na biblioteca, o tamanho dos sonhos - lívia furtado

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Imagine uma vida sem escolhas. Imagine uma vida sem sonhos. Imagine um caminho sem desvios. Imagine não ter caminhos.Desenvolvido em formato de grande reportagem, o trabalho busca compreender a história da Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura, na região de Parelheiros, extremo sul da cidade de São Paulo, e a importância de suas atividades de mediação de leitura para a comunidade. A narrativa é desenvolvida sob a ótica de quatro dos seus articuladores, jovens que entraram para o projeto ainda adolescentes e cresceram ali. Ao acompanhar a vida desses garotos, hoje jovens adultos, é possível perceber a influência da literatura e da mediação em suas vidas, identidades e sonhos. Trabalho de conclusão do curso de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), orientado pela professora Dra. Cremilda Medina. Julho/2014.

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    na biblioteca,

    otamanhodossonhosL V I A F U R T A D O

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    na biblioteca,

    o tamanho dos sonhosL V I A F U R T A DO

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    Texto Lvia Furtado

    Reviso Vivian MilanoCapa e projeto grfico Lvia Furtado

    Crditos das imagens

    Lvia Furtado (p. 10, 18-19, 114-115, 206-207 e capa)

    Alexandre DallAra (demais otos)

    Fontes Calendas Plus & Finlek

    Agradecimentos especiais a Alexandre DallAra, pelas otos; DeniseEloy, pela cmera; Vivian Milano pela reviso cuidadosa e a Alexan-

    dre Franco e Monique Sena pelas ideias e auxlio tcnico na criao

    do projeto grfico e na diagramao.

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    L F F

    Na biblioteca,

    o tamanho dos sonhos

    rabalho de concluso de cur-

    so desenvolvido pela aluna LviaFernandes Furtado, do curso de

    Comunicao Social Habilita-

    o em Jornalismo, da Escola de

    Comunicaes e Artes da Univer-

    sidade de So Paulo.

    Orientadora:

    Pro. Dra. Cremilda Medina

    S P

    2014

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    Ana Luiza, por tudo e pra sempreE aos Escritureiros, por me fazerem

    acreditar num mundo melhor

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    ResumoDesenvolvido em ormato de grande reportagem, o trabalho busca com-preender a histria da Biblioteca Comunitria Caminhos da Leitura, na

    regio de Parelheiros, extremo sul da cidade de So Paulo, e a impor-

    tncia de suas atividades de mediao de leitura para a comunidade. A

    narrativa desenvolvida sob a tica de quatro dos seus articuladores, jo-

    vens que entraram para o projeto ainda adolescentes e cresceram ali. Ao

    acompanhar a vida desses garotos, hoje jovens adultos, possvel perce-

    ber a influncia da literatura e da mediao em suas vidas, identidades esonhos. A reportagem apresenta tambm um aparato terico ocado no

    papel transormador da literatura, baseado, principalmente, nas obras

    dos escritores e pesquisadores Antonio Candido, Michle Petit, Cecilia

    Bajour, Yolanda Reyes, Cremilda Medina e Katiuscia Fogaa.

    Palavras-chave: reportagem, biblioteca comunitria, projeto social, me-

    diao de leitura, literatura, Parelheiros, Michle Petit, Antonio Candido

    ResumenDesarrollado en ormato de gran reportaje, el trabajo intenta compren-

    der la historia de la Biblioteca Comunitaria Caminhos da Leitura, en

    la regin de Parelheiros, extremo sur de la ciudad de So Paulo, y la

    importancia de sus actividades de mediacin de lectura para la comu-

    nidad. La narrativa se desarrolla bajo la ptica de cuatro de sus articula-dores, jvenes que adentraran al proyecto an adolescentes y crecieron

    all. Al acompaar la vida de esos chicos, hoy jvenes adultos, es posible

    notar la influencia de la literatura y de la mediacin de lectura en sus

    vidas, identidades y sueos. El reportaje tambin trae un aparato teri-

    co con oco en el papel transormador de la literatura, undamentado,

    principalmente, en las obras de los escritores e investigadores Antonio

    Candido, Michle Petit, Cecilia Bajour, Yolanda Reyes, Cremilda Me-dina y Katiuscia Fogaa.

    Palabras clave:reportaje, biblioteca comunitaria, proyecto social, media-

    cin de lectura, literatura, Parelheiros, Michle Petit, Antonio Candido

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    Sumrio12 Apresentao

    19 Abre-se a cena:

    os Escritureiros vm a

    31 Eixo 1: espao

    53 Eixo 2: acervo79 Eixo 3: gesto compartilhada

    114 Eixo 4: mediao

    157 Eixo 5: incidncia poltica

    189 Eplogo, ou dirio de campo

    199 Agradecimentos

    203 Reerncias bibliogrficas

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    Imagine uma vida sem escolhas.

    Imagine uma vida sem sonhos.Imagine um caminho sem desvios.

    Imagine no ter caminhos.

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    Apresentao

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    14 Como dicil saber onde comea uma histria.

    Olhando para trs, para esses cinco anos de gradua-

    o, no consigo determinar o desvio exato do caminhoque me trouxe at aqui. Desvio, pois este livro no esta-

    va nos meus planos no que eu tivesse muitos planos

    quando ingressei na USP em 2009. Mas, definitivamen-

    te, um livrorreportagem no era um deles. Sonhava, sim,

    em publicar um livro: muita fico, nada de jornalismo. O

    trabalho de concluso ugiria desse monstro chamado re-portagem, como tentei ugir ao longo de todo o curso, me

    embrenhando nas reas de design, diagramao e reviso.

    Ficaria no caminho seguro da monografia.

    Penso nisso e no consigo apontar quando, o qmetrouxe at aqui. Conseguiria listar muitos atores, e talvez

    o primeiro, mas no o definitivo.

    alvez tudo tenha comeado quando, em busca de

    matrias optativas, no meu segundo semestre de aculda-

    de, me deparei com uma disciplina de nome intrigante:

    Narrativas da Contemporaneidade. Estranhamente, ela

    no apresentava no sistema resumo, objetivo, bibliografia,nada. Era uma pgina em branco, apenas com um nome

    de reerncia: Cremilda Medina. Arrisquei e me inscrevi

    na que oi, de longe, a disciplina mais gratificante desses

    cinco anos de Jornalismo.

    Minhas tardes s teras oram preenchidas com a con-

    vivncia entre alunos de cursos completamente dierentesdo meu e com senhores e senhoras do programa USP na

    erceira Idade. ive pela primeira vez meus textos real-

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    15mente dtados,lidos com olhar crtico. Sa da minha zonade conorto, entendi que a comunicao uma comunho,

    uma relao e troca de signos. Experimentei. Narrativasera o ensino de como azer uma grande reportagem, na

    teoria e na prtica, e oi onde, pela primeira vez, descobri

    que escrever uma reportagem poderia ser algo prazeroso

    o parto dolorido de um filho por quem voc irremedia-

    velmente se apaixona.

    O segundo momento oi em 2011, quando estagiei naFlip. Expandi meus horizontes literrios e me embrenhei

    no mundo da literatura de uma maneira at ento desco-

    nhecida pra mim: antes leitora vida, mas pouco crtica,

    aprendi ali apnsara literatura. Conheci escritores, obras,teorias, e, mais importante do que tudo isso: conheci Mi-

    chle Petit. A antroploga fancesa, convidada para alar

    em uma das mesas do evento, encantou-me, e comprei seu

    livroA Art d Lr(2009). Parado na minha estante, lem-brei-me dele na tarde de junho, j em 2013, sentada no

    so da casa da proessora Cremilda. Eu havia pedido que

    ela me orientasse no trabalho de concluso e estvamosconversando sobre os possveis temas os quais eu poderia

    abordar. Depois de mais de um ano tentando decidir-me

    por um assunto que osse ligado literatura, mas no aca-

    demicista demais, havia chegado a dois temas. A conversa

    ez-me escolher alar de bibliotecas comunitrias e, che-

    gando em casa, mergulhei emA Art d Lr.Apaixonei-me j na introduo. Petit, que j estudara

    mediao de leitura no interior da Frana, passara anos

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    16 estudando o tema na Amrica Latina, e nesse livro rela-

    ta os diversos projetos de mediao com que teve contato

    nos pases sulamericanos. Encantou-me a ideia de que umprojeto social em que uma pessoa l para outra pudesse

    mudar minimamente a vida de algum em situao de cri-

    se. De uma criana, adolescente, de um adulto que nunca

    antes tivera contato com um livro de repente expandir

    seus horizontes atravs do contato com a literatura.

    E, pensando agora, talvez tenha sido eso desvio docaminho que me levou a Parelheiros: um livro. Aqlli-vro.A Art d Lrme transormou da mesma maneira quePetit descrevia livros de fico transormando a vida de

    adolescentes em uma avela do Rio de Janeiro. Mas hou-

    ve outro desvio to importante quanto esse, na orma de

    uma mulher alta, negra, de cabelos cacheados cheios de

    personalidade e sorriso contagiante: Isabel Santos Mayer.

    Aps alguns meses de pesquisa, lendo teorias sobre lin-

    guagem, tentando encontrar um caminho, ui assistir, des-

    pretensiosa, a uma palestra do Conversas ao P da Pgina,

    evento anual sobre leitura e mediao organizado pela Re-vista Emlia e pelo centro de estudos A Cor da Letra. L,

    morrendo de sono em uma tarde fia de setembro, comecei

    a ouvir a histria de uma biblioteca. De repente, me vi com-

    pletamente acordada, prestando ateno em cada palavra

    contada. Uma biblioteca em um cemitrio. Um projeto de

    mediao de leitura com adolescentes. A histria de jovensque, sem nenhuma perspectiva de uturo, tiveram contato

    com a literatura e mudaram completamente sua trajetria.

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    17A descoberta da Biblioteca Comunitria Caminhos da

    Leitura me permitiu unir a sugesto da proessora Cre-

    milda, das bibliotecas comunitrias, com a minha vontadede estudar mais a undo o mundo da mediao de leitura.

    Meu desejo, desde o incio, oi conhecer a vida desses per-

    sonagens, sua relao com esse espao criado por eles, e

    como o contato com a literatura mudou a maneira como

    eles vivem a realidade e encaram o mundo ao seu redor.

    No uma reportagem de nmeros, atos, contando maisuma histria sobre mais um projeto. Narrar histrias de

    vida. Entender como eles chegaram at ali.

    Foram meses em busca de um tema, pesquisando, pen-

    sando, cheia de angstias, quando a resposta para tudo

    isso estava parada na minha estante, esperando ser lida,

    e h alguns quilmetros, esperando para ser encontrada.

    Mas cada curva do caminho havia sido importante para

    me levar at ali, e, todos os sbados, quando voltava de

    Parelheiros depois de mais uma entrevista, passeando de

    nibus por aquelas estradas da Zona Sul, eu tinha certeza:

    eu no sabia onde essa histria tinha comeado, mas cadapedao do caminho tinha valido a pena.

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    Abre-se a cena:

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    os Escritureiros vm a

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    Eduardo Alencar gestor, mediador e articulador

    da Biblioteca Comunitria Caminhos da Leitura.

    As duas grandes paixes do garoto de 21 anos so

    Beyonc eM P d Laranja Lma ele at gostoudo filme, mas acha o livro muito melhor.

    Rafael Simes conhecido pelos colegas pelas hist-

    rias absurdas e engraadas que conta, mas que ele jura

    ter lido no jornal. Aos 21 anos, mediador, gestor e

    articulador da BCCL, alm de tcnico em Biblioteco-

    nomia. Seu livro preerido: O Dro d Ann Frank.

    Rodrigo de Carvalhoj ez um pouco de tudo em

    seus 25 anos: cuidou de uma anarra, trabalhou nos

    mais dierentes lugares e j ez uma proessora des-

    maiar de susto. Atualmente, mediador, gestor e ar-

    ticulador da BCCL, e est a procura do livro que vai

    mudar sua vida.

    Sidineia Chagastem 23 anos e uma cozinheira de

    mo cheia. Me do pequeno Octvio Henrique, nas

    horas vagas acaba sendo me de todos os Escritureiros

    tambm. Mediadora, gestora e articuladora da

    BCCL, Neia encontrou seu livro preerido ainda na

    escola: O Mnno do Pjama Litrado.

    Isabel Santos Mayer, conhecida carinhosamente

    como me Bel pelos garotos que, nos ltimos seis

    anos, j se tornaram seus filhos, coordenadora de

    Direitos Humanos do Instituto Brasileiro de Estu-

    dos e Apoio Comunitrio (Ibeac). Ela tem mais li-

    vros em casa do que cabem na estante, mas h trsespeciais que lhe vm mente quando algum lhe

    pergunta qual o seu preerido: Cm anos d soldo,Vd sc e O alcdo Mat Pcal. Aos 47 anos, dicil escolher s um.

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    21O termmetro marca quase 40C. Do lado de dentro do

    prdio, pelo menos, h ar-condicionado, mas aqui ora o

    sol bate no cho de cimento e az o ar subir abaado. Ospoucos visitantes da biblioteca que vm para a parte exter-

    na olham, curiosos, para o grupo em crculo gesticulando

    de orma estranha e azendo barulhos com a boca. So 10

    adolescentes, vestidos com roupas completamente dieren-

    tes do que o restante das pessoas. Na verdade, um unior-

    me: as meninas de vestido de algodo comprido, listradode vermelho, azul claro, branco e preto; os meninos, cami-

    seta verde com detalhes listrados nas mangas e no decote

    em v ou camiseta listrada de branco, marrom e verde.

    Um dos garotos lidera o grupo. um dos nicos que

    no usa bon de aba reta nem tnis esportivo preere

    deixar o cabelo penteado com gel e raspado nos lados da

    cabea mostra; nos ps, leva papetes de couro marrom.

    Eles mexem as mos, bocejam, sentem o ar entrar, ex-

    pirando e inspirando, batem palmas ormando crculos no

    ar. Brrrr, shhhh, mn, mn, mn, mn, shhh, ffff, ch, p.

    O aquecimento serve para acalm-los. A viagem at o Ca-randiru oi longa e tensa, com brigas e caras echadas por

    conta de desentendimentos e atrasos. Horrio , para eles,

    uma coisa muito importante e complicada. O trnsi-

    to da cidade imprevisvel, e fica dicil calcular o tempo

    certo para chegar at o centro. Mas, no fim, tudo deu cer-

    to: chegaram s 15h, e a apresentao s 16h.De repente, eles param. Uma mulher alta, de vestido

    comprido sem mangas, o tecido leve e branco contrastando

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    22 com a pele escura, se aproxima do grupo. Seu corpo compri-

    do e esguio az as giraas estampadas balanarem conorme

    ela anda. Ela cumprimenta todos com um grande sorriso norosto, d oi para os que no v h algum tempo. Bel a

    me do grupo, e sua presena parece trazer tranquilidade a

    eles. Explica que eles tero de sete a dez minutos para tocar

    as msicas do Cortejo, para no atrapalhar o pblico da bi-

    blioteca que veio para estudar. Eles concordam h muitas

    msicas, vo separar algumas. Podem levar o tambor? Sim?Pereito. Entram, pegam os instrumentos, os estandartes,

    voltam para o lado de ora, se organizam. hora de comear.

    Esse apenas mais um sbado em que os Escritureiros se

    aventuram pelo centro da cidade de So Paulo. Centro,

    alis, como eles se reerem a qualquer lugar que no seja

    na Zona Sul.

    Se voc no tiver carro, o jeito mais cil de chegar

    at Parelheiros, distrito onde vivem, pegar no erminal

    Graja o nibus com destino a Vargem Grande, um dosbairros da regio. A viagem at o erminal Parelheiros

    lembra a viagem a uma cidade do interior tanto pelo

    tempo, duas a quatro horas de transporte pblico, quanto

    pela mudana de paisagem. Os prdios vo ficando cada

    vez mais baixos, simples e escassos. As avenidas enormes,

    extensas, circundadas praticamente apenas por comrcio:supermercados, postos de gasolina, pequenas lojas. Os

    bairros parecem eitos para carros, no para pessoas.

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    23Seguindo os quilmetros da Avenida eotnio Vilela

    at o final, ela muda de nome: Avenida Sadamu Inoue. De

    repente, do lado esquerdo no h mais construes. rvo-res, barrancos, s vezes stios, s vezes pntanos. No lado

    direito ainda possvel ver algumas pequenas vendas, al-

    gum tipo de comrcio. As caladas so intermitentes. s

    vezes esto ali. De repente, no esto mais. Pessoas andam

    de bicicleta no canto da avenida, mas no h acostamento,

    ciclovia, nada. assim at entrar em Parelheiros.O bairro principal vivo, com muito comrcio nas

    ruas mais movimentadas e gente andando para todos os

    lados. Do terminal de nibus, prximo igreja que mar-

    ca o centro do bairro, sai o nico nibus que abastece

    os bairros mais aastados: a linha 6L05-10, com destino

    ao Barragem, um dos ltimos bairros do distrito. Quem

    mora um pouco mais perto ainda pode pegar o 6073-10,

    que sai do erminal Varginha, passa por Parelheiros, Var-

    gem Grande e Colnia at chegar ao ponto final, no Jar-

    dim Santa eresinha.

    Mas se voc tiver que ir at os bairros do Nova Am-rica, Jardim Pescador, Cidade Luz, Jardim Vera Cruz ou

    Barragem, o 6L05-10 sua nica opo. A linha segue

    pela Estrada da Colnia, onde asalto substitudo por

    terra, e pega a Estrada da Barragem at chegar Estrada

    Evangelista de Souza, no incio da qual fica seu ponto fi-

    nal, prximo E. E. Joaquim lvares Cruz. O caminho no dicil porque nunca h um desvio, sempre reto, reto,

    reto, basta seguir os pontos de nibus azuis e aguentar os

  • 5/23/2018 Na biblioteca, o tamanho dos sonhos - Lvia Furtado

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    24 buracos cada vez mais fequentes da estrada. Mesmo os

    que tm carro sofem, porque no cil dirigir por ali

    e os veculos estragam muito rapidamente. Mas aquelesdependentes do transporte pblico sofem muito mais:

    h que andar, s vezes, quilmetros e quilmetros por

    pequenas estradas rurais de barro, com mato alto e sem

    iluminao. O medo de assaltos e estupros az com que os

    pais, preocupados, busquem no ponto os filhos que traba-

    lham ou estudam noite e voltam tarde para casa, paraque eles no andem sozinhos, no escuro, por esses trechos.

    Quando chove, diversos pedaos alagam e fica impossvel

    chegar at o ponto. Quem tem sorte mora perto de algum

    dos pontos. Quem no tem, caminha de 15 minutos a uma

    hora para conseguir chegar em casa.

    Do grupo, Rodrigo o que mora mais perto do ponto

    de nibus: sua casa fica a trs minutos da Estrada da Bar-

    ragem, no ponto da igrejinha (a nica Igreja Catlica

    do bairro). Do lado direito da estrada, mato. Do lado es-

    querdo, o bairro se estende, plano, para depois subir um

    morro. A casa de Rodrigo fica na rua principal, logo emfente ao ponto: a casa dele a quarta ou quinta direita.

    Raael mora um ponto fente, no ponto da Compor-

    ta assim chamado pois ali oi criada a comporta que e-

    chou o rio e criou a Represa Billings. Um posto da Polcia

    Ambiental guarda a entrada da ponte comprida e slida

    que atravessa o pedao de terra antigamente cheio dgua,mas que ainda enche nos tempos de chuva. Raael mora

    em um ponto mais alto do bairro, que nunca alaga e d vis-

  • 5/23/2018 Na biblioteca, o tamanho dos sonhos - Lvia Furtado

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    25ta a toda a regio ( possvel ver desde as reservas indge-

    nas prximas at So Bernardo), e anda de 10 a 15 minutos

    para conseguir pegar o nibus que o levar a Parelheiros.O caminho at as casas de Sidineia e Eduardo um

    pouco mais dicil. Eles descem no ponto final da linha,

    atravessam um pedao de pntano por uma ponte prec-

    ria, seguem por um caminho cercado de mato alto e sem

    iluminao, para s ento chegar ao pedao do bairro no-

    vamente habitado em que ficam suas casas, prximas E.E. Barragem II. O trajeto demora cerca de 15 minutos.

    Quase todos os dias da semana, os quatro jovens acor-

    dam cedo e azem seus percursos para o ponto de nibus

    mais prximo. Seu destino no a escola na qual j se

    ormaram h algum tempo , nem o centro da cidade.

    Eles se dirigem ao Colnia, bairro prximo mas cujo aces-

    so depende do nibus, pois no perto o suficiente para

    que possa ser eito a p. Eles j tentaram, durante uma

    poca, percorr-lo de bicicleta: a alta de espao e sinali-

    zao na estrada tornou o projeto invivel. A nica sada

    gastar os R$6 para ir a voltar todos os dias do cemitriono qual passam a maior parte de seus dias.

    Eles se enfileiram: Bruno, Raael e Kevin assumem a fente

    do Cortejo, segurando os estandartes em que esto borda-

    dos desenhos representando as belezas dos bairros do Co-lnia, Nova Amrica e Barragem. amiris, Sidineia, Ketlin

    e Silvani vm atrs puxando o canto. Ao final, Christian

  • 5/23/2018 Na biblioteca, o tamanho dos sonhos - Lvia Furtado

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    26 vem com o tambor, cujo batuque acompanha as canes.

    Ao seu lado caminham Eduardo e Rodrigo.

    Al, galrnha,O cortjo chgoTrazndo algra, mta paz amorEscrtrros traz aq pra vocsLtratra ltra otra vz

    Daq, Mara, ns vamos camnharE, Joznho, vamos jntar cantar, , , o Cortjo chgo

    So as vozes melodiosas das garotas que se destacam

    no coro. O tc-t-tc-tdo tambor acompanhado pelaspalmas ritmadas dos Escritureiros. A primeira cano aca-

    ba e a segunda vem junto, sem quebrar o ritmo, que se

    torna gradualmente mais lento. Mais calma e tranquila,

    comeam a cant-la assim que passam pelas portas de vi-

    dro que separam a rea externa do interior da biblioteca.

    Vnha comgo, d-m a sa mo,Ns tmos abrgo pra acalmar o corao s abrr o lvro comar a mdaoConto d ad pom pra vocsDes jto mai cl gostoso d azr

    Locr, pro nosso mndo a gnt trazr

    dia de esta na biblioteca. Enormes avies de papel

  • 5/23/2018 Na biblioteca, o tamanho dos sonhos - Lvia Furtado

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    27esto pendurados no teto do vo central, que liga o trreo

    ao primeiro andar. O Menino Maluquinho sorri de um

    deles para quem, passando no andar de baixo, olha paracima. Bexigas coloridas se espalham por entre as prate-

    leiras de livros. No trreo, algumas se movimentam: esto

    amarradas nos pulsos das crianas, que andam de um lado

    para o outro, olhando, curiosas, o cortejo que entra.

    Hitra, cordl, ltratraEm ca, no parq, ecola o na ra,Vva a ltranbs, praa, lvro o travssraEm ca, no parq, ecola o na ra,Vva a ltra

    O batuque relativamente baixo, para tentar no atra-

    palhar quem, nas mesas de estudo do andar de cima, precisa

    se concentrar na leitura. Ao mesmo tempo, tentam chamar

    a ateno dos pais, bebs e crianas que olham as prateleiras

    de livros inantis por entre as quais o Cortejo Literrio pas-sa. O espetculo encanta e todos param para olhar: o ginga-

    do no andar, as palmas batendo, os corpos balanando, dez

    adolescentes de vozes doces embalando uma tarde tranqui-

    la, as vozes ecoando por entre os corredores de livros.

    o menor cortejo que j izeram. Dura apenas

    alguns minutos, tempo de cruzar a biblioteca inteira, daentrada ao espao inantil situado ao inal do prdio. L,

    o espao j est organizado para receber os mediadores:

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    28 os pues coloridos oram arrumados em crculo, os livros

    escolhidos j esto espalhados sobre as colchas de retalho

    estendidas no cho. Os espectadores vo sentando-se aospoucos, mais ou menos 25 pessoas, entre adultos, bebs,

    crianas pequenas, adolescentes. A todo o momento os Es-

    critureiros cantam, nunca param. A msica muda, agora

    mais agitada, quando se espalham em um meio crculo,

    fente a fente com o pblico curioso.

    Agora a hora, pret mta atno,Srmos a pont para a magnaoTrmos m portal mgco, vamos jntos vajar,Entrarmos nm mndo antstco sm sar do lgarE pra voc q et ovndo agoraE vo mdar

    Sidineia quem avana at o centro do palco

    improvisado e escolhe o primeiro ttulo a ser lido. Ela

    estica os braos, mostrando a todos a capa roxa ilustrada, e

    l bem alto o ttulo estampado em letras grandes: O Lvro.O grupo finaliza a cano, em coro:Pra voc aprcar.Comea a mediao.

    H seis anos, nenhum desses meninos imaginaria estar aqui,

    azendo mediao de leitura para crianas ao invs de apro-veitar o sbado de sol, por exemplo, em alguma das cachoei-

    ras escondidas na reserva ambiental perto do Barragem.

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    29H seis anos, eles no sabiam o que era mediao de

    leitura. H seis anos, a maioria deles nem mesmo gostava

    de ler.Quando, em 2014, receberam na biblioteca a visita do

    escritor Luiz Ruffato e ele comeou a discorrer sobre as

    maravilhas da sica quntica Nma mea d snca, svoc pga ma bola joga contra tod otr, nnca mail vo tr a mema configrao, nunca mais.E iso n-

    crvl. Ento voc ebarra m algm, esa pesoa t joga praotro lado: voc mdo compltamnt sa vda. todos osmediadores da biblioteca sabiam exatamente do que ele

    estava alando. Porque eles tinham esbarrado em algum:

    Isabel Santos Mayer.

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    sempre na intersubjetividade que

    os seres humanos se constituem, e suas

    trajetrias podem mudar de rumo de-pois de algum encontro.

    Michle Petit (2009)

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    Eixo 1: espao

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    32 Quem desce do nibus em fente ao restaurante Leishe,

    um dos poucos do bairro, e segue a rua principal sem

    olhar para o lado, talvez no note, ao final da travessa logoem fente, o muro branco com proteo de arame arpa-

    do, nem veja o aglomerado de tmulos escondido atrs das

    grades do porto de erro antigo. Criado em 1829 e per-

    tencente hoje Associao Cemitrio dos Protestantes, o

    pequeno cemitrio de tmulos cor do cu abriga muito

    mais do que apenas os corpos de imigrantes do sculoXIX: em seu terreno que se encontra a nica biblioteca

    comunitria do bairro.

    Livros e covas, porm, no ficam exatamente no mes-

    mo lugar. Primeiro, as lembranas, flores, jardins e o pr-

    dio que abriga a parte administrativa, recepo, enerma-

    ria, banheiro e cozinha do Cemitrio do Colnia. Depois

    dessa casa de paredes brancas e colunas de tijolo, o terreno

    se estende, coberto de grama, at chegar a outra casa bran-

    ca; essa, branca e azul. H uma entrada independente, um

    porto que d para a rua. Quando se entra por ele, mais

    cil perceber a onda que desenha a parede fontal da casa.Nela, os versos iniciais de um poema acolhem os visitantes:

    Abnoados os q possm amgos, os q os tm sm pdr.Porq amgo no s pd, no s compra, nm s vnd.Amgo a gnt snt!

    Bndtos os q sofm por amgos, os q alam com o olhar.Porq amgo no s cala, no qetona, nm s rnd.1

    1 O poema Benditos da escritora Isabel Machado. Ela o escreveu

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    33O poema no cabe no muro, assim como a onda do

    trabalho da biblioteca no cabe ali, naquele espao sico

    determinado por quatro paredes. A primeira estroe ter-mina sem o ltimo verso, como se convidasse o leitor a

    cruzar a porta de entrada e a procurar nas estantes da-

    quele espao a obra para termin-la. ali, aos undos do

    terreno, em um espao antes abandonado, que az morada

    a Biblioteca Comunitria Caminhos da Leitura (BCCL).

    Foi uma provocao que levou Isabel Santos Mayer a es-

    barrar com os garotos do Barragem.

    Em 1997, a moa de ento 30 anos conhecida por

    todos como Bel havia acabado de voltar da Itlia, onde

    passara uma temporada cursando uma especializao em

    Pedagogia Social na Universidade Salesiana de Roma. De

    volta ao Brasil, comeara a trabalhar no Centro de Estudos

    das Relaes de rabalho e Desigualdade (CEER). Nas-

    cida e criada no Parque Santa Madalena, bairro da Zona

    Leste de So Paulo, Bel oi a primeira de sua amlia a cur-sar o ensino superior: ormou-se em Cincias Matemti-

    cas pela Universidade So Judas adeu. Envolvida desde a

    em homenagem ao Dia da Amizade e o declamou em um progra-

    ma que apresentava, poca, na Rdio Litoral FM, em So Vicente

    (SP). Algum tempo depois, o poema comeou a ser divulgado em

    correntes de e-mail, porm com autoria atribuda a Machado de

    Assis. O poema completo pode ser lido no blog da autora: http://

    isabelmachado10.blogspot.com.br/2012/09/poema-benditos-e-

    -meu.html. Acesso em: 22/06/2014.

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    34 adolescncia com projetos sociais, o trabalho no CEER

    ia ao encontro de sua histria e da rea que gostaria de

    seguir. Ela tinha sido convidada para criar o programa deeducao dessa organizao, que ficava localizada aos un-

    dos de um terreno na Avenida Doutor Arnaldo.

    O terreno pertencia, na verdade, ao Instituto Brasi-

    leiro de Estudos e Apoio Comunitrio (Ibeac), cuja sede

    ficava no casaro branco da entrada. Criado em 1981 pelo

    ex-governador Franco Montoro, seu objetivo sempre oiunir a sociedade civil vida pblica, estimulando a par-

    ticipao da comunidade na poltica, atravs da crena de

    que todos os cidados tm algo a contribuir para a cons-

    truo da sociedade. Apesar de trabalhar to perto do

    Ibeac, Bel nunca conhecera ningum de l at que, um

    dia, eles precisaram de algum para substituir um educa-

    dor em um encontro que estavam organizando em Belm,

    e o nome de Bel oi recomendado. Ela aceitou o convite, e

    oi a que conheceu Vera Lion, que j trabalhava no Ibeac

    desde 1983. Grd nla nnca mai volt.

    Bel passou a trabalhar com Vera no Ibeac desde ento.Atualmente, dividem a coordenadoria de Direitos Huma-

    nos do Ibeac, enquanto Solange Gois coordena o ncleo

    de Educao para Jovens Adultos (EJA). Nesses 17 anos

    lado a lado, diversos oram os desafios. Os primeiros seis

    anos, por exemplo, oram passados indo quinzenalmente

    regio norte do pas, onde aziam ormaes em direitoshumanos com lideranas de comunidades indgenas, ri-

    beirinhas e do direito mulher. O projeto, que durou oito

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    35anos no total, tambm ormava centros de documentao

    nas capitais, pois quase no havia publicaes e material

    sobre o assunto por l. A gente levava de So Paulo caixas de Constituio,

    de estatuto, de livros sobre o direito da mulher

    Crivamos o centro de documentao em uma ci-

    dade, mas a vinha a populao ribeirinha de vrios luga-

    res, viajando mais de um dia para chegar aos encontros,

    ento a gente alava para eles escolherem alguns ttulosque usariam mais e a gente arrumava para eles levarem.

    Ento ficava um tanto na regio central, e uns outros tan-

    tos nas regies mais distantes complementa Vera.

    Era uma aventura.

    Foi nessa poca que houve uma provocao de um co-

    nhecido da Secretaria Municipal do rabalho de So Paulo:

    por q vocs s azm iso no Nort, por q no azm estpo d trabalho na prra d So Palo, com jovns?

    Foi a que vocs decidiram ir pra Parelheiros?

    No, a ns omos pra Cidade iradentes. O

    olhar de Bel indica que ainda h muita histria pela fente.A alfinetada ez com que ossem atrs para desenvol-

    ver algo na rea, e acabaram se unindo ao Fora Ativa, uma

    das organizaes mais antigas do movimento hip hop, em

    Cidade iradentes, onde Bel j havia dado aula. O Fora

    Ativa era uma posse2que buscava, na poca, tornar-se um

    2 Posse: termo da dcada de 1990, ligado ao movimento hip hop,

    reerente a uma demarcao de territrio. Uma posse um terri-

    trio pertencente a determinados grupos.

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    36 ncleo cultural, e aceitou a proposta do Ibeac de tentar

    criar algo juntos.

    Elas oram recebidas pelos jovens em um domingo noite, na sala de aula da escola do bairro. Os adolescentes

    compareceram armados com ideias e palavras: se de-

    finiam como um grupo comunista, e diziam que drtoshmanos coia d brgs.Mas, do dilogo, surgiu um re-sultado: a criao do Centro de Documentao em Direi-

    tos Humanos e Biblioteca Comunitria Solano rindade.Comeou a o que mais tarde se tornaria, de certa ma-

    neira, uma prtica do Ibeac: construir bibliotecas co-

    munitrias em espaos ociosos do Estado. Os projetos do

    ncleo de Vera e Bel eram ocados em direitos humanos, e

    a construo de centros de documentao e de bibliotecas

    ia ao encontro dessa linha de atuao: as pessoas tm di-

    reito a uma educao de qualidade, ao acesso cultura, ao

    acesso aos livros.

    Depois da Solano rindade, vieram a Livro Pra Que e

    Quero, no Jardim So Savrio, e a Ler Preciso, no Cedeca

    Sapopemba. Nos trs projetos trabalhou-se com o concei-to de biblioteca como lugar de armazenamento de livros

    e documentos e espao para consulta de inormaes. Se-

    gundo Bel, a gnt pnsava na bblotca como m acrvo dlvros q t orc contdos t proporcona ma mdan-a d vda. E elas realmente proporcionavam: na Solano

    rindade, muitos dos jovens adultos acabaram ingressan-do em universidades de renome, como a Universidade de

    So Paulo (USP) ou a Ponticia Universidade Catlica de

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    37So Paulo (PUC-SP). Hoje, trs cursam mestrado e alguns

    esto at mesmo no doutorado. E oi na biblioteca que eles

    encontraram espao para crescer.A base para isso era o trip com que o Ibeac procurava

    trabalhar: a biblioteca como lugar de ormao, conver-

    gncia e irradiao. Onde o acesso a documentos e as ati-

    vidades de ormao, aliados ao debate e troca de ideias

    naquele espao de convvio comunitrio desembocassem

    em intervenes e mudanas na poltica pblica. Pra gente sempre oi isso diz Bel. Quando

    a gente se juntou com o Fora Ativa, eles eram um gru-

    po que j pulava o muro da escola pra ler O Captal, seintitulavam como juventude comunista, se encontravam

    pra estudar, pra ler, e fizeram um monte de coisa a partir

    disso. A biblioteca um centro de ormao, e ns desen-

    volvamos uma srie de atividades dentro dela. um lugar

    pra convergir, pra juntar a comunidade, juntar as pessoas,

    e onde surgiu uma srie de iniciativas.

    Segundo Bel, ali que surge, por exemplo, um projeto

    de lei sobre como servios de sade tinham que servir osjovens, levada pelos jovens do grupo Soninha, que na

    poca estava trabalhando como vereadora. A bblotcavra smpr m cntro d rradao d propose poltc.

    Foi Antonio Candido, em 2008, quem mudou a manei-

    ra como elas encaravam o prprio trabalho. Ao ter contato

    com o texto O direito literatura, as duas coordenado-ras passaram a refletir sobre outro lado da relao acesso

    leitura/direitos humanos: o direito literatura, ao sonho

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    38 e abulao. Elas, que sempre tinham trabalhado com

    projetos que tentassem prevenir e reduzir a violncia e a

    violao dos direitos bsicos, comearam a perceber que aliteratura poderia ser uma aliada indispensvel nessa luta.

    E que ela, tambm, era um direito que, quando violado,

    trazia consequncias terrveis.

    Vocs acham que a literatura pode contribuir, de

    alguma maneira, para a reduo da violncia?

    Pra ns oi uma descoberta esse poder que a litera-tura tem revela Bel.

    Candido deende que a literatura todas as criaes

    de toque potico, ficcional ou dramtico em todos os n-

    veis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura3

    um bem incompressvel, porque nos garante a integridade

    espiritual. Como impossvel viver sem abulao, ela

    uma necessidade universal, que precisa ser satiseita e cuja

    satisao constitui um direito.4Privar algum do direito

    literatura pode causar mesmo a mutilao de sua perso-

    nalidade, porque pelo ato de dar orma aos sentimentos

    e viso do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos eportanto nos humaniza. Negar a fuio da literatura mu-

    tilar a nossa humanidade.5Isso porque a linguagem est in-

    trinsicamente ligada construo da identidade, segundo a

    3 CANDIDO, Antonio. O direito literatura, n Vros ecrtos. 4a

    edio, So Paulo/Rio de Janeiro, Duas Cidades/Ouro sobre Azul,2004, p. 174.

    4 Ibd., p. 175.

    5 Ibd., p. 186.

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    39antroploga fancesa Michle Petit, e a leitura pode desem-

    penhar papel importante na construo da subjetividade.

    Quanto mais uma pessoa capaz de nomear o mundo, maisapta est para viver nele e transorm-lo. Mas se ela tem di-

    ficuldade com a linguagem, com simbolizar o mundo em

    que vive, se lhe negada a experincia plena da linguagem, a

    agressividade uma sada. Quando se privado de palavras

    para pensar sobre si mesmo, para expressar sua angstia, sua

    raiva, suas esperanas, s resta o corpo para alar: seja o cor-po que grita com todos seus sintomas, seja o enfentamento

    violento de um corpo com outro, a passagem para o ato.6

    Portanto, se a literatura nos d esse poder de nomear melhor

    o mundo, expandir nossos horizontes, aprimorar a lingua-

    gem, ela nos torna mais aptos para viver em sociedade.

    O espao ntimo que a leitura descobre, os momentos

    de compartilhar que ela no raro propicia, no iro repa-

    rar o mundo das desigualdades ou da violncia []. Mas

    ela contribui, algumas vezes, para que crianas, adolescen-

    tes e adultos, encaminhem-se no sentido mais do pensa-

    mento do que da violncia. Em certas condies, a leiturapermite abrir um campo de possibilidades, inclusive onde

    parecia no existir nenhuma margem de manobra.7

    Bel se recorda do primeiro encontro do clube de leito-

    res da Caminhos da Leitura, que ocorreu na segunda se-

    mana de maro deste ano.

    6 PEI, Michle. Os jovns a ltra. 2aedio, So Paulo, Editora34, 2009, p. 71.

    7 Ibd., p. 12.

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    40 A gente ficou l duas horas conversando sobre a pa-

    lavra, sobre o que o Luiz Ruffato proporcionou pra gente

    com aquele livro [Estv m Liboa Lmbr d Voc]. Issoreduz violncia. So duas horas em que voc constri a

    possibilidade de refletir sobre as palavras e de no ser um

    simples objeto do acaso. Ento sua vida voc escolhe, voc

    constri, voc no filho s do destino. A literatura te

    ajuda a pensar nisso.

    Quando Petit escreve que importante ler histrias,pura e simplesmente, talvez s pelo prazer de contar, mos-

    trar que se pode sonhar, que existe sada e que nem tudo

    est imvel. Que inventem sua vida, que possvel inven-

    tar a prpria vida,8sem saber est alando tambm dos

    jovens de Parelheiros e das atividades que o Ibeac come-

    ou a desenvolver na regio em 2008.

    Uma situao de crise

    2005 oi um ano importante para a leitura no Brasil. Es-

    colhido em 2003 por Chees de Estado de pases europeuse americanos, o Ano Ibero-Americano do Livro e da Lei-

    tura oi organizado pela Organizao dos Estados Ibero-

    -americanos (OEI), pelo Centro Regional de Fomento ao

    Livro na Amrica Latina e Caribe (Cerlalc) e pela Unes-

    co (United Nations Educational, Scientific and Cultural

    Organization). A pesquisadora e doutora em Cincias daComunicao, Katiuscia Fogaa, considera 2005 uma

    8 Ibd.,p. 31.

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    41ebulio do caldo imaginrio coletivo com ideias associa-

    das ao mundo da leitura.9Essa ebulio poltica desembo-

    ca em aes de mbito ederal como a criao do prmioVivaleitura pelos Ministrios da Cultura e da Educao,

    voltado para ONGs, escritores, escolas e entidades que

    trabalham para diundir a leitura no pas10e, em 2006, a

    criao do Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL).

    No mbito municipal, oi importante a criao do Siste-

    ma Municipal de Bibliotecas de So Paulo, que integrou asbibliotecas municipais de cidade, pontos de leitura e pro-

    jetos de extenso, como os nibus-biblioteca.

    Em So Paulo, o lanamento do Ano chamado de

    Vivaleitura, no Brasil oi anunciado em evereiro com

    cartazes e peas de otdoorvoltados para o pblico jovem.Uma oto da cantora Wanessa Camargo com um livro equi-

    librado na cabea estampava as peas publicitrias, junto

    mensagem: Lvro, coloq iso na caba. A campanha, veicu-lada pela Secretaria de Cultura do Estado de So Paulo, por

    meio do programa So Paulo: um Estado de Leitores, con-

    tinuou no segundo semestre, agora com os atores globaisReynaldo Gianecchini e Cleo Pires em inseres no rdio e

    na televiso e um novo mote: Lr gostoso. Tm q lr.

    9 FOGAA, Katiuscia da Cunha Lopes. A Leitura sob o Signo da

    Relao ler como ato de Comunicao Social. Percurso tericoe experimental em saraus. So Paulo, 2010, p. 155.

    10 Gilberto Gil anuncia Prmio Vivaleitura em SP. Folha de S.Pau-

    lo, 13/12/2005. Disponvel em: http://www1.olha.uol.com.br/sp/

    ilustrad/q1312200515.htm. Acesso em: 01/05/2014.

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    42 Mas, se em 2005, um jovem da regio de Parelheiros

    quisesse colocar um livro na cabea, teria grande di-

    ficuldade. Em uma regio onde o rendimento mdio dequem trabalha , segundo dados de 2010 do Instituto Bra-

    sileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), de R$888,60,

    livros so artigos de luxo e diceis de encontrar em

    casa. No havia nenhuma biblioteca pblica na regio. O

    Centro de Educao Unificado (CEU) Parelheiros ainda

    no existia o espao oi criado em dezembro de 2008,e sua biblioteca oi inaugurada apenas em 2009. Quem ti-

    vesse acesso a alguma escola municipal podia contar, pelo

    menos, com as salas de leitura, obrigatrias na rede muni-

    cipal desde os anos 70. No Barragem, onde s est presen-

    te a rede estadual, nem isso havia. Para os estudantes da

    E. E. Barragem II (hoje chamada E. E. Renata Menezes dos

    Santos), exceo dos ttulos adotados no ano letivo que

    a escola era obrigada a comprar, no havia muita opo,

    j que a biblioteca da escola ficava permanentemente e-

    chada. Como no havia quem cuidasse do espao, os livros

    ficavam confinados na pequena sala sem que os alunospudessem peg-los. No mximo, visitavam a sala quando

    algum proessor se disponibilizava a lev-los.

    A nica coisa que havia, poca, era o Ateli Damas.

    Localizado entre os bairros Nova Amrica e Barragem, a

    dona do Ateli encheu o quarto do filho de livros antigos

    e livros didticos e o abriu comunidade. Ela abra esepao pra qm qies r l, la ajdava na lo d ca,porq nngm tnha lvro m ca.Enquanto Bel ala, Vera

  • 5/23/2018 Na biblioteca, o tamanho dos sonhos - Lvia Furtado

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    43acena de leve com a cabea, concordando. Foi essa alta de

    atuao do poder pblico e a alta de presena de outras

    instituies que ez com que Bel e Vera decidissem tentarcriar algum projeto na regio.

    Elas haviam participado, em 2001, do Programa Sade

    da Famlia em So Paulo, oerecendo ormao em direi-

    tos humanos para todos os agentes de sade do programa.

    Junto Secretaria da Sade, estudaram onde havia na ci-

    dade os maiores ndices de mortalidade, violncia, entreoutros, e trabalharam nas Zonas Norte, Leste e Sul, ten-

    do ocado, posteriormente, mais em bairros da Zona Sul

    como Jardim ngela, Jardim So Luis, Capo. Os encon-

    tros peridicos que tinham com a comunidade e com os

    agentes de sade, pensando tambm ormas de prevenir

    violncia, fizeram surgir a ideia de tentar se fixar em um

    lugar para tentar causar um impacto maior.

    odos os trabalhos do instituto at ento envolviam

    alguma poltica pblica especfica: sade, educao, pol-

    tica. Era hora de pensar algo dierente, conta Bel.

    A gente consegue perceber mudanas onde atua-mos. Voc mexe em currculo, voc mexe em prticas. Mas

    a gente nunca consegue observar mudanas nos indicado-

    res sociais, porque voc trabalha sempre com um pedaci-

    nho da coisa.

    Por que no ir para um lugar em que se trabalhasse com

    todas polticas? Em que o trrtroosse reerncia, noa poltica? Um projeto que conseguisse trabalhar diversos

    atores e mudar todo seu entorno. Com essa ideia na cabe-

  • 5/23/2018 Na biblioteca, o tamanho dos sonhos - Lvia Furtado

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    44 a, decidiram ir para aquela que osse a regio mais carente

    da cidade. Isso q gostar, n?,ri Bel. E elas gostavam.

    Ganhou o extremo do extremo sul. No s pela distn-cia, mas porque Bel e Vera notaram que Parelheiros tinha

    o menor capital social de todos. No havia instituio que

    l permanecesse; no existiam projetos sociais. Em Pare-

    lheiros, nada ficava.

    A ala baixa e apressada de Bel, sua entonao e seu

    carinho explcito pelas recordaes nos colocam naquelatarde. No agora j se passaram seis anos, e por causa do

    desdobramento daquela escolha to importante eita em

    2008 que estamos conversando aqui, em 2014. A Isabel

    Santos Mayer de hoje s existe graas quele desafio. Emtodo lgar q vo, alo d Parlhros. So a maor propa-ganda q xit do barro, j lv todo mndo q conhopra l.

    Decidiram-se ento por aquele distrito rural, quando

    alguns dias depois toca o teleone do Instituto. Era uma

    enermeira que j havia trabalhado com Bel e Vera em ou-

    tros projetos, e ligava para contar que havia sido trans-erida para a regio de Parelheiros. Normalmente, cada

    Unidade Bsica de Sade (UBS) tem um responsvel pela

    gerncia mas, como ningum queria trabalhar na re-

    gio, ela havia assumido a gerncia de trs UBSs ao mes-

    mo tempo.

    Pra voc ter uma ideia de como era meio largado,como o poder pblico no tinha l grande preocupao

    aponta Vera. Uma gerente pra trs UBSs? J d uma ideia.

  • 5/23/2018 Na biblioteca, o tamanho dos sonhos - Lvia Furtado

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    45 E a ela ligou pra gente recorda Bel. Qandovocs tvrm m tmpo qirm azr ma ormao aq,

    gostara mtoA gente tinha acabadode decidir. Soaquelas sinergias da vida.

    A ideia no oi vamos l para azr ma bblotca;oi vamos l para vr o q a comndad qr. E a gentecomeou a conversar com a comunidade de trs bairros,

    porque eram trs unidades bsicas de sade: Barragem,

    Nova Amrica e Colnia.Primeiro, elas se sentaram com os agentes de sade da

    regio, que elas conheciam porque tinham passado pelas

    ormaes do programa, e pediram que eles articulassem

    as lideranas dos bairros. Padres, pastores, benzedeiras,

    mdicos, proessores elas queriam entender quais eram

    as necessidades das comunidades, entender qual era a

    realidade em que viviam. Estudos e pesquisas mostravam

    uma coisa, mas elas queriam entender como era de ato a

    vida daquelas pessoas. Aps diversos encontros, chegou-se

    a um ponto comum: no havia nenhum projeto que envol-

    vesse os jovens e essa era a maior carncia que havia ali.Aproveitando o aniversrio de 60 anos da Declarao

    dos Direitos Humanos, Bel sugeriu a dois amigos um,

    jornalista da Revista Virao; outra, advogada que trabalha-

    va em uma comunidade no Parque Santa Madalena que

    criassem um projeto: 60 jovens de So Paulo ariam uma

    releitura da Declarao, 60 anos depois. Inscreveram o pro-jeto na Ashoka, uma organizao mundial sem fins lucrati-

    vos da qual os trs eram empreendedores sociais, e ele oi

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    46 aprovado. 60 jovens, 20 do Ibeac, 20 de Sapopemba e 20 da

    Revista Virao participaram de oficinas ao longo de cinco

    meses. Os jovens convidados pelo Ibeac? Os de Parelheiros.Era setembro de 2008 quando o projeto comeou. Os

    20 adolescentes vinham dos trs bairros: Barragem, Nova

    Amrica e Colnia, indicados por proessores e agentes de

    sade. Os direitos humanos eram o fio condutor do pro-

    jeto, que oereceu ormaes e oficinas diversas para os

    jovens participantes, de charges criao de um jornal--mural. Os trs ncleos participaram de diversas ativida-

    des ao longo dos meses seguintes, reescreveram os artigos

    da Declarao dos Direitos Humanos e, finalmente, se en-

    contraram no centro da cidade, na Comisso dos Direitos

    Humanos, onde simularam um jri. Fo a prmra vz qmtos dese mnnos vitaram o cntro da cdad, lembraVera.Ao longo do projeto, inquietaes oram surgindoentre os adolescentes de Parelheiros, que comeavam a

    questionar a alta de iniciativas culturais na regio. Os an-

    seios eram ouvidos e sentidos pelas coordenadoras; quan-

    do Bel e Vera ficaram sabendo que o Instituto C&A iriaabrir um edital para apoiar projetos de leitura, comearam

    a imaginar uma maneira de tornar realidade as expectati-

    vas dos meninos. Veio a proposta: por que no criar um

    projeto de leitura, uma biblioteca? A ideia oi abraada de

    cara, e juntos desenvolveram e inscreveram, em novembro

    de 2008, o projeto Plulas de Leitura, que visava a criaode uma biblioteca comunitria dentro de uma UBS. Mas,

    dessa vez, com um eixo a mais: a mediao.

  • 5/23/2018 Na biblioteca, o tamanho dos sonhos - Lvia Furtado

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    47Essencial para que elas comeassem a trabalhar com

    a mediao oi, alm da leitura de Antonio Candido, o

    contato com a obra de Michle Petit. A psicloga e an-troploga fancesa tem extensa pesquisa sobre mediao

    de leitura, tanto em seu pas de origem quanto na Amri-

    ca Latina. Ser um mediador servir como caminho para

    que algum chegue a um livro. Escolher, levar, apresentar,

    envolver, acolher. Servir de ponte entre o leitor e o livro,

    crarleitores, cultiv-los. Um mediador pode ser um pai,proessor, bibliotecrio, amigo. Mas Petit estuda um re-

    corte um pouco mais especfico: a mediao atravs da lei-

    tura compartilhada. E, principalmente, a leitura compar-

    tilhada em espaos e situaes de crise de guerra ou

    de repetidas violncias, de deslocamentos de populaes

    ou de vertiginosas recesses econmicas.11

    Uma situao tambm pode ser considerada de risco

    como sendo aquela em que as crianas e jovens no tm

    seus direitos bsicos assegurados12. Se a literatura um

    direito bsico, uma situao de crise seria qualquer uma

    em que o acesso literatura privado aos cidados. Se a li-teratura um direito, como lev-la a quem no tem acesso

    a ela? Lev-la aos lugares mais inspitos, s pessoas mais

    11 PEI, Michle. A art d lr. 2a edio, So Paulo, Editora 34,2010, p. 21.

    12 LEIE, Patrcia Pereira. Caminhos possveis A Cor da Letrae a ormao de mediadores e leitores. Revista Emlia. Dezembro

    de 2011. Disponvel em: http://www.revistaemilia.com.br/mostra.

    php?id=85. Acesso em: 29/04/2014.

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    48 violentadas, a quem muitas vezes lhe oi privado o direito

    bsico de saber ler? A resposta: lendo a elas.

    A nova aceta tornou-se pilar de atuao da nova bi-blioteca, junto com espao, acervo, gesto compartilhada

    e incidncia poltica, eixos que j vinham sendo trabalha-

    dos nas outras bibliotecas que o Ibeac criara. O Plulas oi

    aprovado em janeiro de 2009 e passou a uncionar em

    maro. Comearam a ormar uma pequena biblioteca na

    UBS do Colnia, a maior das trs e onde j havia ocorridoos encontros do projeto anterior, e a receber ormaes

    de mediao de leitura, gneros literrios, construo de

    acervo, conservao de livros. A ideia do projeto era que

    os mdicos da UBS receitassem livros junto aos remdios,

    e que os jovens mediadores fizessem leituras para as pes-

    soas que estivessem na sala de espera. Entretanto, poucos

    meses depois que o projeto oi idealizado, uma mudana

    atrapalhou os planos. O sistema de sade passou a agen-

    dar horrios, e no havia mais sala de espera nas UBSs. Os

    meninos ainda tentaram: paravam as pessoas entre uma

    consulta e outra, explicavam sobre o espao, convidavam.Mas, apesar de aberta a toda a comunidade, a biblioteca

    acabou sendo usada prioritariamente pelos agentes de

    sade e suas amlias.

    Alguns meses depois de iniciado o Plulas, oi aprova-

    da a criao de um consultrio odontolgico na UBS do

    Colnia. A nica sala livre era, justamente, aquela em quese havia construdo a pequena biblioteca. O grupo oi avi-

    sado de que teriam que sair dali, e assim comeou a busca

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    49por um novo espao. Bel relembra que, por desejo, eles te-

    riam construdo a biblioteca no Barragem, mas a alta de

    estruturas obrigou-os a procurar outras alternativas. A gente queria, porque l era muito melhor, os me-

    ninos no precisariam pegar conduo, levaria a bibliote-

    ca pra parte mais carente de equipamentos. S que a no

    tinha onde. No Barragem tem a escola e a UBS, s.

    Foram meses de procura e conversas fustradas. At

    que, conversando com o subpreeito de Parelheiros, des-cobriram que aos undos do Cemitrio do Colnia havia

    uma casa abandonada. El alo, l t mo largado, no tmnngm sando, conta Vera. O espao, que j havia sidoa antiga UBS do Barragem, estava abandonado. As coor-

    denadoras oram conversar com Andr Barboza, adminis-

    trador do cemitrio e descobriram no carioca sorridente

    um aliado. Hoje ormado em administrao e gesto am-

    biental, o antigo morador da avela do Vidigal e ex-ator

    Andr oi o primeiro saci-perer do Stio do Pica-Pau

    Amarelo da Globo, mas mudou-se para So Paulo quan-

    do a carreira no oi pra fente oi quem articulou ocontato do Ibeac com a Acempro. Foi eito um contrato

    de comodato de 10 anos, dando direito ao Ibeac de usar o

    terreno e a casa durante esse perodo, gratuitamente.

    O acervo saiu da pequena sala na UBS composta

    por cadeiras, colchonetes, bancos e mesas doados pelo

    Ibeac UBS do Colnia e passou a ocupar as salas dacasa abandonada, em maro de 2010, exatamente um ano

    depois de iniciado o Plulas de Leitura. Bel registra, em

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    50 relatrio ao Instituo C&A, que h grande expectativa do

    grupo com relao nova ase do Projeto, [] pela melho-

    ria das condies de equipamento e acervo, a nova sede[] etc. Mas a biblioteca ainda demorou alguns meses

    para ser aberta ao pblico: o imvel estava muito destru-

    do, sem janelas, sem porta, sem banheiro. Amigos e ami-

    liares se uniram para realizar as reormas necessrias, e,

    enquanto o espao no ficava pronto, as ormaes conti-

    nuavam e o grupo praticava mediaes na prpria escolaBarragem II. Eles estudavam de manh e, tarde, junto

    com educadoras parceiras do Ibeac, realizavam sesses de

    mediao com os alunos de 1 a 4 srie.

    No dia 1 de julho de 2010, a Biblioteca Comunitria

    Caminhos da Leitura oi oficialmente aberta ao pblico.

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    Aqueles que escolhem

    esto exercendo poder.

    Aidan Chambers (P, 2012)

    Eixo 2: acervo

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    54 dia de esta na biblioteca e os preparativos comeam

    cedo. No dia 1 de novembro de 2013, a biblioteca do

    Colnia vai ser palco de dois eventos importantes: s 14hcomea o sarau do Griot. s 20 horas, o sarau do terror. As

    decoraes e comidas so dierentes, o pblico tambm.

    No h espao para enrolao na agenda apertada.

    Sidineia, do alto de seu um metro e meio, comanda a

    cozinha, que, para a ocasio, oi mudada de lugar. O ane-

    xo construdo para servir de depsito aos livros ainda nocatalogados cede espao para o ogo, armrios, acas e

    panelas. Os acessrios no so quaisquer uns: so as a-

    cas especiais de Neia, em que s ela mexe, e as panelas de

    Dona Maria. Ambos so apetrechos que s saem de casa

    em casos muito especiais. Ao v-los, os garotos do grupo

    logo percebem: no dia de brincadeira. A cozinheira

    quem manda e eles tm que obedecer.

    As panelas tm lugar especial na cozinha de Dona Ma-

    ria, e s saem dali com a permisso dela e com a condio

    de voltarem to pereitas quanto oram. Armrios sus-

    pensos circundam o ambiente, e, em cima deles, as estrelasprateadas da cozinha. Altas, largas, baixas, estreitas, figi-

    deiras, fitadeiras, panelas de arroz, de sopa, de macarro,

    todas de ao muito bem polidas e cada uma em seu devi-

    do lugar.Mnha m tm tant panl porq cada vz qm filho sa d ca la d algm d prent.Os filhos so

    muitos: Sirlene, Sideilde, Siderlane, Sirleia, Sirlei, Silvia,Sidnei, Sidineia, Silvani, em ordem de nascimento. O mo-

    tivo dos nomes? Dona Maria d risada. Nm s.Logo

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    55antes de ganhar a primeira filha, ficou doente, e quem re-

    gistrou a beb oi o sogro.

    Comadr, t ndo l rgitrar a Srln,ele j tinha es-colhido o nome. A l vai eu. Se ps Sirlene, vamos procurar

    uns nomes que tudo iguala. E assim oi indo. Coisa da

    cabea da gente imaginando os nomes que iam seguir.

    S Silvia e as duas mais novas ainda moram com a

    me, junto com trs netos: o filho de Neia, Octvio Hen-

    rique; a filha de Silvia, Lvia; e Maiara, uma das filhasde Sideilde criada por Dona Maria. Pode parecer muita

    gente, mas, comparado com as condies em que viviam

    quando se mudaram para o Barragem, no h do que re-

    clamar: eram 15 pessoas numa casa muito menor do que

    a atual. Alis, nem casa era, mas mais propriamente uma

    garagem eita de quarto, com uma cama de casal, um o-go e alguns colches.

    Hoj, nm ra pra vvr mai. Sof mto, mto, mto.Mineira de Vermelho Novo prto d Caratnga, d RalSoare, s voc sar daq hoj, voc chga l amanh cnco hor

    da tard ,Maria Aparecida da Silva Chagas tem o ros-

    to marcado pelas rugas de seu 56 anos, o cabelo castanho

    comprido, fisado, a fanja cacheada de corte reto caindo

    sobre os olhos. Enquanto os pais trabalhavam na roa com

    o irmo mais velho, ela cuidava da casa, cozinhava e servia

    de bab aos irmos mais novos. Com a rotina de todos os

    dias, no conseguia estudar. Aos 14 anos, seu pai arrumouuma vaga e ela e os irmos oram cursar a 1 srie, no pero-

    do da tarde. Mas, enquanto as crianas j liam e escreviam,

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    56 eles tinham que aprender desde o comeo. Os insultos e

    brincadeiras eram demasiados; no conseguiam azer a li-

    o, no conseguiam aprender, at que a pacincia acabou,e Maria e os irmos comearam a arrumar briga todos os

    dias. Por isso, logo desistiram dos estudos.

    Para So Paulo, veio no final dos anos 80, quando o

    filho mais novo, Sidnei, tinha seis meses todos os filhos

    so mineiros, com a exceo das duas ltimas, Sidineia e

    Silvani, nascidas em So Paulo, que ela no considera, porisso, mineiras legtimas, so filhas de mineiro. Ela veio de

    l nova; no tinha nem 30 anos.A stao ra mto dcl,tnha es mont d filho tdo q a gnt aza no dava.Seuex-marido, Geraldo Graldo Magla d Chag, 57 anos,inorma Sidineia , com quem se casou numa tentativa

    de melhorar de vida, trabalhava na roa, capinando, e um

    dia alou, vo pra So Palo vr s arrmo algma coia.A amlia Silva Chagas nem sempre morou no aasta-

    do bairro de zona rural. Viveram at o comeo dos anos

    2000 em Interlagos, onde Seu Geraldo havia ganhado da

    preeitura um pedacinho de terra e construdo um bar-raco com material dado pelo municpio dois cmodos

    de madeirite antes de trazer toda a amlia para morar

    junto com ele. Mas complicaes os obrigaram a sair de

    l. Primeiro, a separao de Maria e Geraldo, que preca-

    rizou as condies financeiras da amlia. Entre um em-

    prego e outro, trabalhando como domstica, axineira eauxiliar de cozinha, Maria no conseguia pagar as contas.

    rabalhando em uma casa e uma lanchonete, ganhava um

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    57salrio de R$200, com o qual tinha que pagar gua, gs,

    luz, material escolar dos filhos, roupas, comida. O maior

    sofimento oi quando a escola pediu que comprasse umAtlas e um dicionrio para uma das crianas, le prc-sava dese lvro no tnha condo d comprar, porqo q ganhava no dava nm pra mm dar d comda prale drto. Passou por bares, restaurantes, casas. Nada erao suficiente. Quando a luz oi cortada, passaram a viver

    a luz de velas. Quando a alta de comida tornava-se de-masiada, Sidineia e Sidnei s vezes tinham que sair da

    aula e ir procurar nos lixos das avenidas alguma coisa que

    os ajudasse a encher o estmago vazio. Enquanto isso, s

    presses financeiras, juntavam-se ameaas. O segundo

    marido de Sideilde tambm conhecida como Preta

    havia se envolvido com drogas e sido assassinado na por-

    ta de casa; a jovem, ento nos seus 20 anos e me de seis

    filhos, vira tudo. Como um dos assassinos oi preso, os

    traficantes desconfiavam que algum da amlia o havia

    denunciado, e a amlia toda comeou a ser ameaada.

    A soluo encontrada oi colocar a casa venda elevar as crianas para viver no Barragem, onde uma de

    suas filhas mais velhas estava morando e onde Maria no

    teria que pagar contas de gua nem luz. Ela tinha uma

    garagem sobrando, um cmodo de madeira vazio na

    fente da casa, e o oereceu amlia. Enquanto as crian-

    as oram morar l, Maria continuava em Interlagos, so-zinha, lutando por empregos que duravam pouco e pa-

    gavam menos ainda. Na casa em que trabalhava, boatos

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    58 chegaram ao ouvido da patroa de que um jovem havia

    sido assassinado ali perto. Mentiu patroa que no o co-

    nhecia, mas, eventualmente, teve que contar a verdade:era seu genro. Foi mandada embora, por medo de que

    os traficantes ossem procur-la no servio. O medo no

    era inundado: no restaurante em que conseguiu empre-

    go em seguida, chegou um dia ao trabalho e encontrou

    a chee plida. Mara, va mbora, por avor. Uns homns

    acabaram d psar aq procrando por voc. No az nmcnco mntos. Desde ento, Dona Maria nunca mais tra-balhou. Hoje, quem sustenta a casa Neia, com a bol-

    sa que recebe na biblioteca, e a renda complementada

    pelo dinheiro que a me recebe do Bolsa Famlia e de

    algum servio eventual.

    Os primeiros tempos no Barragem oram muito di-

    ceis. Duas amlias viviam em uma garagem: Sideilde com

    os ento seis filhos, Dona Maria com mais sete. Os mveis

    eram poucos, a maioria havia ficado estragando na casa

    de Interlagos, pois no havia dinheiro para uma mudan-

    a extensa nem espao para acomod-los. O ogo um dos itens escolhidos e levados para a casa nova era

    intil, pois no havia dinheiro para pagar o gs. iveram

    que construir um ogo de lama, onde queimavam lenha

    encontrada na mata prxima. A situao s melhorou

    quando Dona Maria conseguiu permisso de um vizinho

    para limpar o terreno desocupado que ele no usava e aliplantar. Depois de um dia inteiro capinando, ela encon-

    trou uma muda de inhame, do tamanho desa sala toda.Pas-

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    59saram dois anos sobrevivendo base de inhame cozido,

    ma dlca, e ca bem orte.

    Quando a casa de Interlagos finalmente oi vendi-da, ainda que por um preo menor do que o que valia de

    verdade, conseguiu comprar a casa da fente a mesma

    do terreno cujo inhame os havia salvado , reorm-la e

    comear uma pequena plantao no quintal. Mandioca,

    couve, inhame, planta de tudo que pode para nunca mais

    passar suoco. Hoje, tambm cuida de dois porcos, que vi-vem num celeiro ao lado da cozinha. A casa maior, em-

    bora simples, uma sala que acomoda dois sos, um pouco

    apertados, uma estante cheia de otos da amlia e uma

    televiso. Na cozinha, duas mesas de jantar so circunda-

    das de cadeiras azuis. S assim para caber a amlia inteira

    por ali. Os quartos so dois, e um banheiro. O cho de ci-

    mento, as paredes no tm pintura e o teto precisa ser re-

    ormado, porque, quando chove, as goteiras so tantas que

    impossvel dormir. H que azer um malabarismo com

    garraas e potes e baldes para conter a gua. Entretanto,

    um lar, muito dierente da garagem em que ficaram con-finados durante dois anos. Octvio e Lvia correm o dia

    inteiro pela casa, brincam com os bichinhos de pelcia,

    olheiam livros que, graas a Sidineia e Silvani, inestam

    a casa. Octvio tem um, especial, que insiste para que a

    me leia a ele todas as noites antes de dormir: E amo voc,

    m filhot m lvro para tocar sntr. A edio j estdesgastada de uso; o menino adora ver os desenhos de ani-

    mais e sentir a textura dos pelos que h em cada pgina.

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    60 Neia tenta oerecer ao filho o que no teve na sua in-

    ncia: o contato desde cedo com os livros. O garotinho

    curioso, extrovertido, az travessuras o dia inteiro e muito apegado me, a quem se agarra quando aparecem

    visitas. Mas d uma olha de papel a ele e ganhar seu ca-

    rinho: aos cinco anos, est aprendendo a escrever. Escreve

    seu nome, em grandes letras de orma, OCVIO, onde

    pode. Na olha, no caderno, no cho de terra com um gra-

    veto. E, pelo carinho que tem pelos livros, a me acreditaque seguir o mesmo caminho que ela trabalhar um

    dia na biblioteca.

    Neia se apaixonou pela literatura muito cedo. Embora

    no houvesse livros em casa, nem os pais tivessem o hbi-

    to de ler Seu Geraldo estudou s at a 4 srie, e Dona

    Maria mal sabe assinar o primeiro nome , a garota ado-

    rava pegar livros na biblioteca da escola, quando morava

    em Interlagos. Se antes suas leituras consistiam em basica-

    mente romances, hoje ela l de tudo. S no gosto mto dpoea.A biblioteca ajudou-a a expandir seus horizontes,

    no s os literrios. Graas ao projeto, Neia passou a tercontato com outra paixo que, hoje, sonha em transor-

    mar em carreira e uturo: a culinria.

    As qualidades culinrias de Neia chegam a ser lend-

    rias. odo mundo se lembra de algum prato, de alguma

    esta, de alguma inveno. Voc j com a comda da Na?,

    Voc j provo o fango com qabo q a Na az?, Voc jxprmnto o caldo vrd da Na?. Os dotes culinrios ea preerncia pela comida mineira vieram da me, embo-

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    61ra, em casa, ela no consiga cozinhar muito, pois a me

    quem reina soberana no ogo. A garota comeou a desen-

    volver mais suas habilidades depois de comear a traba-lhar na biblioteca ela quem cozinha para os amigos

    quando vo almoar juntos e ela quem elabora e produz

    os pratos que sero servidos nos eventos.

    Sempre ativa na escola, Neia participava de vrias ati-

    vidades extracurriculares no colgio. Voluntria no proje-

    to Escola da Famlia, participava das oficinas de cabelo eutsal ela sempre oi apaixonada por utebol. Enquanto

    as amigas iam assistir aos garotos jogando, ela entrava na

    quadra para jogar junto. Foi por participar do Escola da

    Famlia que a garota oi convidada a participar do pro-

    jeto dos 60 Anos dos Direitos Humanos do Ibeac. Como

    sonhava em ser advogada, mexer com direitos humanos

    parecia um bom passo nessa direo. Mas, quanto mais

    cozinhava no projeto, mais crescia a vontade de estudar a

    gastronomia a undo. Os cursos universitrios nessa rea

    eram, porm, caros demais; depois de muita procura, ela

    acabou desistindo. Era o comeo de 2012. Quando aloupra Bel que no iria mais atrs disso, a coordenadora a-

    lou: nm pnsar. Agora arrm m crso pra voc.Ministrado na Universidade Anhembi-Morumbi, o

    curso de capacitao em gastronomia da ONG Gastromo-

    tiva13era uma oportunidade boa demais para ser desperdi-

    ada. Destinado a jovens adultos de 18 a 35 anos com rendaat trs salrios mnimos, era a chance de Neia comear a

    13 Para mais inormaes: http://gastromotiva.org/cursos/.

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    62 realizar seu sonho, mas ela teve medo. E se no conseguis-

    se? Aps muita insistncia de Bel, acabou cedendo. Dos

    seiscentos inscritos, apenas quarenta seriam selecionados.Quando passou na triagem e oi chamada para uma entre-

    vista, a jovem j suspirou de alvio.

    Para a entrevista, que seria na sede da ONG, na Lapa,

    Neia arrumou-se toda. Fez chapinha nos cabelos cachea-

    dos, colocou um sapato de salto e saiu cedo de casa para

    chegar a tempo. Na metade do caminho, o mundo caiu.Chg no lgar toda demontada.Arrasada, pois acredita-va que a aparncia seria o mais importante para a seleo,

    restou-lhe tentar ganhar a vaga atravs do carisma. Falou

    de seus planos, vida, da vontade de azer o curso e vol-

    tou pra casa achando que a chuva tinha estragado todas

    as chances de ser selecionada para a prxima ase. Depois

    de algumas semanas, a surpresa: um e-mail convidando-a

    para a terceira e ltima ase do processo seletivo, a din-

    mica. Quanto mais perto chegava do objetivo final, mais

    tensa ficava. Mas o nervoso valeu a pena; ao final, ela oi

    selecionada.Durante quatro meses, praticamente todos os dias, a

    garota estava pontualmente na Anhembi-Morumbi da

    Mooca s 13h. Era aqla batalha tntando chgar no hor-ro.Ela saa de casa a tempo de pegar, no mximo, o nibusdas 10h10 em direo a Parelheiros, pra estar na Mooca

    altando de cinco a dez minutos para a aula comear. Oshorrios eram rgidos: se voc chegasse alguns minutos

    atrasados, j no poderia entrar na classe.

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    63 E a aconteceu uma vez deu chegar l, era 13:01,

    todo mundo j na sala, eu peguei e voltei Depois de

    demorar quase trs horas para chegar aculdade, ez opercurso de volta sem sequer ter pisado na sala de aula,

    por vergonha de atrapalhar a aula que j havia comea-

    do. No dia seguinte, explicou aos proessores o que havia

    acontecido, e eles ficaram inconormados:

    Voc az essa caminhada pra chegar aqui a tempo

    pra depois ir embora? Quando acontecer isso conversacom a gente!

    Dos perrengues que passou, outro tambm ficou mar-

    cado. Com ameaas de greve no metr e nos trens, a garota

    ficou preocupada.M, como q vo azr?, se pergunta-va. Pegou o nibus s 7:30 da manh. No meio do caminho,descobriu que trem e metr estavam uncionando. E na-qla batalha Chg l na Anhmb altava cnco pra ma.

    Foi uma batalha, mas o esoro valeu a pena: assim que

    acabou o curso, em agosto, j comeou a receber propos-

    tas de trabalho nos restaurantes parceiros da rede. Porm,

    comprometida com o seu trabalho na biblioteca e, princi-palmente, com o projeto Sementes de Leitura, criado por

    ela um projeto de mediao para mes e bebs , de-

    cidiu recusar. Ela j havia estagiado em vrios lugares di-

    erentes ao longo do curso desde um restaurante do re-

    nomado che Alex Atala, passando pelo Bar da Dona Ona,

    no centro da cidade, at a quadra Camisa Verde e Branca e decidiu esperar o trmino do Sementes, em dezembro,

    para depois, talvez, procurar algum emprego na rea.

  • 5/23/2018 Na biblioteca, o tamanho dos sonhos - Lvia Furtado

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    64 Eu ficava naquela dvida, n, porque so duas coi-

    sas que eu amo azer: a cozinha e o projeto social. A eu

    alei, como que eu posso relacionar isso? O sonho quese ormava em sua mente era a ampliao da biblioteca

    em instituio cultural ampla, uma ONG. Decidida a ten-

    tar relacionar o projeto social com a gastronomia, ez em

    2013 um curso em um restaurante local sobre o cambuci.

    L, aprendeu a azer trua, iogurte, sorvete, risoto, geleia.

    E va q peso, at mema qando pgava o cambcra s pra azr sco.

    A produo de diversos tipos de alimentos a partir

    daquela matria-prima, abundante na regio, poderia ser

    usada para gerar renda para as pessoas do bairro e para

    a prpria biblioteca. Por que no multiplicar o conheci-

    mento que tinha adquirido? Assim surgiu a ideia de um

    novo projeto: oficinas de culinria com o cambuci para

    as mulheres do Barragem. Inscreveu o projeto na Gerao

    MudaMundo, plataorma de empreendedorismo social

    juvenil da Ashoka, um dos parceiros do Ibeac. Com o slo-

    ganJovens transormando sonhos em ao, a plataormadisponibilizava uma verba de mil reais para projetos so-ciais. O de Neia oi aprovado, mas como o recurso s caiu

    em setembro, ela no conseguiu comear o projetoporqa poca do cambc agora d vrro a maro, nto tava d-

    cl d consgr o cambc, dcl d consgr dar es

    oficn.A ideia que o projeto acontea ainda em 2014.E, assim, a aspirante a che vai juntando, aos poucos, suas

    paixes e construindo seus sonhos.

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    65Na primeira sexta-eira de novembro, os pratos escolhidos

    por Neia para o evento da tarde so mingau de couve e

    fango com quiabo. Rodrigo explica que em todos os even-tos do grupo a comida assim, d vrdad:

    A gente chegava num evento tinha uma ma, uma

    bolachinha e um ca. S que assim, o grupo no disso,

    a gente no acostumado assim. Se comer s uma ma,

    dez minutos depois no precisa nem alar o, sua barriga

    j ala por voc.A influncia mineira de Dona Maria vem em boa

    hora: o sarau sobre as descendncias mineira, nordestina

    e indgena do bairro. Enquanto Minas domina a cozinha,

    artesanatos indgenas so expostos para que os visitantes

    possam apreci-los, junto com vdeos que registram a his-

    tria oral do local.

    A exposio az parte do projeto Griot: De Gerao

    em Gerao. Proposto por Raael, e com apoio do Progra-

    ma para a Valorizao de Iniciativas Culturais (VAI), da

    Secretaria Municipal de Cultura de So Paulo, o Griot oi

    realizado ao longo de 2013, com o objetivo de concreti-zar o resgate cultural e tnico da regio de Parelheiros14.

    Foram realizadas pesquisas e conversas com instituies

    locais, entrevistas com moradores da regio, registro em

    vdeo dos moradores, contando sua histria, alm de ou-

    14 O Griot oi aprovado na categoria Outras linguagens do VAI2013. possvel acessar o resumo do projeto atravs do link: ht-

    tps://docs.google.com/document/d/1cGJWVWdaIFgQ2KsqfG-

    7Ml__4MiNZvbEY1CYg66_hQ/edit. Acesso em: 07/05/2014.

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    66 tras aes que resultaram em vrios saraus para apresen-

    tar comunidade os resultados do projeto.

    A prpria histria do cemitrio do Colnia comeacom uma migrao. Logo aps a independncia, Dom Pe-

    dro I traz para o Brasil colonos europeus com o objetivo de

    ocupar e proteger terras e, em So Paulo, substituir nas la-

    vouras os escravos, cujo custo de importao vinha ficando

    cada vez mais alto. Por volta de 1827, 129 amlias alems, da

    regio de Hunsrck, fixaram-se na regio de Parelheiros, eo assentamento recebeu o nome de Colnia. Isolados, sem

    alar a lngua local, distantes do centro mais prximo (a vila

    de Santo Amaro), sem mdicos, sem proessores, os colonos

    viviam da venda de carvo e salsicha. Luteranos, criaram

    em 1829 o que seria o primeiro cemitrio particular de So

    Paulo.15A regio mais tarde recebeu migraes japonesas,

    mineiras, nordestinas e aficanas, principalmente.

    Os quatro articuladores so futos de migraes. Ra-

    ael Raal Sme, gra a Du s tm es sobrnom no nom cho d fecr, com ph, doi l nm nada sm

    , assim como Neia, filho de mineiros no caso, mi-neira. Pa no conho tambm no tnho ntres m ratrs.Ele oi criado pelos avs e pela me, Dona Jacinta,que veio do interior de Minas Gerais para So Paulo aos

    17 anos. A amlia inteira mudou-se em busca de melhores

    condies de vida. Em Governador Valadares, onde mora-

    vam, a vida era muito dura. Instalaram-se no Barragem,

    15 http://www.acempro.com.br/unidade_detalhe.cm?id=4. Acesso

    em: 07/05/2014.

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    67onde, por haver muitas granjas e azendas, havia demanda

    por mo de obra agrcola. Primeiro, trabalharam em uma

    azenda perto da aldeia Krucutu, at o pai comprar o ter-reno e construrem a casa em que vivem at hoje.

    A casa, grande e espaosa, com paredes de alvenaria sem

    pintura, fica bem no centro de um amplo terreno que tem

    cada centmetro coberto por plantas dos mais variados ti-

    pos. J no porto de entrada, eito com tbuas de madeira,

    uma alsa vinha recobre o muro ao lado. Passa-se por umapequena garagem que abriga a Kombi usada por seu tio para

    levar os produtos para o Ceasa e, logo depois dela, chega-se

    ao jardim. Ele se expande at os undos do terreno e con-

    torna a casa, dando, do outro lado, para a entrada da cozi-

    nha. Canteiros cobertos de tela preta comportam plantas

    artesanais que sero revendidas depois. Elas esto separa-

    das em pequenos vasos: ali, com a olha verdinha clara com

    escura, a singnia; a grama-amendoim, com suas florzi-

    nhas amarelas, que tem esse nome porque sua olha igual

    do p de amendoim; o azulo, chamado assim por causa

    da flor, azul meio roxa. O torcontinua para alm dos can-teiros: clorofito, hera variegata, pata-de-vaca de flor branca(Mt mlhre uavam pra problm d tro, pra qm tmsangramntos dmai, explica Raael), pata-de-vaca de florrosa, q pros rns, camlia, dionela, bucho, azaleia, lrio,lrio azul, agapanto, barriga-de-sapo, barba-de-serpente,

    kaizuka, hera batata, camlia japnica, grama preta, unha--de-gato, comigo-ningum-pode. Frutas no altam: h ps

    de jabuticaba, podocarpo (T vndo es smntnh? Isso

  • 5/23/2018 Na biblioteca, o tamanho dos sonhos - Lvia Furtado

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    68 ma ftnha. doc. E no so mto , no.), pitanga, caqui,banana, laranja, mexerica poc, pitanga, limo, aq, xata-

    mnt aq, tnha m p d acrola, m m av corto.Paraconsumo prprio h tambm diversos tipos de vegetais, le-

    gumes e temperos: inhame, quiabo, couve, cebola, confeire,

    abbora, hortel, cebolinha.

    Nem tudo que produzem est ali. O terreno em fente,

    atravessando a rua, tambm pertence amlia. Uma casa

    simples, logo na entrada, alugada para um policial. De-pois da casa, tudo verde, num terreno que se expande at

    chegar a um muro, descendo um pequeno declive. Alguns

    tipos de planta, como banana, se repetem, mas h outros

    s plantados ali: copo-de-leite, lrio, costela-de-ado, pi-

    menta malagueta (E probdo d comr iso a porqtv gtrt no ano psado.), mexerica cravinho ( dss ta-manznho, o chro spr ort.), cambuci, abacate, mo-reia, caju (Nnca d porq s d m lgar qnt aq

    fo. S amaa, m nnca nc.), mandioca, ca, pau--erro (Ess pa dro pra caramba pra cortar.), jil, coroa-

    -de-cristo (Chama sm porq t rga todo o lt mtotxco. bom pra azr aql crc natrai.), mostarda.Ao undos, esquerda, a casa do tio.

    So mais de 50 tipos plantados, e Raael os conhece

    todos. Sabe a poca do ano em que nascem, pra que ser-

    vem, como cuidar deles. Ele nasceu e cresceu ali, em meio

    quelas plantaes, ajudando o tio a arrancar bambu tortoe azer a curvatura para vend-lo.

    Voc gostava?

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    69 Ah, a gente azia o que podia, n, no era uma coi-

    sa, assim, que eugostava, mas era tranquilo. Mas eu no me

    via azendo isso direto, pela vida inteira. No que eu novenha a trabalhar com isso no uturo, mas

    Nem ele se imaginava ali, nem a amlia. Foi pelo in-

    centivo da av, Maria Madalena, que Raael ingressou no

    mundo do teatro e da televiso ainda novo. Aos cinco anos,

    ela o inscreveu num desfile inantil das lojas Pernambuca-

    nas; em seguida, colocou o neto num curso de teatro naCasa da Cultura, em Santo Amaro.

    Ele era bem criana, era a av que cuidava dele; eu

    trabalhava na poca, e a ele comeou por esse caminho e

    eu apoiei. Para Jacinta, sempre oi importante que o

    filho tivesse oportunidades e escolhas, coisas que ela no

    teve. Eu no estudei, s muito pouco em Minas, s pra

    conseguir seguir a vida. A gente no tinha muita escolha,

    era trabalhar, trabalhar e trabalhar; as crianas tinham que

    crescer trabalhando. Pra mim aquilo no era vida.

    Por isso sempre incentivou que o filho estudasse,por-

    q aprndr no ocpa epao, qanto mai a pesoa aprn-dr, mlhor.Raael oi agenciado mais tarde e participou como fi-

    gurante de diversas novelas e da plateia de programas de

    auditrio. Foi ao programa da Hebe, Celso Portioli, Elia-

    na, atuou em um quadro de um programa sensacionalista

    do Joo Kleber na Rede V e em pequenas peas de teatro.Viajou para o Rio quatro vezes, nessa poca, entre os 13 e

    14 anos. Mas oi crescendo e deixando de lado a vida de

  • 5/23/2018 Na biblioteca, o tamanho dos sonhos - Lvia Furtado

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    70 ator a av morreu em 2004 e era quem mais o incenti-

    vava a continuar at que, ao entrar no projeto do Ibeac,

    em 2009, abandonou por completo essa parte de sua vida.O garoto no gostava de ler, e entrou para o projeto

    porque alguns amigos j participavam e o convenceram.

    Ele entrou exatamente no mesmo dia em que Eduardo,

    outro dos articuladores. Eles estudavam na mesma sala

    e oram juntos primeira oficina da qual participaram,

    quando a biblioteca ainda estava sendo ormada na UBSdo Colnia. Foi s depois de comear a participar das ati-

    vidades de ormao que Raael comeou a ter uma nova

    relao com a leitura. Antes obrigao, passou a ser ati-

    vidade de prazer, conhecimento e troca. O convvio com

    outras pessoas o ortaleceu, e Dona Jacinta acredita que o

    ajudou a lidar melhor com a perda da av e, mais recente-

    mente, do av, que veio a alecer no incio de 2014.

    Se antes as oportunidades eram seguir a carreira da

    amlia cuidando da terra ou a vida de ator, o Ibeac abriu

    ao jovem muitas outras portas. De repente, o menino que

    poucas vezes havia sado de So Paulo comeou a viajar oBrasil. Braslia, Salvador, Belo Horizonte, Paraty. Andou de

    avio, se hospedou em hotis, albergues, sofeu para voltar

    de Guarulhos ao Barragem depois de viajar durante horas.

    O adolescente esquentado que no pensava duas vezes antes

    de mandar algum tomar naql lgarcomeou a amadu-

    recer e pensar antes de alar. Seus sonhos tambm se trans-ormaram: o contato com outras bibliotecas ez com que

    Raael decidisse aprender a catalogar os livros da Cami-

  • 5/23/2018 Na biblioteca, o tamanho dos sonhos - Lvia Furtado

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    71nhos da Leitura. O Ibeac conseguiu para o garoto uma bol-

    sa integral no curso tcnico de Biblioteconomia no Senac

    Consolao, onde ele estudou durante um ano, d sgndaa sxta, d 13h s 18h, d vrro d 2012 a vrro 2013.

    Para aproveitar a viagem e no perder o dia, trabalhou,

    durante esse perodo, na sede do Ibeac. Durante um ano e

    meio, oi auxiliar administrativo, e Bel se lembra, impressio-

    nada, da pontualidade do menino, que nunca chegou atrasa-

    do ao servio. Hoje, ele orma junto com mais duas pessoaso grupo de biblioteconomistas do Polo LiteraSampa, rede

    ormada pelo Ibeac e outras instituies que tambm tm

    projetos de incentivo leitura e so apoiadas pelo Instituto

    C&A. atravs do Polo que esto trazendo para a biblioteca

    o Alexandria, sistema de gerenciamento de acervos que aju-

    dar a catalogar de maneira mais eficiente os cerca de 3500

    livros que compe atualmente o acervo da Caminhos das

    Leitura. O orgulho claro na voz do garoto sempre que ele

    ala do projeto, das realizaes, dos eventos. Os sonhos de

    Raael no param de crescer e ele quer que a biblioteca

    que se tornou sua segunda casa continue crescendo com ele.

    Cerca de 130 pessoas passam pela biblioteca ao longo dia.

    Mas as mais ou menos 50 que visitam o espao no comeo

    da tarde, no sarau do Griot, tm uma experincia muito

    dierente das que chegam noite. Quando o sarau acaba,s 17h, os garotos comeam a desmontar tudo e decorar o

    espao novamente. Neia, na cozinha, no para.

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    72 Precisa de ajuda?

    No, no, arrumem tudo a que j t dando a hora.

    s 20h, quando j escureceu, o cenrio de ilme deterror. Cruzes, bonecas aterrorizantes, teias, aranhas e

    vassouras de palha se espalham por cantos, tetos e paredes,

    sob a luz bruxuleante das velas que se espalham dentro da

    casa e por todo o jardim. Alguns dos visitantes chegam

    no s antasiados, mas com maquiagens assustadoramen-

    te reais so os alunos da E. E. Lucas Roschel Rasqui-nho, parceira da biblioteca e que, nesse dia, teve a esta

    de Halloween em que os alunos podiam se pintar. A mesa

    de comidas oerece a sopa de abbora especial da Neia,

    com bacon, couve e linguia, e um caldo verde com atum

    e fango desfiado, tudo servido com grandes pedaos de

    po. Os doces, para acompanhar as travessuras, so bem

    brasileiros: suspiro, maria-mole, p-de-moleque, torrone.

    O sarau do terror j tradicional. Na primeira edio,

    em 2011, eles no esperavam um pblico muito amplo. A

    biblioteca j existia h um ano e meio, e quase no via mo-

    vimento. De repente, alguns adolescentes apareceram debicicleta e os nimos cresceram: visitas! Mas no: eles ti-

    nham ido apenas para ver o que era e, matada a curiosida-

    de, comearam a estragar a decorao, chutando as velas.

    O grupo aps acalmar os nimos de alguns membros

    mais exaltados, que queriam qbrar a cara dos nonh,

    lembra Eduardo deixou, mas avisaram que os meninosseriam impedidos de participar de uturas atividades da

    biblioteca. Depois de algum tempo, a surpresa: mais e mais

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    73pessoas comearam a chegar, dessa vez realmente para par-

    ticipar das atividades. Foram cerca de 50 visitantes nessa

    primeira edio, e o nmero cresce a cada ano no eventoque acontece todo primeiro final de semana de novembro.

    A cada edio, tentam mudar alguma coisa. Neste ano

    decidiram deixar a casa inteira aberta antes, a cozinha

    ficava echada e juntaram aos tradicionais mediao de

    contos de terror e excurso pelo cemitrio, u