto as mãos se projetam para o alto numa gostosa espreguiçada, Nádia abre o Atlas na

página do Oriente Médio. A ponta da asa direita acompanha linhas de fronteira, relevos, rios e se

detém sobre o nome de algumas cidades. Os murmúrios que saem do seu bico são acompanhados

pelo frenético movimentar-se das plumas dos ouvidos que, como antenas, parecem empenhados em

rastrear cada movimento destes povos em luta.

Devagarzinho, reassumo o posto de secretário curioso de saber o que a coruja está

enxergando neste mapa que examina com o cuidado típico dos que procuram um tesouro.

- “Já está pronto?”, indaga Nádia com voz firme e impaciente.

- “Às suas ordens, Senhora Dona Coruja!”.

- “Dispense as gozações que o assunto é sério e exige uma atenta retrospectiva histórica!”, retruca a

ave levantando o graveto-muleta como uma maestrina que se prepara para dar início ao concerto. E

após ferir o ar com movimentos que parecem marcar o ritmo da história, continua: “Pra início de

conversa, devemos lembrar que, desde a sua independência da França em 1947, o Líbano se torna o

principal centro financeiro e comercial do Oriente Médio. O fato de ser uma espécie de base

avançada para a penetração dos investimentos capitalistas no mundo árabe dá origem a negócios

lucrativos que enriquecem uma parcela bem pequena da população cristã maronita e muçulmana.

- “Por que você faz questão de citar a religião destes setores da sociedade? Não bastaria chamar isso

de burguesia ou elite?”, pergunto interrompendo bruscamente o relato.

Sem perder a pose e balançando o graveto debaixo do meu nariz, Nádia começa a responder

com a calma de quem sabe que nem sempre os detalhes podem ser omitidos: “Acontece que, desde

1943, o Líbano é definido como um Estado Confessional, e, por isso, as religiões presentes em seu

território não podem ser desconsideradas na hora de analisar a sociedade local. O que você ainda

não sabe é que neste país o poder é distribuído de forma proporcional ao número de integrantes das

comunidades cuja identidade vem da crença religiosa por eles professada, sendo que a porcentagem

de adeptos tem como base as conclusões do censo demográfico de 1932. É assim que aos cristãos

maronitas são entregues a Presidência da República e os postos mais importantes do Exército. A

função de Primeiro Ministro cabe a um muçulmano sunita enquanto os xiitas presidem o

Parlamento. As comunidades menores, como os drusos, têm sua representação política assegurada

em cargos menos significativos ou de segundo escalão”.

- “Maronitas? Sunitas? Xiitas?...Drusos? será que dá pra falar alguma coisa de todos estes

sujeitos?”, peço intrigado por não entender o que está por trás de cada nome.

- “Muito bem, vejamos...”, responde Nádia com voz calma e pausada. “Só para delinear quem é

quem, vale a pena lembrar que os maronitas são integrantes de um grupo cristão de rito oriental cuja

origem deita raízes no século IV e que se estabelece no Líbano cerca de trezentos anos depois.

Chamam-se assim em função do nome do seu líder, S. Marone, cujo grupo se torna independente da

igreja de Roma por volta do início do século VIII.

Nos anos aos quais o relato se refere, os maronitas estão entre os principais integrantes da

elite libanesa, do Partido Nacional Liberal, de direita, e da organização paramilitar conhecida como

Falange, cujos vínculos com os grandes monopólios permitem que ela tenha uma força armada

estimada em 20 mil combatentes.

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Por sua vez, sunitas e xiitas são as duas principais correntes do islamismo sendo que a

segunda tem contornos que apontam para um maior grau de liberdade e igualdade em relação aos

adeptos da primeira. Os membros de suas elites estão representados no parlamento por partidos

cujas posições flutuam da direita moderada para o centro.

Os drusos pertencem a uma corrente religiosa, fundada por Ismail Al-Darazi, que nasce no

interior da linha xiita durante o século XI e, apesar das perseguições sofridas, conseguem sobreviver

no Líbano numa região próxima à fronteira com a Síria. A classe média drusa integra posições de

centro-direita, enquanto os trabalhadores, com os setores empobrecidos dos grupos sunita e xiita,

vão compor as diferentes organizações da esquerda libanesa. É ao lado destas últimas que irão

combater as forças da OLP presentes em território libanês”.

- “Só quero ver como é que vai juntar tudo isso com a situação do país...”, comento desconfiado.

- “Tenha paciência, e verá que não é tão difícil como parece”, diz Nádia apoiando-se na muleta para

ir de um lado pra outro da mesa. E continua: “O fato do Líbano parecer um oásis ocidental no

mundo árabe não significa que a maior parte da população tenha deixado de experimentar o peso da

pobreza e de uma pesada exploração.

É neste país de contradições profundas, escondidas pela aparente tranqüilidade das relações

sociais, que os guerrilheiros palestinos começam a se concentrar após o revês sofrido em função dos

ataques do exército da Jordânia em setembro de 1970. Passo a passo, seus comandos se estabelecem

no sul do Líbano sem que as forças armadas locais tenham a menor condição de bloquear o avanço

de suas bases. Em seguida, é a vez da direção da OLP montar seu quartel geral em Beirute.

Contando com a ajuda financeira dos países árabes, a Organização para a Libertação da

Palestina consegue ampliar sua força militar e a inserção entre os refugiados. É assim que, nos

primeiros anos da década de 70, a maior parte do sul do Líbano, setores da capital e, praticamente,

todos os campos de refugiados se tornam uma espécie de Estado no Estado sobre o qual o governo

central libanês não tem poder.

Esta realidade irrita e preocupa a elite local, sobretudo a de origem maronita. E não é pra

menos. Do outro lado da pirâmide social, a maior parte da população muçulmana (cujo crescimento

demográfico se revela bem superior ao dos cristãos) encontra na resistência palestina um novo

alento para a perspectiva de transformação revolucionária do país. E, como você bem pode

imaginar, os conflitos internos não tardam a aparecer.

Em janeiro de 1975, o líder da Falange, Pierre Gemayel, e o seu aliado do Partido Nacional

Liberal, Camile Chamoun, desencadeiam uma campanha pela redefinição do status da guerrilha

palestina no Líbano e exigem o fim do livre trânsito da OLP no país. É neste clima de tensão que,

três meses depois, uma série de pequenos conflitos ganha as feições de uma sangrenta guerra civil.

A propaganda da direita anuncia a necessidade de reconquistar o país para os libaneses, já

que este estaria sendo usurpado pelos palestinos, e os cristãos maronitas levantam a bandeira da

própria sobrevivência. Em resposta, os muçulmanos reivindicam o fim do pacto de 1943 em função

do qual são colocados em situação de inferioridade apesar de serem numericamente superiores aos

cristãos.

Os contornos religiosos que marcam a guerra civil escondem que a Falange e o Partido

Nacional Liberal lutam para conservar seus privilégios, seriamente ameaçados pelo

descontentamento popular. Do outro lado, os setores progressistas e de esquerda, liderados pelo

druso Kamal Jumblatt, evidenciam que o conflito não tem um caráter confessional, mas sim que ele

é apenas o resultado da explosão das tensões sociais historicamente acumuladas.

De início, a resistência palestina faz o possível para não meter a colher nesta disputa. Mas

esta posição se torna insustentável quando, no dia 13 de abril, os milicianos da Falange metralham

um ônibus de militantes palestinos matando 26 pessoas. À OLP não resta outra escolha a não ser a

de combater ao lado da Frente Progressista.

Ao longo de 1975, os enfrentamentos se intensificam devastando o país e, sobretudo, a

capital, Beirute. No início de 1976, nenhuma das forças em jogo consegue se afirmar como

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hegemônica e pôr um ponto final à guerra. Ainda assim, palestinos e progressistas conseguem

alguns avanços em relação às forças da Falange”.

- “Você quer dizer que, mais cedo ou mais tarde, eles vão levar a melhor...”

- “Talvez iriam...”, retruca Nádia deixando pairar a dúvida no ar. “Acontece que, em abril de 1976,

após um ano de violentos combates, a Síria intervém militarmente no Líbano”.

- “Já sei! O governo de Damasco entra em cena, separa os rivais e pacifica as forças em luta”,

comento na certeza de acertar em cheio o desenrolar dos acontecimentos.

A coruja se cala, balança a cabeça e, suspirando, emite um “Seria bom se fosse verdade...”

que apaga o fogo da empolgação recém-manifestada. “Na verdade – continua Nádia com olhar triste

e angustiado -, os 30 mil soldados enviados pela Síria se dirigem contra a Frente Progressista e a

OLP justo no momento em que a elite maronita encontra-se numa situação difícil”.

- “Mas por que eles fazem isso?”

- “A razão é simples. O governo de Damasco teme que a guerra civil libanesa acabe respingando em

seu território, alimentando o descontentamento popular e colocando em perigo a ordem interna. È

por isso que seus soldados não hesitam em abrir fogo justamente contra as milícias progressistas e

da própria OLP.

Vendo isso, Israel reduz o tom dos seus protestos contra a invasão até se calar

completamente após perceber que ela conta com o apoio tácito dos Estados Unidos. Na verdade, o

governo de Washington não está preocupado com o aumento da violência e do número de mortos,

mas tão somente com o temor de um possível avanço da esquerda no Líbano e com uma melhora

significativa das possibilidades de ação dos guerrilheiros palestinos. Neste contexto, a Síria acaba

sendo o único ator capaz de deter estas forças e acabar com a guerra civil dispensando qualquer

intervenção ocidental. É assim que, apesar dos apelos do mundo árabe, as tropas de Damasco

penetram cada vez mais no Líbano centrando fogo nas forças progressistas.

No início de junho de 1976, a Síria intima a esquerda a abandonar suas posição entre a

planície do Bekaa e o centro do país. A Frente Progressista resiste e os enfrentamentos prosseguem

deixando um rastro de milhares de mortos.

Após 15 meses de luta, o Líbano está dividido: os cristãos maronitas dominam cerca de mil e

300 quilômetros quadrados ao longo do litoral do Mar Mediterrâneo, partindo de Beirute até o sul

de Trípoli, a maior cidade do norte; os muçulmanos progressistas e os palestinos controlam Trípoli,

uma pequena área costeira próxima a ela e quase todo o sul do país; a Síria mantém em seu poder o

centro e toda a planície do Bekaa, o que equivale a dois terços do território libanês. Beirute

encontra-se fracionada em dois: o lado oeste é controlado pelos progressistas enquanto os maronitas

dominam o leste.

Os combates continuam e, em agosto de 1976, os palestinos sofrem uma de suas mais duras

derrotas: a queda do campo de refugiados de Tall El Zaatar, encravado na região leste da capital.

Durante 52 dias, a área por ele ocupada é submetida ao cerco das milícias do Partido Nacional

Liberal e dos Guardiões do Cedro, uma organização maronita de extrema direita cujo objetivo pode

ser resumido em sua própria palavra de ordem: Cabe a cada libanês matar um palestino. 27

Sentindo o aproximar-se da carnificina, a OLP lança apelos desesperados aos países árabes,

mas o silêncio é a única resposta. O campo de refugiados no qual vivem entre 20 e 30 mil palestinos

é devastado deixando um saldo de milhares de mortos.

Em outubro, a Arábia Saudita hospeda uma reunião de líderes árabes da qual participam,

inclusive, representantes de Damasco, Beirute e da própria OLP. No dia 18, é anunciado um acordo

para pôr fim à guerra que dura há mais de um ano e meio. O cessar-fogo é respeitado em todo o

país, mas, na região próxima à fronteira com Israel, os combates entre maronitas e palestinos

continuam.

27

Helena Salem, Palestinos, os novos judeus, pg. 102.

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Com dois terços do território destruídos, cerca de um milhão e meio de desabrigados, 60 mil

mortos e 250 mil feridos (de acordo com estimativas difíceis de serem confirmadas) o Líbano

começa o trabalho de reconstrução.

Apesar dos golpes sofridos pela intervenção da Síria, a OLP sai fortalecida da guerra civil.

Em relação ao período anterior a 1975, a guerrilha palestina controla agora uma região mais ampla

do sul do país, os campos de refugiados de Beirute e Trípoli e algumas áreas que antes estavam sob

a influência maronita. Além disso, conta com cerca de 30 mil combatentes bem armados, uma força

policial própria, um sistema judiciário e uma rede de escolas e hospitais. Ao falar deste período, o

historiador palestino Rachid Khalidi faz reparar que a guerra civil libanesa marca o auge da

reconstrução da identidade nacional palestina e acaba sendo um estímulo de primeira grandeza à

expansão da OLP no Líbano”.

- “Bom, pelo visto, Israel até agora não se meteu nesta história...”, comento na tentativa de descobrir

o que aconteceu com um dos atores sempre presente em todas as etapas do relato.

De rabo de olho, Nádia acompanha silenciosamente cada um dos meus gestos. Como

professora que acredita na capacidade do aluno de perceber seus próprios erros, a coruja retoma a

conversa com um “Tem certeza?”, que convida a uma reflexão mais profunda.

- “É que você não disse quase nada a este respeito...”, respondo para justificar a que agora desconfio

que tenha sido uma bobagem.

Com a ponta das asas na cintura, a ave espera que os olhares se cruzem e de boca cheia

pronuncia um “Santa ingenuidade!” que faz estremecer a alma. “Só porque eu concentrei as

atenções na Síria e nas forças que agem no interior do Líbano, não significa que Israel tenha ficado

completamente alheio a toda esta história.

Pois fique sabendo que o interesse judaico pelo Líbano já é visível até mesmo nos mapas que

os membros da Organização Sionista Mundial apresentam, em 1919, na Conferência de paz de

Versailles, após o fim da primeira guerra mundial. Neles, o futuro Estado de Israel incluiria o

território libanês até o rio Litani, visto como mais uma fonte essencial de recursos hídricos para o

desenvolvimento da comunidade hebraica.

Se isso não bastasse, a idéia de que a linha de fronteira pudesse dividir a região cristã

maronita do Estado judaico é apresentada como saída viável para evitar que o sul do Líbano,

muçulmano em sua grande maioria, viesse a ser motivo de preocupação para os hebreus, assim

como já era para os cristãos. Sufocados pela presença sionista, os fiéis de Maomé tenderiam a sair

dele devolvendo ao futuro Estado o território correspondente ao período anterior à diáspora ocorrida

ainda sob a ocupação romana.

Mas, apesar deste projeto não vingar, os judeus fazem inúmeras tentativas de aliança com os

maronitas, todas elas frustradas e enterradas pelo pacto de 1943 com o qual o Líbano define a

divisão do poder entre os vários representantes das confissões religiosas presentes em seu território.

Mesmo assim, os vários governos israelenses não desistem da idéia de estabelecer melhores

relações com os maronitas.

Chegando mais perto do período que estamos estudando, é bom lembrar que, em 1967, o

governo de Beirute não se envolve na Guerra dos Seis Dias e, nos dois anos que seguem, a guerrilha

palestina monta bases avançadas ao longo da fronteira libanesa com Israel. É a partir delas que, na

primeira metade da década de 70, os fedayn intensificam seus ataques contra as cidades e os

assentamentos judaicos da Galiléia. Entre 1975 e 76, a guerra civil e a ação do exército israelense na

linha de fronteira conseguem deter os comandos palestinos. Mas, no ano seguinte, a OLP já tem

condições de voltar a intensificar suas incursões.

As forças armadas judaicas não deixam por menos. Bombardeios aéreos, navais, fogo de

artilharia e as costumeiras represálias começam a integrar a quotidiana situação de tensão que aflige

a região da fronteira norte de Israel. O ponto mais alto é atingido após o seqüestro de um ônibus

israelense nas proximidades de Haifa, em 1978. Em resposta, no dia 15 de março, três brigadas do

exército de Tel Aviv invadem o sul do Líbano com o apoio da artilharia e da aviação militar.

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Objetivo declarado da operação: impor aos guerrilheiros as maiores perdas possíveis e ampliar o

território sob controle das forças maronitas.

Na ação, 300 palestinos são mortos, centenas de casas destruídas e dezenas de milhares de

moradores são obrigados a procurarem abrigo em outras regiões. O “sucesso” da “missão” permite a

Israel criar uma área de segurança de cerca de 10 quilômetros de profundidade a partir da linha de

fronteira.

Temendo um novo conflito, em 19 de março, o Conselho de Segurança da ONU aprova a

Resolução 425. Nela se determina que um contingente armado das Nações Unidas vai se estabelecer

na região ocupada pelos israelenses garantindo a retirada das tropas judaicas e a desmilitarização da

área. Mesmo contendo a penetração dos comandos fedayn em território israelense, as patrulhas das

forças internacionais não conseguem impedir que o disparo de foguetes e a artilharia palestina

atinjam a Galiléia a partir das bases situadas acima da área de segurança.

A represália judaica é dura e, em 1979, ataca, sistemática e indiscriminadamente, tanto a

população civil libanesa como a palestina. Para Arafat, o objetivo destas ações não era só

aterrorizar e matar; seu alvo principal era jogar o povo do Líbano, muçulmanos e cristãos, contra

o povo palestino. Através de cada bomba lançada e de cada projétil disparado, os israelenses

estavam dizendo aos libaneses: não teríamos que estar fazendo isso com vocês e não teríamos que

estar destruindo este país bonito se os palestinos não estivessem entre vocês. Realmente, vocês não

devem nos culpar pelo que está acontecendo, mas sim os palestinos. Na verdade, vocês devem odiar

os palestinos.

Desta forma, Begin, Sharon e os demais estavam preparando o terreno para a sua invasão,

a solução final judaica ao problema palestino”.28

- “Se a memória não me engana, agora a pouco, você acabou de dizer que Israel ocupa uma faixa de

território ao longo de sua fronteira com o Líbano o que ajudaria a garantir sua segurança e a

viabilizar o desejo de ampliar o espaço sob controle dos cristãos maronitas. É só isso ou Tel Aviv

vai procurar aprimorar as relações com a Falange e o Partido Nacional Liberal?”.

- “Boa pergunta, querido secretário!”, diz Nádia satisfeita ao levantar a ponta de asa para o alto. “Na

verdade, é necessário reconhecer que Israel já está fazendo isso ao longo de 1975, quando explode a

guerra civil libanesa. É neste momento que alguns vilarejos cristãos perto da fronteira israelense

criam milícias locais para resistirem aos ataques das forças muçulmanas e palestinas enquanto o

grosso da Falange trava seus combates no norte do Líbano e não tem a menor condição de enviar

contingentes aos povoados do sul.

Sabendo da importância de estabelecer relações com este setor para transformá-lo em

elemento de contenção do avanço das bases guerrilheiras, Israel começa a fornecer assistência

militar, financeira e médica aos maronitas. Em setembro de 1977, o país intervém no conflito com

tropas terrestres, brigadas de pára-quedistas, tanques e peças de artilharia para ajudá-los a

defenderem suas posições contra as investidas da OLP.

Pouco a pouco, graças ao dinheiro, ao treinamento e ao apoio técnico israelense, as unidades

destes vilarejos criam uma brigada da milícia cristã que passará a se chamar Exército do Sul do

Líbano que, no início dos anos 80, chega a contar com cerca de mil e 500 soldados.

Paralelamente a isso, em junho de 1976, a elite maronita busca também um acordo com o

governo de Damasco, cujas tropas estão combatendo tanto as forças da Frente Progressista como os

palestinos. Mas, ao perceber que o golpe definitivo contra a OLP acaba não acontecendo e que, em

1977, há uma reaproximação da Síria à resistência palestina, o comando da Falange e os membros

do Partido Nacional Liberal vêem dissolver-se o que restava da pouca esperança de entendimento

com Damasco.

Já em 1977, os enfrentamentos entre a Falange e o exército da Síria se tornam mais

freqüentes e, em pouco tempo, levam o alto comando maronita a constatar a impossibilidade de uma

vitória militar capaz de obrigar as forças de ocupação a deixarem o território libanês.

28

Alan Hart, Arafat – biografia política, pg. 369.

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Preocupados com o desenrolar dos acontecimentos e com a mudança na correlação de forças

no interior do país, os maronitas procuram a ajuda de Israel. Mas convencer o governo de Tel Aviv

e a opinião pública judaica a uma ação militar de amplas proporções não é tarefa fácil. É assim que,

entre 1977 e 79, as milícias maronitas provocam seguidos incidentes com as tropas sírias

costumeiramente respondidos com ataques brutais que não têm a menor preocupação de poupar a

vida dos civis. A estratégia do líder da Falange, Beshir Gemayel, é simples: obrigar Damasco a um

comportamento cada vez mais agressivo capaz de suscitar a indignação da opinião pública

israelense. Este sentimento acabaria abrindo as portas para uma possível intervenção direta das

forças judaicas, preocupadas com o novo fortalecimento da OLP.

O envolvimento de Tel Aviv com os acontecimentos do Líbano aumenta sensivelmente em

1979, quando centenas de oficiais da Falange são treinados nos quartéis israelenses e os

contingentes maronitas recebem grandes quantidades de armas acompanhadas de assessores

militares e especialistas em serviços de inteligência. Pouco a pouco, a ajuda bélica ganha as feições

de uma aliança político-estratégica que inclui a coordenação dos comandos militares em vista de

futuras operações conjuntas”.

- “Do jeito que a coisa vem vindo, isso não cheira nada bem...”, murmuro na tentativa de ter alguns

instantes de descanso para a mão que já faz a caneta produzir garranchos piores que os de costume.

Mas a minha esperança de ganhar uma folga dura muito pouco. Nádia pára, saúda a minha

suspeita com um “Até que desta vez o seu faro está certo!”, e, sem ligar para o frenético abrir e

fechar dos dedos, vai mancando rumo a uma pilha de livros desordenadamente amontoados num

canto da mesa. Recostado o corpo, lança um disfarçado “Onde é que nós estávamos?”, que sinaliza

a retomada do trabalho.

- “Que eu saiba, na crescente perspectiva de um novo conflito em território libanês”.

- “Bem lembrado! Pois é, como estava dizendo, as relações político-militares entre a Falange e o

governo de Tel Aviv vão aumentando.

Em setembro de 1980, Begin faz a Gemayel a promessa que há tempo estava esperando: Se

os cristãos forem atacados pela aviação da Síria, a nossa intervirá em sua defesa. 29

Após esta declaração, o líder da Falange volta a desafiar o exército de Damasco que, por sua

vez, manda um recado ao governo judaico: o seu envolvimento direto no conflito o levaria a instalar

baterias de mísseis no vale do Bekaa alterando significativamente o equilíbrio militar na região.

Alegando que Israel não iria permitir um genocídio dos cristãos libaneses, em 28 de abril de

1981, Begin responde ao desafio da Síria com um ataque aéreo que atinge algumas de suas posições

no Líbano. Damasco cumpre a sua ameaça instalando os mísseis e apontando boa parte deles contra

as principais cidades do território judaico. A tensão entre os dois países aumenta e, um mês depois,

as forças israelenses atacam as bases da OLP no sul do Líbano. Temendo uma nova operação

terrestre do exército israelense, a OLP evita responder às agressões.

Diante do aumento do conflito entre a Síria e a Falange e da crescente tensão nas relações

com o governo de Damasco, Begin prepara o terreno para levar o parlamento a aprovar a

intervenção das tropas judaicas no Líbano. Em 3 de junho de 1981, o Primeiro Ministro faz um

discurso no qual defende perante os parlamentares que a segurança e a sobrevivência dos cristãos do

Líbano é uma questão de importância vital para o próprio Estado de Israel.

Ganhas as eleições realizadas em 30 de junho, Begin dá prosseguimento ao seu plano

retomando os ataques contra alvos palestinos no sul do Líbano. Desta vez, a OLP responde com o

lançamento de foguetes que atingem a cidade de Qiryat Shmonah, no norte da Galiléia. Furioso, no

dia 16 de julho, o Primeiro Ministro judaico ordena novos ataques contra as bases palestinas

deixando um saldo de, pelo menos 300 mortos e 800 feridos, civis em sua maioria. A OLP não se

intimida e nos dias seguintes seus foguetes obrigam cerca de 40% dos moradores de Qiryat a

deixarem a cidade. Apesar da superioridade bélica, Israel não consegue derrotar o fogo inimigo.

29

Benny Morris, Vittime, pg. 633.

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Temendo que a situação fuja do controle, os Estados Unidos intervêm e, em poucos dias,

forçam Tel Aviv a aceitar um acordo de cessar-fogo. O documento, assinado em 24 de julho de

1981, proíbe toda agressão armada por mar, terra e ar do território libanês contra Israel e a área de

Segurança e destes contra alvos no Líbano.

O governo judaico recebe a intervenção estadunidense como uma derrota. A trégua, além de

permitir à OLP a recomposição de sua estrutura militar, é interpretada como o primeiro passo de

Washington rumo ao reconhecimento oficial desta organização”.

- “Bom, com a águia metendo o bico no conflito, Israel deve ter sossegado o próprio facho”.

- “Eu não teria tanta certeza...”, retruca Nádia deixando um clima de suspense no ar. “Aposto que

vai mudar de idéia logo que souber o nome da criatura que, em agosto de 1981, vai assumir o

Ministério da Defesa”, acrescenta a coruja aumentando a expectativa.

- “Pois, então, diga!”, cobro impaciente.

- “Ariel Sharon!”.

- “Minha nossa..., mas este cara...”.

- “É isso mesmo, esta figura conhecida pela crueldade de suas ordens nas guerras passadas vai

trabalhar por quase um ano a procura de um pretexto para invadir o Líbano e dar uma lição à Síria e

à própria OLP. Desde as primeiras semanas do seu mandato, Sharon revela uma verdadeira obsessão

em relação a três objetivos: destruir as posições guerrilheiras, fazer recuar o exército de Damasco e

reconstruir as bases do poder maronita. A questão é ter uma boa razão para convencer o Parlamento,

o governo dos EUA e a desconfiada opinião pública internacional quanto à necessidade de uma ação

de grande envergadura.

Provocações e incidentes não faltam, mas como os fedayn farejam a presença desta arapuca

e suas ações não chegam a ameaçar os assentamentos judaicos da Galiléia, as pequenas escaramuças

de todos os dias não são suficientes para justificar uma investida deste porte.

A tão esperada “boa razão” para o ataque vem na noite de 3 de julho de 1982. Um terrorista

ligado ao grupo de Abu Nidal deixa gravemente ferido o embaixador israelense em Londres,

Shlomo Argov.30

Apesar de estar claro que o atentado não é obra da OLP, Begin e Sharon não perdem tempo

diante da que consideram ser uma provocação suficientemente grave para justificar a invasão do

Líbano, pacientemente esperada há mais de dez meses. As palavras dirigidas aos ministros do seu

governo dispensam comentários: Nossos embaixadores representam Israel. Atacá-los equivale a

atacar o nosso país. O fato de o atentado ter sido obra de adversários da OLP, e ser por ela

publicamente condenado, não é motivo de inquietação: São todos da OLP. E é a OLP que devemos

golpear.31

No dia 4 de junho, Begin autoriza um pesado ataque aéreo contra 16 posições da resistência

palestina, nove das quais no centro de Beirute. Duas horas depois do início dos bombardeios, a

artilharia fedayn dispara contra os assentamentos israelenses próximos à fronteira libanesa. As

incursões da força aérea judaica não dão trégua e, no dia seguinte, Tel Aviv aprova a invasão do

Líbano.

Graças ao tratado de paz com o Egito, Israel sabe que o governo do Cairo não vai ameaçar

suas fronteiras ao longo da península do Sinai e, sem a sua intervenção, Jordânia e Síria não têm

condições de arriscar um ataque. Isso dá ao Estado judaico a possibilidade de lançar mão de quase

todas as unidades militares disponíveis e aproveitar de sua superioridade para chegar em Beirute

apenas seis dias depois.

Diante do fogo israelense, a OLP é abandonada à sua própria sorte. Como previsto, os países

árabes não intervêm no conflito e sequer se dignam de enviar algum tipo de ajuda. Cansadas de

30

Abu Nidal é um ex-integrante da resistência palestina que, em 1977, entra em rota de colisão com a orientação

majoritária de Al fatah e assume progressivamente posições pró-iraquianas dispondo-se a atender às necessidades e

interesses dos serviços secretos deste país. Mesmo atacando alvos israelenses, o seu objetivo é, em várias ocasiões, o

enfraquecimento indireto de Al Fatah e da própria OLP. 31

Ambas as citações foram extraídas de Benny Morris, Vittime, pg. 643.

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sofrerem os ataques indiscriminados do exército de Tel Aviv, as milícias da Frente Progressista,

aliadas da OLP no Líbano, não entram na luta. A Síria, a mais radical das nações árabes em rejeitar

qualquer acordo de paz com Israel faz o possível para não ter que enfrentar o exército judaico e, de

conseqüência, se nega a fornecer qualquer apoio à resistência palestina”.

- “Só falta você dizer que o mundo inteiro vai ficar assistindo isso de camarote!”.

- “De camarote não, mas quase, já que os interesses em jogo falam mais alto”.

- “Como assim?”.

- “Diante do desenrolar dos acontecimentos, na noite do dia 6 de junho, o Conselho de Segurança da

ONU aprova a Resolução 509 que exige a retirada imediata e incondicional das tropas israelenses.

Os EUA estão entre os países que assinam o documento, mas o seu gesto não é pra valer. De fato, a

política do governo Reagan no Líbano visa colocar obstáculos às ambições soviéticas, por isso, a

ampliação da antiga Área de Segurança de 10 para até 40 quilômetros a partir da linha de fronteira

não é vista como razão suficiente para barrar o avanço das tropas israelenses.

O problema é que estas superam as expectativas e, no dia 8, abrem fogo contra os soldados

da Síria no Bekaa. Begin, convocado pelo Parlamento a prestar esclarecimentos, nega que isso

esteja acontecendo. Porém, diante das evidências e da possível ampliação do conflito com o

envolvimento direto da União Soviética, no dia 10 de junho, o governo de Washington solicita aos

chefes de ambos os países que suspendam as hostilidades. Com a águia mostrando novamente as

garras, a batalha de Bekaa se encerra com um cessar-fogo assinado no dia seguinte.

Após uma semana de ofensiva israelense, o Líbano encontra-se dividido em quatro partes: a

Síria controla o leste e o norte do Bekaa; Israel o sul até Beirute; os maronitas tomam conta do setor

leste da capital; forças da OLP e da Síria estão na região oeste de Beirute, enquanto os campos de

refugiado a sul da capital estão isolados e a mercê do exército de Tel Aviv.

Apesar dos protestos e da indignação internacional, Israel e a Falange apertam o cerco ao

redor das forças da OLP e da Síria posicionadas em Beirute. Além dos progressivos cortes no

abastecimento de água, comida, combustíveis e eletricidade, a aviação judaica realiza bombardeios

quase que diários do setor oeste da capital provocando um altíssimo número de vítimas civis.

Diante dos acontecimentos e temendo pela sorte dos campos de refugiados, a OLP tenta

resistir na esperança de que as reações internacionais contrárias à ação israelense possam deter o

que se anuncia como um massacre iminente. Paralelamente a isso, com o agravar-se da situação,

agora é a própria população local a pressionar para que a OLP deixe o Líbano.

Em 3 de julho, o embaixador norte-americano em Israel, Samuel Lewis, comunica a Begin

que Estados Unidos e França se dispõem a enviar tropas a Beirute para proteger a saída dos

guerrilheiros da OLP e os civis palestinos que desejem permanecer no Líbano. O problema é

convencer os países do Oriente Médio e do norte da África a aceitar refugiados tão incômodos como

os membros da direção palestina.

Oito dias depois, diante da demora nas negociações e apesar das garantias de que a OLP está

preste a deixar o país, Ariel Sharon comunica ao alto comando do exército o plano de atacar os

bairros da região sul de Beirute onde estão vários campos de refugiados e parte da direção da OLP

com o objetivo de destruir os campos e apressar a saída dos dirigentes palestinos. Diante da possível

escalada do conflito, pacifistas israelenses e governos de várias partes do mundo intensificam suas

pressões e o gabinete judaico sente que não pode prolongar o assédio á capital libanesa. Em votação

bem apertada, a ação encomendada por Sharon é suspensa.

Ainda assim, no final de julho, com o apoio dos membros da Falange, as tropas judaicas

intensificam seus ataques na tentativa de eliminar a cúpula palestina e provocar um colapso de suas

defesas em Beirute oeste. Centenas de civis são mortos, mas a grande maioria dos líderes palestinos

consegue escapar da caçada.

Em 21 de agosto de 1982, uma força internacional de 800 americanos, 800 franceses, 400

italianos e cerca de 300 soldados do exército libanês protegem o início da retirada palestina. As

forças da OLP e o que resta das brigadas da Síria partem levando apenas armas leves. Ao todo, 14

mil 348 palestinos e sírios deixam Beirute. Parte deles se dirige à Bekaa e ao norte do Líbano,

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enquanto os membros da OLP e suas famílias se refugiam na Síria, Argélia, Iêmen, Iraque, Jordânia,

Sudão e Tunísia. Terminada a sua tarefa, as tropas da força internacional deixam o Líbano entre 11

e 13 de setembro”.

- “Pela lógica, agora que a direção da OLP está longe e há uma Resolução da ONU ordenando a

retirada de Israel dos territórios libaneses ocupados, está na hora do exército judaico voltar pra

casa”, afirmo esperançoso de que a pacificação das forças em conflito esteja próxima.

Sem alterar o tom de voz e com a muleta pontada em minha direção, Nádia deixa escapar um

“Doce ilusão!”, tão intrigante quanto assustador.

- “Ilusão... por que?”, questiono na tentativa de afugentar os maus presságios.

- “È só você lembrar que um dos objetivos da ocupação israelense é o de liquidar a resistência

palestina no sul do Líbano para perceber que, dificilmente, a dupla Begin-Sharon vai largar o osso

sem aprontar outro... outro...”

- “Outro massacre...?!?”, pergunto desconcertado.

- “Infelizmente sim”, responde a coruja com expressão de pesar. E continua: “Você deve saber que,

após a saída da OLP de Beirute, o alto comando das forças armadas judaicas discute com os

membros da Falange libanesa o início de uma operação de “limpeza” dos bairros do setor oeste da

capital. Beshir Gemayel, líder maronita candidato à presidência, está convencido de que a situação é

favorável à expulsão dos palestinos do território libanês. As operações para dar conta desta tarefa

seriam executadas após a posse de Gemayel e pelo próprio exército libanês. Os serviços secretos

israelenses dariam as orientações necessárias e seu vice-diretor, Nahum Admoni, deixa claro que o

princípio de agir com clemência em relação aos vencidos não deve ser aplicado no caso dos

palestinos.

Dias depois, em 14 de setembro, uma poderosa carga de explosivos derruba o prédio onde

Gemayel está realizando uma palestra para jovens ativistas da Falange. Antes mesmo de encontrar e

efetuar o reconhecimento do seu cadáver, Sharon discute com Begin a possibilidade de ocupar

Beirute oeste, onde supõe que a OLP deve ter deixado cerca de 2 mil militantes.

Na manhã seguinte, o exército judaico começa a ocupação enquanto as forças maronitas se

preparam para entrar nos campos de refugiados e executar a tal “limpeza” decidida de comum

acordo com o alto comando israelense. É assim que, por volta das 18.00 horas do dia 16 de

setembro, cerca de 150 homens da Falange entram nos campos de refugiados de Sabra e Shatilla.

Sem encontrar resistência, a milícia libanesa dá início à carnificina que se encerra na manhã do dia

18 com um saldo que os próprios serviços secretos judaicos estimam não ser inferior aos 800

mortos entre homens, mulheres e crianças.

Três dias depois, o Parlamento libanês elege Amin Gemayel Presidente da República. No

lugar dele, Israel teria preferido Elias Sorkis, mais maleável e mais próximo aos interesses judaicos.

O fato de não respeitar o desejo dos responsáveis políticos das forças de ocupação é interpretado

como um sinal de que os seguidos massacres haviam desgastado sua influência sobre as instituições

e a elite libanesas.

Com as imagens da matança de Sabra e Shatilla percorrendo o mundo e abalando a própria

opinião pública israelense, os EUA pressionam Tel Aviv a deixar Beirute o quanto antes. Em 26 de

setembro, o exército judaico sai da capital libanesa e, nos três dias que seguem, uma força

multinacional assume o seu lugar com a tarefa de ajudar o governo a restabelecer a ordem e a dar

proteção ao que resta dos campos de refugiados”.

- “Então é dessa vez que Israel vai ter que enfiar a viola no saco, já que até seus aliados mais

próximos, os EUA, estão condenando sua ocupação”.

Nádia sorri, e com a ponta da asa em minha direção espeta o ar com gestos que parecem

cutucar os neurônios cansados do cérebro. “No lugar de tentar adivinhar, pare e pense. Você acha

mesmo que, com os Estados Unidos concordando com a ampliação da dita Área se Segurança para

40 quilômetros e interessados em reduzir a influência da Síria, o exército judaico vai deixar o

Líbano sem mais nem menos?”.

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Tendo o silêncio como resposta, a coruja percebe que está na hora de reunir e desvendar

outras peças do quebra-cabeça libanês: “Não querido secretário. O intricado jogo de interesses que

define cada acontecimento vai levar Tel Aviv a manter a presença de suas tropas por um longo

período.

De novembro de 1982 a maio de 83, os governos libanês e judaico negociam as bases para

um acordo de paz entre os dois países deixando a Síria fora das conversações. A relação que se

estabelece durante os encontros diplomáticos é típica da situação na qual o país invasor dialoga de

cima pra baixo com a nação invadida, que, por sua vez, assiste a um novo acirrar-se das tensões

sociais internas.

Aprovado pelo Parlamento, o acordo de paz é revogado em 1984 pelo presidente Amin

Gemayel devido às fortes pressões do governo de Damasco, cujo exército ainda ocupa quase metade

do país. A tão almejada aliança entre Israel e os maronitas naufraga mais uma vez.

Se isso não bastasse, a campanha da Síria contra o acordo aumenta as hostilidades entre

cristãos e drusos e, contando com o apoio das facções muçulmanas locais, o exército sírio põe de

joelhos o regime de Gemayel, expulsando de Beirute tanto americanos como israelenses.

É neste contexto que fazem sua estréia os comandos suicidas do Hezbollah, o Partido de

Deus. Nascido entre 1982 e 83 de famílias ultra-religiosas de muçulmanos xiitas, às quais o Irã dará

a ajuda econômica e financeira de que precisam, seus integrantes assumem a tarefa de expulsar do

Líbano todos os estrangeiros e de transformar o país numa república islâmica nos moldes criados

pela revolução iraniana. Em longo prazo, o Hezbollah se propõe também a desencadear uma guerra

santa para devolver Jerusalém e a Palestina ao islamismo e apagar a influência do Ocidente cristão

no mundo muçulmano.

Além de seus laços com o Irã, entre 1982 e 84, o Partido de Deus vai estreitar relações com a

Síria da qual recebe dinheiro, armas e treinamento bélico. Pronto para o combate e temendo que a

ocupação israelense se prolongue por tempo indeterminado, já em 1983, o braço armado desta

organização dá início aos seus ataques. A ação dos guerrilheiros assume formas que vão das

emboscadas aos ataques com explosivos amarrados ao próprio corpo.

É assim que, por dois anos seguidos, as forças judaicas e estadunidenses presentes no Líbano

são atingidas por uma crescente espiral de violência que mata centenas de pessoas e, pouco a pouco,

questiona a decisão de Tel Aviv de manter as posições ocupadas.

Apesar das duras represálias, das torturas, da guerra psicológica e das milhares de prisões

efetuadas, nada parece debilitar as forças do Hezbollah que, em meados de 1984, já está em

condições de realizar uma centena de ataques por mês.

Sob o peso das seguidas investidas e com a opinião pública interna se manifestando pelo fim

da guerra, em junho de 1985, o exército israelense se retira para uma estreita faixa de Segurança de

onde tenta impedir que os assentamentos da Galiléia sejam atingidos pelos ataques da guerrilha.

Paralelamente às ações armadas, o Hezbollah prepara sua representação parlamentar e cuida

da administração de escolas, hospitais e da prestação de serviços sociais que lhe permitem uma

inserção e uma visibilidade cada vez maiores na vida da população local. Seus ataques contra as

posições israelenses em território libanês e os assentamentos judaicos próximos à linha de fronteira

varrem assim a segunda metade da década de 80, entram pela de 90, e se intensificam a partir de

1995.

Diante de uma situação cada vez mais insustentável, em março do ano 2000, Tel Aviv

aprova a retirada de suas tropas do sul do Líbano. A guerrilha xiita não reduz seus ataques até que

em 24 de maio o último soldado israelense deixa o território libanês. A opinião pública judaica vive,

ao mesmo tempo, uma sensação de alívio e um profundo sentimento de derrota”.

- “Pelo visto, você agora voou da década de 80 até o ano 2000 num pulo só. Chegou tão longe que

já não consigo fazer a menor idéia de por onde andam os palestinos forçados a deixar Beirute”,

comento em tom de provocação.

Apoiada no graveto-muleta, Nádia se levanta, limpa a garganta e com ar irônico se prepara

para pagar o feito com a mesma moeda. “Muito bem, querido secretário, já que está tão interessado

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em não perder o fio da meada vou dispensar o intervalo que estava preste a conceder e iniciar sem

mais delongas o novo capítulo onde vou tratar da...”

8. A resistência palestina: da derrota do Líbano à Intifada.

Firme em seu propósito de não perder um único minuto, Nádia não tira os olhos dos papéis

sobre os quais a mão direita deita suavemente o instrumento de trabalho. Disfarçadamente, a

esquerda se une a ela para estalar os dedos e ensaiar uma gostosa espreguiçada.

Apoiada na muleta, a coruja põe a ponta das asas na cintura e observa atentamente cada

movimento. Sentindo-se desafiada, começa a bater ritmicamente a pata para sinalizar que a vontade

de apressar os trabalhos está preste a ultrapassar a fronteira entre a paciência e a irritação. Mais

alguns instantes e...

- “Você tem três segundos para agarrar a caneta e colocá-la no início da folha!”, intima Nádia

apontando o graveto em minha direção.

- “Mas é só uma inocente espreguiçada!”, suplica a língua na tentativa de ganhar tempo.

- “O problema é exatamente este “só” que lhe serve de biombo. Como se eu não soubesse que a

espreguiçada vira levantada, conversa, preguiça, enfim, enterro da disciplina de estudo. E também

não venha me dizer que um marmanjo de mais de 40 anos ainda faz coisas inocentes...”, acrescenta

Nádia com a perspicácia de quem acaba de desmascarar as segundas intenções ocultas na

simplicidade dos gestos.

Fingindo não dar o braço a torcer, os dedos se posicionam vagarosamente enquanto a ave

levanta o graveto para sinalizar o início do relato. Após um “Como você mesmo dizia no final do

capítulo anterior...”, que pretende recolocar nos trilhos a relação com o secretário às suas ordens,

Nádia esclarece que “para recuperar o caminhar da resistência palestina é necessário voltar no

tempo. Em primeiro lugar, devemos lembrar que, com a destruição de sua infra-estrutura militar

pelas forças armadas judaicas em 1982, a direção e a maior parte dos quadros da Organização para a

Libertação da Palestina são obrigados a deixarem Beirute e a transferirem seu quartel geral para a

longínqua Tunísia.

Com a perda de muitos combatentes e das armas pesadas, o que resta de suas unidades se

dispersa pelos países do Oriente Médio e do Norte da África deixando assim de representar uma

ameaça para as regiões da Galiléia. Tanto a OLP, como Arafat, saem do Líbano consideravelmente

enfraquecidos, mas não mortalmente feridos.

Aproveitando desta fragilidade, em setembro de 1982, Ronald Reagan, presidente dos

Estados Unidos, divulga seu plano de paz para o conflito palestino-israelense cujas diretrizes podem

ser resumidas nos pontos que seguem: 1. Apoiar o autogoverno dos palestinos nos territórios

ocupados, a ser viabilizado em associação com a Jordânia; 2. Rechaçar a criação de um Estado

Palestino independente; 3. Convencer Israel a retirar suas tropas da Cisjordânia e da Faixa de Gaza.

Por este caminho, os EUA procuram criar as condições para realizar seu objetivo principal: alijar a

OLP dos futuros desdobramentos nos territórios ocupados e garantir que as negociações ocorram

com líderes palestinos sensíveis aos interesses judaicos e norte-americanos.

O plano Reagan provoca fortes discussões no interior da OLP que, além da diáspora de seus

militantes, enfrenta grandes dificuldades para costurar apoios entre os governos árabes, sendo que a

Síria é absolutamente contrária a qualquer acordo de paz com Israel e a Jordânia está disposta a

trabalhar para remover Arafat da liderança da Organização.

Após escapar de vários atentados e efetuar inúmeros contatos com os delegados do Conselho

Nacional Palestino e com os governantes árabes, no dia 11 de fevereiro de 1985, Arafat e o rei

Hussein da Jordânia assinam em Amã um acordo pelo qual se comprometem a trabalharem juntos

pela paz. Hani Hassan, membro da OLP encarregado de coordenar as negociações com os

jordanianos, assim resume o resultado deste processo: Por razões que o mundo deve compreender, a

OLP não pode aceitar a Resolução 242, reconhecendo o Estado de Israel, até que Israel reconheça

o direito palestino à autodeterminação... Apesar disso, estamos dispostos a tornar concreta a

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Resolução 242, e a negociar sobre sua base no contexto de uma conferência internacional de paz,

sempre que se reconheçam como objetivos das negociações os pontos que seguem: 1. A retirada

israelense dos territórios árabes ocupados em 1967, como exige a resolução 242; 2. A criação na

Cisjordânia e Gaza de um Estado Palestino em confederação com a Jordânia; 3. O reconhecimento

por todos os Estados, incluído o Estado Palestino confederado com a Jordânia, da existência de

Israel no interior de fronteiras estáveis e garantidas; 4. O compromisso de todas as partes

envolvidas de continuar discutindo todos os problemas fundamentais e de resolvê-los por meios

pacíficos e democráticos. 32

Com o acordo, Jordânia e OLP abrem as portas ao diálogo com Israel enquanto os governos

árabes pressionam Reagan para que convença o Estado judaico a responder positivamente a esta

iniciativa.

Mas as mensagens de Washington não deixam dúvidas quanto ao fato de que este será um

caminho difícil e cheio de percalços. O primeiro passo sugerido é a realização de um encontro entre

um membro da Secretaria de Estado norte-americana e uma delegação composta por jordanianos e

palestinos. No caso dos resultados serem satisfatórios, Arafat deve declarar publicamente que

reconhece as fronteiras israelenses de 1967 e aceita as Resoluções 242 e 338 como base para as

negociações. Em seguida, outro representante da Casa Branca vai receber instruções para se

encontrar em ele em Amã, na Jordânia.

Sem escolha, Arafat aceita esta condições”.

- “Bom, agora que os palestinos acatam as Resoluções da ONU como base para as negociações com

Israel, não vejo razões para Tel Aviv se recusar a aceitar a OLP como interlocutor...” comento na

esperança de que uma resposta afirmativa apresse o desenrolar do relato.

Nádia me olha silenciosa e, em seguida, balança a cabeça acompanhando seu gesto com uma

frase que acaba com qualquer ilusão: “Sinto muito, mas a sua preguiça vai se frustrar mais uma

vez!”, diz em voz firme enquanto dirige a ponta da asa em minha direção. “Você está esquecendo de

que negociar com os palestinos significa, implicitamente, se dispor a colocar em jogo a ocupação

israelense na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Territórios estes dos quais o governo de Tel Aviv não

quer abrir mão”.

- “Você não está querendo dizer que...”.

- “Sim, querido secretário, que o plano de paz estadunidense vai naufragar devido às pressões

exercidas tanto pelo gabinete judaico como pelo lobby sionista norte-americano. Ambos criticam o

plano e reafirmam que, para todos os efeitos, a Organização para a Libertação da Palestina e o CNP

são parte de uma mesma estrutura terrorista e que, ao apoiar o envolvimento de Arafat nas

negociações, os EUA estão rompendo os seus compromissos com Israel.

Fechado o caminho do diálogo e levados ao desespero pela repressão e as humilhações

quotidianas, fruto da ocupação israelense, grupos palestinos dão origem a atos de violência na

Cisjordânia. Em resposta, Israel ameaça a Jordânia acusando-a de dar abrigo e sustentação a

comandos terroristas. Mas a pagar a conta não será o rei Hussein, mas sim a direção da OLP. Em 1º

de setembro de 1985, contando com a tácita aprovação estadunidense, aviões militares israelenses

bombardeiam e destroem o quartel geral de Arafat em Tunis matando 45 membros da sua equipe, 20

civis e ferindo mais de cem pessoas.

Paralelamente a isso, a OLP mantém conversações com o governo de Londres onde a

Primeira Ministra, Margareth Thatcher, oferece a sua mediação para criar um canal de negociação

entre palestinos e israelenses. Mas esta possibilidade se encerra antes mesmo de sua concretização

quando, quinze dias após o ataque aéreo judaico, um grupo de guerrilheiros da Frente de Libertação

da Palestina seqüestra o navio italiano Achille Lauro.

As razões deste gesto, e o próprio seqüestro dos seqüestradores por parte das forças

estadunidenses, mereceriam um capítulo à parte. Mas, por sua sorte, vou me limitar a dizer que este

acontecimento cai como uma luva na política israelense.

32

Alan Hart, Arafat – biografia política, pg. 404.

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Canceladas as negociações em Londres, Arafat teme que a perda de credibilidade sofrida

pela OLP seja usada por Reagan para não admitir os representantes palestinos junto à delegação da

Jordânia. Como primeiro passo para sair desta situação desconfortável, em 10 de novembro de

1985, Arafat declara no Cairo que renuncia a qualquer forma de terrorismo e que a OLP está

disposta a castigar severamente aqueles que lançarem mão deste meio. Ao mesmo tempo, para

evitar que outros setores da resistência palestina possam ampliar seu crescimento às custas de Al

Fatah, o líder palestino completa o seu discurso fazendo uma distinção entre terrorismo e luta

armada legítima que a própria Carta das Nações Unidas define como um dos direitos dos povos que

se encontram sob ocupação militar.

Israel reage desqualificando as palavras de Arafat, enquanto grupos de pressão judaicos

pedem aos governos de Tel Aviv e Washington que não aceitem a OLP como integrante das

negociações de paz. Ainda assim, após uma intensa e atormentada atividade diplomática, a

administração Reagan confirma ao rei da Jordânia que está disposta a convocar uma conferência

internacional na qual a OLP seria convidada a participar caso aceite publicamente as Resoluções

242 e 338 das Nações Unidas.

Em nome da Organização, Arafat acata o pedido norte americano, mas a uma condição: os

EUA devem declarar por escrito que apóiam o direito palestino à autodeterminação e divulgar esta

posição para o mundo”.

- “Mas, ao agir assim, ele corre o risco de perder uma chance de ouro!?!”

- “Não, meu secretário apressado, o problema é que, apesar de ter a cor e o brilho do precioso metal,

trata-se de ouro de tolo”.

- “Sério...?”

- “A postura da OLP é motivada pela descoberta de que a oferta norte-americana não é o que parece

ser. De fato, em caso de fracasso das negociações ou do não comparecimento da delegação

israelense, os palestinos teriam jogado o seu único trunfo, o reconhecimento de Israel, a troco de

nada. Neste caso, os líderes da OLP ficariam completamente desacreditados e a própria Organização

acabaria implodindo.

Os fatos dão razão à desconfiança dos palestinos. Em 19 de fevereiro de 1986, os Estados

Unidos se negam a atender o pedido de Arafat e a Jordânia anuncia imediatamente que abandona a

OLP como companheira no processo de paz. Em seguida, o rei Hussein fecha os escritórios da OLP

e expulsa do país até mesmo os dirigentes que têm passaporte jordaniano. Estas reações provam que

a proposta de Reagan, não passava de uma armadilha preparada de comum acordo com o governo

de Amã”.

- “Pela lógica, toda vez que a porta do diálogo se fecha, se abre a do enfrentamento, certo...?”,

pergunto temendo uma resposta afirmativa.

- “Por incrível que pareça... sim!”, responde Nádia com uma pitada de ironia. E continua: “O peso

da dominação israelense e o profundo sentimento de frustração dos palestinos fazem explodir a

revolta na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. Inicia assim um movimento de amplas proporções que o

mundo vai conhecer com o nome de Intifada”.

- “Inti... o que?”

- “In-ti-fa-da!”, silaba a coruja. “Trata-se de uma palavra árabe que significa sacudir, chacoalhar

para tirar o que está em cima, enfim, algo parecido ao movimento do cachorro que após ter sido

molhado sacode o corpo para se livrar da água. Entendeu?”.

- “Bom, já sei o que a palavra significa, mas ainda não faço idéia de como é que um povo submetido

à ocupação militar pode fazer isso”, questiono intrigado.

- “Tenha paciência que já vou explicar tudo, tintim por tintim”, retruca Nádia freando com um gesto

a investida da curiosidade. “Em primeiro lugar, é necessário deixar claro que a Intifada não é uma

rebelião armada, mas sim uma massiva e persistente campanha de resistência civil baseada em

greves, fechamento de lojas, enfrentamentos e protestos contra as forças de ocupação. É o povo

transformando em arma o que está facilmente ao seu alcance: pedras, pedaços de tijolos, facas e,

excepcionalmente, garrafas incendiárias. Trata-se de uma batalha levada adiante por pessoas que

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querem ser cidadãs de um Estado palestino e não mais uma massa de sem-pátria que há 20 anos é

submetida à ocupação de um exército estrangeiro”.

- “Será que você pode visualizar melhor as causas desta revolta?”.

Nádia olha para o alto e após alguns instantes de silêncio dá mostras de ter conseguido

ordenar as idéias. “Vejamos. Sim é isso mesmo – diz após um longo suspiro. São muitos os

elementos que alimentam a raiva e o desespero que dão origem a Intifada.

De um lado, temos um profundo sentimento de frustração diante do fracasso das várias

estratégias adotadas pela OLP e do imobilismo dos governos árabes que, na hora da verdade, não

titubeiam em abandonar os palestinos à sua própria sorte. A isso deve-se acrescentar que os Estados

Unidos se mantêm firmes ao lado de Tel Aviv, enquanto a União Soviética, sob o comando de

Michail Gorbachev, reduz a passos largos o seu envolvimento com o mundo árabe e a ONU

permanece impotente diante dos impasses criados pelo sistemático descumprimento de suas

Resoluções por parte de Israel.

Do outro, encontramos a que parece ser a principal causa da Intifada: a relação quotidiana

que se estabelece entre palestinos e israelenses nos territórios ocupados. Dados divulgados em 1987

revelam que, por exemplo, na Faixa de Gaza, cuja densidade demográfica está entre as maiores do

mundo, cerca de metade dos moradores de origem árabe vive em condições desumanas tanto dentro

como fora dos campos de refugiados. Enquanto os palestinos encontram-se, literalmente,

amontoados, não mais de 2 mil e 500 colonos judeus controlam cerca de 28% deste território e a

maior parte de seus recursos hídricos. Ao mesmo tempo em que falta água para irrigar as lavouras e

garantir o atendimento das necessidades básicas palestinas, os assentamentos judaicos são

verdadeiros jardins com direito a piscina.

Se isso não bastasse, a política israelense nos territórios ocupados procura dificultar o

desenvolvimento da economia local, subordinando-a aos interesses judaicos. Para proteger suas

indústrias, o governo de Tel Aviv impede que os árabes instalem novas empresas. Uma ampla rede

de normas é criada para dificultar as viagens e o deslocamento das mercadorias, para importar

matérias-primas do exterior e até mesmo para construir prédios e galpões. O objetivo disso tudo é

transformar a Cisjordânia e a Faixa de Gaza em mercado cativo dos produtos israelenses.

Ao mesmo tempo em que se impede aos palestinos de cultivar os vegetais exportados por

Israel, as autoridades judaicas dirigem a agricultura árabe à produção de hortaliças destinadas a

satisfazer a demanda da população israelense (é o caso, por exemplo, da produção de tomates e

pepinos). Desta forma, seus colonos podem usar maiores extensões de terra para plantios cuja

exportação rende polpudas quantias em moedas fortes.

Diante dos limites colocados à expansão agrícola e industrial palestina, a força de trabalho

dos territórios ocupados não tem outra saída a não ser a de procurar emprego em Israel. Em 1987,

são cerca de 120 mil os palestinos da Cisjordânia e Gaza que trabalham no Estado judaico. A maior

parte deles em profissões humildes, mal-remuneradas, sem direitos trabalhistas e, em geral, com

salários inferiores aos de seus colegas israelenses.

Acrescente a isso o fato de que o impulso à colonização dos territórios ocupados é

acompanhado pela política de mão-de-ferro do governo de Tel Aviv e não terá a menor dificuldade

em chegar à mesma conclusão de uma pesquisa israelense realizada na Faixa de Gaza poucos meses

antes da Intifada: a soma de miséria, desemprego, exploração, repressão, humilhações constantes,

toques de recolher, irrupções noturnas do exército nos campos de refugiados, prisões arbitrárias,

torturas, demolições das casas de supostos militantes da resistência e demais etceteras transformam

a aparente submissão do povo dos territórios ocupados numa verdadeira bomba-relógio”.

- “Com o vaso já cheio, basta uma única gota d’água para fazê-lo transbordar...”.

- “Você tem razão. Na segunda metade de 1987, as relações entre palestinos e israelenses se tornam

cada vez mais tensas. As desordens aumentam em freqüência e intensidade e, no início de

dezembro, as autoridades judaicas têm a clara sensação de estar perdendo o controle da situação na

Faixa de Gaza. As repercussões dos enfrentamentos atingem também Jerusalém e a Cisjordânia

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onde os colonos judeus não hesitam em atirar nos palestinos e em atacar seus vilarejos toda vez que

se tornam alvo das pedras por eles lançadas.

O governo de Israel se distancia repetidamente da atitude dos colonos, mas faz bem pouco

para coibi-la. Árabes e israelenses interpretam esta postura como incapacidade das forças armadas

judaicas de proteger os colonos diante de uma revolta popular. A situação se torna tão explosiva que

a provocar sua detonação será um acidentes de trânsito”.

- “Um acidente?”.

- “Isso mesmo! Na manhã de 8 de dezembro de 1987, ao norte da Faixa de Gaza, um veículo

utilizado no transporte de tanques do exército bate numa perua que leva operários palestinos do

campo de refugiados de Jibalya aos canteiros de obra em território israelense. No choque, quatro

trabalhadores morrem e outros seis são feridos.

Algumas horas depois, espalha-se nos territórios ocupados a informação de que a colisão foi

proposital sendo que o motorista do caminhão teria provocado o acidente para vingar a morte de um

israelense assassinado no dia anterior.

Durante os funerais das vítimas, milhares de palestinos ocupam os becos e as vielas de

Jibalya e de outros campos de refugiados da Faixa de Gaza. O destacamento do exército

encarregado de controlar as manifestações que acompanham o enterro é alvo de uma verdadeira

chuva de pedras. A Intifada dá assim seus primeiros passos.

As notícias dos enfrentamentos colocam em polvorosa os territórios ocupados. Milhares de

palestinos vão às ruas, atiram pedras, queimam pneus e constroem barricadas. As tentativas do

exército de dispersar os manifestantes conseguem exatamente o oposto. Em várias ocasiões, os

soldados atiram na multidão matando e

ferindo dezenas de pessoas. Mas os

funerais dos mortos, tidos como mártires,

alimentam novos e violentos protestos que

mostram, na prática, como nenhuma das

velhas regras impostas pelas forças de

ocupação tem a menor chance de ser

respeitada. Todo o esforço dos vários

grupos de resistência destina-se a

enfraquecer o controle judaico sobre

Cisjordânia e Gaza, provocar um desgaste

político do governo israelense no exterior

e recolocar a questão palestina entre as

prioridades da agenda internacional.

Isso só é possível na medida em

que a explosão isolada da revolta ganha

consistência e continuidade com o passar dos dias. As manifestações quotidianas revelam que sua

aparente espontaneidade conta com bases organizadas durante longos anos. Ao esconderem o rosto

com o keffiyeh, seus líderes não pretendem apenas ocultar sua identidade ou se proteger do gás

lacrimogêneo, mas visualizam através das cores as organizações que sustentam a rebelião: branco e

vermelho para os grupos de esquerda, branco e preto para Al Fatah, branco e verde para os

fundamentalistas muçulmanos palestinos”. 33

- “Fundamentalistas muçulmanos palestinos? De onde é que eles vêm?”, pergunto para esclarecer a

origem dos que, volta e meia, são citados pelos meios de comunicação.

Nádia se mantém em silêncio por alguns instantes. Em seguida, limpa a garganta e,

apontando o graveto-muleta para as folhas do relato, solta um “Então não me resta outra opção a

33

Keffiyeh é o véu com o qual os palestinos cobrem a cabeça e que, desde a década de 30, é um dos símbolos de sua

resistência.

Palestinos da cidade de Gaza atiram pedras contra

tanques israelenses

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não ser falar um pouco mais sobre eles” que me deixa entre a curiosidade e o arrependimento pelo

trabalho adicional que isso vai dar.

Seja como for, a coruja respira fundo e, após o costumeiro “Muito bem, vejamos...” com o

qual reúne as idéias, abre o bico para dar início àquele que aparenta ser um parêntese necessário no

relato da Intifada: “Pois fique sabendo que, desde 1967, o grupo fundamentalista islâmico

conhecido pelo nome de Fraternidade Muçulmana vem intensificando sua presença nos territórios

ocupados tanto nos meios universitários como na organização de comitês populares e associações

assistenciais que, pouco a pouco, vão fincando suas raízes no dia-a-dia da vida nos territórios

ocupados.

Sem fazer alarde e consideradas irrelevantes pelos serviços de segurança israelenses, as

ações da Fraternidade criam sindicatos, associações profissionais, comitês estudantis, instituições de

caridade, jornais, centros de pesquisa e agremiações destinadas à organização das mulheres. No

final dos anos 70, este grupo fundamentalista coloca à disposição dos fiéis e de suas famílias não só

os recursos de uma entidade religiosa, mas também creches, escolas de 1º e 2º graus, bibliotecas,

postos de saúde, clínicas e quadras de esportes.

Tendo como mentor intelectual o sheikh Ahmad Isma’il Hasa Yassin, o avanço do

fundamentalismo entre os palestinos pode ser medido pela quantidade de mesquitas que são

construídas nos territórios ocupados. Na Faixa de Gaza, elas são 77 em 1967 e chegam a 160 vinte

anos depois, enquanto na Cisjordânia há uma média de 40 novas mesquitas por ano ao longo da

década de 80.

Atingindo dezenas de milhares de pessoas, a Fraternidade começa a viabilizar-se como uma

alternativa à OLP na representação dos muçulmanos palestinos. Ao longo dos anos 70 e no início

dos 80, os membros deste grupo fundamentalista evitam o uso da violência, razão pela qual o

governo militar israelense não interfere na sua ampliação por entender que as atividades

assistenciais vão minar as bases de apoio da OLP e reorientar os objetivos da resistência palestina.

Mas as coisas começam a mudar após a revolução iraniana. A partir de 1979, Khomeini e os

xiitas do sul do Líbano introduzem no Oriente Médio a visão de um islamismo combativo. Isso faz

com que, em 1983, o núcleo central das atividades da Fraternidade Muçulmana comece a superar o

caráter assistencialistas de suas ações. Um número crescente de seus integrantes fala em objetivos

políticos dos palestinos e Yassin coloca a seus seguidores a necessidade de criar uma associação

secreta de caráter militar para enfrentar a ocupação israelense. Porém, em junho de 1984, o exército

judaico descobre um depósito de armas na mesquita onde Yassin costuma fazer suas pregações. O

sheikh é preso e condenado a 13 anos de reclusão, mas doze meses depois, é libertado graças a um

acordo de troca de prisioneiros entre o exército judaico e a resistência palestina.

Fora da cadeia, Yassin volta a pregar a não-violência, mas, em junho de 1987, organiza um

novo braço armado da Fraternidade e cria uma polícia secreta com a finalidade de procurar e

eliminar os palestinos que aceitam colaborar com Israel.

Diante da explosão da Intifada, a Fraternidade Muçulmana começa a priorizar as atividades

político-militares. Pressionado por sua base e disposto a ganhar terreno em relação aos demais

grupos de resistência, no dia 10 de dezembro de 1987, o seu líder religioso funda o grupo Hamás

que, em março do ano seguinte já é uma força importante da Intifada na Faixa de Gaza e, em menor

medida, na Cisjordânia. 34

Quase desde o início, simpatizantes e militantes de Hamás são autorizados por Yassin a usar

armas de fogo contra tropas israelenses, mas a falta de treinamento e a pouca disponibilidade de

equipamentos fazem com que a primeira ação militar seja realizada só meses depois.

Em 14 de dezembro de 1987, a Fraternidade Muçulmana divulga um panfleto que não deixa

dúvidas quanto aos objetivos deste grupo: lutar contra o inimigo sionista, opor-se aos esforços de

pacificação e trazer os países árabes de volta ao caminho do islã envolvendo-os na luta. O boletim

34

Hamás é uma palavra árabe que significa “fervor” e “coragem” ao mesmo tempo em que as letras que compõem o

nome deste grupo são as iniciais de Haramat Al-Muqawma Al-Islamiya, ou seja, Movimento de Resistência Islâmica.

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descreve o perfeito jovem muçulmano como aquele que está pronto para conquistar o paraíso com o

martírio lutando contra Israel. Nos documentos divulgados oito meses depois, Hamás define a

realização das aspirações nacionais dos palestinos como um marco no processo que visa islamizar o

país e a destruição do Estado judaico como seu objetivo principal. A intransigência em relação à sua

meta é apresentada como uma questão religiosa: sendo a Palestina um território sagrado do islã,

nenhum muçulmano tem o direito de ceder uma parte qualquer.

Neste sentido, a luta contra o sionismo é vista como uma obrigação pessoal de cada

muçulmano. Compromissos e negociações com os israelenses são proibidos e a guerra santa (jihad)

é apresentada como o único caminho possível.

Enquanto os hebreus são chamados de instrumentos do mal, os integrantes das facções da

OLP são comparados a um pai, um irmão, parente e amigo ao qual Hamás não pode virar as costas

por se tratar de alguém que professa a mesma religião”.

- “Que você saiba, nesta época Hamás é o único grupo fundamentalista palestino ou há outros?”,

peço instigado pela impressão de ter ouvido algo mais a este respeito.

- “Além dele, há o Jihad Islâmico Palestino, mais conhecido como Jihad”, responde Nádia satisfeita

em ver que o cansaço ainda não tomou o lugar do interesse. “Para falar a verdade, este grupo nasce

bem antes de Hamás. Jihad tem sua origem no final de 1979, quando, sob a influência da revolução

iraniana e desapontados com o caráter assistencialista da Fraternidade Muçulmana, Fathi Shqaqi,

Abd Al’Aziz’Odah e Bashir Musa preparam um programa de ação que se tornará a base para a

formação do grupo.

Reunindo várias facções fundamentalistas, Jihad afirma que a unidade do mundo islâmico

não é uma pré-condição para a libertação da Palestina e sim que a libertação da Palestina pelos

movimentos islâmicos é a chave para a unificação do mundo árabe muçulmano. Em outras palavras,

a guerra santa para livrar as terras palestinas de seus invasores seria a ante-sala de outra que

conduziria à construção de um Estado islâmico maior.

Ao longo da década de 80, a rede clandestina criada pelos militantes de Jihad vai realizar

vários ataques contra alvos israelenses na tentativa de fazer com que o aumento da repressão nos

territórios ocupados crie as premissas de uma ampla insurreição popular. No início da Intifada,

porém, dois de seus principais líderes estão presos e o número menor de adeptos em relação ao

quadro de militantes de Hamás vai reduzir sua importância para o sucesso do levante. Ainda assim,

já nos primeiros dias da revolta, Jihad defende a necessidade da luta armada e em junho de 1988 vai

retomar a propaganda a favor dos atentados suicidas.

Até o início dos anos 90, os membros deste grupo agem em sintonia com os integrantes de

Al Fatah. Apesar da distância dos seus projetos para a futura Palestina – Jihad defende a

implantação de uma república islâmica fundamentalista enquanto o grupo de Arafat quer a

construção de um estado leigo e democrático – as duas organizações convergem quanto ao

propósito de pôr fim à ocupação israelense”.

- “Nádia, você já acenou às relações entre os fundamentalistas e a OLP, mas agora fiquei intrigado.

Se a Organização para a Libertação da Palestina está Tunis, como é que ela faz para coordenar as

ações da Intifada?”

- “Bom, é que durante o primeiro mês do levante, em cada vilarejo, campo de refugiado ou cidade,

os principais líderes locais da resistência estão envolvidos na construção de comitês populares que

organizam os protestos e as greves, coletam fundos, punem os que colaboram com os serviços

secretos israelenses e dirigem os ataques contra as forças de ocupação.

Na Cisjordânia, acima dos comitês locais, emerge uma coordenação integrada por

representantes de Al Fatah, FPLP, FDLP e do Partido Comunista cuja estrutura básica já existia

antes da Intifada. Trata-se da Direção Nacional Unitária da Revolta (UNLU, pela sigla em inglês),

chamada também de Comando Nacional Unificado.35

Seus membros se mantêm em contato com a

sede da OLP em Tunis tanto para discutir as táticas e as estratégias do movimento como para

35

UNLU: United National Leadership of the Uprising.

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receber recursos financeiros a serem entregues a dirigentes, ativistas e às famílias dos palestinos

assassinados, feridos ou detidos, ou cujas casas são destruídas pelos israelenses”.

- “Hamás e Jihad participam desta coordenação?”

- “Apesar de seus militantes estarem na linha de frente dos protestos e dos enfrentamentos, não há

lugar para eles na UNLU em função da disputa de espaço que ocorre no interior da própria

resistência palestina. Com a OLP mais forte na Cisjordânia, admitir Hamás e Jihad na coordenação

da Intifada significaria dar asas a dois grupos numa região em que suas forças são mais frágeis. Ao

mesmo tempo em que, na Faixa de Gaza, onde ambos são hegemônicos na condução das atividades

do levante, as demais facções tentam tirar as rédeas do movimento das mãos dos fundamentalistas.

Apesar da distância de sua sede em relação aos territórios ocupados, todo o trabalho dos

dirigentes da OLP procura recuperar o controle da situação e levar os árabes da Cisjordânia e Gaza a

aceitar sua autoridade. Ganhar a confiança e a representatividade deles é visto como um dos passos

necessários para transformar uma revolta de desfecho incerto num sucesso político e diplomático

que dê vida nova à própria OLP”.

- “Se não me engano, você falou da criação de Hamás como braço armado da Fraternidade

Muçulmana e da defesa que Jihad faz da necessidade da luta armada desde o começo do levante.

Como explicar então o que o uso das armas na Intifada é restrito a casos isolados?”, questiono

acreditando ter encontrado uma contradição no relato da coruja.

Sem perder a pose, Nádia começa a andar de um lado pra outro. De repente pára e virando o

corpo em minha direção diz: “Acontece que, apesar das declarações e posturas que integram sua

história, desde o início da rebelião, os militantes dos grupos de resistência percebem a necessidade

de evitar o uso de armas de fogo por entender que esta opção levaria a Intifada a se colocar num

terreno onde o inimigo estaria em clara vantagem. Por isso, a decisão da ampla maioria é de

enfrentá-lo com instrumentos aos quais não está acostumado e que todos podem encontrar em

qualquer lugar: pedras, tijolos, estilingues, pedaços de pau, facas, machados, etc. Armas não faltam

já que, de acordo com os serviços secretos judaicos, há milhares de fuzis e revólveres nos territórios

ocupados, mas sua utilização ao longo do levante não passa de uma exceção. Tanto a UNLU, como

as lideranças locais, resolvem banir o seu uso para preservar a imagem de revolta popular da

Intifada com os palestinos no papel de Davi e Israel no de Golias.

Longe de diminuir seu impacto, a audácia dos rebeldes aumenta com o desenrolar da

rebelião tanto em função de algumas limitações impostas ao exército israelense quanto ao uso do

seu arsenal bélico, como pela sensação de que a vitória está cada dia mais próxima. Cidades e

vilarejos que nas duas últimas décadas vinham mantendo boas relações com os judeus se tornam

bastiões de resistência. De acordo com as forças armadas judaicas, nos primeiros 18 meses da

revolta, registram-se, ao todo, cerca de 41 mil incidentes e 3 mil 585 incêndios de roças e pomares.

A estes enfrentamentos se deve acrescentar o não pagamento dos impostos por parte dos

comerciantes de Cisjordânia e Gaza (que leva Israel a perder 40% da arrecadação destas regiões), o

boicote aos produtos judaicos e a demissão em massa dos palestinos que atuam como policiais nos

territórios ocupados”.

- “Pelo visto, a situação está mesmo fora de controle. Só não entendo porque o exército de Tel Aviv,

sempre tão rápido em responder às agressões, parece não estar à altura da situação”.

- “As razões são várias. De antemão, é necessário reconhecer que tanto o governo como os serviços

secretos judaicos são incapazes de prever o levante e de perceber que a Intifada não é uma seqüência

de desordens passageiras destinadas a se esgotar com o simples passar dos dias. Isso explica porque

Israel leva cerca de um mês para entender que está diante de uma rebelião popular de grandes

proporções e não de fatos isolados.

As primeiras medidas mostram claramente que o governo judaico não titubeia em lançar

mão de toda forma de repressão. O exército atira na multidão e investe violentamente contra os

manifestantes. Do uso de cassetetes às torturas, das prisões em massa às sanções pecuniárias e daí

para os inúmeros processos judiciais, toques de recolher, demolições das casas dos militantes,

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expulsão dos líderes dos protestos, fechamento de lojas e ameaças, tudo isso é abundantemente

usado no dia-a-dia do enfrentamento da revolta palestina. Resultado: tudo inútil.

A dificultar ainda mais a vida dos comandos militares judaicos está o completo despreparo

das forças de ocupação cujo treinamento, eficiente na hora de enfrentar exércitos regulares ou forças

guerrilheiras, se revela ineficaz diante de um levante popular.

No início de junho de 1988, o balanço dos primeiros seis meses de revolta é assustador: 358

palestinos assassinados pelo exército israelense, 9 mil e 800 feridos, mais de 20 mil manifestantes

presos e 3 mil 470 aleijados pelas torturas e os maus tratos sofridos nos presídios.

As imagens veiculadas pela mídia são chocantes e as vozes de condenação que se levantam

toda vez que os soldados atiram na massa desarmada fazem com que a estratégia de combate à

Intifada seja criticada tanto pela esquerda como pela direita judaicas. A primeira por denunciar sua

brutalidade e a segunda por acusá-la de ser fraca e ineficiente.

O problema é que, de um lado, a repressão consegue deter temporariamente as desordens nos

territórios ocupados, mas, de outro, ao matar, ferir, prender, impedir os deslocamentos e dificultar o

acesso aos serviços básicos, Israel agrava as já precárias condições de vida do povo palestino,

alimentando o ressentimento e o ódio popular, combustíveis da Intifada. O governo de Tel Aviv vai

sofrer um amplo processo de desgaste até que os fatos o convencem de que a saída não é militar e

sim política”.

- “O que você quer dizer com isso?”, pergunto irrompendo repentinamente no relato da coruja.

- “Simples. Enquanto a repressão israelense é o único instrumento para enfrentar a Intifada, a

revolta se mantém viva entre a população dos territórios ocupados. As coisas começam a mudar a

partir de outubro de 1991 com a realização da Conferência para a Paz no Oriente Médio em Madri,

na Espanha. Deste momento em diante, a ação das massas começa a diminuir até ser totalmente

suspensa em setembro de 1993 quando a OLP e Israel assinam os primeiros acordos. Mas sobre este

assunto vou falar mais após cuidar dos problemas e das conseqüências que a Intifada coloca na

ordem do dia”, comenta Nádia enquanto ajeita a muleta debaixo da asa.

“Pra começar, é bom você saber que, além do elevado número de mortos, feridos e presos

entre as fileiras palestinas, o levante mergulha os territórios ocupados numa grave crise econômica

que faz a renda média, já bastante ruim, cair 35%. Ainda que a dependência econômica em relação a

Israel comece a se enfraquecer em função do boicote dos seus produtos, milhares de moradores da

Cisjordânia e Gaza são impedidos de vender sua força de trabalho no Estado judaico ou nas colônias

israelenses construídas nestes territórios. Além dos toques de recolher, os seguidos fechamentos das

fronteiras e dos acessos aos assentamentos, impostos pelo exército de Tel Aviv, cortam esta

possibilidade dos palestinos garantirem a própria sobrevivência.

O desemprego aumenta ainda mais na medida em que Israel suspende os já escassos

investimentos destinados à infra-estrutura dos territórios ocupados e, temendo os ataques dos grupos

fundamentalistas, começa a substituir os palestinos por imigrantes vindos do Leste Europeu e por

centenas de milhares de hebreus soviéticos que chegam no país entre 1988 e 1994.

No campo das relações entre as várias camadas sociais, a Intifada leva à afirmação de uma

nova classe dirigente e a uma melhora significativa da posição das mulheres na sociedade. A

participação ativa nos protestos e manifestações fortalece também a identidade coletiva dos

palestinos, tradicionalmente ameaçada pelas diferenças políticas, regionais, religiosas e de classe.

Entre os presos durante a Intifada, muitos militantes aproveitam a reclusão para aprender

hebraico e desenvolver contatos com os membros das demais organizações de resistência. Esta

relação vai permitir uma reconstrução bastante rápida das células guerrilheiras e terroristas no

amanhã de sua libertação.

Do lado israelense, estima-se que a queda da produção, das exportações e do turismo tenha

custado ao Estado entre um e meio e dois bilhões de dólares só no primeiro ano do levante. Mas os

reflexos mais importantes ocorrem no campo político. Desde as primeiras semanas, a Intifada abre

os olhos de muitos israelenses quanto ao fato de que seu país é responsável por uma violenta

ocupação militar e que, para viver em paz, é necessário resolver a questão palestina.

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O impacto das imagens, dos relatos, das críticas internacionais e do desejo de paz que se

fortalece entre a população leva a uma radicalização das discussões entre o Partido Trabalhista e os

conservadores do Likud. Os primeiros começam a defender que é necessário sair dos territórios

ocupados o mais rapidamente possível, que é indispensável negociar com a OLP a criação de um

Estado palestino e chegam a considerar os assentamentos judaicos em Cisjordânia e Gaza como um

obstáculo para a paz e um risco para a segurança de Israel.

No campo da direita, os discursos ganham tons mais dramáticos. Ao ver-se assediados pelos

palestinos e subestimados por uma parte dos parlamentares, os colonos dos assentamentos chamam

os trabalhistas de traidores e assassinos, toda vez que um deles é morto por um árabe. Neste

contexto, a expulsão em massa dos palestinos se torna uma proposta política que chega a ganhar o

apoio de quase metade dos eleitores entrevistados antes das eleições gerais de 1988.

Entre as razões que a sustentam, está a preocupação de Israel com a possibilidade dos 800

mil árabes que moram em seu território se unirem ao levante. De fato, não são poucos os que se

sentem fortalecidos em sua identidade palestina e no desejo de pleitear a igualdade econômica,

política e social com os israelenses. Nos primeiros meses da Intifada, as ações deste contingente vão

da coleta de fundos a protestos em apoio aos palestinos dos territórios ocupados passando por casos

isolados de enfrentamento e queima de propriedades judaicas. Mas a ação de seus líderes pró-

israelenses acaba condenando abertamente a violência árabe e contendo sua possível expansão”.

- “Agora que você acaba de apresentar as reações e as conseqüências da Intifada, será que dá pra

falar alguma coisa sobre como reage o mundo diante das notícias do levante?”.

- “Foi bom você me lembrar disso!”, diz Nádia com uma expressão que faz o ego se sentir

recompensado. E continua: “Ao longo da rebelião a mídia internacional questiona o Estado judaico

sobre as razões pelas quais insiste em não conceder aos palestinos as liberdades por eles

reivindicadas. As críticas neste sentido vêm, sobretudo, dos países europeus, da União Soviética e

de importantes personalidades às quais se somam as condenações oficiais emitidas pelas Nações

Unidas.

No mundo árabe, a primeira iniciativa diplomática para enfrentar tanto os problemas criados

pela Intifada, como aqueles que a haviam provocado, vem do Egito. Em 1987, as relações entre os

governos do Cairo e de Tel Aviv não são das melhores. Ainda assim, em janeiro do ano seguinte, o

presidente egípcio Hosni Mubarak propõe a convocação de uma conferência de paz cujas premissas

prevêem a renúncia à violência por parte de Israel e dos palestinos por um prazo de seis meses e o

congelamento de todos os projetos de ampliação dos assentamentos judaicos nos territórios

ocupados. Israel rejeita a proposta o plano egípcio cai no vazio.

Em junho de 1988, os participantes da cúpula árabe reunida na capital da Argélia se

solidarizam com a Intifada, mas as divisões internas provocadas pelo conflito entre Irã e Iraque não

viabilizam nenhum tipo de apoio concreto aos palestinos.

Por sua vez, os Estados Unidos se limitam a criticar determinadas ações repressivas do

governo judaico sem esconder sua aversão à política expansionista e à rigidez diplomática de Tel

Aviv. Mesmo assim, Washington não suspende nem os bilhões de dólares da ajuda financeira nem o

fornecimento de armas a Israel.

Dadas estas premissas, em fevereiro de 1988, o Secretário de Estado norte-americano,

George Shultz, propõe a realização de uma conferência internacional no âmbito da qual ocorreriam

as negociações diretas entre Tel Aviv e uma delegação jordaniano-palestina (de acordo com as

exigências apresentadas por Israel). Mas judeus e palestinos se recusam a participar devido às

discordâncias sobre quem vai representar os segundos. As nações árabes insistem no fato de que a

OLP deve participar das negociações enquanto os israelenses rejeitam tanto a idéia de uma

delegação palestina autônoma, como a de negociar diretamente com os dirigentes da OLP.

A recusa de Tel Aviv é apoiada pelos Estados Unidos já que a organização liderada por

Arafat não reconhece o Estado e Israel e não abre mão do terrorismo. Além disso, o Primeiro

Ministro judaico, Yitzhak Shamir, se opõe à idéia de tratar da questão palestina no interior de uma

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conferência internacional na medida em que esta poderia levar à formação de uma coalizão

diplomática contrária aos interesses do Estado por ele representado”.

- “Pelo visto, estamos num beco sem saída...”, murmuro desconcertado diante das razões que levam

ao impasse nas relações entre os dois povos.

- “E seria isso mesmo se novos acontecimentos não contribuíssem a desbloquear esta situação! -

afirma Nádia levantando a muleta para o alto. O prolongar-se da Intifada preocupa o governo da

Jordânia, pois o clima entre os refugiados palestinos, que constituem cerca de 60% da população do

seu Estado, é de intensa agitação. Temendo que o levante possa ultrapassar as fronteiras e ameaçar o

seu governo, em 31 de julho de 1988, o rei Hussein decide cortar todos os remanescentes vínculos

legais e administrativos que há décadas uniam o seu país à Cisjordânia. Com esta medida, o governo

de Amã sinaliza que não quer se comprometer com o futuro deste território e, em seguida, corta o

direito à cidadania jordaniana de seus moradores.

Estas decisões acirram as discussões no interior da OLP quanto à postura em relação a Israel

e à criação de um Estado palestino nos territórios ocupados. Entre as questões centrais está a

necessidade de avaliar estrategicamente se esse Estado representa uma solução definitiva ou tão

somente uma etapa para a conquista de toda a Palestina.

Em novembro de 1988, representantes da população da Cisjordânia e Gaza começam a

pressionar a direção da OLP no sentido dela demonstrar flexibilidade para garantir a simpatia da

comunidade internacional em relação à causa palestina usando-a para pressionar Israel a fazer

concessões. Um primeiro sinal de aceitação desta recomendação vem da declaração do Conselho

Nacional Palestino realizado em meados do mesmo mês. Nela os delegados do CNP saúdam a

Intifada e conclamam a criação de um Estado palestino com base na Resolução 181 das Nações

Unidas que, em 1947, havia definido a primeira divisão da Palestina entre árabes e israelenses.

Além disso, a declaração reconhece a necessidade de chegar a acordos com Israel com base nas

Resoluções 242 e 338, repudia explicitamente todas as formas de terrorismo, mas defende o direito

de lutar pela independência e contra a ocupação estrangeira do próprio território”.

- “Agora fiquei curioso. Como é que Israel reage diante disso tudo?”.

- O governo de Tel Aviv recebe a declaração com uma boa dose de desconfiança pelas

ambigüidades presentes em vários pontos do texto. De fato, o CNP apela a Resoluções da ONU

contrastantes e apóia implicitamente os métodos utilizados pela Intifada. Esta posição se fortalece

na medida em que o Departamento de Estado estadunidense continua considerando Arafat um

terrorista e lhe nega o visto de ingresso para participar da iminente plenária da Assembléia Geral das

Nações Unidas.

Ao mesmo tempo, porém, Washington percebe uma mudança de tom nas declarações do

Conselho Nacional Palestino e, através de contatos informais pede à OLP que esclareça suas

posições como condição para os Estados Unidos pensarem em rever sua própria postura.

Avaliando que o único caminho para arrancar concessões do governo judaico é através da

pressão norte-americana, Arafat dá o primeiro passo para aproximar palestinos e estadunidenses.

Em 15 de dezembro de 1988, em Genebra, Suíça, o líder da OLP declara que sua organização

renuncia completamente a todo tipo de terrorismo e que o CNP aceita as resoluções 242 e 338 da

ONU como base para a negociação com Israel no âmbito de uma conferência internacional.

Obtido o que queria, o governo de Washington agenda uma série de encontros com os

representantes da OLP em Tunis. O reconhecimento estadunidense de que sem o envolvimento

desta organização seria impossível construir a paz no Oriente Médio é pago pela OLP com uma

longa lista de concessões.

A aproximação dos Estados Unidos à direção palestina é recebida como um trauma nos

meios israelenses. Para o governo Shamir, a posição assumida pela OLP não passa de um

movimento tático já que seus integrantes mantêm a destruição de Israel como objetivo estratégico.

Na verdade, a elite judaica se recusa a considerar a hipótese de ceder a Cisjordânia e a Faixa de

Gaza (tidas como partes inalienáveis da herança hebraica) à soberania árabe.

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Com a Intifada que não dá sinais de esgotamento, Yitzhak Rabin, antes, e Shamir, depois,

formulam propostas para uma futura administração dos territórios ocupados. Seu conteúdo, porém,

é inferior ao que havia sido estabelecido no acordo de paz com o Egito e acaba sendo rejeitado.

Em março de 1990, os trabalhistas saem do governo de unidade nacional e, em junho,

Shamir monta o seu gabinete com setores da extrema direita. Diante dos acontecimentos, o

Secretário de Estado norte-americano, James Baker, manda um recado ao governo judaico: O

número de telefone da Casa Branca é 202.456.1414; quando tiverem intenções sérias a respeito da

paz, chamem-nos. 36

A Intifada continua e o processo de paz vai ficar congelado por mais de um ano. Será

retomado em 1991 tendo as conseqüências da Guerra do Golfo como pano de fundo”.

-“ Isso quer dizer que...”

- “Que está na hora de ficar de olhos bem abertos porque vem aí o relato sobre...

9. A “paz” de Oslo.

Animada pela perspectiva de ver o fim do conflito entre palestinos e israelenses, a esquerda

segura a caneta como se estivesse preste a soltar um rojão: longe do corpo e com a ponta

direcionada para o alto.

Intrigada pela postura inusitada, Nádia arregala os olhos, apóia uma asa na cintura enquanto

a outra aponta o graveto-muleta para a mão levantada. Desconfiada, a coruja detona um “O que é

isso?!?” que faz o instrumento de trabalho voltar voando para o papel. Instantes de profundo

silêncio marcam a espera na qual cansaço e curiosidade se materializam em sorrisos e gestos

severos. Ave e homem trocam olhares penetrantes, típicos dos que, ao se aventurarem pelos

caminhos da história, trazem em si as mudanças produzidas pelo aprendizado.

Observadora atenta, Nádia sabe que chegou a hora de redobrar os cuidados. Ao apoiar a asa

sobre o ombro, pisca os olhos para introduzir o que aparenta ser um convite: “Você deve ter

percebido que o relato se aproxima cada vez mais dos nossos dias. De um lado, isso facilita o acesso

aos fatos, mas, de outro, a análise objetiva dos mesmos se torna cada vez mais complexa. Temos

que prestar muita atenção ao terreno onde vamos pisar, senão a rápida sucessão dos acontecimentos

e o enxame de interpretações que a acompanham podem nos fazer comprar gato por lebre”.

Sem emitir palavra, a cabeça balança em sinal de afirmação.

Compenetrada, a coruja põe a ponta da asa debaixo do queixo e, silenciosa, parece ordenar o

turbilhão de elementos encontrados em seus vôos. Após um “É isso!”, que ilumina o seu rosto,

Nádia usa o graveto para empurrar a caneta como quem põe em movimento o veiculo com o qual

vai dar cor e forma a mais uma etapa de sua viagem: “Como vimos no capítulo anterior, o persistir

do levante palestino e o aumento da tensão no Oriente Médio levam os Estados Unidos a tentarem

viabilizar várias iniciativas de conciliação. Mas as contradições nelas presentes fazem com que seus

apelos caiam no vazio.

Em março de 1990, as divergências sobre o conteúdo de um possível plano de paz levam à

ruptura do governo de unidade nacional israelense que, três meses depois, é substituído por uma

aliança de direita liderada pelo Likud.

Paralelamente a isso, a Intifada não revela uma estratégia clara de condução da luta. A

postura mais moderada da OLP não obtém do governo de Tel Aviv as respostas desejadas e a

própria combatividade da população palestina começa a sentir o peso de dois anos de dura repressão

e das crescentes dificuldades econômicas. Um sintoma de que há um sentimento de frustração se

instalando nos territórios ocupados é, sem dúvida, o aumento dos atritos entre as próprias facções da

resistência.

36

Benny Morris, Vittime, pg. 757.

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Esta situação ganha novos contornos com a invasão do Kuwait por parte de Saddam Hussein

em 2 de agosto de 1990. Diante deste acontecimento, os EUA organizam uma coalizão de nações

árabes e ocidentais destinada a libertar o país das tropas iraquianas.

Antes e durante a operação militar, o governo de Bagdá vincula o seu gesto à questão

palestina na tentativa de dividir as forças adversárias. Ao lançar seus mísseis contra algumas cidades

israelenses, Saddam procura envolver o governo de Tel Aviv no conflito na esperança de que a

intervenção de suas forças armadas leve os países do Oriente Médio a julgarem intolerável o fato de

combater ao lado de Israel contra um país árabe. Mas as fortes pressões estadunidenses convencem

o Estado judaico a desistir de qualquer resposta que possa ser interpretada como uma retaliação”.

- “Neste cenário que vê o mundo árabe dividido diante da invasão do Kuwait, qual é a posição da

Organização para a Libertação da Palestina?”

- “Como você bem pode imaginar – diz a coruja enquanto põe a asa atrás das cosas e começa a

andar de um lado pra outro –, o fato de ter Israel atravessado na garganta, leva a OLP a apoiar as

ações de Saddam Hussein. A simpatia pelo ditador tem como base vários elementos. De um lado,

além de desafiar os Estados Unidos, o governo de Bagdá havia desferido um duro golpe contra o

Kuwait e ameaçado a Arábia Saudita com o mesmo tratamento. Apesar dos financiamentos

destinados por estas duas nações à resistência palestina, os seus regimes vinham sendo considerados

como as vigas mestras da parte rica, reacionária e pró-ocidente do mundo árabe. Do outro, a OLP vê

o Iraque como um possível novo protetor num momento em que Egito, Síria e Jordânia não

manifestam grande preocupação por sua sorte, e ao mesmo tempo em que o Ocidente, pronto para

desencadear uma guerra contra Saddam Hussein, se mostra sem ação diante dos 24 anos de

ocupação judaica da Cisjordânia e da Faixa de Gaza.

Ganha a guerra, os EUA percebem a urgência de pacificar o Oriente Médio como condição

para não desgastar o apoio árabe obtido na campanha para a libertação do Kuwait e reduzir a

possibilidade de conflitos devastadores na região mais rica em petróleo do planeta.

Tendo apostado no cavalo errado, a OLP está extremamente desgastada. Arábia Saudita e

Emirados Árabes cortam qualquer apoio político e financeiro à causa palestina ao mesmo tempo em

que o Kuwait expulsa cerca de 300 mil refugiados do seu território.

Some o efeito destas decisões à queda na renda dos trabalhadores da Cisjordânia e Gaza, às

dificuldades criadas pela repressão israelense e pela deterioração das condições de vida após quase

três anos de Intifada e não terá dificuldade em imaginar as pressões internas e externas sobre a

liderança da OLP para que esta negocie um acordo com Israel.

O quadro se torna ainda mais grave após a chegada de dezenas de milhares de hebreus

soviéticos que o governo Likud pretende assentar nos territórios ocupados. Só em 1991, o

Ministério da Habitação, chefiado por Ariel Sharon, inicia a construção de 13 mil novos conjuntos

habitacionais em Cisjordânia e Gaza contra os 20 mil levantados nos 22 anos anteriores.

Este processo é acompanhado pela implantação de uma ampla rede de estradas e rodovias de

uso exclusivo das comunidades judaicas. A nova malha viária permite a movimentação de pessoas e

mercadorias sem atravessar os centros palestinos, facilita os deslocamentos entre os assentamentos e

o Estado de Israel e faz com que as forças de ocupação ganhem rapidez e eficiência na hora de

posicionar os efetivos destinados ao controle dos territórios ocupados.

Trocado em miúdos, os palestinos não podem mais contar com o apoio de alguns países

árabes, a chegada dos imigrantes judeus reduz as vagas por eles ocupadas no mercado de trabalho

israelense e as demais medidas levam a uma ulterior expropriação de suas terras”.

- “Pelo visto, a resistência palestina está realmente em maus lençóis...”, pondero ao avaliar o

desfecho dos novos acontecimentos.

A coruja pára, vira o corpo e com um leve menear da cabeça sinaliza o acerto das minhas

suspeitas. Em seguida, com voz grave, traduz em palavras o que os gestos acabam de anunciar: “É

exatamente desta situação desfavorável que o governo Bush quer se aproveitar para levar os

palestinos à mesa de negociação na certeza de encontrar uma OLP bem mais flexível em relação às

suas reivindicações históricas. É assim que, em junho de 1991, os EUA consultam os líderes árabes

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quanto à possibilidade de convocar uma conferência de paz no Oriente Médio. A aprovação

recebida, por sua vez, reduz o espaço de manobra do governo israelense levando-o a aceitar a

proposta norte-americana.

Em agosto, é elaborada uma lista de delegados palestinos considerados aceitáveis (ou seja,

residentes nos territórios ocupados, mas não membros da OLP) para integrar a delegação da

Jordânia. Fraca demais para colocar obstáculos ou apresentar exigências, a Organização para a

Libertação da Palestina aprova os nomes dos que, em 30 de outubro de 1991, estão em Madri,

Espanha, para a conferência de paz presidida por Estados Unidos e União Soviética com a

participação de Israel, Egito, Síria, Líbano e da delegação jordaniano-palestina, cujos integrantes

vão atuar separadamente.

Durante os trabalhos, que se prolongam até o dia 4 de novembro, os palestinos se mantêm

em contato direto com a direção da OLP em Tunis, atendendo às suas diretrizes. A importância

deste encontro não está nas discussões que nele se desenvolvem, mas em quebrar o gelo da relação

árabe-israelense viabilizando uma agenda de encontros bilaterais.

Em relação à questão palestina, porém, não há nenhum avanço. Após uma série de reuniões,

o porta-voz palestino Hana Hashrawi, diz que as mesmas são caracterizadas pela paralisia e a

inércia. A delegação israelense não tem tido a vontade e nem as instruções necessárias para fazer

progredir as negociações... tem salvado a aparência da participação, sem enfrentar os problemas

reais. 37

Dias depois, o Primeiro Ministro judaico, Yitzhac Shamir, deixa escapar numa entrevista

que os avanços nas negociações não constam dos seus planos e que não veria problemas se os

encontros com os palestinos se arrastassem assim por uma década.

Mesmo sem avanços, as reuniões provocam reações adversas tanto em Israel como nos

territórios ocupados. Hamás, Jihad Islâmica e FPLP apresentam-nas como um caminho para liquidar

o que resta da antiga Palestina. Isso faz com que, de setembro de 1991 a março de 92, ocorram

vários enfrentamentos entre as forças dos que se opõem à conferência de paz e os militantes das

demais facções da OLP. Durante meses, Cisjordânia e Gaza estão á beira de uma guerra civil.

No Estado judaico, o futuro do processo de paz e a situação dos territórios ocupados são os

temas centrais das eleições gerais realizadas em 23 de junho de 1992. O direitista Likud sai do

pleito derrotado e os trabalhistas, liderados por Yizchaq Rabin, compõem o novo gabinete contando

com o apoio dos partidos de esquerda e de cinco deputados árabes”.

- “Boas notícias para a paz?”, pergunto sem fazer cerimônias.

Incomodada pela tentativa de apressar o relato, Nádia se aproxima e, espetando o meu

ombro com o graveto-muleta não perde a chance de recriminar a intervenção inoportuna: “Querido

bípede da espécie humana, me assusta o fato de você ainda não ter percebido que para analisar os

acontecimentos é preciso ter cuca e não pressa! Sem avaliar como seus atores respondem às

contradições presentes na sociedade é impossível entender o desenrolar da história e vislumbrar os

caminhos do futuro que se abrem diante dela!”, afirma a coruja com ar de quem não aceita pressões.

Tendo o silêncio como resposta, Nádia se aproxima da pasta sobre a qual repousa o

dicionário formando o que parece ser um assento improvisado. Apoiada a muleta, a coruja acomoda

o corpo no estranho trono cuja combinação de cores ressalta a sua figura em meio à desordem que

toma conta da mesa.

- “Onde é que nós estávamos?”, pergunta como quem já conhece a resposta.

- “Nas eleições israelenses que se encerram com a derrota do Likud”, responde a língua em tom de

pedido de desculpas.

- “Muito bem. Em primeiro lugar, é necessário sublinhar que a vitória dos trabalhistas muda o clima

político em Israel. Apesar de ser contrário á criação de um Estado palestino e à participação da OLP

no processo de paz, o novo gabinete reconhece que a questão palestina está no centro do

37

Idem, pág. 762.

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antagonismo árabe-israelense e não descarta a possibilidade de ceder parte dos territórios ocupados

em troca da paz.

Além disso, Rabin teme que os grupos fundamentalistas se aproveitem da fragilidade de

Arafat para aumentar sua influência nos territórios ocupados, o que poderia agravar os

enfrentamentos. Sendo assim, o Primeiro Ministro judaico percebe que, com a credibilidade abalada

pelo apoio dado a Saddam Hussein, a OLP está numa posição difícil enquanto a não intervenção no

conflito confere a Israel um maior poder de barganha, inclusive no que diz respeito às relações com

os vizinhos árabes.

Consciente do desafio oferecido pelas oposições internas quanto às possibilidades de acordo

com os palestinos, o novo gabinete dedica o segundo semestre de 1992 à construção de uma maioria

parlamentar mais sólida. Em dezembro do mesmo ano, palestinos e israelenses ensaiam os

primeiros passos através de encontros secretos que ocorrem em Londres. Em seguida, o parlamento

judaico revoga a legislação que proíbe os contatos com a OLP e, em 21 de janeiro de 1993, Yair

Hirschfeld e Abu Alaa se reúnem nas proximidades de Oslo, na Noruega. Durante o encontro, os

representantes dos dois povos chegam a um acordo sobre três questões: 1. A retirada israelense da

Faixa de Gaza; 2. A transferência gradual do poder econômico aos palestinos; 3. A ajuda financeira

internacional à futura autoridade palestina em Gaza.

Entre fevereiro e maio do mesmo ano, as negociações levam à formulação de um documento

chamado Declaração de Princípios. Nele se prevê: a realização de eleições livres na Faixa de Gaza e

numa pequena área na qual está incluída a cidade de Jericó, na Cisjordânia, a autonomia palestina

(mas não a soberania) sobre estes territórios, a retirada gradual das forças israelenses acompanhada

da progressiva transmissão de poderes aos palestinos e a necessidade de um plano de recuperação

econômica abrangente das áreas que passariam ao seu controle.

Ao mesmo tempo em que as negociações secretas com a OLP chegam a posições mais

consistentes, Rabin não hesita em reprimir os militantes de Hamás e Jihad que mantêm seus ataques

contra as forças de ocupação. Em março de 1993, o gabinete trabalhista reage a uma série de

agressões em Jerusalém e Tel Aviv impedindo o trânsito dos palestinos através da antiga fronteira

entre Israel e a Faixa de Gaza. Com esta medida, além de mergulhar no desemprego dezenas de

milhares de trabalhadores, Rabin viabiliza a idéia de separar israelenses e palestinos como o melhor

caminho para garantir a segurança dos primeiros.

Diante deste projeto, tanto a direita, que quer anexar a Cisjordânia e Gaza ao Estado judaico,

como os colonos dos assentamentos instalados nestas regiões acreditam que a separação de Israel

dos territórios ocupados vai levar à retirada das tropas aí presentes e ao conseqüente fechamento das

colônias judaicas, razão suficiente para aprimorar sua oposição à política governamental.

Enquanto isso, em Oslo, as reuniões entre palestinos e israelenses correm no mais absoluto

segredo e, no dia 20 de agosto, os negociadores assinam o texto final da Declaração de Princípios

numa cerimônia reservada na qual o Ministro das Relações Exteriores norueguês, Johan Jorgen

Holst cumpre o papel de testemunha do evento.

A notícia do acordo chega à imprensa israelense 10 dias depois, quando o documento é

submetido à apreciação do gabinete judaico que o aprova por ampla maioria.

A situação de Arafat é bem mais complexa. Muitos líderes palestinos vêem o acordo como

uma verdadeira liquidação na qual se oferece muito em troca de bem pouco. Neste cenário o

presidente da OLP usa toda a sua habilidade para enfrentar a oposição não só dos grupos marxistas e

fundamentalistas como também de muitos membros de Al Fatah.

Conseguido o apoio da maioria, no dia 9 de setembro de 1993, Arafat, através de Holst,

envia uma carta ao governo de Tel Aviv. Nela afirma que a OLP reconhece o direito do Estado de

Israel de existir em paz e segurança, aceita as resoluções 242 e 338 do Conselho de Segurança das

Nações Unidas, se compromete com o processo de paz rumo a uma solução pacífica do conflito,

renuncia ao uso do terrorismo e de qualquer outra forma de violência, e procurará impedir a todas

as forças integrantes da OLP de recorrer a ações armadas. Além disso, afirma que os artigos da

legislação palestina que negam ao Estado de Israel o direito de existir são inoperantes e não têm

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mais valor, e que se compromete a propor ao Conselho Nacional Palestino (...) as necessárias

alterações da Convenção Palestina.

No dia seguinte, Rabin envia uma breve resposta na qual declara que o governo de Israel

decidiu reconhecer a OLP como representante do povo palestino e negociar a paz com esta

organização.38

Em 14 de setembro, nos Estados Unidos, Shimon Peres e Mahmoud Abbas assinam o texto

final da Declaração de Princípios na presença de Bill Clinton, Rabin, Arafat e uma centena de

personalidades israelenses, palestinas e estadunidenses. No documento, que passará a ser conhecido

com o nome de Acordos de Oslo, as partes se comprometem a dar continuidade às negociações e a

viabilizar: 1. A criação de uma Autoridade de Autogoverno Palestino e de um Conselho

democraticamente eleito pelo povo sob a supervisão de uma comissão de observação internacional;

as duas instâncias vão administrar a Faixa de Gaza e os territórios da Cisjordânia próximos a Jericó

por um período de transição não superior a 5 anos, ao longo do qual, palestinos e israelenses, devem

chegar a um acordo permanente baseado nas Resoluções 242 e 338 da ONU. 2. A passagem do

governo militar e civil israelense em Gaza e na área de Jericó para a Autoridade Palestina se dará

nas seguintes esferas: educação, cultura, saúde, bem-estar social, impostos e turismo. 3. A ordem

pública e a segurança interna dos territórios sob a Autoridade Nacional Palestina (ANP) deve ser

garantida por uma força policial a ser criada pelo Conselho; por sua vez, Israel continua a assumir a

defesa contra ameaças externas, bem como a responsabilidade pela segurança geral dos israelenses e

pela ordem pública. 4. As instituições judaicas e palestinas se comprometem também a cooperar no

aproveitamento dos recursos hídricos, da geração e distribuição de energia, nas áreas de finanças,

desenvolvimento, transporte, comunicação, comércio, indústria, meio-ambiente, relações

trabalhistas e bem-estar social; 5. Após não mais de 3 anos de governo da Autoridade Palestina,

devem ser iniciadas as negociações sobre os temas mais complexos: o status da cidade de

Jerusalém, a questão dos refugiados, as colônias nos territórios ocupados, o controle das fronteiras,

as relações com os países vizinhos e todos os aspectos que forem de interesse comum”.

- “Deixa ver se eu entendi direito. Pelo que você acaba de dizer, os assentamentos judaicos ficam

onde estão e nada impede que outros sejam criados. As futuras negociações vão ter como base as

Resoluções 242 e 338 que não contêm uma palavra sobre os direitos e as aspirações dos palestinos.

A volta dos refugiados e as eventuais indenizações a serem pagas por Israel são deixadas para um

futuro incerto no qual vai ser discutido também o status de Jerusalém. O exército israelense, de

imediato, vai manter o controle de grande parte da Cisjordânia e da Faixa de Gaza incluídas as

fronteiras destes territórios com o Egito e a Jordânia. A repressão de quem se recusar a cumprir o

acordo e o fim da Intifada vão ficar por conta da polícia palestina, ao mesmo tempo em que nada

garante o fim das incursões militares israelenses nos territórios controlados pela ANP e a renúncia

do governo judaico a fazer uso da violência contra os palestinos. Só estou curioso para ver qual é a

reação dos dois povos diante do conteúdo deste acordo negociado às escondidas”, comento

pressentindo a chegada da chuva no que se anuncia como um lindo dia de sol.

Surpresa pelo inesperado resumo, Nádia arregala os olhos, cruza as pernas e ajeita as plumas

como quem se prepara para colocar cada coisa em seu devido lugar. Mais alguns instantes de

silêncio e a ave começa a fazer um balanço da situação: “Se você somar o desejo de paz da

população israelense com o avançado desgaste das condições de vida dos palestinos após anos de

Intifada, não vai ficar surpreso diante do fato de que cerca de dois terços deles aprovam o conteúdo

dos Acordos de Oslo. Os problemas, então, vão vir justamente desta consistente minoria que, em

ambos os lados, se opõe ao processo de paz.

Antes mesmo da assinatura do documento, Hamás e Jihad organizam uma seqüência de

atentados terroristas que tem o objetivo declarado de fazer naufragar as relações com o governo

judaico. Com suas ações, os grupos fundamentalistas pretendem fortalecer a oposição da direita

israelense que se opõe ao acordo aumentando as possibilidades desta vir a reduzir as concessões a

38

Idem, pg. 771.

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serem implementadas por Rabin. Diante de um Estado judaico cada vez mais intransigente, Arafat

não teria força suficiente para fazer progredir a paz recém-assinada.

Ao mesmo tempo, decididos a evitar uma guerra civil entre os palestinos, Hamás, Jihad e o

próprio Al Fatah agem para impedir que suas forças se enfrentem em choques violentos. O fato de

Arafat não tentar frear as ações terroristas parece ter como base duas razões. Além da fragilidade e

da total falta de recursos da OLP, está o desejo de não dar argumentos capazes de fortalecer a

ampliação de um setor organizado da resistência palestina com força suficiente para minar sua

liderança. A segunda está na convicção de que os ataques levariam Israel a acelerar a sua retirada

dos territórios definidos pelos Acordos deixando à OLP a possibilidade de desenvolver a sua própria

iniciativa diplomática e de reafirmar o repúdio ao terrorismo.

Diante das ambíguas relações criadas por esta postura, dos seguidos imprevistos, dos

atentados e das agressões vindas de ambos os lados, os detalhes dos Acordos de Oslo levam não

dois, mas sim sete meses para serem negociados.

O incidente mais grave ocorre em 25 de janeiro de 1994 quando 29 muçulmanos são

massacrados e cerca de 60 feridos durante a oração matinal na mesquita de Ibrahimiya, em Hebron

por parte de Baruch Goldstein, um médico israelense que, em seguida, é linchado pelos

sobreviventes. Nas desordens que marcam os dias seguintes, as tropas judaicas matam cerca de 30

árabes e ferem outros cem. Cisjordânia e Gaza entram em ebulição e o toque de recolher é, várias

vezes, decretado pelo exército. A extrema direita israelense transforma Goldstein em herói e o seu

túmulo em lugar de peregrinação dos muitos colonos que, apavorados com a possível retirada de

Israel dos territórios ocupados, se opõem ativamente ao processo de paz.

Apesar dos pesares, o detalhamento dos Acordos de Oslo é assinado no Cairo, Egito, no dia

4 de maio de 1994. Nele se estabelece que: 1. Israel transfere à Autoridade Palestina a maior parte

da Faixa de Gaza e uma área de 65 quilômetros quadrados que inclui a cidade de Jericó; 2. O Estado

judaico continua responsável pelo controle das fronteiras entre estas áreas autônomas e o mundo

externo; 3. O governo de Tel Aviv vai manter a responsabilidade de cuidar da segurança nas

estradas que ligam as colônias ao território de Israel e as áreas cedidas aos palestinos; 4. A polícia a

serviço da ANP vai ter, no máximo, 9 mil integrantes aos quais é permitido o uso de armas leves e

de 45 veículos blindados sobre rodas; sua tarefa é de impedir que as áreas sob controle palestino

sirvam de base para ataques terroristas contra Israel; 5. A marinha israelense vai vigiar o mar que

banha a Faixa de Gaza, mas permite que a Autoridade Palestina disponha de embarcações para fazer

o mesmo; 6. À ANP é concedido fazer uso de dois helicópteros e quatro aviões para os

deslocamentos entre Jericó e a Faixa de Gaza, mas as aeronaves vão ficar sujeitas às normas de

controle do tráfico aéreo israelense; 7. O governo de Tel Aviv promete libertar 5 mil presos

palestinos não envolvidos em ações terroristas que tenham provocado vítimas, mas se nega a soltar

os prisioneiros dos grupos que, como Hamás e Jihad, são contrários ao processo de paz”.

- “Há avanços em relação aos assentamentos judaicos na Faixa de Gaza?”.

- “Infelizmente, nenhum”, responde Nádia sacudindo a cabeça com a expressão de quem lamenta

que um dos principais obstáculos ao processo de paz continuará provocando muita dor e sofrimento.

E após um longo suspiro continua: “Em 13 de maio de 1994, o exército israelense se retira de Jericó

e, cinco dias depois, o mesmo acontece nas cidades palestinas da Faixa de Gaza. Em 1º de junho,

Arafat chega em Gaza acompanhado pela maior parte da burocracia da OLP e por milhares de seus

combatentes transformados agora em policiais palestinos. A cidade de Gaza é nomeada capital da

Autoridade Nacional Palestina e nela se instalam as forças de segurança e o aparato

governamental”.

- “Bom, pelo menos, espero que agora as coisas melhorem para os palestinos...” murmuro

desconfiado diante do tom de voz nada animador com o qual a coruja conduz o seu relato.

- “Eu, se fosse você, não me animaria - retruca Nádia piscando os olhos e apontando a muleta em

minha direção. Acontece que a OLP está com o caixa praticamente vazio e, sem dinheiro, não tem

como agir. Dos 3 bilhões e 200 milhões de dólares oferecidos pelos governos de 35 países após a

assinatura dos Acordos de Oslo, só uma pequena parte chega a ser liberada. A ausência de controles

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confiáveis e capazes de garantir a utilização dos recursos para os fins aos quais se destinam somada

às denúncias de corrupção contra os membros da burocracia palestina levam a maior parte das

nações a reter o dinheiro destinado à ANP.

Sem ter como pagar salários, garantir os serviços básicos e desenvolver a infra-estrutura da

região sob o seu controle, Arafat vê sua popularidade cair enquanto cresce a de seus adversários

fundamentalistas. O sentimento de decepção aumenta também diante da questão da segurança dos

territórios sob controle palestino, já que é papel da ANP impedir que estes sirvam de base para

atentados em solo israelense. Mas acabar com as atividades de Hamás e Jihad significa prender

pessoas que, para muitos palestinos, estão lutando pela liberdade e pela vitória do islã. Em outras

palavras, para proteger Israel, Arafat corre o risco de ganhar a inimizade de um número crescente de

seus cidadãos, ao mesmo tempo em que, entre 1994 e 1996, o Estado judaico continua travando a

sua luta contra o terrorismo com prisões, toques de recolher, fechamento de fronteiras e demais

modalidades já utilizadas nos períodos anteriores.

Diante deste quadro, as críticas palestinas ao acordo não demoram a aparecer: as áreas

recebidas são muito pequenas, pobres em sua maioria, densamente povoadas e, ainda por cima, é a

ANP a frear as atividades dos militantes da resistência sem que o seu esboço de Estado seja capaz

de oferecer as melhorias econômicas esperadas.

Esta situação cria um dilema tanto para as autoridades palestinas como israelenses. Na

medida em que Arafat perde a sustentação de sua base popular, aumentam as dificuldades de

atender às exigências dos Acordos. Por sua vez, Begin sabe que o processo de paz só vai progredir

se o seu governo ceder mais territórios, mas tem sérias dificuldades em fazer isso devido às

investidas da direita israelense diante dos ataques dos grupos islâmicos palestinos.

Até março de 1996, Arafat decide agir para controlar o terrorismo ao mesmo tempo em que

deixa a Hamás e Jihad espaço suficiente para a realização de algumas ações de grande repercussão.

A polícia palestina prende os executores materiais dos atentados, mas, uma vez baixada a poeira,

volta a soltá-los sem que sua intervenção atinja a infra-estrutura e os dirigentes fundamentalistas.

Em meados de 1995, os ataques de Hamás e Jihad se tornam cada vez mais freqüentes, e para um

crescente número de judeus a promessa de que os Acordos de Oslo reduziriam o terrorismo

palestino soa como uma piada de mau gosto.

Mas você não ache que os palestinos são os únicos a violarem o espírito dos Acordos. Se, de

um lado, Arafat faz vista grossa diante das ações fundamentalistas, de outro, além da repressão e da

não libertação dos prisioneiros, o governo Begin continua expandindo os assentamentos judaicos

nos territórios ocupados e acelerando a construção de moradias no setor leste de Jerusalém. Com

estas medidas, o gabinete trabalhista não só tenta conter o avanço da direita israelense como cria

uma série de fatos consumados com base nos quais vai respaldar a posição judaica nas futuras

negociações sobre os problemas centrais da questão palestina”.

- “Nesta altura do campeonato, imagino que as negociações entre palestinos e israelenses devem

progredir num ritmo bem inferior ao esperado...”

- “É verdade, mas isso não impede que no dia 28 de setembro de 1995 elas cheguem a um novo

acordo provisório, chamado de Oslo II. Nele se prevê que nos territórios da ANP sejam realizadas as

eleições de um Conselho formado por 82 membros e de uma autoridade executiva a serem

empossados 22 dias após o reposicionamento do exército judaico fora dos centros mais povoados da

Cisjordânia, entre eles a cidade de Hebron. Além disso, no prazo de um ano e meio da sua

assinatura, as forças armadas israelenses devem deslocar seus efetivos para o interior dos

assentamentos ou das bases militares judaicas nos territórios ocupados até que as negociações

estabeleçam o seu destino final. Tel Aviv continua responsável pelo controle das fronteiras da Faixa

de Gaza e da Cisjordânia e pela segurança dos próprios assentamentos.

Oslo II divide os territórios ocupados em três tipos de regiões: na Área “A”, que inclui as

áreas desocupadas pelo exército, a Autoridade Palestina é responsável pela segurança, pela ordem

pública e pelo controle administrativo, mas não detém a soberania; na Área “B”, que incorpora

cerca de 68% da população árabe-palestina, a ANP vai exercer a autoridade civil e tem o dever de

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garantir a ordem pública, sendo que a última palavra em questões de segurança vai ser dos

israelenses; na Área “C”, na qual entra toda a faixa de terra ao longo da fronteira com a Cisjordânia,

os assentamentos judaicos e as instalações militares, Israel se encarrega da segurança, da ordem

pública e da administração civil sendo que à Autoridade Nacional Palestina é entregue a

responsabilidade de garantir os serviços básicos à população árabe daquela região.

O acordo inclui também medidas destinadas a fortalecer a confiança recíproca, entre as quais

a libertação dos presos palestinos não

envolvidos em atentados que deixaram

mortos ou pessoas gravemente feridas, a não

punição dos que têm colaborado com os

serviços secretos judaicos, o combate ao

terrorismo e, até o dia 4 de maio de 1996, o

início das negociações sobre a questão dos

refugiados, dos assentamentos nos territórios

ocupados, do status de Jerusalém, das

fronteiras e das relações internacionais.

O acesso aos recursos hídricos

permanece sob controle israelense e o

governo de Tel Aviv aceita aumentar a

quantidade colocada à disposição dos

palestinos. Por sua vez, estes prometem não

fazer nada que possa comprometer as linhas

de abastecimento de água que atravessam a

Cisjordânia e a Faixa de Gaza com as quais

Israel satisfaz grande parte de suas

necessidades.

Entre novembro de dezembro de

1995, o exército judaico se retira das

principais cidades da Cisjordânia (mas não de Hebron) e o seu lugar é assumido pela polícia da

ANP.

Em 20 de janeiro do ano seguinte, os palestinos vão às urnas. Arafat, fortalecido pelas

condições criadas por Oslo II, é eleito presidente da Autoridade Nacional Palestina com 87,1% dos

votos. Homens de sua confiança, boa parte deles integrantes históricos de Al Fatah, conquistam a

maior parte das vagas do Conselho Nacional Palestino (CNP).

Pouco mais de três meses após a sua eleição, o CNP altera a Convenção Palestina revogando

os itens que se opunham à existência de Israel”.

- “Pelo jeito, o andar da carruagem parece estar normalizando as relações entre judeus e palestinos.

Mas será que o mesmo está acontecendo entre Israel, Jordânia e Síria, países que têm fronteiras

comuns e que ainda não chegaram a um acordo de paz?”

Nádia sorri, levanta os ombros e com as asas levemente abertas responde ao meu otimismo

com um “Entre judeus e palestinos as coisas não são tão simples como você imagina...”, que produz

estranhos arrepios. E, após alguns instantes de silêncio, a coruja acata a segunda parte do pedido ao

expressar que “De qualquer forma vale a pena abrir um parêntese para falar da Jordânia e da Síria.

Após a assinatura dos Acordos de Oslo, em setembro de 1993, o rei da Jordânia percebe que

já não há razões para se opor a um tratado de paz com Israel. Para além da colaboração já

viabilizada ao longo dos anos anteriores, a política do Partido Trabalhista israelense abre a

possibilidade de estreitar as relações econômicas e comerciais com o governo de Amã rumo à

exploração mais eficiente dos recursos naturais das regiões de fronteira e à implantação de projetos

que trariam benefícios aos dois países. Enquanto nas décadas de 70 e 80 importantes personalidades

da política judaica, entre as quais o próprio Ariel Sharon, vinham defendendo a necessidade de

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derrubar o regime jordaniano para transformar o país num Estado palestino, o gabinete de Rabin

traça com o rei um esboço de acordo a partir do qual é possível dar início às negociações oficiais.

Mas há um outro motivo a levar o governo de Amã a querer um tratado de paz com Israel.

Em 1991, a Jordânia apóia Saddam Hussein quando suas tropas invadem o Kuwait. Esta escolha

leva o rei ao isolamento político e econômico tanto por parte dos Estados Unidos como das nações

da península árabe. Por isso, um dos caminhos viáveis para restabelecer as relações está na

demonstração de que a Jordânia se dispõe a contribuir com a pacificação do Oriente Médio. É assim

que, em maio de 1994, os governos de Tel Aviv e de Amã iniciam uma série de encontros

reservados e, diante dos progressos obtidos, os Estados Unidos prometem ao rei o cancelamento de

700 milhões de dólares do que a Jordânia deve às instituições norte-americanas e autorizam a venda

imediata de armas e equipamentos agrícolas ao país.

Em 25 de junho de 1994, Rabin e Hussein se encontram em Washington onde, em

declaração conjunta, anunciam publicamente o fim do estado de guerra entre as duas nações e os

primeiros passos para reatar as relações diplomáticas. Três meses depois, os dois países assinam um

tratado pelo qual se comprometem a viver em paz, a não formar, apoiar ou ajudar qualquer

organização ou coalizão hostil à outra nação e preparam a normalização das relações diplomáticas,

econômicas e culturais. Israel devolve à Jordânia a área próxima ao rio Araba, ocupada nos anos 60,

e permite que o país retire dos recursos hídricos ao norte daquela região 50 milhões de metros

cúbicos de água a mais em relação à quantidade disponível nos anos anteriores. Por sua vez, o

governo de Amã eleva em 16-20 milhões de metros cúbicos o acesso de Israel ao Araba.

No que diz respeito à Síria, a partir da Conferência de Madri, em 1991, as delegações de Tel

Aviv e de Damasco se encontram periodicamente em Washington, mas sem nenhum resultado

concreto. As coisas parecem mudar quando os trabalhistas assumem o governo, mas após algumas

rodadas, as negociações atolam justamente ao enfrentar as questões mais críticas: a devolução das

colinas de Golan e as medidas de segurança na fronteira entre os dois países.

Em dezembro de 1995, as possibilidades de chegar a um tratado de paz ganham consistência

e Shimon Peres pressiona para que o acordo seja assinado antes das eleições gerais israelenses de

maio de 1996. A Síria não aceita apressar os tempos e deixa clara a sua intenção de retomar os

diálogos após a posse do novo gabinete.

Mas, com a vitória do Likud, o tratado de paz se torna um sonho distante. Ao divulgar as

linhas mestras da nova administração, o Primeiro Ministro, Benjamin Netanyahu, declara que Israel

não vai negociar a devolução das colinas de Golan por considerá-las indispensáveis à segurança do

Estado judaico. Diante da postura intransigente de Tel Aviv, a Síria suspende o diálogo com Israel”.

- “Sobressaltos à parte, pelo menos o processo de paz entre israelenses e palestinos deve estar

caminhando...”, comento aliviado.

- “Eu não teria tanta certeza...”, diz a coruja trazendo de volta as preocupações que pareciam ter

desanuviado o horizonte do futuro.

- “Lá vem você com o seu pessimismo! Afinal de contas não se pode negar que os acordos

assinados em 1995 dão mais alguns passos adiante em relação ao documento de setembro de 1993 e

que a questão palestina não é algo que se pode resolver de uma hora pra outra”, afirmo levado pela

vontade de fazer vingar minhas esperanças.

Nádia balança a cabeça, levanta e se aproxima. Apoiando a muleta na mão que segura a

caneta assume uma pose na qual sabedoria e conhecimento se mesclam dando origem a uma

repreensão ao mesmo tempo amiga e severa: “Quantas vezes devo dizer a você, bípede de tamanho

grande e cérebro preguiçoso, que o resultado da análise histórica não é uma questão de otimismo ou

pessimismo, mas sim de uma avaliação cuidadosa das ações que seus atores realizam para garantir

interesses políticos e econômicos bem precisos?!?”.

- “Mas eu achava que...”

- “Já sei, você acreditava que um punhado de assinaturas fosse suficiente para resolver contradições

que se arrastam e vêm se agigantando há mais de um século! - afirma séria a coruja ao ver o rosto

corar. Além dos rancores históricos, você está esquecendo de que há um setor da sociedade

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israelense cujas posições ganham cada vez mais espaço justamente por sua oposição aos acordos

assinados com os palestinos: a direita.

A partir de setembro de 1993, os grupos conservadores começam a manifestar, de forma

cada vez mais agressiva e insistente, sua oposição ao processo de paz. Cada atentado terrorista

palestino é seguido por manifestações nas quais Rabin é abertamente chamado de traidor. A este

coro, se une não só a maior parte dos rabinos como das lideranças políticas do Likud e do Partido

Nacional Religioso.

Para ter uma idéia do tom usado pelas oposições, em 4 de maio de 1995, um dia antes da

assinatura de Oslo II, Netanyahu declara: Dêem-lhe mais uma hora e Rabin anunciará ter fundado

no Cairo o Estado terrorista palestino. Enquanto os novos compromissos de paz estão sendo

assinados, Zevulun Hammer, do Partido Religioso, se une ao coro dos descontentes proclamando

que um Estado está sendo entregue numa bandeja de prata às organizações terroristas que

brindam com o sangue de nossos filhos e de nossas filhas.39

Em resposta à longa seqüência de insultos e ofensas, os pacifistas de Paz Agora se unem ao

gabinete trabalhista e, com a ajuda de várias organizações, promovem uma manifestação de apoio

ao processo de paz. No dia 4 de novembro de 1995, cerca de 100 mil pessoas se reúnem na Praça

Rei de Israel, em Tel Aviv. Encerrados os discursos, o povo começa a se dispersar. É neste

momento que Yigal Amir, estudante de direito de 27 anos, atira em Rabin que morre poucos

minutos após chegar no hospital.

Assassinada a principal liderança do Partido Trabalhista, Shimon Peres se torna Primeiro

Ministro. Até às eleições de maio de 1996, o novo chefe do gabinete é chamado a lidar tanto com a

preocupação de ganhar o pleito como com o cumprimento dos acordos de paz, ao mesmo tempo em

que o clima de insegurança criado pelos atentados de Hamás e Jihad mina a confiança popular no

próprio processo de paz e acaba fortalecendo os conservadores.

É assim que, com o lema Paz e Segurança, Benjamin Netanyahu é eleito Primeiro Ministro

com uma votação apertada que lhe confere 50.4% dos votos. No parlamento, o Likud obtém 32

vagas e, graças à aliança com setores da direita judaica, garante 66 dos 120 votos da casa. Montado

o gabinete, Netanyahu apresenta as linhas mestras do seu mandato nas quais não constam os

compromissos assumidos por Israel em Oslo II. Ao contrário, ao se referir aos palestinos, o Primeiro

Ministro chega a falar em autonomia da Autoridade Palestina, mas deixa clara sua firme oposição à

criação de um Estado palestino independente e ao retorno dos refugiados. Se isso não bastasse,

acrescenta que seu gabinete vai consolidar e desenvolver os assentamentos judaicos nos territórios

ocupados e não irá negociar o status de Jerusalém”.

- “Mas isso faz as coisas voltarem a estaca zero!?!”

- “Na mosca! - comenta a coruja com ar de pesar. Agora, some isso à repressão de Israel em

Cisjordânia e Gaza, ao fechamento dos territórios, à não libertação dos presos e entenderá logo

porque o sentimento de revolta dos palestinos entra novamente em ebulição.

Após uma série de manifestações, enfrentamentos e duras negociações com a mediação dos

Estados Unidos, o compromisso de retirar o exército de 80% da região de Hebron começa a ser

cumprido no dia 17 de janeiro de 1997.

Ao longo do mesmo ano, o processo de paz não conhece avanços. Em mais de uma ocasião,

os EUA conseguem reunir os negociadores israelenses e palestinos, mas sem nenhum resultado

concreto. Ao que tudo indica, é o gabinete judaico a colocar os maiores obstáculos já que, pelo

espírito dos Acordos de Oslo, cada passo deveria ser acompanhado pela desocupação de novos

territórios. Em sua defesa, Netanyahu alega que a onda de ataques terroristas de Hamás e Jihad

impede a manutenção dos compromissos assumidos anteriormente e isso leva a um seguido

adiamento dos encontros bilaterais.

Entre novembro de 1997 e fevereiro de 1998, a Secretária de Estado norte-americana,

Madaleine Albright, pressiona Netanyahu a fazer novas concessões. Após um longo vaivém de

39

Idem, pág. 787.

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89

encontros e ameaças, em 23 de outubro de 1998, israelenses e palestinos, reunidos na cidade de

Wye River Plantation assinam um acordo pelo qual o governo de Tel Aviv cede 13% do território

da Cisjordânia que antes estava sob controle e soberania israelense. Pelo documento final, porém,

3% é considerada área de preservação ambiental, 1% passa diretamente à ANP e o 9% restante tem

controle civil palestino, mas a segurança vai ser garantida pelas forças judaicas; uma outra fatia de

14,2% da Cisjordânia deixa de estar submetida à autoridade civil palestina e à militar israelense e

vai passar sob o total controle da ANP. Judeus e palestinos se comprometem a combater as

organizações terroristas e suas estruturas organizativas, a confiscar as armas ilegais, a impedir o

contrabando das mesmas nos territórios da ANP, a prender os suspeitos de assassinato, ao mesmo

tempo em que Israel promete libertar 750 palestinos presos. Último, mas não menos importante, os

dois lados decidem iniciar imediatamente as negociações sobre os pontos mais complexos da

questão palestina sendo que as decisões finais sobre os mesmos devem ser tomadas até o dia 4 de

maio de 1999”.

- “Eu posso estar errado, mas alguma coisa me diz que isso vai jogar areia no ventilador do próprio

Likud, já que vai ser difícil para Netanyahu justificar estas concessões quando sua eleição teve

como fio condutor o propósito de não dar mais nada aos palestinos...”

Nádia esboça um sorriso pálido e, com voz grave, se prepara para confirmar a minha

suspeita: “Não é necessário ter bola de cristal para imaginar a frieza com a qual os vários setores da

direita recebem Netanyahu após ele assinar concessões superiores às que haviam sido acordadas.

Diante das hostilidades, o Primeiro Ministro se defende alegando que a aplicação do acordo

depende dos palestinos honrarem a parte que lhe diz respeito e, como está convencido de que isso

não irá acontecer, não haverá nenhuma transferência adicional do território da Cisjordânia sob

controle israelense.

Esta postura, porém, não convence nem os conservadores e nem os trabalhistas. Os

primeiros porque acreditam que, de uma maneira ou de outra, a ANP vai acabar obtendo os

territórios prometidos. Os segundos porque desconfiam de que Netanyahu vai lançar mão de

qualquer pretexto para frear novamente o processo de paz.

Em 20 de novembro de 1998, o exército judaico se retira de uma parte dos territórios

prevista nos acordos de Wye River e o gabinete israelense cumpre parcialmente as cláusulas que se

referem à libertação dos presos e à abertura do aeroporto da cidade de Gaza. Mas, com parte da

direita ameaçando retirar o apoio ao seu governo, caso faça novas concessões, e com os demais

setores prometendo atitude semelhante em caso de descumprimento, Netanyahu não tem condições

políticas de permanecer no poder. Um mês depois, dissolve o parlamento e marca novas eleições

para maio de 1999.

Os compromissos assinados em Wye River se tornam letra morta. Diante dos fatos, Arafat

envia inúmeras queixas ao governo dos Estados Unidos, ameaça proclamar unilateralmente o

Estado palestino no dia 4 de maio (conforme previsto pelos Acordos de Oslo) ao mesmo tempo em

que freia as ações terroristas que poderiam levar água à candidatura de Netanyahu. Com esta mesma

justificativa, França, Inglaterra, EUA e Egito convencem o presidente da ANP a não apressar os

tempos e a esperar o resultado das eleições. No dia 17 de maio de 1999, o trabalhista Ehud Barak é

eleito Primeiro Ministro com 56% dos votos”.

- “Será que agora o processo de paz vai entrar nos trilhos?”, pergunto esperançoso.

Nádia coça a cabeça e, deixando um clima de suspense no ar, convida a não sair da cadeira,

pois agora vai relatar o que sabe sobre...

10. O governo Barak e a segunda Intifada.

Sabendo que a curiosidade consegue pôr em movimento até os mais preguiçosos, a coruja se

afasta lentamente das folhas do relato deixando atrás de si um silêncio grávido de expectativa.

A vontade de dar rápida seqüência aos trabalhos muda de lado. Levantar da cadeira parece

uma ofensa, se ausentar por um momento deixa o gosto amargo de prolongar a espera. A garganta

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seca já não pede água e os dedos não sentem o cansaço que ameaçava vencer sua resistência. Um

vendaval de possíveis desdobramentos da realidade se apodera dos pensamentos enquanto Nádia,

imóvel, parece interpretar cada um deles.

Incomodada pelo sossego da ave, a língua se movimenta nervosa até encontrar a coragem de

cutucar a aparente calma da coruja com um “Será que não dá pra começar?”, tão curioso quanto

consciente de que os capítulos finais demandam um esforço adicional.

Com a asa apoiada na pilha de livros e a muleta ferindo o ar com os gestos decididos de

quem se prepara para um combate, Nádia responde à solicitação com um sorriso que precede a sua

interrogação:

- “Pronto?!?”, pergunta na certeza de uma resposta afirmativa.

O simples balançar da cabeça é mais que suficiente para fazer disparar o relato.

- “Sendo assim, lá vamos nós – continua a coruja apoiando o graveto na mesa. Pra início de

conversa é necessário dizer que, apesar da vitória de Barak, os trabalhistas caem de 34 para 26

deputados e, com os partidos de centro-esquerda, conseguem reunir apenas 50 do total de 120 votos

do Parlamento judaico. Para dar sustentação ao próprio governo, o Primeiro Ministro se vê obrigado

a escolher entre três possíveis aliados: os partidos árabes (que com seus 10 parlamentares, não

permitem alcançar a maioria de que precisa), o Likud (que dispõe de 19 vagas) ou os partidos

religiosos de direita.

Das três alternativas, Barak escolhe a terceira por entender que um acordo com o partido de

Sharon e Netanyahu poderia bloquear toda iniciativa de paz que demandasse novas concessões aos

palestinos. Ao mesmo tempo, os trabalhistas acreditam que a aliança com os grupos religiosos pode

ser garantida com a concessão de favores ou ajudas econômicas às suas escolas ou pela aprovação

de leis que regulem os costumes no interior do Estado judaico.

Empossado o novo gabinete, Barak promete a Arafat que vai cumprir os compromissos

assinados em Wye River e que, aliás, pretende ampliá-los no contexto de um acordo de paz mais

abrangente e definitivo. Mais do que a um gesto de boa vontade, esta postura deve ser atribuída ao

temor de que as progressivas concessões de territórios ocupados obrigariam Israel a jogar a maior

parte dos seus trunfos sem chegar a um tratado de paz definitivo com a Autoridade Palestina.

Em 4 de setembro de 1999, Barak e Arafat assinam em Sharm El-Sheik, no Egito, um

compromisso pelo qual o governo de Tel Aviv vai transferir ao controle da ANP três pequenas áreas

da Cisjordânia em etapas a serem concretizadas entre novembro de 1999 e janeiro de 2000, a

libertação de dois grupos de 350 presos palestinos e o início imediato das negociações do acordo de

paz definitivo tendo como base as Resoluções 242 e 338 das Nações Unidas. Além de se dispor a

discutir as fronteiras do Estado palestino, do status de Jerusalém, dos assentamentos judaicos e da

volta dos refugiados com base nos dois documentos da ONU, Israel aceita a construção de um porto

em Gaza e a criação de uma passagem segura entre os territórios da ANP na Cisjordânia e na Faixa

de Gaza. Por sua vez, a Autoridade Palestina se compromete a cooperar com as instituições

israelenses para bloquear toda atividade terrorista”.

- “Os propósitos são bons, mas vão ser cumpridos?”, pergunto desconfiado.

Nádia sorri e, com a segurança de quem já analisou situações parecidas, balança a cabeça

confirmando a razão de ser da minha incredulidade: “Após libertar a primeira leva de prisioneiros,

surgem discussões sobre quais e quantos territórios devem ser entregues aos palestinos ao mesmo

tempo em que os ataques terroristas no interior de Israel provocam atrasos e endurecimentos. Mas é

a progressiva expansão dos assentamentos judaicos na Cisjordânia a levar os palestinos a suspender

as negociações em dezembro de 1999.

Os diálogos são retomados em março de 2000 quando Tel Aviv, cumprindo os

compromissos de Sharm El-Sheik, entrega uma área de 6,1% da Cisjordânia à Autoridade Palestina.

Porém, ao mesmo tempo em que este gesto ajuda a reaquecer as relações com a ANP, as concessões

territoriais desgastam o governo de coalizão e os partidos religiosos ameaçam sair do gabinete caso

os trabalhistas se disponham a entregar novas áreas aos palestinos.

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Em 5 de julho de 2000, Bill Clinton, presidente dos Estados Unidos, anuncia um novo

encontro de cúpula entre Arafat e Barak em Camp David. Pouco antes de o Primeiro Ministro

judaico embarcar rumo aos EUA, o parlamento aprova, com 54 votos a favor e 52 contra, uma

moção de desconfiança ao seu governo. Por não atingir os 61 votos necessários para derrubá-lo,

Barak se mantém no comando da política israelense, mas tem plena consciência de que seu mandato

está por um fio.

De 11 a 26 de julho, Bill Clinton e Madeleine Albright atuam como mediadores do encontro

entre os líderes dos dois povos. Resultado: não há acordo sobre a questão do status de Jerusalém,

dos refugiados, dos assentamentos, da utilização dos recursos hídricos e nem sobre as novas

concessões pelas quais Barak oferece à Autoridade Palestina cerca de 90% da Cisjordânia. Judeus e

norte-americanos responsabilizam Arafat pelo fracasso das negociações”.

- “Também, pudera, dois chefes de Estado lhe entregam o controle sobre um território bem maior e

Arafat simplesmente vira as costas a uma proposta que daria uma nova cara ao Estado palestino...”,

murmuro em apoio à que parece ser uma justa condenação do rechaço de uma proposta irrecusável.

Piscando os olhos, Nádia assume uma expressão séria e dispara um “Haja paciência para

aturar estes humanos!”, que deixa no ar um clima de perplexidade e desconcerto.

- “Paciência... por que?”, retruco sem esconder a irritação.

- “Porque é só uma autoridade repetir uma mentira nos meios de comunicação que vocês a abraçam

como a mais pura verdade”.

- “Confesso que não estou entendendo...?”

- “Seria surpreendente se estivesse – responde irônica a coruja enquanto emite um longo suspiro.

Isso acontece porque a sua cabeça avantajada não se dá ao trabalho de pesquisar os acontecimentos

e superestima as imagens da realidade captadas pelos sentidos”.

- “Acontece que...”

- “Sim, grandalhão de óculos, eu sei que a mídia tem suas artimanhas, mas basta afastar um pouco o

véu das aparências para perceber que o rechaço de Arafat não é fruto da sua intransigência, mas

apenas da constatação de que as concessões são bem menos generosas do que aparentam. E a dizer

isso não é esta humilde representante do reino animal, mas um jornal israelense.

No dia 13 de julho, a edição do Yediot Aharanot contraria frontalmente as declarações

oficiais numa matéria cujo título diz tudo: A fraude de Camp David. Nela, a repórter Tanya Reinhart

escreve que, na realidade, os palestinos haviam recebido a oferta de 50% da Cisjordânia distribuída

em regiões separadas entre si por assentamentos e áreas de segurança sob estrito controle do

exército judaico. Do território restante, 10% seria anexado a Israel e 40% seria considerado em

discussão, uma maneira elegante para disfarçar o fato de que o controle permaneceria em mãos

judaicas. Ou seja, a Cisjordânia sob total controle da ANP continuaria sendo uma colcha de retalhes

cujas partes seriam sufocadas pela presença israelense”.40

- “Será que daria para você ser um pouco mais clara?”

- “O que os bípedes da sua espécie não percebem é que o território da Autoridade Nacional

Palestina na Cisjordânia é integrado por 227 enclaves separados entre si pela rede de estradas de

acesso reservado aos colonos dos assentamentos judaicos, pelos quartéis e postos de controle do

exército de Tel Aviv e pela interposição de áreas que estão sob administração parcial da ANP ou

sobre as quais Israel mantém controle total.

Sendo assim, o desenvolvimento de cidades como Nablus e Ramallah é completamente

bloqueado pelas colônias judaicas, pelas instalações do exército e pela infra-estrutura construída ao

longo dos mais de 20 anos de ocupação destes territórios.

Acrescente a isso o fato de que a maior parte das áreas sobre as quais a ANP exerce sua

autoridade civil e policial é composta de terrenos áridos, densamente povoados e sem acesso direto

às maiores fontes de recursos hídricos (já que toda a faixa de terra ao longo do rio Jordão é

40

A citação da reportagem e os dados nela contidos encontra-se em Edward W. Said, Fine del processo de pace, pg.

205-206.

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considerada área de segurança israelense) e verá que a proposta de Barak representa a legitimação

da impossibilidade material de criar um Estado palestino independente na Cisjordânia e da Faixa de

Gaza.

E tem mais. Enquanto Israel tem plenas condições de garantir e ampliar o desenvolvimento

de suas colônias nos territórios ocupados, cabe a ANP o ônus de administrar a pobreza dos

palestinos e de manter a ordem sobre um povo cada vez mais revoltado com a situação de

espoliação em que se encontra”, conclui Nádia ao secar com a asa algumas gotas de saliva que

escapam, venenosas, pelo bico. E sem dar sinais de trégua, se apressa em afirmar que “Ao mesmo

tempo em que as propostas de Barak representam bem pouco para os palestinos, elas são suficientes

para enfraquecer ainda mais o seu gabinete.

Em 2 de agosto de 2000, o Ministro das Relações Exteriores, David Levi, deixa o cargo

elevando para cinco o número de membros do gabinete que saem do governo em menos de dois

meses.

Enquanto isso, a tensão nos territórios ocupados se agrava com o passar dos dias, e a faísca

que detona a nova rebelião palestina ocorre em 28 de setembro quando Ariel Sharon visita a

esplanada onde está a mesquita de Al-Aqsa, no setor leste de Jerusalém”.

- “Só faltava essa para complicar o que já estava difícil – comento ao apoiar a testa sobre a mão

esquerda que acolhe, silenciosa, os meneares de seu desconcerto. Mas será que ninguém se mexe

para evitar o pior?”.

Com a muleta apoiada no próprio ombro, Nádia não desgruda os olhos dos papéis do relato

e, com voz firme, traz para o presente os fatos que se ocultam à sombra do passado: “Na verdade,

alguns dias antes, Dennis Ross, desaconselha Barak a permitir a visita. Consciente dos profundos

sentimentos religiosos associados àquele lugar, considerado sagrado tanto pelos muçulmanos como

pelos judeus, e da hostilidade dos palestinos em relação a Sharon, o enviado de Clinton teme que a

presença do parlamentar do Likud na esplanada de Al-Aqsa seja interpretada como uma provocação

capaz de desencadear desordens de difícil controle.

Arafat se une às preocupações de Ross e pede a Barak que impeça a visita de Sharon. Mas o

Primeiro Ministro receia que, ao fazer isso, a situação de seu gabinete se torne ainda mais

insustentável. É assim que, no dia 28 de setembro de 2000, acompanhado por cerca de mil policiais,

Sharon passeia pela esplanada por exatos 24 minutos sem se aproximar da mesquita.

Recebida como um insulto, a sua presença é rejeitada por um movimento espontâneo dos

muçulmanos aí presentes que começam a jogar pedras nos policias israelenses. No dia seguinte, as

desordens se ampliam e as forças de segurança judaicas atiram matando quatro palestinos e ferindo

mais de cem. Como um rastilho de pólvora, o clima de violência atinge várias cidades na que o

mundo, estarrecido, chama de a Intifada de Al-Aqsa”.

- “Pedras, enfrentamentos... será que ela vai ter as mesmas características da que ocorreu no final

dos anos 80?”, pergunto ao ter a impressão de estar revendo um filme conhecido.

Apoiada no graveto-muleta, a coruja começa a percorrer o estreito corredor formado pelas

pilhas de livros e as folhas do relato que forram a mesa. Com uma asa atrás das costas, Nádia parece

acrescentar autoridade à objetividade de suas observações: “Apesar das aparências, querido

secretário, estamos diante de algo bem diferente. Acontece que, desde os primeiros embates, parte

da polícia palestina se une aos protestos atirando com armas leves contra as posições das forças

israelenses cujas represálias não dispensam o uso de tanques, aviões e helicópteros de combate.

Nas semanas seguintes, os enfrentamentos com armas de fogo e os atentados se tornam

predominantes ao mesmo tempo em que as manifestações acompanhadas pelo lançamento de pedras

diminuem até assumir um caráter secundário.

Um outro aspecto importante é que, desta vez, a revolta põe em movimento a minoria árabe

que mora em Israel. Além de Jerusalém, há protestos e enfrentamentos em Jaffa, Acri, Nazareth e

em vários vilarejos da Galiléia e do Negev.

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As causas dos protestos devem ser procuradas nos 52 anos de marginalização e

discriminação da população árabe que vive no interior da sociedade judaica e no crescimento dos

movimentos fundamentalistas cujas formas de luta são influenciadas pelos Hezbollah libanês.

Este caldo de cultura tem seus ingredientes aquecidos pelo descaso de Barak em relação à

minoria árabe. Apesar de receber parte significativa de seus votos nas eleições de 1999, o Primeiro

Ministro não convida os parlamentares de seus partidos a participar da coalizão, não costuma

consultá-los e, muito menos, se digna de resolver os problemas da população por eles representada.

Na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, a explosão das desordens não se deve somente às razões

já listadas quando da primeira Intifada, mas também à frustração e à piora das condições de vida dos

palestinos nos próprios territórios administrados pela ANP. Apesar da autonomia, a sua economia

ainda depende de Israel, o simples deslocamento entre uma área sob controle palestino e outra

continua sendo dificultado pelo exército judaico que não dispensa agressões e humilhações.

Longe de melhorar, a situação dos campos de refugiados é ainda mais precária. A esperança

de voltar às terras das quais suas famílias foram expulsas por Israel em 1948, elemento importante

de sua identidade coletiva e razão de ser de sua existência política, é sistematicamente frustrada

pelas negociações bilaterais que empurram a questão dos refugiados para um futuro cada vez mais

longínquo e incerto.

Se isso não bastasse, os trabalhos de ampliação dos assentamentos judaicos nos territórios

ocupados não param. De acordo com um relatório da organização israelense Peace Now, de

setembro de 1993 a dezembro de 2001, o governo de Tel Aviv constrói 20 mil e 371 novos

conjuntos habitacionais, ou seja, 62% a mais em relação aos 32 mil 750 já existentes.41

A esta realidade preocupante, acrescente o confisco de milhares de hectares de terras

palestinas para a expansão do programa de construção de estradas e a degradação dos terrenos

agrícolas provocada pelas incursões do exército e dos colonos judeus. Tempere tudo com as

seguidas denúncias de corrupção, clientelismo e desvio de recursos que atingem os membros da

Autoridade e do Conselho Nacional Palestino, além da paralisação, a partir de 1997, do processo

democrático no interior da ANP que consolida o centralismo de Arafat e de seu estreito círculo de

colaboradores. Agite o todo com as medidas repressivas do exército israelense que visam destruir os

focos de resistência nos territórios ocupados. Resultado: o sonho palestino de que o processo de paz

crie as condições de um futuro melhor é progressivamente substituído pelo pesadelo da perda de

controle sobre a vida e o próprio destino enquanto povo.

Uma das expressões que apontam nesta direção é o aumento dos ataques suicidas contra

alvos israelenses no interior da Intifada de Al-Aqsa. De acordo com uma pesquisa divulgada pelo

Jerusalém Media Communication Center em 9 de janeiro de 2001, esta ação chega a receber a

aprovação de 66,2% dos palestinos. Entre os depoimentos que ajudam a entender as razões de

tamanho apoio está o de um homem-bomba, não identificado, ao jornal israelense Ha’aretz. Preso

pelos soldados pouco antes de detonar os explosivos amarrados ao próprio corpo, o entrevistado

explica que a decisão de sacrificar a própria vida foi tomada durante a imposição do primeiro toque

de recolher na sua cidade: Ninguém se atrevia a sair. Os soldados atiravam em qualquer pessoa que

saísse de casa, ainda que estivesse no seu próprio quintal. Fiquei espreitando pela janela e logo vi

um cachorro que passeava livremente pela rua e passava perto dos soldados. Não o prenderam e

nem atiraram nele. Então pensei: é viver pior que um cachorro ou escolher a morte do mártir.42

Daí a aderir a um dos movimentos que adota esta forma de luta é um pulo”.

- “Seja como for, sou contra os ataques suicidas, pois matam civis inocentes!”, afirmo cortando

bruscamente o relato da coruja.

A ave balança a cabeça e, fixando o olhar no meu, pergunta: “Se eles fossem mortos com um

tiro, seria diferente?”.

- “Nádia, pelo amor de Deus, não brinque com coisa séria!”, comento em tom de repreensão.

41

Em Edward W. Said, texto citado, pg. 263. 42

Amira Hass, Las motivaciones intimas de los kamikazes palestinos, em Ha’aretz/Rebellión, edição eletrônica.

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- “Pois fique sabendo que nunca falei tão sério – retruca a coruja espetando o cotovelo com o

graveto-muleta e engrossando o tom de voz. No relatório do Fundo das Nações Unidas para a

Infância (UNICEF), divulgado no dia 1º de dezembro de 2000, se afirma que os primeiros meses da

Intifada de Al-Aqsa conheceram a morte violenta de 310 pessoas: 261 palestinos, 35 israelenses, 13

árabes e um alemão. Do total de palestinos assassinados pelo exército judaico, 97 são crianças. A

este cálculo tenebroso é necessário acrescentar o número dos feridos. Ao todo, são 426 judeus

contra 9 mil 802 palestinos, dos quais 4 mil 116 são crianças. Além disso, o que você não sabe é

que os ataques suicidas, inicialmente realizados contra posições militares israelenses, começam a

não fazer distinções depois que a própria população civil palestina torna-se alvo constante dos

militares e dos colonos judeus nos territórios ocupados”.

- “Mas eu não...”

- “Já sei, já sei – repete Nádia com a ponta da asa para o alto – você não sabia disso. Mas, console-

se, pois não é o único a cair de boca diante da realidade dos fatos. E não é pra menos. A maior parte

dos meios de comunicação ignora ou minimiza a violência quando as vítimas são os palestinos, ao

mesmo tempo em que dedica amplas coberturas e duras condenações quando a morrer são os

israelenses”.

- “Só espero que você não justifique a morte de uns pela dos outros...”

- “Definitivamente não! Pois desta forma a espiral da violência serviria para ocultar ainda mais as

contradições e os interesses que alimentam os conflitos. Ao citar os números quero chamar a

atenção sobre um aspecto quase sempre esquecido: o terrorismo, suicida ou não, é apenas um

sintoma, não a doença. Por isso, no lugar de julgar os acontecimentos como bons ou ruins, devemos

analisar sua dinâmica, as forças e as contradições que neles agem. No lugar de um fácil veredicto

moral, faz-se necessária uma avaliação que permite detectar melhor suas origens e vislumbrar seus

possíveis desdobramentos.

Entre os estudos que caminham nesta direção, está, sem dúvida, o de Gal Luft, um ex-

Tenente Coronel das Forças Armadas Israelenses. Ao pesquisar o primeiro ano da Intifada, ele

conclui que os palestinos passam a usar os ataques suicidas como arma estratégica e bomba

inteligente dos pobres que pode servir de milagroso contrapeso às dotações bélicas israelenses que

são de última geração. Ao que parece, os palestinos têm determinado que os ataques suicidas com

explosivos, utilizados sistematicamente no contexto de uma luta política, oferecem algo que

nenhuma outra arma poderia dar: a capacidade de provocar em Israel uma dor devastadora e sem

precedentes.43

Esta conclusão tem uma base histórica. Em maio de 2000, Tel Aviv retira suas tropas do

Líbano após anos de violentos ataques suicidas do Hezbollah. Diante deste desfecho, não é de

estranhar que o mesmo instrumento de luta ganhe relevância no enfrentamento do exército judaico

contra cujos destacamentos os ataques guerrilheiros tradicionais parecem não surtir efeito. A

comprovar esta hipótese são os dados levantados pelo próprio Luft: as forças palestinas travam

mais de mil e 500 tiroteios contra veículos israelenses nos territórios [ocupados] que chegam a

matar 75 pessoas. Atacam posições do exército mais de 6 mil vezes, mas matam só 20 soldados.

Fazem explodir mais de 300 minas antitanque contra alvos israelenses sem conseguir matar

ninguém. Para desmoralizar os colonos, os palestinos lançam mais de 500 ataques com morteiros e

foguetes contra as comunidades judaicas nos territórios ocupados e, às vezes, dentro de Israel, mas

sua artilharia se revela primitiva e carente de precisão e só morre um israelense.

Enquanto isso, a campanha de terror, realizada por Hamás e Jihad, apresenta resultados mais

contundentes. Em 350 ataques com facas e atentados com bombas no interior de Israel, os

movimentos fundamentalistas conseguem matar ou ferir mais israelenses do que as principais

organizações palestinas em mais de 8 mil ações realizadas na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. O

43

Esta e as demais citações da pesquisa que seguem, foram publicadas em Gal Luft, La Bomba-H palestina, revista

Foreign Affairs edição eletrônica em espanhol.

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maior impacto, porém, vem dos 39 ataques suicidas que acabam com a vida de 70 israelenses e

ferem outros mil.

Ainda na opinião dele, os ataques suicidas começam a não fazer distinção entre alvos civis e

militares na medida em que Tel Aviv opta pela eliminação seletiva dos líderes dos vários grupos de

resistência e pela ocupação militar dos territórios sob controle da ANP cujo rastro de morte e

destruição atinge indiscriminadamente a população civil palestina.

Neste contexto, quanto maiores as dificuldades enfrentadas pelos homens-bomba na

realização de seus gestos, mais aumentam o prestígio e o heroísmo destes em meio à população dos

territórios ocupados. Enquanto o exército israelense drena preciosos recursos das atividades

econômicas essenciais e o clima de guerra afasta turistas e investidores, o número de candidatos a

mártir entre as fileiras palestinas é alimentado pela própria dinâmica dos acontecimentos. Diante

destas constatações, Luft conclui que a julgar pela história, a campanha militar israelense para

erradicar os ataques suicidas tem pouca probabilidade de êxito. Outras nações que enfrentaram

adversários que desejam morrer têm aprendido da pior maneira que, a não ser que se aniquile

completamente o inimigo, não há solução militar para o problema”.

_ “Isso é assustador e, pelo visto, a situação pode ficar ainda pior. Mas será que ninguém vai fazer

nada para tentar apaziguar os ânimos?”, pergunto na desesperada tentativa de vislumbrar uma luz no

fim do túnel.

- “Diante da gravidade dos acontecimentos, no dia 7 de outubro de 2000, o Conselho de Segurança

da ONU aprova, por 14 votos a zero, uma Resolução na qual deplora a provocação de Sharon e a

violência que a ela se segue. Em seguida, o texto convoca Israel, o poder usurpador, a observar

escrupulosamente suas obrigações e responsabilidades legais de acordo com a 4ª Convenção de

Genebra, de 12 de agosto de 1949, no que se refere à proteção dos civis em tempo de guerra. Em

outras palavras, as Nações Unidas apelam para o respeito de uma lei internacional que proíbe, entre

outras coisas, todas as formas de torturas e coerção física e mental, o castigo coletivo, as represálias

contra pessoas ou propriedades, a transferência da população civil da potência ocupante ao território

ocupado, a destruição da infra-estrutura e da propriedade privada. Ou seja, O Conselho de

Segurança condena, mais uma vez, tudo aquilo que Israel vem fazendo sistematicamente desde 1967

sendo que as transgressões desta convenção são ainda mais graves após o início da Intifada de Al-

Aqsa”.

- “Diante de uma condenação tão explícita, qual é a postura dos Estados Unidos?”

- “É a que se pode esperar de um país que, há anos, vem apoiando Israel como aliado de primeira

ordem – diz Nádia abrindo as asas diante de si num gesto que parece sublinhar o óbvio. Washington

se abstém de votar na Resolução que condena o Estado judaico pelo uso excessivo da força

alegando que parte das afirmações da ONU são falsas e que a posição do Conselho de Segurança vai

criar maiores problemas na região.

Em 12 de outubro de 2000, Richard Holbrooke, embaixador estadunidense nas Nações

Unidas, diz que seu país está determinado a bloquear a discussão desta crise. No mesmo dia, a

Secretária de Estado, Madeleine Albright, convoca a comunidade internacional para que esta adote

as medidas necessárias para pôr fim aos enfrentamentos e pede ao governo de Israel que suspenda as

operações em curso.

Por sua vez, o diretor da CIA, George Tenet, se reúne separadamente com Arafat e Barak

para discutir medidas que podem restabelecer a paz entre os dois povos. Mas, apesar das pressões

do governo de Washington, em 20 de outubro, a Assembléia Geral da ONU condena Tel Aviv –

com 92 votos a favor, 6 contra e 46 abstenções – pelo uso excessivo da força contra os palestinos,

apóia a criação de uma comissão de investigação liderada pelos EUA e considera ilegais tanto os

assentamentos judaicos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza como a ocupação israelense do setor leste

de Jerusalém.

Um dia antes, a Comissão de Direitos Humanos, reunida em Genebra, Suíça, havia

condenado Israel por crimes contra a humanidade. Diante da ferrenha oposição dos EUA e da União

Européia, dos 53 membros que integram esta instância da ONU, 19 votam a favor desta Resolução,

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16 são contrários, 17 se abstêm e um não participa da reunião. O texto proposto pelos países árabes

é aprovado com uma margem extremamente apertada”.

- “Quer dizer que a Intifada leva as elites árabes a se mexerem...”

- “Não se iluda! – afirma Nádia categórica. Não é bem o levante palestino a colocar em cena estas

nações, mas sim a reação que a Intifada produz entre a população destes países”.

- “Como assim?”

- Apesar de serem ricos em petróleo, a maior parte de seus povos sofre os efeitos da pobreza, do

desemprego, da falta de instituições de seguridade social e da mais dura repressão. A corrupção

costuma correr solta e, junto aos desmandos da elite, torna ainda mais precária a estabilidade da

ordem interna. Neste contexto, toda manifestação política, social e cultural que tenha algumas

pitadas de democracia é considerada uma ameaça aos mandatos, hereditários ou não, de seus

governantes. E, como a maior parte deles se mantêm no poder graças ao apoio estadunidense, não é

de estranhar que entre o discurso e a prática haja sempre uma diferença considerável.

Esta discrepância já é visível no início da Intifada de Al-Aqsa quando a resposta violenta à

provocação de Sharon é interpretada como um fenômeno passageiro e de curta duração. Nas duas

primeiras semanas do levante, não há governante árabe que não reitere seu apoio aos palestinos,

mas, apesar de saudar a Intifada como expressão do legítimo direito à resistência contra a ocupação

militar e condenar abertamente a violenta repressão desencadeada por Barak, só o sultão de Omã

corta as relações com Israel encerrando os contatos com sua missão comercial em visita à capital e

retirando o seu enviado a Tel Aviv. Os demais países esperneiam, ameaçam... mas não cumprem.

Em 21 de outubro, ou seja, um mês após o início da Intifada, a cúpula árabe se reúne no

Cairo, Egito. Desde o início dos trabalhos, sobram discursos inflamados, mas a Líbia dá sinais de

que as coisas não são o que aparentam ser ao retirar sua delegação em protesto pela adoção de

medidas excessivamente brandas contra Israel. No dia seguinte, das nações que integram a Liga

Árabe, só a Tunísia decide romper suas relações com Tel Aviv em protesto pela violência exercida

contra os palestinos. Na declaração divulgada no final da cúpula, pede-se a formação de uma

comissão internacional de investigação patrocinada pela ONU, a criação de uma força de paz

internacional para proteger os palestinos, a instalação de um Tribunal Penal Internacional para

julgar os criminosos de guerra israelenses, o envio de um bilhão de dólares à ANP e o apoio à

continuidade dos diálogos de paz cujo fracasso eventual levaria à suspensão da cooperação

econômica com Israel”.

- “Pelos rugidos parecia um leão... mas se revelou um gato desafinado miando ao microfone”.

- “Exatamente! Tanto é verdade que Israel recebe a declaração com uma perceptível sensação de

alívio.

Quanto aos palestinos, a decisão da cúpula árabe de condenar verbalmente o Estado judaico

sem tomar nenhuma medida punitiva frustra os líderes da resistência e o próprio povo.

Ainda assim, na última semana de outubro, não são poucas as manifestações populares em

apoio à luta palestina. Na Jordânia, cerca de 120 mil pessoas avançam rumo à linha de fronteira

controlada por Israel, mas seu protesto é freado pela própria polícia jordaniana que, ao enfrentar os

manifestantes, deixa quase uma centena de feridos.

Nos meses seguintes, o perdurar da Intifada e as mudanças no governo israelense põem

novamente à prova a credibilidade dos regimes árabes. As elites elevam o tom de sua retórica e seus

discursos se tornam mais agressivos, mas, na hora da ação, limitam-se a pressionar os Estados

Unidos para que intervenham ativamente no conflito. Com o jogo se tornando cada vez mais

perigoso, o apoio verbal a Intifada ganha expressões mais moderadas e a própria ajuda financeira

inicialmente destinada à ANP passa a ser entregue às ONGs nacionais e estrangeiras que atuam nos

territórios ocupados”.

- “Bom, você falou da ONU, dos EUA e dos países árabes. Mas como estão as relações entre o

gabinete judaico e a Autoridade Palestina?”

- “Após o início da Intifada, Estados Unidos e União Européia realizam gestões para promoverem

encontros entre os representantes dos dois povos. Nos dias 3 e 4 de outubro de 2000, Arafat e Barak

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se encontram em Paris, França, mas as negociações chegam a um ponto morto. Em seguida, EUA,

Egito e Jordânia convocam uma reunião de cúpula entre o presidente da ANP e o Primeiro Ministro

de Israel. O encontro, realizado em Sharm El-Sheik, Egito, no dia 17 de outubro, se encerra com

três compromissos: promover o fim das hostilidades, criar uma comissão que investigue as causas

da violência nos territórios ocupados e reativar o processo de paz. Apesar de aceitar verbalmente

seus termos, Barak e Arafat não assinam o documento final do encontro.

Nos dias que seguem, os enfrentamentos se tornam mais duros. Hamás, Jihad, FPLP, FDLP

e Fatah-Intifada, entre outros grupos de resistência, rechaçam os compromissos assumidos pela

Autoridade Palestina e declaram que continuarão em luta contra a ocupação israelense. Em 24 de

outubro, oito organizações palestinas hostis ao processo de paz se reúnem em Damasco, Síria, para

discutir um plano que dê continuidade a Intifada.

Diante da crescente onda de violência e sem implantar medidas efetivas para diminuir a

tensão entre os dois povos, Barak tenta salvar o seu mandato propondo ao Likud a formação de um

governo de coalizão, mas este recusa o convite.

Pouco antes da metade de dezembro, temendo que o parlamento aprove uma moção de

desconfiança, o Primeiro Ministro judaico se antecipa aos acontecimentos dissolvendo o gabinete e

marca as eleições gerais para 6 de fevereiro de 2001.

Os últimos meses do seu governo são vividos em meio a grandes pressões. De um lado, os

incessantes enfrentamentos da Intifada e o crescimento do Likud; do outro, o fim do 2º mandato de

Bill Clinton e as incertezas quanto às diretrizes da futura mediação norte-americana.

Na tentativa de reverter a perspectiva de derrota eleitoral, dada como certa pelas pesquisas

de opinião, Barak realiza uma série de reuniões secretas para chegar a um acordo com os palestinos.

Mas as linhas mestras, que retomam as posições apresentadas em Camp David em julho de 2000,

são rejeitadas pela ANP. No vaivém das delegações, a última tentativa de acordo é realizada em

Taba, no Egito, entre 21 e 27 de janeiro de 2001, mas, apesar dos discursos otimistas de ambos os

lados, as negociações fracassam.

O clima de insegurança criado pelos ataques suicidas, pela violência e pelo envolvimento

dos árabes israelenses na Intifada leva água ao moinho de Sharon que vence as eleições com 62,4%

dos votos. Em seguida, o Likud negocia com os trabalhistas a formação de um governo de unidade

nacional com o qual pretende dar maior estabilidade ao novo gabinete e realizar a promessa eleitoral

de garantir a segurança do povo israelense”.

- “Se a memória não me engana, em mais de uma ocasião você falou de uma Comissão

Internacional que investigaria as causas da violência nos territórios ocupados. Ela chegou a alguma

conclusão?”

Sem conter a alegria de ver que o cansaço não derrotou o interesse, Nádia se apressa a

responder a mais uma investida da curiosidade. “Bem lembrado, querido secretário! – diz ao

envolver o meu ombro com o calor da sua asa. Em 30 de abril de 2001, é divulgado o relatório da

Comissão Internacional liderada pelo senador estadunidense George Mitchell. Ao centro de sua

análise está o profundo sentimento de desilusão de ambas as partes quanto ao processo de paz

iniciado em Oslo.

Do lado palestino, as maiores queixas dizem respeito à construção dos novos assentamentos

e à ampliação dos já existentes (a ponto de abrigarem o dobro da população judaica que morava nos

territórios ocupados antes de 1993), à deterioração das condições de vida e ao impasse quanto à

questão dos refugiados.

Por sua vez, o governo israelense acusa a Autoridade Palestina de permitir o uso de armas

ilegais, de dirigir operações violentas e de não se esforçar para evitar que seus territórios sirvam de

base aos grupos terroristas.

Diante destas constatações, o relatório pede à ANP que rechace publicamente o terrorismo,

tome medidas severas para prevenir suas ações e puna os executores. Ao governo de Tel Aviv, o

documento solicita o congelamento imediato da expansão dos assentamentos.

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Mas esse texto, elaborado com a intenção de reduzir a tensão, sem entrar no mérito dos

problemas mais delicados, é divulgado quando o panorama político israelense é completamente

diferente em relação àquele no qual havia sido concebido, o que faz com que ele caia no vazio.

Diante do agravar-se da situação, George W. Bush, presidente dos EUA, envia ao Oriente

Médio o chefe da CIA, George Tenet, para mediar um cessar-fogo. Tenet pede a palestinos e

israelenses que tomem imediatamente providências concretas e realistas para restabelecer a

cooperação em matéria de segurança. Mas, apesar de chegar a um acordo provisório em junho de

2001, a violência aumenta vertiginosamente e abala os compromissos assumidos.

As coisas se complicam ainda mais após os atentados de 11 de setembro contra o World

Trade Center e o Pentágono, nos Estados Unidos. No mesmo dia, tanques, blindados e unidades das

forças armadas judaicas se posicionam nas redondezas de Jenin, na Cisjordânia, e do campo de

refugiados próximo a ela, sinalizando que as operações militares israelenses nos territórios

ocupados vão entrar numa nova fase. Menos de 24 horas depois, outros destacamentos entram em

Jericó e Ramallah e, em seguida, as cidades de Gaza e Rafah são atacadas com mísseis lançados de

helicópteros e aviões de combate israelenses.

Com estas medidas, Sharon pretende aproveitar o sentimento internacional contra o

terrorismo para levar adiante seu plano de eliminação dos líderes fundamentalistas e das células da

resistência palestina que alimentam a Intifada. Os ataques não têm a menor preocupação de poupar

os civis, mesmo porque, com os olhos do mundo voltados para a apuração dos atentados nos EUA e

os preparativos da guerra contra o Afeganistão, são poucos os que manifestam sua indignação diante

dos métodos utilizados pela repressão israelense.

Preocupado em envolver os países islâmicos e do Oriente Médio em sua campanha contra a

Al-Qaeda, Bush intima Sharon a sair das cidades palestinas recém-ocupadas e, junto a Tony Blair,

faz gestões para tentar frear a espiral de violência que envolve os dois povos”.

- “Será que as coisas vão se acalmar...?”, pergunto sem convicção.

- “Como você já deve estar prevendo, não! O trabalho diplomático se torna ainda mais difícil

quando, em 17 de outubro de 2001, Rehavan Zeevi, Ministro do Turismo de Israel, é assassinado

em Jerusalém por um integrante da Frente Popular para a Libertação da Palestina.

Em resposta, o exército judaico aperta o cerco na Cisjordânia. A ocupação provoca uma

nova onda de ataques suicidas, reivindicados por Hamás e sistematicamente retaliados pelas forças

israelenses que atacam as instalações da Autoridade Palestina e impossibilitam os deslocamentos de

Arafat.

Pressionado pelos Estados Unidos, o presidente da ANP prende alguns militantes de Hamás

e de outros grupos da resistência palestina provocando a ira de seus integrantes e fazendo despencar

o apoio popular à sua liderança.

È neste contexto que nascem as Brigadas dos Mártires de Al-Aqsa que, oriundas das fileiras

de Al Fatah, adotam os ataques suicidas como arma de luta e, em aberta disputa com os setores

fundamentalistas, vão agir para tentar recuperar a confiança dos palestinos em Arafat e no seu

grupo. Ao contrário de Hamás e Jihad, as Brigadas não lutam para criar um Estado islâmico, mas

sim pela instalação de um governo secular nos territórios da antiga Palestina. Sua estréia ocorre em

29 de novembro de 2001 e, em janeiro do ano seguinte, seus líderes criam os esquadrões de

mulheres Wada Idris, do nome da primeira mulher palestina a detonar a carga amarrada ao seu

corpo num ataque suicida realizado em Jerusalém.

Terminada a guerra no Afeganistão, Israel intensifica suas incursões militares nos territórios

da ANP e, em 4 de dezembro de 2001, inscreve a Autoridade Nacional Palestina em sua lista de

organizações que apóiam o terrorismo. Livre dos impedimentos colocados antes deste conflito, o

governo de Washington dá carta branca à máquina de guerra judaica alegando que Israel tem o

direito de defender-se.

Sob este guarda-chuva, o agressor assume o papel de vítima, pois, ao dizer que Tel Aviv age

em legítima defesa, se oculta o fato de que são suas tropas a atacar indiscriminadamente cidades,

povoados e territórios palestinos e a assassinar as lideranças-chave dos grupos de resistência.

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Paralelamente a isso, Sharon e Bush tratam de isolar e desqualificar Arafat alegando que ele é

incapaz de controlar o terrorismo, e o primeiro chega a confessar seu arrependimento por não tê-lo

matado quando da ocupação do Líbano.

O presidente da ANP está no meio de um intenso fogo cruzado. De um lado, EUA e Israel o

acusam de conivência com os grupos terroristas; as forças armadas judaicas bombardeiam a sede da

polícia palestina, os presídios e as instalações da Autoridade Palestina em Ramallah onde Arafat é

mantido numa espécie de prisão domiciliar pelos tanques e soldados israelenses que cercam o

prédio onde estão seus alojamentos. Do outro, o fato dele condenar publicamente o terrorismo

fundamentalista, fechar as instalações de Hamás e Jihad, congelar dezenas de contas bancárias que

movimentavam os recursos destes grupos, prender mais de 200 militantes e desativar uma fábrica de

munições atrai sobre si o descontentamento popular. Os palestinos, de fato, vêem estas medidas

como uma forma de apoiar a política judaica e, ao não permitir a realização das atividades

assistenciais destes grupos, a ANP acaba aumentando o número de pessoas sem acesso à comida,

assistência médica e educação na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.

Em fevereiro de 2002, a popularidade de Arafat despenca dos cerca de 70% em 1996 para

36%. A sua permanência no poder, porém, é garantida não só pelos contingentes armados fiéis às

suas ordens, mas, também por não ter rivais à altura, já que Yassin, líder espiritual do Hamás, ocupa

um distante segundo lugar com 14% dos votos registrados nas pesquisas.44

O fato de uma grande massa de palestinos não apoiarem nem Arafat, nem os líderes

fundamentalistas, leva Sharon a manter contatos com Ahmed Qorei e Mahmoud Abbas na tentativa

de criar um canal alternativo com personalidades da ANP tidas como mais sensíveis às demandas

judaicas. Contudo, as manifestações de apoio a Arafat inviabilizam os planos do Primeiro Ministro

israelense de excluir o presidente da Autoridade Palestina para detonar uma crise política de sérias

proporções no interior da ANP”.

- “Só me pergunto qual deve ter sido a reação da sociedade judaica diante de todos estes

acontecimentos...”, murmuro instigado pelo desejo de saber mais sobre este ator cujas aparições

raramente se distanciam da posição de seus governantes.

Nádia coça a cabeça e depois de um solene “Muito bem, vejamos...” com o qual arruma as

idéias, a coruja limpa a garganta para revelar que “são 52 oficiais das unidades de elite do exército a

protagonizar um gesto inesperado. No final de janeiro de 2002, este grupo de militares graduados

assina um documento no qual apresenta a sua recusa a intervir nos territórios ocupados e convoca

oficiais e soldados a fazerem o mesmo.

No texto, os assinantes declaram que não há relação alguma entre a segurança do Estado

de Israel e as ações do Exército nos Territórios Ocupados cujo único objetivo é o de perpetuar o

nosso controle sobre o povo Palestino. E acrescentam: Nós que entendemos a forma pela qual o que

os comandantes nos ordenam nos Territórios destrói todos os valores que absorvemos desde a

nossa juventude neste país; nós que agora entendemos que o preço da Ocupação é a

desumanização do IDF e a corrupção da inteira sociedade israelense; nós que sabemos que os

Territórios não pertencem a Israel e que, no final, os assentamentos são destinados a serem

evacuados; de conseqüência, nós declaramos que não continuaremos a combater esta Guerra dos

Assentamentos; não continuaremos a lutar além das fronteiras de 1967 para dominar, expulsar,

matar de fome e humilhar um povo inteiro; por isso, declaramos que continuaremos a servir as

Forças de Defesa de Israel em cada missão que sirva para a defesa de Israel. As missões de

ocupação e opressão não servem a este propósito e não participaremos delas.45

O documento tem grande repercussão na mídia judaica, mas ao não ganhar adesões

significativas nos meios civis e militares acaba não tendo grande influência na condução da política

israelense, mas contribui para desgastar o apoio ao gabinete de Sharon. A direita começa a acusá-lo

44

Dados extraídos do artigo de Deborah Sontag, Conversando com os palestinos, em New York Times, edição

eletrônica em português. 45

Tradução produzida a partir do texto original divulgado através da página eletrônica www.seruv.org.il. IDF: Forças de

Defesa Israelenses, pela sigla em inglês.

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de ser extremamente suave com os palestinos, enquanto a esquerda condena a violência excessiva

das ações nos territórios ocupados. Ambos os pólos, porém, convergem em um ponto: o Primeiro

Ministro, que se elegeu com a promessa de trazer paz e segurança a Israel, parece não ter um plano

para acabar com o conflito. Apesar das divergências, os trabalhistas não saem do governo já que boa

parte de seus líderes aprova a necessidade de endurecer as respostas judaicas ao terror palestino.

Semanas depois, em 5 de março de 2002, com o governo de unidade nacional preservado e

contando com o apoio explícito de Bush, Ariel Sharon responde publicamente a todos os seus

críticos: o objetivo [dos ataques] é aumentar o número de baixas no outro lado. Somente quando

eles tiverem sido derrotados é que poderemos negociar”.46

- “Ao que tudo indica, as coisas prometem se complicar ainda mais. Será que o mundo vai ficar

assistindo a briga de camarote?”

A coruja ensaia um sorriso sério e triste. Em seguida, com a muleta apontada para o Atlas,

anuncia em meio a um longo suspiro que “vale a pena dar mais uma olhada às reações dos países

árabes, ainda que estes não apresentem grandes novidades.

Pra variar, estas nações continuam presas entre dois fogos. De um lado, o governo de

Washington pressiona Egito, Arábia Saudita e Jordânia a rechaçarem publicamente o terrorismo

palestino e a declararem sua vontade de trabalhar para pôr fim a Intifada. Do outro, está a

necessidade de acalmar a população de seus países que gostaria de ver os regimes que a governam

apoiar abertamente o levante.

É neste contexto que, em 17 de fevereiro de 2002, Abdullah, príncipe herdeiro da Arábia

anuncia que seu país vai apresentar uma proposta pela qual o mundo árabe oferece a Israel a

normalização das relações econômicas e diplomáticas em troca da sua retirada de todos os

territórios ocupados em junho de 1967.

O plano de paz saudita é discutido em 27 de março pela cúpula da Liga Árabe, em Beirute.

Os trabalhos iniciam sem a presença do presidente do Egito, do rei da Jordânia e do próprio Arafat,

impedido de sair de Ramallah. Com eles, outros 12 chefes de Estado deixam de participar da

cúpula, mas enviam seus representantes. A resposta de Israel ao texto final do encontro não pode ser

outra: rechaço total à proposta da Liga.

Em 29 de março, milhares de árabes ocupam as ruas de vários países para protestar contra a

ocupação israelense dos territórios da ANP e, sobretudo, contra a prisão domiciliar de Arafat. Em

Egito, Jordânia e Síria, os manifestantes são agredidos pela polícia local que dispersa os protestos

com canhões de água e bombas de gás lacrimogêneo.

No Iraque, Saddam Hussein suspende por um mês a venda de petróleo ao ocidente e pede

aos árabes que façam o mesmo. Mas os países produtores não têm a menor vontade e interesse de

comprar esta briga.

Na Líbia, Kadafi lidera marchas pelas ruas da capital e pede aos países que têm fronteiras

comuns com Israel que dêem livre trânsito aos voluntários que desejam combater ao lado dos

palestinos. No Kuwait, o menos crítico dos aliados norte-americanos, o Parlamento emite uma

declaração sugerindo que o governo Bush seja mais justo ao lidar com o conflito. A esta lista se

unem as reações oficiais do Egito que anuncia a suspensão dos contatos com Tel Aviv, com exceção

das negociações diplomáticas que podem ajudar os palestinos.

Com a arma do petróleo praticamente fora da jogada, as medidas adotadas pelas nações

árabes têm um efeito mais simbólico do que prático. O plano saudita torna-se, assim, mais um

documento na pilha de papéis que marcam as tentativas de acordo com Israel”.

- “Mas, e a ONU...?”

- “Bom, ela se mexe, condena, reafirma princípios, mas nada obriga Tel Aviv a respeitar suas

Resoluções. É isso que vem acontecendo desde a fundação do Estado judaico na metade do século

passado.

46

Texto extraído de James Bennet, Análise: israelenses e palestinos estão num impasse, esperando para ver quem

cederá primeiro, em New York Times, edição eletrônica em português.

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Em 20 de dezembro de 2001, diante do agravar-se da situação nos territórios ocupados, a

Assembléia Geral das Nações Unidas condena os ataques israelenses contra os palestinos e dá seu

apoio irrestrito ao presidente da ANP. Na mesma ocasião, o enviado especial da ONU ao Oriente

Médio, Terje Roed Larsen, alerta que, após 15 meses de Intifada, o desemprego já passa dos 35% na

Cisjordânia e dos 50% na Faixa de Gaza, sendo que 46% dos palestinos, ou seja, o dobro em relação

ao período que antecede o levante, vivem na pobreza.

Apesar de sua ação, os fatos ganham uma dinâmica cada vez mais preocupante. No dia 10 de

fevereiro de 2002, um ataque aéreo israelense lançado contra as instalações palestinas atinge o

primeiro andar do prédio onde estão os escritórios da ONU na cidade de Gaza ferindo dois

funcionários. Num comunicado, o representante local das Nações Unidas se diz escandalizado pelo

fato de Israel utilizar bombas de grande potência nas proximidades de áreas residenciais densamente

povoadas.

Surdo a estas condenações, um mês depois, o governo judaico ordena o inicio de uma

operação terrestre de grande envergadura. Milhares de soldados, apoiados por tanques, blindados e

helicópteros, ocupam várias cidades da Cisjordânia e da Faixa de Gaza em represália contra os

ataques palestinos.

No dia 13 de março, o Conselho de Segurança da ONU aprova uma Resolução proposta

pelos Estados Unidos na qual se pede o fim da violência e a retomada das negociações entre

israelenses e palestinos. O governo de Tel Aviv critica o seu conteúdo e, pra variar, não cumpre

suas determinações. No fim do mês, é a vez da Noruega apresentar uma saída para o conflito. A

Resolução, aprovada pelo Conselho de Segurança por 14 votos a zero, entre eles o dos EUA, exige a

retirada imediata das tropas israelenses de todas as cidades palestinas.

Em resposta, o gabinete judaico anuncia que a operação recém-iniciada é apenas o começo

de uma longa campanha contra os militantes palestinos e convoca milhares de reservistas a

integrarem os contingentes do exército.

No dia 7 de abril, o Conselho de Segurança da ONU aprova por unanimidade a Resolução

1403 na qual pede o cessar-fogo, a retirada imediata das tropas israelenses das cidades palestinas

ocupadas e saúda o início da missão de paz do secretário de Estado norte-americano Colin Powell

ao Oriente Médio”.

- “Com os Estados Unidos metendo a colher...”

- “Não, querido secretário, é bom você não se animar. Apesar das condenações oficiais e do apoio

que elas recebem por parte dos EUA, o governo de Washington continua armando a mão judaica

contra os palestinos. E, ainda que, às vezes, seja impossível apoiar Israel explicitamente, são

exatamente os equipamentos bélicos do Tio Sam a proporcionar mais um massacre”.

- “Você não está falando sério?!? ... Está?”

- “Infelizmente sim – diz a coruja de cabeça baixa e olhar abatido. Mas este é um assunto que vou

tratar na última etapa do relato que vai...

11. Do massacre de Jenin ao Mapa do Caminho.

Nesta altura do trabalho, já não sei dizer se o que prevalece é a alegria de estar chegando ao

fim de um esforço de reconstrução da história ou o sentimento de tristeza presente na lágrima

recolhida pela asa que Nádia apóia agora no meu ombro.

Firme em seu propósito de relatar o que seus olhos leram nas linhas da história, a coruja se

recompõe. Cansada pelo esforço, recosta vagarosamente o corpo na pilha de livros ao lado da qual a

primeira página do último capítulo aguarda, ansiosa, os traços da caneta. A luz do entardecer

ressalta as cores da ave, evidencia seus ferimentos e a expressão típica de quem, ao se aproximar da

meta, mescla satisfação e sofrimento.

Com o olhar fixo no pôr do sol que pinta o céu de vermelho, Nádia dá o sinal de partida:

“Próxima etapa: Jenin, Cisjordânia, abril de 2002. O ataque do exército judaico ao campo de

refugiados nas imediações desta cidade começa nas primeiras horas do dia 3. A ação das tropas, que

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se estende a outras localidades, é uma retaliação ao ataque suicida realizado por Hamás num hotel

onde um grupo de judeus celebra a Páscoa. O atentado, no qual morrem 28 pessoas, põe em marcha

a chamada Operação Muralha, uma ofensiva militar israelense que visa ocupar e destruir os focos

da resistência palestina em Ramallah, Nablus, Belém, Qalqilya, Tulkarem, Hebrón, Jericó e Jenin.

Mas o alvo principal é, justamente, o campo de refugiados próximo desta última cidade.

De 3 a 10 de abril, mil homens da infantaria apoiados por tanques, blindados, helicópteros

de combate e bulldozers enfrentam cerca de 200 palestinos das milícias de Hamás, Jihad e das

Brigadas de Al-Aqsa armados de fuzis e explosivos.47

A resistência dos guerrilheiros surpreende os

soldados que só conseguem vencê-la após oito dias de pesados ataques nos quais morrem 23

militares israelenses e outros 143 são feridos.

Terminados os combates, o exército de Tel Aviv impede o acesso de jornalistas e voluntários

de organizações humanitárias ao que resta do campo de refugiados para que seus homens limpem a

área. Uma vez liberada a entrada, a impressão comum é a de que ocorreu um verdadeiro massacre.

O enviado especial da ONU, Terje Roed Larsen, não hesita em dizer que Jenin, onde viviam

cerca de 13 mil pessoas, foi cenário de horrores que superam o entendimento humano e qualifica de

moralmente repugnante o fato de Israel impedir a entrada da ajuda humanitária após os combates.

Por sua vez, o diretor da agência das Nações Unidas para os refugiados, Peter Hansen, assim

descreve o que está diante de seus olhos: É um inferno; e não é exagero chamar isso de massacre,

termo que até agora evitei utilizar. Mas agora que vi a realidade com meus próprios olhos não

posso chamá-la de outra maneira. Vi pessoas, cujas casas haviam sido destruída, em estado de

total comoção. Vi famílias tratando de desenterrar gente debaixo de montanhas de escombros,

pedaço por pedaço. Um especialista em terremotos que me acompanhava disse que há muito tempo

não via uma destruição em massa desta magnitude.48

De acordo com o chefe do Estado Maior de Israel, Shaul Mofaz, a Operação Muralha em

toda a Cisjordânia teria provocado a morte de 250 palestinos e o ferimento de outros mil e 500.

Mas, pelas estimativas do prefeito de Jenin, Walid Abu Mues, só os mortos no campo de refugiados

e na área por ele administrada seriam cerca de mil.

Nas demais cidades ocupadas pelo exército o grau de destruição é menor, mas, além dos

prejuízos às casas e aos prédios públicos, é inutilizada toda a infra-estrutura. Além disso, jornalistas

47

Bulldozers: máquinas de 60 toneladas importadas dos EUA para a destruição rápida das construções em alvenaria. 48

Agências AFP e DPA, Jenin fue escenario de “horrores que superan el entendimiento humano”: enviado de la ONU,

em La jornada, edição eletrônica.

Imagem do campo de refugiados de Jenin após a saída do exército israelense.

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do mundo inteiro recolhem denúncias de soldados que usam palestinos como escudos humanos,

atiram em civis desarmados, ordenam a destruição de casas mesmo sabendo que famílias inteiras

ainda se encontram em seu interior e impedem que ambulâncias atendam os feridos”.

- “Mas isso é revoltante...”, murmuro ao apoiar a testa na mão esquerda, enquanto a direita aguarda

impaciente a continuidade do relato.

Nádia balança a cabeça em sinal de afirmação e, com a mesma voz triste e compenetrada,

continua: “Diante dos acontecimentos, em várias cidades européias se registram manifestações

contra a ofensiva israelense nos território da Autoridade Palestina. Em Paris, 50 mil pessoas

realizam um ato de solidariedade onde Bush e Sharon são chamados de assassinos. Passeatas e

protestos concentram um bom número de manifestantes também na Bélgica, Itália, Espanha e

Alemanha.

No dia 15 de abril de 2002, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, reunida

em Genebra, condena Israel por assassinato em massa de civis palestinos e reconhece o direito

legítimo das populações da Cisjordânia e da Faixa de Gaza de resistir à ocupação judaica. A

resolução - aprovada com 40 votos a favor, 5 contra e 7 abstenções – divide as nações da União

Européia que, até então, haviam mantido uma postura unânime.

No mundo árabe, além das retóricas declarações de seus governantes, as manifestações

populares em apoio aos palestinos são duramente controladas pelos aparatos de segurança. Diante

do perigo representado pelos protestos, as elites, encurraladas pelos Estados Unidos, pressionam

Arafat para que este acabe com a Intifada e tome medidas duras contra os grupos radicais. O

objetivo de Washington é levar a ANP e os governos árabes a aceitarem sem reservas as suas

condições para a solução do conflito árabe-israelense.

Diante da consternação provocada pelas imagens da destruição, o Conselho de Segurança da

ONU aprova, em 19 de abril, o envio de uma missão de observadores para o campo de refugiados

de Jenin. Mas, devido às pressões dos Estados Unidos e de Israel, a resolução não prevê que se

investigue a acusação de que o exército judaico teria se excedido no uso da força durante as

operações militares.

Sabendo que Terje Roed Larsen e Peter Hansen integrariam a comissão das Nações Unidas,

Tel Aviv deixa claro que seus membros deveriam ser escolhidos por sua capacidade técnica e não

por sua inclinação política. Em seguida, veta explicitamente a participação dos dois enviados por

eles terem proferido palavras consideradas uma incitação contra o Estado judaico.

No mesmo dia, o Secretário Geral da ONU, Kofi Annan, declara publicamente que Roed

Larsen, em seus muitos anos trabalhando para resolver o conflito palestino-israelense, sempre

atuou com objetividade, profissionalismo e compaixão e reitera sua total confiança no enviado. 49

Mas, no dia 2 de maio, pressionado por vários países, Annan dispensa a missão de investigação”.

- “Se o Secretário Geral da ONU reage assim, então os Estados Unidos devem estar aprontando pra

valer...”.

- “Na verdade, os EUA mantêm a ambigüidade típica das potências imperialistas – retruca Nádia ao

corrigir com a muleta levantada as generalizações implícitas na minha fala. Para Washington, trata-

se de defender Israel sem perder toda a sua credibilidade junto ao mundo árabe”.

- “Mas, desse jeito, é como tentar pôr o pé em dois sapatos?!?”, questiono intrigado.

- “Não! – responde firme a coruja enquanto senta e cruza as patas para relaxar e recuperar as

energias. Se assim fosse, Bush estaria tentando o impossível quando, na verdade, o seu governo

trabalha não para resolver, mas sim para abafar as contradições que tendem a se tornar explosivas

para as próprias elites da península árabe. Em outras palavras, mais do que tentar enfiar o pé em

dois sapatos, se trata de garantir que ambos fiquem presos sob as mesmas botas.

Neste sentido, em 4 de abril de 2002, mal o ataque israelense às cidades palestinas acaba de

dar os primeiros passos, Jorge Bush acusa Arafat de trair as esperanças do seu povo porque, apesar

49

Agências DPA e AFP, Tel Aviv declara a Roed Larsen persona non grata: objeta que indague la ofensiva en Jenin,

em La Jornada, edição eletrônica.

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de renunciar ao terrorismo como instrumento de luta, ele não se opõe energicamente aos grupos

armados da resistência palestina. Para o Presidente norte-americano, esta omissão é a causa da ação

do exército israelense que se vê obrigado a reocupar as áreas sob controle da ANP justamente para

atacar e destruir as células terroristas. Mas, mesmo reconhecendo o direito de Israel a se defender,

Bush deixa claro que, para criar as bases de uma paz futura, Tel Aviv deve deter as incursões nas

áreas controladas pelos palestinos e se retirar das que suas tropas acabam de invadir.

Cinco dias depois, o representante do governo estadunidense no Conselho de Segurança da

ONU diz que seu país está cansado de Resoluções contra Israel e está disposto a lançar mão do

direito de veto caso se apresentem propostas neste sentido.

Em 21 de abril, o Sub-Secretário de Estado para o Oriente Médio, William J. Burns, visita o

campo de refugiados de Jenin num momento em que sua destruição pelas forças de Israel já é tema

de duras críticas internacionais. Ao chamar a situação dos sobreviventes de terrível tragédia

humana, Burns reconhece que o que aconteceu em Jenin causou enormes sofrimentos a milhares de

civis inocentes.50

Três dias depois, ao se referir à sua visita, o Secretário de Estado norte-americano,

Colin Powell, diz que este não constatou nenhuma evidência de que o exército israelense tenha

promovido um massacre no campo de refugiados de Jenin.

Em 29 de abril, Washington leva Israel a levantar o cerco militar ao quartel-general de

Arafat em Ramallah, na Cisjordânia, e pressiona Tel Aviv a viabilizar uma saída que proporcione a

desocupação da Igreja da Natividade, em Belém, na qual continuam refugiados dezenas de

palestinos acusados de integrarem grupos terroristas.

No início de maio de 2002, os Estados Unidos forçam Arafat a aceitar uma Conferência

Internacional sobre o Oriente Médio. Encurralado, o Presidente da ANP adere à idéia, mas o

problema é convencer Israel a se encontrar com ele, já que Ariel Sharon insiste na substituição do

líder palestino como condição para dar início às negociações”.

- “Agora só falta você me dizer que os israelenses apóiam as incursões das tropas judaicas na

Cisjordânia...”.

- “Infelizmente, sim. Revoltados pelos ataques suicidas, 86% dos entrevistados pela BBC dizem

concordar com a Operação Muralha. Além disso, mais da metade dos pesquisados se opõe à

retirada de Israel nas linhas de fronteira anteriores a 1967 e 46% deles acreditam que a solução do

conflito pode vir pela via militar.

O apoio maciço à política de Ariel Sharon se mantém nas semanas seguintes graças a uma

intensa campanha de contra-informação na mídia nacional e internacional. Enquanto imagens e

relatos falam em massacre, ministros e porta-vozes se desdobram para declarar que tudo não passa

de acusações sem fundamento e de mentiras cuja origem deve ser procurada no anti-semitismo que

reina em vários países. Ao reafirmar o direito do Estado judaico se defender dos ataques terroristas,

chega-se até mesmo a afirmar que a responsabilidade pela tragédia é de Arafat e da liderança

palestina que fizeram do campo de refugiados um centro de terror e de ataques suicidas”.51

Mas o perdurar da Intifada dá origem a três elementos que desgastam a imagem do gabinete

judaico junto ao povo. O primeiro deles é a recessão que devasta a economia do país já que os

atentados suicidas e os demais enfrentamentos com a resistência palestina afastam os turistas,

desencorajam os investimentos e levam ao fechamento de centenas de pequenas e médias empresas.

O segundo diz respeito aos gastos militares. Ao destinar cerca de 6 bilhões de dólares à

segurança, do início da Intifada de Al-Aqsa a abril de 2002, o governo se vê obrigado a adotar

medidas impopulares para controlar o déficit que, há meses vem marcando presença nas contas

públicas. No dia 22 de maio, o parlamento judaico aprova um pacote que prevê: a redução de 2

bilhões e 700 milhões de dólares nos gastos governamentais, o aumento dos impostos de 17 a 18%,

50

Em Serge Schmemann, Autoridade dos EUA em Jenin vê uma “terrível tragédia humana”, em New York Times,

edição eletrônica em português. 51

A declaração acima é do conselheiro de política externa de Ariel Sharon, Danny Ayalon, publicada em Serge

Shmemann, texto citado.

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a elevação dos preços dos combustíveis e a redução média de 24% da ajuda do governo às famílias

numerosas.

O último diz respeito ao clima de insegurança que persiste na sociedade judaica. Após um

período de calmaria em função da Operação Muralha, a morte de 16 pessoas provocada por um

homem-bomba nas proximidades de Tel Aviv, no início de maio, revela a ineficácia das ações

repressivas do exército. Longe de sufocar o descontentamento palestino, estas acabam alimentando-

o dando-lhe motivos suficientes para retomar os ataques suicidas”.

- “Se este é o panorama do lado israelense, quais as medidas que a Autoridade Palestina está

tomando para sair da saia-justa em que foi colocada pelo desenrolar dos acontecimentos?”

- “Não é difícil imaginar que, neste período, Arafat enfrenta uma crescente pressão por mudanças.

De um lado, Sharon e Bush querem que a Autoridade Palestina submeta sua administração a

reformas estruturais profundas e convoque as eleições para a presidência da ANP. Do outro, pesam

sobre Arafat sérias acusações de corrupção, ineficiência e autoritarismo levadas adiante pelos

próprios grupos da resistência.

De início, o Presidente da ANP sugere a possibilidade de convocar as eleições, mas suas

falas são recebidas com ceticismo pelas forças que a ele se opõem no interior do Conselho Nacional

Palestino, para as quais as mudanças que estão sendo viabilizadas não ameaçam a sua permanência

no poder e o controle real da máquina administrativa da Autoridade Palestina.

Entre o final de maio e o início de junho de 2002, Arafat assina a chamada Lei Básica. Trata-

se da Constituição da ANP que, há 5 anos, aguardava a aprovação do seu Presidente. Além de

definir seus poderes como líder da Autoridade Palestina e descrever direitos, liberdades e deveres

dos cidadãos, o documento cria o cargo de Primeiro Ministro, redefine o aparato de segurança e

reestrutura os ministérios da ANP”.

- “Nádia, o que não entendo é por que há tanta ingerência de Israel e EUA num assunto que diz

respeito aos palestinos?!?”

De olhos fechados e com a asa apontada em minha direção, a coruja assume a pose da

investigadora que, somando e analisando evidências, traz à luz o que os discursos e as intervenções

oficiais tratam de ocultar: “Simples, querido secretário! Ao tentar isolar e reduzir o poder de

representação de Arafat, Sharon quer uma reforma da ANP que eleve a tensão entre as forças da

resistência palestina. De um lado, isso iria desgastar as possibilidades reais da ANP se transformar

num Estado independente e, de outro, criaria as condições que permitem aprofundar e justificar a

política de ocupação e colonização existentes.

A este projeto se une o governo Bush para o qual as reformas no interior da ANP devem

redesenhar a sociedade palestina e, sobretudo, as relações entre a ANP e os grupos radicais. Para

Washington e Tel Aviv, trata-se de transformar a ANP numa cópia dos regimes árabes (que falam,

não fazem e reprimem violentamente suas oposições internas) como condição necessária para

remodelar o mapa do Oriente Médio.

Sabendo disso, enquanto Arafat tenta acomodar as coisas para evitar uma ulterior situação de

desgaste, Hamás, Jihad, as Brigadas de Al-Aqsa e outros grupos menores não dão trégua a Israel e,

longe de atender aos apelos do Presidente da Autoridade Palestina de suspender os ataques suicidas,

decidem manter viva sua ação em território israelense.

Diante da impossibilidade de detê-los e de elevar a segurança da população, Tel Aviv aprova

a construção imediata de um muro de até 8 metros de altura e 110 quilômetros de cumprimento

entre Salem e Qalqilya para separar três regiões autônomas palestinas do território israelense. Ao

custo de um milhão de dólares por quilômetro, o projeto recomendado pelo exército, visa fechar

parte da divisa entre Israel e a Cisjordânia no esforço inútil de controlar parte das rotas de acesso a

Israel usadas para a realização dos ataques terroristas”.

- “Inútil... porque?”.

- “De um lado, porque há várias outras possibilidades de contornar este obstáculo e, além do mais,

os assentamentos judaicos na Cisjordânia não podem se beneficiar dele em termos de segurança. Do

outro, porque a construção desta longa serpente de concreto, destinada a se prolongar pela antiga

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linha de fronteira entre Israel e a própria Cisjordânia, vai agravar ainda mais as condições de vida e,

de conseqüência, a revolta dos palestinos”, responde Nádia enquanto se levanta e vai se

aproximando das folhas do relato.

- “Como assim?”, pergunto intrigado e curioso.

- “Acontece que este trecho do muro é construído em mil 150 hectares de terras palestinas

expropriadas por ordem militar israelense e das quais são arrancadas dezenas de milhares de árvores

frutíferas e de oliveiras que constituem uma importante fonte de renda para os moradores da região.

Se isso não bastasse, em vários lugares a barreira de concreto vai separar as roças e as cidades

palestinas das principais fontes de água e dos mercados, elevando assim a insegurança quanto à

manutenção das já precárias condições de vida.

Some este pequeno detalhe aos resultados da pesquisa da Agência Estadunidense para o

Desenvolvimento Internacional (US AID) pela qual 30% das crianças palestinas menores de 5 anos

sofre de desnutrição crônica e 21% de desnutrição aguda (números que, antes da Intifada, eram,

respectivamente, de 7,5% e 2,5%). Acrescente o fato de que, com a ocupação e o fechamento de

vários territórios por parte do exército judaico, os trabalhadores da Cisjordânia e da Faixa de Gaza

são impedidos de ir ao trabalho, elevando para 44,7% o índice de desemprego e para 62% a fatia da

população que vive abaixo da linha de pobreza.52

Tempere o todo com as eliminações seletivas, os

ataques aéreos, os seguidos toques de recolher, o uso de adolescentes como escudos humanos, as

prisões em massa, o assassinato de civis palestinos, a destruição das casas dos militantes envolvidos

nos ataques contra alvos israelenses e verá que, a contas feitas, não faltam razões para que os

palestinos continuem alimentando a sua luta contra a ocupação militar dos seus territórios”.

- “Enquanto isso, o governo Sharon deve estar nadando de braçadas...”, comento irônico ao cortar a

fala da coruja.

Nádia permanece silenciosa. Após alguns instantes, pisca os olhos e com as asas cruzadas

diante do peito dispara um “É impressionante a capacidade que vocês humanos têm de enfiar o pé

na jaca!”, que confunde meus pensamentos. E, ao ver que da boca semi-aberta não sai outra coisa a

não ser uma expressão de estupor, continua: “Vimos há pouco que os problemas da economia

preocupam também os israelenses, causam descontentamento entre a população e alimentam as

contradições presentes na política judaica. Um primeiro sinal de que Sharon está navegando em

águas agitadas vem do partido ultra-ortodoxo Shas que, rechaçando os cortes do orçamento

promovidos pelo Parlamento, leva Sharon a destituir os 4 ministros deste grupo que integravam o

seu gabinete.

Em 29 de outubro de 2002, é o Partido Trabalhista que ameaça sair do governo caso o

Primeiro Ministro se recuse a reduzir a verba de 147 milhões de dólares destinada à ampliação dos

assentamentos judaicos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Mas, sabendo que esta medida minaria

suas bases eleitorais entre os colonos dos territórios ocupados, Sharon se declara disposto a

convocar novas eleições e, em poucos dias, as tensões no interior do governo tornam insustentável a

manutenção do seu gabinete.

Mas isso não é motivo de preocupação para o Likud. Ao contrário, sabendo que as duras

respostas do exército de Israel aos ataques da Intifada levam água ao moinho de sua candidatura,

Sharon não titubeia em acelerar a dissolução do governo. Novas eleições são marcadas para 28 de

janeiro de 2003.

Nas semanas que precedem o pleito, o general Amram Mitzna se afirma como nova

liderança do Partido Trabalhista. Se eleito, o candidato a Primeiro Ministro diz que vai retirar todos

os assentamentos judaicos da Faixa de Gaza e parte dos que estão na Cisjordânia, retomar as

negociações com os palestinos aceitando que Arafat seja seu interlocutor e, caso elas não tragam a

paz esperada, se compromete a construir uma barreira de segurança ao longo de toda a fronteira

52

Dados publicados em Justin Huggler, Peligro de crisis humanitária en Palestina por la reocupación israelí de las

ciudades cisjordanianas, em La Jornada, edição eletrônica. O índice de desemprego é do Centro Palestino de

Estatística e foi divulgado em Palestinos Desempregados, Gazeta Mercantil, 23/08/2002.

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entre Israel e os territórios ocupados. Considerado um representante da ala esquerda do seu partido,

Mitzna enfrenta sérias dificuldades não só para batalhar o voto israelense, como também para unir

os trabalhistas, atingidos por uma profunda crise de identidade e pela queda nos índices de

popularidade.

O período pré-eleitoral é marcado pelo endurecimento da repressão nos territórios ocupados,

tido como a melhor propaganda que o Likud poderia promover para demonstrar a seriedade do seu

compromisso com a segurança do Estado judaico.

Sobre este mesmo tema, as expressões dos partidos da direita radical ganham tons ainda

mais acentuados. O Heirut (Liberdade), liderado por Michael Kleiner, espalha cartazes nos quais

estão impressas as marcas vermelho-sangue deixadas por duas mãos e os dizeres: Ou nós, ou eles.

Menos radical nas expressões verbais, o Ihud Leumi (União Nacional) defende que a terra

de Israel pertence exclusivamente ao povo judeu e apóia a transferência voluntária dos palestinos

para os países árabes. Para os intelectuais judaicos como o historiador Herzl Shubert, esta expressão

não passa de um sinônimo de expulsão forçada, já que nenhum palestino quer abandonar a sua

terra voluntariamente e a verdadeira intenção da extrema direita é tornar a vida dos palestinos tão

insuportável a ponto deles quererem se mudar voluntariamente para outro país.

Por sua vez, Avi Lerner, porta-voz do Mafdal (Partido Nacional Religioso), considera

moralmente incorreta a idéia de transferir os palestinos para os países árabes, mas, como o Ihud

Leumi, apóia a expulsão de Yasser Arafat e se declara contrário à criação de um Estado palestino.53

As eleições, que registram a abstenção de 31% do eleitorado, vêem o Likud passar de 19

para 37 deputados, enquanto os trabalhistas reduzem de 25 para 19 o número das suas vagas no

Parlamento. Diante da recusa destes últimos de compor um governo de coalizão, Sharon garante a

maioria aliando-se ao Shinui (partido leigo de centro) e aos grupos de direita e extrema direita.

Desde o início, o Primeiro Ministro deixa claro que o novo gabinete terá como base os

mesmos princípios que guiaram o seu mandato anterior e deverá lutar por uma vitória definitiva

sobre o terrorismo. As diferenças diante da possível criação de um Estado palestino são resolvidas

graças a uma posição conciliatória pela qual os partidos da coalizão governamental se

comprometem a discutir o assunto e a tomar uma decisão a esse respeito caso uma solução política

de longo prazo inclua esta questão. De imediato, porém, o novo governo judaico reafirma a

necessidade de mudar o grupo dirigente da Autoridade Palestina e o fim dos ataques terroristas

como condição para a retomada das negociações.

Ainda assim, para que ninguém duvide de que Israel será duro com os líderes da Intifada, no

dia 17 de fevereiro de 2003, o exército judaico assassina Riyad Abu Zeid, membro importante do

grupo dirigente de Hamás, e, quinze dias depois, o Ministro da Defesa de Tel Aviv, Shaul Mofaz,

declara que as forças armadas vão intensificar a pressão sobre as organizações palestinas. Em 8 de

março, mais uma confirmação de que estas promessas serão cumpridas: o exército usa mísseis

lançados de helicópteros para matar 4 militantes de Hamás e, entre eles, o chefe dos serviços de

segurança do grupo, Ibrahim Al Makadma.

Seis dias depois, a Suprema Corte de Israel coloca a chancela legal às ações das forças

armadas rejeitando o recurso impetrado pela organização judaica Médicos pelos Direitos Humanos

que pede a proibição do uso das bombas de fragmentação nos territórios palestinos. Estes artefatos,

proibidos pela Convenção de Genebra, contêm de 10 a 14 mil fragmentos metálicos de 4

centímetros que, após a detonação, atingem um raio de 85 metros. Seu poder de matar e ferir

pessoas que se encontram nas proximidades dos locais atingidos é ainda mais devastador quando se

trata de regiões densamente povoadas. Em outras palavras, o próprio Poder Judiciário israelense

coloca-se acima da legislação internacional e, ao julgar que as bombas de fragmentação são

indispensáveis na luta contra o terrorismo, legaliza o que os palestinos já conhecem há muito

tempo: para vencer sua resistência não há exclusão de golpes”.

53

Dados publicados em Guila Flint, Extrema direita israelense quer saída voluntária dos palestinos, página eletrônica

da BBC em português.

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- “Pelo visto, todas estas investidas vão apertar ainda mais o cerco ao redor de Arafat?”, pergunto ao

comentar o óbvio desfecho desta situação.

- “De fato, é isso que acaba acontecendo. Diante das pressões cada vez mais fortes vindas dos

governos de Washington e Tel Aviv, o Presidente da ANP sanciona as medidas constitucionais que

criam o cargo de Primeiro Ministro e reduzem os seus poderes. Mahmud Abbas, conhecido também

como Abu Mazen, é a pessoa designada para ocupar o novo ministério e, de conseqüência, para

restabelecer o diálogo com Israel. Mas Abbas - um dirigente da OLP que não conta com o apoio de

grupos organizados da resistência palestina, não goza de popularidade junto ao povo e cuja fama é

de ser flexível aos interesses judaicos – condiciona a aceitação do cargo à troca de 13 dos 20

ministros da Autoridade Palestina. Com esta medida, ele não só busca aumentar sua autonomia em

relação a Arafat, como se propõe a trazer para os círculos mais altos do poder pessoas interessadas

na desmilitarização da Intifada, idéia rejeitada pelos grupos fundamentalistas e radicais da

resistência.

Após um longo vaivém de contatos, ameaças e pressões, no dia 29 de abril de 2003, o

Conselho Legislativo Palestino aprova – por 51 votos a favor, 18 contra e 3 abstenções – o nome de

Abbas para o cargo de Primeiro Ministro e grande parte da mudança ministerial por ele exigida.

Empossado, Abbas rechaça imediatamente todas as formas de terrorismo e pede o fim da ocupação

israelense nos territórios da ANP.

Obtido o que queria, Bush se diz pronto para entregar o Mapa do Caminho aos governos

palestino e israelense. Trata-se de um plano de paz elaborado por representantes dos EUA, União

Européia, Rússia e Nações Unidas, e considerado a última tentativa de pacificar os dois povos.

Mas a festa da posse é manchada por acontecimentos que reafirmam ao Primeiro Ministro da

ANP a certeza de que não terá vida fácil. Pouco antes do Conselho Legislativo Palestino abrir a

sessão que o empossaria, o exército judaico lança duas operações de assassinato seletivo. Na

primeira, perdem a vida dois membros das Brigadas de Al-Aqsa e, pouco depois, helicópteros

israelenses disparam seus mísseis contra o carro no qual viaja Nidal Salama, responsável pelas

Brigadas Abu Ali Mustafá, braço militar da Frente Popular de Libertação da Palestina no sul da

Faixa de Gaza. À noite, outros dois palestinos são mortos ao tentar entrar numa área de colonização

judaica e, na madrugada do dia 30 de abril, um atentado suicida num bar próximo à Embaixada dos

Estados Unidos, em Tel Aviv, deixa 4 mortos e cerca de 50 feridos.

Desde o início, o mandato de Abbas experimenta o aperto pelo qual passa quem é colocado

entre o prego e o martelo por forças sobre as quais não tem condições de exercer um controle direto.

Para obter o apoio dos Estados Unidos e a desocupação dos territórios da ANP, o Primeiro Ministro

palestino é pressionado a combater duramente os grupos terroristas. Mas, por outro lado, se for levar

isso a sério, além de atrair a rejeição dos palestinos, ele corre o risco de dar origem a uma

verdadeira guerra civil capaz de fazer implodir o que até agora foi construído”.

- “Se não estiver errado, você falou de um novo plano de paz, um tal de Mapa do Caminho. Daria

para você delinear o seu conteúdo?”, peço impulsionado pelo desejo de conhecer as perspectivas

que ele traz em seu bojo.

Nádia suspira. Em seguida, senta e se acomoda com a atitude de quem se prepara para uma

longa análise. Pronta, a coruja usa o graveto-muleta para espetar o ar à sua frente e com voz solene

declara que “Desde as primeiras linhas do texto, o Mapa do Caminho localiza o aspecto que, no

entender de seus autores, abre perspectivas para a paz: Chegar-se-á a uma solução do conflito

palestino-israelense somente através do fim da violência e do terrorismo, quando o povo palestino

tiver uma direção que aja com decisão contra o terror e tenha a vontade política de construir uma

democracia ativa alicerçada na tolerância e na liberdade; através da disposição de Israel a fazer o

necessário para que venha a se estabelecer um Estado palestino democrático; e com a clara e

inequívoca aceitação por ambas as partes da meta de um acordo negociado.54

54

As citações do Mapa do Caminho, e as demais referências ao mesmo, têm como base o documento Hoja de Ruta

para una solución permanente al conflito palestino-israeli basada en dos Estados divulgada através da internet pelo

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O percurso que leva a este objetivo percorre três etapas. A primeira prevê o fim do terror e

da violência, a normalização da vida palestina e a construção de suas instituições. Neste sentido,

cabe à ANP empreender esforços para prender, parar e reprimir indivíduos e grupos que realizem e

planejem ataques violentos contra israelenses em qualquer lugar. Para isso, faz-se necessário

reestruturar o aparato de segurança da Autoridade Palestina dando-lhe condições que permitam

enfrentar todos aqueles que têm vínculos com o terror, desmantelando a capacidade de realizar

ações terroristas e suas infra-estruturas.

Por sua vez, Israel não deve levar adiante nenhuma ação que prejudique a confiança,

incluídas as deportações e os ataques contra os civis, os confiscos e/ou as demolições de casas e

propriedades palestinas, como medida punitiva ou para favorecer as construções israelenses, a

destruição das instituições palestinas e de suas infra-estruturas. Ao registrar avanços em matéria de

segurança, as Forças de Defesa de Israel se retiram progressivamente das áreas ocupadas a partir

de 28 de setembro de 2000 e as partes restabelecem o status quo existente antes de 28 de setembro

de 2000. A segurança das áreas desocupadas pelo exército judaico deve ser entregue à polícia

palestina sendo que as duas instituições são chamadas a cooperar para garantir o fim da violência.

Enquanto isso, os representantes de EUA, Rússia, União Européia e Nações Unidas se

encarregam de supervisionar informalmente o cumprimento do plano e vão consultar palestinos e

israelenses para criar um mecanismo formal de supervisão e regras que orientem a ação do mesmo.

Os países árabes devem cortar o financiamento público ou privado e todas as demais formas de

apoio aos grupos que respaldam e mantêm vínculos com a violência e o terror. Eventuais doações e

verbas orçamentárias destinadas aos palestinos devem ser depositadas somente na conta do

Ministério das Finanças da ANP.

Ao mesmo tempo, se deve criar em território palestino um comitê destinado a elaborar uma

nova constituição. Esta deve ter como base uma forte democracia parlamentar, um governo

comandado por um Primeiro Ministro e deve ser comentada e debatida publicamente. A construção

das instituições palestinas deve contar com ministros que tenham poderes efetivos para levar adiante

as reformas que se fazem necessárias, garantir a autonomia dos Poderes Legislativo, Executivo e

Judiciário, e celebrar eleições livres.

Além de facilitar a viabilização deste processo, Israel deve implementar medidas que

melhorem as condições de vida dos palestinos levantando os toques de recolher, reduzindo as

restrições à movimentação de pessoas e mercadorias, permitindo o acesso total, seguro e sem

obstáculos aos representantes de instituições internacionais e de caráter humanitário. No que diz

respeito aos assentamentos, Tel Aviv deve desmantelar imediatamente os que foram construídos a

partir de março de 2001 e se compromete a congelar todas as atividades dos demais, incluindo o seu

crescimento natural.

Na segunda fase, os esforços se concentram na criação de um Estado palestino independente

com fronteiras provisórias e atributos de soberania, baseado na nova constituição, como etapa

intermediária rumo a um ajuste do seu estatuto permanente. Ao longo deste processo, EUA, União

Européia, Rússia e ONU realizam gestões para convocar uma conferência internacional cujo

objetivo é trazer paz ao Oriente Médio. Por isso, os países árabes são chamados a restabelecerem os

vínculos que tinham com Israel antes da Intifada de Al-Aqsa, a renovar os compromissos quanto à

utilização dos recursos hídricos, meio-ambiente, desenvolvimento econômico, refugiados, controle

dos armamentos e, claro, a colaborar na criação do Estado palestino.

Estes passos são acompanhados pela intensificação da supervisão internacional das nações

que formularam o Mapa do Caminho às quais cabe dar por encerrada esta etapa promovendo o

reconhecimento internacional do Estado palestino e sua possível condição de membro das Nações

Unidas.

Departamento de Estado dos Estados Unidos, em 14 de maio de 2003 e traduzido em espanhol na página eletrônica de

Rebellión em 06 de julho de 2003.

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A última fase, a ser completada em 2005, prevê o início formal das negociações destinadas a

chegar a um acordo permanente sobre a questão das fronteiras do Estado palestino, do status de

Jerusalém, dos refugiados e dos assentamentos judaicos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, além de

fazer avançar as relações entre Israel, Líbano e Síria. Estas teriam como base as Resoluções 242,

338 e 1397 do Conselho de Segurança da ONU e seu ponto final seria colocado com a total

normalização das relações entre Israel e os países árabes”.

- “Bom, no papel, está tudo muito bonito, mas quais são as chances deste plano se tornar

realidade?”, pergunto desconfiado.

Nádia franze a testa, abre as asas e num profundo suspiro expressa um comentário que soa

como uma sentença: “Pelo que posso ver, seu objetivo é propiciar um momento de calmaria antes

da próxima tempestade”.

-“Você não está falando sério... Está?”, pergunto assustado.

-“Infelizmente, sim. Acontece que, há mais de 60 anos, o Oriente Médio é tido como uma área de

extrema importância para os interesses estadunidenses em função das abundantes jazidas de

petróleo e gás natural presentes em seu subsolo. Ainda que a penetração norte-americana na região

tenha conseguido atrelar as elites dominantes ao armamento, à presença de bases militares

estadunidenses em seu território ou à ajuda financeira de Washington, a ausência de uma solução

definitiva para a questão palestina acaba sendo uma verdadeira pedra no sapato que machuca,

incomoda e dificulta o caminhar.

O fato dos palestinos constituírem um forte elemento da identidade árabe tem sido suficiente

para que os protestos em apoio à sua causa e a própria resistência se tornem elementos que fazem

tremer as frágeis oligarquias que governam as nações daquela região. Se isso não bastasse, a

ocupação do Iraque pelas tropas norte-americanas e o projeto do governo Bush de redesenhar o

mapa do Oriente Médio com a força dos seus exércitos acirram as tensões no interior das nações

árabes e projetam um futuro cada vez mais incerto.

A pressa com a qual os EUA pretendem viabilizar o Mapa do Caminho não diz respeito à

urgência de resolver as contradições de um passado de injustiças e agressões, mas sim à necessidade

de criar as condições para a continuidade dos próprios planos. Ao que tudo indica, a postura

estadunidense procura fortalecer a frágil aparência pela qual Washington usa a força para a paz e

não para a guerra, ao mesmo tempo em que o fracasso do plano de paz lhe permite legitimar

intervenções bem mais pesadas tanto contra os palestinos, como em relação aos países que apóiam

sua resistência.

- “Você está insinuando que o Mapa do Caminho não passa de uma farsa?”.

- “Exatamente!”, responde a coruja com voz calma e firme.

- “Mas será que não há mesmo nenhuma chance para a paz?”, teimo ao não abrir mão de acreditar

que o novo plano pode trazer algum avanço nas relações entre árabes e israelenses.

Pressionada pela insistência, a ave se levanta e com a muleta apontada em direção à noite

que já cobre a cidade, limpa a garganta para deixar ainda mais claras as razões que motivam sua

desconfiança: “O que você não consegue entender é que Israel cumpre o papel de cunha dos Estados

Unidos no mundo árabe. Ao agir desta forma, o governo de Tel Aviv garante seus interesses, mas o

ritmo de penetração da cunha e as batidas que a movimentam estão subordinadas à geopolítica

norte-americana.

Você deve estar lembrado de que foi através do conflito árabe-israelense que os EUA

suplantaram o controle colonial da França e da Grã Bretanha, minaram as relações da antiga União

Soviética com os países da região e posicionaram seus efetivos militares até mesmo nos territórios

considerados sagrados pelos muçulmanos.

Em troca, de 1967 a 2002, a ajuda econômica e militar declarada do Tio Sam para Israel,

reajustada pela inflação norte-americana, já soma cerca de 146 bilhões de dólares. Isso sem contar

os empréstimos perdoados pelo Congresso dos Estados Unidos, os créditos comerciais, os repasses

das organizações judaicas estadunidenses, os financiamentos para o desenvolvimento de armas

como os mísseis Arrow, os tanques Mercava e o avião militar Lavi Fighter. Graças a todo este

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apoio, o Estado judaico possui hoje um sistema de mísseis e antimísseis de última geração, 236

aviões de combate F-16 (a maior frota de aeronaves deste tipo fora dos Estados Unidos), 50 F-4E

Phanton, 9 F-15 Eagle, 42 helicópteros Apache, 57 Cobra Attack, 38 CH-53D e 25 Back Hawk,

além de um arsenal nuclear que os especialistas avaliam não ser inferior às 200 ogivas.55

Diante de tamanho poder de fogo, não é de estranhar que nenhum país árabe declare guerra a

Israel e que o dedo no gatilho garanta a parte do leão no que diz respeito aos recursos essenciais à

sua sobrevivência.

Você pode não saber, mas, por exemplo, em 9 de setembro de 2002, Israel chega a ameaçar

uma nova intervenção militar no Líbano por suspeitar que o governo de Beirute planeja desviar o

curso do rio Hasbani com o intuito de garantir o abastecimento de água às cidades do sul do país

castigadas por um prolongado período de seca. Como o Hasbani fornece entre 20 e 25% do precioso

líquido que entra no Lago de Tiberíades, principal reservatório de Israel, o governo judaico deixa

claro que não vai hesitar em utilizar suas forças armadas caso o Líbano resolva investir para suprir

às necessidades do seu povo.56

Algo parecido, ainda que mais velado, acontece com a defesa dos assentamentos judaicos

nas colinas de Golã que hoje contam com, aproximadamente, 13 mil colonos. A posse desta região

permite a Israel o acesso anual a cerca de 300 milhões de metros cúbicos de água do rio Jordão.57

Estes recursos seriam preciosos para a própria agricultura da Síria, mas, após a derrota sofrida na

guerra do Yom Kippur, o governo de Damasco sabe que a via militar não lhe é favorável e pouco

pode esperar da diplomática.

Diante deste quadro, não é preciso ter profundos conhecimentos de estratégia militar para

entender que a paz entre Israel e os países vizinhos não vai ser fruto da superação das contradições

que alimentam os enfrentamentos, mas tão-somente da superioridade do poder de fogo judaico.

Mesmo que este não consiga calar os palestinos, a sombra de morte que suas forças armadas

projetam sobre a região mantém os exércitos regulares das nações árabes em seu devido lugar.

- “E quanto às relações entre palestinos e israelenses?”, pergunto sem me dar por vencido.

Ao ouvir a pergunta já esperada, Nádia sorri, pisca os olhos e desenhando círculos no ar diz:

“Se você prestou atenção à descrição que eu fiz do Mapa do Caminho, deve ter percebido que, mais

uma vez, a vítima é colocada no banco dos réus. A peça-chave que ganha destaque em cada fase do

plano de paz é o combate à violência palestina como se a origem do conflito tivesse que ser

procurada na brutalidade dos grupos radicais e não no processo histórico de ocupação/expulsão

levado adiante pelos judeus.

Neste sentido, além de ocultar as verdadeiras causas do conflito, o Mapa do Caminho impõe

a aniquilação da estrutura da resistência palestina como condição para o avanço do processo de paz.

Em troca, pede que os palestinos apostem na boa vontade israelense de, na última fase das

negociações, fazer concessões sobre temas que têm gerado sérios impasses ao longo de mais de

meio século de história: o status de Jerusalém, a questão dos assentamentos judaicos nos territórios

ocupados em 1967 e dos refugiados. Ou seja, antes se exige a desativação da estrutura organizativa

e militar dos grupos mais ativos para, em seguida, esperar que Israel cumpra a sua parte mesmo

sabendo que os palestinos não representam uma ameaça e suas reivindicações podem ser relegadas

ao esquecimento.

Mas isso não é tudo. A primeira etapa do plano de paz demanda também que a ANP

contenha a violência e realize profundas reformas mesmo tendo que lidar com condições bem mais

precárias em relação às que existiam antes da Intifada de Al-Aqsa. Alguns números ajudam a

visualizar o grau de destruição produzida pela ocupação dos seus territórios por parte do exército de

Israel.

55

Dados publicados em William Hartung e Frida Berrigan, Como armo EU a Israel, em La Jornada, edição eletrônica. 56

BBC, Água pode fazer Israel entrar em guerra contra o Líbano, página eletrônica da BBC em português. 57

Marta Tawil, Por qué Síria, em La Jornada, edição eletrônica.

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De 28 de setembro de 2000 a 10 de maio de 2003, 85 mil e 664 hectares de terras palestinas

são confiscados, outros 11 mil e 461 hectares de roças são arrasados, 227 mil 985 árvores frutíferas

são arrancadas, mil 162 casas de palestinos são completamente destruídas, os desabrigados são 40

mil e 415 e são cerca de 220 mil os que não podem mais contar com os empregos que tinham em

solo israelense.58

Isso sem levar em consideração que, ao iniciar a retirada dos seus contingentes, as forças

armadas judaicas ampliam a devastação já existente. É o que acontece, por exemplo, em Bet

Hanoun, norte da Faixa de Gaza, quando, ao sair da cidade, no final de junho de 2003, os soldados

derrubam casas, fábricas, pomares e arrasam roças.59

Some agora o fato de que a maior parte da

infra-estrutura urbana está destruída e não vai ser difícil perceber o tamanho do desafio perante o

qual se encontram os palestinos”.

- “Bom, mas Israel também tem que se comprometer com algumas tarefas...”, comento na tentativa

de entender melhor o outro lado da moeda.

Nádia me olha silenciosa. Em seguida, sem alterar o tom de voz firme e pausado continua:

“Tudo o que Israel tem que fazer é retirar cerca de 60 pequenos assentamentos construídos a partir

de março de 2001, boa parte dos quais ou está desabitada ou não dispõe de áreas com edificações

permanentes. Além de não representar grande coisa, o próprio governo de Tel Aviv classifica estas

colônias como ilegais. A utilização deste termo não é casual. Ao sugerir a legalidade dos demais

assentamentos nos territórios ocupados, Israel já dá a entender que a completa retirada destes

dificilmente será objeto de negociação.

A bem da verdade, Sharon não se dispõe sequer a aceitar o congelamento das colônias já

existentes. No dia 12 de maio de 2003, ao se encontrar com o Secretário de Estado norte-americano,

Colin Powell, o Primeiro Ministro judaico insiste na necessidade de permitir o crescimento natural

dos assentamentos e encerra sua conversa dizendo: Não vamos proibir que o melhor de nossa

juventude construa casas nestas colônias.60

Quanto à questão dos refugiados, as perspectivas não são melhores. Os planos de Israel para

eles são os mesmos que foram formulados por Moshe Dayan, líder do Partido Trabalhista e figura

de destaque na Guerra dos Seis Dias: Não temos solução para eles. Terão que continuar vivendo

como cachorros; quem quiser ir embora pode fazê-lo.61

A postura do governo Sharon difere nas

palavras, mas não nos fatos.

No dia 25 de março de 2003, o gabinete israelense aprova por ampla maioria uma moção que

nega o direito de retorno dos cerca de 3 milhões e 800 mil refugiados palestinos expulsos após a

proclamação do Estado de Israel. Na mesma reunião, a adesão ao Mapa do Caminho recebe 12

votos a favor, 7 contra e 4 abstenções, sendo que o sim ao plano de paz é acompanhado por uma

lista de objeções e reservas que, em seguida, são aceitas pelo governo de Washington. Duas

semanas depois, ao reiterar que nenhum refugiado palestino voltará à sua terra, Sharon diz: Fui

claro no passado e o repeti [durante a reunião] em Acaba; a questão dos refugiados palestinos não

pode ser resolvida em território israelense e acrescenta que os Estados Unidos entendem a ameaça

que estes representam para a existência do Estado judaico”.62

- “Mas, pelo menos, o exército israelense deve pôr fim às suas ações na Cisjordânia e na Faixa de

Gaza?”, insisto na tentativa de fazer com que um fio de esperança atravesse a escura noite da

questão palestina.

58

Dados divulgados pelo relatório do MIFTAH – Palestinian Iniciative for the Promoton of the Global Dialogue and

Democracy, página eletrônica da entidade. 59

Em Sa’id Ghazali, Amargo retorno a la normalidad en Gaza, em La Jornada, edição eletrônica. 60

Agências DPA, Reuters, PL, AFP e Notimex, Arafat, “un fracassado que debe estar fuera de la foto”, sostiene

Powell, em La Jornada, edição eletrônica. 61

A citação da frase de Moshe Dayan foi extraída de Noam Chomsky, La solución es el problema, em La Jornada,

edição eletrônica. 62

Agências DPA, AFP e Reuters, “Concesiones” a palestinos, solo quando Abbas ponga fin a la violência: Sharon, em

La Jornada, edição eletrônica.

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- “Você não tem jeito mesmo...”, comenta Nádia balançando a cabeça. “Eu mesma adoraria poder

dar esta notícia, mas a realidade me impede de fazê-lo. Israel não abre mão de realizar incursões,

novas ocupações militares, execuções seletivas e represálias quando achar que estas medidas se

fazem necessárias para garantir a sua segurança. E os fatos demonstram que Tel Aviv está falando

sério.

Em 21 de junho de 2003, as tropas judaicas assassinam Abdalá Kawasmeh, considerado o

número um de Hamás na Cisjordânia. Três dias depois, unidades do exército israelense realizam

uma operação de busca em Hebrón e prendem 150 palestinos. E, em 3 de julho, Mahmud Shawar,

um dos líderes das Brigadas dos Mártires de Al-Aqsa é morto em Qalqilya, norte da Cisjordânia.

Estas mortes são uma pequena parte dos 768 civis e militares israelenses e dos 2 mil 453

palestinos (dos quais, 2 mil e três são civis) que perderam a vida desde o início da Intifada de Al-

Aqsa até o dia 18 de agosto de 2003 e, com certeza, não contribuem para a redução da tensão e nem

para a manutenção da trégua de três meses decretada pelas organizações radicais e fundamentalistas

palestinas para viabilizar o Mapa do Caminho.63

Na verdade, só ao longo de julho de 2003, as disposições do plano de paz, que integram as

condições da própria trégua, são violadas por Israel em 854 ocasiões. Destas, 299 se referem a

disparos de tanques contra casas e bairros residenciais, 312 a ataques contra estabelecimentos

públicos e privados, 60 a incursões noturnas das tropas judaicas, além da instalação de 46 novos

postos de controle militar, do confisco de 474 hectares de terra de lavoura palestina para favorecer

os colonos judeus e da devastação de outros 351 para a construção do tal muro de proteção.64

Estes dados são mais do que suficientes para mostrar que, apesar de aceitar formalmente o

plano de paz, o gabinete judaico não se preocupa em construir sua efetiva implementação, mas sim

em garantir a continuidade da política de sufocamento da vida palestina. Some isso à recusa de

Sharon de libertar os cerca de 6 mil presos palestinos e verá que a postura de Tel Aviv não passa de

uma provocação que, ao ser respondida com novos ataques suicidas, trabalha para fazer recair sobre

eles o fracasso do plano de paz.

Em outras palavras, o Mapa do Caminho tende apenas a garantir um espaço para o governo

judaico retomar fôlego, recompor suas fileiras, reestruturar suas medidas de segurança, acertar os

ponteiros com a opinião pública israelense, enquanto prepara mais uma etapa de enfrentamentos

rumo à construção do Grande Israel nos territórios da Cisjordânia e da Faixa de Gaza”.

- “Isso significa que, nesta luta, os palestinos não têm a menor chance?!?”, pergunto desconcertado.

- “Discordo! – afirma Nádia olhando para o alto. No máximo, podemos dizer que os embates entre

palestinos e israelenses tendem a ganhar dimensões maiores e cada vez mais imprevisíveis”,

continua a coruja apontando o graveto-muleta em minha direção.

- “Sinceramente, não entendo como você pode afirmar isso depois do relato que acaba de fazer...”.

- “Pois fique sabendo que é praticamente impossível derrotar a resistência de um povo quando sua

identidade coletiva faz com que até as pedras se sintam palestinas e a vontade de construir um novo

amanhecer alimenta uma esperança que, de geração em geração, se materializa numa longa história

de luta.

O quotidiano caminhar destes elementos pode ser vislumbrado até mesmo numa declaração

recolhida pelos repórteres da BBC. Ao encerrar sua entrevista, Shalhla Kaialy, cuja família foi

obrigada a deixar a palestina quando ela tinha 6 anos de idade e há mais de 50 vive num campo de

refugiados nas proximidades de Amã, na Jordânia, diz: Até hoje guardo a chave da minha casa. Só

terei paz quando voltar. Nunca vou desistir disso”.65

63

Dados divulgados pelo relatório do MIFTAH – Palestinian Iniciative for the Promoton of the Global Dialogue and

Democracy, página eletrônica da entidade. 64

Dados divulgados em Maha Abdul Hadi, Palestina: informe sobre 854 violaciones israelíes de la trégua em Julio, em

IOL/Rebellión, página eletrônica. 65

Silvia Salek, Palestinos vêem com desconfiança novo plano de paz, BBC, página eletrônica em português.

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Sorrindo, Nádia termina o relato envolvida pelo silêncio que acompanha suas últimas

palavras. Momentos depois, deixa a muleta na mesa e com um rápido bater de asas apóia o corpo na

janela. Um gesto de despedida e seu vôo atravessa o véu escuro da noite.

Desconheço o seu destino e os lugares por onde passará. Mas, enquanto os olhos procuram

na escuridão o que já não conseguem ver, a muleta deixada nas folhas do relato é o marco visível de

uma passagem que propõe uma tarefa permanente. Com a ponta dirigida para a cidade que dorme, o

pequeno graveto em forma de forquilha reafirma a necessidade de fazer com que um número cada

vez maior de pessoas possa entender os rumos da história para construir um mundo onde haja tudo

para todos.

Por isso, se você acha que a leitura deste livro ajuda a entender os desdobramentos da

Questão Palestina, não o maltrate deixando-o pegar pó na estante da sua casa. Empreste este

exemplar, tire uma cópia ou dê uma de presente a quem pode se interessar pelo seu conteúdo. O

debate das idéias vai ajudar a abrir os olhos de muita gente, a ampliar os horizontes da compreensão

da história e, sobretudo, a não se deixar enganar pelas aparências que, como imagens no espelho,

têm a pretensão de mostrar como parte da realidade o que não passa de um simples reflexo.

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ATUALIZAÇÕES

12. Planos de paz... trilhas de guerra.

Manhã de outono. Nuvens cinzentas tornam ainda mais triste o céu poluído da cidade e uma

garoa fina veste o bairro com seu manto gelado.

Pressionada pela preguiça, a cabeça percorre cada centímetro do travesseiro em busca de

algo que justifique a demora em abandonar o terno calor dos lençóis. De repente, um vento frio

invade o quarto e, instantes depois, os ouvidos detectam o ritmado bater de um graveto que se

confunde com o tiquetaquear do relógio de parede.

Encontrados os óculos, os olhos guiam as pernas no rastro do estranho ruído e, ao

vislumbrarem a silhueta de uma figura conhecida, procuram deter os passos que os separam dela.

De costas, a ave permanece indiferente à aproximação do humano cujo andar vagaroso

expressa a decepção de um encontro indesejado. Antes que os lábios se abram em mornas palavras

de boas-vindas, a coruja vira o corpo e apontando o graveto em forma de forquilha que, um dia, lhe

serviu de muleta, em voz firme, declara:

- “Já passaram, 21 meses, 13 dias, 18 horas, 43 minutos e 17 segundos desde o momento em que

interrompi o meu relato sobre a Questão Palestina. Novos acontecimentos apressaram a minha

volta. Por isso, trate de tirar esse pijama horroroso, lave o rosto com água bem gelada e assuma o

seu lugar de secretário”.

Na tentativa de fazer a língua pegar no tranco, os braços ensaiam gestos que pretendem deter

a investida da ave. Apesar do esforço, os poucos neurônios em atividade só conseguem deixar

escapar um “Mas... são só sete e quinze da manhã...!” que faz Nádia arregalar os olhos e franzir a

testa em sinal de reprovação.

- “Sete e quinze da manhã! - repete a coruja com voz irônica. Sono demais faz o cérebro dos

humanos ficar lerdo a ponto de não conseguir ler as tramas que os poderosos preparam para garantir

seus interesses. A preguiça dos pequenos abre caminhos às artimanhas com as quais os de cima

mandam e desmandam engordando a conta que os de baixo irão pagar!”.

No silêncio que toma conta da sala, as mãos se levantam em sinal de rendição. Mudo, o

secretário satisfaz as exigências do pequeno ser cujo olhar segue de perto cada um de seus

movimentos. Minutos depois, o corpo já está sentado à mesa diante dos instrumentos de trabalho.

Aliviada, Nádia abre um sorriso e encosta a ponta da asa no queixo com ar de quem procura

retomar o fio da meada:

- “Pelo que lembro, o capítulo sobre o Mapa do Caminho se encerra no período em que Mahmoud

Abbas é primeiro-ministro da Autoridade Nacional Palestina (ANP).

Em sua atuação, ele pede a reorganização das forças de segurança, propõe uma nova forma

de enfrentar o conflito com Israel e busca retomar as negociações com o governo de Tel Aviv. Além

das resistências internas, os seus problemas aumentam na medida em que o gabinete liderado por

Ariel Sharon não se dispõe sequer a estabelecer um canal de diálogo, o que enfraquece a posição de

Abbas na ANP.

Além disso, o Estado judaico não mede esforços para dificultar a vida dos palestinos: toques

de recolher, confiscos de terra para a construção do Muro e a expansão dos assentamentos na

Cisjordânia, destruição de roças, pomares, casas, lojas, fábricas, prisões em massa, assassinatos

seletivos de militantes, uso de adolescentes como escudos humanos para proteger as incursões do

seu exército contra eventuais respostas da resistência, represálias, fechamento das passagens de

fronteira, imposição de bloqueios e postos de controle que dificultam os deslocamentos entre os

territórios, humilhações constantes e um progressivo aumento dos assassinatos de crianças.

Sem condições de se manter no cargo, Mahmoud Abbas pede demissão no dia 06 de

setembro de 2003 e é substituído por Ahmad Qorei, presidente do Conselho Legislativo Palestino e

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um dos principais negociadores dos Acordos de Oslo. Aliado de Yasser Arafat, de linha moderada e

com fácil acesso aos grupos da resistência, o novo primeiro-ministro tenta restabelecer o cessar-fogo

junto às forças palestinas e abrir canais de diálogo com o governo Sharon. Seus esforços, porém,

revelam-se inúteis na medida em que não só as forças de ocupação israelenses não dão sinais de

querer reduzir a pressão sobre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, como o próprio Sharon, em 26 de

dezembro de 2003, anuncia que vai intensificar os assassinatos seletivos dos membros da resistência

palestina.

A promessa macabra do primeiro-ministro de Israel não demora a se tornar realidade. Ao

longo da primeira metade de 2004, os grupos armados palestinos vão perder algumas de suas

principais lideranças.

Em 7 de fevereiro de 2004, um ataque israelense mata Aziz Chami, chefe militar de Jihad

Islâmica. Dois dias depois, é a vez de Achraf Abu Libden, líder das Brigadas Abu Ali Mustafa,

braço armado as FPLP. Em 28 de fevereiro, é assassinado Mohamed Ghoded, tido como um dos

mais importantes dirigentes das Brigadas dos Mártires de Al-Aqsa. No dia 24 de março de 2004,

helicópteros do exército de Tel Aviv matam o xeique Ahmed Yassin, fundador e líder espiritual de

Hamás. Pouco menos de um mês depois, em 17 de abril, é assassinado o seu substituo, Abdel Aziz

Rantisi. O próprio Arafat é repetidamente apontado por Sharon como homem marcado para morrer.

Ao longo de 2004, só na Faixa de Gaza, o exército de Israel vai executar nada menos do que 45

líderes palestinos.66

É importante ressaltar que este tipo de ação viola a legislação internacional sobre a guerra,

da qual Israel é signatário, e atinge tanto os dirigentes dos braços armados da resistência como os

líderes políticos que despontam em seu meio. Desta forma, Tel Aviv busca destruir a liderança

forjada na luta, respeitada em suas bases, reconhecida pela população e que não se dobra às suas

demandas e planos.

Mas o assassinato seletivo não é a única forma pela qual Israel tenta minar a resistência

palestina nos territórios ocupados. Sempre em 2004, a Faixa de Gaza vai conhecer também pesadas

incursões militares com as quais o exército judaico procura retalhar a resposta dos grupos armados

locais. Entre as mais duras está, sem dúvida, a Operação Arco-íris. Iniciada em 14 de maio, seu

alvo é a cidade de Rafah, próxima à fronteira com o Egito. Doze dias depois, o saldo final é

assustador: 62 palestinos mortos (dos quais 25 são menores de 18 anos), 280 feridos, 760 famílias

desabrigadas devido à destruição de suas casas. A crueldade é tamanha que o Conselho de

Segurança da ONU condena a operação por 14 votos a um e, em 23 de maio, o próprio ministro da

justiça israelense a qualifica de prática desumana e não judaica.67

Diante dos acontecimentos e do avolumar-se das tensões no interior das forças de segurança

palestinas, em 17 de julho de 2004, Qorei apresenta sua demissão do cargo. Arafat, porém, pede que

retire o pedido, o que só é aceito pelo primeiro-ministro da ANP após garantir algumas mudanças na

composição do seu gabinete”.

Terminadas as últimas palavras, Nádia pisca os olhos e, pensativa, começa a andar de um

lado pra outro da mesa enquanto a antiga muleta parece traçar no ar as próximas passagens do

relato. As mãos acabam de pôr no papel suas reflexões, quando a boca interrompe bruscamente a

concentração da coruja com um “Eu acho que você está exagerando...” que faz a ave virar

prontamente o corpo para a voz acusadora. De orelhas em pé, Nádia espera que a língua expresse a

razão de ser daquela intervenção inesperada:

- “O que quero dizer – observa o secretário em tom de desafio – é que você fala dos palestinos como

se fossem todos anjinhos. È verdade que, às vezes, Israel exagera na dose, mas não podemos

esquecer que está agindo em legítima defesa...”.

Disposta a colocar cada coisa em seu lugar, a ave senta, recosta o corpo na pilha de livros

que se ergue atrás dela e, após um longo suspiro, inicia sua resposta em meio a um sorriso maroto:

66

Dados Publicados em Jennifer Loewenstein (43). 67

Declaração divulgada pelas agências de notícias AFP, DPA e Reuters (5).

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- “Um dos problemas mais sérios dos representantes da sua espécie é a incrível capacidade de perder

de vista a realidade quando atraídos pelos reflexos com os quais os meios de comunicação apagam o

pouco que a memória lembra deste longo conflito. Para ser mais clara, vou responder à sua questão

com um exemplo.

Imagine um grupo de ladrões fortemente armados entrando na sua casa. Sem pedir licença,

derrubam a porta, batem em seus familiares, quebram seus pertences e, com o dedo no gatilho,

impõem à sua família anos de humilhação. Um dia, você começa a ensaiar uma série de reações

contra seus agressores na tentativa de se livrar deles.

Agora pergunto: qual dos dois lados está agindo em legítima defesa?”.

- “Com certeza, eu!”, responde o secretário com convicção.

- “Pois esta é também a história recente do conflito entre palestinos e israelenses. A Guerra dos Seis

Dias, iniciada em junho de 1967, leva a uma duríssima ocupação militar da Cisjordânia e da Faixa

de Gaza. O tempo passa e a destruição do lar palestino aumenta. Pouco a pouco, as nações do

primeiro mundo vão definindo seus interesses em relação aos dois lados do conflito tendo como

base não as preocupações humanitárias, mas sim o quanto podem ganhar em termos comerciais e de

influência sobre as nações do Oriente Médio. É assim que, quando convém, o legítimo direito à

resistência armada de um povo submetido à ocupação militar estrangeira, reconhecido pela ONU e

pelas normas internacionais sobre a guerra, passa a ser condenado como ação terrorista baseada no

fanatismo religioso de grupos isolados ao mesmo tempo em que a represália dos invasores é pintada

com as cores da legítima defesa.

No caso palestino, o problema não está só no fato de que a vítima vai ocupar o banco dos

réus, mas sim que as ações das forças de ocupação são alardeadas como medidas justas e

necessárias para restaurar a ordem que as autoridades locais são incapazes de garantir e da qual a

força ocupante precisa para fazer vingar seus planos. Realizada esta façanha, novas provocações vão

levar os moradores da Cisjordânia e da Faixa de Gaza a se defenderem; e seus agressores israelenses

a agir com força redobrada para esgotar os recursos da resistência e forçá-la a uma negociação que

em nada respeita os seus direitos, mas que aos olhos do mundo ganha as feições de uma proposta

irrecusável”.

- “Mas, desse jeito, até um plano de paz pode se transformar na trilha que leva à explosão de um

novo conflito?!?”, questiona a língua assustada ao tomar consciência de uma possibilidade

inesperada.

- “É isso que pretendo desvendar nos próximos passos do relato – responde a coruja com expressão

séria e compenetrada. E vou começar pelos chamados Acordos de Genebra, oficialmente

apresentados nesta cidade da Suíça, em 1º de dezembro de 2003.

Trata-se de uma proposta de paz nascida após três anos de negociações secretas e cujos

principais artífices são o ex-ministro da justiça de Israel, Yossi Beilin, o ex-ministro da informação

e da cultura da ANP, Yasser Abed Rabbo, com o apoio do ex-presidente dos Estados Unidos,

Jimmy Carter, e do próprio governo suíço. O objetivo dos entendimentos, cuja minuta é divulgada

mais de um mês antes, é de ajudar a pôr um ponto final nas grandes questões que alimentam o

conflito entre os dois povos: a criação do Estado Palestino, o status de Jerusalém, os assentamentos

judaicos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza e o destino dos mais de 4 milhões de refugiados”.

- E...seria muito pedir para você sintetizar os principais pontos do documento?”, sugerem os lábios

em busca de pequenos sinais de esperança.

Animada pelo interesse do secretário, Nádia atende o pedido sem pestanejar:

- “Mesmo não tendo nenhum valor oficial, as peças-chave dos Acordos de Genebra podem ser

resumidas nos pontos que seguem:

1. Israel aceitaria a criação do Estado Palestino, ao mesmo tempo em que este se comprometeria a

reconhecer o Estado de Israel como Estado judaico.

2. O território israelense seria constituído pela área por este possuída antes da Guerra dos Seis

Dias, em junho de 1967, acrescida por boa parte das terras de seus atuais assentamentos na

Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Por sua vez, o Estado Palestino ocuparia os territórios restantes

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das duas regiões ampliados por uma faixa de terra no deserto do Negev como forma de

compensar as áreas anexadas a Israel.

3. O Estado Palestino não teria exército próprio. Suas fronteiras seriam controladas por uma Força

Multinacional que atuaria como elemento de dissuasão, supervisionaria as Forças de Segurança

Palestinas e só poderia se retirar da região após a aprovação do governo de Tel Aviv. Por sua

vez, as Forças de Segurança locais assumiriam, com as tropas multinacionais, o controle das

fronteiras, zelariam pelo cumprimento da lei e pela manutenção da ordem interna,

desempenhariam funções de polícia e de inteligência, prevenindo o terrorismo e garantindo os

serviços essenciais quando requisitados. Israel retiraria seus soldados e equipamentos bélicos

dos territórios palestinos de acordo com um cronograma preestabelecido, mas manteria postos

avançados de vigilância, uma pequena presença militar no vale do Rio Jordão e seus aviões de

combate poderiam usar o espaço aéreo palestino.

4. Os dois lados se comprometeriam a rejeitar todas as formas de terrorismo, bem como todas as

ações e as políticas que podem criá-lo e alimentá-lo, o que inclui o desarmamento das milícias e

uma crescente cooperação entre as respectivas forças de segurança.

5. A cidade de Jerusalém seria dividida em dois blocos. Os bairros árabes da região leste

integrariam o Estado Palestino. Os setores judaicos da mesma área, bem como os subúrbios de

Givat Ze’ev, Ma’aleh Adumim e a parte histórica de Gush Etzion (à exceção de Efrat) na

Cisjordânia seriam incorporados à parte de Jerusalém destinada a ser capital do Estado Judaico.

O Monte do Templo pertenceria aos palestinos e uma força internacional garantiria a segurança

e o acesso dos visitantes de todas as religiões. Nesta área, qualquer escavação arqueológica ou

nova construção só poderia ser realizada com o consentimento de Israel.

6. No que diz respeito aos refugiados, o governo de Tel Aviv indicaria quantos deles se dispõe a

aceitar em seu território. O Estado Palestino e os demais países em que há pessoas nesta

condição fariam o mesmo e criariam normas específicas para incorporá-los à população local.

Os refugiados a serem transferidos para a Palestina, Israel ou outros países teriam direito a uma

compensação financeira pela perda das propriedades nas nações em que estavam abrigados.

Realizada a escolha do lugar de residência permanente, seria extinto o status de refugiado e

nenhuma nova reivindicação poderia vir a ser encaminhada a este respeito.

7. No caso de ser aceito por ambas as partes, este acordo iria substituir todas as resoluções das

Nações Unidas e o que já tiver sido assinado entre autoridades e representantes dos dois povos”.

- “Bom, Nádia, à primeira vista, não parece tão ruim assim...”.

- “Só à primeira vista!”, rebate a coruja enquanto apoia o corpo no graveto para levantar-se.

- “Sinceramente, não consigo ver o que poderia ter de tão errado!”, insiste a boca em tom de

justificativa.

A ave suspira e, olhando para o alto, alfineta:

- “Dito por você, não é nada estranho. Apesar de suas lentes garrafais, seus olhos não conseguem

enxergar a um palmo do nariz...”

- “Isso não é hora de brincar com coisa séria!”, exclamam os lábios imediatamente interrompidos

pela voz da coruja que retruca:

- “A questão, meu caro secretário, é que os Acordos de Genebra apenas parecem apontar uma

solução definitiva para os problemas que, há décadas, alimentam o conflito entre os dois povos,

quando, na verdade, buscam derrotar a própria razão de ser da luta palestina.

Pra início de conversa, é necessário sublinhar que, pela primeira vez, setores oriundos do

núcleo central do governo palestino admitem a existência de Israel enquanto Estado judaico, ou

seja, como lugar onde a maior parte da população é reconhecida em função de sua confissão

religiosa. Na prática, isso significa que, tanto os árabes palestinos que moram no interior do

território israelense, como os refugiados (cujo direito de retorno às suas antigas terras é garantido

pelas Resoluções da ONU) não teriam direito à cidadania plena da qual gozam os judeus que estão

ou pretendem voltar pra Israel.

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Por outro lado, o nascente Estado Palestino não gozaria de soberania real sobre o seu

território. De fato, além de não ter um exército próprio, seu espaço aéreo poderia ser usado pelo país

vizinho para fins militares, ao mesmo tempo em que o controle das fronteiras e das forças de

segurança internas seria realizado por tropas internacionais. Em outras palavras, apesar do exército

israelense vir a se retirar da Faixa de Gaza e de parte da Cisjordânia, o papel antes exercido pelos

soldados de Tel Aviv passaria a ser assumidos por um contingente multinacional cuja saída do

território palestino não dependeria de um pedido de suas autoridades, mas sim da aprovação de

Israel. Por este caminho, a atual ocupação militar da Palestina ganharia a feição legal de uma força

de paz estrangeira para continuar interferindo na vida quotidiana do Estado recém-criado.

Se isso não bastasse, o texto dos Acordos de Genebra prevê que dois terços do solo hoje

ocupado pelos assentamentos israelenses na Cisjordânia seriam anexados ao território de Israel que,

por sua vez, cederia uma faixa de terra da região do Negev. Quem não conhece as condições do

terreno pode ser levado a crer que se trata de uma troca justa quando, na verdade, os colonos judeus

iriam ficar com as melhores terras e com o acesso garantido aos recursos hídricos da região. Em

contrapartida, os palestinos seriam compensados com um pedaço de deserto cuja possível

transformação em terreno agrícola iria exigir investimentos elevadíssimos a serem aplicados durante

um longo período de tempo. E tem mais. A aceitação deste item é, na prática, uma forma de

legalizar a violação da Quarta Convenção de Genebra (que proíbe a colonização e a anexação de um

território ocupado por força militar) e abre um precedente perigoso para as futuras negociações

oficiais.

As coisas se complicam um pouco mais quando percebemos que esta medida colocaria em

cheque as possibilidades de consolidação e desenvolvimento da agricultura palestina, importante

fonte de sobrevivência para centenas de comunidades rurais. Viabilizar esta divisão do território

significaria manter o controle da água em mãos israelenses e fazer com que os palestinos continuem

reféns do fornecimento deste precioso líquido. De acordo com os dados disponíveis, cada morador

dos territórios administrados pela ANP tem direito, em média a 65 litros de água por dia quando

todo israelense pode usufruir, no mínimo, de 350. Sabendo que a Organização Mundial da Saúde

recomenda a disponibilidade mínima cotidiana de 100 litros por pessoa, não é difícil imaginar que a

já escassa quantidade de água fornecida aos palestinos continuaria a ameaçar de perto o seu presente

e o seu futuro”.68

- “Bom, mas você não pode negar que o texto aponta uma saída tanto para a disputa de Jerusalém,

como para a questão dos refugiados...”.

- “O problema de sua cegueira – diz Nádia ao espetar o ar com o graveto apontado para os óculos do

secretário – não está no fato dos olhos não verem o que o rodeia, mas sim destes lhe

proporcionarem a firme convicção de que está enxergando bem e que, portanto, não precisa usar o

cérebro para tentar desvendar o que se esconde por trás das aparências. Isso leva-o a esquecer que,

desde a Guerra dos Seis Dias, em junho de 1967, Israel já expropriou 34% da área de Jerusalém

Leste alegando razões de utilidade pública e destruiu mais de duas mil construções palestinas para

dar lugar a conjuntos habitacionais destinados aos judeus. Mas o processo de expulsão dos

palestinos não pára por aqui. Atualmente, o alvará de construção em Jerusalém Leste pode chegar a

custar 30 mil dólares e o processo de obtenção do mesmo, às vezes, leva mais de cinco anos. Na

falta de alternativas, os moradores árabes deste setor de Jerusalém se vêem obrigados a construir

sem permissão legal o que dá à administração israelense as razões de que precisa para justificar as

novas ordens de demolição.69

Além disso, esta região da cidade, majoritariamente árabe-palestina, tende a ser sufocada

pela ampliação do assentamento de Ma’aleh Adumim cujos 3 mil e 500 novos conjuntos

habitacionais irão separar de vez os territórios da ANP a norte e a sul de Jerusalém, impedindo

assim que a capital do futuro Estado Palestino tenha uma ligação direta com a Cisjordânia. Para

68

Dados publicados em MIFTAH (50). 69

Dados publicados em Observatório da Palestina (52).

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completar a obra, basta terminar o trecho do muro (cujos trabalhos já estão em andamento) que irá

isolar os remanescentes bairros de Jerusalém Leste das áreas israelenses da cidade, da expansão de

Ma’aleh Adumim e, obviamente, dos territórios da Cisjordânia.

Terminadas as edificações, os cerca de 195 mil palestinos desta região acabarão vivendo

num presídio a céu aberto. Cercados pelo muro, os quarteirões onde moram vão se transformar em

pequenos campos de concentração

dos quais será permitido entrar e

sair por um portão controlado por

soldados israelenses e só após

obter uma autorização especial

junto à administração judaica da

cidade. Desta forma, os palestinos

que tiverem suas fontes de renda

em Jerusalém ou precisarem se

deslocar para as áreas da

Autoridade Palestina correm o

risco de passar por maus bocados

em função dos mesmos

inconvenientes que já são parte da

vida quotidiana de amplas regiões

da Palestina ocupada.

Resumindo, enquanto as

palavras dos Acordos de Genebra

alegam procurar uma possível

solução do conflito, os fatos

demonstram que Tel Aviv, há

décadas, vem implementando

medidas para levar adiante uma limpeza étnica silenciosa que transforme toda a área de Jerusalém

na capital única e exclusiva do seu Estado. Ao agir desta forma, o plano do governo judaico dá mais

um passo para inviabilizar a criação do próprio Estado Palestino. Sabendo que cerca de 40% da

economia da ANP depende do turismo e das atividades que giram em torno de Jerusalém Leste, o

progressivo controle desta área vai acabar inviabilizando o acesso à esta importante fonte de

recursos e sufocando possibilidades de desenvolvimento indispensáveis à viabilidade da própria

Autoridade Palestina. Mais uma vez, a política israelense de criar fatos consumados joga por terra a

que parecia ser uma solução viável para uma das peças-chave do conflito.

No que diz respeito à questão dos refugiados, na prática, o texto dos Acordos cassa o direito

destes voltarem às terras das quais foram expulsos por Israel a partir de 1948. A Resolução 194,

aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 11 de dezembro daquele ano, diz que se deve permitir

aos refugiados que o desejarem de voltar o quanto antes a seus lares. Além disso, compensações

devem ser pagas tanto àqueles que decidirem não voltar como aos que tiveram suas posses

destruídas ou danificadas. O mesmo documento cria também uma Comissão de Conciliação,

composta por Estados Unidos, Turquia e França a fim de facilitar a repatriação, a reinstalação e o

progresso sócio-econômico dos refugiados, bem como de avaliar os montantes das indenizações. Os

trabalhos desta Comissão se encerram em 1964 e toda a documentação que atesta os bens e valores

a serem devolvidos ou indenizados é depositada nos arquivos das Nações Unidas.

E tem mais. A própria admissão do Estado de Israel na ONU, em maio de 1949, é

condicionada ao cumprimento da Resolução 194, sobretudo no que diz respeito ao retorno dos

refugiados palestinos, direito que, até abril de 2005, é reafirmado 49 vezes. Ao aceitar abrir mão

dele, os Acordos de Genebra legitimam a história de dominação israelense, frustram as esperanças

de mais de 4 milhões de refugiados e levam os palestinos a renunciarem definitivamente a uma das

principais questões que colocam o mundo diante da gravidade de sua situação”.

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Apoiada no graveto, a coruja não desgruda o olhar das folhas do relato à espera de que o

silêncio desperte novas inquietações diante desta realidade tão complexa.

Instantes depois, a língua vence a paralisia provocada pelo desconcerto. Coçada a cabeça, a

mão direita do secretário desenha no ar os gestos que a boca vai traduzir em palavras:

- “Pelo visto, os Acordos de Genebra devem ser motivo de condenação entre os palestinos e de

comemoração para os israelenses...”

- “Nota cinco!”, responde Nádia taxativa.

- “Nota cinco...por que?!?”

- “Porque você acertou só metade do desenrolar da história”.

- “Você não está querendo dizer que os próprios israelenses vão se posicionar contra estes

entendimentos....está?”, pede a língua temendo uma resposta afirmativa.

- “Na lata! – diz a ave enquanto levanta o graveto e começa a andar sobre a mesa. Do lado palestino,

o presidente da ANP, Yasser Arafat, envia uma carta lida durante a cerimônia oficial de assinatura.

Nela, saúda os Acordos de Genebra como uma tentativa de encontrar o caminho da paz, aproveita

para condenar o Muro que Israel constrói nos territórios ocupados apelidando-o de Muro de

Separação Racista e pede a implementação da Resolução 194 da ONU que, por si só, viraria de

cabeça pra baixo as conclusões a que chegaram os negociadores.

No mesmo dia, Al-Fatah, o maior grupo da resistência palestina, lança um documento no

qual condena veementemente a renúncia ao direito de retorno considerado o fundamento do

consenso palestino, o centro da luta palestina, a justificativa da atual revolução e o sonho de dois

terços do povo palestino. Em função disso, afirma que sacrificar o Estado palestino para conseguir

o Retorno [dos refugiados] serve à estratégia palestina em seu conjunto enquanto que sacrificar o

direito ao retorno para conseguir um pseudo-Estado com uma soberania limitada é sacrificar os

direitos do povo, seus sonhos e aspirações.70

Hamás, Jihad, e vários outros grupos que compõem a resistência expressam condenações

semelhantes. Ao longo de toda a primeira semana de dezembro, Cisjordânia e Faixa de Gaza

tornam-se palco de numerosos protestos. Milhares de pessoas realizam atos e manifestações contra a

iniciativa de Genebra.

Em Israel, a rejeição aos Acordos já é detectada pelas pesquisas de opinião realizadas em

outubro de 2003 logo após a primeira divulgação da minuta de entendimento. No dia 15, o jornal

Yediot Aharonot mostra que 39% da população apoia as posições do documento enquanto 59% é

contra. Dois dias depois, outro diário de notícias, o Ma’ariv, divulga os resultados de outra

sondagem: 23% a favor, 57% contra e 20% de indecisos.

Na tentativa de se contrapor a esta situação, em 1º de novembro, dezenas de milhares de

pessoas celebram o oitavo aniversário do assassinato de Yitzhak Rabin e apoiam a iniciativa de

Genebra como uma nova esperança para a paz.

A reação da direita israelense ligada aos colonos dos assentamentos não demora a aparecer e,

em 25 de novembro, apresenta o seu plano de paz. Nele é completamente descartada toda

possibilidade de criação de um Estado palestino e de desmantelamento de qualquer colônia judaica

na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. O projeto, que conta com o apoio de 14 parlamentares, prevê a

concentração de esforços para erradicar o que chama de terrorismo palestino, o abandono do

princípio da troca de terra por paz, a divisão dos territórios da antiga Palestina em 10 cantões (dois

dos quais seriam reservados aos palestinos) e a implementação de um sistema eleitoral moldado

para garantir uma maioria judaica automática no interior do legislativo e do executivo.

No mesmo dia, o Partido Trabalhista divulga a sua versão de um possível plano de paz que

tem vários pontos em comum com a iniciativa de Genebra. Em seu documento se prevê a criação de

um Estado Palestino, a retirada quase total dos territórios ocupados em junho de 1967, a

compensação com terras israelenses dos blocos de assentamento a serem anexados a Israel, a

divisão de Jerusalém de acordo com critérios próximos aos Acordos e o não reconhecimento do

70

Texto extraído do documento oficial de Al-Fatah (9).

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direito de retorno dos refugiados palestinos na medida em que sua volta anularia o caráter judaico

do Estado de Israel.

Uma semana depois, a organização de rabinos, chamada Auto-salvação, divulga uma lei

religiosa que acusa de traição à pátria os judeus que assinaram o documento de Genebra e pede que

os mesmos sejam julgados e condenados por este crime.

As reações que se seguem fazem subir a temperatura política e colocam na ordem do dia a

possibilidade de enfrentamentos entre vários setores da sociedade israelense. A motivação religiosa

de construir uma nação cujo território se estenda do Mediterrâneo ao Rio Jordão, usada para dar

sustentação ideológica à implantação dos assentamentos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, começa

a entrar em rota de colisão até mesmo com as forças para as quais este mesmo objetivo deve

percorrer, momentaneamente, outras etapas.

Ciente da deterioração da imagem de Israel no exterior, dos desafios internos e dos

problemas impostos pela resistência palestina, o primeiro-ministro Ariel Sharon manifesta sua

posição contrária aos Acordos de Genebra, reafirma seu compromisso com o Mapa do Caminho

(que nunca respeitou) e se compromete a elaborar um novo plano no qual Tel Aviv apontaria seus

passos em direção à paz”.

- “Se é assim, ainda temos esperanças!”, comemora a língua acreditando ver uma luz no fim do

túnel.

- “No seu lugar, eu não confiaria na possibilidade da nova proposta ser melhor da que acaba de ir

por água abaixo”, rebate a ave com olhar distraído e tom de voz que se debate entre a ironia e a

indagação.

- “Mas, Nádia, afinal temos que acreditar que as coisas podem melhorar...pensamento positivo...!”.

A coruja sacode a cabeça, sorri e, piscando os olhos, diz:

- “Vocês humanos são engraçados. Negam-se a desvendar as tramas da história, não tomam as

rédeas dos acontecimentos, e torcem para um resultado materialmente impossível. Assim, criam

ilusões que chamam de esperanças e, via de regra, acabam frustrados quando a dura realidade se

mostra nua e crua”.

- “Confesso que não consigo entender onde quer chegar...”

- “Simples! O plano de Sharon se apresenta ao mundo como uma prova do esforço israelense para

buscar uma saída pacífica para o conflito quando, na verdade, vai ser implementado e acompanhado

pela progressiva construção das condições que sufocam qualquer possibilidade de criar um Estado

Palestino viável”, afirma a coruja com expressão de quem deixa a entender que pode-se tirar com o

balde o que é dado com a colher.

- “Será que dá pra explicar isso direito?”, pede o secretário ao não querer se dar por vencido.

- “É pra já! – atende prontamente a ave. O plano que Sharon divulga semanas depois, prevê a

retirada de todos os assentamentos israelenses da Faixa de Gaza e de outros quatro localizados ao

norte da Cisjordânia (Ganim, Kadim, Sa-nur e Homesh). Esta escolha está alicerçada em três

fatores: a defesa militar, a viabilidade econômica e a necessidade de fortalecer a imagem de Israel

junto à comunidade internacional.

No que diz respeito à Faixa de Gaza, trata-se de colônias judaicas cujos custos em tropas e

equipamentos bélicos atingem um patamar bem superior aos benefícios que Israel pode extrair em

termos econômicos. A proteção contra as ameaças da resistência palestina nesta região tem

demandado uma ingente quantidade de recursos que o próprio governo de Tel Aviv poderia aplicar

com resultados bem melhores em setores estratégicos e mais rentáveis da economia israelense.

Mesmo saindo destes territórios, as forças armadas judaicas continuariam controlando as fronteiras

com Israel e com o Egito, o acesso pelo Mar Mediterrâneo, o espaço aéreo e se dariam o direito de

realizar ataques seletivos sempre e quando acharem necessário. Em outras palavras, a Faixa de Gaza

se tornaria uma prisão de segurança máxima para cerca de um milhão e 400 mil palestinos.

Por sua vez, a retirada dos quatro pequenos assentamentos da Cisjordânia, pouco

importantes sob todos os pontos de vista, visa mostrar ao mundo que o plano de Sharon representa

um passo concreto em direção à paz. Ao mesmo tempo, as dificuldades de enfrentar as oposições

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internas sensibilizariam a opinião pública européia e estadunidense quanto à impossibilidade de

implementar uma solução que respeite as recomendações dos organismos internacionais.

Mas o plano não pára por aqui. De fato, a saída destes assentamentos prevê que seus antigos

moradores recebam uma indenização média de 390 mil dólares por família e sejam realocados em

moradias a serem construídas nos assentamentos da Cisjordânia que Tel Aviv pretende anexar a

Israel. De acordo com um relatório divulgado em 30 de dezembro de 2004 pela entidade israelense

Paz Agora, o processo de colonização dos territórios da ANP revela os dados que seguem:

Ao longo dos últimos doze meses, há cerca de 3500 novas unidades habitacionais israelenses em

construção nos territórios ocupados.

Em 21 dos 155 assentamentos as novas edificações ocupam uma área fora dos limites que lhes

são próprios.

Constata-se a existência de 99 postos avançados, ou seja, de tentativas de expansão das colônias

existentes bem além do seu território, sendo que 15 deles já teriam casas de alvenaria

Além destes dados, em 25 de fevereiro de 2005, o jornal israelense Yediot Aharonot noticia

que Tel Aviv pretende construir outras 6391 unidades habitacionais nos assentamentos da

Cisjordânia.

Resumindo, o plano proposto por Ariel Sharon cede um palmo de terra palestina, em nome

da paz, enquanto ocupa novas áreas da Cisjordânia mesmo sabendo que esta medida vai solapar a

solução do conflito baseada na existência de dois Estados (Israel e Palestina) que convivem lado a

lado na paz e no respeito recíproco.

- “É como jogar gasolina no fogo...”, comentam os lábios entre a perplexidade e o desconcerto.

- “O pior é que as coisas não param por aqui – diz Nádia ao abrir as asas em sinal de preocupação.

Acontece que o plano do primeiro-ministro israelense prevê também que o seu país vai continuar

controlando o fornecimento de água, eletricidade, gás e combustíveis aos palestinos e, até o início

de 2008, não lhes será mais permitido sair de seus territórios para trabalhar em Israel. Isso deve se

concretizar com o término das obras do Muro que Tel Aviv está construindo em volta da

Cisjordânia e que lhe permitirá anexar nada menos do que 58% de seus 5 mil 715 quilômetros

quadrados.

Apesar de ter sua construção condenada por esmagadora maioria tanto pela Assembléia

Geral da ONU (em 21 de outubro de 2003 e em 20 de julho de 2004), como pela Corte Internacional

de Justiça (que, em 09 de julho de 2004, por 14 votos a um, rejeitou como improcedentes todas as

justificativas alegadas por Israel), as obras continuam em ritmo acelerado. Além de consolidar a

expropriação de centenas de quilômetros quadrados de terras da Cisjordânia, esta longa serpente de

concreto devora a renda de milhares de famílias palestinas. Uma pesquisa divulgada pelo jornal

israelense Ha’aretz, em 4 de fevereiro de 2004, revela que, nas regiões onde a construção já foi

terminada, só 17,8% das famílias entrevistadas dispõe de recursos suficientes para satisfazer suas

necessidades contra 62,8% que afirma ter estado nesta situação no período anterior ao início das

obras na região.71

Com o fechamento das fronteiras da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, Tel Aviv busca

generalizar uma importante queda na renda média per capita nos territórios administrados pela

ANP. Para você ter uma idéia de como as coisas podem ficar, basta dizer que antes do início da 2ª

Intifada, em 28 de setembro de 2000, cerca de 135 mil moradores destas áreas tinham seus

empregos fora delas e que o rendimento médio per capita era de 2000 dólares/ano na Cisjordânia e

de 1600 na Faixa de Gaza. No final de 2004, o número de trabalhadores nestas condições cai para

34 mil e a renda média despenca, respectivamente, para 950 e 650 dólares/ano.72

Além da sensível piora nas condições de vida dos palestinos, a plena realização do plano de

Sharon ameaça o próprio atendimento dos problemas de saúde. Levantamento divulgado pela

organização Médicos para o Mundo e pelo Crescente Vermelho (a Cruz Vermelha local) estima que

71

Dados publicados em Amira Hass (35). 72

Dados publicados em Ilene R. Prusher (56).

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cerca de 10 mil pacientes portadores de doenças crônicas que hoje são tratados em hospitais

israelenses não poderão ter acesso aos mesmos cuidados. Do mesmo modo, as duas entidades

calculam que, por ano, cerca de 100 mil mulheres grávidas vão enfrentar dificuldades bem maiores

na hora do parto e que 200 mil palestinos devem se deparar com restrições ainda mais sérias para

conseguir uma consulta com especialistas”.73

- “Pelo visto, mesmo sem as incursões diárias do exército, a vida em terras palestinas deve se

transformar num pequeno inferno...”

- “Discordo!”, diz Nádia ao levantar a asa esquerda para o alto.

- “Do inferno?!?”, interroga o secretário sem entender a intervenção da coruja.

- “Não. Deste «pequeno» que você coloca antes dele. O problema – continua a ave em tom nada

animador – é que suas ilusões ainda desconhecem os outros aspectos com os quais Tel Aviv

pretende fechar o cerco em volta da Autoridade Palestina.

Após sair da Faixa de Gaza, Israel já tem planos para viabilizar uma malha rodoviária de uso

exclusivo dos palestinos da Cisjordânia. Desta forma, as principais rodovias que, por décadas, têm

servido de elo de ligação entre as principais cidades destes territórios seriam definitivamente

incorporadas ao sistema de transporte de uso exclusivo israelense para possibilitar ligações de

rápido acesso entre Israel e todos os assentamentos judaicos.

Apesar de driblar parte dos bloqueios atuais, e de tornar aparentemente menos trabalhoso o

acesso aos enclaves em que é dividida a área da ANP, o sistema de desvios proposto vai criar novas

dificuldades. O trajeto entre as cidades de Tulkarem e Nablus, por exemplo, passaria dos atuais 27

quilômetros de rodovias amplas e em boas condições para um circuito secundário de 40 quilômetros

que elevaria o tempo médio de viagem de 35 para 75 minutos. A situação mais absurda estaria entre

o vilarejo de Bidia e a cidade de Salfit. Como o assentamento de Ariel impede que os palestinos

possam percorrer os 14 quilômetros de rodovia que separam os dois centros, a rota alternativa

proposta obrigaria os viajantes a um trajeto de quase 60 quilômetros.

De acordo com os estudos realizados pelo geógrafo dinamarquês Jan de Jon, a malha

rodoviária palestina levaria o fluxo de pessoas e mercadorias a transitar, obrigatoriamente, em

pontos que podem ser facilmente fechados e controlados pelo exército.74

Como 94,3% das

exportações da ANP destina-se a Israel, podemos concluir que, além de continuar proporcionando o

controle dos deslocamentos internos, o novo sistema viário vai ampliar os custos do transporte dos

produtos agrícolas e industriais tornando menos competitivas as mercadorias palestinas.

Ao mesmo tempo, o governo de Tel Aviv promete intensificar o processo de expulsão

silenciosa da população árabe do seu território. Além das medidas descritas ao tratar do setor leste

de Jerusalém, em julho de 2004 o parlamento israelense prorroga uma lei que nega o direito de viver

em família a milhares destes cidadãos que moram em Israel. Reafirmada em maio de 2005, a

legislação proíbe que israelenses casados com palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza possam

morar com seus cônjuges no interior do território judaico o que impõe aos casais a dura escolha

entre longos períodos de separação ou a mudança para as áreas da ANP.

Estas medidas, se somam às que vêm sendo amplamente utilizadas por Israel na Cisjordânia

e na Faixa de Gaza para minar as fontes de renda palestinas. De 28 de setembro de 2000 a 23 de

maio de 2005, a organização de direitos humanos MIFTAH registra o confisco de 232 quilômetros

quadrados de terras palestinas, a destruição de outros 73,6 de roças, a completa demolição de 7 mil

731 casas e a derrubada de um milhão, 185 mil e 344 árvores de frutas cítricas e oliveiras tanto por

parte do exército israelense como dos colonos dos assentamentos judaicos na Cisjordânia, cujas

ações permanecem impunes. Este quadro é agravado pelas prisões em massa, que atingem sobretudo

os homens em idade de trabalho, e pelas mortes registradas no mesmo período. Enquanto os

73

Dados publicados em Agências de notícias AFP e Al-Jazeera (4). 74

Dados publicados em Amira Hass (34).

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israelenses somam um total de mil 113 falecimentos, dos quais 113 são de crianças, os palestinos

contabilizam nada menos do que 4 mil e 75 mortes, sendo que destas 880 são de crianças.75

O cenário sombrio das perspectivas futuras se completa com os dados do Banco Mundial.

De acordo com o relatório divulgado em 31 de janeiro de 2005, o Produto Interno Bruto na

Cisjordânia e na Faixa de Gaza fecha 2004 com uma queda de 23% em relação ao registrado em

1999, ano anterior à eclosão da Intifada. Caso os controles de fronteira sejam mantidos como estão,

as perspectivas para 2005 são de um crescimento de cerca de 0,4% seguido de uma queda de 0,8%

no ano seguinte. Mas, se houver um relaxamento das limitações impostas pelos militares

israelenses, existe a possibilidade da riqueza nacional palestina aumentar em torno de 3,6% em

2005 e de 2,3% em 2006. Ou seja, na melhor das hipóteses, a economia da ANP estaria longe de

recuperar o terreno perdido nos últimos cinco anos.76

Se isso não bastasse, alguns estudos prevêem que a população da Cisjordânia e da Faixa de

Gaza deve passar dos atuais 3 milhões e 600 mil moradores para algo próximo de 6 milhões e 600

mil em 2020. Feitas as contas, para absorver o desemprego atual e integrar ao mercado de trabalho o

contingente que vai se incorporando à população economicamente ativa, o futuro Estado Palestino

deveria poder contar com investimentos anuais da ordem de 5 bilhões e meio de dólares pelo menos

durante os primeiros dez anos de sua existência. É como se a cada 12 meses a ANP investisse um

valor superior ao atual produto interno bruto anual.77

Pelo que apresentei até agora, não é difícil perceber que a economia palestina, debilitada e

altamente dependente de Israel, não tem como proporcionar fontes de renda e recursos suficientes

para a sua sobrevivência. De conseqüência, podemos concluir que o plano de Tel Aviv passa longe

de ter a paz como objetivo central de suas ações. Ao contrário, Sharon aposta na possibilidade de

que a falta de recursos e investimentos nos territórios administrados pela ANP eleve a tensão interna

a ponto de fazer implodir as estruturas políticas, econômicas e sociais já existentes. Impossibilitados

de sobreviver em suas terras, os palestinos acabariam alimentando voluntariamente a limpeza étnica

silenciosa que Israel vem promovendo nos territórios ocupados e suas migrações para os países

vizinhos deixariam campo aberto à ampliação do Estado judaico sem provocar o grau de rejeição

internacional que poderia inviabilizá-la”.

Instantes de silêncio pesam como uma capa de chumbo sobre os olhares que Nádia troca

com o seu secretário. O que os meios de comunicação vinham apresentando como esperança, ganha

cada vez mais as formas de uma miragem enganadora destinada a ocultar a sombra de morte que se

projeta sobre os palestinos.

Sabendo que entre o plano e sua realização muitos acontecimentos ainda vão percorrer

aquela região do globo, a curiosidade procura entender melhor as conclusões da coruja:

- “Os Estados Unidos e a ONU...partilham disso tudo?”.

- “Um bicho de cada vez – responde a ave ao usar o graveto para desenhar no ar um arco que vai de

uma extremidade a outra da mesa. No que diz respeito ao velho Tio Sam, não é de hoje que seus

representantes, via de regra, se abstêm ou votam contra qualquer condenação ao Estado de Israel. O

que mais preocupa é a evolução da política estadunidense numa direção que propõe saídas opostas

às que são aprovadas nas instâncias internacionais.

Todos sabemos que o governo de Bill Clinton já sugeria a troca de áreas palestinas ocupadas

pelos assentamentos judaicos por outros territórios israelenses a serem cedidos aos palestinos como

forma de compensação e entregava a Tel Aviv a decisão sobre o número de refugiados que poderia

aceitar no interior do seu Estado. Mas a administração de George W. Bush aponta para uma posição

ainda mais favorável aos interesses judaicos. Em várias declarações divulgadas ao longo de 2004 e

do primeiro semestre de 2005, Washington reitera que diante da realidade dos assentamentos

israelenses na Cisjordânia, na Faixa de Gaza e nas colinas de Golã (subtraídas à Síria na Guerra do

75

Dados publicados em MIFTAH (48). 76

Dados publicados pelas Agências Internacionais (8). 77

Dados publicados em Omar Karmi (41).

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Yom Kippur), é irreal esperar que Israel volte às fronteiras que tinha após o armistício de 1949. No

que diz respeito aos refugiados, o presidente dos EUA deixa claro que estes podem voltar sim, mas

não às suas terras de origem. Para ele, o direito de retorno limita-se aos territórios do futuro Estado

Palestino. Ao que tudo indica, esta mudança de posição, rejeitada pela ANP, é uma forma de

compensar os serviços que os estadunidenses já pediram a Israel no Iraque e estão prestes a

encomendar diante da evolução das relações com a Síria e o Irã, rumo à ampliação do controle

geopolítico de Washington sobre a região.

No que diz respeito à ONU e seus representantes nos territórios ocupados, parece que as

coisas estão mudando pra pior. Nos dois últimos anos, Israel tem levado adiante duros ataques

contra a UNRWA, a agência das Nações Unidas para os refugiados palestinos. Sabendo que só na

Faixa de Gaza a sobrevivência de cerca de 600 mil pessoas nestas condições depende da

distribuição diária das 250 toneladas de comida fornecidas por esta entidade, as autoridades de Tel

Aviv têm agido tanto no sentido de dificultar esta ajuda humanitária como de remover aqueles

representantes que denunciam suas arbitrariedades nos territórios ocupados.

A descrição de alguns episódios vai ajudar a ilustrar esta postura. Em 30 de outubro de 2003,

por exemplo, Israel cancela a entrega de um carregamento de remédios, vitaminas e suplementos

alimentares destinado às crianças palestinas dos campos de refugiados da Faixa de Gaza que sofrem

de desnutrição ou são portadoras da síndrome de Down. Apesar de cumprir todas as exigências

legais para liberar a carga, a doação enviada pela organização estadunidense de ajuda cristã, Holy

Land Trust, é devolvida ao remetente sem nenhuma explicação.

Em 1º de abril de 2004, o exército israelense impõe restrições que obrigam a UNRWA a

suspender temporariamente a entrega da ajuda humanitária aos refugiados da mesma região. Três

meses depois, em 14 de julho, um comboio de 16 caminhões das Nações Unidas é atingido por tiros

disparados pelo exército judaico nas proximidades de Beit Hanun, na Faixa de Gaza. A agressão

ocorre na hora em que o enviado especial da ONU, Peter Hansen (cujas intervenções não costumam

poupar criticas abertas), e os membros de sua comitiva param para observar um pomar de frutas

cítricas recém-arrasado pelos bulldozers das forças armadas israelenses. Nas declarações do próprio

Hansen, a entrega dos gêneros de primeira necessidade àquela região havia sido programada de

comum acordo com as autoridades militares que sabiam, inclusive, de sua presença.

No dia 3 de outubro de 2004, o exército israelense divulga imagens gravadas por um avião

não tripulado com base nas quais acusa a ONU de ter ajudado militantes do Hamás a esconder numa

ambulância um foguete de fabricação caseira. A cena, com base na qual se pede a destituição de

Peter Hansen, é veiculada após o fechamento de algumas áreas palestinas para o início da operação

Dias de Arrependimento que, em menos de duas semanas, vai deixar um saldo de 129 mortos, 550

feridos, 143 famílias desabrigadas, pesados danos à infra-estrutura local, além da demolição de 5

escolas públicas e de um sítio arqueológico bizantino do século IV.

Apesar de mostrar que as acusações não passam de uma farsa, já que se trata de uma maca e

não de um foguete, os funcionários da ONU são colocados sob suspeita e estão, momentaneamente,

sem autoridade moral para denunciar mais um massacre perpetrado por Israel na Faixa de Gaza.

Conseguido o objetivo de calar a denúncia de seus crimes, e diante das próprias evidências, no dia

12 de outubro de 2004, o exército de Tel Aviv reconhece numa transmissão de rádio que a UNRWA

nunca transportou foguetes em nenhuma de suas ambulâncias.

A tentativa de eliminar dos quadros das Nações Unidas os que põem o dedo nas feridas

ganha uma importante batalha em 20 de janeiro de 2005. Neste dia, os Estados Unidos bloqueiam

na ONU a manutenção de Peter Hansen como chefe da UNRWA depois deste ter sido acusado pelo

governo Sharon de ser um inimigo de Israel. Ao que tudo indica, trata-se apenas de mais um

capítulo da trama pela qual Tel Aviv pretende desgastar e limitar ao máximo o papel da agência

para os refugiados nos territórios ocupados. Sem ela, centenas de milhares de palestinos já teriam

descido para o abismo da fome e do desespero, o que transforma a própria existência desta

organização num obstáculo para a limpeza étnica a ser implementada”.

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- “Bom, Nádia, o que você acaba de dizer parece confirmar suas suspeitas em relação às verdadeiras

intenções do plano de Sharon. Mas agora gostaria de saber como estão as coisas do lado da

Autoridade Nacional Palestina”, pede o cérebro interessado em juntar as peças do quebra-cabeças.

Animada pela solicitação do secretário, a coruja sorri e depois do costumeiro “Muito

bem...vejamos...”, com o qual busca reunir as idéias, pisca os olhos e, levantando o graveto, diz:

- “Ao longo do segundo semestre de 2004, em formas e níveis diferenciados, as forças palestinas

debatem a necessidade de reformar as instituições da ANP e de realizar eleições em todos os níveis.

A morte de Yasser Arafat, no dia

11 de novembro, por razões que

ainda permanecem obscuras,

apressa os tempos deste processo.

Após o último adeus da multidão

ao velho líder, os vários grupos da

resistência começam a marcar

posição diante do pleito que, em 9

de janeiro de 2005, vai escolher o

novo presidente da Autoridade

Nacional Palestina.

Entre eles, Hamás e Jihad

Islâmica deixam claro desde o

início que não vão apresentar

candidatos próprios e nem apoiar

os de outras facções, pois se

opõem aos Acordos de Oslo que

criaram a ANP. Ao mesmo

tempo, afirmam que vão participar das eleições para a renovação do legislativo palestino,

inicialmente marcadas para 17 de julho de 2005, e das administrações municipais que vão se

desenvolver em cinco fases a partir de dezembro de 2004. Esta decisão, porém, não implica a sua

renúncia à luta armada, mas com ela os dois grupos pretendem ocupar um espaço de debate e

atuação política deixado vago até o presente momento.

Enquanto os setores de esquerda amadurecem o apoio a Mustafá Barghouti, a candidatura de

Al-Fatah é disputada entre Mahmoud Abbas e Marwan Barghouti, este último com maior aceitação

entre as novas gerações, mas com cinco condenações a prisão perpétua pela justiça israelense por

ser um dos líderes da 2ª Intifada. Após várias idas e vindas, Marwan desiste, apoia Abbas, mas

condiciona o seu gesto ao cumprimento de 18 exigências entre as quais estão a retirada de Israel dos

territórios ocupados como condição para dar início às negociações de paz, a não aceitação de

acordos parciais e provisórios com Tel Aviv, a manutenção do princípio da resistência armada e a

realização de eleições para a direção do Fatah até setembro de 2005.

Estes contrastes revelam uma divergência que vai se aprofundando no interior de Al-Fatah

entre a geração que assumiu a direção da ANP após os acordos de Oslo (sobre a qual pesam

acusações de corrupção e que está distante da resistência popular propriamente dita) e os jovens do

grupo nos quais há tanto líderes da Intifada como dirigentes que só almejam cargos de poder no

interior das instituições palestinas.

Durante o processo eleitoral, Abbas é apontado por Israel e pelos Estados Unidos como

parceiro ideal nas negociações de paz e, ao contrário do que ocorre com Mustafá Barghouti, o

exército judaico não impõe restrições aos seus deslocamentos no interior dos territórios ocupados.

Mas este não é o único percalço a colocar pontos de interrogação sobre a legitimidade do pleito.

Dos cerca de um milhão e 800 mil palestinos da Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Leste que

teriam direito a voto, só um milhão e 200 mil se inscrevem nas listas eleitorais. O voto não só é

vetado aos mais de 8 mil presos reclusos nos cárceres israelenses como aos refugiados que vivem no

Funerais de Yasser Arafat em Ramallah.

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exterior. Ao contrário do que ocorreu nas eleições para a presidência do Afeganistão (nas quais

votaram nada menos do que 740 mil refugiados) e do que vai acontecer no Iraque (para cujo pleito

vários países chegam a montar esquemas especiais para garantir o voto dos iraquianos no exterior),

aos palestinos expulsos de suas terras é negado o direito de escolher seus representantes. Apesar da

proximidade geográfica, mais de um milhão de refugiados maiores de idade não podem participar

da escolha de quem vai negociar com Israel o seu próprio futuro.78

Problema semelhante ocorre no setor leste de Jerusalém. Como Tel Aviv pretende fazer

desta cidade a capital única e indivisível do Estado judaico, permitir o direito de voto aos cerca de

124 mil palestinos que poderiam participar das eleições implicaria num reconhecimento implícito

da necessidade de abrir mão desta reivindicação. O fechamento da maior parte dos postos de

cadastramento, somado a uma série de restrições e ameaças, leva a que só 6 mil moradores estejam

em condições de participar do pleito.

Apesar dos pesares e das dificuldades de realizar uma campanha eleitoral em territórios que

se encontram sob ocupação militar, 71% dos palestinos com direito a voto comparecem às urnas e,

com 62,3% das indicações, escolhem Abbas como Presidente da Autoridade Nacional Palestina”.

- “O que não entendo – diz o secretário ao balançar a cabeça – é a razão pela qual um político como

Abbas, sem sustentação popular e que pouco mais de um ano antes havia pedido demissão do cargo

de primeiro-ministro pode ganhar tamanha quantidade de votos...”.

- “As razões são várias... – responde Nádia surpresa pela questão inesperada. Mais que atribuir o seu

sucesso a um único elemento, diria que este é o resultado de uma conjugação de fatores que remam

a seu favor. Além do crescente apoio de Fatah depois que Marwan Barghouti retira sua candidatura,

da forma equilibrada pela qual se dá a transferência de poder no interior da OLP e da Autoridade

Palestina após a morte de Arafat, da rapidez em marcar as eleições e da ausência de oponentes das

correntes fundamentalistas islâmicas, há dois elementos a serem considerados. De um lado, você

não pode esquecer que a votarem são, praticamente, os palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza

que têm plena consciência de estar escolhendo um presidente, cuja autoridade é limitada por um

exército de ocupação estrangeiro, e não o novo líder da causa palestina. De outro, algumas

pesquisas apontam que quase 75% da população destes territórios deseja um período de relativa

calma na medida em que seus recursos e fontes de renda foram se esgotando ao longo de mais de 4

anos de Intifada.

Neste sentido, há um ajuste momentâneo entre as aspirações populares e a visão do próprio

Abbas que quer o fim da luta armada, propõe privilegiar o caminho da negociação e do diálogo

rumo à construção de um Estado Palestino em toda a Cisjordânia e Faixa de Gaza. Mas, para que

isso se concretize, o presidente da ANP é chamado a enfrentar seis desafios:

1. Conseguir e manter um cessar-fogo, por um prolongado período de tempo, tanto com os

militantes palestinos como com o exército israelense;

2. Reestruturar as forças de Segurança da ANP, lutar contra a corrupção e proporcionar uma

administração transparente dos recursos disponíveis;

3. Garantir o apoio dos Estados Unidos às reivindicações palestinas;

4. Construir uma relação equilibrada tanto no que diz respeito às facções armadas da resistência

como junto aos países com os quais a ANP mantém relações diplomáticas.

5. Melhorar as condições de vida dos palestinos gerando fontes sustentáveis de emprego e renda;

6. Negociar um acordo de paz que seja justo para ambos os povos.

Sabendo da monstruosidade destas tarefas e dos planos de Tel Aviv que apontam em sentido

contrário, a geração mais jovem de Al-Fatah, as facções islâmicas e os grupos de esquerda da

78

Vale lembrar que, de acordo com as estatísticas divulgadas em dezembro de 2003 pela Alta Comissão das Nações

Unidas para os Refugiados, os palestinos que se encontram nesta condição somam cerca de 4 milhões e 136 mil. Destes,

só os que tem condições legais para se inscrever nas listas eleitorais entre os 920 mil refugiados da Faixa de Gaza e os

665 mil da Cisjordânia vão poder votar em 9 de janeiro de 2005. O mesmo direito, porém, é negado aos que estão na

mesma situação entre os mais de um milhão e 700 palestinos que, sempre de acordo com os dados da ONU, vivem na

Jordânia, entre os 413 mil da Síria, os 400 mil do Líbano e os 38 mil dos países mais distantes.

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resistência palestina admitem que, tanto eles como os setores populares que representam,

encontram-se numa situação de esgotamento e de necessidade de recompor suas próprias forças. Por

isso oferecem a Abbas a chance de levar adiante suas propostas apostando que as mesmas serão

derrubadas pelos próprios acontecimentos, mas, ao mesmo tempo, rejeitam a avaliação presidencial

que define como erro a utilização da luta armada durante a 2ª Intifada. Basicamente, as lideranças

destes movimentos estão convencidas de que a única maneira de levar Israel a ceder é golpeando

profundamente a sua economia, que já tem mostrado sofrer os efeitos de suas ações sobre o turismo,

os investimentos, o nível de renda e de emprego no interior de território administrado pelo governo

de Ariel Sharon”.

- “Bom, pelo menos, logo depois das eleições, o primeiro-ministro de Israel tem agido no sentido de

se aproximar dos palestinos libertando cerca de 900 presos, prometendo transferir à ANP o controle

de 5 cidades da Cisjordânia e, sobretudo, comprometendo-se pessoalmente a fazer cessar toda

atividade militar contra todos os palestinos aonde quer que estejam na medida em que a resistência

vier a pôr fim a todos os atos de violência dirigidos contra os israelenses.79

Pode ser pouco, mas não

podemos negar que é um bom começo!”, afirmam os lábios na tentativa de mostrar o que os olhos

da coruja parecem não querer ver.

Cutucada com vara curta, a ave permanece silenciosa. Passo a passo caminha entre as mãos

do secretário que repousam sobre a mesa. Em seguida, pára e, espetando com o graveto o peito do

humano que está diante dela, diz:

- “Se o seu cérebro de bicho metido a inteligente estivesse funcionando, me pouparia o trabalho de

agüentar tamanho despropósito...”.

- “Como assim?!? – insiste a boca sem se dar por vencida. Todos os jornais já publicaram várias

matérias sobre isso”.

- “Outro problema dos bípedes da sua espécie é que basta uma autoridade falar e um punhado de

jornalistas publicarem sua lista de intenções para que estas sejam lidas como a concretização de

uma nova realidade na qual vocês passam a acreditar cegamente sem conferir se o dia-a-dia

confirma o que é anunciado pelos discursos de cima.

Após Sharon se comprometer com o cessar-fogo e o mesmo ser assumido por Hamás, Jihad,

Al-Fatah e outros 11 grupos armados da resistência palestina, que, em 17 de março de 2005,

acordam respeitá-lo pelo prazo de 12 meses, o passar do tempo revela dados desconcertantes.

Catorze semanas depois das declarações oficiais, as forças de ocupação israelense já têm violado o

compromisso assumido nada menos do que 5 mil 150 vezes. Em pouco mais de três meses de

trégua, o exército de Tel Aviv assassina 32 palestinos, fere 366 e prende outros 840. Se isso não

bastasse, em 915 ocasiões os soldados atiram na população indefesa e seus destacamentos realizam

mil e 500 incursões em áreas palestinas. Por sua vez, os colonos dos assentamentos judaicos da

Cisjordânia agridem palestinos desarmados em 167 ocasiões enquanto as autoridades israelenses

confiscam mais de 32 quilômetros quadrados de terras palestinas e entregam notificações para a

desapropriação de outros 10. Some a isso as invasões de casas de supostos militantes, os

fechamentos das fronteiras, os bloqueios das principais linhas de comunicação e os trabalhos para a

construção do Muro e não só confirmará o número de violações do qual falei como terá razões de

sobra para entender porque, hoje, 10 de junho de 2005, a manutenção da trégua está por um fio.80

Se isso já não bastasse para acordar seus neurônios adormecidos, a promessa de libertar os

presos envolve só aqueles que ou não têm vínculos com a resistência ou aos quais falta pouco para o

total cumprimento de suas penas. Mas, no mesmo período em que Israel liberta os 900 prisioneiros,

coloca na cadeia outros 840 palestinos, a maior parte dos quais na que Tel Aviv chama de detenção

administrativa. Esta modalidade pela qual alguém pode ser encarcerado sem acusação formada e,

79

A citação acima refere-se à declaração de cessar-fogo, anunciada em pronunciamentos separados de Ariel Sharon e

Mahmoud Abbas no final do encontro de cúpula, ocorrido no dia 8 de fevereiro de 2005, e publicada em George

Rishmawi (57). 80

Dados publicados em Palestinian Information Center (55).

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132

obviamente, sem julgamento, é amplamente utilizada como forma de castigo coletivo pelo Estado

judaico ao qual pouco importa que esta seja expressamente condenada pelas normas internacionais.

Se isso não bastasse, a legislação israelense garante a legalidade da tortura contra quem

encontra-se detido nestas condições sendo que as confissões obtidas por este meio são aceitas como

válidas pelos tribunais na hora em que as autoridades policiais resolvem transformar os

depoimentos obtidos em processos que levem à imposição de penas mais duras. O quadro se

completa ao lembrar que, pelas normas militares vigentes, a prisão administrativa é renovável por

tempo indeterminado e, ao poder ter como fundamentação provas secretas alegadas pelos serviços

de segurança, o acesso aos documentos processuais é negado tanto ao preso como ao seu advogado.

Graças a todos estes artifícios, a Associação dos Presos calcula que, de junho de 1967 a abril

de 2005, 25% dos palestinos tenha passado pelas prisões israelenses sendo que 40 mil deles teriam

sido detidos a partir de 28 de setembro de 2000. A mesma organização afirma que, ao todo, seriam

8 mil 814 os homens, mulheres e crianças que ainda se encontram nos presídios judaicos.81

Acrescente agora o fato de Israel não ter ainda entregue à ANP o controle de todas as cinco

cidades prometidas e a retomada, em 7 de junho de 2005, da prática de assassinatos seletivos com a

morte do líder local de Jihad Islâmica, Mraweh Jaled Kamil, em Qabatyah, na Cisjordânia, e não vai

demorar a enxergar o abismo que separa os fatos das declarações oficiais”, conclui Nádia ao secar

com a asa algumas gotas de veneno que escorrem pelo bico.

- “Mas isso significa que...”

- “Sim, querido secretário – interrompe bruscamente a coruja -, significa que o próprio Abbas,

apesar de ainda contar com o apoio dos palestinos dos territórios ocupados, já começa a perceber

que tem pouco a apresentar para sustentar suas posições. A prática de Tel Aviv derruba suas

tentativas de chegar a resultados palpáveis para o conjunto da população que representa e começa a

desgastar a sua imagem.

Contra o apoio às suas propostas jogam também as próprias declarações quanto à

necessidade de desarmar os grupos da resistência palestina para que, após as eleições para o

parlamento da ANP, vigore uma única lei, um único governo e um único fuzil, o das forças de

segurança oficiais.82

Mesmo considerando que esta seria a posição própria de um governo no

interior do jogo institucional de um Estado já constituído, no caso palestino, a ausência de qualquer

soberania real sobre os territórios somada às ações do exército e dos colonos israelenses fornecem

às facções armadas a base real que vai lhes permitir aglutinar apoio popular suficiente para frear o

eventual uso da força contra os militantes da resistência. Em outras palavras, a impossibilidade de

usar os contingentes de segurança da ANP para proteger o povo das agressões judaicas, por si só,

evidenciaria o paradoxo de usar os mesmos contra as facções palestinas”.

- “Estou errado ou parece que a situação caminha rumo a um beco sem saída?”, pergunta a língua já

sem ânimo.

- “O problema, responde Nádia ao abrir as asas e assumir uma expressão séria – é que o projeto

israelense para a Cisjordânia e a Faixa de Gaza busca privar os palestinos de tudo o que é essencial

à dignidade humana e, por isso, leva adiante uma guerra permanente contra seus corpos, suas casas,

suas possibilidades de sustento e seus sonhos. Isso não promete nada além de um regime de

apartheid que, dia após dia, busca levar adiante uma limpeza étnica silenciosa que vai contar com o

apoio das grandes potências na medida em que não vier a ferir seus interesses ou provocar situações

cuja gravidade tornaria insustentável a posição destes governos perante seus próprios povos.

Por sua vez, a opção pela resistência armada palestina, em suas mais variadas formas, tende

a se afirmar novamente como um aspecto ao qual é impossível renunciar diante da ocupação militar

israelense. Por isso, caso os acontecimentos continuem caminhando nesta direção, a eclosão de uma

terceira Intifada parece ser apenas uma questão de tempo. Resta saber até a que ponto o

fortalecimento dos setores islâmicos da resistência no interior das administrações municipais e do

81

Dados publicados em Palestine News Network (54) e em Observatório da Palestina (53). 82

A citação acima refere-se à declaração de Mahmoud Abbas, publicada em Donald Macintyre (44).

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futuro legislativo palestino pode levar a uma ampliação das formas e do impacto local e

internacional das ações que se opõem ao projeto judaico”.

Terminada sua fala, Nádia apoia o graveto na pilha de livros em cima da qual está uma

coletânea de poemas. Imóvel, a forquilha parece apontar para um marcador que aparece entre as

páginas da mesma. Instigadas pela curiosidade, as mãos abrem o texto no lugar indicado enquanto a

coruja se despede do secretário antes de alçar vôo nos céus escuros da noite.

Sem demora, os olhos percorrem as linhas do poema escrito por Muin Bsaisso, cujo título

soa a convite: “Resista!”. Instantes depois, o silêncio da sala é rompido por um leve sussurro que

revela em versos a dramática e quotidiana resistência do povo palestino:

Sacudiram um papel e uma sentença

diante do meu nariz.

Jogaram-me a chave da minha casa

O papel que me condenava

dizia: resista!

A sentença que me oprimia

dizia: resista!

A chave da minha casa

dizia: por cada pedra

de tua pequena casa: resista!

Uma batida na parede

e a mensagem que chegava através dela

de uma mão mutilada, dizia: Resista!

As gotas de chuva

sobre o telhado da sala de tortura

gritavam: resista!

Nádia foi embora deixando este sofrido renovar-se da esperança no gelado inverno da dor.

Sinal de que, por mais precisos e certeiros que sejam os planos dos poderosos, sua implementação

vai se deparar com a barreira levantada pela teimosa construção da primavera de paz e justiça cujas

sementes há tempo vêm sendo lançadas pelos pequenos nos sulcos da história.

Emilio Gennari

Brasil, 10 de junho de 2005.

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13. Os novos passos de um velho pesadelo.

Tarde de quinta-feira. Uma após a outra, as luzes da cidade começam a brilhar na tentativa

de vencer a aliança entre o anoitecer e as nuvens de chuva. Raios e trovões anunciam que está na

hora de procurar abrigo para escapar das pesadas gotas que antecipam o desabar da tempestade.

Entre milhares de seres que percorrem ruas e avenidas, um sujeito corpulento tenta vencer

rapidamente as poucas centenas de metros que o separam da porta de casa. Dedos inquietos

procuram as chaves do portão enquanto rajadas de ventos fazem a chuva cruzar com o seu caminho.

Instantes depois, as forças da natureza transformam o retorno ao lar numa verdadeira corrida

contra o tempo. Em meio à tempestade, o corpo molhado reage com uma mistura de raiva e

ansiedade que dificulta o simples gesto de acertar a fechadura.

Uma vez em casa, a sensação de aconchego acalma o ego ao convencê-lo de que conseguiu

se livrar do pior. O alívio parece crescer a cada passo no interior da sala até que olhos e ouvidos são

feridos por percepções inesperadas. Na mesa da cozinha, um amontoado de recortes de jornal,

anotações e papéis com garranchos indecifráveis dão vida a um verdadeiro ninho de palavras no

meio do qual uma pequena coruja se agita com gestos frenéticos e sons incompreensíveis.

- “Nádia...? Você está aí?”, pergunta o homem com o tom típico de quem, ao sair de uma roubada,

se depara com uma situação que afugenta o sossego conquistado.

- “Em carne, osso, penas e plumas!”, responde a ave ao levantar a asa esquerda sem virar o corpo

para o seu interlocutor.

- “Mas eu achava que fosse demorar bem mais...”, dizem os lábios titubeantes enquanto as pernas

dão um passo atrás.

- “Pois errou feio, querido secretário. Mal cheguei e já comecei a preparar o que preciso para

reconstruir a trajetória dos acontecimentos que marcaram as terras palestinas nos últimos anos. Por

isso, trate logo de trocar essa roupa que fede a cachorro molhado, tome um banho rápido e sente à

mesa, pois não há tempo a perder!”, ordena a coruja com a autoridade própria de quem sabe

enxergar o que é invisível aos olhos humanos.

Desconsolado e cabisbaixo, o secretário tenta ganhar tempo. Pernas e braços parecem se

movimentar em câmara lenta, com gesto que expressam a frustrada esperança de deixar a realidade

fora da porta de casa.

Indiferente, a ave continua a escarafunchar os papéis trocando-os de lugar, ordenando as

informações neles contidas e emitindo sons que revelam o esforço de encaixar as peças de um

gigantesco quebra-cabeça cujas formas se alteram ao incorporar elementos novos e inesperados.

Meia hora depois, cada folha ocupa o devido lugar em pilhas instáveis e desajeitadas que

ameaçam desmoronar a cada instante. Terminada a tarefa, um trovão ensurdecedor faz estremecer a

casa e empurra o homem para fora do quarto.

- “Nossa! A sua rapidez em se arrumar diz que está louco para começar mais uma empreitada!”,

cutuca Nádia sem esconder a ironia que acompanha suas palavras.

- “Você venceu...”, reconhece o secretário ao baixar a cabeça como um condenado que aceita a

sentença.

Entre o barulho da chuva que martela os telhados, a pequena ave limpa a garganta, pisca os

olhos e após o costumeiro “Muito bem... Vejamos...” que marca o início das atividades aponta para

as folhas de rascunhos e com voz decidida ordena:

- “Vamos traçar os novos passos de um velho pesadelo!”.

- “Nossa! Isso é para convidar seus eventuais leitores e leitoras...?!? Ou para fazê-los desistir de

vez...?!?”, investiga o secretário ao abrir os braços.

- “Nem uma coisa, nem outra - rebate a coruja sem pestanejar. Infelizmente, os acontecimentos dos

últimos cinco anos apontam cenários nos quais o projeto de o Estado de Israel voltar a ocupar as

terras da Palestina histórica ganha contornos tenebrosos”.

- “Então...? Por onde vamos começar?”, pede o secretário ao bocejar.

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- “Ora, pelo lugar onde nos deixamos em junho de 2005, quando do nosso último passar de olhos

sobre a Questão Palestina. Naquele momento, dizíamos que a desocupação da Faixa de Gaza

planejada pelo Primeiro Ministro israelense, Ariel Sharon, iria ocorrer, mas que longe de

transformar o território costeiro em espaço de liberdade, a pressão do exército por terra, ar e mar

levaria seus 365 quilômetros quadrados de extensão a se converterem no maior presídio a céu aberto

do mundo. Paralelamente a isso, algo indesejado e imprevisível começava a se manifestar de forma

contraditória nas dobras do tempo e do espaço da resistência palestina.

Entre o final de maio e a primeira semana de junho de 2005, dois acontecimentos marcam o

calendário político da Autoridade Nacional Palestina (ANP): o fortalecimento dos corpos policiais

fiéis ao presidente Mahmoud Abbas e o adiamento das eleições para o Conselho Legislativo

Palestino83

previstas para 17 de julho do mesmo ano.

Em 28 de maio, a polícia da ANP recruta 15.000 agentes entre os quais estão,

principalmente, militantes que participaram de movimentos de resistência e hoje integram as fileiras

governamentais. A que parece uma manobra sensata para evitar a dispersão de integrantes de grupos

armados, cujo desmantelamento é insistentemente pedido por Israel, acaba se revelando uma

medida que visa acumular contingentes militarizados para pressionar Hamás a aceitar o

desarmamento e, uma vez enfraquecido, iniciar o diálogo com Fatah.

A resposta do Movimento de Resistência Islâmica não se faz esperar. Em 9 de junho, Hamás

adverte que não vai depor as armas e deixa claro que sua vitória nas eleições municipais de várias

cidades palestinas, bem como sua participação no pleito para a renovação do Conselho Legislativo,

visam criar condições para fortalecer o braço armado do movimento. Dois dias depois, ao ver que

está perdendo apoio popular, Abbas recua e descarta publicamente o desarmamento da resistência,

pelo menos até que Israel mantiver a ocupação militar dos territórios palestinos.

A fragilidade do grupo majoritário da ANP se revela novamente em 4 de julho, quando o

seu presidente adia, por tempo indeterminado, as eleições do legislativo. A decisão viola os acordos

pactuados no Egito com todos os grupos da resistência e se dá pela possibilidade de Fatah ser

derrotado por Hamás que participa do pleito pela primeira vez desde os Acordos de Oslo, em 1993”.

- “Confesso que esta atitude soa bastante estranha, sobretudo, por ela vir de um integrante histórico

de Fatah...”, murmura o secretário ao coçar a cabeça.

- “Eu não diria isso - rebate Nádia ao sublinhar com um movimento das asas o teor de suas palavras.

Na nossa última atualização, deixamos claro que a eleição de Abbas não elevava ao cargo de

presidente um líder da resistência, assim como havia ocorrido com o falecido Arafat cuja história

lhe possibilitava ter livre acesso a todas as facções. Abbas é apenas um presidente e nada mais. Ou

seja, estamos falando de um burocrata pragmático e distante do povo, assim como a maior parte do

atual grupo dirigente de Fatah que encontra nos cargos da ANP o caminho seguro para se manter no

poder, atender a interesses pessoais e aproveitar das benesses oferecidas pelo cargo.

Enquanto presidente, Abbas tenta impor sua autoridade para ter controle absoluto das

negociações para um futuro acordo de paz com Israel que, com o passar do tempo, revela a

impossibilidade de incorporar as bandeiras históricas da luta palestina”.

- “Quem te viu... e quem te vê...”, sugere o ajudante ao terminar de escrever as palavras do relato.

- “O problema de suas conclusões precipitadas é que elas têm como base dois elementos nefastos: o

desconhecimento da história e uma preguiça mental que transforma frases manjadas em sentenças

que nada explicam e pouco esclarecem.

Entre os aspectos que você não leva em consideração está uma mudança profunda no perfil

de Fatah. Heterogêneo desde a sua origem, este movimento reúne uma ampla frente de forças,

unidas apenas pelo ideal de libertação da Palestina histórica.

Com a assinatura dos Acordos de Oslo, o setor que defende a resistência armada é

gradualmente neutralizado e eliminado das fileiras de Fatah que passa a assumir o novo papel de

partido de governo. Aqui está justamente a razão fundamental da distância que separa o discurso da

83

O Conselho Legislativo Palestino é o Parlamento da ANP.

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139

prática diária, pois não dá para ser, ao mesmo tempo, um movimento de libertação nacional e uma

autoridade que administra um território sob ocupação militar estrangeira.

Isso não significa que, diante das particularidades da conjuntura, setores de Fatah não

radicalizem o discurso e passem a privilegiar uma atuação militante sempre e quando o aumento do

descontentamento popular faz cair sua aprovação interna e possibilita o avanço da resistência

islâmica nos moldes propostos por Jihad e Hamás. Por outro lado, um grupo crescente de Fatah

assume uma postura moderada, própria do pragmatismo burocrático. Os esforços em ser governo se

destinam, principalmente, a aumentar a militarização para garantir a ordem e o controle das facções

mais radicais da resistência como condição para manter abertas as negociações de paz com Tel

Aviv, de cujas decisões depende toda atividade econômica nos territórios palestinos.

Esta duplicidade desgasta Fatah na medida em que a ausência de avanços significativos nas

negociações de paz com Israel não mostra a postura oficial da ANP como sinônimo de flexibilidade

tática no âmbito de um processo de luta, mas sim como expressão de crescente indecisão e

claudicação. Ao tentar acomodar na burocracia da ANP as posições e os interesses de suas

tendências internas, o grupo projeta uma imagem de indefinição e incoerência entre as práticas

administrativas e as bandeiras históricas da resistência. Neste sentido, o apoio a Hamás começa a

crescer na sociedade palestina não porque as

pessoas estão aderindo aos setores do

fundamentalismo religioso, mas sim pela distância

entre as ações e a retórica do próprio Fatah”.

- “Sendo assim, esta situação deve se agravar com a

evacuação da Faixa de Gaza...”, sugerem os lábios

ao tentar recuperar os pontos perdidos na

intervenção anterior.

- “Exatamente!”, confirma a coruja em tom de

aprovação. “No dia 17 de julho, após 38 anos de

ocupação israelense, inicia a evacuação dos cerca de

8.500 colonos presentes nos assentamentos da Faixa

de Gaza. Apoiado por um contingente de 60.000

efetivos, o processo se completa em 23 de agosto

sem grandes resistências e com o desalojamento

forçado de não mais de 300 pessoas. A relativa

tranqüilidade da evacuação não se deve apenas ao

forte aparato militar e às polpudas indenizações

disponibilizadas pelo governo, mas também ao fato

de que a instalação desta população nas colônias

judaicas da Cisjordânia faz a ampliação dos

assentamentos andar a passos largos, o que, de

alguma forma, acalma as pressões dos grupos

ortodoxos no interior do governo.

Se, antes do início das operações, os líderes

radicais do judaísmo realizam manifestações de até

50.000 pessoas junto ao Muro das Lamentações e de

mais de 100.000 pelas ruas de Tel Aviv, no final de evacuação sua insatisfação é contida pela

declaração de que o governo vai usar as novas edificações em território palestino para anexar a

Israel, com continuidade territorial, áreas não protegidas pelo Muro e, sobretudo, para completar o

cerco em volta de Jerusalém Oriental, reivindicada pela ANP como capital do seu futuro Estado.

Contudo, a saída da Faixa de Gaza produz uma ruptura no interior do Likud, partido de

governo ao qual pertence o próprio Sharon. Em protesto contra a retirada, considerada um passo

para fortalecer o terrorismo e minar a segurança de Israel, o Ministro da Fazenda, Benjamin

Netanyahu, apresenta seu pedido de demissão. A partir deste momento, ele começa a trabalhar a sua

Em azul claro, as áreas desocupadas pela

evacuação da Faixa de Gaza.

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140

indicação para o pleito de novembro de 2006 contando com o apoio dos empresários e do núcleo

duro da direita do Likud.

Enquanto Israel movimenta suas peças no tabuleiro, a presença de 7.500 homens da

segurança de Abbas escalados para garantir que os militares israelenses não sejam atacados durante

a evacuação da Faixa de Gaza dá origem aos primeiros atritos com as forças de Hamás. Em 20 de

julho de 2005, quando a retirada dos colonos mal havia começado, choques entre ativistas das duas

facções deixam 7 feridos.

Um mês depois, Abbas assume o controle formal da região. Trata-se de um território

economicamente devastado e que, pelas declarações de Badallah Frangi, um dos chefes de Fatah em

Gaza, precisaria de um fundo inicial de US$ 5 bilhões para se reerguer e de mais US$ 15 bilhões

para recuperar a infra-estrutura e construir as casas necessárias nas áreas dos antigos assentamentos,

hoje reduzidos a um montão de escombros.84

No campo da política local, a ANP tem que correr

contra o tempo para recuperar a desvantagem em relação a Hamás que conta com forte apoio da

população, para a qual o fim da ocupação não é atribuído á ação da Autoridade Nacional Palestina,

mas sim à resistência e ao sofrimento do povo da Faixa de Gaza.

Após fixar em 25 de janeiro de 2006 a data para as eleições do Conselho Legislativo, Abbas

consegue a aprovação de Israel para que os serviços de segurança da ANP tomem conta da fronteira

com o Egito sob a supervisão direta da União Européia e com o controle em tempo real, via câmaras

de vídeo, do exército israelense. Ao mesmo tempo, assume o compromisso de restabelecer a ordem

na Faixa de Gaza e pôr fim ao que chama de caos das armas.

Menos de 24 horas depois, cerca de 10.000 membros das Brigadas Ezedin Al Qassam, braço

armado de Hamás, marcham na cidade de Gaza para reafirmar sua oposição ao desarmamento e

acusam Abbas de se submeter à ingerência de Tel Aviv. Os desmentidos do presidente da ANP são

colocados sob suspeita não pela postura da resistência, mas sim pelas declarações de Ariel Sharon

que, de Nova Iorque, afirma ter colocado o desarmamento de Hamás como condição para permitir a

realização das eleições palestinas e acrescenta que Abbas comete um grande erro ao permitir que o

Movimento de Resistência Islâmica participe do pleito”.

- “Parece um tiro de misericórdia...”, indaga o secretário ao apoiar o queixo na mão esquerda.

- “Coisas piores virão - assegura a ave em tom calmo e nada animador. No momento, é importante

resgatar quatro elementos que marcam o período pré-eleitoral.

O primeiro deles é a forte retomada das ações militares israelenses na Faixa de Gaza. Além

dos assassinatos seletivos, o exército impõe um bloqueio aos territórios palestinos e, em 24 de

setembro, a aviação bombardeia alvos de Hamás. Dois dias depois, 82 militantes desse grupo, boa

parte dos quais candidatos às eleições, são presos em uma única noite, elevando para 379 o número

de ativistas capturados em uma semana.85

A onda de violência é justificada por Sharon como resposta legítima aos ataques dos

foguetes caseiros palestinos e passa a ser apresentada junto à exigência de desarmar todos os

movimentos de resistência como condição para voltar à mesa de negociação com a ANP. Na

verdade, as duas posturas buscam fortalecer politicamente a posição do Primeiro Ministro no

interior do Likud em sua disputa com Netanyahu, criar as condições para aprofundar as divisões na

resistência palestina e, em caso de respostas armadas, ter uma razão para justificar novas operações

nos territórios ocupados. Sem morder a isca, Hamás, Jihad Islâmica e outras 13 organizações

recuam e, em 28 de setembro, anunciam sua decisão de suspender os ataques com foguetes Qassam

contra o sul de Israel.

O segundo elemento ganha vida quando Sharon percebe que vai perder a indicação do

Likud. No dia 20 de novembro, o Primeiro Ministro deixa o partido, pede a demissão do cargo, a

dissolução do Parlamento e a convocação de novas eleições para março 2006. Dias depois, já na

corrida eleitoral, se declara contrário à política de terra por paz, um dos eixos históricos das

84

Dados publicados em Reuters, DPA, AFP e La Jornada, 21/08/2005. 85

Dados publicados em DPA, AFP e La Jornada, 27/09/2005

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negociações com os palestinos, e se distancia tanto da direita radical, que reivindica a implantação

do Grande Israel, quanto do cumprimento dos Acordos de Oslo, base para a criação de um Estado

palestino independente.

O novo partido por ele fundado, o Kadima (Adiante, em hebraico), agrega vários líderes

descontentes, entre os quais se destaca Simon Peres que, por seis décadas, havia integrado o Partido

Trabalhista. Seu programa de governo aponta como uma das principais diretrizes a necessidade de

fixar as fronteiras definitivas de Israel, englobando toda a cidade de Jerusalém e os assentamentos

da Cisjordânia. Ao optar por uma postura unilateral, Sharon está apenas incorporando as mudanças

em curso na sociedade israelense quanto às relações com os palestinos e ao desejo de manter o

caráter leigo do Estado de Israel, o que transforma seu partido em franco favorito nas eleições que

se aproximam.

Mas a ascensão meteórica do Kadima é turbada no dia 5 de janeiro de 2006, quando uma

hemorragia cerebral atinge o seu líder mantendo-o em coma profundo até os dias atuais. Diante da

gravidade da situação e da comoção que se cria em volta do ocorrido, a direção do partido passa às

mãos de Ehud Olmert que conduz o processo eleitoral aproveitando do impulso impresso por

Sharon, mas sem o preparo e o carisma de seu antecessor.

O terceiro elemento se desenvolve no campo palestino. Em 30 de outubro de 2005, a ANP

pactua com a resistência o fim dos ataques contra Israel, mas as facções condicionam sua adesão à

não ocorrência de operações militares de Tel Aviv. A notícia ganha destaque na imprensa

internacional e Sharon anuncia que vai suspender os bombardeios aéreos. Quanto às ações

terrestres, dois dias depois, o campo de refugiados de Jenin é cercado por 40 tanques e dezenas de

blindados para o transporte de tropas com a missão de prender militantes de Hamás.

A provocação não leva à ruptura da trégua recém-aprovada e mantém Sharon no rumo

desejado para a sua disputa eleitoral. Por outro lado, as pesquisas de intenção de voto nos territórios

palestinos apontam um forte crescimento de Hamás e, a seis dias das eleições, o instituto

independente Jerusalém Media and Communication Center apresenta uma situação de empate

técnico entre Hamás e Fatah.

Diante da evolução dos acontecimentos, a última peça a ser resgatada é a política do governo

Bush diante da possível derrota do grupo de Abbas nas eleições. No dia 30 de dezembro, o Quarteto

(ONU, EUA, Rússia e União Européia) emite uma declaração de consenso na qual pede à ANP que

tome medidas imediatas a fim de codificar em lei que os participantes de qualquer processo eleitoral

devem renunciar à violência, reconhecer o direito de Israel a existir e se desarmar.

Na impossibilidade material de realizar o desejo das forças que detêm um peso considerável

na política palestina, a onze dias das eleições, Washington ameaça cortar toda ajuda financeira caso

Hamás venha a ocupar algum cargo no futuro governo palestino. Por incrível que pareça, é

justamente o país considerado exemplo mundial de democracia que, no afunilar-se do processo

eleitoral, faz chantagens contra a vontade popular palestina para que esta opte pelos candidatos

afinados com os interesses de quem realmente manda”.

- “Mas, pelo que lembro, o tiro saiu pela culatra!”, afirma o homem sem fazer cerimônias.

Ao ouvir a voz do ajudante, a coruja emite um longo suspiro, balança a cabeça em sinal de

confirmação e começa a procurar as anotações necessárias nas pilhas de papel em volta dela.

Encontrados, os preciosos registros são cuidadosamente retirados com o bico e colocados sobre a

mesa com a solenidade de quem apóia um troféu no espaço destinado à memória.

Mais alguns instantes de silêncio e...

- “Resolvidos a enfrentar as ameaças para decidir livremente o próprio destino, em 25 de janeiro de

2006, os votos palestinos entregam a Hamás nada menos do que 76 das 132 vagas do Conselho

Legislativo. O peso da vitória, inesperadamente esmagadora, pode ser visualizado na distribuição

dos assentos que serão ocupados pelas demais forças políticas: 43 para Fatah, 3 para a Frente

Popular de Libertação da Palestina (FPLP), 2 para a Terceira Via, 2 para Badil, 2 para Palestina

Independente e as 4 vagas restantes para os demais grupos.

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Entre as principais razões da derrota de Fatah, os analistas políticos apontam sua impotência

em atender às demandas populares tanto nas administrações municipais como na ANP, a corrupção

de seus dirigentes, a gestão dos serviços de segurança (freqüentemente destinados a prender

militantes da resistência e impotentes diante das agressões de colonos e soldados israelenses), os

magros resultados obtidos por Abbas no campo da economia e das negociações de paz com Israel,

além das disputas internas de Fatah e da burocratização de suas lideranças nos cargos da ANP.

Resumindo, o voto em Hamás é, sobretudo, um voto de protesto contra a ANP dirigida por Fatah,

cujo compromisso com os princípios da luta nacional palestina parece cada vez mais duvidoso.

Agora, se, de um lado, o resultado eleitoral demonstra que o povo palestino não está

disposto a assumir a democracia como simples referendo da derrota da resistência, de outro, a

resposta das grandes potências não tarda a cumprir as ameaças apresentadas antes do pleito.

Apesar de reconhecer que a vitória de Hamás ocorreu em eleições consideradas válidas, o

governo Bush lança o seu ultimato: o grupo islâmico tem três meses para dissolver seu braço

armado, reconhecer o direito de Israel a existir, renunciar publicamente à violência e ao terrorismo.

Do contrário, os Estados Unidos suspenderão toda ajuda financeira destinada aos palestinos.

Diante da recusa do Movimento de Resistência Islâmica, a União Européia se une a

Washington no boicote. Por sua vez, Tel Aviv suspende toda remessa de impostos e taxas

alfandegárias para a Autoridade Nacional Palestina, intensifica os assassinatos seletivos e as ações

militares nos territórios ocupados, ameaça impedir o acesso de trabalhadores palestinos a seus

postos em Israel, promete cortar todo abastecimento de energia elétrica e combustíveis, fechar as

fronteiras ao comércio e impor aos moradores da Faixa de Gaza uma dieta tão rígida quanto basta

para não deixá-los morrer de fome.

Para ter uma idéia do impacto destas medidas sobre a economia dos territórios ocupados

basta pensar que, de acordo com o Banco Mundial, em 2005, o total das entradas da ANP soma US$

1,96 bilhão, dos quais US$ 396 milhões correspondem aos impostos recolhidos diretamente, US$

1,1 bilhão à ajuda que vem do exterior e a quase totalidade da quantia restante às taxas alfandegárias

recolhidas por Israel e repassadas ao governo de Abbas. Trocado em miúdos, a comunidade

internacional se une a Israel no projeto de transformar em inferno a vida cotidiana nos territórios

ocupados para que o descontentamento popular leve à rendição de Hamás e aplane o caminho aos

planos internacionais para o Oriente Médio.

Enquanto as negociações entre Fatah e Hamás para a formação de um governo de unidade

nacional progridem a passos lentos, Abbas não reluta em fazer o jogo do Quarteto. No dia 18 de

fevereiro de 2006, ao pronunciar o discurso inaugural do Conselho Legislativo Palestino, o

presidente da ANP pede a Hamás que honre os Acordos de Oslo, o Mapa do Caminho (cujas

determinações são sistematicamente descumpridas por Israel) e reconheça o direito de Israel a

existir. Uma semana depois, ameaça publicamente renunciar ao cargo caso isso não venha a ocorrer.

No final do mesmo mês, o boicote internacional já faz sentir o seu peso. A escassez de

mercadorias provoca forte alta dos preços de todos os produtos e a Coordenação para Assuntos

Humanitários da ONU informa que, devido ao bloqueio dos acessos à Faixa de Gaza por parte de

Israel, a entrada de alimentos é cada vez mais escassa e suas reservas de trigo, açúcar e óleo de

cozinha estão perto do fim. Por sua vez, o bloqueio dos recursos destinados à ANP impede o

pagamento dos salários dos 152.000 funcionários públicos que representam 14% do total de

empregos na Cisjordânia e 37% dos postos da Faixa de Gaza”.86

- “Afinal, o que é que Hamás está propondo como programa de governo para despertar tamanha

onda de forças contrárias?”, questiona o secretário entre a curiosidade e o desconcerto.

- “As propostas de Hamás espelham a passagem da condição de movimento que tenta eleger um

bom número de parlamentares para dar vida a uma oposição consistente no interior da ANP à de

partido de governo que, com maioria absoluta, se prepara a ocupar os principais ministérios. Por

86

Dados publicados em EL-HADDAD, Laila. ONU: un desastre si Israel corta los fondos de la Autoridad Palestina,

em Al-Jazeera / Rebelión 08/03/2006.

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isso, mais do que um projeto pronto e acabado os 13 pontos a que pode ser resumida sua plataforma

mais espelham perspectivas gerais do que propriamente medidas destinadas a administrar os

territórios ocupados. Resumindo, podemos dizer que Hamás busca fundamentalmente:

1. Acabar com a ocupação, construir um Estado palestino independente, soberano, com capital

em Jerusalém Oriental e rechaçar tanto a política de acordos parciais como a de fatos

consumados de Israel;

2. Não renunciar ao direito de retorno dos refugiados palestinos;

3. Trabalhar pela libertação dos prisioneiros e enfrentar as ações cotidianas da ocupação

(assassinatos seletivos, construção do Muro, violência dos colonos, castigos coletivos etc.)

com as forças de segurança da ANP;

4. Fortalecer a resistência com todos os meios disponíveis por ser um direito legítimo do povo

palestino que, sob ocupação militar, busca a restauração de seus direitos nacionais;

5. Caso Israel venha a reconhecer o Estado palestino e saia dos territórios ocupados em junho

de 1967, incluída a cidade de Jerusalém, Hamás se dispõe a avaliar a possibilidade de criar

um mecanismo de negociação com Tel Aviv;87

6. Uma profunda reforma administrativa da ANP a fim de combater a corrupção, criar

instituições públicas e sociais sobre bases democráticas para assegurar a justiça, a igualdade,

a participação, a pluralidade política, a garantia das liberdades públicas e privadas, a divisão

dos poderes, a independência da justiça e o império da lei;

7. Refundar as instituições sobre bases nacionais e profissionais afastando-as do partidarismo e

de atuações unilaterais;

8. Garantir os acordos assinados no Cairo, em março de 2005, entre os vários grupos da

resistência palestina;

9. O compromisso de estudar com responsabilidade os acordos já assinados, procurando

salvaguardar os interesses do povo palestino e sem prejuízo dos limites neles estabelecidos;

10. Levar em consideração as resoluções internacionais de referência a fim de garantir a

salvaguarda dos direitos nacionais e inalienáveis do povo, e em função dos compromissos

recíprocos com o Estado ocupante;

11. Assegurar a independência das decisões nacionais;

12. Reafirmar o acordo árabe e islâmico, recuperando o apoio da Nação Árabe Islâmica ao povo

palestino e à sua luta em todos os campos;

13. Estabelecer relações construtivas e equilibradas com os demais países do mundo e com as

instituições não-governamentais.88

Em resposta a essas linhas gerais de atuação, em 22 de março de 2006, a Organização para a

Libertação da Palestina (OLP) emite um comunicado no qual rechaça a plataforma de Hamás por

considerar inaceitável o não-reconhecimento da existência de Israel. Por sua vez, em mero respeito

ao processo democrático, Abbas autoriza a posse do novo governo, mas ressalta que este deve

assumir os compromissos políticos já estabelecidos e não oferecer pretextos para Tel Aviv violar os

acordos assinados e impor unilateralmente soluções e fronteiras definitivas.

Quatro dias depois, um Olmert que conduz o Kadima na reta final do processo eleitoral

israelense dá uma resposta que soa como aberta provocação ao Movimento de Resistência Islâmica:

uma vez eleito, o novo governo do Kadima, após uma consulta interna e com os Estados Unidos,

traçará unilateralmente suas fronteiras e continuará tomando decisões sem dialogar com os

palestinos, caso Hamás resolva aplicar seu programa de governo.

Para mostrar o isolamento total do Movimento Islâmico diante da comunidade internacional

e da maior parte dos setores da resistência palestina, Saeb Erekat, principal negociador da ANP,

87

A base para esta colocação está na leitura histórica pela qual Israel só negocia quando os palestinos encontram-se em

situação de fragilidade, sendo que os melhores resultados obtidos até o momento coincidem com os períodos em que a

resistência manteve Tel Aviv sob pressão e colocou a questão palestina no âmbito das preocupações mundiais. 88

Resumimos aqui o conteúdo do programa conforme foi divulgado em HAMÁS. Proyeto para un Programa de

Gobierno de Concertación Nacional, em CSCAweb / Rebelión 24/03/2006.

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declara que não dará sua confiança a esse governo por ele não atender às questões que poderiam

garantir as demandas da população e por não incorporar os interesses nacionais do próprio povo

viabilizados nos Acordos de Oslo e na construção da Autoridade Nacional Palestina”.

- “Há uma coisa que continuo sem entender. Por que Hamás teima em não reconhecer o Estado de

Israel se este já existe e é tão real a ponto de poder reduzir ao pó os territórios palestinos?”,

questiona o homem ao elevar o tom de voz.

- “Simples, querido humano de cabeça grande e olhos míopes. O que para você não passa de

teimosia, para este grupo é uma questão central para a sua sobrevivência como movimento e para

manter de pé a possibilidade futura de criar um Estado palestino que transforme bandeiras históricas

em realidade cotidiana.

Em primeiro lugar, Hamás não reconhece Israel porque Israel não reconhece a Palestina

como Estado independente com direito à autodeterminação. Isso só seria viável com o retorno às

fronteiras de 1967, o fim dos assentamentos e a conseqüente continuidade territorial da Cisjordânia,

além de ter Jerusalém Oriental como capital. Mas esta não é a postura nem dos governos israelenses

que administraram o país após a Guerra dos Seis Dias, nem um desejo de sua população.

A indefinição das fronteiras de Israel tem sido um fator determinante para a política

inaugurada por Golda Meir em 1971, segundo a qual o povo palestino não existe e as fronteiras do

seu Estado na Palestina histórica estão determinadas pelos lugares onde vivem os judeus e não por

linhas traçadas no mapa. Essa posição permite justificar a expansão territorial e introduzir o caráter

judaico do Estado de Israel. Num processo que vai ficando cada vez mais claro, pedir a Hamás que

reconheça o direito de Israel a existir implica em reconhecer Israel como Estado dos judeus, fechar

definitivamente as portas ao retorno dos refugiados palestinos e legitimar a marginalização da

população árabe e não-judaica que vive em seu meio.

Na mesma linha, vai se ampliando e consolidando uma mudança de entendimento do

processo de pacificação árabe-israelense pelo qual a histórica troca de terras por paz, determinada

pelas resoluções da ONU, vem sendo substituída por acordos de paz cujo primeiro item da pauta é o

desarmamento, o controle e a submissão dos grupos da resistência à autoridade central da ANP. O

curioso é que o Quarteto exige dos palestinos que abandonem a violência, mas não há a mesma

pressão quando se trata de exigir isso também de Israel, cuja ocupação militar têm a população civil

como vítima principal. No máximo, o governo de Tel Aviv é repreendido pelo uso excessivo da

força sempre que as operações de suas tropas despertam comoção internacional.

Privada do legítimo direito de resistir militarmente a um exército de ocupação, a resistência

palestina, que apenas responde às ações sofridas, é sistematicamente colocada no banco dos réus,

enquanto Israel assume o papel de vítima e não de agressor, próprio de um exército de ocupação.

Prova clara de quanto acabo de dizer pode ser encontrada nas reações à operação Chuva de

Verão, iniciada por Israel em 26 de junho de 2006, depois que o braço armado de Hamás e os

Comitês de Resistência Popular da Faixa de Gaza golpeiam um posto de fronteira deixando dois

soldados mortos, 4 feridos e um seqüestrado. A resposta ao ataque, dirigido contra forças militares e

cujo resultado pretende trocar o soldado Gilad Shalit por presos palestinos, atinge profundamente a

infra-estrutura civil de Gaza e, em dois meses, mata nada menos do que 205 palestinos, a maior

parte dos quais é de civis sendo que um terço do total é de crianças. Os castigos coletivos (vetados

pela Quarta Convenção de Genebra, da qual Israel é signatário) e os crimes de guerra cometidos

pelo uso de armas proibidas em regiões povoadas são repreendidos pela ONU apenas como uso

desproporcional da força militar”.

Pronunciadas as últimas palavras, a sala mergulha num silêncio de reflexão. Ave e homem

trocam olhares que confirmam a necessidade de perceber como os acontecimentos do presente não

são obra do acaso, mas sim de uma tensão histórica que amplia seu alcance e razão de ser na medida

em que a posição palestina vai se enfraquecendo no tabuleiro das relações internacionais.

- “Isso quer dizer que na Cisjordânia e em Gaza as coisas podem piorar ainda mais...?”, sugere o

secretário ao temer uma resposta afirmativa.

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- “Infelizmente, é o que vai acontecer. Em 1º de abril de 2006, os atritos entre Hamás e Fatah

deixam sinais claros de que um enfrentamento entre as duas facções está preste a eclodir. Com a

suspensão da ajuda financeira à ANP, não há como pagar os salários do funcionalismo cujos cargos

são ocupados em grande maioria por pessoas de Fatah. Sem dinheiro e com os preços nas alturas em

função do bloqueio israelense, os servidores ameaçam entrar em greve. Hamás se defende alegando

que isso se deve às pressões internacionais e, em 5 de maio, milhares de palestinos marcham nas

cidades de Gaza e Ramallah para ratificar seu apoio ao governo eleito sob o lema: melhor passar

fome do que ficar de joelhos.89

Mas palavras de ordem não bastam para resolver problemas que se agravam dia após dia. Os

choques armados entre as duas facções se intensificam deixando dezenas de mortos e centenas de

feridos. Ao perceber que o conflito pode levar a ANP à implosão, o Banco Mundial solicita de Israel

e do Quarteto a liberação de recursos para pagar os ordenados. Em 10 de maio, Israel repassa o que

deve em impostos e quinze dias depois, autoriza a transferência de armas leves e munições às forças

de Abbas sob o pretexto de que se destinam a deter atividades terroristas. Para completar a obra, em

30 de junho, tropas israelenses prendem 64 altos funcionários de Hamás (entre deputados, ministros

e prefeitos) numa operação de grande envergadura na Cisjordânia. No mesmo dia, a aviação reduz a

escombros a sede do Ministério do Interior em Gaza e interrompe o fornecimento de eletricidade

causando a paralisação do abastecimento de água potável, de inúmeras atividades industriais e

comerciais, das escolas e dos serviços de saúde.

Vendo a situação precipitar, no início de julho, membros influentes de Hamás, Fatah, FPLP,

FDPLP e Jihad Islâmica presos nos cárceres israelenses elaboram o Documento de Reconciliação

Nacional dos Prisioneiros Palestinos. O texto reafirma a luta do povo pela libertação dos territórios

ocupados em 1967, a construção de um Estado independente e a necessidade de manter o trabalho

diplomático de negociação política; solicita que todas as facções cumpram o estabelecido pelos

acordos do Cairo, a incorporação de Hamás e Jihad à OLP (tida como único e legítimo representante

do povo palestino) para revitalizar a instituição e preservá-la como frente ampla de coalizão

nacional e suprema autoridade política; reafirma o direito de exercer a resistência contra a ocupação

em todas as suas formas, diz que esta deve se concentrar nos territórios ocupados em 1967 e

envolver todas as camadas populares.

O escrito aponta também a necessidade de elaborar um plano de ação política global, de

unificar o discurso sobre a base do programa de unanimidade nacional palestina, da legalidade árabe

e das resoluções internacionais; a manutenção e a preservação da Autoridade Nacional Palestina e

uma completa reforma dos órgãos da OLP para fazer prevalecer o domínio da lei; a construção de

um governo de unidade nacional que garanta a participação de todos os blocos parlamentares e que

goze do apoio popular, do respaldo da comunidade árabe e internacional a fim de combater a

pobreza e o desemprego e oferecer o maior apoio possível aos setores que carregam a

responsabilidade da resistência; a criação de um programa conjunto destinado a reanimar a questão

palestina em todos os níveis.

O documento reconhece também que a direção das negociações é faculdade da OLP e do

presidente da ANP sobre a base de objetivos nacionais a serem conquistados e implementados

sendo que todo acordo com Israel deve ser submetido ao Conselho Nacional Palestino ou a

referendo popular. No mais, reafirma a necessidade de lutar pela libertação de todos os presos

detidos, pela defesa dos direitos dos refugiados e pelo fortalecimento do processo democrático;

propõe que se trabalhe pela formação de uma frente única de resistência para dirigir e empreender a

luta contra a ocupação, coordenar ações conjuntas e construir uma instância política unificada;

aponta a necessidade de reformar e desenvolver as instituições de segurança para que se tornem

mais eficazes na defesa da pátria e dos cidadãos, contra-arrestando a agressão e a ocupação

israelenses, ajudando a organizar e proteger a posse de armas nas mãos da resistência; e, por fim, a

necessidade de trabalhar pela ampliação do papel e da presença dos Comitês de Solidariedade

89

Em AFP, DPA, La Jornada, 06/05/2006.

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internacionais e dos grupos que lutam pela paz com o objetivo de respaldar a firmeza do povo em

seus enfrentamentos contra a ocupação, contra a colonização dos territórios palestinos e o Muro de

segregação construído por Israel.90

Em 11 de setembro, tendo como base as conclusões acima, Abbas e o Primeiro Ministro

palestino, Ismail Haniyeh, chegam a um acordo para mais uma tentativa de dar vida a um governo

de unidade nacional. O texto final é visto como o reconhecimento implícito de Hamás do direito de

Israel a existir. Dez dias depois, o Quarteto concorda em renovar a ajuda financeira por três meses

como parte do esforço para retomar as negociações de paz com Tel Aviv, mas exige o

reconhecimento explícito de Israel por parte do Movimento de Resistência Islâmica.

Esta postura não deve ser entendida como um mero pedido de esclarecimento a um governo

que está preste a assumir os cargos administrativos da ANP. Na verdade, os Estados Unidos não

querem um governo de unidade nacional em Ramallah, pois este dificultaria qualquer acordo com

Israel que previsse a renúncia das bandeiras históricas palestinas, daí que preferem o caos e o

esvaziamento da ANP a uma instancia que negocie com base em princípios considerados

inaceitáveis. Por isso, de agora em diante, se dispõem a retomar a regularidade da ajuda financeira

apenas como forma de sustentar a presidência palestina e garantir sua confiabilidade política. Os

recursos são entregues diretamente a Abbas (e não ao governo da ANP) e há um controle mais

rígido da destinação final do dinheiro sob a alegação de que os países doadores pretendem evitar

que a ajuda caia na mão do terrorismo.

Em 23 de setembro, coerente com sua posição histórica, Hamás reafirma que não participará

de um governo que reconheça Israel, o que faz voltar à estaca zero o processo em curso. Até o final

de 2006, a conjuntura conhecerá várias tentativas de construir um gabinete de unidade nacional e o

aumento dos choques entre Fatah e Hamás faz emergir o fantasma de uma guerra civil”.

- “E Israel? Já realizou suas eleições para o novo governo?”, indagam os lábios ao retomar um

assunto aparentemente esquecido pela coruja.

- “O processo eleitoral israelense – diz Nádia ao desenhar círculos no ar – se encerra em 28 de

março e num clima apático que leva às urnas somente 57% das pessoas com direito a voto, a mais

baixa participação da história. Dos 120 assentos do Parlamento, o Kadima consegue apenas 28, os

Trabalhistas 20, o ultra-ortodoxo Shas 13, o Likud 12, Israel Beitenu 11, a União Nacional 8, o

Partido dos Aposentados 8 e as demais vagas são distribuídas entre grupos minoritários.

Pouco mais de um mês depois, Olmert consegue formar um governo de coalizão com o

Partido Trabalhista, os Aposentados e o Shas. Sem perder tempo, em 4 de maio, o Primeiro

Ministro anuncia sua intenção de estabelecer as fronteiras permanentes de Israel antes de 2010 e

solicita aos legisladores que apóiem um plano de retirada parcial da Cisjordânia por considerar que

o crescimento desordenado da colonização põe em risco o futuro do país. No seu entender, demarcar

os limites territoriais garantiria uma maioria judaica em áreas econômica, política e militarmente

integradas e serviria de salva-vidas para o sionismo. O projeto implica em fechar dezenas de

pequenas colônias e postos avançados, dificilmente defensáveis, e em anexar grandes blocos de

assentamentos de forma a garantir o acesso às melhores terras, aos aqüíferos subterrâneos e a

bloquear o acesso palestino a Jerusalém Oriental.

Enquanto progridem as conversações internas, a Comissária da União Européia para as

Relações Exteriores, Benita Ferrero Waldemar, em visita a Jerusalém, joga um balde de água fria

nas pretensões de Olmert. Ao reafirmar o entendimento europeu pelo qual uma paz duradoura só

pode vir da negociação com os palestinos, a comissária deixa claro que a União Européia não

reconhecerá nenhuma fronteira unilateralmente fixada por Israel.

Mas os problemas do novo governo não param aqui. Além das operações militares na Faixa

de Gaza, nuvens escuras se aproximam da fronteira com o Líbano. À semelhança do que ocorreu

pelas mãos da resistência palestina, o Hezbollah ataca um posto militar fronteiriço matando 8

90

Resumimos aqui o conteúdo do texto conforme foi divulgado por FDPLP. Documento de Reconciliación Nacional de

los Prisioneros Palestinos, em Rebelión 02/07/2006.

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soldados israelenses e seqüestrando outros 2 a fim de trocá-los por 3 libaneses detidos por Israel

sem processo legal. Em resposta, a aviação de Tel Aviv bombardeia 20 posições do Hezbollah que,

por sua vez, dispara seus foguetes contra várias cidades da Galiléia”.

- “Lá vem mais uma guerra...”, comenta o homem de queixo caído.

- “Na mosca!”, confirma a ave ao piscar os olhos. “Apesar da tentativa da ONU de mediar o

conflito, no dia 17 de julho, as tropas israelenses cruzam a fronteira com o Líbano. Os bombardeios

se intensificam dia após dia e, em menos de uma semana, cerca de 800.000 pessoas (20% da

população libanesa) abandonam suas casas para escapar dos horrores da guerra”.

- “Quer dizer que bastou pouco para acender o estopim e detonar a carga...”.

- “A bem da verdade, a ação do Hezbollah não passa de um pretexto que, de um lado, Israel usa

apostando na possibilidade de a guerra minar o apoio popular conseguido pelo grupo e levar a

população local a se revoltar contra ele. De outro, a recusa inicial dos EUA em atuar a favor de um

cessar-fogo e a acelerada entrega de bombas teleguiadas e demais suprimentos militares revelam

que o governo Bush está convencido de que a paz na região passa, ao mesmo tempo, pela

eliminação do Hezbollah e por manter Síria e Irã (supostos fornecedores do grupo xiita libanês) na

alça de tiro de Israel.

Em 33 dias de conflito, a aviação israelense destrói estradas, pontes, postos de gasolina,

lojas, indústrias destinadas à produção civil, instalações da ONU, milhares de casas e chega a atacar

comboios de civis organizados pela Cruz Vermelha Internacional e pelas Nações Unidas com

deslocamento previamente autorizado pelo comando de operações israelense. A agressão contra o

Líbano deixa danos materiais estimados em US$ 3,6 bilhões, além de causar a morte de 1110

pessoas (civis em sua maioria), sendo que a este contingente se somam centenas de mortes na

medida em que mais corpos são encontrados debaixo dos escombros e outros são vitimados pelas

bombas de fragmentação que não detonaram ao atingir o solo.

Apesar da mídia ter divulgado até a exaustão as imagens dos foguetes Katiusha lançados

contra Israel, dando a impressão de um poder de fogo acima de qualquer expectativa, os números

divulgados por fontes oficiais israelenses revelam uma realidade bem diferente. Em pouco mais de

um mês de hostilidades, a aviação de guerra de Tel Aviv atingiu mais de 7.000 alvos, o exército

lançou 2.500 bombardeios de artilharia e disparou dezenas de milhares de foguetes. De acordo com

a mesma fonte, o Hezbollah não teria disparado mais do que 4.500 foguetes causando a morte de

119 soldados, 43 civis e ferindo outras 75 pessoas.91

Em 30 de agosto de 2006, ao avaliar os estragos do pós-guerra, o Centro de Coordenação

para a desativação de bombas da ONU identifica 359 pontos com mais de 100.000 fragmentos não-

detonados. Nas palavras de Jan Engeland, responsável pela ajuda humanitária das Nações Unidas no

Líbano, o que mais revolta, e eu diria que é completamente imoral, é que 50% dos impactos das

bombas de fragmentação ocorreu nas últimas 72 horas do conflito, quando já se sabia que havia

uma resolução da ONU [ordenando o cessar-fogo] e sabiam que a guerra iria terminar. O que

restou desses artefatos ameaça agora a vida de milhares de civis que, aos poucos, tentam voltar à

normalidade”. 92

- “O que eu não consigo entender é como tamanho poderio militar teve que sair do Líbano com o

rabo entre as pernas...”, comenta o homem intrigado.

- “Simples, meu caro! Em primeiro lugar, é necessário dizer que a opção israelense de realizar

ataques indiscriminados para levar a população a reagir contra o Hezbollah é o principal motivo do

fracasso. De acordo com o ex conselheiro das forças de paz da ONU no Líbano, Timor Gorsel, a

presença do Hezbollah no sul do país se limita a cerca de 700 guerrilheiros em tempo integral que,

por sua vez, contam com o apoio total de 20.000 camponeses, o que permite a eles se manterem

junto à população e ocultar suas bases de operações, deslocamentos e sistemas de comunicação.

Essa integração faz com que, em meio aos horrores da guerra, 70,9% da população continue se

91

Dados publicados em Reuters, AFP, DPA, La Jornada, 05/10/2006. 92

Os dados e a citação foram publicados em AFP, DPA, La Jornada 31/08/2006.

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mostrando favorável à captura dos soldados israelenses e nada menos do que 88% apóie a

resistência contra o exército de Tel Aviv.93

Se isso não bastasse, o povo do Líbano começa a se perguntar para que serve o seu exército

de 75.000 homens se este não pode intervir para defender a população civil agredida por Israel.

Além de desgastar os ministros pró-ocidente, a reação popular legitima o Hezbollah como única

força capaz de resistir à agressão de Tel Aviv. Some agora os protestos de rua que se espalham pelo

mundo e não terá dificuldade em entender porque o apoio interno a este grupo cresce na exata

medida em que os bombardeios procuram aniquilar suas estruturas ”.

- “Sendo assim, as coisas não devem estar indo bem para Olmert”, afirma o ajudante na tentativa de

fechar um capítulo da história.

- “Você tem razão. O desfecho negativo da guerra do Líbano reduz o apoio ao Primeiro Ministro e

setores do exército exigem a sua renúncia. Na crise política que se instala com a abertura das

investigações, Olmert busca fortalecer a posição do seu partido atraindo para o governo a extrema

direita liderada por Avigdor Lieberman que assume o cargo de vice Primeiro Ministro e a nova

pasta de Relações Estratégicas. Com uma maioria parlamentar de 78 deputados, o Kadima mantém

o rumo traçado e, em 1º de novembro de 2006, dá início à operação Nuvens de Outono destinada a

deter os disparos dos foguetes Qassam da Faixa de Gaza e a libertar o soldado Gilad Shalit.

No início de mais uma matança, Lieberman sugere que o exército israelense adote os

métodos dos militares russos na Chechenia que, além de derrotar o poder extremista, preparam uma

direção local alternativa. A declaração, que alguns jornais apresentam como um despropósito, na

verdade apenas confirma o que já está sendo trazido à luz. Na edição de 15 de outubro, o Yediot

Ahronot havia divulgado que os EUA se dispunham a conceder US$ 42 milhões para criar uma

alternativa democrática ao governo palestino, o que incluiria investimentos em educação, apoio a

organizações e jornais de oposição a Hamás, a contratação de conselheiros para assessorar os líderes

de Fatah, o aumento de 4.500 a 6.500 efetivos da guarda presidencial. Um mês e meio depois, em

30 de novembro, o mesmo periódico divulga que o objetivo imediato dos EUA é o de preparar um

contingente confiável para um futuro choque com as forças de Hamás na Faixa de Gaza, tendo o

general Keith Dayton como principal coordenador de segurança a serviço da Autoridade Nacional

Palestina.

Somadas à matança da operação militar israelense, as notícias desgastam Abbas. Peça ainda

indispensável no tabuleiro estadunidense o presidente da ANP tenta jogar mais uma de suas cartas.

Em 16 de dezembro, comunica a decisão de adiantar as eleições presidenciais e legislativas. A

FPLP, a FDPLP e outras facções minoritárias rechaçam a idéia por não haver razão que justifique a

convocação de um novo pleito e pela falta de um consenso palestino. Hamás rejeita a decisão de

Ramallah por considerá-la uma tentativa de golpe e um passo em direção à guerra civil.

Enquanto isso, a posição de Olmert no interior do governo de Tel Aviv torna-se

insustentável. Na tentativa de ganhar fôlego no cenário internacional, às vésperas do Natal, o

Primeiro Ministro israelense transfere aos cofres da ANP U$ 100 milhões em impostos retidos,

marca um encontro para fazer avançar o processo de paz e, em 26 de dezembro, anuncia a

construção de um novo assentamento na Cisjordânia. Se, de um lado, a decisão fortalece sua

coalizão de governo, de outro, inviabiliza sérias negociações de paz justo no momento em que Tel

Aviv estende a mão a Abbas para retomar o diálogo.

O círculo se fecha quando o Egito, mediador dos diálogos entre Fatah e Hamás, transfere

grande quantidade de armas e munições às forças de segurança da ANP na Faixa de Gaza. De

acordo com a edição do Haaretz de 28 de dezembro de 2006, o governo do Cairo acaba de transferir

a Fatah, com o consentimento de Israel, nada menos do que 2.000 fuzis AK-47, 20.000 carregadores

e dois milhões de munições. No apagar das luzes de 2006, a possibilidade de uma intervenção

armada da ANP na Faixa de Gaza ganha feições cada vez mais reais”.

- “Quer dizer que 2006...”, introduz o homem ao tentar entender um ano conturbado.

93

Dados publicados em Reuters, AFP, DPA, La Jornada, 04/08/2006.

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- “Quer dizer que 2006 – emenda Nádia sem perder tempo – se encerra com perspectivas nada

animadoras. De um lado, os enfrentamentos entre Hamás e Fatah na Faixa de Gaza se aprofundam

tornando-se mais freqüentes e violentos. De outro, a operação Nuvens de Outono produz uma

verdadeira matança de civis. A que causa maior comoção ocorre no campo de refugiados de Beit

Hanoun com a morte de 18 pessoas de uma mesma família atingida por uma descarga de artilharia

enquanto dormia.

Diante da impotência da ONU, dos vetos estadunidenses às resoluções que condenam Israel,

das meras repreensões verbais da comunidade internacional e da ausência de um movimento

significativo que denuncie os crimes de guerra no interior da sociedade israelense, o embaixador

adjunto de Tel Aviv, Daniel Carmon, responde aos pedidos das Nações Unidas para o fim imediato

da matança em Gaza dizendo que os

mortos na operação Nuvens de Outono

são vítimas do terrorismo de Hamás. De

fato, se os terroristas palestinos não

atacassem constantemente Israel, se os

foguetes Qassam não fossem disparados

contra Israel o incidente de Beit Hanoun

não teria ocorrido.94

Em resposta ao despropósito, dois

dias depois, a organização de direitos

humanos, Human Rigths Watch divulga

um informe pelo qual de setembro 2005 a

novembro 2006, entre mísseis, morteiros

e fogo de artilharia, Israel realizou cerca de 15.000 disparos contra a Faixa de Gaza, ao passo que os

militantes palestinos chegaram a lançar não mais de 1.700 foguetes, cujo alvo, conforme foi

reconhecido pelos comandos militares de Tel Aviv, é geralmente errático. 95

Diante da comoção que as imagens de destruição ameaçam espalhar pelo mundo, em 17 de

novembro, a Assembléia Geral da ONU aprova uma resolução majoritária que condena as operações

militares na Faixa de Gaza e pede que a matança de Beit Hanoun seja investigada. Contudo, na noite

do mesmo dia, a força aérea israelense retoma o disparo de mísseis contra casas e prédios onde

moram supostos militantes palestinos. Os ataques são suspensos dois dias depois quando centenas

de moradores se colocam como escudos humanos em volta das casas que seriam prováveis alvos

dos aviões militares.

Enquanto as operações bélicas tendem ao fim, a situação na Faixa de Gaza ganha traços de

crise humanitária. Graças ao corte de energia, ao fechamento das fronteiras, ao bloqueio naval em

volta do território costeiro e aos seguidos bombardeios, 70% dos laranjais estão destruídos, fábricas

e oficinas estão paradas, a pesca que, antes de setembro de 2000 oferecia 823 toneladas de peixe por

mês, faz essa quantidade cair a não mais de 50 no final de 2006. 96

De acordo com a ONU, a asfixia econômica à qual Israel submete a Faixa de Gaza deixa

80% de sua população totalmente dependente da ajuda que vem do exterior. Informes do Fundo

Mundial da Alimentação e da Organização para a Alimentação e a Agricultura (FAO), ambos da

ONU, alertam quanto ao fato de que a crescente pobreza e o desemprego obrigam 84% dos

habitantes de Gaza e 60% da Cisjordânia a viver da caridade externa. E, de acordo com a UNICEF,

em 2004, as crianças da Faixa de Gaza, de até os dois anos de idade, que sofriam de anemia e falta

de proteína animal eram 46,5%, enquanto, no final de 2006, já atingiam 70%”. 97

- “Minha nossa! Que desastre!”, prorrompe o homem indignado. “Mas será que em 2007 as coisas

vão melhorar?”, pede a língua quase em tom de súplica.

94

Em AFP, DPA, Reuters, La Jornada 10/11/2006. 95

Os dados e a declaração foram publicados em AFP, Reuters, DPA, La Jornada, 12/11/2006. 96

Dados divulgados em ZIMMER, John, Não pescarás, em IPS / Rebelión 16/02/2007. 97

Dados divulgados em El Mundo, 17/03/2007.

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- “Seria muito bom se a simples passagem de ano trouxesse mudanças positivas, mas, infelizmente,

não é assim - responde a ave ao lamentar com o olhar a frustração do seu interlocutor.

Desde o início de 2007, as relações entre Fatah e Hamás são caracterizadas por uma tensão

permanente. No dia 6 de janeiro, Abbas anuncia a reestruturação dos grupos de segurança da ANP,

o que pressupõe a proscrição da Força Executiva fiel ao Primeiro Ministro palestino, Ismail

Haniyeh. Em resposta, este contingente armado dobra seus efetivos para 12.000 integrantes, num

claro sinal de que não vai acatar as disposições anunciadas. Apostando no acirramento dos conflitos,

o governo Bush fornece U$ 86,4 milhões para os corpos policiais da Autoridade Nacional Palestina.

No início de fevereiro, dirigentes de Hamás e Fatah se encontram na Arábia Saudita para

negociar um acordo que ponha fim aos enfrentamentos. Após 3 dias de intensos debates, a

Declaração de Meca tem como ponto central o reconhecimento de que a OLP se encarregará das

negociações com Israel e o novo governo respeitará todos os acordos a serem assinados. Recebido

como mensagem de esperança para o fim da violência interpalestina, o documento nada diz em

relação aos 3 pontos sobre os quais se ergue o boicote internacional realizado por EUA, União

Européia e Israel: o reconhecimento do Estado de Israel, a aceitação de todos os acordos anteriores e

uma clara renúncia à violência por parte de Hamás.

Sob forte pressão internacional, Abbas adia, por tempo indeterminado, a formação do novo

governo palestino, o que deixa no ar a possibilidade de uma ruptura ainda mais grave. O perigo de

uma guerra civil parece afastado em 15 de março, quando o presidente da ANP aprova o gabinete de

unidade nacional anunciado por Hamás. O novo programa de governo aponta o fim da ocupação

sionista como peça-chave para a estabilidade e a segurança da região e se compromete com a luta

pela autodeterminação do povo palestino e pela defesa de seus direitos e interesses nacionais com

base nos acordos e tratados já assinados pela OLP. Além disso, reafirma o direito legítimo à

resistência vinculando seu fim ao fim da ocupação, à obtenção da liberdade, da independência, do

direito ao retorno dos refugiados e da libertação de todos os presos políticos.

Ao comprometer-se com a busca do consenso, o novo governo propõe uma reforma

profunda das forças de segurança, do judiciário e da administração pública, dando atenção especial à

recuperação econômica de Cisjordânia e Faixa de Gaza”.98

- “Bom, parece sensato e coerente...”, comenta o homem ao acreditar que nem tudo está perdido.

- “Objetivamente falando, as propostas do programa não poderiam ser outras. Mas, se, de um lado, a

União Européia aceita o consenso alcançado para ampliar por três meses seus mecanismos de ajuda

à ANP, de outro, o governo estadunidense mantém Hamás fora de seus planos ao conceder mais

US$ 43 milhões para equipar e treinar a guarda presidencial palestina.

Em 11 de maio de 2007, novos incidentes entre Fatah e Hamás voltam a marcar o cotidiano

da Faixa de Gaza. Apesar do compromisso com a trégua, estabelecido na Declaração de Meca, os

enfrentamentos entre os dois grupos não param. Pouco mais de um mês depois, Abbas dissolve o

governo de unidade nacional, decreta o estado de emergência e convoca novas eleições.

Pressentindo o pior, o braço armado de Hamás assume o controle dos quartéis gerais da ANP

na Faixa de Gaza para impedir que contingentes armados neles entrincheirados pelo tenente-coronel

Keith Dayton assumam o controle da região. Na operação, 30 palestinos são mortos e os feridos

passam de 70. Por elevado que seja, o preço pago é bem menor do que viria a ser caso as forças de

Fatah tivessem saído dos quartéis, levando o pequeno território a uma guerra civil.

Em resposta, Abbas nomeia políticos de sua confiança para substituir os membros de Hamás

no gabinete de unidade nacional, declarado dissolvido pelo próprio presidente da ANP. Para reduzir

o desgaste político a que está sendo submetido, EUA e União Européia abrem linhas financeiras

para sustentar os trabalhos da Autoridade Nacional Palestina, ao passo que Israel reconhece no novo

gabinete um parceiro para a paz.

98

Resumimos aqui os principais pontos do programa do governo de unidade nacional veiculados em Rebelión

19/03/2007.

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Frustrados os planos iniciais, Abbas declara fora da lei as milícias de Hamás e, no dia 20 de

junho, responde à proposta de Hamás de retomar o processo de reconciliação com Fatah dizendo

que não haverá diálogo com esses terroristas assassinos.99

Por sua vez, o movimento islâmico afirma que o governo de Ismail Haniyeh continua no

exercício do poder a ele conferido pelo voto e sublinha que o novo gabinete palestino, liderado por

Salam Fayyad, tem como única legitimidade a da administração estadunidense e da ocupação

israelense.

Em 5 de julho, as fronteiras da Faixa de Gaza são seladas pelo exército de Tel Aviv. Sem

possibilidade de receber suprimentos e exportar seus produtos, 75% das indústrias do pequeno

enclave costeiro se vêem forçadas a paralisar totalmente suas atividades. A produção interna

despenca. Os poucos empregos disponíveis estão ameaçados. O pesadelo de uma crise humanitária

projeta mais sombras de morte sobre uma população que teima em resistir.

Preocupado com o avolumar-se das oposições internas, o presidente da ANP pede à ONU o

envio de uma força internacional para permitir que a ajuda humanitária chegue aos 85% dos

moradores da Faixa de Gaza que dependem dela para sobreviver. Os EUA rechaçam imediatamente

a idéia, pressionam Israel para que liberte os 255 presos prometidos como forma de apoiar o aliado

em dificuldade e, em 2 de agosto, oferecem mais U$ 80 milhões para fortalecer as forças leias a

Abbas. Ironicamente, a liberação do dinheiro à ANP ocorre 3 dias depois de elevar em 25% a ajuda

militar a Israel para um total de US$ 30 bilhões a serem entregues nos próximos 10 anos”. 100

- “As coisas são descaradas a ponto de fazer passar por palhaçada qualquer atitude que mereça o

apelido de esforço diplomático...”, sussurra o secretário ao apoiar a testa na mão esquerda.

- “Na verdade, as idas e vindas dos últimos 18 meses, mostram que a Autoridade Nacional Palestina

não passa de um pseudogoverno cujas instituições não controlam nada e sequer permitem construir

uma estrutura administrativa da qual possa nascer um Estado soberano e independente. Sua força

real não deita raízes no apoio da sociedade civil, mas tão somente na relação clientelista do elevado

número de famílias cujas rendas dependem diretamente dos empregos na sua burocracia e para cuja

manutenção são imprescindíveis os financiamentos das grandes potências. Esta realidade não só

reduz as possibilidades de resistência, como coloca a própria esquerda (que participa do governo) na

incapacidade de formular um projeto alternativo às traições do grupo majoritário.

No cenário de disputa pelos cargos que se instala após os Acordos de Oslo, a luta pelos

direitos palestinos cede progressivamente o lugar a negociações de paz que acabam reafirmando o

status quo. Nelas, Israel dá a impressão de fazer concessões aos palestinos, mas continua se

recusando a tratar das questões centrais (o fim dos assentamentos, a situação dos refugiados e de

Jerusalém Leste); por sua vez, a ANP e a OLP têm suas vidas prolongadas pelo dinheiro que vem do

exterior, apesar das disputas internas, da corrupção, da ineficiência que caracterizam o cotidiano de

suas instâncias.

Esta situação vai ficar escancarada após o fracasso da cúpula internacional de Annapolis, nos

Estados Unidos, em novembro de 2007. Pressionado pela crise econômica e sem resultados

internacionais a apresentar no pleito do ano seguinte, Bush convoca israelenses e palestinos a se

comprometerem com negociações ativas e permanentes rumo a um acordo de paz definitivo a ser

alcançado antes do final de 2008. Preocupada com o tom conciliador de Abbas, parte da resistência

desafia a proibição de realizar protestos imposta pela ANP e, em 27 de novembro, põe na rua

manifestações expressivas em Hebrón, Ramallah, Belém, Nablus e outras cidades da Cisjordânia. A

polícia palestina reprime com truculência qualquer ato contra a cúpula de Annapolis, mas não

consegue evitar o constrangimento de mostrar ao mundo a falta de legitimidade do seu governo”.

- “Desse jeito, as coisas perigam se complicar ainda mais...”.

- “E não é pra menos. Enquanto o bloqueio à Faixa de Gaza não disfarça seu caráter de castigo

coletivo, o desespero pela falta de produtos de primeira necessidade leva os moradores a abrirem

99

Em Reuters, DPA, La Jornada, 21/06/2007. 100

Dados publicados em DPA, AFP, Reuters, La Jornada, 30/07/2007.

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uma brecha na fronteira com o Egito. Milhares de palestinos saem de Gaza para comprar o que for

possível a fim de reduzir sua situação de penúria. Mas esta chance tem os dias contados.

Pressionado por Israel e pelos EUA, o Egito fecha a fronteira e ordena ao exército de abrir fogo em

caso de novas ameaças de invasão.

Se a situação no território controlado por Hamás piora a olhos vistos, a vida na Cisjordânia

não é certamente um mar de rosas. Apesar da postura moderada e conciliadora de Abbas, nos

primeiros seis meses de 2008, o exército israelense submete o território administrado por Ramallah

a nada menos do que 4.650 incursões, causando 32 mortes e prendendo 2.436 pessoas.101

Além de

demonstrar aos palestinos que o governo Abbas só tem autoridade quando o exército de Israel

resolve concedê-la, o fato novo é que parte das operações se destina a fechar orfanatos e associações

beneficentes dirigidas por simpatizantes de Hamás e, por isso, acusadas publicamente de manterem

supostos vínculos com a resistência armada”.

- “Será que o governo de Tel Aviv pirou? Qual o sentido de destruir comida, roupas, móveis e

propriedades destinadas à ajuda humanitária?”, perguntam os lábios incrédulos.

- “A resposta a esta sua indagação – retoma Nádia em tom calmo e esclarecedor – vai vir no início

de março de 2008, quando a revista estadunidense Vanity Fair publica uma matéria com base em

documentos confidenciais. Neles, os informantes provam que Mohamed Dahlan, homem forte de

Fatah na Faixa de Gaza, e Abbas mantiveram estreitos contatos com a CIA, o FBI e autoridades de

Israel em sua conspiração para derrubar o governo democraticamente eleito de Hamás e, contando

com o mesmo apoio, preparam forças que, em coordenação com o exército de ocupação, visam

desmontar o que pode fortalecer Hamás na Cisjordânia. As suspeitam são confirmadas em setembro

de 2008 pelas reportagens do jornalista israelense Nahom Barner e na edição de 26 de outubro do

jornal Haaretz segundo a qual Israel entrega aos corpos de segurança da ANP as listas de pessoas a

serem presas e a polícia palestina se encarrega do resto.

Em breves palavras, destruir orfanatos e associações beneficentes não é um erro tático, mas

sim uma medida que visa conter o avanço do movimento islâmico nos territórios administrados pela

ANP, reduzindo suas possibilidades de apoio junto à população. O desgaste que isso provoca à

imagem da ANP seria compensado pela ausência futura de uma oposição real na Cisjordânia, pela

manutenção das benesses oferecidas pela Autoridade Nacional Palestina e por um ulterior

enfraquecimento do que resta da resistência ativa contra projetos, posturas e propostas de

conciliação que alimentam as dúvidas no governo Abbas.

Em 12 de agosto, um Olmert desgastado por acusações de corrupção e incompetência

apresenta ao presidente palestino um plano de paz pelo qual Israel aceita se retirar de 93% da

Cisjordânia ocupada e troca a área restante por territórios do deserto do Negev junto à Faixa de

Gaza. A proposta limita o retorno dos refugiados a casos excepcionais, nada diz em relação ao

status de Jerusalém e à criação do Estado palestino. Distantes de tudo o que ajudaria Abbas a

reconquistar a legitimidade popular, as colocações do Primeiro Ministro israelense são consideradas

mera perda de tempo e expressão de falta de seriedade. E não é pra menos. Apesar de toda

cumplicidade, vacilação, flexibilidade e moderação nas relações com Tel Aviv, a aceitação pública

da possibilidade de uma paz definitiva com base em tamanho despropósito levaria à implosão

imediata de toda a estrutura da Autoridade Nacional Palestina, algo que nenhum burocrata que se

respeite desejaria ver acontecer.

Após o esperado fracasso, Olmert renuncia ao cargo em 19 de agosto e Tzipi Livni é

encarregada de formar um novo governo sob a liderança do Kadima. Seus esforços são frustrados

pelos ultra-ortodoxos que saem da antiga coalizão e forçam a convocação de novas eleições para

fevereiro de 2009.

Desde o início da campanha eleitoral, a polarização entre o Kadima e o Likud revela que o

tratamento a ser dispensado à Faixa de Gaza será um elemento determinante na disputa pelo voto.

101

Dados copilados através do levantamento mensal realizado pelo ex embaixador palestino na Argentina, Suhail Hani

Daher e divulgados, mês a mês, através do site Rebelión.

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Ceder aos protestos da ONU contra o bloqueio da ajuda humanitária é visto como sinal de fraqueza

diante de uma sociedade civil cada vez mais preconceituosa em relação à população árabe e mais

sensível aos apelos internos que, por caminhos diversos, retocam o projeto sionista de ocupar a

Palestina histórica. As notícias pelas quais a população de Gaza estaria à beira do desespero não são

recebidas em Israel como conseqüências de atos desumanos de suas forças armadas, mas sim como

propaganda eficiente do pulso firme com o qual Tel Aviv se preocupa com a segurança do povo.

De pouco adianta o espernear do secretário geral da ONU, Ban Ki Moon, ao denunciar que

as reservas de alimentos para os refugiados bastam apenas para 4 dias em função da redução dos

suprimentos que dos 70-80 caminhões diários dos anos anteriores passa aos 15 atuais, e isso só nos

dias em que o exército decide abrir momentaneamente as fronteiras de Gaza. Do mesmo modo, são

recebidas como música as palavras de denúncia de Richard Falk, judeu estadunidense e relator

especial das Nações Unidas para os direitos humanos, ao descrever o que está sob os olhos dos

enviados da ONU na Faixa de Gaza: É algo macabro. Não sei ao que tudo isso pode ser

comparado. As pessoas têm falado no gueto de Varsóvia como a analogia mais próxima dos tempos

modernos. Não conheço nenhuma estrutura de ocupação que tenha durado tantas décadas e que

aplique uma agressão tão grave. A magnitude, a intencionalidade, as violações do direito

humanitário internacional, o impacto sobre a saúde, a vida, a sobrevivência e as condições gerais

justificam a denominação de crime contra a humanidade. Esta situação responde a um propósito

claro e direto das autoridades civis e do exército de Israel. São eles os responsáveis disso tudo e

deveriam ser julgados por isso. 102

Diante da crueldade do bloqueio imposto por Tel Aviv, as facções da resistência na Faixa de

Gaza decidem não renovar a trégua que, nos meses anteriores, havia significado a suspensão parcial

dos lançamentos de foguetes. Após seis meses de relativa calma, alguns desses artefatos são

disparados contra a cidade israelense de Sderot. Apesar de não causar vítimas ou danos graves,

Israel usa a ação como pretexto para mais uma agressão que, a partir de 26 de dezembro, o mundo

vai conhecer pelo nome de Chumbo Derretido.

Diante do desenrolar dos acontecimentos, Abbas denuncia que a operação israelense não é

só contra Hamás, mas constitui, sim, um crime de guerra contra todos os palestinos. As palavras que

acusam Tel Aviv, porém, demonstram-se vazias e inconseqüentes dias depois quando, em 28 de

dezembro, o presidente da ANP volta a condenar a ofensiva israelense, responsabiliza Hamás pelos

ataques contra a Faixa de Gaza e pondera que os palestinos poderiam ter evitado isso se tivessem

mantido a trégua. Uma curiosa coincidência com a declaração da Secretária de Estado

estadunidense, Condoleeza Rice, divulgada no mesmo dia, pela qual os Estado Unidos condenam

fortemente os repetidos ataques com foguetes de morteiro contra Israel e responsabilizam Hamás

por romper o cessar-fogo e pela violência em Gaza.103

Em tons diferentes, Jordânia, Síria, Arábia Saudita, Iraque, Irã, Espanha, França, Alemanha,

Rússia, Itália, Grã Bretanha, Argentina, Brasil, Chile, Vaticano, União Européia e o próprio

secretário geral da ONU expressam seu rechaço à violência em Gaza. Mas tudo não passa de uma

medida para consumo interno. Ou seja, trata-se de uma condenação formal que os governos não

podem deixar de fazer para acalmar o descontentamento popular diante de uma situação

injustificável pelos caminhos habituais. De fato, além das palavras, nenhuma medida concreta é

encaminhada para impedir que Israel leve adiante mais um massacre. Enquanto o povo sai às ruas

para dizer não a Israel, na Cisjordânia, as manifestações populares contra os bombardeios

israelenses são sistemática e violentamente reprimidas pelas forças da ANP, em mais uma

demonstração clara do abismo que se estabelece entre as declarações oficias das autoridades e a

pratica cotidiana nos territórios ocupados.

Nos dias que seguem, os horrores da guerra e os bombardeios das estruturas da ONU na

Faixa de Gaza forçam a acelerar a atividade diplomática. Manifestações que reúnem dezenas de

102

Em WALKER, Syd. Israel mata de hambre a Gaza por Navidad, em Rebelión 20/12/2008. 103

Em Reuters, DPA, AFP, La Jornada, 29/12/2008.

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milhares de pessoas, protestos e pressões internas levam os representantes governamentais dos

principais países a apressar as negociações para o cessar-fogo.

Venezuela e Bolívia suspendem as relações diplomáticas com Israel e anunciam que

acusarão Tel Aviv de delito de lesa humanidade contra o povo palestino perante a Corte Penal

Internacional. E não é pra menos: com as fronteiras hermeticamente seladas, sob forte bombardeio,

sem acesso a remédios e alimentos, sem possibilidade alguma de procurar refúgio fora do país e

nem de buscar no exterior tratamento médico adequado para os milhares de feridos, a população da

Faixa de Gaza está literalmente presa numa jaula sobre a qual se abate uma tempestade de fogo.

Em meio aos horrores da guerra e em plena campanha eleitoral, Avigdor Lieberman, propõe

lançar bombas atômicas no território costeiro, expulsar para a Jordânia todos os palestinos da

Cisjordânia, da Faixa de Gaza e os árabe-israelenses que se recusarem a jurar fidelidade a Israel

numa espécie de solução definitiva para a questão palestina. Apesar de espelhar só uma parte do

pensamento da sociedade civil (pois há muitos judeus que protestam contra o genocídio em Gaza), o

discurso de Lieberman, denota um preocupante crescimento e aceitação de uma ideologia de caráter

nazista que combina fundamentalismo religioso, racismo e nacionalismo. Ao que tudo indica, os

filhos das vítimas do holocausto aprenderam com seus carrascos os métodos e as medidas

necessárias para um processo de limpeza étnica em pleno século XXI.

Pressionado pela resolução da ONU que pede o cessar-fogo imediato, Israel põe fim aos

bombardeios em 18 de janeiro de 2009. O saldo

é assustador. Do lado palestino, os prejuízos

materiais são estimados em cerca de US$ 2

bilhões, sendo que 4.150 moradias estão, total

ou parcialmente, destruídas e outras 20.000

apresentam danos mais leves. O arsenal usado

contra a população de Gaza deixa 1.436

mortos, dos quais 492 são crianças, e mais de

6500 feridos. Os mais de 2.500 alvos atingidos

pelos bombardeios incluem 4 instalações da

ONU, 16 centros médicos, 18 escolas, 16

ambulâncias, 51 edifícios governamentais, 150

lojas e a destruição da rede de saneamento

básico a ponto de deixar 400.000 pessoas sem

água potável.

Do lado israelense, o exército reconhece

que os 767 foguetes lançados pela resistência

não chegaram a produzir grandes estragos. Os

mortos são 13, 3 civis e 10 soldados, dos quais

3 vítimas de fogo amigo. Os feridos não

passam de algumas dezenas.104

Diante da catástrofe, a comunidade internacional oferece US$ 4,5 bilhões para reconstruir a

economia da Faixa de Gaza, dinheiro a ser entregue diretamente à Autoridade Nacional Palestina

para que o administre sem a participação de Hamás. Diante da continuidade do bloqueio israelense,

que impede a entrada de materiais de construção indispensáveis à recuperação da infra-estrutura, a

parte dos financiamentos que chega a ser entregue se destina a fortalecer a ANP na Cisjordânia”.

Pronunciadas as últimas palavras, Nádia faz uma pausa. Um silêncio aterrador toma conta da

casa. Rompida pelos trovões da tempestade, a ausência de sons e palavras expressa o desconcerto e

a tristeza em constatar, mais uma vez, que a geopolítica do poder se mantém totalmente indiferente

ao sofrimento humano.

104

Dados publicados em AFP, La Jornada 18/01/2009; AFP, DPA, The Independent, La Jornada 21/01/2009 e em

AKEL, Suhail e DAHER, Hani, em Boda de sangre impuesta al pueblo palestino, em Rebelión, 14/02/2009.

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Ao perceber o peso da situação, a coruja se aproxima do secretário cujas mãos parecem

paralisadas. Apoiada a asa no ombro direito do ajudante, a ave pisca os olhos e pronuncia palavras

que mesclam encorajamento e urgência:

- “Precisamos continuar...”, diz Nádia ao acariciar com suas penas o braço direito do ajudante.

- “Eu sei...”, confirma o homem ainda incapaz de segurar o instrumento de trabalho.

- “Nesta altura - diz a ave ao andar vagarosamente sobre a mesa -, temos que entender o que está

mudando na sociedade israelense e permite legitimar práticas capazes de indignar o bom senso do

passado.

Além do aumento da discriminação e das normas legais que vedam aos palestinos casados

com israelenses o direito de viverem em Israel sob o argumento de que constituem uma ameaça

potencial à segurança, pesquisas revelam que entre 60 e 62% dos entrevistados querem que o

governo de Tel Aviv inste os cidadãos árabes a abandonar o país.

Entre os elementos que explicam esta atitude, está o fato de que, após a vitória de Hamás nas

eleições de 2006, a palavra paz não entra em nenhum programa apresentado nos processos eleitorais

que marcam o calendário político israelense. A mídia trata de mostrar desfiles assustadores de

Hamás prometendo vingança. O medo da retomada dos ataques suicidas é mais forte do que

qualquer outro medo e o país persegue um estado de guerra permanente como pano de fundo em

função do qual toda ação governamental parece legítima e justificável.

Mas isso não é tudo. A partir do segundo semestre de 2005, cresce o número de rabinos,

colonos e judeus ortodoxos para os quais a consolidação de Israel nas terras da Palestina histórica

representa um passo significativo rumo à chegada da era messiânica. Esse movimento, iniciado após

a Guerra dos Seis Dias, em 1967, se fortalece na medida em que as opiniões dos rabinos ganham o

respeito da juventude religiosa judaica e de seus seguidores que, apesar de representar cerca de 10%

da população de Israel, tratam de assumir o controle do exército e dos aparelhos de segurança.

Apresentando-se inicialmente como voluntários nos serviços especiais de combate, em 2008, os

jovens oriundos de famílias ortodoxas já constituem mais da metade dos oficiais do exército e

ocupam posições de comando em 60% das unidades especiais.105

Entre as expressões que visualizam como o sentimento religioso molda os setores-chave das

forças armadas, está a do rabino Israel Rosen num artigo publicado em vários jornais e na edição do

Haaretz de 26 de março de 2008. Ao descrever a semelhança entre os palestinos e os amalequitas,

Rosen cita a Torá para concluir que todos os palestinos devem ser aniquilados, homens, mulheres,

crianças e até seus animais. Para ele, os amalequitas do passado são todos aqueles que odeiam os

judeus por motivos religiosos, por isso podem emergir de etnias e religiões diferentes ganhando

rostos e nomes próprios do seu tempo. Ao se transformar em executores de um mandamento divino,

os judeus estariam apenas cumprindo um dever previsto pelos textos sagrados.

Apesar da comoção que suas posições causam em Israel, vale a pena ressaltar que não se

trata de uma opinião isolada e, pela confirmação do próprio Haaretz, no time das lideranças mais

expressivas que apreciam a interpretação de Rosen, encontramos os rabinos Mordechai Eliyahu

(principal autoridade da corrente religiosa nacionalista de Israel), Dov Lior (Presidente do Conselho

de rabinos da Judéia e Samaria – a Cisjordânia), Samuel Eliyahu (candidato à posição de principal

rabino de Israel), além de líderes políticos como Ori Lubiansky, prefeito de Jerusalém.

Pouco mais de um mês antes da operação Chumbo Derretido, os rabinos Yitzak Shapira e

Yosef Elitzu publicam o livro A Torá do Rei - Leis sobre a vida e a morte entre os judeus e as

nações. Nele chegam a justificar que há razões para matar as crianças quando existe a evidência

de que, ao crescerem, estas irão nos prejudicar; nesse caso, os ataques devem ir diretamente contra

elas e não contra os adultos.106

Para eles, basta esta simples analise para justificar diante de Deus e

dos homens as milhares de crianças palestinas que já foram vítimas da ocupação israelense.

105

Dados publicados em AL-NAAMI, Saleh, Genocídio anunciado, em Al-Ahram Weekly/Rebelión 03/05/2008. 106

Em IGLESIAS, Ánxela, Un libro de rabinos justifica el asesinato de niños, em La voz de Galicia 20/11/2009 e

Rebelión 26/11/2009.

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Não por acaso, após a operação Chumbo Derretido, alguns soldados denunciam a

brutalidade da força militar utilizada, a ausência de regras e limites para o combate, o ódio e a

alegria de matar entre as tropas mesmo quando descarregados contra civis inocentes. Ao finalizarem

seus relatos, parte dos 26 soldados cujos depoimentos são recolhidos pela ONG israelense

Rompendo o Silêncio, destaca o papel do rabinato militar que inspirava o uso desmedido da força

com expressões tais como: Não tenha compaixão, Deus te protege e o que fizer será santificado. O

todo temperado pela noção messiânica de que estavam travando uma guerra santa na qual os filhos

da luz lutavam contra os palestinos, filhos da escuridão. 107

Por limitadas que sejam, as expressões acima nos ajudam a entender as mudanças em curso

na sociedade israelense e a repressão destinada a calar toda organização pacifista que questione as

justificativas militares que predominam no cenário atual. A isso devemos acrescentar a preocupação

do governo com as redes sociais a ponto de criar programas para treinar centenas de pessoas a

vasculharem a internet com o propósito de responder ao que prejudica a imagem de Israel no

exterior e coloca obstáculos ao consenso interno.

A limpeza étnica da Palestina histórica não exige apenas medidas de força, mas também a

construção de um entendimento nacional e internacional que legitime a violência e o crime de

Estado mesmo quando dirigidos contra a população indefesa. Ao correr contra o tempo, Israel busca

ganhar mais terreno agora que a resistência palestina não encontra os caminhos necessários para a

construção de alternativas políticas e para substituir seus meios de ação cuja eficácia é cada vez

mais questionável”.

- “Se as coisas estão assim, então não há o que esperar das eleições para o novo governo de Tel

Aviv...”, diz o homem desconsolado ao balançar a cabeça.

- “Nos dias que antecedem o pleito de 10 de fevereiro, os discursos de todos os candidatos se

concentram no tema da segurança. Do Likud aos Trabalhistas passando pelo Kadima, a promessa é

de agir com mão-de-ferro contra Hamás e de fazer o possível para que o Irã não chegue a ter

armamento nuclear.

Abertas as urnas, o Kadima consegue 28 assentos no Parlamento, o Likud 27, os

Trabalhistas sofrem uma derrota histórica caindo para 13, Israel Beitenu sobe a 15, Shas 11, Lista

Árabe Unida 11, Judaísmo Unido da Torá 5, União Nacional 4, Meretz 3. Tzipi Livni, do Kadima, é

encarregada de formar o novo governo, mas na impossibilidade de conseguir uma maioria

parlamentar, cede o lugar a Benjamin Netanyahu, do Likud. Após várias idas e vindas, em 31 de

março de 2009, é empossada a nova coalizão que, ao todo, conta com uma maioria parlamentar de

69 deputados num total de 120 membros do Parlamento.

No mesmo dia, o recém-empossado Ministro das Relações Exteriores, Avigdor Lieberman,

afirma que seu grupo não vai aceitar acordos que incluam a criação de um Estado palestino. Apesar

de contrariar o espírito dos planos de paz já negociados, a reação às suas afirmações no âmbito

internacional é insignificante. Sobre esta base, em 20 de maio, Netanyahu reitera que Jerusalém

nunca será dividida e permanecerá para sempre como capital unificada de Israel. Três dias depois, o

Primeiro Ministro expressa publicamente suas reservas em relação ao reconhecimento de um futuro

Estado Palestino, afirma que pretende dar continuidade à expansão dos assentamentos na

Cisjordânia e dos bairros judaicos de Jerusalém Oriental, sublinha mais uma vez que os palestinos

devem reconhecer Israel como pressuposto para estabelecer uma nova rodada de negociações.

Com as cartas na mesa, a posição da ANP é cada vez mais complicada. Saeb Erekat,

principal negociador palestino, afirma que a postura de Netanyahu é um retrocesso e implica na

continuidade do conflito entre os dois povos. Para Abbas, o Primeiro Ministro israelense está

sabotando toda iniciativa e esforço de paz já realizados. O problema, porém, é que a fragilidade da

posição palestina é tão grande que, em Israel, todos sabem não passar de uma oposição verbal

passível de ser superada com concessões que satisfaçam a burocracia de suas instâncias de governo.

107

Em GARA, Joven militar israeli: “Las instrucciones eran claras: se tienes duda, mata”. Em Gara/Rebelión,

17/07/2009.

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Quem não está nada satisfeito é o Presidente Barack Obama que vê naufragar as boas

intenções dos discursos dirigidos aos povos árabes. Suas pressões, aliadas às da União Européia

(que teme a ocorrência de distúrbios internos), levam Tel Aviv a adotar um discurso mais

diplomático, mas igualmente indisfarçável.

No frigir dos ovos, Tzipi Livni, do Kadima, intervém no debate público ao dizer que Israel

precisa fazer sem falar, pois, historicamente, esta postura tem sido a mais eficiente. Sabendo que

tudo não passa de repreensões verbais, sem retaliações comerciais, financeiras ou militares, Tzipi

relembra o caminho seguido pelos antecessores de Netanyahu: construir cada vez mais sem fazer

alarde, reafirmando posições e intenções que não precisam ser levadas a sério. O importante é agir

para continuar criando fatos consumados, irreversíveis e, com o tempo, passíveis de esquecimento

ou aceitação pela comunidade internacional. Mais do que declarar Jerusalém capital indivisível de

Israel no momento em que os movimentos islâmicos radicais podem desestabilizar os regimes

árabes que se nutrem dos acordos de paz e do comércio com Tel Aviv, trata-se de moldar

silenciosamente as condições materiais que permitem atingir este objetivo. Daí e necessidade de

uma postura mais diplomática, de expressões menos contundentes, da continuidade do jogo de

estender a mão para a paz sob condições que, de antemão, já se sabe que levarão à recusa palestina e

ao conseqüente rechaço internacional desta recusa.

O problema, porém, está na composição do governo Netanyahu. De fato, os setores

ortodoxos e nacionalistas vêem sua participação como a ocasião de ouro para derrubar toda

resistência ética e moral às ações que reafirmam a necessidade histórico-religiosa de não abrir mão

de um único metro de terra palestina. A fim de apressar a reconstrução do Grande Israel, seus

representantes não pretendem medir palavras e buscam transformar constrangimento diplomático

em fonte de debate no interior da sociedade civil”.

- “Péssimas notícias para os palestinos...”, comentam os lábios perplexos.

- “E não poderia ser diferente!”, confirma a coruja com um gesto que parece unir o passado ao

presente. “No final de fevereiro, Fatah e Hamás, com a mediação do Egito, voltam a negociar a

criação de um governo de unidade nacional que ponha fim à divisão e viabilize um acordo entre as

principais facções da resistência.

Em meados de março, as conversações apontam o 25 de janeiro de 2010 como data das

eleições presidenciais e legislativas da ANP. A impressão de que um acerto pode finalmente estar

próximo não passa, justamente, de uma impressão sucessivamente negada pela deterioração das

relações entre os dois grupos.

Em 4 de agosto de 2009, Fatah inicia seu Sexto Congresso com a presença de 2.250

delegados. Ao longo dos trabalhos não faltam discursos sobre as lutas ocorridas, a importância e o

papel da resistência, a condenação do Muro que Israel continua construindo em terras palestinas e

assim por diante. A retórica, porém, não consegue disfarçar o inegável distanciamento entre as

palavras e a prática da ANP.

Dois meses depois, mais uma desagradável surpresa abala a presidência da Autoridade

Nacional Palestina. Em 2 de outubro, a delegação de Abbas nas Nações Unidas, em Genebra, retira

seu apoio ao informe do magistrado Richard Goldstone sobre os crimes de guerra cometidos por

Israel durante a operação Chumbo Derretido. Para além das pressões estadunidenses, fontes

palestinas revelam que o gesto teria como base duas razões inconfessáveis: a existência de um vídeo

no qual Abbas estaria tratando de convencer Ehud Barak, Ministro da Defesa de Israel, a continuar a

guerra em Gaza e uma gravação telefônica na qual Tayeb Abdel Rahim, Secretário Geral da

Presidência da ANP, avisa o chefe de Estado Maior de Tel Aviv, Dov Weiglass, de que as

condições estão maduras para a entrada do exército israelense em dois grandes campos de

refugiados, cuja queda acabaria com o governo de Hamás em Gaza. Alertado por Weiglass de que

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isso provocaria a morte de milhares de civis, Tayeb responde: todos eles elegeram Hamás, razão

pela qual escolheram seu próprio destino, não nós. 108

Como prêmio pela retirada do apoio ao informe, de acordo com o jornal israelense Maariv,

Abbas receberia de Israel a possibilidade de instalar uma nova rede de telefonia móvel através de

uma empresa dirigida por seu filho.

As notícias provocam manifestações em várias cidades palestinas pedindo a renúncia de

Abbas, do chanceler Riad Kalki, do embaixador Ibrahim Khreishi e o julgamento dos três como

colaboradores de Israel. Neste ínterim, o alto comissário para os direitos humanos da ONU, Richard

Falk, reconhece que a Autoridade Nacional Palestina em Ramallah traiu o seu próprio povo no

momento em que a comunidade internacional esteve preste a aprovar o informe Goldstone. E

lamenta como revelação assombrosa o fato de a representação da luta palestina na ONU ter minado

o informe.109

Sob forte pressão interna e diante dos impasses nas negociações com Hamás, o Presidente da

ANP, cujo mandato expirou há dez meses, marca eleições gerais para janeiro de 2010 e adverte que

não será candidato à reeleição. A OLP e Fatah rechaçam a recusa de Abbas por temer que sua

decisão acirre as disputas internas a ponto de levar à implosão das instituições.

A reação dos grupos da resistência expressa reservas em função da ausência de um acordo

que incorpore Hamás e põe em dúvida às possibilidades do Quarteto vir a respeitar o resultado do

pleito em caso de vitória da oposição. Para Hamás, a convocação destrói os esforços de

reconciliação interpalestina e representa uma rendição da ANP às pressões israelenses e

estadunidenses. Ao perceber a inviabilidade do pleito, em meados de dezembro, a OLP anuncia o

adiamento das eleições presidenciais e legislativas por tempo indeterminado e solicita a Abbas que

continue no cargo para evitar um vazio de poder.

Diante das seguidas situações de desgaste, as negociações com Hamás chegam a um ponto

morto. Dia após dia, a fragilidade da ANP diante de Israel ganha contornos cada vez mais

indisfarçáveis e preocupantes. No início de janeiro de 2010, Abbas cede às exigências estadunidense

de dialogar com Tel Aviv sem qualquer condição prévia, o que deixa no ar a desconfiança de que os

políticos palestinos venham a fazer concessões em questões fundamentais, mascarado-as de avanços

rumo à criação de um Estado independente.

Antes do início dos diálogos, que ocorreriam com a mediação de um diplomata

estadunidense, o anúncio, em 11 de março, de que Tel Aviv acaba de aprovar a construção de mais

1.600 casas nas áreas de Jerusalém que, supostamente, viriam a integrar o território do futuro Estado

palestino, impede à ANP de dar continuidade ao processo. A suspensão das negociações é aprovada

pela OLP e pela Liga Árabe, mas conforme comentário de Netanyahu e do vice-presidente dos

EUA, Joe Biden, o anúncio das novas construções não passa de algo intempestivo, mas não

impeditivo para que, apesar dos atritos entre os dois países, seja proposto um novo diálogo com

Abbas.

- “Se as coisas estão assim, que futuro podemos esperar?”, pede o secretário na tentativa de

vislumbrar um sinal de esperança nas trevas que avançam além da linha do horizonte.

- “Pelo que vimos até o momento, é possível apontar algumas tendências. Em primeiro lugar,

podemos dizer que o projeto de construir o Grande Israel na Palestina histórica consolida velhos

passos e abre um novo caminho sobre o qual já há negociações em curso entre Tel Aviv e Ramallah.

Na inviabilidade material de um Estado palestino e no firme propósito de não voltar à idéia

de um único Estado para dois povos, Israel manobra no sentido de manter sua pesada atuação

armada ao lado de ações que reduzam o desgaste internacional, corrijam a falta de consenso interno

e proporcionem uma aparente saída econômica aos palestinos que desistirem da resistência.

108

Em Politicaltheatrics.org, Mahmud Abbas convenció Israel para continuar el ataque a Gaza, em Rebelión,

08/10/2009. 109

Em Al-Jazeera, 08/10/2009.

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Concretamente, a política de colonização da Cisjordânia já alcançou o que vários dirigentes

da ANP reconhecem como ponto de não-retorno. As seguidas ampliações dos assentamentos

existentes e a abertura de novas frentes de ocupação ilegal de terra palestina para futuras colônias,

para construção do Muro e do sistema de rodovias de uso exclusivo israelense já confiscaram 45,5%

do território da Cisjordânia. Do 54,5% restante, 10,6% é ocupado por enclaves palestinos

completamente isolados do restante do território, o que, além de segregar a população destas áreas,

coloca sob rígido controle toda possibilidade de desenvolvimento econômico e livre movimentação

de pessoas e mercadorias.

Por outro lado, a dependência econômica em relação a Israel atinge níveis que deixam Tel

Aviv com a possibilidade de estrangular a qualquer momento toda fonte de recurso destinado à

sobrevivência da população. Com mais de 75% das importações vindas da economia israelense e

com 90% das exportações destinadas a esse país, basta pouco para que o exército faça sentir o peso

mortal de sua presença também na vida econômica, política e social da Cisjordânia.

No que diz respeito à Faixa de Gaza, a situação é simplesmente desesperadora. De acordo

com as agências de ajuda humanitária, ao longo de 2009, Israel permitiu a entrada de apenas 41

caminhões carregados com materiais de construção, o que transforma em ilusão qualquer esperança

de recuperação do território costeiro castigado pelas operações militares e o bloqueio econômico.

Cerca de 46% da terra agrícola de Gaza está inutilizada, as atividades industriais enfrentam

uma paralisia crônica e as áreas urbanas bombardeadas revelam altos índices de contaminação por

metais tóxicos ou cancerígenos como cromo, cádmio, cobalto, tungstênio, urânio e chumbo

utilizados nos artefatos despejados pelos ataques aéreos.110

No momento em que escrevemos estas

linhas, 90% das casas sofrem cortes de eletricidade todos os dias, 48% das instalações de saúde

estão total ou parcialmente destruídas, a população recebe através da ONU somente 25% dos

alimentos que garantiriam uma vida saudável, o saneamento básico está á beira do colapso.

O estrangulamento deste enclave onde a resistência palestina se mantém viva está dando

mais um passo com a construção de

um muro de aço e concreto na

fronteira com o Egito. Pelas

informações disponíveis, a nova

barreira contaria com painéis de

aço enterrados dezenas de metros

debaixo da terra e conectados com

um sistema de bombeamento da

água do mar para saturar o solo,

inundar os túneis existentes (por

onde passa um mínimo de alívio à

população e à resistência) e impedir

que novos sejam construídos.

Completada a obra com um

novo sistema de controle do acesso

marítimo, a Faixa de Gaza ficaria

hermeticamente fechada ao mundo externo. Com a desculpa de garantir a soberania e impedir que

uma fronteira porosa subterrânea sirva aos propósitos de grupos terroristas, o Egito retribui as

concessões militares e financeiras recebidas dos EUA, isola Hamás da base social que lhe deu

origem em seu território, acaba com o que pode proporcionar centelhas de bem-estar à população,

reduz o risco de ter que enfrentar à bala uma nova invasão de palestinos desesperados e se reafirma

como aliado confiável nas relações com o Ocidente e com Israel”.

110

Dados publicados em NEW WEAPONS COMMITTEE, Los metales detectados en el cabello de los niños

palestinos de Gaza indican la existencia de contaminación medioambiental, em New Weapons

Committee/Rebelión 20/03/2010.

A difícil tarefa diária de conseguir água potável em Gaza

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- “Alguma esperança para Jerusalém Oriental...?”.

- “Os estudos produzidos até o momento mostram o progressivo esvaziamento da população árabe

que mora nesta região da cidade. Iniciada em 1967, a limpeza étnica vem se acelerando nos últimos

cinco anos em função de vários fatores. O primeiro deles diz respeito à impossibilidade material de

um palestino construir legalmente a sua nova casa. Além dos altíssimos custos do alvará, da demora

em responder à sua solicitação, da sistemática redução da área destinada à obra, menos de 10% das

demandas recebe resposta afirmativa. Arriscar-se a construir sem permissão oficial é sinônimo de

receber um comunicado da prefeitura com a data da demolição.

Processo parecido ocorre em relação às moradias erguidas antes de 1967. Neste caso, basta

um simples relatório do exército alegando razões de segurança, raramente comprovadas, para que a

família receba uma ordem de desocupação. Sem lar, muitos casais palestinos recém-formados não

têm outra escolha a não ser a de abandonar a cidade.

As áreas desalojadas são imediatamente utilizadas para novas edificações nas quais irão

morar judeus israelenses. Este movimento vem se acelerando nos últimos anos. Em 2007, Israel

ergueu 46 casas em Jerusalém Oriental; em 2008 foram 1.761; no ano seguinte 1.512; e, de janeiro a

março de 2010, são aprovados três projetos governamentais para a construção imediata de mais

1.732 unidades habitacionais, sendo que, de acordo com o grupo israelense pela paz Ir Amim, já há

20.000 moradias em fase de obtenção do alvará e outras 30.000 que o governo planeja construir

num plano que reduziria ao mínimo a presença árabe na cidade. 111

O segundo fator consiste na proibição, aprovada em 2003 através da Lei de Cidadania, pela

qual os casais formados por israelenses e palestinos sem identidade israelense ou sem permissão de

morar em Jerusalém são impedidos de viverem juntos nos territórios controlados por Tel Aviv. A

possibilidade de reunificação familiar só pode ocorrer em áreas administradas pela ANP ou de

forma clandestina, no interior de Israel. As dificuldades criadas pela separação dos cônjuges têm

levado dezenas de famílias a saírem de Jerusalém Oriental.

Na mesma direção, encontramos a campanha de confisco das identidades israelenses de

palestinos que, de acordo com as sinalizações da prefeitura de Jerusalém, vivem fora dos limites do

município. A quantidade de pessoas atingidas por esta medida vem aumentando ao longo do tempo,

passando de 222 em 2005, para 1.363 no ano seguinte e 4577 em 2008.112

A possibilidade de

reverter esta situação é bastante reduzida, depende de processos judiciais dispendiosos e cujos

veredictos são raramente favoráveis.

O terceiro elemento é dado pela atuação dos colonos que moram neste setor da cidade e que,

em 2009, tem se tornado mais contundente. Além das humilhações e das ameaças verbais, bandos

formados por jovens e adultos têm atacado e depredado lojas e casas levando o pânico entre a

população palestina desprotegida.

Para completar a obra, temos os efeitos do Muro de separação (que impede a cerca de 55.000

palestinos o livre acesso ao trabalho e a qualquer atividade comercial), os problemas causados pela

crise econômica mundial e pelo baixo nível dos serviços municipais nas áreas da saúde, educação,

saneamento e coleta de lixo. O tratamento discriminatório em relação ao setor ocidental de

Jerusalém é mais um convite a deixar a cidade nas mãos dos judeus.

Por tudo o que dissemos, os pesquisadores são unânimes em reconhecer um crescente

processo de judaização do setor oriental de Jerusalém. De junho de 1967 a dezembro de 2009,

calcula-se que cerca de 35% de seus antigos moradores tenham sido forçados a deixar a área que

hoje conta com uma população de 200.000 israelenses e 270.000 palestinos. Se as coisas

progredirem no ritmo atual, Tel Aviv vai completar a limpeza étnica deste setor em 2020. Pouco a

pouco, vai fazer cada vez menos sentido reivindicar Jerusalém Oriental como futura capital do já

inviável Estado palestino”.

111

Dados divulgados em: The Independent, 31/08/2008; Público, 30/12/2009; La Jornada, 10/03/2010. Os planos

que se referem às construções futuras, foram publicados em International Middle East Media Center, En Jerusalén Este,

se planea construir 50.000 casas para colonos, em International Middle East Media Center / Rebelión, 14/03/2010. 112

Dados publicados em Mídia Monitor Network, 16/12/2009 e IPS, 10/09/2008.

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- “Mas será que ninguém vai fazer nada?”, prorrompe o homem ao constatar que as possibilidades

do passado parecem se fechar inexoravelmente diante dos novos acontecimentos.

Frente à pergunta já esperada, Nádia emite um longo suspiro. Em seguida abre as asas e, ao

olhar para as folhas do relato, responde:

- “No momento, a questão palestina caminha rumo ao esquecimento, que deu o tom à política

israelense e estadunidense dos anos 50, com eventuais idas e vindas em função de espasmos de

revolta popular. Apesar dos crimes e dos abusos de Israel, as repreensões verbais e o silêncio

cúmplice da comunidade internacional não têm servido apenas para manter as relações comerciais e

diplomáticas com Tel Aviv, mas também para realizar com ele e através dele os passos da

geopolítica mundial.

Conseguida a dependência do fornecimento de material bélico e assessoria militar dos EUA,

os países da Liga Árabe têm mostrado que suas críticas envergonhadas não passam do nível verbal e

nem apontam à possibilidade de retaliações econômicas nos moldes implementados ao longo dos

anos 70. Em relação à Síria, Líbano e Irã, o exército de Israel mantém viva e azeitada a política do

dedo no gatilho, pronto a disparar ao menor sinal de ameaças. Isso sem contar que qualquer ação

armada contra o Irã não dispensará a atuação israelense como peça-chave de mais uma intervenção

estadunidense na região. No fundo, esta é uma das cartas que, guardadas na manga de Tel Aviv,

permite chegar a graves atritos com os Estados Unidos e a União Européia na certeza de que as

grandes potências acabarão perdoando qualquer ruptura dos acordos com os palestinos rumo a uma

paz que já sabem ser improvável e distante de suas reivindicações históricas.

Além disso, é justamente esse jogo de forças que está credenciando Israel a se tornar o 29º

país membro da OTAN, após ter sido admitido no núcleo de nações que integram o Diálogo do

Mediterrâneo113

e ter realizado dezenas de treinamentos militares com as forças da própria OTAN.

A velocidade com a qual a visão estratégica comum vai se transformar em inclusão de fato e de

direito na Organização do Atlântico Norte vai depender das reações dos vizinhos árabes pró-

estadunidenses interessados em evitar que elementos da conjuntura internacional fortaleçam o

crescimento em curso de movimentos de oposição junto à população local. Se tudo correr de acordo

com as previsões, não há sinais de que, no futuro imediato, as ações armadas dos grupos que atuam

na fronteira entre o Iêmen e a Arábia Saudita, a evolução da situação no Iraque, a política do Irã, a

atuação da Síria e as relações de poder após as eleições no Egito venham a representar uma

mudança significativa na evolução da questão palestina de curto prazo.

Um elemento interessante, mas ainda incipiente, é dado pela atuação de grupos pacifistas

israelenses preocupados com o caráter racista e totalitário que o Estado vem assumindo nos últimos

anos. Além das ações conjuntas com movimentos palestinos na luta não-violenta contra a

construção do Muro e das recentes manifestações para frear a ampliação dos assentamentos, não há

nem projeto de atuação comum, nem atividade parlamentar, nem uma influência na mídia que seja

capaz de sugerir aos israelenses a necessidade de ver o que a ação governamental tem conseguido

esconder de seus olhos.

Ao visualizar neste agrupamento uma possível ameaça aos planos de governo, Tel Aviv não

tem poupado esforços para atacar as redes sociais que desmascaram seus crimes, reprimir

violentamente manifestações pacíficas e promover a criminalização dos seus líderes. Se isso não

bastasse, desde meados de janeiro de 2010, o Ministério do Interior vem negando vistos de trabalho

à maioria dos cidadãos estrangeiros que atuam nas 146 ONGs presentes em Jerusalém Oriental e nas

áreas administradas pela ANP, impõe restrições de acesso à Cisjordânia e à Faixa de Gaza e impede

que até mesmo parlamentares europeus entrem no território costeiro. A política de reduzir o número

de testemunhas não é nova. A intensidade com a qual vem sendo aplicada leva a crer que o governo

Netanyahu se prepara para enfrentar com força redobrada as expressões mais agudas da resistência

113

O Diálogo do Mediterrâneo é um foro de cooperação do qual participam os países da OTAN além de Argélia,

Tunísia, Marrocos, Egito, Israel, Jordânia e Mauritânia.

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para limitar o risco de que as mesmas desemboquem numa nova Intifada ou alimentem sentimentos

excessivamente contrários às posições israelenses pelo mundo afora”.

- “E a resistência palestina? Alguma idéia sobre o que pode vir a acontecer com ela?”.

- “No momento, estamos assistindo tanto à falta de eficácia das formas de luta já praticadas, como à

ausência de uma estratégia de ação minimamente unificada entre os grupos de oposição dentro e

fora da ANP, sem contar a tentativa em curso de esvaziar a influência de Hamás na Cisjordânia que

une os interesses do exército israelense aos de Fatah. De junho 2006 a fevereiro 2010, cerca de

1.000 militantes do Movimento de Resistência Islâmica foram presos pelas forças de segurança

palestinas ou nas incursões do exército israelense, sendo que outros 1.200 integrantes perderam seus

cargos na estrutura administrativa da ANP. No mesmo período, cerca de 150 instituições (entre

orfanatos, escolas, cooperativas, grupos de assistência social às famílias dos presos, etc.) que

integravam uma suposta rede beneficente de Hamás na Cisjordânia foram fechadas e tiveram seus

bens confiscados.

Pensada como peça fundamental para garantir o controle de Fatah na região, esta política

acabou aumentando a popularidade de Hamás na Cisjordânia a ponto de elevar os temores de uma

derrota esmagadora do grupo majoritário da ANP em futuras eleições. Visto inicialmente como a

voz mais influente contra a ocupação israelense, o Movimento de Resistência Islâmica tem sua

popularidade reduzida na Faixa de Gaza, por ele administrada. Longe de ser fruto do sofrimento

provocado pelo bloqueio israelense, esta situação deita raízes nas denúncias de corrupção de alguns

funcionários do governo e na percepção da juventude local para a qual a moderação política de

Hamás demonstrada nas tentativas de articular um governo de unidade nacional diminui as

possibilidades de luta contra Israel.

Resta saber até a que ponto o descontentamento que borbulha nos territórios palestinos tem

chances reais de ganhar organicidade e consistência a ponto de sustentar uma terceira Intifada ou, o

que parece mais provável, vai produzir apenas enfrentamentos pontuais que, como espasmos de dor,

marcam a reação aos processos com os quais Israel fecha as portas à construção de um Estado

palestino independente”.

- “Se as coisas estão assim, então, a Autoridade Nacional Palestina está com os dias contados!”,

conclui o secretário sem pestanejar.

- “Eu não teria tanta certeza – rebate a coruja ao balançar a cabeça. De um lado, já faz tempo que há

um descolamento entre o governo da ANP e as bases da resistência que deram origem às Intifadas.

A coisa é tão escancarada que, além dos absurdos já descritos nas relações com Tel Aviv, Abbas se

opõe ferrenhamente à inclusão de Marwan Barghouti, líder de Fatah preso em Israel, na lista dos

prisioneiros a serem trocados pela soltura do soldado Gilad Shalit que continua nas mãos da

resistência. Respeitado e com livre trânsito em todas as correntes que mantêm bases organizadas,

sua presença e atuação dentro ou fora dos Territórios Ocupados poderia causar uma reviravolta

política a partir dos setores descontentes de Fatah que, apesar de minoritários e enfraquecidos, não

desistem da resistência contra a ocupação israelense.

Por outro lado, a Tel Aviv não interessa que a ANP feche as portas neste momento, mas sim

que ajude a legitimar politicamente o progressivo esvaziamento das demandas históricas palestinas.

Trocado em miúdos, trata-se de permitir a ampliação em pequena escala do que já vem ocorrendo

em algumas cidades. Estamos falando, da implantação de um pequeno parque industrial, com o

dinheiro dos países doadores, na região de Belém e da construção de alguns centros comerciais em

cidades próximas ao Muro, como forma de gerar emprego e renda que em nada obstaculizam os

propósitos da política de Israel, ao contrário, a integram como a cenoura oferecida ao burro após as

violentas bordoadas às quais foi, e ameaça ser, submetido.

O pouco que está sendo implementado faz pairar no horizonte a possibilidade de dar vida ao

que alguns chamam pomposamente de política de desenvolvimento de regiões palestinas da

Cisjordânia capaz de melhorar a qualidade de vida dos seus moradores. A gravidade da situação

geral transformaria migalhas de bem-estar em base para avanços econômicos e para cooptar as

novas gerações. Aos poucos, a população local se veria diante de um divisor de águas bastante

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incômodo: abandonar a resistência e participar de uma relativa melhora nas próprias condições de

vida, ou radicalizá-la e ter o inferno de Gaza como termo de comparação do que pode acontecer.

Graças a esses passos, que contam com o apoio da Liga Árabe, do Quarteto e do próprio

Netanyahu, a ANP aposta em conseguir reduzir as pressões internas e se manter de pé tanto quanto

basta para assegurar níveis confortáveis de esvaziamento da resistência e de manutenção da ordem,

sempre sob estrita supervisão do exército israelense.

Sem abrir mão da coerção, Israel deve cozinhar a Cisjordânia a fogo lento na tentativa inicial

de legitimar o avanço de seus planos para a Palestina histórica em áreas onde, no momento, não há

como justificar uma ação de força nos moldes aplicados na Faixa de Gaza e nem elevar a sufocante

presença militar a ponto de ter que dirigir ao exército parte sensível dos preciosos investimentos que

sua economia precisa. Sendo assim, no lugar de jogar a ANP na fervura de uma agressão

politicamente insustentável, trata-se de utilizá-la para continuar minando as bases ideológicas e

materiais da resistência na Cisjordânia.

Ao deixar que se ofereça uma sombra de bem-estar em troca da submissão a uma ordem

interna cujo tutor oficial continua sendo o governo da Autoridade Nacional Palestina, Israel não

deixaria de pressionar os palestinos locais com sua ocupação militar, apenas levaria um interlocutor

sem poder a ajudá-lo na dura tarefa de transformar o sonho do Estado palestino, do retorno dos

refugiados e de Jerusalém Leste como capital em coisas do passado.

Com estas medidas, a elite judaica não deixa de construir o Grande Israel, apenas procura

criar mais condições pelas quais uma nova reação da resistência possa ser lida como recusa

injustificada de acatar uma solução viável e, de consequência, seja usada para legitimar operações

militares sem que a própria resistência saia do banco dos réus”.

- “Mas isso é diabólico!”.

- “Não, querido humano de óculos. Trata-se apenas de uma realidade atroz que precisa ser

acompanhada e enfrentada a fim de desmascarar seus propósitos e vislumbrar as contradições que

traz em seu seio. O futuro que nasce deste presente não traz boas notícias aos refugiados palestinos

e nem às famílias que, durante décadas, alimentaram a fileiras da resistência.

Destes setores ninguém pode esperar o simples esquecimento de sua tradição de luta ou a

aceitação passiva da realidade que se prepara, mas sim a busca de um novo e sofrido caminho pelo

qual seja possível fazer renascer o desejo de justiça e liberdade apesar das traições que marcam os

passos do presente”.

Pronunciadas as últimas palavras, Nádia deixa a mesa forrada de papéis e alcança a janela de

onde mergulha na escuridão da noite.

Instantes depois, um raio une céu e terra provocando um trovão que faz tremer as paredes da

casa. O silêncio da cidade é violentado por um barulho ensurdecedor capaz de abalar o sono mais

pesado.

Talvez seja apenas um sinal de que o pior ainda está por vir. Talvez o anúncio de que as

contradições alimentadas nas sombras precisam ser trazidas à luz. Mas talvez seja apenas um

convite a sacudir o mundo do torpor e da omissão que, dia após dia, anestesiam o sentimento de

indignação dos povos diante das injustiças que marcam o cotidiano da história.

Brasil, 31 de março de 2010.

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Além do acompanhamento diário das agências de notícias internacionais, foram consultados

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Obs.: Todos os materiais extraídos do site Rebelión, constam da página de internet:

http://www.rebelion.org/seccion.php?id=17 focada na Questão Palestina. A data que segue cada

citação é a da divulgação por este meio.

A lista eletrônica de traduções por mim produzidas e à qual se faz referência encontra-se no site:

http://groupsgoogle.com.br/group/chiapas-palestina/. Os textos citados estão sob o título “Vida na

Palestina”.