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Montserrat Rico Góngora A Queda da Babilónia Romance Tradução António Carlos Carvalho A Queda da Babilónia Final.indd 5 12/05/16 20:11

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Montserrat Rico Góngora

A Queda da Babilónia

Romance

TraduçãoAntónio Carlos Carvalho

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Planeta ManuscritoRua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito

1200 ‑242 Lisboa • Portugal

Reservados todos os direitosde acordo com a legislação em vigor

© 2011, Montserrat Rico Góngora© 2011, Planeta Manuscrito

Título original: La Caída de Babilonia

Revisão: Clara Joana Vitorino

Paginação: Maria João Cifka

1.ª edição: Maio de 2012

Depósito legal n.º 334 300/12

Impressão e acabamento: Guide – Artes Gráficas

ISBN: 978‑989‑657‑272‑3

www.planeta.pt

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Agradeço a ajuda de Josep Martí, astrofísico da Universidade de Física de Jaén, que fez o cálculo extraordinário dos dias decorridos desde a Fundação de Roma, segundo as Décadas de Tito Lívio, até 6 de Maio de 1527, dia em que teve lugar o Saque.

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A minha gratidão à minha leal editora Paula Nascimento e a toda a equipa editorial, sem cuja confiança teria sido impossível que ouvis‑sem a minha voz os leitores portugueses. E a todos eles a minha sin‑cera amizade do outro confim da nossa terra ibérica.

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Primeira parte

« [...] Vi lá uma mulher montada numa Besta cor de escarlate, coberta de nomes blasfemos e com sete cabeças e dez chifres. 4 A mulher estava vestida de púrpura e escarlate, coberta de ouro, de pedras preciosas e de pérolas. Tinha na mão uma taça de ouro cheia das abominações e das imundícies da sua prostituição. 5 Na sua fronte estava escrito um nome misterioso: “Babilónia, a grande, a mãe das prostitutas e das abo‑minações da terra.”»

Apocalipse (17:3‑5)

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Capítulo 1

Roma, 1526

Ninguém o ouviu aproximar‑se até que, sentado num capitel com folhas de acanto, vociferou o seu sermão. Atravessara parte da via‑sacra, devagar, coberto pelas estamenhas esfarrapadas da ordem a que perten‑cia, depois de passar a noite sem dormir, ao amparo de uma fogueira nos arruinados palácios imperiais.

Entre as ruínas dos mercados de Trajano, sob as abóbadas, mila‑grosamente de pé, da Basílica de Maxêncio, mesmo nas galerias ven‑tiladas do Coliseu, viu vacas e ovelhas estabuladas para evitar o rigor do Inverno. Eram as mesmas que pastavam na Primavera pelas férteis encostas da colina Oppio, bucólica elevação entre o Palatino e o Esqui‑lino nunca mencionada na lenda da fundação da cidade. No seu cume, sobre a própria terra que sepultara a Domus Aurea de Nero, erguia‑se agora o lupanar mais notável de Roma. Ocupava uma villa de recreio de dois andares onde dois artistas, quatro décadas antes, se tinham empregado com dedicação, mal pagos por um preboste da Cúria. Nas salas, alternavam os pavimentos de barro cozido em espiga, tradição humilde da velha Roma, com os mosaicos e mármores esplendorosos que tinham conseguido subtrair, quase intactos, de algum recanto da cidade. As esculturas intactas de deuses, de Vestais virginais, de heróis invictos que decoravam a casa em cima de colunas, também tinham sido

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encontradas debaixo do peso imponderável da terra secular. Nenhuma delas conservava o nariz e muito poucas os braços, feitos em pedaços na hecatombe de ventos e terramotos.

– Pecadores! – gritou frei Mauro, cingindo o cordão do hábito. – E em verdade vos digo que ireis arder nos infernos!

Flora, admoestada pelo sermão, abriu as portadas da janela, olhou para o jardim que o Inverno arruinara e distinguiu a figura magra de frei Mauro fazendo espalhafatos grotescos. Não era a primeira vez que ele incitava os moradores da villa a corrigirem‑se.

– Esgueirai‑vos daqui, charlatão, ou subi até nós, se decidirdes final‑mente aquecer‑vos! – Imprimiu um tom familiar às suas palavras.

– Aproxima‑se o fim dos tempos! – insistiu o monge. – Estais a con‑denar as vossas almas!

Bartolomeo de Pádua, nu, em pêlo, apoiou‑se no postigo, apontou‑‑lhe um dedo admonitório, que frei Mauro não conseguiu distinguir, e afiançou‑lhe:

– Alguma vez ouvistes falar de frei Girolamo Savonarola? – Não lhe deu oportunidade para responder. – Pois o meu pai acendeu a pira na praça da Signoria de Florença onde, depois de ser enforcado, foi queimado por ser visionário. – As suas gargalhadas despertaram as sonolentas mora‑doras. – Já vedes que além dos infernos pode‑se arder noutros lugares!

Frei Mauro pôs‑se de pé sobre os restos de um capitel e observou a cena sem pestanejar. Os seios de Flora, brancos como o mármore de Carrara, com as respectivas volutas de granito de Treviso no centro, repousavam voluptuosos sobre o postigo, com erótica insolência. Frei Mauro, por um instante, esqueceu o encargo que o levara até ali e eno‑velou‑se na mundana consideração de que Flora e Bartolomeo tinham necessariamente de estar elevados em alguma tarimba situada por baixo da janela, só assim se explicava que, da sua posição, pudesse ver a força viril do homem que, como o deus Príapo, tinha conseguido manter o seu membro em erecção durante toda a conversa.

– Roma já se perdeu uma vez por causa da perversão! – insistiu, então, com o argumento vago de um cronista. – O homem é o único animal que tropeça duas vezes na mesma pedra!

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– Pois então tende cuidado onde pondes os pés – acrescentou Bar‑tolomeo – porque temos o jardim semeado de ruínas! Da outra vez, regressastes ao convento com um dente a menos. – Com um movi‑mento de braços, fingiu abarcar o espaço onde algumas colunas caídas e frisos partidos tinham passado a fazer parte da paisagem com um traço melancólico.

Entrava‑se nos domínios da Villa Oppio por um pórtico provi‑dencial, como que surgido do nada. Devia ter feito parte de algum templo pagão consagrado à deusa do amor, ou pelo menos assim qui‑seram acreditar. O único arco deixava ver, num baixo‑relevo, homens e mulheres nus enlaçados em violentas contorções e abria a visão evocadora do Anfiteatro Flávio, a que os naturais da cidade chama‑vam Coliseu. A partir do umbral, apreciava‑se a amplitude original do edifício, com seus três pisos de arcadas e o ático, mas não a mossa que, do outro lado, rebaixara a sua altura1 e permitia ver outras duas elipses concêntricas de pedra do Traverso e parte da urdidura de galerias do subsolo, postas a descoberto após algum afundamento. Com esse halo de fortaleza ferida, fora testemunha das invasões dos bárbaros de Alarico; dos vândalos de Genserico; dos sarracenos, e, mais recentemente, das lutas intestinas dos patrícios romanos que, durante várias décadas, afastaram da cidade o poder papal. Agora, o Coliseu despertara como um símbolo de Roma, para onde os artis‑tas voltavam os olhos a fim de emular, de alguma forma, a sua gran‑deza. Apesar disso, tinham levado, sob ordens estritas, os seus últimos mármores para revestir a nova casa do humilde pescador da Gali‑leia, crucificado, de cabeça para baixo, por seu expresso desejo, na acidentada colina Vaticana.

Frei Mauro, desta vez, deitou a mão a um livro manuscrito para onde se tinham copiado apenas as páginas esquivas do Apocalipse de São João e prosseguiu o seu sermão, julgando‑o convincente.

1 Um terramoto violento causou grandes estragos no Anfiteatro Flávio em 1349.

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– «Roma é a prostituta que se senta sobre grandes águas. Com ela fornicaram os reis da terra e os habitantes da terra embriagaram‑se com o vinho da sua prostituição» – leu e esperou alguma resposta.

Pomona, Diana, Minerva, Afrodite e Atena tinham também asso‑mado às janelas, atraídas pelo escândalo, mas só Diana pôs sobre os ombros uma esclavina azul para evitar o vento frio do norte.

– Deixai‑nos dormir, tagarela, que mal despontou o Sol! – Pomona pegou numa castanha que tinha à mão e lançou‑a com certeira des‑treza à tonsura do pregador.

– Ditoso o que estiver de vigília e conserve as suas vestes! – As fra‑ses desfiadas do Apocalipse ainda pareciam socorrê‑lo. – Com tantas putas e luteranos, a cristandade está vendida! – improvisou.

O senhor cardeal conseguiu desenredar os lençóis; levantou‑se, afas‑tou com o pé o solidéu que caíra no chão, cobriu‑se com umas vestes que prendeu à cintura, com falso pudor, e interveio no ponto que jul‑gou ser da sua incumbência.

– Que dizeis, insolente, as putas não fazem teologia, nem boa nem má, de modo que não comprometem o edifício da Igreja! Quanto aos luteranos tenho de vos dar razão, mas asseguro‑vos que nesta casa não há nenhum! Haveis visto algum luterano com esses peitos? – Apontou com ar de regozijo para Atena. – Ide‑vos já embora, capuchinho endia‑brado, se não quereis que vos enforque!

Frei Mauro vacilou e regressou pela mesma vereda de pedras par‑tidas através da qual viera, com as mãos cruzadas sobre o regaço e a cerviz inclinada.

Embora Bartolomeo tivesse sido o primeiro a mostrar‑se incrédulo perante as palavras do frade, era o mais propenso a acreditar em todo o tipo de oráculos e prognósticos celestes. Fazia‑se chamar a si mesmo astrólogo, ainda que a tela onde, aparentemente, pintara as duas abó‑badas celestes não contivesse nenhum valor para a ciência, entre outras coisas porque a tinha esboçado no acaso da inspiração durante dez meses, na mesma alcova onde se recreava com Flora, longe dos seus instrumentos de medida e das pautas do erudito Luca Pacioli que har‑monizavam a sua biblioteca. Aquelas duas abóbadas representadas num

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plano eram tão‑somente os glúteos esplendorosos de Flora e os luna‑res em que Bartolomeo julgara ver as constelações de Virgem, Balança, Touro ou Sagitário, e sobre as quais pastavam unicórnios, centauros, pégasos e outros animais fabulosos, numa ajuda de artista.

Sem desvendar o segredo da sua iluminação, Flora, a grande mere‑triz da Villa Oppio, decidiu exibir a tela no salão, no pano da parede que ficava diante da porta e sobre a mísula que sustentava uma Vénus decapitada. Conseguiu despertar a atenção dos curiosos mais assíduos e dos que estavam de passagem, que se detinham no lupanar mais notável da cidade, longe das imundícies do velho Borgo ou do Trastevere, onde as contumazes doenças de Vénus e o flamante morbo gálico dizimavam de vez em quando a população. Mesmo um velho príncipe napolitano quis adquiri‑la por duzentos ducados para a integrar na colecção de objectos raros com que tentava obter uma noção clarificadora do Orbe divino, com toda a boa ou má crónica alinhavada pelos argonautas do Novo Mundo, que se fazia enviar expressamente dos distantes portos de Sevilha onde atracavam.

Bartolomeo de Pádua tinha compilado, numa tarefa árdua, os vati‑cínios escritos do último meio século, desde os indulgentes em Cris‑tóforo Landino ou Paulo de Middelburg, bispo de Fossobrone, que tinham coincidido no advento de uma época dourada – a que deram brilho os artistas florentinos da Academia Neoplatónica em tempos de Lourenço, o Magnífico –, até aos mais recentes, do prior‑geral dos Agostinhos, Egídio de Viterbo, que, fruto de não se sabia qual arte divinatória, tinham anunciado o colapso de Roma sob o reinado do imperador Carlos V. Provavelmente, por detrás de tão mau augúrio encontrava‑se o garante da secreta Cabala Judaica, que Bartolomeo enfrentara depois de aprender a língua hebraica e de defender, com unhas e dentes, a dignidade da raça que tinha vingado, durante sécu‑los, muitos mandatários da Igreja. Os judeus haviam chegado a Roma em vagas diversas, atraídos por algum tratamento de favor da Repú‑blica ou, então, como escravos submetidos ao Império, como quando Tito, o filho do imperador Vespasiano, cercou Jerusalém impiedosa‑mente durante seis meses e destruiu o Templo. Eles tinham construído

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o Coliseu na terra estranha que havia de os menosprezar com cada novo sinal dos tempos, no mesmo local onde se tinha derramado a piscina cristalina da Domus Aurea de Nero, e que Vespasiano converteu em terreno público. Agora amontoavam‑se nos subúrbios do Borgo ou do Campo dei Fiori – onde também tinham ido parar, há um pouco mais de três décadas, as vítimas da Inquisição espanhola e onde se executa‑vam os réus de penas capitais num espectáculo que excitava as massas.

Qualquer homem de Estado, sem mais instrumento do que o puro discernimento, teria chegado às mesmas conclusões que o insigne car‑deal, bastando‑lhe observar os últimos acontecimentos, já que desde há dezenas de anos a Itália se convertera num campo de batalha e objecto das ambições dos reis franceses e espanhóis que, sob qualquer pretexto, acampavam ali com toda a liberdade, como um castigo.

Contudo, os vaticínios menores nunca estiveram ao alcance compi‑lador de Bartolomeo de Pádua, embora os conhecesse muito bem por‑que tinham chegado a constituir a essência de todo o clamor popular, onde se confundiam o temor e a fé. Eram estes de uma natureza extre‑mamente mística, como ventos antecipadores de uma nova era para a cristandade, porque Roma esperava – ou desejava – uma segunda vinda de Cristo. Pelo menos assim o entenderam aqueles que tiveram sonhos reveladores enquanto escutavam a homilia na Igreja de Santa Maria Aracoeli, situada sobre o mesmo lugar onde a sibila Tiburtina anunciara ao imperador Augusto a mesma notícia; e assim o entende‑ram também as legiões de artistas, mais ou menos bem pagos, que se ocupavam com urgência na construção de uma renovada basílica para o festejar. Então prosperaram todos os tipos de prodígios, na mesma igreja do Quo Vadis, onde Pedro mostrou, mais uma vez, a sua humana fraqueza depois de fugir da perseguição de Nero e onde as virgens ado‑lescentes podiam agora ver, apenas por o desejarem, Cristo em carne ressuscitada e acompanhá‑lo no seu percurso entre os túmulos solitários da Via Ápia, a caminho da cidade. Também em Ponte Mílvio, ao raiar da aurora, era possível distinguir o espectro do imperador Constantino esgrimindo o lábaro com o sinal da cruz com que vencera Maxêncio antes de abraçar a nova fé.

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Bartolomeo de Pádua conseguira conquistar, mais do que nenhum outro hóspede da casa, o afecto das raparigas, não só pela sua afabili‑dade como também porque conseguiu concretizar algum dos seus fei‑tiços quando afugentou o espírito maligno de Nero depois de instaurar o costume de acender ramos de aroeira num piveteiro de bronze que pertenceu a Galba, seu sucessor. Então, emudeceram os batentes de portas e janelas sem razão aparente; calaram‑se as notas embriagado‑ras de uma lira e extinguiram‑se os fogos espontâneos do jardim, que se acendiam à meia‑noite sem mão visível que os servisse.

Bartolomeo de Pádua era uma espécie de sonhador com quatro madeixas de cabelo grisalho que deixava repousar com languidez sobre os seus ombros, perdido em alguma outra esfera distante do Orbe divino. Costumava vestir uma toga azul, quando não verde, numa moda que os jovens de Itália tinham tornado antiquada com o uso dos gibões, das meias e dos calções golpeados. Conseguira uma relação familiar não apenas com aquelas mulheres que no seu ofício tinham adoptado nomes de deusas, como também com os homens que as frequentavam: o velho mercador veneziano Gian Luca Cavalieri; o artesão do grémio da seda, Andrea Negroni, ou com Pompeio Severo, bastardo incerto de algum espanhol que combatera em Itália ao serviço do rei Fernando de Aragão. Pompeio era o mais jovem e bem‑parecido de todos. Não se lhe conhecia nenhum ofício, mas pagava às raparigas com uma gene‑rosa moeda de prata, quando não era de ouro, de duvidosa procedên‑cia, embora nos últimos tempos tivesse deixado de o fazer em nome de algum mútuo negócio não menos obscuro. Pompeio tornara‑se o grande animador dos descansos vespertinos e das bacanais matutinas, se a alvorada conseguia encontrá‑lo na casa. Era loquaz, extravagante, divertido e um bom conversador, virtudes todas elas partilhadas com Gian Luca Cavalieri, embora no caso do veneziano os anos começas‑sem a azedar‑lhe o carácter e a deixar‑lhe nas palavras o sarro sempre agridoce da melancolia.

Gian Luca fizera fortuna durante mais de vinte anos, comerciando com os portos do mar Mediterrâneo, e perdera‑a numa única incursão arriscada para ultrapassar a ignota linha do equador, quando as audácias

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dos marinheiros espanhóis e portugueses se escutaram em Itália com a mesma veneração que o maior dos seus milagres. Embora tivesse sido vítima de um naufrágio em que morreu toda a tripulação e perdido até ao último florim, recuperou tudo o que perdera quando, em troca de gorjetas, explicou em sete ou oito discursos longos e aborrecidos, em três ou quatro tabernas, em que consistira a emoção de ter sido guiado durante a noite pelo Cruzeiro do Sul, em vez da Estrela Polar. Embora Bartolomeo de Pádua nunca tivesse sido avisado, Gian Luca Cavalieri reconheceu também nas nádegas de Flora, com mais autoridade do que ninguém, a imensidão da abóbada celeste, o que vinha de algum modo avalizar a sua arte ou premonição.

Foi o mercador veneziano quem forneceu um criado fiel à Villa Oppio, depois de o salvar diante das costas de Constantinopla. Chamava‑se Memeh. Ele próprio lançara‑se às águas, numa distracção do seu car‑cereiro, com as grilhetas postas, para se livrar da pena capital imposta pelo sultão Solimão depois de descobrir a falta de zelo de Memeh no harém das suas esposas. Nessa altura, era já um eunuco musculado, embora antes tivesse sido um janízaro viril ao serviço do Império Oto‑mano, a que vários acontecimentos infelizes condenaram à castração. Quando Memeh apareceu pela primeira vez na casa das mulheres, estas observaram‑no fascinadas pela sua constituição bovina, pelo tom bron‑zeado da sua pele, mas sobretudo por aquela voz, que parecia sair‑lhe do saco sem fundo onde acumulara a vida: era igual à de um menino. Tanto respeito lhes infundiu que nunca ousaram levantar‑lhe os tra‑pos que cobriam as suas partes pudendas, e, consequentemente, sem nenhuma premeditação, tornaram‑no objecto de estranha veneração, como um mártir do amor.

Memeh usava a cabeça rapada e o seu torso nu deixava ver a argola que, num gosto extravagante ou numa tortura ímpia, alguém lhe tinha introduzido no mamilo. Ocuparam‑no a abrir as portas, mas sobre‑tudo a mudar a água da banheira que pertencera a um imperador e onde os homens se lavavam em turnos rigorosos antes de passarem às alcovas. Quando Gian Luca o levou para a Villa Oppio, já tinha obse‑quiado os seus amigos com um papagaio chegado como novidade aos

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portos de Óstia, proveniente de Sevilha, mas que vinha, na realidade, de muito mais longe, em concreto, das Índias Ocidentais recém‑explora‑das, onde essas aves eram muito comuns. A avezinha sofreu um ataque de tosse violento durante uns dias, depois de sobreviver nos mesmos cais poeirentos onde as barcaças descarregavam os enormes blocos de mármore de Carrara ou Pietrasanta a ser utilizados na nova constru‑ção da Basílica de São Pedro. As mulheres ficaram encantadas com o colorido da sua plumagem, mas ainda mais com a possibilidade de que pudesse falar e de que mostrasse a mesma ínclita oratória de Cícero ou Tito Lívio. Ocuparam‑se a ensinar‑lhe frases curtas, na mesma altura em que Memeh tropeçava também nos escolhos do idioma. Pássaro e criado olhavam‑se de olhos fixos num convite singular e cuspiam‑se insultos trissílabos: cornuto, puttano, stronzo; no entanto, foi Madonna a palavra que ambos pronunciaram primeiro de maneira mais diáfana, depois de a escutarem, repetidamente, com algum arrebatamento de natureza impronunciável, ao senhor cardeal.

Gian Luca não só levara para a Villa Oppio essa mercadoria exótica como também as sementes de prometedoras frutas e legumes que nunca se enraizaram na terra do jardim ou que carbonizaram entre os fogos incertos de um espírito mau. O Legno de Indias ou Guayaco, como lhe chamavam os indígenas, passou antes para as mãos hábeis dos boticá‑rios da cidade, que já tinham formulado desde a Antiguidade a elucu‑bração de que a doença e o remédio, num enigma divino, habitavam próximos uma do outro. Com ele, elaboraram o elixir que mitigou o morbo gálico, a que os franceses chamavam morbo espanhol numa justa vingança, e que na realidade chegara do Novo Mundo como um castigo divino para a Europa.

Embora as doenças de Vénus também atormentassem as cortesãs e os seus frequentadores, a Villa Oppio era o lupanar mais saneado da cidade, porque se encontrava afastado numa colina, longe dos reman‑sos infestados de mosquitos do Tibre e rodeada por um conjunto de ruínas que, por serem isso mesmo, tinham aberto nas vicissitudes da história uma fresta através da qual deslizava o ar puro. Aquele lugar era o mesmo que frequentavam os pastores nómadas que atravessavam

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as planícies do Lácio no início da canícula e onde se detinham absor‑tos para sentir como fraquejava a fé que lhes tinham inculcado os seus pais. Então, tentavam adquirir alguma noção da imensidão posta ao serviço da civilização e entretinham‑se, calculando a olho as aldeias que cabiam em cada uma das naves quebradas dos antigos palácios imperiais; ou nos templos adivinhados no perímetro demolido das suas pedras; e levavam consigo, como autênticos tesouros, dedos partidos, pedaços de estelas funerárias, castiçais de bronze ou moedas sem relevo que as últimas chuvas tinham deixado a descoberto.

Muitos outros lupanares da cidade estavam situados em Pozzo Bianco, no Borgo ou em Trastevere – embora também as prostitutas marcas‑sem encontro, como dantes, debaixo das arcadas dos anfiteatros e cir‑cos. Eram todos bairros mal ventilados e sombrios, de ruas sinuosas, onde a população se amontoava e a peste juntava, de vez em quando, as suas vítimas numa reunião fatal. Neles, as prostitutas vestiam‑se com tecidos listrados para serem reconhecidas pelas autoridades corruptas da cidade, que as fustigavam quando acorriam a ir beber água às fon‑tes e lhes exigiam, para seu exclusivo proveito, algum supremo favor. Na Villa Oppio, as mulheres vestiam túnicas vaporosas, numa liber‑dade concedida pela obstinada contemplação de todas as esculturas femininas que, em anos de florescimento e espólio, tinham desfilado diante dos seus olhos. Elas eram a nata requintada do lenocínio posta ao serviço do poder na mesma cidade onde o destino, sobre as ruínas do Império, se tinha lançado na aventura da fé.

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Capítulo 2

Toledo, 1526

Manrique despediu‑se à porta do notário que vira ler‑lhe o testa‑mento do seu pai, Ruy de Sandoval. Este tinha disposto, nas suas últimas vontades, que o filho herdasse a quinta onde fora criado, assim como um pequeno montante pecuniário que haveria de lhe servir para custear uma viagem até Roma. Nessa distante cidade tinha de entregar três mil ducados ao irmão, de cuja existência não tivera notícia até agora. Dom Ruy quis, com essa repartição, que considerou equitativa, aliviar o peso da sua consciência pelos pecados da juventude. Também deixava outra soma, para sufrágios, ao cabido da catedral de Toledo e o recado de que fosse esse mesmo notário, reclamado para as disposições legais, a con‑tar a Manrique que o seu irmão viera ao mundo quando o pai fizera a guerra em Itália a favor de Dom Fernando de Aragão, o Católico, avô de sua Augusta Majestade Imperial Dom Carlos I das Espanhas. Visto que Dom Ruy não deu os seus apelidos ao filho, pôs‑lhe a mãe o nome de Pompeio Severo por reunir a sonoridade dos grandes homens que tinham consagrado a história de Roma.

Manrique sentou‑se, atormentado, num escabelo. As suas mãos gela‑das mal podiam segurar os documentos redigidos com esmero que lhe entregara o notário com o zelo inadiável da sua profissão. Tinham‑se encontrado ao meio‑dia, e ali estava ele, com o luto silenciado entre os

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dentes e o arquejo no peito de quem acabava de percorrer meia cidade nuns minutos. Embora isso tivesse sido agora o mais razoável, não pen‑sou em Pompeio Severo, nem sequer nos pecados do seu pai, a quem acabava de dar sepultura cristã, mas sim em Gonzalo Maqueda, a quem o destino reservara a sua própria tragédia, porque o pai dele e Ruy San‑doval tinham‑se despenhado na mesma arreata de mulas no leito do rio, ao desfazer‑se um talude que as chuvas constantes de Dezembro tinham amolecido. Embora não os tivessem velado juntos, as honras fúnebres tinham sido previstas à mesma hora, mas às oito da manhã somente a mortalha de Ruy de Sandoval chegara às portas de Santo Tomé. Tam‑pouco uma hora mais tarde viu Gonzalo no cemitério adjacente, onde os defuntos haviam de ser sepultados. Manrique conjecturou, aterro‑rizado, a possibilidade de também as fauces da morte se terem alimen‑tado com o seu amigo, porque nada explicava de forma satisfatória ter faltado ao compromisso de dar sepultura cristã aos mortos.

Dado que as solenidades do requiem pelo pai e o seu encontro pontual com o notário o tinham impedido de averiguar algo mais sobre a estranha desaparição do amigo, partiu em busca de Gon‑zalo. Enfronhou‑se numa espécie de bata grossa e meteu no alforge as sandálias rústicas, no caso de a neve ficar mais forte. No seu tra‑jecto, encontrou as ruelas desertas. Eram as mesmas que tinham dado forma ao coração labiríntico da antiga judiaria e cujos ecos ressoa‑vam agora com timbres de profanação. Um vento desabrido puri‑ficara há semanas os recantos onde, no Verão, floresciam as urinas dos cães junto aos vasos de manjericos. Era um vento que violen‑tava a vida e passava ao largo.

A porta da casa de Gonzalo tinha sido forçada. Manrique chamou‑‑o em vão do umbral para ver se dava sinais de vida. Depois, pegou no fuste de um ancinho que tinha ali à mão, para se defender se fosse pre‑ciso, e entrou com o sigilo de um salteador. A luz mortiça que entrava pela única janelinha, abria o seu feixe na lareira. A meio do caminho, iluminava apenas a mesa onde se tinha pousado um volumoso maço de papel, ao qual se tinham possivelmente expurgado as folhas disper‑sas no chão.

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Manrique procurou a mecha para acender a palmatória. Era vul‑gar estar no revelim da lareira, onde sem dificuldade a encontrou. Então, deparou‑se com a caixa de madeira que contivera o maço de papéis, sobre uma base de pedras porosas cuja finalidade era absor‑ver a humidade. Depois, sentou‑se numa cadeira sólida com costas e assento de cabedal e, antes de se dispor a ler com atenção para enten‑der o que diziam, compreendeu que esses documentos de papel, per‑gaminhos num caso ou noutro, deviam ter décadas, se não mesmo séculos. Alguns tinham os cantos desfeitos em pó pelo menosprezo próprio do tempo ou pela voracidade das ratazanas. Muitos estavam escritos em hebraico ou em árabe, línguas que se tinham cultivado na cidade quando prosperou a sua célebre Escola de Tradutores. Man‑rique desvalorizou os que lhe pareciam incompreensíveis e concen‑trou a sua atenção nos que estavam redigidos em latim ou castelhano. De início não viu neles nada de subversivo. Recolhiam, em síntese, a história dos dezoito concílios que durante três séculos se tinham celebrado em Toledo sob a égide dos visigodos. Mas havia uma carta muito mais recente em cuja estranha linguagem cifrada, ou pelo menos esquiva, até o menos desconfiado teria advertido a sombra da extorsão a que era submetido o seu destinatário. As folhas amareladas espalha‑das pelo chão constituíam, talvez, uma espécie de testamento espiritual da estirpe que tivera durante gerações a tenaz dedicação de escrevi‑nhar aquele registo de nascimentos, num desafio ao esquecimento tão louvável como temerário.

Manrique prosseguiu a indagação pelo pátio com o coração aos sal‑tos. Era um espaço amplo, um alívio em tão ruim edificação, coberto por uma latada agora sem folhas, mas que no Verão proporcionava uma espessa sombra para escapar à canícula toledana. Num dos lados, erguera‑se uma frágil latrina sobre um poço cego e, ao fundo, o alpen‑dre onde o pai de Gonzalo exercia o seu ofício de sapateiro e guar‑dava os sacos de cereais. Manrique viu então uma abertura na rocha, que por algum ardil do sistema interno tinha sido eficazmente camu‑flada durante anos. A mesma abria‑se para uma apertada galeria, mas pela qual podia passar‑se a pé sem grande dificuldade. Avançou para

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além do ponto onde a ténue luz do exterior a iluminava, até que se apagou a palmatória com uma corrente de ar que o assustou. Embora não estranhasse a existência daquele corredor que parecia penetrar nas entranhas cavernosas da cidade, intrigou‑o ter Gonzalo Maqueda tido algo que fazer nas horas mais dramáticas da sua vida. De novo na casa, Manrique pensou numa possibilidade que até então não con‑templara e o fez estremecer: seria possível o defunto continuar no seu catafalco mortuário na alcova contígua? Com um temor reverencial, entrou aí sem fazer ruído. Deparou‑se com uma esteira chamuscada e um balde virado do qual se tinha derramado uma boa quantidade de água. Ali estava o ataúde entre quatro velas fúnebres, mas encon‑trava‑se vazio. Então deduziu, pelo pouco que tinham minguado os círios, que tinham sido escassas as horas da sua combustão e de velório. Depois saiu da casa e teve o cuidado de fechar a porta para conduzir o assunto com a maior discrição. Evitou perguntar de novo por Gonzalo e pelo defunto ao pároco de Santo Tomé, porque pare‑cia tão perplexo como ele. Naquele bairro da cidade, o único cortejo fúnebre que os vizinhos tinham visto passar era o de Ruy de Sando‑val. Nada de novo lhe contaram.

Embora fossem horas propícias para a reflexão e para o recolhi‑mento, Manrique dirigiu‑se ao Zocodover. Nesse sábado, nenhum bufa‑rinheiro ambulante ousara plantar as suas tendas debaixo dos alpendres da praça, mas algumas mulheres, num intercâmbio secular, trocavam pedaços de tecido por sacas de cereais; ou lã por dura carne defumada, antes que o frio paralisasse as rotinas quotidianas.

Na taberna, Manrique encontrou os homens que tinham feito parte do cortejo fúnebre do pai e os que se ofereceram também para levar aos ombros o féretro do defunto misteriosamente desaparecido. Eles tinham invadido a casa de Gonzalo Maqueda na véspera, quando acorreram ali com as últimas luzes para velar o cadáver com duas carpideiras e verifi‑caram que já ninguém respondia às investidas feitas à porta. De algum modo, isso esclarecia a Manrique parte de um assunto que, longe de se resolver, parecia agora imbricar‑se na medula de um rumor: às três da tarde da mesma sexta‑feira, dois cavalheiros do palácio de Fuensalida

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tinham sido testemunhas da disputa em que Gonzalo Maqueda amea‑çara de morte o racioneiro da catedral e os seus esbirros. A partir dessa altura, perdia‑se o seu rasto.

Ninguém conseguiu explicar satisfatoriamente que tipo de querela pessoal podia Gonzalo Maqueda ter enfrentado com Diego de Sagredo. Por outro lado, as aversões entre a Cúria toledana e a vizinhança pare‑ciam ter cessado após a morte do arcebispo flamengo Guillermo de Croy, arrivista do séquito do imperador Carlos V, que o naturalizara na altura para o pôr à frente da segunda diocese mais importante pela sua riqueza, depois de Roma, embora nunca tivesse posto o pé na cidade.

Diego de Sagredo era castelhano, como o novo arcebispo de Toledo, Alonso de Fonseca, a quem o ilustre racioneiro dedicara um tratado de arquitectura intitulado Medidas del Romano, fiel adaptação da obra do velho Vitrúvio. Em ambas as nomeações, como veladamente se tinha exigido, não interveio a autoridade de Roma, mas antes a vontade deter‑minada do soberano estrangeiro que tinha esmagado a revolta dos Comu‑neros, e que para emendar agora tanto desconchavo, e a fim de con‑quistar o afecto dos seus súbditos, recorrera a uma louvável rectificação.

Manrique fez um esforço árduo para recordar algo nessas horas de confusão. Tanto Gonzalo como o pai pareciam cristãos devotos, embora já duvidasse que fossem cristãos‑velhos. Iam à missa duas vezes por dia e contribuíam para o sustento material, não só do Cabido da catedral, como também de outras igrejas menores. Constava‑lhe igualmente que o racioneiro Diego de Sagredo, enquanto se restaurava o palácio arquiepiscopal, delegara boa parte da sua responsabilidade a uma legião de esmoleres que tinham recebido ordens menores, à frente dos quais se encontrava um franciscano senil de ar feroz, sobrevivente de todos os vendavais da Cúria toledana nos últimos cinquenta anos. Era um homem de maneiras rudes, que cultivara alguma animosidade malsã contra a condição humana. Viam‑no todas as quintas‑feiras colectando dádivas extramuros, nas herdades que espreitavam para o Tejo; e às sex‑tas‑feiras nas ruas envolventes das desmanteladas sinagogas de Santa Maria la Blanca ou do Tránsito, sujeito a um voto de silêncio que não tinha jurado, mas que era a justa expressão do seu carácter.

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Manrique saiu da taberna e tomou o caminho de casa. Embora tivesse percorrido mil e uma vezes os mesmos caminhos estreitos, sentiu‑se de repente desorientado por causa da bruma. Tornava‑se espessa como um tecido compacto, sem que o vento pudesse despejá‑la do intrincado emaranhado de ruelas que a encurralavam. Pelo tempo que levava a andar, percebeu ter dado várias voltas ao perímetro irre‑gular que envolvia o palácio arquiepiscopal, a catedral e as igrejas de San Marcos e San Pedro Mártir. Apercebeu‑se disso quando ouviu, em uníssono, todos os sinos anunciando as três horas com os seus distin‑tos timbres.

Naquela parte da cidade o alguazil tinha acendido, precipitado, os archotes, mas a visão era nula. Mal via os seus pés e a névoa tinha adquirido uma luz interior púrpura e apocalíptica. Somente ao dobrar a esquina conseguiu distinguir a silhueta vacilante que vinha ao seu encontro. Estava coberta por uma capa pluvial, cujo verde tinha a mesma textura do musgo. A dois palmos, quando sentiu o seu bafo, descobriu que tinha o rosto desfigurado pelos golpes e que, das cos‑telas, sobressaía um fio de aço. Caiu junto dele, sem forças para emu‑lar o grito de dor que tinha, minutos antes, sido silenciado pelo uivar do vento na última encruzilhada. Manrique viu então o emblema do Cabido da catedral sobre a grossa capa pluvial, atentou na orientação até entender que a casa arquiepiscopal se encontrava ali perto e chegou à atroz conclusão de que uma truculenta manobra do destino levara o racioneiro Diego de Sagredo a morrer nos seus braços, perante a tes‑temunha silenciosa que tinha aproximado a luz da candeia da janela no acaso do aborrecimento. Aterrado, não soube o que fazer. Embora a bata negra dissimulasse a cor do sangue, este tinha manchado o alforge e os punhos brancos da sua camisa, colocando‑o num difícil aperto no momento de demonstrar a sua inocência. Por outro lado, deixara há muito tempo de confiar na justiça castelhana, a mesma que condenara, três anos antes, os Comuneros de Villalar, para quem o perdão impe‑rial chegara demasiado tarde.

Foi inevitável, nesse momento, pensar em Gonzalo Maqueda, a quem atribuiu a autoria do crime e amaldiçoar mil vezes a hora

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do seu nascimento. Manrique abandonou o local com passo ligeiro, mas ainda presa à mesma desordem. Tentou mais uma vez reconhe‑cer os brasões que ornamentavam muitas fachadas ou os ajimezes exóticos das janelas de algumas casas nobres, para que pudessem indicar‑lhe o caminho até ao pano da muralha, mas só distinguiu, sem margem para erro, a velha Escola de Tradutores, de onde ema‑nava um cheiro bafiento; e, num outro recanto azarento, a fachada monumental da Casa da Santa Irmandade, onde um velho pendão baço brincava ao vento.

Nessa tarde, as ruas de Toledo tinham adquirido a ressonância de um grande vazio e os seus passos ouviram‑se como cascos de cavalo. Depois, já o manto da neve os tornara silenciosos, mas também dela‑tores. Presa da agitação, evitou como pôde a pátina das pedras poli‑das pelo tempo de encostas e declives, e os charcos para onde tinham escorrido as grandes gotas de ferrugem. Ainda ofegante, chegou ao Arco de la Sangre, onde, ao amanhecer, um piedoso confrade consolava os condenados à morte quando os havia. Então, a voz do pregoeiro que‑brou, de maneira diáfana, um silêncio adequado e sepulcral, e assim soube que as muralhas da cidade iam ser fechadas uma hora antes por‑que a neve estava a ficar mais forte. Ziguezagueando, conseguiu chegar à Porta de Bisagra e a partir daí saiu da cidade com a intenção de rodear o recinto, sem o risco de ser visto. Naquele ponto, o caminho ficava mais estreito com os cerros e uma estrumeira onde ninguém nesse dia tinha coberto com cal viva os despojos da degolação. As vísceras san‑guinolentas de um animal grande tinham aberto três ou quatro papoi‑las colossais na neve. Extramuros, o sangue coagulara há mais de meia hora, mas, apesar disso, sentiu os passos mais confiantes por essa rota. Quando o Tejo lhe saiu ao encontro, descobriu que vinha engrossado, com ruído de espanto, arrastando troncos e ramos que, na sua pronun‑ciada foz, tinham perdido o vigor da navegação e escoravam‑se. As suas águas turvas quase ultrapassavam o parapeito da Ponte de San Martín e acentuavam o redemoinho do Baño de la Cava.

Manrique chegou ao lar com a última luz do dia. Achou‑o mais inós‑pito do que nunca, porque ninguém mantivera acesa a lareira da casa.

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Então, sim, pensou em Ruy de Sandoval, tropeçou a propósito nas suas coisas e, pela primeira vez, entregou‑se à inércia de pensar no irmão que não conhecia e que chegava talvez a tempo de ocupar, no seu cora‑ção, o lugar fraternal de onde acabava de tirar Gonzalo Maqueda. Um amargo ressentimento veio juntar‑se à dor pela perda do pai. A sua pri‑meira noite de orfandade, viveu‑a numa via‑sacra com todas as esta‑ções no centro da casa. Parecia maior por causa do seu vazio e tinha‑se envolvido na atmosfera glacial dos sepulcros.

Até às nove, Manrique, por precaução, não queimou a bata, a camisa e o alforge ensanguentados, que tanto o comprometiam, nem descobriu como planear o seu futuro imediato. Encontrava‑se em perigo. Roma parecia agora uma escapatória oportuna, mas apenas isso, porque a sua fuga não o isentaria da culpa – antes pelo contrário – do crime que decerto a justiça haveria de lhe atribuir, mas sobretudo não lhe favore‑cia a serenidade pela qual todo o espírito ansiava para o futuro dos seus dias. Então pensou na vantagem de simular a sua própria morte: nin‑guém procurava os mortos. A dor pela perda do pai avalizava o suicídio, mas para o tornar credível precisava, além da carta que o anunciasse – e que na primeira tentativa destruiu –, do seu próprio corpo inerte, o que tornava inviável semelhante solução. Em contrapartida, um aci‑dente em que se dessem por perdidos os seus restos mortais tinha de livrá‑lo de toda a obscura manobra do destino, mas havia sobretudo de convencer os seus prováveis delatores de que tinha sido vítima da jus‑tiça divina, em vez da humana. Manrique verificou que o Tejo se tinha aliado à causa. As suas águas torrenciais acabavam de cortar a comuni‑cação entre a cidade e as herdades, dando‑lhe uma trégua. Nessa altura, a bruma diluíra‑se ligeiramente nos campos, ao ponto de lhe permitir ver a Igreja de San Juan de los Reyes – a mesma que, à luz do dia, via nos seus detalhes de construção – e os primeiros estragos que o alu‑vião provocara na ponte. A partir de um ponto de vista estratégico no horto viu a flutuar alguns utensílios domésticos e as aves de capoeira que a enchente havia afogado no lado oposto de Toledo. Desse ponto alto que olhava para o fundo do rio era fácil lançar a sua carroça, para que a corrente a arrastasse como indício da própria desaparição. Com

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a ajuda de um macho, conseguiu precipitá‑la nas águas. Viu‑a afun‑dar‑se e flutuar como um barco a meio do temporal, na mesma curva do caminho onde os arrieiros paravam para refrescar a água das bilhas.

Essa era a sua segunda noite de insónia, mas não lhe fraquejaram as forças. O vento, que tomara a mesma direcção do Tejo, num rumo servil, tinha‑o espevitado. No estábulo deixou selada a sua montada e depois preparou uma trouxa com o indispensável para uma viagem que sabia ser sem regresso. Partia com três mil escudos, para os entre‑gar ao irmão que não conhecia, e renunciava necessariamente à sua herança, porque, sendo dado como morto, a quinta onde decorrera a sua infância e mocidade havia de ser encaminhada como doação pie‑dosa para o Cabido da catedral, beneficiário absoluto da diocese.

Às seis da manhã, Manrique verificou com satisfação que Toledo continuava separada do mundo e de novo envolta na bruma, como uma misteriosa Avalon. Dispunha‑se a meter‑se ao caminho quando alguém bateu à porta com violência.

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