mota, tiago_niestzsche e as perspectivas do perspectivismo

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213 cadernos Nietzsche 27, 2010 | Nietzsche e as perspectivas do perspectivismo Thiago Mota * Resumo: Este artigo propõe um balanço do debate recente acerca do perspectivismo de Nietzsche cujos objetos de disputa são o problema da referência ao devir e o problema da auto-referência ou o puzzle do pers- pectivismo. Cinco posições se delineiam no debate: 1) perspectivismo me- tafísico, 2) perspectivismo hermenêutico-fenomenológico, 3) perspectivismo transcendental, 4) perspectivismo semântico e 5) perspectivismo pragmático. Nossa conclusão é que a leitura pragmática do perspectivismo é aquela que oferece mais vantagens para a reconstrução do perspectivismo, pois ela permite pensar de modo anti-fundacionista e anti-correspondencia- lista e ao mesmo tempo autoriza falar nos termos de um perspectivismo pragmático-agonístico. Palavras-chave: conhecimento – linguagem – perspectivismo – prag- matismo – agonística Introdução “Perspectivismo” é a designação corriqueira para a suposta teoria do conhecimento de Nietzsche, cuja idéia básica resume-se nas seguintes palavras: “não há fatos, apenas interpretações” (KSA 12.315, Nachlass/FP 7[60]), que, no nosso entender, têm significa- ção equivalente ao trecho de Para além do bem e mal que diz, demo- vendo as pretensões do discurso de uma hard science como a física: * Doutorando em Filosofia pela Université Catholique de Louvain.

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  • 213cadernos Nietzsche 27, 2010 |

    Nietzsche e as perspectivas do perspectivismo

    Thiago Mota*

    Resumo: Este artigo prope um balano do debate recente acerca do perspectivismo de Nietzsche cujos objetos de disputa so o problema da referncia ao devir e o problema da auto-referncia ou o puzzle do pers-pectivismo. Cinco posies se delineiam no debate: 1) perspectivismo me-tafsico, 2) perspectivismo hermenutico-fenomenolgico, 3) perspectivismo transcendental, 4) perspectivismo semntico e 5) perspectivismo pragmtico. Nossa concluso que a leitura pragmtica do perspectivismo aquela que oferece mais vantagens para a reconstruo do perspectivismo, pois ela permite pensar de modo anti-fundacionista e anti-correspondencia-lista e ao mesmo tempo autoriza falar nos termos de um perspectivismo pragmtico-agonstico.Palavras-chave: conhecimento linguagem perspectivismo prag-matismo agonstica

    Introduo

    Perspectivismo a designao corriqueira para a suposta teoria do conhecimento de Nietzsche, cuja idia bsica resume-se nas seguintes palavras: no h fatos, apenas interpretaes (KSA 12.315, Nachlass/FP 7[60]), que, no nosso entender, tm significa-o equivalente ao trecho de Para alm do bem e mal que diz, demo-vendo as pretenses do discurso de uma hard science como a fsica:

    * Doutorando em Filosofia pela Universit Catholique de Louvain.

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    isso interpretao e no texto (JGB/BM 22, KSA 5.37).1 No en-tanto, ao dizer que o perspectivismo uma teoria do conhecimento e precisamente aquela que se desenvolve em Nietzsche, j tocamos em, pelo menos, dois problemas. O primeiro consiste em saber se h algo como uma teoria do conhecimento, uma Erkenntnistheorie, nos escritos de Nietzsche. Em caso afirmativo, deparamo-nos com um segundo problema: em que medida essa teoria pode se inserir como uma posio forte no debate epistemolgico contemporneo. Um panorama da discusso atual acerca do perspectivismo capaz de lanar alguma luz sobre esses problemas.

    O uso cada vez mais recorrente do termo perspectivismo em crculos intelectuais variados2, de modo especial, mas no exclu-sivamente, no debate filosfico contemporneo, por si s justifica uma tentativa de compreenso do que se quer dizer com o mesmo. Defensores e crticos do perspectivismo muitas vezes no falam so-bre a mesma coisa. O termo adquiriu, como no raro ocorrer, uma pluralidade semntica que parece se confundir com aquilo mesmo que o termo quer significar. O perspectivismo , entre outras coisas, a afirmao de que h uma pluralidade de sentidos, uma polissemia irredutvel, no limite, a uma definio unvoca e no ambgua. Num aforismo de ttulo Nosso novo infinito, Nietzsche d conta disso: penso que hoje, pelo menos, estamos distanciados da ridcula imodstia de decretar, a partir de nosso ngulo, que somente dele

    1 A contrapartida prtica dessa formulao terica a seguinte: no existem fenmenos morais, apenas uma interpretao moral dos fenmenos (JGB/BM 108, KSA 5.92), com base na qual se pode falar em um perspectivismo tico.

    2 Alm da filosofia, o termo perspectivismo empregado, por exemplo, em teoria literria (perspectivismo narrativo) e antropologia. O mais clebre desses casos tal-vez seja o conceito de perspectivismo amerndio cunhado pelo antroplogo Eduardo Viveiros de Castro. Cf. CASTRO, E. Os Pronomes Cosmolgicos e o Perspectivismo Amerndio. In: Mana. Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, 1996, p. 115-144.

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    pode-se ter perspectivas. O mundo tornou-se novamente infinito para ns: na medida em que no podemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre infinitas interpretaes (FW/GC 374, KSA 3.627). Portanto, no por acaso que perspectivismo ocorre em diversos empregos.

    A genealogia do termo certamente antecede a Nietzsche. Segun-do F. Kaulbach, seu uso foi introduzido em filosofia por Leibniz, no interior do modelo monadolgico. Kant tambm o teria utilizado em sua filosofia transcendental. Desse modo, a discusso atual acerca do perspectivismo excede em muito os limites da Nietzsche-Forschung. Exemplo disso um volume organizado por V. Gerhardt e N. Herold com o ttulo Perspektiven des Perspektivismus3, que mostra a fecundi-dade da noo em diferentes autores e campos de investigao filo-sfica. Entretanto, principalmente devido influncia de Nietzsche que o termo se dissemina pela filosofia e alhures.

    Apesar disso, o uso de Perspektivismus em Nietzsche se re-vela surpreendentemente raro. Em geral, apontam-se apenas trs momentos de emprego efetivo do termo na vastido de seus escritos publicados e pstumos.4 Bem mais freqente , por outro lado, a utilizao de perspectiva (Perspektive) e seus derivados, como perspectivstico, empregado tanto como adjetivo, perspektivistische

    3 Coletnea de ensaios publicada em homenagem a Kaulbach que discute o perspecti-vismo em vrios autores alm de Nietzsche, tais como Bacon, Descartes, Kant, Frege, abordando questes de antropologia filosfica, filosofia da natureza e da cincia, teoria do conhecimento, epistemologia, teoria da ao, esttica etc. Cf. GERHART, V.; HEROLD, N. (orgs.). Perspektiven des perspektivismus: Gedenkschrift fr Friedrich Kaulbach. Wrzburg: Knigshausen, Neumann, 1992.

    4 A saber, uma vez na Gaia cincia (FW/GC 374, KSA 3.626) e mais duas nos pstu-mos dos anos 1885-1889 (Nachlass/FP, 7[60], KSA 12.315) e primavera 1888 (KSA 13.373, 14[186],). Cf. COX, C. Nietzsche: Naturalism and Interpretation. Berkeley: University of California Press, 1999, p. 109.

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    (GM/GM III, 12, KSA 5.365), quanto como substantivo, das Pers-pektivistische (JGB/BM, Prlogo, KSA 5.12), que ocorrem de modo cada vez mais freqente a partir de 1885.

    A despeito dessa escassez, o perspectivismo se torna um moti-vo central nas discusses acerca da obra de Nietzsche, sobretudo, a partir da dcada de 1960.5 Em parte em funo desse dficit de evidncias textuais, no h minimamente consenso acerca do que se entende por perspectivismo em Nietzsche. Toda investigao a respeito do tema lida com um amontoado de fragmentos, peas soltas de um quebra-cabea, cujas possibilidades de interpretao so muitas e, enquanto tais, constituem-se como reconstrues peculiarmente criativas. O quebra-cabea do perspectivismo mar-cado por uma incompletude caracterstica, que leva o intrprete a colher em algum lugar fora da imanncia dos textos nietzschia-nos as peas que faltam. Portanto, o trabalho de interpretao do perspectivismo nietzschiano jamais se restringe a mero esforo exegtico, tendo, por conseguinte, um aspecto inevitavelmente propositivo, incomum na pesquisa filosfica padro. Com relao ao perspectivismo, portanto, torna-se particularmente pertinente a idia de que interpretar criar.

    E so muitas as possibilidades de reconstruo do perspec-tivismo, tantas que retom-las amide equivaleria a compor toda uma histria da filosofia desde Nietzsche at os dias atuais. Nem de longe temos tal pretenso. No obstante, podemos pr as cartas mesa mostrando quais so os delineamentos bsicos das posies em jogo.

    5 A Nietzsche-Bibliographie da Klassik Stiftung Weimer registra 143 obras para a entrada de busca Perspektivismus, que vo se tornando mais recorrentes a partir dos anos sessenta. Disponvel em: http://ora-web.swkk.de:7777/swk-db/niebiblio/index.html.

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    Minha sugesto consiste, ento, em tomar como linhas inter-pretativas centrais no debate acerca do perspectivismo nietzs-chiano as seguintes: 1) perspectivismo metafsico, 2) perspectivismo hermenutico-fenomenolgico, 3) perspectivismo transcendental, 4) perspectivismo semntico e 5) perspectivismo pragmtico.

    1. Perspectivismo metafsico

    Diversos intrpretes entendem que o perspectivismo no de forma alguma uma Erkenntnistheorie, mas uma doutrina onto-lgica. O problema central com que tm de lidar tais intrpretes deriva de que Nietzsche fez do ataque ontologia e metafsica, que ele parece no dissociar, uma profisso de f. Ele afirma, por exemplo, que

    A fora inventiva, que tem poetado categorias, labora a servio da necessidade, ou seja, da segurana, do entendimento rpido base de sinais e sonidos, de reducionismos: no se trata de verdades metafsicas nos casos de substncia, sujeito, objeto, ser, devir. Os poderosos que do nome de coisas fizeram leis: e entre os poderosos foram os grandes artistas da abstrao que elaboraram as categorias (KSA 12.237, Nachlass/FP 6[11]).

    Nessa constelao, fica difcil imaginar como se poderia inter-pretar o perspectivismo como uma espcie de ontologia.

    Os que defendem essa posio, no entanto, se servem de outras passagens de Nietzsche, em que este suprime a possibilidade de uma teoria do ser, em nome de uma teoria do devir, a que se refere em seus ltimos escritos com o conceito de vontade de potncia: O mundo visto de dentro, o mundo definido e designado conforme o seu carter inteligvel seria justamente vontade de potncia, e

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    nada mais. (JGB/BM 36, KSA 5.55).6 Tratar-se-ia de uma onto-logia da pluralidade, ao invs da unidade, da diferena, ao invs da identidade, da imanncia, ao invs da transcendncia. A questo que surge a como se d, em Nietzsche, o acesso a essa realidade perspectivisticamente estruturada e em que sentido o perspectivismo ontolgico no repe aquilo mesmo que ele pretende negar. Essa uma das questes cruciais a serem enfrentadas numa reconstruo do perspectivismo: o problema da referncia ao devir.

    Heidegger enfrenta essa questo ao elaborar uma interpretao que designamos aqui como perspectivismo metafsico. Diga-se de sada que se trata de uma reconstruo desconstrutivista7, ou seja, uma interpretao eminentemente crtica do perspectivismo. Para Heidegger, a despeito de todo o esforo crtico que possa ter realizado, o pensamento de Nietzsche to metafsico quanto o de Plato. A metafsica de Nietzsche representaria o acabamento da tradio metafsica na medida em que atualiza e esgota todas as possibilidades dessa mesma tradio. A crtica que Heidegger dirige a Nietzsche , assim, a mesma que ele ope tradio metafsica em conjunto: a filosofia nietzschiana seria, tambm ela, uma forma de esquecimento do ser.

    Em Nietzsche, o esquecimento do ser se d por meio da metaf-sica da vontade de potncia. De acordo com Heidegger, a vontade

    6 W. Mller-Lauter diz: Do pensar no-metafsico de Nietzsche, falo apenas quando apresento, de modo imanente, seu entendimento de metafsica. Se compreendemos, porm, metafsica de modo muito mais abrangente, como o perguntar pelo ente em sua totalidade e enquanto tal, ento temos que, segundo minha concepo, designar tambm Nietzsche como metafsico (MLLER-LAUTER, W. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. 2.ed. Trad. O. Giacoia Jr. So Paulo: Annablume, 1997, p. 72).

    7 Cf. MARQUES, A. A filosofia perspectivista de Nietzsche. So Paulo: Discurso Editorial/ Ed. UNIJU, 2003, p. 120.

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    de potncia o carter fundamental do ente enquanto tal (...) o carter fundamental da vida. Vida para Nietzsche outra palavra para dizer ser.8 Assim, todo ente, posto que se essencializa como vontade de potncia, perspectivista.9 Nesse contexto, o pers-pectivismo surge como um dos aspectos da metafsica de Nietzs-che. Heidegger o compreende basicamente luz de um fragmento pstumo que diz que por meio do qual todo centro de fora e no somente o homem construiu, partindo de si mesmo, todo o resto do mundo, quer dizer que o homem mede, apalpa e aplaina o mundo segundo sua prpria fora... (KSA 13.373, Nachlass/FP 14[186]).

    Desse modo, perspectivismo quer dizer, a constituio do ente como ver que pe pontos de vista e calcula.10 O perspectivismo o carter mesmo do ente, a vontade de potncia presente em cada ente em particular que lana sobre a totalidade do ente sua perspectiva para organizar a partir de si essa totalidade em funo de seu interesse de poder, de conservao e crescimento. Como diz Heidegger, a vontade de potncia , em sua essncia mais ntima, um contar perspectivista com as condies de sua possibilidade, condies que ela mesma pe como tais.11

    O perspectivismo seria metafsico precisamente porque para uma teoria perspectivista do conhecimento no se trata de conhecer o ser, nem sequer o ente, mas de exercer poder sobre ele. Conheci-mento o processo por meio do qual o ser que conhece se apodera, em funo de seus interesses vitais, do ser em geral. Na medida em

    8 HEIDEGGER, M. Nietzsche. Trad. J. L. Vermal. Barcelona: Destino, 2000. 2 v., cap. La voluntad de poder.

    9 Idem.10 Idem. No mesmo sentido, v. I, La voluntad de poder como conocimiento.11 Idem.

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    que entende que esse ser que conhece o sujeito a partir do qual se lanam as perspectivas, Heidegger entende que o perspectivismo uma forma de subjetivismo: A vontade de potncia se desvela como a subjetividade que se distingue por pensar em termos de valor. Apenas se experimenta o ente enquanto tal no sentido desta sub-jetividade, isto , como vontade de potncia.12 No perspectivismo nietzschiano se revela com toda clareza que o motivo fundamental da metafsica no foi conhecer o ser, mas domin-lo; o perspectivis-mo explicita que a relao entre o sujeito e objeto uma relao de poder, que tem de ser pensada em termos de vontade de potncia. A histria da metafsica se conclui, assim, com Nietzsche e, aps ele, o esquecimento do ser passa a se identificar com a tcnica.

    Um enfrentamento crtico com a imensa interpretao heidegge-riana13 de Nietzsche foge a nossos propsitos. Entretanto, parece-nos que Heidegger comete um excesso ao ler o perspectivismo como uma forma de metafsica da subjetividade, pois uma das bases do perspectivismo est precisamente na crtica da noo moderna de subjetividade, que Nietzsche entende como obra do processo de substancializao resultante de nossa crena na linguagem.

    2. Perspectivismo hermenutico-fenomenolgico

    Heidegger exerceu, e ainda exerce, forte influncia sobre os intrpretes de Nietzsche, sobretudo, na Frana. No que diz respei-to ao perspectivismo, essa influncia se faz sentir principalmente

    12 Idem.13 Segundo M. Haar, jamais un philosophe majeur navait men une lecture aussi lon-

    gue, dtaille et persistante, dans sa volont rductrice, que Heidegger de Nietzsche (HAAR, M. Heidegger: une lecture ambivalente. Magazine Littraire, Paris, n. 3, out.-nov. 2001, p. 76).

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    na leitura hermenutico-fenomenolgica que J. Granier articula nutrindo-se no do que Heidegger diz acerca do perspectivismo, mas do modo de pensar heideggeriano.

    Granier entende que, em certa medida, o conceito hermenutico de Ser j estaria formulado em Nietzsche, que no o teria esque-cido nem tampouco abolido, mas compreendido que todo Ser como ser-interpretado.14 Nesse sentido, haveria um perspectivismo hermenutico-fenomenolgico. Segundo Granier, em Nietzsche

    o dualismo da aparncia e da Ding-an-sich definitivamente superado: cada aparncia uma apario, isto , uma manifestao real, e no h nada a buscar alm dessas manifestaes. Ser aparecer. No no sentido em que o aparecer igualar-se-ia ao Ser, mas no sentido de que toda apario revelao do Ser. O perspectivismo nietzschiano no , pois, de forma alguma um fenomenismo (...). Ao afirmar o perspec-tivismo do conhecimento, Nietzsche defende, de fato, um pluralismo ontolgico: o Ser tem por essncia de se mostrar, mas de se mostrar segundo uma infinidade de pontos de vista.15

    A noo nietzschiana de perspectiva , desse modo, associada de fenmeno, no no sentido fenomenalista kantiano, mas no sentido da fenomenologia. Cada perspectiva uma apario, uma manifestao, da coisa mesma, do real, do Ser, que se desvela de infinitas formas nas perspectivas. A noo de perspectivismo se

    14 GRANIER, J. Le problme de la verit dans la philosophie de Nietzsche. Paris: ditions du Seuil, 1966, p. 327.

    15 Idem, p. 314.

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    imbrica com aquela de interpretao16, de modo que introduzindo a noo de interpretao, Nietzsche impe a definio do Ser como texto. O Ser semelhante a um texto do qual ns teramos de tentar a exegese (...) Assim, enquanto a idia de perspectivismo enfatiza mais o carter de desvelamento do Ser, a idia de interpretao acentua seu carter equvoco17.

    Conforme Granier, Nietzsche teria defendido um realismo pluralista, uma ontologia da pluralidade que pensa o ser como texto fundamental, isto , a vontade de potncia como um texto catico, fragmentrio, estruturado em mltiplas perspectivas. Granier chega inclusive a entender que essa seria uma ontologia do caos. Por conseguinte, apesar de jamais termos como esgotar a multiplicidade de possibilidades de interpretao do texto do ser, o ser mesmo que se desvelaria perspectivamente nas di-versas interpretaes.

    O principal problema em interpretar o perspectivismo como uma ontologia, ou uma metafsica, como quer Heidegger, decorre de que encontrar em Nietzsche um realismo, ainda que pluralista, se no propriamente invivel, soa como algo forado. Nietzsche faz ataques diretos postura realista e, por vezes, parece oferecer o perspectivismo como uma alternativa a essa forma de pensar. Some-se a isso que a idia da vontade de potncia como um texto fragmentrio plural tem de enfrentar as aporias da formulao de um monismo pluralista. No caso especfico de Granier, acresce ainda o problema de conciliar a idia do texto do ser com a tese central do perspectivismo, que afirma haver apenas interpretaes e, por conseguinte, nega que haja sob elas um texto fundamental (JGB/BM 22 e 38, KSA 5.37 e 56).

    16 Idem, p. 314.17 Idem, p. 316.

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    3. Perspectivismo transcendental

    Se o perspectivismo no uma ontologia, isto , no uma descrio do mundo, mas, em certo sentido, uma epistemologia, ou seja, uma tentativa de descrio daquilo que se passa no plano do conhecimento, ento, uma questo reflexiva se impe como ponto de partida para a reconstruo. Trata-se de saber se a tese bsica do perspectivismo seria retro-aplicvel, ou seja, se ao enunciar a proposio p todo conhecimento perspectivo poderamos acrescentar, sem incorrer em contradio, que inclusive p perspec-tivo. Ou seja, trata-se de investigar se h alguma possibilidade da tese perspectivista ser consistentemente auto-referente, ou se, pelo contrrio, ela seria necessariamente uma tese auto-refutvel. Desse modo, o perspectivismo suscita os mesmos problemas performativos que o relativismo.

    Tendo em vista esse paradoxo do perspectivismo, certos intrpretes propem que se distinga entre diferentes nveis dis-cursivos. Assim, o perspectivismo seria um discurso de segunda ordem que descreve, de modo no perspectivo, os vrios discursos de primeira ordem. Postula-se, por assim dizer, a existncia de dois tipos de conhecimento: um primeiro, direto ou imediato, de carter perspectivista, que consiste nas vrias descries realizadas pelas cincias, pela arte, pela religio etc., atravs da aplicao de nossos esquemas conceituais ao mundo; e um segundo, que seria indireto ou mediado e de carter no perspectivista, consistindo no discurso da epistemologia ou da teoria do conhecimento e resultante de uma reflexo acerca desses esquemas conceituais. Podemos designar as leituras que operam essa distino entre nveis discursivos de perspectivismo transcendental, pois entendem que o perspectivismo resulta da reflexo acerca de nossos esquemas conceituais, sendo, portanto, um discurso de segunda ordem.

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    F. Kaulbach e V. Gerhardt so os principais defensores do pers-pectivismo transcendental na Alemanha. Ao colocar o problema da formulao de uma Perspektive des Perspektivismus18, os autores pro-curam mostrar que o perspectivismo o desdobramento da tradio epistemolgica moderna, em especial, da filosofia de Kant. Do ponto de vista nietzschiano, a estrutura cognitiva do homem, a subjetivida-de transcendental, seria marcada por uma perspectividade. Baseado numa passagem da Gaia cincia que diz: No podemos enxergar alm de nossa esquina: uma curiosidade desesperada querer saber que outros tipos de intelecto e perspectiva poderia haver (FW/GC 374, KSA 3.626), Gerhardt afirma que todo conhecimento est vinculado a perspectivas.19 Segundo ele, Nietzsche tem cons-cincia de que, dessa maneira, traz expresso uma constituio do conhecimento humano, que se aproxima bastante daquilo que Kant buscou compreender como condies transcendentais: no concebemos a realidade como ela em si, mas apenas como ela aparece para ns20.

    O perspectivismo seria, assim, a resposta de Nietzsche pergun-ta transcendental pelas condies de possibilidade do conhecimento e seria uma superao de Kant, no no sentido de uma ruptura em relao a este, mas de uma reformulao neokantiana, na medida em que teria situado tais condies de possibilidade no prprio mundo. Nietzsche considera que a pergunta o que posso saber? seria, como em Kant, precedida pela questo o que o homem?,

    18 Com esse termo Kaulbach designa o problema da auto-referncia do perspectivismo. Cf. KAULBACH, F. Philosophie des Perspektivismus. 1. Teil: Wahrheit und Perspektive bei Kant, Hegel und Nietzsche. Tbingen: Mohr, 1990, p. 230 e ss.

    19 GERHARDT, V. Friedrich Nietzsche. Munique: Beck, 1999, p. 138.20 Idem, p. 138-9.

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    entretanto, o homem surge em Nietzsche como um ser finito, um ser natural e histrico em sua existncia concreta no mundo.21 No entanto, afirmar o pertencimento do homem ao mundo no significa negar que haja caractersticas humanas universais. H uma pers-pectiva humana universal que se situa na base de todas as demais perspectivas.

    Especialmente influente na literatura de lngua inglesa sobre Nietzsche22, a reconstruo neokantiana do perspectivismo elabo-rada por M. Clark. Segundo a autora, Nietzsche parte de uma crtica teoria metafsica da correspondncia, para propor uma verso de neokantismo que, nesses termos, pode ser includa sob a rubrica de um perspectivismo transcendental.

    Tal como eu o interpreto, escreve Clark, Nietzsche concorda com Kant no fato de que no conhecemos coisas em si e no fato de, contrariamente a Descartes, a verdade que somos capazes de descobrir no satisfazer teoria metafsica da correspondncia. No entanto, Nietzsche anti-kantiano no fato de negar a possibilidade de pensar a coisa em si. Todavia, parece apropriado designar essa posio como neokantiana porque chegou a ela pela aceitao e longa reflexo acerca da recusa de Kant em aceitar o conhecimento da coisa em si.23

    21 Nessa linha segue tambm a interpretao de A. Marques, tomando, no entanto, o corpo como esquema e fio condutor, cf. MARQUES, A. op. cit., p. 149-79.

    22 Para uma sntese das principais abordagens de Nietzsche no mundo de lngua inglesa, cf. HALES, S. Recent work on Nietzsche. American Philosophical Quarterly. Chicago, v. 37, n. 4, out. 2000. Disponvel em: http://www.bloomu.edu/departments/philosophy/pages/content/hales/hales.html, p. 317-8.

    23 CLARK, M. Nietzsche on truth and philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 61.

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    Clark entende que o pensamento epistemolgico de Nietzsche se desdobra em duas fases. A primeira fase, caracterizada principal-mente por Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, denotaria uma espcie de ceticismo decorrente da aceitao da noo de verdade como uma correspondncia que seria, no entanto, irrea-lizvel. Nesse sentido, Nietzsche teria elaborado o que ela chama de tese da falsificao, segundo a qual, todos as nossas sentenas falsificam e distorcem a realidade. A verdade seria pressuposta, assim, como coisa em si incognoscvel, da qual todo conhecimento seria a falsificao.

    A tese da falsificao claramente auto-refutativa, pois se todo conhecimento falso, tambm o a proposio que afirma preci-samente o que acabou de ser dito. Clark considera que Nietzsche ter-se-ia dado conta disso e, por conseguinte, procurou eliminar a tese da falsificao no momento de articulao do perspectivismo. Ao aprofundar a crtica coisa em si, Nietzsche abandona a idia de correspondncia metafsica e conseqentemente renuncia tese da falsificao.24 Desse modo, na segunda fase de seu pensamento, ele tem de retornar, de alguma forma, ao correspondencialismo.

    A clebre passagem do Crepsculo dos dolos em que se afirma que com o mundo verdadeiro abolimos tambm o mundo aparente (GD/CI, Como o mundo verdadeiro se tornou finalmente fbula 6, KSA 6.81) vista, nesse sentido, como a proposio de uma da correspondncia mnima, que Clark colhe do realismo interno de H. Putnam.25 Haveria em Nietzsche, portanto, um realismo perspecti-vista, para o qual a realidade manifestar-se-ia, sempre como real, nas diversas perspectivas, isto , nos diversos esquemas conceituais de que dispomos. Com efeito, no possvel uma verdade absoluta,

    24 Cf. Idem, p. 103-24.25 Cf. Idem, p. 132.

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    correspondente em sentido metafsico, que seria o equivalente do ponto de vista de Deus26, mas seriam possveis mltiplas verdades diversamente correspondentes porque baseadas em pontos de vistas distintamente situados. O problema da teoria da correspondncia no seria, assim, a idia de correspondncia enquanto tal, que se-gue fornecendo o modelo a partir do qual se pensa a verdade, mas a imposio de uma nica correspondncia. O correspondencialismo mnimo entende ser possvel estabelecer mltiplas relaes corres-pondenciais, todas referidas a um mesmo real, que, entretanto, no pode ser concebido de lugar nenhum, ou seja, de fora de nossos esquemas conceituais, nossas perspectivas.

    A maior dificuldade das reconstrues transcendentais do pers-pectivismo deve-se a que Nietzsche rejeita, em diferentes momentos, uma distino entre nveis discursivos. Nesse sentido, a principal objeo perspectivista ao kantismo consiste em que este no pode justificar, seno por meio de uma postulao haurida na crena no valor incondicional da verdade, que, ainda que o conhecimento que temos do mundo seja fenomnico, o conhecimento que temos das condies de possibilidade do conhecimento do mundo, ou seja, o discurso de segunda ordem, seja no fenomnico, mas transcenden-tal. Com base nisso Kant distingue entre quaestio facti e quaestio juris e formula precisamente uma distino que Nietzsche pretende repudiar.

    No que diz respeito especificamente abordagem de Clark, parece por demais forosa a atribuio de um correspondencialis-mo, ainda que mnimo, a Nietzsche. Sua crtica noo de verdade ganha radicalidade quando a lemos como uma objeo frontal ao

    26 Dado que, para Nietzsche, Deus est morto, no pode haver o que Putnam chama de Gods eye view. Cf. PUTNAM, H. Realism with a human face. Cambridge: Harvard University Press, 1990.

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    correspondencialismo. O perspectivismo, como j vimos, parte da negao da existncia de fatos, o que implica a impossibilidade do estabelecimento de relaes correspondenciais (o que haveria de corresponder a nossas proposies se precisamente fatos no existem?). Desse modo, a teoria da verdade que melhor se ajusta ao perspectivismo tem de ser uma espcie de anti-correspondencialis-mo. O perspectivismo assume, assim, uma postura anti-realista que no precisa fazer as concesses que o realismo interno faz.

    4. Perspectivismo semntico

    Uma outra linha interpretativa do perspectivismo, eminentemen-te lgico-analtica, aquela que est articulada nos trabalhos de S. Hales e R. Welshon. Trata-se aqui de um perspectivismo semntico que, como os prprios autores reconhecem, aborda Nietzsche com aporte na filosofia analtica contempornea e, nessa medida, tem como precursores A. Danto, M. Clark, P. Poellner, e como com-panheiros de viagem R. Schacht e A. Nehamas.27 No entanto, sua singularidade no reside apenas em utilizar categorias analticas para reconstruir o perspectivismo, mas em consider-lo como uma posio forte no debate analtico atual. Ou seja, Hales e Welshon no apenas se valem de ferramentas analticas para pensar o pers-pectivismo; como tambm se servem do perspectivismo para dar respostas e fornecer alternativas para a filosofia analtica.

    O ousado projeto em que esses analticos nietzschianos se envolveram pode ser definido como uma tentativa de formular um relativismo consistente com o padro analtico de racionalidade, ou seja, trata-se de propor um relativismo auto-referencialmente

    27 Cf. HALES, S; WELSHON, R. Nietzsches perspectivism. Urbana/Chicago: University of Illinois Press, 2000, p. 3.

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    consistente. As intuies de Nietzsche sobre o perspectivismo so, nesse sentido, uma inspirao fundamental. Hales entende que o problema da consistncia do relativismo, to antigo quanto a prpria filosofia, poderia ser colocado em outro patamar por meio da formu-lao de uma semntica perspectivista baseada numa relao entre os mundos possveis de Kripke e as perspectivas nietzschianas. A semntica perspectivista consiste na introduo de certos operadores na lgica modal altica: os operadores perspectivsticos. Segundo Hales, no mais incoerente relativizar a verdade de proposies a perspectivas dada uma semntica perspectivista que relativizar a verdade de proposies a mundos possveis dada uma semntica de mundos possveis, ou relativizar verdade a linguagens dado um rol (array) de linguagens.

    A formulao de um relativismo consistente, nesses termos, implica uma ampla reconstruo do perspectivismo, a comear por uma teoria perspectivista da verdade. Tendo em vista , o problema da auto-referncia do perspectivismo, a que chamam de puzzle of perspectivism28, Hales e Welshon propem a superao da dicotomia absolutismo forte/perspectivismo forte (equivalente noo paradoxal de relativismo absoluto), que se reduzem um ao outro, por meio da adoo de um perspectivismo fraco.

    O perspectivismo fraco deve ser tomado como a tese de que h ao menos uma sentena tal que h alguma perspectiva na qual ela ver-dadeira, e alguma perspectiva na qual ela no-verdadeira. Observe que consistente com o perspectivismo fraco que algumas sentenas mantm o mesmo valor de verdade em todas as perspectivas, isto , pode-se sustentar que verdadeiramente muitas quase todas as sentenas mantm seu valor de verdade perspectivamente, e ainda

    28 Cf. Idem, p. 21-31.

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    entender que no obstante algumas sentenas mantm seus valores de verdade absolutamente. Em outras palavras, algumas sentenas mantm seus valores de verdade atravs de todas ou em todas as perspectivas. Essa viso acerca da verdade oferecida em favor de Nietzsche.29

    Com base nessa teoria perspectivista da verdade, os autores passam a uma reconstruo do perspectivismo entendido como tema unificador das reflexes de Nietzsche, que dessa forma assumem um carter marcadamente sistemtico. O termo perspectivismo ganha, assim, vrios significados, podendo ser referido a uma lgica, uma ontologia, uma epistemologia, uma teoria da causalidade e uma teoria da conscincia ou do eu, todas igualmente perspectivistas.30 Entre outras coisas, defendem que Nietzsche dispe de uma onto-logia anti-realista que culmina em uma teoria dos feixes de objetos (bundle theory of objects)31, a qual correlata a uma epistemologia contextualista que rejeita a possibilidade de conhecimento de re, mas admite a possibilidade de conhecimento de dicto.32

    Certamente so muitos os mritos dessa sofisticada verso semntico-modal do perspectivismo. Seus efeitos e alcance, em especial, no interior do debate analtico contemporneo dificilmente podem ser, por enquanto, mensurados. O perspectivismo semntico pode se mostrar como um novo alento para uma tradio que ameaa soobrar.

    No entanto, a nosso ver, seu principal defeito consiste em ter for-ado ao extremo o enquadramento de Nietzsche e do perspectivismo

    29 Idem, p. 31.30 Cf. Idem, passim.31 Cf. Idem, p. 57 e segs.32 Cf. Idem, p. 111 e segs.

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    no standard de consistncia da filosofia analtica, com o que esses acabam por perder seus propsitos. Ao conceber um perspectivismo fraco que admite sentenas de validade transperspectiva, Hales e Welshon chegam contradictio in adjecto de uma perspectiva abso-luta. Ou seja, para evitar a auto-refutabilidade do perspectivismo, terminam por entender que a sentena que contm a tese bsica do perspectivismo conta com tal validade transperspectiva, assim como ocorre com os princpios da lgica clssica, demonstrados, via contradio performativa, pelo menos, desde Aristteles. Nesse contexto, cabe uma pergunta: seria possvel conceber uma perspec-tiva constituda somente e to-somente de sentenas com validade transperspectiva? Isso parece ser, ainda que no o reconheam, o que fizeram Hales e Welshon.

    5. Perspectivismo pragmtico

    Baseados no pragmatismo, tanto aquele da tradio norte-ame-ricana, especialmente o de James, quanto em sua forma lingstica mais recente, que deriva das reflexes do segundo Wittgenstein, v-rios intrpretes propem um tipo de reconstruo do perspectivismo que aqui se designa por perspectivismo pragmtico. A despeito de suas diferenas especficas, Nietzsche as philosopher, de A. Danto, que adquiriu o status de clssico, continua sendo o modelo para as leituras pragmticas do perspectivismo.

    No contexto, que j no o nosso, de total hegemonia da filosofia analtica, Danto ousa reconstruir o pensamento de Nietzsche em termos que fazem dele justamente um precursor desse movimento.

    Nietzsche raramente foi tratado como filsofo, e nunca, eu acho, a partir da perspectiva, que compartilha em certo grau, da filosofia analtica contempornea. Nos ltimos anos, filsofos estiveram pre-ocupados com pesquisas em lgica e lingstica, pura e aplicada, de

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    modo que eu no hesitei em reconstruir os argumentos de Nietzsche nesses termos. (...) Nietzsche no pode ser visto como sendo uma influncia sobre o movimento analtico na filosofia, exceto de uma maneira tortuosa e subterrnea. Antes, cabe ao movimento reclam-lo como predecessor.33

    A principal razo para a ento inusitada aproximao entre Nietzsche e a analtica, Danto a encontra no tratamento teraputico da linguagem que aquele desenvolve.

    As afinidades de Nietzsche com a filosofia analtica (...) no so to evidentes em outro lugar quanto em sua preocupao com a linguagem. (...) Seria claramente uma distoro sugerir que Nietzsche antecipou as discusses que dominaram a filosofia nos anos recentes. Mas ele inquestionavelmente um predecessor. Podemos ver problema aps problema atacado por ele em referncia ao que chama de modos en-ganosos de expresso que so os modos de expresso empregados em toda parte. Pareceu-lhe claro que os homens so seduzidos pela gramtica da linguagem que falam e implicitamente acreditam estar descrevendo o mundo quando, de fato, o mundo tal como concebem apenas um reflexo da estrutura de sua lngua.34

    Nietzsche lidaria, assim, com os problemas clssicos da filosofia no tendo em vista resolv-los, mas dissolv-los, torn-los desti-tudos de sentido (unsinnig), revelando-os como pseudo-problemas atravs de uma terapia da linguagem. Essa terapia seria o sentido da frase do Crepsculo dos dolos que adverte: Receio que no nos livraremos de Deus, pois ainda cremos na gramtica (GD/CI,

    33 DANTO, A. Nietzsche as philosopher. Nova York, Londres: MacMilan, 1965, p. 13-4.34 Idem, p. 83-4.

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    A razo na filosofia 5, KSA 6.78). A leitura pragmtica do pers-pectivismo parte, portanto, de uma aproximao com Wittgenstein, segundo o qual a filosofia uma luta contra o enfeitiamento de nosso entendimento pelos meios da nossa linguagem.35 a seduo da linguagem, no dizer de Nietzsche, ou as iluses gramaticais, nas palavras de Wittgenstein36, o que nos leva a substancializar itens lin-gsticos, isto , a crer o que sujeito, objeto, ser etc., seriam, mais que meras funes da linguagem, entidades substanciais.

    A relao entre Nietzsche e o segundo Wittgenstein mostra-se frtil, para alm da questo da terapia, sobretudo, no que diz respeito ao pluralismo lingstico que ambos defendem. Perspectivas podem ser aproximadas, de modo particularmente pertinente, de jogos de linguagem, assim como as formas de vida de Wittgenstein so se-melhantes aos tipos nietzschianos.37 Em suma, ambos os autores desenvolvem uma abordagem da linguagem em termos pragmticos, considerando-a como uma prxis social e definindo o significado e a verdade em termos de uso.38

    A proximidade entre perspectivismo e pragmatismo pode ser evidenciada tambm no que diz respeito teoria da verdade.39 Segundo Danto, abandonando o correspondencialismo, Nietzsche

    35 WITTGENSTEIN, L. Investigaes filosficas. 2.ed. Trad. J. C. Bruni. So Paulo: Abril Cultural, 1978 (Col. Os Pensadores), 109.

    36 Cf. Idem, 110, 116.37 Nesse sentido, compare-se o KSA 12.315, Nachlass/FP 7[60] com o 23 das Inves-

    tigaes filosficas.38 O 354 da Gaia cincia pode ser lido, nesse sentido, como uma antecipao do argu-

    mento da linguagem privada. Acerca desse ltimo, cf. WITTGENSTEIN, L. op.cit., 243 e ss.

    39 Cf. MOTA, T. Para uma leitura lingstico-pragmtica da teoria da verdade do jovem Nietzsche. Cognitio-Estudos: Revista Eletrnica de Filosofia, So Paulo, v. 3, n. 2, p. 134-42, dez. 2006. Disponvel em: http://www.pucsp.br/pos/filosofia/Pragmatismo/cognitio_estudos/cog_estudos_v3n2/cog_est_v3_n2_mota_t14_134_142.pdf.

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    (...) avana um critrio pragmtico de verdade: p verdadeiro e q falso se p funciona (works) e q no.40 Ou seja, no s h uma teoria perspectivista da verdade, de modo que este pode se afastar das formas mais cruas de ceticismo e relativismo, como tal teoria pragmtica, pois estabelece como critrio de verdade a eficcia, o melhor desempenho, enfim, a utilidade. isso o que Nietzsche quer dizer quando define verdade como a espcie de erro sem o qual uma determinada espcie de seres vivos no poderia sobreviver (KSA 11.502, Nachlass/FP 34[243]).

    No entanto, tambm a partir da problematizao da noo de utilidade em Nietzsche que as diferenas entre o perspectivismo e o pragmatismo podem ser concebidas. Na Gaia cincia, lemos:

    No temos nenhum rgo para o conhecer; para a verdade: ns sabemos (ou cremos, ou imaginamos) exatamente tanto quanto pode ser til ao interesse da grege humana, da espcie: e mesmo o que aqui se chama utilidade , afinal, apenas uma crena, uma imaginao e, talvez, precisamente a fatdica estupidez da qual um dia pereceremos (FW/GC 354, KSA 3.593).

    Nietzsche no parece disposto a comungar com a tendncia

    utilitarista do pragmatismo, ainda que entenda que o critrio de verdade se encontra, de alguma forma, na utilidade. que Nietzsche pensa a utilidade como uma utilidade na luta: til no sentido da biologia darwiniana, i. , o que se revela favorvel e propcio na luta com os outros (KSA 12.309, Nachlass/FP 7[44]). A adoo de um critrio pragmtico de verdade no perspectivismo pressu-pe, assim, que as perspectivas no so incomensurveis como os jogos de linguagem de Wittgenstein, mas que se estabelecem lutas

    40 DANTO, A. Nietzsche as philosopher. Nova York, Londres: MacMilan, 1965, p. 72.

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    entre perspectivas, relaes de poder que constituem um espao conflitual interperspectivo, em que cada perspectiva combate pela supremacia. Portanto, a utilidade assumida por Nietzsche como critrio de modo agonstico, ou seja, trata-se do poder como critrio pragmtico-agonstico de verdade.

    Essa , a nosso ver, a principal deficincia do perspectivismo pragmtico tal como concebido at aqui. Ao perder de vista que a re-lao entre verdade e poder a base da epistemologia perspectivista, a leitura pragmtica no capaz de perceber que o perspectivismo se complementa e esclarece por meio de um agonismo. Problema que no pequeno, na medida em que esta seria precisamente a contribuio que uma reflexo sobre Nietzsche poderia trazer ao movimento pragmtico.

    Abstract: This paper proposes a balance of the recent debate on Nietzsches perspectivism, discussion which aims the problem of the re-ference to the becoming and the problem of the self-reference or the puzzle of perspectivism. Five positions were identified in the debate: 1) meta-physical perspectivism, 2) hermeneutic-phenomenological perspectivism, 3) transcendental perspectivism, 4) semantic perspectivism and 5) pragmatic perspectivism. We conclude that the pragmatic interpretation is the one offering the most of advantages for it permits to think in a non-fondationist and non-correspondentist way and at the same time it authorizes to speak in terms of a pragmatic-agonistic perspectivism.Key-words: knowledge language perpectivism pragmatism agonistics

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