mussa, a - machado, m entrevista para o fórum de literatura brasileira contemporânea

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  • 8/12/2019 Mussa, A - Machado, M entrevista para o Frum de Literatura Brasileira Contempornea

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    [Ainda sem ttulo a]

    Entrevista com Alberto Mussa

    Mnica Machado

    O modo de chegar a um escritor, para alm de seu trabalho, pela conversa. Em meu caso, com Alberto Mussa, asconversas normalmente tomam a direo do que h deinstigante no texto e desenredam outros movimentos.

    Nunca fui jornalista, minha formao em Letras, pelasLiteraturas. E tenho, por essa falta, enorme dvida sobreas questes que faria a um escritor que tanto instigaquanto redobra e refaz o meu prprio pensamento, pelainteligncia e sagacidade de sua escrita. No tinha certezasequer ideia se Alberto Mussa estaria interessado ouno em falar sobre o que eu perguntava. Por isso preciseide crtica certa, a dele; sobre minhas questes, a mim,indagadora. Resolvi e lhe deixei sabiamente no comando daprosa. No pensei em questes muito especiais no sentidodas teorias. Os motes, entretanto, deram em seteprovocaes que tocaro o que espero os temas e seumodo de escrever o pensamento.

    1

    A primeira parte de uma conversa com Alberto Mussa quase

    sempre chega pela vertente da criao e segue a via de sua

    formao como escritor, suas leituras, suas escolhas, seu

    modo de trabalho e prazer. por c que comeamos tambm,

    no pedido de mais um relato explicativo e propedutico1

    sobre as escolhas, o trabalho e as pesquisas em que se

    envolve. Quais so suas recomendaes para quem queira se

    dedicar literatura?

    Para qualquer posio da cadeia literria, seja a deescritor, editor, livreiro, agente, professor ou crtico,s h uma preparao necessria: a leitura. Talvez porque aliteratura exija uma mediao, uma formao preliminar

    1Ao modo do Declogo do leitor, da Entrelivros, disponvel em

    http://www2.uol.com.br/entrelivros/reportagens/decalogo_do_leitor.html.

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    (diferentemente de outras artes, que tocam os sentidosimediatamente).

    o acmulo de experincias literrias, so os livros queuma pessoa l que iro determinar sua capacidade de

    produzir ou apreciar literatura. claro que quando falo emlivros me refiro aos gneros literrios propriamente ditos.

    Mas, infelizmente, no este o senso comum. Vivemos osestertores do Humanismo. um fenmeno que vem desde oincio do sculo 20 e que hoje est no seu pice. Aerudio, que esse acmulo de experincia a que mereferi, no tem valor. O que tem valor algo que chamam decincia. Nossa Faculdade de Letras tem um departamento deCincia da Literatura, nome que sempre me pareceu uma

    aberrao.

    A fascinao pela cincia, em detrimento da erudiohumanista, tem afetado especialmente a crtica, que noproduz um discurso livre, fundado na experincia de leiturae na sensibilidade pessoal. So textos teoricamenteorientados, tutelados, so aplicaes e adaptaes dopensamento de um algum, normalmente um sbio estrangeiro(no que se ratifica nossa submisso intelectual) que noleu nossos livros nem vive nossa vida e que quase sempre

    um especialista em outra disciplina filosofia,preferivelmente.

    preocupante, hoje, ver que meus colegas, formados emletras, conhecem mais textos sobre literatura do que obrasliterrias. preocupante ver escritores interessados emrefletir sobre o fenmeno literrio, em desconstruir osfundamentos da literatura, em criar linguagens, em

    romper com os cnones (numa luta que j tem um sculo),em vez de dizerem alguma coisa instigante sobre a vida.

    A crtica literria, para mim, sempre foi a arte daleitura. Como bom ouvir algum falar de um livro que vocj leu chamando a ateno para belezas, sutilezasdesapercebidas, dando ensejo para uma releitura!

    Esse tipo de crtico s pode existir se for um grandeleitor, algum que teve a sensibilidade literria depuradaem funo dos muitos e diferentes livros que leu. umprocesso interminvel, que dura a vida inteira. E muito

    mais complexo, muito mais difcil que dominar meia dzia de

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    teorias sobre esse ou aquele problema filosfico e aplic-las ao texto literrio.

    As pessoas reclamam cada vez mais que a literatura genunatem perdido espao nas livrarias, nas estantes das casas,

    na vida das pessoas. por isso.

    O verdadeiro escritor quem escreve para o pblico, nopara especialistas; o verdadeiro crtico quem ensina essepblico a gostar de ler. E isso no pouco.

    2

    Entre a literatura brasileira marginal nave e o esprito

    europeu cannico universal h um contraste reiteradamente

    cultivado; a esse contraste que guardo uma objeo, pela

    inadequao das colees que tendem a aglutinar escritores

    to dspares como Guimares Rosa, Incio de Loyola Brando

    e Ademir Assuno, e pelo que tem acontecido aos

    contemporneos que em pouco se aproximam e que por isso

    mesmo so juntados aos montes ps-modernos. Como fica o

    romance na situao em que parece valer o ser sempre

    novidadeiro?

    H muito tempo que a literatura marginal passou a ser

    cannica, pelo menos para um importante setor da crtica,que liga a ideia de marginalidade aos conceitos deruptura, transgresso e de vanguarda (coisas que,para mim, so extremamente velhas, de pelo menos um

    sculo). Tambm se entende como marginal a literatura querecorre sistematicamente ao bizarro, ao grotesco, aorepulsivo.

    Um livro assim pode at ser bom, mas no uma novidade nocenrio brasileiro. No h mais nenhuma novidade em tentar

    subverter os fundamentos do romance.

    Para ser original (e ser original no quer dizer ser bom),no mbito da literatura brasileira, necessrio tentarfugir das suas recorrncias, que me parecem ser o realismoe o intimismo. A literatura brasileira precisa diversificaros temas, criar novos gneros de personagens, ampliar oplano profundo das ideias.

    Nesse sentido, se algum quiser ser original, na literaturabrasileira (e isso no uma obrigao), deve investir nofantstico, na aventura, na fico cientfica, no policial,

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    e principalmente na narrativa histrica, absurdamenteesquecida, como se as bandeiras, a guerra do Paraguai, asinmeras insurreies ou a escravido por si s no fossemtemas suficientes para sustentar uma literatura inteira oucriar nela gneros fecundos (e basta pensar no faroesteamericano, nos romances mexicanos sobre a Revoluo, e emtudo o que se escreveu a partir do Nazismo).

    No estou, claro, desqualificando a priori os romancesque seguem padres recorrentes. Por isso, no digo que aliteratura brasileira contempornea esteja ruim. Estapenas um tanto montona.

    3

    O modo de escrever, a filiao esttica, a sempre reforadaafiliao de escritores a um nacionalismo, uma necessidade

    ou inteno de assumir, rejeitar ou receber um qualquer

    lugar na periodizao literria e artstica so elementos

    encontrados no comum das resenhas, dos estudos em

    literatura e nas mesas da Academia. Quero sua opinio sobre

    essa moda j h muito em voga de encontrar na

    literatura nacional o nacionalismo; como questo acentuada

    no tempo do Modernismo e reforada principalmente no

    Manifesto de Oswald de Andrade. Hoje, qualquer escritor ou

    pesquisador que se dedique a falar sobre o Brasil de maisatrs, quer trate de ndios, negros ou da sociedade urbana

    dos sculos passados, corre o perigo de receber a etiqueta

    do nacionalismo. preciso romper com alguma coisa?

    Sempre achei este um problema falso. Para os brasileiroscomuns, entre os quais me incluo, no existe a questo daidentidade nacional, at porque o ato de algum seautoclassificar brasileiro j constitui uma deciso sobreidentidade.

    O critrio da nacionalidade apenas um dos que se podemaplicar para classificar livros ou autores. Ningumpertence a uma literatura em funo do tema ou do ambienteque elege: lngua e pblico que so os elementosdistintivos nesse critrio. Literatura brasileira aquelaescrita no portugus do Brasil e publicada, originalmente,para ser vendida ao pblico brasileiro. No acredito quepelo fato de eu ter escrito O enigma de Qaf, romance

    ambientado na Arbia pr-islmica, deva ser includo naliteratura rabe.

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    Os escritores devem se sentir livres para tratar de temasinternacionais, para retratar as grandes cidadescosmopolitas do pas ou aproveitar os materiais oriundos deculturas e etnias que participaram da nossa formaopopulacional. A escolha de uma dessas linhas no fazningum ser mais ou menos brasileiro.

    Associar identidade nacional a temas regionais,

    populares, africanos ou amerndios um equvoco conceitualque dificilmente est desacompanhado de preconceitossociais e raciais.

    Da mesma forma, acusar de nacionalista (na acepo que

    tem esse vocbulo na Europa, cuja histria social epoltica difere profundamente da nossa) a quem escreva

    recorrendo queles mesmos temas importar, de modosubserviente, um problema inaplicvel ao Brasil.

    Nada to comum na literatura quanto autores tratarem deexperincias de suas prprias vidas e de lugares ondeviveram. Chamar essa turma toda de nacionalista me pareceuma excrescncia. Ou teramos que incluir nesse balaiogente como Machado, Dostoivski, Proust, Pirandello, oBorges dos contos gachos, mesmo o pndego do Kafka ou oinsuportvel James Joyce.

    4

    Em seus livros, o caso das ideias matemticas outro

    instigador. O movimento pendular traz dois trechos mais

    explicitamente dedicados s ideias racionais sobre o mundo2

    e s referncias matemticas esto no sistema descrito em

    O enredo circular e no final do livro, sobre o fantstico

    nos Elementos, de Euclides. Em O senhor do lado esquerdo,

    ltimo livro publicado, h uma declarao de Baeta o

    2Antony Garret Lisi publicou, em 2007, An Exceptionally SimpleTheory of Everything, tambm sobre uma base quatro de clculo,tambm sobre a ordem e natureza das coisas no mundo, cujosubttulo A-4 potential and produces a positive cosmologicalconstant e o resumoAll fields of the standard model andgravity are unified as an E8 principal bundle connection. A non-compact real form of the E8 Lie algebra has G2 and F4subalgebras which break down to strong su(3), electroweak su(2)x u(1), gravitational so(3,1), the frame-Higgs, and threegenerations of fermions related by triality. The interactionsand dynamics of these 1-form and Grassmann valued parts of an E8

    superconnection are described by the curvature and action over afour dimensional base manifold (grifo meu).

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    investigador e adversrio do investigado Aniceto sobre a

    geometria e as coisas fantsticas. Em que sentido essas

    ideias de razo, geometria, e teorias cientficas importam

    a seu trabalho?

    s vezes uma ideia matemtica ou cientfica (mais asprimeiras que as ltimas) serve apenas de mote, deparmetro para uma estrutura narrativa ou de inspiraopara uma metfora.

    No caso de O enredo circular parti da figura do crculo

    para imaginar um encadeamento de histrias, em que umafosse uma leve modificao da outra (ou seja, uma verso da

    outra), de maneira que ao final voltssemos histriainicial.

    J a relao entre a geometria e a narrativa fantstica que ambas tm regras muito rigorosas embora constituamuniversos naturalmente inexistentes. Isso bvio emrelao fico fantstica, mas pouca gente se d conta deque quase toda a matemtica um exerccio de abstrao,

    um mundo construdo artificialmente, fantasticamente (ebasta pensar que o ponto, a reta ou o crculo so elementosimpossveis na natureza).

    Gosto muito desses desafios, desses estmulos: criar umanarrativa que reproduz implicitamente um conceitomatemtico.

    5

    O dstico iorub o p eiye lona/ o so k loni 3o

    tempo circular, o caos kantiano, os fsicos russos e um

    dos aspectos essenciais de Exu so os ingredientes que

    abrem a Sexta sequncia de O movimento pendularem que

    se demonstra o postulado:/ Todo tringulo [amoroso] real

    e necessrio cuja narrativa principal Minha me

    Oxorong. Essa abertura tambm fechamento, do livro -,

    alm de tratar do reale do necessrio, trata de um tempo

    presente em interferncia no passado em dois continentes (e

    no mundo), provocando o necessrio futuro. Em uma

    entrevista sua, na poca de lanamento deMeu destino ser

    3No original, a traduo do rodap matou umpssaro ontem/ coma pedra que atirou hoje.O movimento pendular. Rio de Janeiro:Record, 2006.

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    ona, j havia uma declarao sobre o tempo do mito,

    circular. E na Quinta sequncia, do mesmo O movimento

    pendular, A teoria aimor traz relatos eventuais que no

    obedecem a linearidade geogrfica nem cronologia (embora

    tragam datas e localizaes bastante especificadas). O que

    h de fundamental nesse modo literrio de tratar

    conhecimentos cientficos? algum modo de provocar,

    responder ou dialogar com o tempo, com a incerteza, a

    religiosidade, as questes da filosofia e os dilemas da

    existncia?

    A minha principal fonte, as leituras que mais me estimulama escrever so os livros de mitologia. E a mitologia trataexatamente dos dilemas da existncia, que so tambm as

    questes fundamentais da filosofia e das religies.

    O mito o gnero literrio por excelncia: alm de ser omais antigo, tem uma estrutura que hoje se diriaeconomicamente tima. Ou seja, apresenta o mximo decontedo com um mnimo de expresso.

    O mito ao mesmo tempo teoria e metfora. Na minhaopinio, no h nenhum gnero de discurso, no h nenhumautor ou pensador que tenha conseguido, em qualquer obra,

    de qualquer nmero de pginas, superar o que um selvagemdiz, concisamente, num mito. Disse uma vez que as maioresrealizaes da humanidade, no mbito da literatura,aconteceram na pr-histria, por mais contraditrio queisso possa parecer. E acredito mesmo nisso, sinceramente.

    Todos os meus romances, todos os meus contos, partem de umaideia mtica, de um estmulo mitolgico, de um mito que liem algum lugar (naturalmente, predominam os de origemgrega, os do Brasil indgena e os africanos, alis, os

    iorubs, mais precisamente, em funo da minha prpriaformao de leitor e das minhas inclinaes afetivas).

    O dstico iorub mencionado por voc (que um oriqui, ouseja, uma saudao exclamatria dirigida a um orix) umexemplo de como me aproprio de um estmulo mitolgico paraconstruir uma narrativa. Tentei, no caso de Minha me

    Oxorong, conceber uma histria em que um fato aconteceantes da sua causa. Ou seja, quando a consequncia cria acausa.

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    No caso de A teoria aimor parti de um mito lato sensu: aimagem do indgena aimor segundo a viso portuguesa (quecolhi em Gabriel Soares de Sousa). Segundo ele, essesndios seriam canibais, mas no praticavam a antropofagiapor razes ritualsticas (como os tupis, de nvel moralsuperior), mas porque se alimentavam naturalmente de carnehumana, como se fossem bichos, simplesmente.

    Creio que continuarei explorando essa fonte (que me pareceinesgotvel) enquanto durar minha carreira de escritor. Nomeu prximo romance (A primeira histria do mundo) pretendorecriar trs verses diferentes do mito das Amazonas.

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    Ainda h para mim mais um trao e tantos outros instigador em seu trabalho, so os dilogos intelectuais e

    os parceiros de criao. Sei de dois deles, Eduardo

    Viveiros de Castro, com o perspectivismo amerndio e as

    sugestes inestimveis 4; e Luiz Antonio Simas, com as

    histrias profundamente brasileiras (bem ao modo do

    historiador que se dedica a ouvir e recontar as histrias

    de futebol, curimba, samba e dos vencidos, ao gosto de

    Walter Benjamin). H participao dessas outras vozes em

    seu projeto literrio? E se h, essa participao tem afora das ideias que se colocam de frente na sua criao

    artstica?

    No caso do Viveiros de Castro, alm de ele ter me sugeridoleituras e esclarecido dvidas sobre o pensamento tupi(fundamentais para eu escrever Meu destino ser ona, umlivro que no exatamente fico, tanto que escrevi diretono computador), tem um ensaio magnfico, e muito importantepara compreenso do perspectivismo (A inconstncia da alma

    selvagem), que vai inspirar um dos mistrios do meu prximoromance: A primeira histria do mundo, uma narrativapolicial ambientada no Rio de Janeiro, no sculo 16. oterceiro volume de uma pentalogia que comeou com O tronoda rainha Jinga e que continuou com O senhor do ladoesquerdo(cinco novelas policiais ambientadas cada uma numsculo da histria carioca).

    4Est nos agradecimentos de Meu destino ser ona. Rio deJaneiro: Record, 2009.

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    Embora eu possa usar incidentalmente alguma experinciapessoal na minha fico, meus livros quase sempre seinspiram nas minhas leituras. Por isso, existe mesmo essedilogo, no exatamente com pessoas, mas com obras,literrias ou no.

    Fao recorrentemente uma coisa que aprendi com Lvi-Strauss, e amadureci com Borges, antes mesmo de comear aescrever fico: o processo de recontar, de transformar umahistria em outra. H um conto do Borges (Trs verses deJudas) que manifesta uma ideia fundamental implcita nosquatro livros das Mitolgicas, do Lvi-Strauss: a de quetoda histria uma verso de outra.

    A essncia do meu processo criativo essa: pr um ponto noconto dos outros.

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    Ao escritor h uma questo que deve ser, acredito, quase

    solitria; uma questo que pode tratar e se colocar da

    perspectiva da escritura; a deciso que envolve o tom de

    um livro; e est posta sobre o processo e as tcnicas de

    construo narrativa.5 A construo narrativa envolve o

    arranjo geral do livro, evidentemente. E na escritura,

    junto ao papel, a criao pode ser tambm clculo,

    conscincia, mtodo, um trabalho de inteligncia de saber

    a dimenso do trabalho, eleger tema, personagens, lugar e

    seus efeitos, encontrar um piv e perceber o tempo certo de

    sua revelao, ou do adiamento garantidor de expectativa e

    instigao ao leitor. Como encontrar as palavras, as falas

    e o tom narrativo capaz e melhor contador e, ao mesmo

    tempo, encontrar em sua escritura o lugar no s dessas

    particularidades narrativas, mas da sustentao do universo

    contado, da verossimilhana?

    Acho que uma das primeiras decises que um escritor tem que

    tomar (se no a primeira) sobre a natureza do narrador:se na primeira ou terceira pessoa (eventualmente, at na

    5H um comentrio bastante pontual de Edgar Allan Poe sobreesse trabalho, que pretende demonstrar claramente que nenhum

    pormenor da sua composio se pode explicar pelo acaso ou pelaintuio, que a obra se encaminhou passo a passo para o seuacabamento, com a preciso e o rigor lgico de um problemamatemtico, est em sua Art Potique, sobre a composio de Ocorvo, Paris: Seghers, 1956, p. 290.

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    segunda), se ser ou no onisciente, em que medidaparticipa ou no da narrativa.

    Isso define o tom do texto, o modo como a histria vaiser contada, todos os ngulos, todas as perspectivas.

    A teoria da literatura diz, ou dizia na poca em que eu eraestudante, que o narrador sempre uma personagem, aindaque fale em terceira pessoa e seja onisciente. Ou seja, onarrador um elemento da estrutura ficcional que faz amediao entre autor e texto.

    Depois de algumas experincias com um narrador em primeirapessoa, alternando com outro em terceira, eu, em Omovimento pendular, cheguei a um tipo de narrador que

    pretende ser eu mesmo. como se eu abolisse a mediao oucriasse um mediador que se confunde comigo, que tem a minhapersonalidade e o meu prprio jeito de falar.

    Isso no uma novidade, Machado de Assis fez isso algumasvezes; eu apenas exagero.

    Senti que tinha atingido minha maneira ideal de narrar, quetinha encontrado a minha voz pessoal, nesse livro. E essetambm o narrador de O senhor do lado esquerdo.

    Mas s vezes o que um conforto pode representar tambm umproblema. Estou agora comeando A primeira histria domundo. Como j disse, o livro se passa no sculo 16, numperodo absolutamente obscuro da histria do Brasil. Odesconhecimento sobre a poca inclusive explorado pormim, para criar um clima de lenda.

    Mas, como um narrador onisciente, que sou eu, falando emterceira pessoa, pode ignorar os fatos acontecidos na poca

    da histria que ele mesmo conta?

    Esse um dos problemas de construo narrativa queconsidero mais fascinante, que no fundo, um nico paratodos os nveis da fico: o da verossimilhana. Quandoconcebemos um romance, criamos um universo com regrasprprias, sendo que ns somos os primeiros a no podercontradiz-las.

    No caso de A primeira histria do mundo, eu preciso

    encontrar um tom exato, muito delicado e muito difcil,para no parecer que conheo esse perodo histrico mais do

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    que todos podem conhecer, mantendo o tom de lenda semdeixar de inserir, naturalmente, a minha fico e oscomentrios pseudoensasticos que me acostumei a fazer.

    Estou agora s voltas com esse problema e s depois de

    terminar o livro vou saber se acertei.