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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ECONOMIA Artur Monte Cardoso BURGUESIA BRASILEIRA NOS ANOS 2000 – ESTUDO DE GRUPOS INDUSTRIAIS BRASILEIROS SELECIONADOS Dissertação apresentada ao Instituto de Economia da Unicamp como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Economia. Orientador: prof. dr. Plínio Soares de Arruda Sampaio Jr. CAMPINAS – SP FEVEREIRO DE 2014

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ECONOMIA

Artur Monte Cardoso

BURGUESIA BRASILEIRA NOS ANOS 2000

– ESTUDO DE GRUPOS INDUSTRIAIS

BRASILEIROS SELECIONADOS

Dissertação apresentada ao Instituto de Economia da

Unicamp como requisito parcial para a obtenção do título

de Mestre em Economia.

Orientador: prof. dr. Plínio Soares de Arruda Sampaio Jr.

CAMPINAS – SP

FEVEREIRO DE 2014

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ii

Esta dissertação é dedicada

à memória do meu avô,

Milton Monte,

brasileiro e amazônida exemplar,

e eterno professor

da disciplina “Felicidade”.

Page 3: Monte-cardoso_artur-2014-Burguesia Brasileira Nos Anos 2000 - Versao Final Para Banca

iii

RESUMO: Esta dissertação pretende contribuir para a discussão sobre o caráter da burguesia

brasileira nos anos 2000 e, desta forma, entender o sentido, os limites e as possibilidades do

capitalismo brasileiro contemporâneo. Para isso, é apresentado um estudo de quatro dos

maiores grupos industriais privados do Brasil: Vale (mineração), JBS (agronegócio/carnes),

Gerdau (siderurgia) e Cosan (agronegócio/sucroalcooleiro). A intenção é fornecer elementos

concretos para uma melhor compreensão sobre o caráter da burguesia brasileira.

A investigação dos grupos se concentrou na compreensão da base material da burguesia e sua

força relativa frente aos demais capitais. Foram mapeados os mercados, a base produtiva e a

base financeira, os vínculos com o Estado e a estratégia de cada grupo no período de estudo.

As informações foram extraídas de dados públicos das companhias, de relatórios de

instituições governamentais, internacionais e de associações de classe, da imprensa

especializada e de estudos acadêmicos sobre as empresas.

Para embasar teoricamente esta discussão, foram utilizados quatro autores da tradição da

formação nacional: Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Jr., Celso Furtado e Florestan

Fernandes. A hipótese é que a burguesia brasileira combina o aproveitamento de

oportunidades de negócios gerados pela dependência externa com a exploração predatória da

força de trabalho e do meio ambiente, bem como a mobilização arbitrária dos recursos do

Estado, caracterizando-se como uma verdadeira burguesia dos negócios.

A pesquisa aponta que os grupos aproveitam oportunidades dentro de um processo de

desindustrialização e reprimarização, mas são incapazes de controlar variáveis estratégicas da

acumulação, os que as torna vulneráveis às oscilações internacionais. O impulso dos seus

mercados foi resultado direto do ciclo econômico internacional, via elevação da demanda e

dos preços, ou indireto, através do surto de crescimento interno. Sua base produtiva é em

segmentos de tecnologia simples, livre e com baixos encadeamentos. Sua base financeira foi

principalmente o capital financeiro internacional, como o apoio complementar de recursos

oriundos do Estado. Por fim, a estratégia de crescimento dos grupos, inclusive de

internacionalização, se deveu ao processo de aquisição de concorrentes e não de construção

de capacidade produtiva, chegando ao caso extremo de associação direta com o capital

internacional.

PALAVRAS-CHAVE: burguesia brasileira; desenvolvimento; reversão neocolonial; Cosan;

Vale; Gerdau; JBS.

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iv

Sumário

Introdução .............................................................................................................................................. 1

1. Introdução .................................................................................................................................. 6

2. A problemática da formação .................................................................................................... 8

3. A burguesia brasileira sob a ótica da formação ................................................................... 12

3.1. Nelson Werneck Sodré: burguesia nacional na revolução democrática e nacional .. 13

3.2. Caio Prado Júnior: burguesia subordinada e oportunista .......................................... 17

3.3. Celso Furtado: a burguesia dependente e subdesenvolvimento .................................. 23

3.4. Florestan Fernandes: burguesia dependente e a contrarrevolução permanente....... 28

4. Burguesia brasileira: dependência e negócios ...................................................................... 32

Capítulo 2: Burguesia brasileira e reversão neocolonial ................................................................. 39

1. Introdução ................................................................................................................................ 39

2. A crise do desenvolvimento brasileiro como tendência à reversão neocolonial ................. 40

3. Os anos 2000 e o neodesenvolvimentismo ............................................................................. 44

3.1. O neodesenvolvimentismo .............................................................................................. 45

3.2. Uma crítica à origem do crescimento nos anos 2000 .................................................... 48

3.3. Uma crítica à natureza do pensamento neodesenvolvimentista .................................. 52

4. Reversão neocolonial nos anos 2000 ...................................................................................... 55

Capítulo 3: Estudo de grupos industriais selecionados da burguesia brasileira ........................... 60

1. Introdução ................................................................................................................................ 60

2. Os maiores grupos econômicos no Brasil .............................................................................. 60

2.1. O conjunto dos maiores grupos econômicos no Brasil ................................................. 60

2.2. Os maiores grupos da burguesia brasileira na indústria ............................................. 63

2.3. Os grupos selecionados para a pesquisa ........................................................................ 65

3. Metodologia de pesquisa ......................................................................................................... 66

4. Síntese dos grupos selecionados ............................................................................................. 68

Page 5: Monte-cardoso_artur-2014-Burguesia Brasileira Nos Anos 2000 - Versao Final Para Banca

v

4.1. Cosan ................................................................................................................................ 68

4.2. Vale ................................................................................................................................... 77

4.3. Gerdau .............................................................................................................................. 84

4.4. JBS .................................................................................................................................... 95

5. Discussão ................................................................................................................................ 106

Considerações finais .......................................................................................................................... 112

Referências Bibliográficas ................................................................................................................ 114

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1

Introdução

Após uma geração inteira de profunda crise econômica e social – uma crise de

destino, diria Celso Furtado – o Brasil aparentemente encontrara novos rumos no início dos

anos 2000. Sob o comando da força política que polarizara a transição da ditadura para a

Nova República, o país voltou a ter algum crescimento econômico, a gerar empregos, ampliar

salários e reduzir a desigualdade, ainda que de forma tímida e insuficiente. A atração de

investimentos, o desempenho das exportações e a aparente busca por uma política externa

independente e solidária com o terceiro mundo e os “emergentes” pareciam levar o país a se

distanciar de sua história de submissão e apontar um futuro de protagonismo e soberania.

Criou-se um clima e uma expectativa de que as mudanças tivessem vindo de forma definitiva

e que apontassem para uma virada histórica. A palavra “desenvolvimento”, tão esquecida e

deturpada nas décadas anteriores, voltava à cena, carregada de otimismo e confiança. No final

da década de 2000, era corrente entre os políticos e intelectuais identificados com o governo a

especulação sobre um “neodesenvolvimentismo” em curso, projeto e realidade de um país que

crescia com distribuição de renda e soberania nacional1.

A ideia de que estava em curso um projeto neodesenvolvimentista no Brasil, ou

mesmo que ele ainda fosse projeto, mas um projeto inscrito nas novas possibilidades do país,

tinha diversas implicações para o pensamento e para as forças sociais e políticas

comprometidas com a solução dos problemas históricos do país. Os traços estruturais do

subdesenvolvimento e da dependência, a posição subordinada do país ao grande capital

internacional e um padrão social baseado na segregação, na desigualdade e na intolerância,

persistiram mesmo após muitos anos de industrialização, urbanização, crescimento acelerado

e modernização, sendo apenas reequacionados, repostos ou mitigados. Estaria esta dupla

articulação, estes dois pilares da sociedade brasileira, em modificação? Todo o pensamento

neodesenvolvimentista afirmava, em resposta, que não se tratava mais de um novo período de

crescimento com subordinação externa e exclusão social, mas de um período de crescimento

com soberania e com integração social. Ao mesmo tempo, questões fundamentais não se

resolviam em definitivo ou mesmo davam sinais de retroceder: não se executava a reforma

urbana, a reforma agrária e não se garantiam direitos sociais; não se resolvera a posição

subordinada da economia brasileira, a desindustrialização, a reprimarização da economia, a

1 Ver: Oliva (2012b), Sader e Garcia (2010),

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2

submissão do Estado ao pagamento da dívida em detrimento dos investimentos sociais, entre

outros2.

Para além das contradições do processo, um grande problema persistia em aberto:

se se tratava de um novo período desenvolvimentista, quem seria seu protagonista? Na

concepção clássica do desenvolvimentismo, anterior à ditadura militar, a resolução dos

problemas históricos passava pela constituição de um Estado nacional correspondente a uma

revolução democrática e nacional liderada pela burguesia nacional3. A burguesia nacional

seria a classe capitalista cujos interesses estratégicos no mercado nacional motivariam o

enfrentamento da submissão ao imperialismo e do atraso cuja marca era o latifúndio.

Obviamente que uma revolução de caráter democrático e nacional capaz de promover um

desenvolvimento no sentido mais forte da palavra – a capacidade de uma sociedade controlar

seu próprio destino, conciliando capitalismo, democracia e soberania4 – exigiam a

participação das classes populares. Mas enquanto se baseasse nos marcos de uma sociedade

capitalista, nenhum desenvolvimento com um grau relativo de autonomia seria possível sem

uma classe burguesa com base material para permiti-lo e um projeto político para conduzi-lo.

Ao questionamento sobre qual burguesia seria o alicerce do novo momento, o

neodesenvolvimentismo não apresentou resposta segura. Fixado em problemas concernentes à

execução da política econômica, o neodesenvolvimentismo pouco tratou acerca de problemas

estruturais, esquecidos por uma longa histórica de crise da teoria do desenvolvimento5.As

diferentes correntes do pensamento neodesenvolvimentista se preocuparam em contrapor

rentismo ao empreendedorismo produtivo, buscando a união da classes trabalhadoras em prol

do crescimento sob a ação do Estado na melhor tradição keynesiana6, mas qual burguesia? A

burguesia que prosperou aos pés da industrialização comandada pelas transnacionais7? A

burguesia que consolidou seu poder a partir de um delicado equilíbrio entre a negociação dos

termos de dependência externa e a superexploração do trabalho8? A burguesia que sobreviveu

e enriqueceu às custas do rentismo fundado sobre o endividamento público nos anos 19809? A

2 Cf. Sampaio Jr. (2012c). 3 Cf. Ianni (1984) e Sodré (1964). 4 Cf. Furtado (1981). 5 Cf. Sampaio Jr. (1999c; 2012b). 6 Cf. Monte-Cardoso (2013). 7 Cf. Furtado (1972). 8 Cf. Fernandes (1976). 9 Cf. Belluzo e Almeida (2002).

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burguesia que resolveu seu impasse frente à nova ordem mundial optando por ingressar de

maneira subalterna na globalização, abrindo mão do patrimônio nacional público e privado10?

Para além do grande debate que estava por ser feito, havia um problema: a incrível

falta de estudos que mostrassem concretamente as potencialidades da burguesia brasileira dos

anos 2000 e em especial os seus limites. Houve, sim, uma farta produção de trabalhos acerca

da burguesia brasileira que ascendeu à condição de capital com presença internacional, desde

aqueles mais apologéticos de um capital brasileiro superpotente até as visões críticas do que

seria um imperialismo brasileiro. Mas pouco se buscou para compreender de onde partem

estes capitais, qual sua lógica de acumulação, quais os nexos estabelecidos com os mercados

nacional e internacional, com o capital financeiro internacional, o Estado e as classes

trabalhadoras.

Esta dissertação tem como objetivo contribuir para o entendimento da natureza da

burguesia brasileira a partir de elementos empíricos sobre o funcionamento de grandes grupos

econômicos brasileiros nos anos 2000. Será feita uma análise qualitativa de quatro grande

empresas de controle brasileiro: a Cosan, originária do setor sucroalcooleiro, a Vale, do ramo

de mineração, a siderúrgica Gerdau e a JBS, do setor de frigoríficos. Esta análise tentará

delinear, a partir de dados públicos das empresas, quais foram o seu padrão de acumulação,

sua base tecnológica e financeira, sua participação nos mercados interno e externo, suas

vantagens e desvantagens competitivas, sua participação na cadeia produtiva. A partir da

pesquisa de cada grupo serão elaboradas sínteses que permitirão discutir se há algum padrão

desta burguesia e qual é ele.

O trabalho será fundamentado por autores da tradição da formação: Nelson

Werneck Sodré, Caio Prado Júnior, Celso Furtado e Florestan Fernandes. Pensamento

motivado pela busca pela compreensão dos processos históricos que bloqueiam a capacidade

da sociedade brasileira de conquistar uma autonomia relativa frente ao todo e se estruturar sua

economia em função das necessidades de uma sociedade integrada, a tradição da problemática

da formação se fundamenta no estudo da História brasileira e na busca das permanências dos

traços estruturais herdados do passado colonial e nunca superados: a dependência externa e a

segregação social interna11. As hipóteses mais gerais para interpretação da pesquisa dos

grupos serão retiradas das análises feitas por estes autores sobre a natureza da burguesia

brasileira. 10 Cf. Gonçalves (1999) e Biondi (1999). 11 Cf. Ianni (1992) e Sampaio Jr. (1999a, 1999b).

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4

Contudo, não seria possível extrapolar diretamente destes autores os elementos

que possam guiar a interpretação dos resultados obtidos. A distância temporal e a necessidade

de realizar análises fundamentadas na história exigem elaborações feitas em cima das

tendências em curso no século XXI, ou pelo menos sobre as manifestações das tendências de

longo prazo. Identificado com a problemática da formação e com o esforço de compreensão

de como as tendências da nova ordem mundial pós-Guerra Fria e a transnacionalização do

capital impactam as possibilidades da superação da dependência e do subdesenvolvimento,

tomaremos como base as reflexões que apontam para o risco de que o Brasil passe por um

verdadeiro processo de reversão neocolonial12. A hipótese elaborada para os anos 2000 é que

a nova ordem internacional tem impactado a capacidade de sociedades da periferia de se

defenderem das tendências antinacionais e antissociais do capital13. O resultado é o

aparecimento de fortes tendências a processos de reversão neocolonial, entendidas como o

bloqueio da capacidade das sociedades e do Estado nacional de colocarem a acumulação de

capital a serviço da integração nacional e de garantia de direitos e a promoção de políticas

sociais14. Ao reduzir drasticamente a autonomia relativa das burguesias locais, como a

burguesia brasileira, a transnacionalização do capital e a integração das sociedades periferias a

esta nova lógica global de acumulação condiciona estas burguesias a se tornarem “burguesias

dos negócios”, mais dependentes do capital internacional e altamente dependentes das

oportunidades de negócios abertas pela globalização, em especial o comércio exterior, a

especulação com ativos financeiros e a venda de patrimônio público e privado.

Esta dissertação está dividida em três capítulos e os anexos. No capítulo 1 será

feita uma revisão bibliográfica dos autores mencionados, precedida de uma pequena

apresentação da problemática da formação, paradigma de compreensão dos problemas da

sociedade brasileira que é usado neste trabalho. No capítulo 2, será mostrado como a nova

ordem mundial, marcada pela transnacionalização do capital e pelo fim da Guerra Fria,

compromete o destino das sociedades dependentes, em particular do Brasil. Será feita breve

apresentação do pensamento neodesenvolvimentista, representante máximo da visão de que o

Brasil passou por uma mudança histórica nos anos 2000, que será contraposta por leituras

12 A hipóteses de que o processo de liberalização compromete a formação econômica do Brasil foi precocemente levantada por Celso Furtado em livro “Brasil: a construção interrompida” (FURTADO, 1992). A reflexão de Plinio de Arruda Sampaio Jr. sobre o impacto da nova etapa de desenvolvimento capitalista sobre o Brasil desenvolve a ideia sobre os condicionantes e as consequências do processo de reversão neocolonial (SAMPAIO JR., 1999a). 13 Cf. Sampaio Jr. (1999b, 2007, 2011) e Hadler (2012). 14 Cf. Sampaio Jr. (1999b, 2012a).

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5

críticas aos fundamentos do ciclo de crescimento do período, bem como da natureza de um

pensamento desenvolvimentista. O capítulo é finalizado com uma discussão sobre a natureza

do processo de reversão neocolonial e a tendência à consolidação das burguesias dependentes

como “burguesia de negócios”. No capítulo 3, serão apresentados a seleção dos grupos

estudados, a metodologia da pesquisa, a síntese da pesquisa de cada grupo e uma discussão

final sobre os resultados. Por fim, serão apresentadas as considerações finais. Os Anexos A,

B, C e D correspondem aos relatórios de pesquisa dos grupos Cosan, Vale, Gerdau e JBS,

respectivamente. São estes anexos que deram base para a apresentação da síntese da pesquisa

no capítulo 3.

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Capítulo 1: Burguesia brasileira: dependência e negócios

1. Introdução

Este capítulo tem como objetivo delimitar um marco teórico de compreensão

sobre o papel da burguesia brasileira no desenvolvimento nacional. Serão reunidas reflexões

sobre quais são o raio de ação da burguesia brasileira e, dentro dele, as decisões estratégicas e

como isso influencia a dinâmica econômica brasileira para lançar hipóteses sobre qual pode

ser o espaço histórico desta classe no período estudado neste trabalho. Esta tarefa será

executada tendo como paradigma para a compreensão dos dilemas do desenvolvimento

brasileiro a problemática da formação e resgatando a contribuição de quatro dos grandes

pensadores desta linha, extraindo deles elementos essenciais para o entendimento da

burguesia brasileira.

A problemática da formação é o paradigma de uma tradição do pensamento

brasileiro que teve por base a necessidade da constituição de um Estado nacional como única

saída construtiva e como solução efetiva para os problemas históricos da sociedade brasileira.

Neste trabalho utilizaremos, especificamente, a leitura feita por Plinio de Arruda Sampaio Jr.

(SAMPAIO JR., 1999a; 1999b; 2012a) sobre o problema da formação15. Em síntese, trata-se

de compreender quais os fatores que bloqueiam a autonomização relativa da sociedade

brasileira frente à totalidade do mundo capitalista, que permitirá concluir a longa transição do

Brasil colônia de ontem para o Brasil nação de amanhã. Deste ponto de vista, a consolidação

do Brasil como nação exige a constituição de bases econômicas, sociais, políticas e culturais

que consigam colocar os meios e os fins do desenvolvimento a serviço da coletividade. Para

tanto, faz-se urgente o enfrentamento da dupla articulação: a dependência externa e a

segregação social interna – os dois nós que atam a sociedade brasileira ao passado, que

repõem seus dilemas no presente e que a ameaçam permanentemente de promover um

processo de reversão neocolonial, saída negativa deste impasse histórico16.

O ponto de vista da formação foi dos mais influentes do pensamento brasileiro e

mesmo latino-americano durante o período do século XX marcado pela industrialização por

15 Uma boa panorâmica da tradição da formação pode ser encontrada no trabalho de Octavio Ianni (1992). Alguns trabalhos paradigmáticos da tradição são: Prado Jr. (1942; 1966), Furtado (1959) e Fernandes (1976). 16 Para uma leitura sobre como a noção de reversão neocolonial aparece na tradição da formação, ver Sampaio Jr. (1999b).

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substituição de importações. Na América Latina, a grande escola representante deste

pensamento foi a Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL). Contudo, os

acontecimentos motivados na economia pelo aprofundamento do papel do capital

transnacional – e consequentemente dos vínculos de dependência – e na política pela rodada

de ditaduras militares inaugurada pelo Brasil em 1964 abriu espaço para uma revisão na

abordagem dos problemas do desenvolvimento, mobilizando uma abordagem que propunha

uma terceira via da conjugação da dependência externa com desenvolvimento17. À crise do

desenvolvimento, como vista pela ótica da formação, correspondeu uma crise da teoria do

desenvolvimento18, que por diferentes caminhos subestimou os alertas feitos aos limites do

desenvolvimento dependente e superestimou as possibilidades do capitalismo latino-

americano, em particular o brasileiro19. As décadas de crise econômica, social e política que

se seguiram aos anos 1970 e os processos acelerados de crise social, rural e urbana, fiscal e

externa, abertura, desnacionalização e privatização, entre outros processos, só deixam claro

que os problemas próprios do subdesenvolvimento e da dependência estão longe de ser

resolvidos.

O retorno a alguns dos pensadores da formação se faz necessário e urgente para

ajudar a lançar luz acerca de qual é o raio de ação do capitalismo brasileiro e quais podem ser

as escolhas das classes envolvidas nos conflitos que decidirão o futuro do país. Estudaremos

em particular as contribuições de Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Júnior, Celso Furtado e

Florestan Fernandes acerca dos problemas do país, suas possíveis soluções e em particular o

papel histórico cumprido pela burguesia brasileira neste processo20. Suas visões contribuirão

para montar o marco teórico necessário para buscar as explicações dos fenômenos que

encontramos na pesquisa empírica realizada no trabalho. A conclusão fundamental é que a

burguesia brasileira é uma classe cuja constituição histórica, suas bases objetivas e subjetivas,

a levam a ser dependente do capital internacional. Esta dependência, cujos termos variam de

acordo com os condicionantes de cada período histórico, é caracterizada do ponto de vista da

17 Para conhecer uma obra que sintetiza a inauguração desta nova abordagem, ver Cardoso e Faletto (1970). Para uma das principais referências dos desdobramentos desta abordagem no pensamento econômico brasileiro, ver as obras da escola do “Capitalismo Tardio”: Cardoso de Mello (1982), Tavares (1986), Lessa e Dain (1984). 18 Cf. Sampaio Jr. (1999c). 19 Para uma abordagem crítica de uma tradição distinta da formação que também superestimou as possibilidades do capitalismo brasileiro, ver Marini (1969, 1973a, 1973b, 1977a, 1977b). Para uma crítica às abordagens da dependência de Cardoso e Marini por uma ótica da formação, ver Hadler (2013). 20 Como já foi mencionado na introdução desta dissertação, por burguesia brasileira entendemos a classe capitalista local, o que não é idêntico a uma burguesia nacional, que é uma categoria de análise carregada de qualificações. Ver adiante o item sobre Sodré.

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burguesia, por uma estratégia rentista e especulativa de aproveitamento e geração de negócios

em cima dos dinamismos irradiados pelo imperialismo, utilizando da superexploração do

trabalho, dos recursos naturais e dos vínculos com o Estado. O problema é quando os

condicionantes externos se tornam desfavoráveis, tornando a economia nacional suscetível a

crises de reversão.

Este primeiro capítulo se divide em três seções além desta introdução. No item 2,

apresentaremos em linhas breves o que entendemos por problemática da formação, paradigma

que fundamenta a forma de compreender os problemas brasileiros de todo o trabalho. No item

3, serão apresentadas, em quatro subitens, as visões de Sodré, Prado Jr., Furtado e Fernandes.

No item 4 e último, será feita a reflexão que tentará extrair das contribuições apresentadas as

linhas mestras para interpretação das possibilidades e limites do papel da burguesia brasileira

no desenvolvimento do país.

2. A problemática da formação

A problemática da formação21 explica os dilemas do Brasil contemporâneo à luz

do processo – e dos bloqueios ao processo – de constituição de um Estado nacional capaz de

conciliar capitalismo, democracia e soberania. Sob esta ótica, a conclusão da transição do

Brasil colônia para o Brasil nação - uma formação social relativamente diferenciada do todo e

portadora de força própria e existência autônoma - emerge como necessidade histórica para a

resolução dos problemas crônicos que prendem o país ao círculo da dependência externa, da

desigualdade social, da instabilidade e do autoritarismo. O nó reside no fato de que a

constituição das bases da formação é permanentemente bloqueada pela dupla articulação que

polariza as sociedades dependentes: a condição de dependência econômica e política do

capital internacional e a segregação social. Diante disto, a revolução brasileira, que é a

conclusão deste processo histórico, exige uma reflexão teórica que explique os parâmetros de

funcionamento do Estado nacional e uma leitura histórica capaz de explicar os problemas do

presente à luz do passado. Com estes elementos é possível propor um programa de

transformações e sugerir o conjunto de forças comprometidas e capazes de levar a revolução

21 A “problemática da formação”, como está apresentada neste trabalho, deriva das interpretações de Caio Prado Jr., Florestan Fernandes e Celso Furtado sobre o Brasil, resgatadas na tese de Sampaio Jr. (1999a). Também está presente de forma sintética em dois trabalhos, um contemporâneo da tese (SAMPAIO JR., 1999b) e em sua versão mais recente (SAMPAIO JR., 2012a).

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brasileira até fim, evitando a formação inconclusa leve à outra saída histórica, regressiva: a

reversão neocolonial.

Fruto do amadurecimento da reflexão de pensadores brasileiros frente às

transformações pelas quais passa o Brasil no século XX, em especial a partir dos anos 1930, o

problema da formação da nação polarizou a consciência crítica e política nacional sobre a

natureza das contradições econômicas, sociais e culturais, suas origens na permanência de

traços do passado colonial e sobre a possibilidade desta sociedade controlar os meios e os fins

de seu destino22. As distintas visões, de matrizes diferentes, que se somaram nesta elaboração,

apontam para a necessidade de entender a especificidade da condição histórica brasileira,

entendem ser necessária a integração do conjunto da sociedade às modernas conquistas

materiais e culturais e concluem serem necessárias transformações de fundo, estruturais, para

atingir tais objetivos23.

Em linhas gerais, a questão é a incapacidade de o Brasil se autonomizar frente ao

todo, concluir a transição da colônia à nação24 e romper a dupla articulação que condiciona a

perpetuação do subdesenvolvimento: as relações subordinadas frente ao capital internacional

e a segregação social. Sampaio Jr. (2012a) resume assim o mecanismo de perpetuação da

condição transitória do Brasil:

A questão central reside na continuidade de relações de produção que comprometem a instauração das condições necessárias, objetivas e subjetivas, para a internalização do circuito de valorização do capital. Em última instância, o problema fica reduzido

22 "O pensamento brasileiro polariza-se em torno do problema central de sua formação econômica e social: a necessidade de consolidar as condições objetivas e subjetivas que permitam à sociedade controlar o seu destino" (SAMPAIO JR., 2012a: p. 30). “Desde a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República, mas em escala crescente ao longo das décadas posteriores, muito estavam preocupados com a questão nacional. Interessados em recriar o país à altura do século XX. Queriam compreender quais seriam as condições e possibilidades de progresso, industrialização, urbanização, modernização, europeização, americanização, civilização do Brasil. Apaixonados ou indiferentes, aflitos ou irônicos, perguntavam-se sobre os dilemas básicos da sociedade nacional, de uma nação que se buscava atônita depois de séculos de escravidão: agrarismo e industrialização; cidade, campo e sertão; preguiça, luxúria e trabalho; mestiçagem, arianismo e democracia racial; raça, povo e nação; colonialismo e nacionalismo; democracia e autoritarismo” (IANNI, 1992: p. 26). 23 "Os que refletiram sobre os desafios da formação a partir de uma perspectiva democrática, de um modo ou de outro, vincularam a construção do Estado nacional à integração do conjunto da população, em condições de relativa igualdade, aos avanços técnicos e aos valores humanistas da era moderna. Acima de suas diferenças teóricas, históricas e ideológicas, um denominador comum unifica esta visão: a idéia de que os problemas do país não serão resolvidos sem transformações socioculturais profundas, que criem as bases de uma sociedade eqüitativa e autoreferida" (SAMPAIO JR., 1999b: p. 416). E ainda: "O pensamento sobre a formação é organizado pela contraposição de dois estados latentes na sociedade dependente: a condição de barbárie que se deseja evitar e o projeto civilizatório que se pretende alcançar. O desafio das sociedades que lutam pela construção nacional materializa-se na necessidade de superar o presente sombrio de um povo que não consegue ultrapassar a condição de subnação e de aproximar-se de uma situação paradigmática, associada ao funcionamento ideal do Estado nacional” (SAMPAIO JR., 1999b: p. 415). 24 Para a leitura do sentido da História do Brasil como processo de transição da colônia para a nação, ver Prado Jr. (1942).

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à impossibilidade de consolidar a burguesia e o proletariado como sujeitos históricos plenamente constituídos. O controle dos elos estratégicos da economia pelo capital internacional e a presença de uma imensa superpopulação relativa em estado latente e intermitente ou que simplesmente se encontra em estado de pauperismo geram um vazio econômico e social que impede a internalização do circuito de valorização do capital. Nessas condições, a formação do proletariado e da burguesia como sujeitos históricos capazes de lutar pelos seus interesses estratégicos como classe social é solapada pela reprodução de um padrão de relação entre as classes sociais marcado pela segregação social e pela extraordinária debilidade econômica e política da burguesia em relação às suas congêneres do capitalismo avançado. A impotência da burguesia para enfrentar o imperialismo e a cristalização de um regime de classes que separa, em dois mundos antagônicos, as classes proprietárias e não proprietárias levam o padrão de concorrência econômica e de luta de classes a reproduzir as condições objetivas e subjetivas que solapam a formação da economia e da sociedade nacional. As especificidades do padrão de acumulação de capital e de dominação de classe daí decorrentes imprimem ao desenvolvimento capitalista características próprias que comprometem seu caráter civilizatório (p. 32).

A saída histórica possível e necessária é a revolução brasileira, conclusão do

processo de formação de um Estado nacional. Nesta visão, o desenvolvimento é

intrinsecamente ligado ao Estado nacional, pois este é o instrumento por excelência que as

sociedades possuem para se defender das tendências antissociais e disruptivas do capitalismo

na etapa imperialista25. No entanto, a consolidação do Estado nacional não é um objetivo

tomado a priori, nem é uma fatalidade histórica. Em sociedades cujos problemas estruturais e

os conflitos que os repõem – os dilemas da formação –, a nação emerge como necessidade

histórica para que possam se defender das tendências desagregadoras vindas de fora e de

dentro26.

O fundamental, desta forma, é compreender quais são os parâmetros que norteiam

teoricamente a constituição de um Estado nacional27, entendido como uma formação social

relativamente diferenciada, com uma autonomia perante a totalidade e portadora de força

própria e existência autônoma. Uma referência para esta questão é Furtado (1981) que

explica o desenvolvimento como um processo de adequação entre meios e fins de uma

25 “Nesta abordagem, o espaço nacional não passa de um instrumento para proteger a coletividade dos efeitos destrutivos das transformações que se irradiam desde o centro do sistema capitalista mundial e para planejar a internalização das estruturas e dos dinamismos da civilização ocidental de modo condizente tanto com o aumento progressivo do grau de autonomia e criatividade da sociedade, quanto com a elevação da riqueza e do bem-estar da totalidade do povo. Pensada como um centro de poder que condensa a vontade política da coletividade, a forma nacional é aqui - única e exclusivamente - um meio das sociedades que vivem sobredeterminadas pelo campo de força do sistema capitalista mundial controlarem o seu tempo histórico” (SAMPAIO JR., 1999b: p. 417). 26 “Enfim, a nação surge como produto de uma necessidade histórica. Sua formação é o resultado das forças sociais que se mobilizam para enfrentar os problemas que decorrem da falta de instrumentos para impor parâmetros sociais ao desenvolvimento capitalista. Não se trata de um destino manifesto determinado metafisicamente. O processo de formação é um início, o marco zero de um ciclo histórico, que aponta para um devenir possível, que pode ou não se realizar” (SAMPAIO JR., 2012: p. 33). 27 Para uma elaboração mais completa sobre esses parâmetros, consultar o capítulo 2 de Sampaio Jr. (1999a).

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sociedade28. A adequação passa fundamentalmente pela correspondência entre estruturas

econômicas e estruturas sociais. As estruturas econômicas são caracterizadas pelo processo de

inovação, baseado na constituição de um sistema econômico nacional integrado e fundado na

industrialização (incorporação de progresso técnico) e na concorrência. As estruturas sociais

são caracterizadas pelo equilíbrio entre capital e trabalho que dê condições objetivas e

subjetivas (organização sindical e política) de os trabalhadores imporem a difusão dos ganhos

de produtividade. O mercado interno é o início e o fim do sistema econômico nacional e é o

que permite a reprodução ampliada do capital e a força econômica necessária para a ascensão

de uma burguesia nacional. No centro do processo existem centos internos de decisão,

submetidos à vontade coletiva e de posse de instrumentos para fazer política econômica.

Amparada por uma força econômica – técnica e financeira – de bases nacionais que a

permitam enfrentar a concorrência externa e suportada por um Estado com capacidade de

executar política industrial, a burguesia nacional se torna protagonista do desenvolvimento

capitalista. Neste tipo ideal construído por Furtado, há condições de conciliar o progresso

material do capitalismo com a integração nacional e a soberania.

Do ponto de vista histórico, o problema é o de identificar os fatores que

bloqueiam a formação do Estado nacional, a sua origem e a maneira de superá-los. Da

independência à abolição, da imigração à industrialização, o Brasil acumulou passos, mas não

atingiu a condição de nação29. O país não superou aquilo que de essencial herdou do passado

colonial, que repõe permanentemente sua condição transitória e que, por isso mesmo, torna

não importante o estudo da História para os problemas do desenvolvimento30: a dependência

externa e a segregação interna. O problema se torna mais grave quando estes dois fatores – a

“dupla articulação” de Florestan Fernandes – se cristalizaram como base do capitalismo

28 Furtado (1980) mostra o desenvolvimento como adequação entre racionalidade substantiva e racionalidade instrumental (prefácio). Seu modelo de desenvolvimento, a diáletica inovação-difusão, é mostrada no capítulo 5. 29 “O Brasil ainda não é propriamente uma nação. Pode ser um Estado nacional, no sentido de um aparelho estatal organizado, abrangente e forte, que acomoda, controla ou dinamiza tanto estados e regiões como grupos raciais e classes sociais. Mas as desigualdades entre as unidades administrativas e os segmentos sociais, que compõem a sociedade, são de tal monta que seria difícil dizer que o todo é uma expressão razoável das partes – se admitirmos que o todo pode ser uma expressão na qual as partes também se realizam e desenvolvem” (IANNI, 1992, p. 177). 30 No caso brasileiro, e em favor da preferência pela abordagem historiográfica da questão do desenvolvimento, há que acrescentar o pequeno recuo no tempo de nossa história e a intensidade com que por isso um passado ainda tão recente pesa na situação atual cuja análise e interpretação não podem assim prescindir de suas premissas históricas. (…) o Brasil de hoje, apesar de tudo de novo e propriamente contemporâneo que apresenta – inclusive estas suas formas institucionais modernas, mas ainda tão rudimentares quando vistas em profundidade – ainda se acha intimamente entrelaçado com o seu passado. E não pode por isso ser entendido senão na perspectiva e à luz desse passado (PRADO JR., 1972, p. 18).

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brasileiro, constituído como capitalismo dependente, dando à revolução burguesa no Brasil

um caráter de contrarrevolução permanente a partir de 196431. Embora a estabilidade política

adquirida pela dominação burguesa, dados condicionantes muito especiais do momento, tenha

permitido abafar as contradições que mobilizam a formação, ela não foi capaz de resolvê-las.

As tendências à saída destrutiva para o impasse, a reversão neocolonial, voltam com força

redobrada na medida em que muda o caráter das estratégias do grande capital internacional

que possibilitaram a industrialização brasileira32 e o contexto político de Guerra Fria que

tornou a burguesia brasileira uma aliada necessária33.

A longa crise pela qual passa o Brasil desde os anos 1980 recoloca na agenda

brasileira a compreensão de como o impasse da formação se manifesta hoje, como as

tendências de reversão neocolonial solapam as bases objetivas e subjetivas constituídas para o

Estado dependente e como condiciona a atuação das classes. Estes são os desafios do

pensamento crítico comprometido com os dilemas da formação e é dentro deste quadro que

este trabalho busca dar uma contribuição34.

3. A burguesia brasileira sob a ótica da formação

O objetivo deste trabalho é compreender que papel tem cumprido a burguesia

brasileira no desenvolvimento brasileiro atual, em particular a sua base material e sua

estratégia de acumulação. Para isso, buscamos resgatar que papel esta burguesia brasileira,

entendida como a burguesia local e não como uma burguesia nacional35, cumpriu ao longo do

nosso desenvolvimento, em particular no meio século de 1930 a 1980, período que animou

debates sobre os rumos do país. Em particular, desejamos entender como esta burguesia

participou do processo de formação, de modo a jogar luz no que pode ser seu comportamento

atual, considerados os determinantes – profundos – legados do passado.

Nossa referência para uma burguesia comprometida com o desenvolvimento

nacional é a do modelo apresentado no item anterior. Esta burguesia tem como principal

31 Esta leitura está desenvolvida em Fernandes (1973), Fernandes (1974) e particularmente Fernandes (1976). 32 Ver Furtado (1987; 1992). Para uma visão global de Furtado sobre o tema, ver Hadler (2012). 33 Ver Sampaio Jr. (1999b: pp. 434-436). 34 Ver Furtado (1992) e, na mesma perspectiva, Sampaio Jr. (1999). 35 O termo “burguesia nacional” é uma categoria que carrega uma profunda caracterização sobre o papel, as possibilidades e o destino da burguesia brasileira. A polêmica a respeito dela pode ser sintetizada no confronto entre as posições de Nelson Werneck Sodré e Caio Prado Jr., como será mostrado adiante. Por isso utilizaremos o termo “burguesia brasileira”.

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caractere dirigir um sistema econômico nacional, uma estrutura integrada, baseada na

indústria e cujo mercado estratégico é o interno. É a interação desta burguesia com o mercado

interno – suposto baseado no equilíbrio da correlação de forças entre capital e trabalho – que

lhe impulsiona a inovar (ampliar a produtividade) e o que a força à difusão (generalizando e

socializando os ganhos de produtividade). Orquestrado por um Estado nacional capaz de fazer

política econômica e industrial, com poder de decisão, o sistema econômico dá base

financeira e técnica para esta burguesia enfrentar a concorrência internacional. O modelo

serve como uma referência teórica para confrontar os requisitos exigidos por uma burguesia

nacional, comprometida com o desenvolvimento, com a burguesia brasileira.

Para extrair os traços fundamentais da burguesia brasileira, convocaremos o

pensamento de quatro grandes pensadores comprometidos com a formação. Nelson Werneck

Sodré sintetiza o pensamento do PCB e de uma parcela dos nacionalistas comprometidos com

a revolução brasileira nos marcos nacionais e democráticos, liderados por uma burguesia

nacional. Na crítica à tese anterior, Caio Prado Júnior busca no sentido da história a chave

para os dilemas da revolução brasileira e conclui que a burguesia brasileira não é nacional,

mas subordinada, associada e oportunista frente aos negócios do grande capital internacional.

De uma matriz de pensamento reformista, Celso Furtado explica como uma burguesia cultural

e economicamente dependente das empresas transnacionais subordina a industrialização à

modernização dos padrões de consumo e é incapaz de promover a superação do

subdesenvolvimento. Por fim, Florestan Fernandes, teórico da revolução burguesa no Brasil,

explica como a cristalização da dupla articulação é necessária à perpetuação da dominação da

burguesia dependente, que é impotente para fora, mas onipotente para dentro, capaz de

manejar a superexploração do trabalho, dos recursos naturais e o Estado em benefício próprio.

3.1. Nelson Werneck Sodré: burguesia nacional na revolução democrática e nacional

Nelson Werneck Sodré36 foi um importante teórico da revolução brasileira,

contribuindo decisivamente na elaboração da via da revolução democrática e nacional.

Nesta concepção, a revolução passaria por uma etapa dirigida pela burguesia nacional e

36 Nelson Werneck Sodré (1911-1999) foi militar, historiador e escritor. Chegou a ser general do Exército, saindo reformado em 1961. Integrou o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) desde seu início até sua extinção, em 1964, com o golpe militar (TOLEDO, 1998). Sua obra exerceu grande influência teórica sobre o Partido Comunista Brasileiro (PCB).

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apoiada pelas classes populares contra o latifúndio e o imperialismo, antes de atingir o

socialismo. Para explicá-la, é preciso remontar às diretrizes fundantes do Partido Comunista

do Brasil (PCB), partido sobre o qual o autor exerceu relevante influência e cujo programa ele

assimilou e desenvolveu em sua obra.

A Internacional Comunista (ou III Internacional), organização da qual o PCB era

representante no Brasil, formulou em seu VI Congresso em 1928 uma leitura comum para o

conjunto dos países de baixo desenvolvimento econômico:

Sob o influxo do BSA/IC [Birô Sul-Americano da Internacional Comunista] e com a disponibilidade dos comunistas brasileiros conformou-se então uma genérica visão que não discernia a particularidade das formações sociais desse Ocidente subalterno que é a América meridional e que, pelo contrário, observava no Brasil fortes tinturas “orientais”, enfatizando-se a força revolucionária propulsora do campesinato: era como se o Brasil fosse a China do Ocidente (DEL ROIO, 2000: p. 87).

Neste quadro, antes de chegar à revolução socialista, tais países teriam que passar

por uma etapa necessária de afirmação do desenvolvimento capitalista nacional.

O caráter da revolução brasileira era definido como democrático-burguês, mas

dentro de um país ‘semicolonial’. Sua particularidade se compunha pela questão agrária (luta

contra o feudalismo e a grande propriedade territorial) e pelo antiimperialismo (luta pela

independência nacional) (DEL ROIO, 2000: p. 87).

A “revolução democrático burguesa de conteúdo antifeudal e antiimperialista”

conduziria a um "regime democrático popular”, etapa anterior à revolução socialista

propriamente dita (IANNI, 1984: p. 47). A luta pelo desenvolvimento e pelo domínio de

forças produtivas e relações de produção capitalistas capaz de inaugurar esse estágio histórico

– conclusão da revolução brasileira – sintetiza o problema brasileiros para o PCB e para

Nelson Werneck Sodré37.

A dificuldade dessa revolução, afirmava Sodré, é que se passaria em um país de

origem colonial e já sob a fase imperialista do capitalismo. Em “Introdução à Revolução

Brasileira” (SODRÉ, 1967), faz uma avaliação otimista da formação nacional após décadas de

transformações econômicas, dentre as quais menciona: a ampliação de novas técnicas no

transporte, na agricultura, na indústria etc., embora com difusão desigual “por força da

estrutura colonial a que estávamos subordinados”; as novas fontes de energia, como o carvão

mineral e a energia hidroelétrica, embora dependente de importações do primeiro e da

exploração do segundo por capitais estrangeiros; as alterações no comércio exterior, mais

37 Embora Sodré fosse um destacado elaborador teórico do programa pecebista, sua obra não é idêntica à tradição da terceira internacional ou dos documentos políticos do PCB (DEL ROIO, 2000: pp. 100-102).

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focadas as importação de máquinas e insumos industriais do que nas exportações, ainda

concentrada no café e em outros gêneros primários; e, enfim, a industrialização, cujo

impressionante crescimento fez seu produto superar o do setor agrícola, com correspondente

ampliação do mercado interno (SODRÉ, 1967: p. 103-5). Persistiam, entretanto, diversos

desequilíbrios estruturais que ameaçavam impedir a revolução burguesa, como a existência:

(...) de massa camponesa numericamente preponderante e principal como produtora de bens econômicos; de numerosa pequena burguesia, com função política destacada; de proletariado pouco numeroso mas crescente, com formas de organização em desenvolvimento mas ainda fracas; de burguesia recente, ascensional, com amplas perspectivas nacionais. Externamente (...) de um lado, o imperialismo (...) particularmente , em nossos dias, dos Estados Unidos; e, de outro lado, de um país, hoje de alguns países onde se operou a construção do socialismo (SODRÉ, 1967: p. 245)

No final dos anos 1950, uma série de pontos de execução fundamental para a

revolução era indicada: desenvolvimento técnico e das fontes energéticas; industrialização e

ampliação do setor estatal na economia para ampliar o mercado interno; mudança no padrão

do comércio exterior e a luta contra o imperialismo (SODRÉ, 1967: p. 112). Dez anos depois,

o autor afirmava que o significado da luta pelas reformas de base seria o de “(...) liquidar a

dominação imperialista em nossa economia, liquidar o poder dos latifundiários como classe,

[levar] à ampliação da base democrática do poder” (SODRÉ, 1967: p. 231). Em sua opinião, a

revolução democrática e nacional ainda era possível, justa e necessária.

Para uma realização acertada dessas tarefas, era necessária uma análise detida da

luta de classes no país que, segundo o PCB, se polarizava em duas frentes: de um lado, o

imperialismo, apoiado pelo latifúndio e na parcela dependente da burguesia brasileira; do

outro, o polo da revolução, composto pela burguesia nacional e pelas classes populares

(proletariado e campesinato); no período do pós-guerra, tal análise incorporou o

fortalecimento de um setor estatal em conflito com o imperialismo e articulado com a

burguesia nacional (IANNI, 1984: pp. 48-9).

Nessa interpretação, é central o papel da burguesia nacional, entendida como “(...)

a fração da burguesia objetivamente interessada na exploração do mercado nacional e,

conseqüentemente, na eliminação do domínio dos monopólios imperialistas sobre esse

mercado” (SODRÉ, 1964: p. 368). A ela, e em especial à sua fração industrial, cabe o papel

de vanguarda da revolução com uma dupla tarefa de luta, anti-imperialista e anti-latifundiária.

Aprofundando essa análise em “História da Burguesia Brasileira” (SODRÉ,

1964), Sodré esclarece que no tocante ao latifúndio, a burguesia passara da etapa de

coexistência à de antagonismo: liquidar a primeira já era uma necessidade para a segunda. O

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latifúndio brasileiro fundava-se em relações de produção pré-capitalistas, feudais, opostas à

constituição de um mercado interno moderno. Durante largo período, essa classe esteve no

poder, contrastando sua pujança econômica com as debilidades da economia para o mercado

interno e manejando sua influência sobre o Estado para defender-se via “socialização dos

prejuízos”. E, mesmo considerando concluída a ascensão da burguesia à classe dominante, o

latifúndio manteve impressionante poder baseado na associação de interesses com o

imperialismo, uma força que não se poderia subestimar ou desconhecer:

Os vínculos entre latifúndio e o imperialismo, assim, são muito fortes, e a burguesia, em sua contradição com o monopólio da terra e com o que ele representa como estreitamento de mercado e obstáculo à generalização de relações capitalistas, é obrigado a considerar que atrás do latifúndio está o imperialismo e que, portanto, o latifúndio, débil quando encarado isoladamente, tem poderes que a razão não pode desconhecer (SODRÉ, 1964: p. 350).

Portanto, para ampliar o mercado interno, acabando com a servidão via reforma

agrária e garantindo o apoio camponês, a burguesia deveria enfrentar o latifúndio. E isso ela

não poderia fazer sem enfrentar, também, o imperialismo.

Dessa forma, o imperialismo aparece como principal inimigo da burguesia

brasileira na revolução. No primeiro momento, ele buscou controlar o comércio exterior e as

finanças, as fontes de matéria-prima e alguns setores de transporte, sufocando a burguesia

nascente e reforçando o caráter colonial da economia. Mas com a mudança da composição do

comércio internacional, o imperialismo altera sua estratégia para disputar também o mercado

interno, via investimentos diretos, em especial na indústria (segunda metade dos anos 1950).

E é nesta nova fase que o imperialismo aprofunda a especialização da economia nacional, se

beneficia de altos lucros, subsídios e incentivos estatais e da remessa de vultosos lucros para

os países de origem. Para isso, ele se apoia no latifúndio, na burguesia mercantil (setor sócio

dos negócios imperialistas) e na parcela associada ou dependente da burguesia industrial. Da

aliança, está excluída a outra parcela, nacional, da burguesia industrial.

Porém, o problema reside no fato de a burguesia estar no poder, mas não executar

sua revolução até o final. Como diz Sodré (1964: p 364): “As suas vacilações e concessões

decorrem de sua debilidade face ao imperialismo, e não de seus interesses, que são contrários

aos do imperialismo”. Diz ainda:

Seguir uma política econômica e financeira de conciliação com o Imperialismo, descarregando o fardo na classe trabalhadora e nas camadas médias é, para a burguesia, decorrência da correlação de forças. Na medida em que as forças populares resistirem a uma solução desse tipo, a sua única saída consistirá em enfrentar o Imperialismo (SODRÉ, 1964: p. 365).

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A chave para o sucesso da revolução passaria, então, pela relação estabelecida

entre burguesia e proletariado. Para o proletariado, não é possível subestimar a força das

posições anti-imperialistas e antifeudais e superestimar o potencial revolucionário da

burguesia. Aliado ao campesinato (ainda atrasado, mas em processo de ascensão política), o

proletariado divergia da burguesia por estar mais interessado no caráter democrático da

revolução. Mas Sodré sustentava que as forças populares poderiam e deveriam apoiar a

burguesia nacional para superar suas vacilações e a ideologia anticomunista propagada pelo

imperialismo, levando até o fim a revolução.

Estava em jogo o futuro da revolução democrática e nacional e a própria

existência do Brasil enquanto nação. Ele conclui este texto com um desafio: “(...) não é o

proletariado, nem é o campesinato, que está com a sua sorte de classes em jogo. É a burguesia

que está decidindo seu próprio destino”. (SODRÉ, 1964: p. 379).

3.2. Caio Prado Júnior: burguesia subordinada e oportunista

A obra de Caio Prado Júnior38 (1907-1990) é outro marco no debate sobre a

revolução brasileira, com destaque à compreensão das origens e dos problemas de formação

do Brasil contemporâneo. Mesmo sendo militante do PCB, ele dedicou-se a criticar as

concepções tradicionais do partido: Caio Prado negou por completo as teses de “restos

feudais” no Brasil, a estratégia de apoio e a própria existência da suposta burguesia nacional.

O livro A Revolução Brasileira (1966), é o acerto de contas com essas concepções e a base

para apresentação de sua ideia de revolução.

Caio Prado dedicou parte de sua obra para a crítica aos dogmatismos

metodológicos presentes nas teorias do desenvolvimento econômico (PRADO JR., 1972) e

nos programas do marxismo e da esquerda brasileira, em especial do PCB (PRADO JR.,

1966). O dogmatismo, afirma o autor, foi responsável pela transplantação mecânica de

análises baseadas em outras realidades históricas39, originando concepções e programas

equivocados. Contra isso, o autor faz um esforço de retorno à história e sintetiza seu método

como sendo o de: “(...) pesquisar na evolução histórica brasileira e na formação econômica e

38 Caio Prado Júnior (1907-1990) foi professor de direito, escreveu sobre economia, filosofia e história, terreno onde mais se destacou intelectualmente. Militou e foi deputado estadual em São Paulo pelo PCB em 1947-48. 39 PRADO (1966: p. 36) mostra que foi assumido de maneira geral que o conjunto de países coloniais, semicoloniais ou dependentes se aproximaria da formação social da China e desse movimento foram desdobrados programas e estratégias para partidos comunistas de diversos países do “terceiro mundo”.

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social do país, algumas premissas essenciais da problemática atual” (PRADO JR., 1972: p.

17). Isso por que acreditava que o Brasil “(...) ainda se acha intimamente entrelaçado com o

seu passado. E não pode por isso ser entendido senão na perspectiva e à luz desse passado”

(Idem: p. 18).

Em Caio Prado Jr., a síntese da história do Brasil está no longo e profundo

movimento de superação do passado colonial para a constituição de uma nação, que o leva a

compreender o problema do “sentido da colonização”, exposto em Formação do Brasil

Contemporâneo (PRADO JR., 1942). Para ele, o Brasil esteve inscrito desde o seu início nos

processos de expansão do capital mercantil europeu e de constituição do capitalismo como

modo de produção dominante mundial40. Como a economia colonial foi constituída em

função dos interesses da metrópole, com base na plantation (produção de gêneros primários

para exportação em latifúndios monocultores) com trabalho escravo e técnicas rudimentares e

predatórias, o país sempre significou um grande negócio para a metrópole (e posteriormente

para o imperialismo).

No processo de superação do passado colonial, se destacam quatro marcos

históricos no século XIX. O primeiro é a independência política em 1822, que a despeito da

manutenção da dependência externa sob a tutela inglesa foi o primeiro passo na constituição

de um Estado nacional (com centralização política, constituição de finanças públicas etc.).

Segundo, o fim do tráfico de trabalhadores africanos em 1850, diretamente ligado aos outros

dois aspectos: a imigração de trabalhadores europeus a partir de 1875, aproximadamente, e a

abolição do trabalho escravo em 1888. Do ponto de vista das forças produtivas, destaca-se seu

largo desenvolvimento, particularmente a produção de café. Contudo, a ampliação súbita do

mercado interno escancarou as fragilidades da economia de tipo colonial, incapaz de suprir

mesmo os gêneros essenciais a sua população e fundada em baixíssimos patamares do custo

de reprodução da mão-de-obra. Ainda sim, frisa Caio Prado, o período foi marcado pela

integração de uma gigantesca massa de trabalhadores, outrora apenas força física explorada,

no mercado interno e conclui: “Superava-se, assim, definitivamente, a natureza e a estrutura

colonial da sociedade brasileira, abrindo caminho para a sua completa integração nacional”

(PRADO JR., 1966: p. 85).

Todavia, havia dois problemas em aberto. O primeiro dizia respeito ao caráter

estruturalmente colonial da economia brasileira, primitivo e organizado para exportar gêneros

40 O que não é igual a afirmar, como muitos leitores de Caio Prado o fazem incorretamente, que o autor considerasse o Brasil capitalista desde a colônia.

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primários, contrastando com as necessidades dos trabalhadores e até as da elite, atendidas

somente por importações. A despeito do processo de diferenciação produtiva e

industrialização que ocorrem desde fins do século XIX e em especial a partir dos anos 1930,

permanecem severos traços que repõem em novas bases o padrão produtivo controlado desde

fora e em função dos interesses externos41. Considerada por Prado Jr. um processo positivo

dentro da formação até meados do século XX, a industrialização no pós-guerra passa a ser

encarada como vetor da renovação da vulnerabilidade externa e da desintegração nacional

(SAMPAIO JR., 1999b: pp. 420-421). Os problemas residem no caráter desta industrialização

por substituição de importações, voltada para um mercado restrito à elite, pelo controle dos

seus elos estratégicos pelos trustes internacionais e, corolário do dois primeiros pontos, o

reforço do dualismo entre um setor vinculado ao mercado externo e outro ao interno. A

indústria controlada pelos trustes precisa de setores exportadores para gerar superávit

comercial e dele extrair a moeda internacional que remunerará os investimentos internacionais

– daí o vínculo estratégico entre investimentos externos e o padrão produtivo de tipo colonial,

baseado em gêneros primários, latifúndio, trabalho barato, recursos naturais e exportações:

Observamos aqui muito bem a ligação do imperialismo com o nosso sistema colônia, fundado na exportação de produtos primários, pois é dessa exportação que provém os recursos com que o imperialismo conta para realizar os lucros que são a razão de ser de sua existência. Considerada do ponto de vista geral, do imperialismo, a economia brasileira se engrena no sistema dele como fornecedor de produtos primários cuja venda nos mercados internacionais proporciona os lucros dos trustes que dominam aquele sistema. Todo funcionamento da economia brasileira, isto é, as atividades econômicas do país e suas perspectivas futuras, se subordinam assim, em última instância, ao processo comercial em que os trustes ocupam hoje o centro. Embora numa forma mais complexa, o sistema colonial brasileiro continua em essência o mesmo do passado, isto é, uma organização fundada na produção de matérias-primas e gêneros alimentares demandados nos mercados internacionais. É com essa produção e exportação que fundamentalmente se mantém a vida do país, pois é com a receita daí proveniente que se pagam as importações, essenciais à nossa substância, e os dispendiosos serviços dos bem remunerados trustes imperialistas aqui instalados e com que se pretende contar para a industrialização e desenvolvimento econômico. (PRADO JR., 1966: p 89).

O segundo ponto era a reminiscência do sistema colonial nas relações de trabalho

e no estatuto do trabalhador rural. A questão agrária para Prado Jr. (1966: pp. 100-101) residia

no fato de que os baixos salários dos trabalhadores rurais (praticamente desprovidos de

41 “A diversificação das atividades produtivas e a industrialização – sobretudo esta última, com os efeitos e estímulos que comporta e que o Brasil agrário do passado desconhecia inteiramente – trarão grandes modificações da economia brasileira, e representam sem dúvida um passo considerável no sentido da superação do velho sistema de colônia produtora de gêneros de exportação. Mas doutro lado, reforça de certo modo esse sistema, e o renova sobre outras bases que, nem por serem diferentes das antigas, livram a economia brasileira das contradições que embaraçam o seu desenvolvimento e sua definitiva libertação (PRADO JR., 1966: p. 88).

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direitos e condições de reivindicá-los) equivaliam a um custo de vida correspondentemente

baixo, denominador comum de interesses do imperialismo e da burguesia.

E é no ponto da questão agrária que o autor passa à crítica aberta das concepções

pecebistas sobre o “feudalismo” no Brasil:

O que existe e tem servido de exemplificação e comprovação do ‘feudalismo’ brasileiro são remanescentes das relações escravistas, o que é bem diferente, tanto no que respeita à natureza institucional dessas relações, como, e mais ainda, no que se refere às conseqüências de ordem econômica, social e política daí decorrentes (PRADO JR., 1966: p. 104).

Ele esclarece exaustivamente que as relações de produção no campo eram

majoritariamente capitalistas, organizadas por empresas comerciais e com assalariamento, e

que as relações não-capitalistas (como o colonato, a parceria e a meação) nada tinham em

comum com a servidão feudal. O primitivismo das forças produtivas no campo se explicava

pela insuficiência financeira, pelas deficiências do aparelhamento comercial e pelo baixo

nível cultural dos empresários e o patamar reduzido de consciência de classe do trabalhador

rural etc. (PRADO JR., 1966: pp. 107-108).

O latifúndio (grandes proprietários, fazendeiros, etc.) seria na verdade uma

“legítima burguesia agrária” (PRADO JR., 1966: p. 108), com negócios no campo ou outras

atividades quaisquer. E, diferentemente do que afirmava a teoria equivocada, não havia

qualquer prova de inclinação específica ao imperialismo; pelo contrário, havia até espaços de

conflitos, como os dos cafeicultores com as firmas comerciais internacionais, ou dos

pecuaristas com os frigoríficos etc. (IDEM: p. 110-111).

Quanto ao caráter da burguesia brasileira, outro ponto central da tese pecebista,

Caio Prado tece novamente uma crítica severa. Para ele, a burguesia brasileira, heterogênea

nas origens, era homogênea nos interesses, nos negócios, e na maneira de conduzi-los. No

Brasil, não houve problemas com a existência de estruturas econômicas e sociais prévias ao

capitalismo ou mesmo conflitos étnicos e sociais que o atrapalhassem; o Brasil já nasce como

uma colônia, nos marcos dos negócios mercantis. Desta forma, a burguesia ascendeu de forma

rápida e relativamente coesa, inclusive no setor agrário (PRADO JR., 1966: pp. 115-6).

No que diz respeito à sua relação com o imperialismo, PRADO JR. (pp. 117-118)

afirma que a entrada do capital estrangeiro não dividiu a burguesia em antagonismos, mas

abriu espaços e oportunidades de negócios para praticamente toda a classe dentro do país.

Aliás, todos os grandes negócios no Brasil foram impulsionados pelo imperialismo (que

também trouxe técnicas e valores “modernos”), até o último estágio da industrialização

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pesada e complexa. Em sua concepção, portanto, a despeito de conflitos menores existentes

entre o imperialismo e a burguesia brasileira, nada seria suficiente para constituir uma

oposição de classe entre elas.

Por último, Caio Prado Jr. chega a uma crítica radical e nega a existência de uma

burguesia nacional, classe capaz de dirigir a revolução brasileira. A industrialização no Brasil

é fundamentalmente uma “substituição de importações” delimitada em dois planos: primeiro,

é comandada pelos grandes grupos internacionais, que não a aprofundarão para além da

capacidade de pagamento externo do país dependente; segundo, a industrialização visa tão-

somente a fornecer bens outrora importados, por diferentes meios, ao mesmo mercado restrito

(no máximo de alcance regional). Então, como a burguesia não controla a acumulação de

capital, pois não tem base objetiva para isso, inexistem as condições objetivas e subjetivas

para o anti-imperialismo e para a própria burguesia nacional no Brasil.

Segundo a leitura de Caio Prado Jr. feita por Sampaio Jr. (1999a: pp. 105-107), o

resultado da permanência de uma subordinação completa ao capital internacional e da

segregação social é que o mercado brasileiro é marcado pela existência de uma conjuntura

mercantil precária. A mobilidade do capital internacional impede a constituição do mercado

interno como a instância estratégica da acumulação, enquanto que a marginalização

permanente impede a socialização dos frutos do progresso técnico e a retroalimentação do

mercado interno. Como resultado o subdesenvolvimento se caracteriza pela incerteza

estrutural: “A impossibilidade de previsões razoavelmente seguras quanto à trajetória futura

da economia faz com que a expectativa de longo prazo de valorização da riqueza capitalista se

transforme em um caleidoscópio ultra-sensível” (SAMPAIO JR., 1999a: p. 107).

Esta incerteza estrutural implica dois padrões da acumulação capitalista no Brasil:

o modo de organização do capital se torna a busca pela liquidez e a racionalidade burguesa se

torna particularmente especulativa. Como consequência, a iniciativa privada nativa é

permanentemente condicionada pelo estreito horizonte de acumulação do mercado interno e

se torna incapaz de superar a dependência. Por outro lado, o capital internacional se

caracteriza pela volatilidade dos vínculos com o mercado interno, sempre apoiado na garantia

(especialmente institucional) de garantias da mobilidade espacial. É nesses marcos que a

burguesia brasileira se desenvolve, subordinada e oportunista42, aproveitando as brechas

42 “Os imperialistas europeus, logo em seguida também os norte-americanos, encontraram no Brasil uma civilização e uma cultura em essência análoga à deles, pois era da mesma origem. Burguesia brasileira e representantes do imperialismo poderão assim se entender perfeitamente. Tanto mais que a ação do

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geradas pelos ciclos que os negócios internacionais geram na economia brasileira, sendo o da

industrialização, no fundo, mais um destes ciclos43.

Caio Prado revela, além da condição geral da burguesia, um fator de cisão interna,

delimitada pela existência de um sistema de favorecimento de negócios privados pela

administração e pelas empresas estatais em prol dos funcionários públicos e dos setores da

burguesia associados. O conflito entre este setor, o “capitalismo burocrático”, e o setor

burguês marginalizado do sistema, que vê na ação estatal apenas promoção dos interesses

burgueses gerais, é o único fator de “divisão” da classe. Ao acreditar em uma divisão entre

nacionais e entreguistas, a teoria pecebista acabou por colocar os trabalhadores ao lado do

capitalismo burocrático, um setor burguês tão ou mais reacionário que o outro. Isso porque os

interesses por intervencionismo estatal defendidos pela burguesia burocrática acabaram sendo

entendidos como nacionalistas, atraindo apoio dos setores progressistas. O resultado foi a

confusão dos setores populares, a paralisação da polarização para a revolução brasileira e o

fortalecimento do outro setor que liderou a denúncia ao parasitismo do Estado e dirigiu

politicamente a insatisfação popular com tal situação (PRADO JR., 1966: pp. 125-128).

O programa da Revolução Brasileira proposto por Caio Prado Jr. sintetiza-se na

solução dos dois grandes problemas da formação nacional: superar a economia e as relações

de produção herdeiras do colonialismo. As reformas necessárias seriam impulsionadas pelas

imperialismo, excluídas as contradições que introduz na evolução brasileira, mas que de início se disfarçam suficientemente e somente se irão fazendo sentir com o correr do tempo, a ação do imperialismo representou um grande impulso para a vida econômica brasileira. (...) Esse estímulo e impulso econômico proporcionados pelo imperialismo reverteriam principalmente em benefício da burguesia em seu conjunto, pois lhe ofereciam oportunidades e facilidades novas para suas atividades e seus negócios em proporções para ela completamente insuspeitadas no passado. (...) mesmo posteriormente à Guerra de 1939, quando os aspectos negativos da penetração imperialista já começam a se fazer nitidamente sentir, essa penetração, que se realizará então em proporções consideráveis que deixam o passado a perder de vista, traz, ao menos para a burguesia em conjunto e para os interesses burgueses gerais, amplas e inestimáveis vantagens imediatas, e largas oportunidades para seus negócios” (PRADO JR., 1966: pp. 117-118). 43 “A incapacidade de suportar a concorrência externa fez com que a continuidade do processo de industrialização ficasse totalmente dependente da preservação dos parâmetros históricos que haviam permitido o insulamento da economia brasileira da concorrência de produtos importados e que haviam impulsionado a internacionalização dos mercados internos. No entanto, como era óbvio que a estabilidade dos parâmetros externos que haviam permitido essa situação não poderia perdurar para sempre, Caio Prado não cansou de alertar que a industrialização brasileira era extremamente vulnerável a crises de reversibilidade estrutural” (SAMPAIOR JR., 1999b: p. 422). “Não se ignora o papel singular, sem paralelo no passado, que as rápidas e contínuas transformações da tecnologia representam na indústria moderna. Já não se trata apenas, como ocorria há poucos decênios passados, do problema de aperfeiçoamento da indústria e de sua promoção e ampliação. O progresso tecnológico e a introdução contínua de inovações representa na indústria de nossos dias, em particular naqueles seus setores básicos e decisivos - como a indústria química, a eletrônica e outras semelhantes -, condição essencial e precípua de sua própria subsistência. O obsoletismo que se propõe aqui a cada momento, pode-se dizer, não é no caso apenas inconveniente ou mesmo intolerável. É simplesmente impossível. Transformar-se e progredir continuamente, ou então perecer, é esta a única alternativa que se apresenta” (PRADO JR., 1972 apud SAMPAIO JR., 1999b: pp. 422-423).

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classes trabalhadoras do campo e da cidade e executadas pelo Estado, visando dar melhores

condições de trabalho e de direitos sociais. Mesmo sem acabar de pronto com a iniciativa

privada (e daí o caráter não imediatamente socialista da revolução), estas medidas seriam

capazes de equilibrar a correlação de forças entre capital e trabalho, abrindo espaço para

consolidar a classe trabalhadora como força dirigente da revolução brasileira. Quanto à

dependência, seria equacionada através do comando das contas externas e do monopólio do

comércio exterior. Resume, enfim, o significado da revolução frente à dominação externa:

“A revolução brasileira (...) significa a desconexão daquele sistema [capitalismo internacional imperialista] e o desmembramento (...) do mesmo sistema. O rompimento em sua periferia” (PRADO JR., 1966: p. 186).

3.3. Celso Furtado: a burguesia dependente e subdesenvolvimento

O problema central para o economista Celso Furtado44 é a superação da condição

de subdesenvolvimento do Brasil. Isso implica superar, sob o pano de fundo mundial da

estrutura centro-periferia, a modernização dos padrões de consumo da elite como vetor do

desenvolvimento e a heterogeneidade estrutural (produtiva, social e regional) que constituem

uma inadequação entre fins e meios no desenvolvimento. Contudo, dado que pelos próprios

problemas impostos pelo subdesenvolvimento não se conformaram classes burguesa e

populares fortes (capazes de impor fins), a solução dos problemas passa pela ação

organizadora do Estado, sob a direção de uma intelectualidade comprometida com os

interesses nacionais45.

Para Furtado, o subdesenvolvimento não era uma etapa histórica, transitória para

o pleno desenvolvimento; mas sim uma condição específica de alguns países da periferia do

capitalismo e insuperável sem vontade política e social para concluir a formação nacional. O

problema é entender a estrutura centro-periferia46, ou seja, a totalidade de relações mundiais

polarizada pelo controle que o centro possui do Progresso Tecnológico e por sua capacidade

44 Celso Furtado (1920-2004) foi um dos grandes pensadores do problema da formação do Brasil. Integrou a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), com importante elaboração própria sobre os problemas do continente e do Brasil. Também chefiou a SUDENE e foi ministro do Planejamento do governo Goulart e da Cultura no governo Sarney. 45 Para uma elaboração tipicamente desenvolvimentista de Celso Furtado, ver FURTADO (1962). Para a narrativa sobre a evolução do seu pensamento frente às transformações econômicas e políticas mundiais e brasileiras, ver suas obras autobiográficas (FURTADO, 1985; 1989, 1991). 46 Essa elaboração se remete à crítica original do pioneiro da CEPAL Raul Prébisch à teoria ricardiana do livre comércio. Devido à difusão lenta do progresso técnico e à deterioração dos termos de troca, as relações econômicas internacionais impunham obstáculos incontornáveis à superação do subdesenvolvimento pela via liberal, exigindo como saída a industrialização da periferia.

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de impor padrões de consumo e assim impor a perpetuação do subdesenvolvimento

(FURTADO, 1967). A sua característica fundamental é a existência de dinâmicas econômicas

distintas entre esses dois polos. Nos países do centro, as transformações ocorrem “(...)

simultaneamente nas estruturas econômicas e na organização social” (FURTADO, 1981: p.

89), isto é, os aumentos de produtividade do trabalho, derivados de inovações tecnológicas47,

e respectivos aumento da produtividade do trabalho e escassez relativa de mão-de-obra, são

difundidos pela concorrência para o resto do mercado, ampliando o consumo e os salários

reais – é a dialética inovação-difusão (FURTADO, 1981: cap. 5). Na periferia, “as

modificações do sistema produtivo são induzidas do exterior” (Idem: p. 89), implicando a

especialização simples da produção. Isto resulta em uma inadequação entre a demanda (as

necessidades do conjunto da população) e a oferta (atraso na capacidade de produzir um

conjunto de bens) que resume o subdesenvolvimento.

Para Furtado, o vetor do subdesenvolvimento é a modernização dos padrões de

consumo da elite. No período pré-civilização industrial, nas regiões subdesenvolvidas que não

se limitaram a meros enclaves, parte do excedente – produto total menos o custo de

reprodução da população – ficou nas mãos de elites locais, que a utilizaram para importar

bens de consumo do centro. Isso representou uma “irracionalidade”, por causa do baixo nível

de renda per capita da periferia frente ao nível do centro, e um traço de colonialismo ou

dependência cultural das elites, devido ao mimetismo do padrão de consumo e do estilo de

vida importados. A permanência da modernização ao longo da história travou o uso do

excedente para outros fins, como a acumulação produtiva e o aumento de salários e do

mercado (FURTADO, 1981: cap. 7).

Por outro lado, o subdesenvolvimento é marcado pela heterogeneidade estrutural,

isto é, as profundas assimetrias dentro do aparelho produtivo, combinando, de forma

interdependente, setores ultramodernos e setores arcaicos de baixíssima produtividade48. A

desigualdade e a concentração permitem o acesso a tecnologias inadequadas (pois projetadas

para o centro) via importação de bens ou pela sua produção interna e impede a difusão das

tecnologias adequadas às necessidades e possibilidades desses países. Decorre também a

incapacidade de se gerar escassez relativa de mão-de-obra, inviabilizando a formação objetiva

47 A noção de inovação usada Furtado é emprestada de Joseph Alois SCHUMPETER (1911), especialmente o capítulo 2. 48 A heterogeneidade estrutural poderia ser concebida sob aspectos que incluíam assimetrias sociais (expressa por um desemprego estrutural), produtivas e regionais. Para mais detalhes, ver PINTO (2000).

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e subjetiva de classes trabalhadoras. O resultado é uma dessimetria que “manifesta-se sob a

forma de heterogeneidade social e de rupturas e desníveis nos padrões de consumo”

(FURTADO, 1981: p. 90), inviabilizando a dialética inovação-difusão.

Em “Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico” (FURTADO, 1967: pp.

183-185), o autor esclarece que a dependência imposta pela estrutura centro-periferia tende a

se perpetuar por diferentes períodos na periferia. No primeiro, a etapa agrário-exportadora, a

dinâmica da economia periférica se dava por impulsos externos sobre o setor exportador

especializado em produtos primários, gerando um excedente que foi parcialmente retido e

usado para diversificar o consumo da elite. No período seguinte, o de Substituição de

Importações (S.I.) em países como Brasil, Argentina e México, a modificação na função de

produção da periferia foi o elemento dinamizador, com a elevação do nível tecnológico do

conjunto do sistema, embora desigual. No terceiro momento, consolidada a S.I., a difusão de

padrões de consumo imitados do centro passa a ser o vetor de uma economia onde coexistem

as três formas de dependência e que fica presa ao círculo vicioso do subdesenvolvimento:

(...) a necessidade de elevar permanentemente o coeficiente de capital, no setor que produz para a minoria integrada no processo imitativo, impede uma mais ampla difusão do progresso técnico nos segmentos de economia dependente, que produzem para o conjunto da economia (FURTADO, 1967: p. 183)

No último período, iniciado no Brasil no final dos anos 1950, é quando o domínio

do centro é realizado por meio do investimento direto das Empresas Transnacionais (ETs).

Para Furtado, na “nova economia internacional”, são tais empresas os elementos dinâmicos,

ao deslocar a importância dos mercados internacionais para suas transações internas e ao

controlar a produção e a difusão das novas técnicas: “(...) o desenvolvimento dependente

implica a criação de vínculos com as grandes empresas que engendram a necessidade desses

produtos e mantêm o controle das técnicas requeridas para produzi-las.” (FURTADO, 1967:

p. 186). Em suma, “(...) trata-se da transplantação, do ‘centro’ para a ‘periferia’, de atividades

produtivas ligadas a uma clientela perfeitamente condicionada e sob controle” (Idem: p. 183).

Em um contexto de declínio dos termos de troca em detrimento dos países

periféricos, a apropriação do excedente aí gerado pelas ETs gera uma grande contradição.

Durante o período da substituição de importação, ela se manifestou em fortes pressões no

balanço de pagamentos; consolidada esta fase, abre-se um período de forte endividamento

externo. A superação do subdesenvolvimento torna-se mais urgente e a questão do agente do

processo, crucial.

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Contudo, os próprios problemas do subdesenvolvimento inviabilizaram a

formação de forças sociais, burguesia e classes populares, que pudessem superá-lo. Em

primeiro lugar, Celso Furtado nega a existência de uma burguesia nacional no Brasil. Em

“Análise do ‘Modelo’ Brasileiro” (FURTADO, 1972), ele resume o que chama de burguesia

nacional:

Não era suficiente a presença de atividades mercantis (...). Os interesses nacionais definiam-se quando a atividade mercantil se apoiava em manufaturas locais, que podiam ser ameaçadas por concorrentes externos ou que eram utilizadas para exportação. É essa combinação de atividades manufatureiras pré-industriais (baseadas na organização corporativa ou no trabalho livre), com atividades mercantis que enfrentam a concorrência externa, que define o perfil das burguesias nacionais (FURTADO, 1972: p. 18).

No Brasil, o pacto colonial inibiu qualquer iniciativa de burguesia nacional

durante quatro séculos. Com a independência política, mesmo as atividades manufatureiras da

segunda metade do século XIX são apenas complementos do comércio exterior:

(...) a classe industrial que se forma no Brasil atua num quadro estrutural próprio que deve ser levado em conta se se pretende compreender o seu comportamento. Assimilá-la a uma burguesia nacional constitui simplificação que contribui mais para ocultar do que pra revelar a realidade. Seus interesses estão, de maneira geral, positivamente vinculados ao comércio exterior. São as exportação que criam o mercado interno e permitem a aquisição de equipamentos no exterior a bom preço; por outro lado, só excepcionalmente as indústrias locais concorrem com as importações, das quais são em muitos casos complementares (FURTADO, 1972: p. 19).

Mesmo nos anos 1960, após a industrialização pesada, não se formou uma

burguesia nacional. O que se tornou progressivamente hegemônico – e ascendeu ao poder

junto com a tecnocracia com o golpe de 1964 – foi o que Furtado chamou de grupo industrial,

composto por três partes:

(...) um setor privado nacional formado pelos dirigentes de limitado número de grandes firmas que sobrevivem com maior ou menor grau de autonomia e de um numero considerável de pequenos empresários; um poderoso setor privado estrangeiro, constituído de dirigentes alienígenas e nacionais de filiais ou empresas subsidiárias de consórcios internacionais; um outro setor de importância crescente formado de quadros superiores de empresas públicas, quase sempre originários da administração civil ou militar (FURTADO, 1972: p. 35).

Furtado destaca três aspectos do grupo industrial: primeiro, seu caráter

heterogêneo, apesar de coeso e com partes muito mais complementares do que concorrentes49;

segundo diz respeito ao caráter internacional desse grupo industrial. Como se trata de uma boa

49 As empresas estatais predominam na infraestrutura, nas atividades criadoras de economias externas e de grande imobilização de capital e pequeno progresso técnico; as empresas privadas nacionais controlam a construção e setores acessórios aos demais setores; e os grupos transnacionais comandam as indústrias de bens duráveis, químicos e farmacêuticos e o de equipamentos, em suma, os mais dinâmicos e de maior progresso técnico (FURTADO, 1972: p. 35).

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parcela de empresas com inserção nacional e internacional, especialmente a dos setores mais

dinâmicos, “(...) os possíveis conflitos entre interesses ‘internos’ e ‘externos’ tendem a ser

transferidos para o âmbito dos oligopólios internacionais” (FURTADO, 1972: p. 36). Desta

forma, configura-se grande diferença com uma burguesia nacional:

“Como a formação profissional, as fontes de informação, os padrões de consumo, em muitos casos a carreira, enfim, o quadro cultural dos elementos dirigentes das empresas dos três setores indicados tendem a seguir os mesmos paradigmas, trata-se menos de emergência ou consolidação de uma burguesia nacional do que de implantação da nova burguesia internacional ligada ao capitalismo dos grandes conglomerados transnacionais.” (FURTADO, 1972: p. 36).

Por fim, o único traço semelhante a uma burguesia nacional é a “preocupação de

dar legitimidade ao sistema de poder mediante a tradução em linguagem de objetivos

nacionais dos interesses do grupo” (FURTADO, 1972: p. 36).

Do lado dos trabalhadores, a “grande reserva de mão-de-obra à disposição dos

empresários [resultado da heterogeneidade] inibiria o processo de luta de classes”, como

explica MORAES (1995, p.67) em estudo sobre Furtado. O capitalismo periférico

caracterizava-se por “(...) uma pressão sindical insuficiente para empurrar os capitalistas à

modernização e à concorrência” (Idem: p. 67).

A força social motriz para superar o subdesenvolvimento, na concepção de

Furtado e da CEPAL, seria uma “intelligentsia”, como mostra o estudo de MORAES

(1995)50. Os planejadores tem nesse processo um papel especial: primeiro, seriam portadores

da razão, um conhecimento “neutro” e acima dos conflitos das classes; segundo, detêm a

capacidade de persuasão, isto é, elaboram a “imagem de uma realidade em crise iminente”,

para a qual propõem um conjunto de valores substantivos capazes de gerar um consenso. Por

fim, estes intelectuais têm, além da capacidade, o dever de governar. Na periferia, onde a livre

expressão dos agentes era incapaz de oferecer saídas para o subdesenvolvimento, são os

intelectuais que “põem o sistema para operar, que dão ao Estado aquela eficácia sem a qual

ele não sobrevive” (MORAES, 1995: p. 76). O pressuposto em todas estas análises é uma

concepção liberal de Estado, capaz de comportar as aspirações da coletividade, da nação.

50 Nessa concepção herdeira do pensamento do sociólogo Karl Mannheim, cabe à intelectualidade o papel de “'antecipar o consenso' e preparar o caminho para que ele se organize” (MORAES, 1999: p. 72), por meio do Estado e do planejamento estatal. Sob tal orientação, “Furtado aponta a necessidade de condicionar as formas de agir” (Idem: p. 68), sem, contudo, comprometer por completo os critérios de racionalidade dos agentes econômicos: “No interior desse confronto de alçadas macro/micro, revela-se também qual é o poder ordenador da sociedade, isto é, o centro que aloca os recursos e demarca previamente os destinos dos contendores” (Idem: p. 69).

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Cabe assim, portanto, às classes um papel secundário frente aos dilemas do

subdesenvolvimento. A saída passa pelo controle da modernização dos padrões de consumo,

pela realização de reformas econômicas e sociais que acabassem com a heterogeneidade

estrutural, em particular a Reforma Agrária e pela reorganização do sistema produtivo sob

bases nacionais, além de, além da reforma da ordem econômica internacional, crescentemente

transnacionalizada. Mas são os intelectuais, através do planejamento estatal, os responsáveis

pela execução das tarefas nacionais (e mesmo as internacionais) capazes de concluir a

formação nacional.

3.4. Florestan Fernandes: burguesia dependente e a contrarrevolução permanente

Florestan Fernandes51 afirma que as sociedades dependentes da América Latina,

em especial no Brasil, tributárias de uma formação histórica e estrutural sob a articulação

entre dependência externa e segregação social interna, não têm força própria para integrar-se

nacionalmente e se autonomizar. Na etapa do Imperialismo Total, alimentada pela Guerra Fria

e pela expansão das empresas transnacionais, a burguesia dependente brasileira opera uma

permanente contrarrevolução para acelerar a modernização capitalista e reprimir as pressões

populares. Ao limitar o circuito político às classes dominantes e institucionalizar um padrão

de dominação compósito e autocrático que corresponde a uma revolução burguesa em atraso,

ele aponta a superação da ordem capitalista como horizonte alternativo à concentração de

renda e poder, à marginalização social e à barbárie.

Para desbravar as relações entre desenvolvimento capitalista e luta de classes, o

autor realiza alguns passos: compreender como o desenvolvimento capitalista condiciona a

formação das classes; identificar o padrão da luta de classes (relações inter e intra-classes); e

por fim, caracterizar o circuito político em que se passa a luta de classes e como ele determina

as condições da mudança social.

As economias subdesenvolvidas e dependentes são, para Fernandes, mais do que

herdeiras de formas de dominação coloniais e neocoloniais: elas têm nessas formas (e em seus

desdobramentos estruturais e dinâmicos) necessidades que as tornam substância do seu

próprio desenvolvimento (FERNANDES, 1973: pp. 59-60). O autor afirma que os fluxos de

51 O sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995) foi o grande expoente da Escola Paulista de Sociologia que se desenvolveu na USP nos anos 1950 e 1960. Autor de vasta obra nas ciências sociais, foi deputado constituinte pelo PT nos anos 1980.

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modernização dos polos da dominação externa, em cada período histórico, irradiam

instituições, valores e técnicas capitalistas, mas não geram as condições que viabilizam sua

máxima eficácia para a mudança social (FERNANDES, 1995: p. 146). O resultado é que a

articulação dos dinamismos externos e da sociedade dependente, calcada na heterogeneidade

de formas sociais e de produção, não podem impulsionar um desenvolvimento autônomo52.

Essa sociedade é fundada na superexploração do trabalho, que viabiliza a

“apropriação dual” do excedente, isso é, sua divisão entre as classes dominantes externas e

internas; as primeiras alimentam-se dessas relações, enquanto as segundas utilizam-se do

desenvolvimento desigual para financiar a modernização e para proteger-se dos impactos

devastadores dessa mesma modernização e da instabilidade de seu mercado (FERNANDES,

1974: p. 40; 1968: pp. 84-89). A importância do dualismo na obra de Florestan é assim

sintetizada por Sampaio Jr. (1999):

Em suma, a reprodução de mecanismos de acumulação primitiva e a depredação do meio ambiente são características inerentes ao capitalismo dependente. Elas derivam de um contexto histórico no qual o espírito burguês adquire um caráter “ultra especulativo” e uma natureza “ultra-extorsiva” (p. 140).

Para além, o dualismo faz com que a ordem social competitiva seja bloqueada,

pois a competição capitalista deixa de ser a racionalidade do sistema econômico e absorção de

interesses divergentes pelo conflito, a racionalidade do sistema político. O esvaziamento das

propriedades dinâmicas da economia pela sua sobrepolitização impede que ela sirva como um

elemento motor da integração e/ou da diferenciação social e, portanto, do desenvolvimento.

“Nestas circunstâncias, a ‘racionalidade econômica possível’ leva até as empresa mais

modernas das economias dependentes a exigir suportes extra-econômicos que perpetuam o

atraso (SAMPAIO JR., 1999a: p. 140). Cabe citar uma passagem em que Fernandes mostra o

peso das consequências do processo de sobrepolitização para a racionalidade econômica

capitalista:

Qualquer problema econômico que envolva o equilíbrio, a existência ou o ritmo de crescimento do setor converte-se, automaticamente, em matéria política. Em consequência, as soluções econômicas passam para um modesto segundo plano, prevalecendo o poder político dos grupos em presença e as forças de acomodação política resultantes. No conjunto, evidenciam-se duas linhas concomitantes de influências: 1ª) a que se define ao nível das relações com os núcleos hegemônicos do exterior; 2ª) a que se define ao nível das composições entre o setor arcaico e o moderno. Em tais circunstâncias, o equilíbrio do sistema econômico e a eficiência de sua ordem econômica descansam sobre fatores e mecanismo econômicos

52 “(...) a articulação dos dinamismos econômicos, sociais e culturais, internos e externos, apesar de tudo, não é suficiente para produzir a emergência e a consolidação de um padrão de desenvolvimento que pudesse se equiparar ao padrão de desenvolvimento auto-sustentado das Nações capitalistas hegemônicas” (FERNANDES, 1974: p. 39).

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capitalistas. Mas em nenhum momento o funcionamento e o desenvolvimento dessa ordem econômica deixa de traduzir a interferência de fatores e mecanismos extraeconômicos. É inerente ao capitalismo dependente, portanto, uma margem de insegurança crônica, que atinge especialmente os agentes econômicos que operam, enquanto classe, os processos econômicos internos de natureza capitalista. Na medida em que contam com condições para determinar, em bases puramente econômicas, os limites irredutíveis de sua autonomia real, os referidos agentes se veem impotentes para exercer controle completo sobre todas as fases ou efeitos dos processos econômicos incorporados à ordem econômica vigente (FERNANDES, 1968: pp. 64-65).

O dualismo no nível econômico corresponde à composição (histórica e estrutural)

no âmbito do poder entre os setores moderno e arcaico, cuja unificação, desde os tempos da

independência, compete para sobrepor seus interesses ao resto da sociedade e para perpetuar a

dupla articulação, a despeito da integração nacional e do fim da segregação social. O

resultado é a cisão da sociedade entre “proprietários e não proprietários de bens”

(FERNANDES, 1968: pp. 40-41, pp. 70-71), segundo as possibilidades de se estar (ou não)

em uma posição no sistema que os valorize econômica e os classifique socialmente. Entre os

“proprietários”, estão as classes dominantes e médias, além de uma parcela dos assalariados

que se proletariza; nos “não-proprietários”, os assalariados em vias de proletarização e os

“condenados do sistema” ou marginalizados (Idem: pp. 72-74).

A estrutura de classes pode ser vista através da análise de cada setor e da relação

entre eles. Quanto ao proletariado, ele é uma classe objetivamente enfraquecida pela

sobreapropriação e pela heterogeneidade, constitutivas do sistema, que restringem “(...)

diretamente a participação econômica e, indiretamente, a participação sociocultural e política

dos trabalhadores assalariados” (FERNANDES, 1973: p. 74). Também decorrência da

heterogeneidade interna às classes trabalhadoras, a proletarização adquire um status de

classificação e mobilidade sociais que polariza positivamente uma parcela dos assalariados

(sua elite) com a ordem (FERNANDES, 1973: p. 74; 1968: p. 76). Paralisa-se, desta forma, a

constituição da classe em si e para si.

Quanto à burguesia dependente, Florestan esclarece que o bloqueio à

concorrência como racionalidade econômica com a composição de interesses das classes

dominantes as torna uma “plutocracia” ou “burguesia compósita” (FERNANDES, 1973: p.

62). Ela objetiva a defesa comum de privilégios e da propriedade, além do desfrutar dos

benefícios da modernização irradiada pelos polos hegemônicos, o que circunscreve seu

horizonte histórico ao subdesenvolvimento econômico e à dependência cultural. Disso

decorre, então, que o padrão de relação entre as classes fica sobredeterminado pela segregação

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31

econômica, social e política, o que inviabiliza a existência de mecanismos de solidariedade de

classe em nível nacional capazes de dar motor autônomo à mudança social interna

(FERNANDES, 1976: pp. 382-385). Esse capitalismo gera uma burguesia vítima de sua

situação de classe:

Ela possui poder para resguardar sua própria posição econômica e os privilégios dela decorrentes no cenário nacional. Mas é impotente em outras direções fundamentais, a tal ponto que induz e fomenta um crescimento econômico que a escraviza cada vez mais intensamente ao domínio dos núcleos hegemônicos externos (FERNANDES, 1968: p. 91).

Respondendo a uma tripla fonte de pressões por mudanças – da dominação

externa, das classes subalternas e do Estado burocrático e tecnocrático – a burguesia busca

“congelar” a história no que diz respeito a seus privilégios e “acelerá-la” no que diz respeito

ao dinamismo econômico. Para isso, engendra um padrão de dominação exacerbadamente

político que restringe o Estado a um “circuito fechado” em torno das classes dominantes. É

uma dominação ou hegemonia “compósita” porque feita de interesses burgueses diversos

fundidos, não por motes capitalistas, mas pela concentração de renda, poder e privilégios

(FERNANDES, 1995: p. 140; 2006: pp. 376-380) Isso implica que o regime de classes não é

meio para dirimir conflitos e, por isso, impede a mudança social.

Em “Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina”

(FERNANDES, 1973) o autor explica que na segunda metade do século XX se constitui o

“Imperialismo Total”, marcado pela expansão da grande empresa corporativa e, portanto, do

capitalismo monopolista, e politicamente pela Guerra Fria, que é seu fator decisivo por

representar a luta pela defesa e pela vitória do capitalismo em si. O novo padrão revela as

debilidades das economias dependentes (mesmo as suas mais avançadas) e mostra a

incapacidade das suas burguesias sobrepujarem o subdesenvolvimento por esforço próprio,

porque modifica a dependência:

O traço específico do imperialismo total consiste no fato de que ele organiza a dominação externa a partir de dentro, em todos os níveis de ordem social, desde o controle da natalidade, a comunicação de massa e o consumo de massa até a educação, a transplantação maciça de tecnologia ou de instituições sociais, à modernização da infra e da superestrutura, os expedientes financeiros ou de capital, o eixo vital da política nacional etc. (FERNANDES, 1973: p. 27).

No Brasil, com a industrialização pesada ocorre a concretização do capitalismo

monopolista, que corrói as bases do “desenvolvimentismo”, reorganiza o mercado em função

das corporações e anexa o país ao espaço socioeconômico, cultural e político dos Estados

Unidos (FERNANDES, 1973: pp. 27-32). As empresas transnacionais tornam-se os polos

ativos das economias dependentes, impondo sua influência estrutural e dinâmica:

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“As empresas anteriores, moldadas para um mercado competitivo restrito, foram absorvidas ou destruídas, as estruturas econômicas existentes foram adaptadas às dimensões e às funções das empresas corporativas, as bases para o crescimento autônomo e a integração nacional da economia, conquistadas tão arduamente, foram postas a serviço dessas empresas e dos seus poderosos interesses privados” (FERNANDES, 1973: p. 31).

Mas a “fraqueza” dessa burguesia é relativa. Fernandes mostra em “A revolução

burguesa no Brasil” que a burguesia ganha condições de negociação com o imperialismo –

que demanda parceiros fortes devido ao contexto internacional - o que a permite a absorver e

graduar a modernização. Internamente, movida pela resistência à mudança que se

metamorfoseia em “medo-pânico”, ela supera suas vacilações e institucionaliza um regime

autocrático com o golpe de 1964. Sua força reside em legitimar a ordem (capitalista e

dependente) através do crescimento acelerado (no período do “Milagre”) e na repressão aberta

ao dissenso. Resulta que as burguesias dependentes:

(…) detêm um forte poder econômico, social e político, de base e de alcance nacionais; possuem o controle da maquinaria do Estado nacional; e contam com suporte externo para modernizar as formas de socialização, de cooptação, de opressão ou de repressão inerentes à dominação burguesa. Torna-se, assim, muito difícil deslocá-las politicamente através de pressões e conflitos mantidos 'dentro da ordem'; e é praticamente impossível usar o espaço político, assegurado pela ordem legal, para fazer explodir as contradições de classe, agravadas sob as referidas circunstâncias (FERNANDES, 1976: pp. 344-345).

Sob o controle da burguesia estão: alguma condição de negociação com os

núcleos hegemônicos de um processo ampliado de acumulação de que ela faz parte de

maneira subordinada; e a capacidade de manipular as condições sociais, econômicas e

ambientais internas de forma quase absoluta, capacidade esta que se converte em seu ativo

mais precioso. É uma burguesia impotente para fora, mas onipotente para dentro.

Em suma, a contradição da revolução burguesa é que o capitalismo dependente (e

a sua burguesia) não consegue remover os entraves internos (a heterogeneidade estrutural) e

externos (a dependência ao imperialismo) ao desenvolvimento capitalista autodeterminado,

nem promover um Estado que, absorvendo interesses diversos, identifique positivamente as

classes com a ordem burguesa. Para Florestan, isso acelera a história, ao tornar a “revolução

contra a ordem”, feita pelas classes subalternas, a única saída para garantir a integração e a

autonomia nacionais (FERNANDES, 1995: p. 138; 1974: p. 49).

4. Burguesia brasileira: dependência e negócios

Page 38: Monte-cardoso_artur-2014-Burguesia Brasileira Nos Anos 2000 - Versao Final Para Banca

33

Em busca de uma síntese que ajude a nortear esta pesquisa, será feita uma breve

síntese dos principais pontos levantados por cada autor, em particular no que tange ao papel

da burguesia brasileira. Da síntese de cada autor e do confronto entre eles, será feita uma

breve exposição do que consideramos ser o marco teórico fundamental que será contrastado

com a pesquisa empírica dos grupos da burguesia brasileira nos anos 2000.

Nelson Werneck Sodré afirma a existência de uma burguesia nacional,

comprometida com o mercado nacional e potencial dirigente de uma revolução brasileira de

caráter democrático e nacional. O problema é que a burguesia carrega o fardo do atraso e a

pressão do imperialismo, que polariza forças internas – o latifúndio e a burguesia comercial e

industrial associada – em favor da permanência da condição semicolonial. É importante frisar

as nuances de Sodré sobre as debilidades constitutivas da economia e das classes sociais, o

que torna necessária uma complexa equação de frente política das forças comprometidas com

a nação, proletariado e campesinato dando suporte à protagonista burguesia. A política de

conciliação com o Imperialismo ocorre a despeito dos interesses estratégicos desta burguesia

e acumula tensões entre as classes. Para a burguesia nacional, portanto, está em xeque sua

própria existência e coloca na ordem do dia que se leve a revolução até o fim.

Por outro lado e por caminhos distintos, Caio Prado Júnior, Celso Furtado e

Florestan Fernandes se contrapõem à ideia de existência de uma burguesia nacional. Trata-se

de uma condição herdada da origem colonial e da forma específica como ocorreu a transição

neocolonial: sem a ruptura com a participação dos latifundiários e comerciantes nativos em

negócios estrangeiros e da utilização da força de trabalho escrava, que condicionou o país a

um padrão de superexploração do trabalho. A dupla articulação se revela fonte permanente de

tensão entre as classes à medida que o país se diferencia e se moderniza, inclusive com

parcelas minoritárias da burguesia em formação, mas isto não significa que o horizonte

burguês tenha como saída possível a superação da dependência e a integração nacional como

fonte de poder. Para usar os termos de análise de Prado Jr., a superação da dependência não

está inscrita na história da burguesia brasileira. A constatação de que a dependência e a

segregação constituíam traços estruturais e condicionantes, fato que ficou mais claro com o

início da ditadura de 1964, tem influências tanto nos marcos do campo de pensamento da

formação como em outras vertentes que virão da tese do “desenvolvimento com dependência”

Page 39: Monte-cardoso_artur-2014-Burguesia Brasileira Nos Anos 2000 - Versao Final Para Banca

34

e que teriam profunda influência no debate público que se sucedeu53. Para o campo da

formação, é fundamental tirar as lições sobre quais são os traços mais fundamentais da

burguesia brasileira e as implicações para os dilemas da formação.

Para Caio Prado Júnior, a extrema volatilidade que caracteriza a relação dos

negócios estabelecidos pelo grande capital internacional no país e a precariedade do mercado

interno de uma sociedade fundada na segregação criam um estado de conjuntura mercantil

precária que leva à constituição de uma racionalidade capitalista particularmente especulativa

e rentista. Dentro deste contexto, a burguesia brasileira precisa sobreviver tirando proveito de

todas as oportunidades abertas pelo imperialismo, considerando a posição especializada,

tributária e residual da economia brasileira dentro do sistema capitalista mundial. Como o

mercado interno não se converte na instância estratégica da acumulação de capital, a

burguesia brasileira faz sua opção por se ligar aos fluxos e influxos impulsionados e

controlados de fora para dentro. Isto é uma verdade em todos os setores – agropecuária,

comercial, industrial e financeiro – e em todos os ciclos econômicos da época colonial ou

independente – açúcar, metais preciosos, algodão, fumo, café, borracha e indústria. A

indústria é o caso mais especial, pois representa o gérmen de uma economia nacional no

período de crise da divisão internacional do trabalho e em que parte dos elos estratégicos

estiveram sob controle nacional, mas também constitui o símbolo máximo da crise quando

passa a ser controlada pelos oligopólios internacionais.

A análise de Prado Jr. sobre o significado da industrialização é crucial. Ela não só

reforça a instabilidade por aprofundar a magnitude dos fluxos de capital a ser remunerados e a

vulnerabilidade perante às estratégias exógenas às necessidades dos nacionais, como exige o

aprofundamento do dualismo na economia, entre setores voltados para mercados externos e

internos. Isso ocorre porque, para o capital internacional, os negócios externos são mais uma

forma de ampliar sua valorização (D – D’). Mas acontecem dois problemas derivados da

execução de parte do circuito de valorização dentro de uma economia periférica, como é o

caso da indústria de substituição de importações que tem como mercado o interno. Os lucros

são realizados em moeda local e precisam ser transformadas em moeda de uso internacional,

além de ser necessária a livre mobilidade do capital para promover o retorno. O circuito (DUS$

– [ DR$ – M – D’R$] – D’ US$) passa a exigir o desenvolvimento e aprofundamento dos setores

53 A inflexão proposta por Cardoso e Faletto (1970), que propõem ser possível, desejável e necessário ao Brasil atingir o desenvolvimento em condições de dependência, é o marco de uma crise na teoria do desenvolvimento como havia sido elaborada até então, nos marcos da formação. Ver Sampaio Jr. (1999c).

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exportadores locais, capazes de gerar as divisas, e a garantia, por parte do Estado local, da

livre mobilidade do capital internacional. Sob controle externo, a industrialização tem

impactos negativos na entrada e na saída do ciclo, assim entendido como mais um na história

brasileira. Daí o fato de haver diferenciação das forças produtivas e de parte da burguesia

brasileira participar da indústria não significar industrialização nem uma burguesia nacional.

Como economia reflexa, a economia brasileira está exposta a mais uma crise de reversão

neocolonial (SAMPAIO JR., 1999a: pp. 113-114). Neste processo, a burguesia oportunista

não está dividida, mas alinhada aos negócios estrangeiros, tendo somente uma cisão derivada

de parte ter acesso privilegiado ao Estado – sua fração burocrática – e outra não. Do que

depreendemos de Caio Prado que o importante é compreender como uma burguesia pode

ganhar ao longo dos ciclos a que está exposta, e, dentre eles, o ciclo da indústria (SAMPAIO

JR., 1999b: p. 425).

Diferentemente desta noção de instabilidade exacerbada construída por Caio

Prado Júnior, Celso Furtado e Florestan Fernandes permitem enxergar como o capitalismo

subdesenvolvido e dependente adquire alguma estabilidade, sem, é claro, resolver os

problemas da formação (SAMPAIO JR., 1999a: p. 128). A crítica de Fernandes a Caio Prado

inclusive busca mostrar como o segundo subestimou o impacto do capital industrial a partir

do período de substituição de importações: “Há deslocamentos na economia. O capital

mercantil não desaparece. Mas perde sua função hegemônica e determinante. O círculo

vicioso persiste, mas não por sua conta” (FERNANDES, 1988: p. 10). Por duas formas

distintas apreendemos o significado da industrialização, portanto.

Celso Furtado, apesar de não ser um teórico da burguesia brasileira – já que está

orientado para a resolução do problema do subdesenvolvimento a despeito do que considera

como as fragilidades das classes sociais brasileiras –, explicou traços fundamentais da relação

entre a industrialização e a classe dominante interna. O fundamental reside em considerar que

o motor do subdesenvolvimento é a dependência cultural das elites que buscam a permanente

modernização dos padrões de consumo. Esta dependência cultural se converte em

dependência econômica na medida em que a necessidade de mobilizar recursos para

promover a modernização exige a concentração da renda e a busca da dinamização da

economia pelo caminho mais curto: o setor agrário-exportador. A industrialização por

substituição de importações caminha com a ambiguidade de um processo adaptativo: movido

pelas exigências da modernização em condições internacionais adversas e promovendo bases

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36

materiais que apontam para uma economia nacional. Quando, contudo, a industrialização e a

política econômica se constituem como funções das empresas transnacionais – o que se

consolida entre o início da indústria pesada e a ditadura –, a dependência se repõe em um

patamar superior. Como a burguesia brasileira nunca foi uma burguesia nacional, já que desde

a origem esteve vinculada a negócios de comércio internacional, os caracteres do grupo

industrial formado entre os anos 1950 e 1960 explica o padrão de ação econômica e política

desta burguesia. O grupo é uma composição de capitais com clara divisão de trabalho, onde a

empresa transnacional lidera e chama a participação do capital local, privado ou estatal, no

esforço industrializante. A industrialização, apesar de aprofundar os problemas típicos do

subdesenvolvimento e exacerbar as taras pela modernização, fornece um espaço de

valorização razoavelmente grande para as empresas transnacionais, o que faz Furtado

compreendê-lo como processo mais estável, ao menos nas análises dos anos 1970. O futuro

depende da estratégia do capital internacional, que pode colocar em xeque as propriedades

construtivas da industrialização para um país subdesenvolvido, análise que se consolida mais

tarde54.

Florestan Fernandes tira lições sobre a dinâmica econômica, social e política da

situação específica trazida pela consolidação do capitalismo dependente. O ponto fundamental

é o reconhecimento de que a combinação entre o moderno e o atraso no capitalismo brasileiro

responde pela necessidade de remunerar a capitais internos e externos e pela necessidade de

garantir condições de defesa dos internos da violência da mudança econômica vinda de fora.

Na medida em que a combinação esvazia a esfera econômica da dinâmica da concorrência e

da inovação e a esfera social da dinâmica do conflito, a sociedade se torna sobrepolitizada no

que diz respeito à mudança socioeconômica. Do ponto de vista que mais nos interessa aqui,

isto significa que a burguesia brasileira exige do Estado a intervenção para resolução de

conflitos externos e internos, com o objetivo de garantir o que é essencial em uma economia

esvaziada de seu conteúdo transformador: a propriedade, as oportunidades e os privilégios,

calibrando de dentro os impulsos que vêm de fora. Quando da consolidação do capitalismo

dependente como contrarrevolução permanente, fica mais claro que a burguesia brasileira é

impotente para fora, mas onipotente para dentro. Sua opção pela incorporação ao sistema

54 Em especial em “Brasil: a construção interrompida” (FURTADO, 1992), Celso Furtado faz o balanço de mais de uma década de crise brasileira e dos resultados das mudanças operadas pelo capital transnacional na ordem internacional quem colocam em xeque o desenvolvimento nacional e aprofundam as dificuldades de países subdesenvolvidos. O apelo ao peso das tendências em curso – um país que foi da formação à construção interrompida – busca chamar atenção à gravidade dos problemas.

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econômico e social dos Estados Unidos se dá em condições especiais, sob o signo da Guerra

Fria e da ameaça socialista na América Latina, o que lhe confere uma capacidade inusitada de

barganhar as condições de dependência, acelerar a modernização e garantir sua parcela dos

ganhos advindos da dinamização capitalista fundada na industrialização dependente. Por outro

lado, a imposição de um padrão de dominação autocrático reforça o fato de que seu

diferencial é a capacidade de manejar de forma quase que irrestrita as variáveis sociais,

econômicas e ambientais internas, em particular a superexploração do trabalho, capacidade

que é ao mesmo tempo ponto forte e fraco. Estes dois aspectos, externo e interno, lhe

conferem a capacidade de “congelar” a revolução democrática e nacional, enquanto acelera a

revolução capitalista, conferindo estabilidade ao capitalismo dependente.

A despeito da força da interpretação de Furtado e Fernandes a respeito das

condições que permitiram ao capitalismo dependente se tornar menos instável, eles apontam

claramente algumas variáveis que condicionam este processo. Em especial, o contexto

geopolítico marcado pela polarização entre o capitalismo e o socialismo e um período de

dominância de estratégias transnacionais baseadas na concorrência pelo controle de mercados

nacionais emergentes e relativamente fechados. Quando se torna claro, na virada dos anos

1980 para os anos 1990, que estes dois parâmetros haviam mudado, a relevância das

tendências à reversão neocolonial se tornam maiores e urgentes. A essência da interpretação

de Caio Prado Júnior passa a ser guia fundamental das análises comprometidas em resgatar a

problemática da formação para compreender e transformar o Brasil.

Como síntese, é crucial que uma leitura atual do capitalismo brasileiro e do papel

da burguesia brasileira leve em conta como se dá a permanência e a reposição da dupla

articulação. Do ponto de vista externo, é fundamental saber quais são o contexto político

internacional, a lógica de operação das empresas transnacionais de base produtiva e

financeira, e o sentido do ciclo econômico internacional e sua influência sobre a economia

brasileira. Do ponto de vista interno, em que medida os objetivos da burguesia combinam a

modernização dos padrões de consumo, a manutenção da propriedade e dos privilégios e os

ganhos através da especulação e do rentismo. E particularmente de que maneira a burguesia

brasileira depende, para atingir seus objetivos, do manejo das variáveis internas estratégicas:

uma padrão de relações de produção marcadas pela superexploração do trabalho, pelo uso

predatório dos recursos naturais e do acesso e do manejo privilegiado do Estado em função de

seus interesses.

Page 43: Monte-cardoso_artur-2014-Burguesia Brasileira Nos Anos 2000 - Versao Final Para Banca

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Mais especificamente, é fundamental entender quais são as estratégias desta

burguesia: se o seu mercado é externo ou interno; se sua base técnica se apoia na inovação ou

na cópia ou aquisição dos pacotes tecnológicos de fora; se sua base financeira é interna –

própria de um grupo, da burguesia como um todo (a banca privada) ou do Estado – ou

estrangeira; em que medida ela exige o Estado para sua realização; e como se utiliza das

relações com o trabalho e os recursos naturais disponíveis. Quanto à sua estratégia de

acumulação, o decisivo é entender qual o grau de dependência desta burguesia e como, no

processo de mudança dos termos da dependência, a burguesia prossegue abrindo espaço para

realização de negócios vinculados crescentemente às necessidades e interesses do capital

internacional.

Page 44: Monte-cardoso_artur-2014-Burguesia Brasileira Nos Anos 2000 - Versao Final Para Banca

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Capítulo 2: Burguesia brasileira e reversão neocolonial

1. Introdução

Este capítulo tem como objetivo compor um quadro geral sobre o sentido das

transformações em curso no Brasil nos anos 2000. Este quadro permitirá revelar os

condicionantes que delimitam o espaço de atuação da burguesia brasileira e, desta forma,

estabelecer conexões entre a mudança na economia brasileira e as estratégias dos grupos em

estudo nesta dissertação. A ideia chave é que embora os anos 2000 sejam marcados, na

superfície dos fatos, por uma mudança frente aos anos anteriores – cuja marca principal é o

ciclo de crescimento –, o que ocorre na verdade é a continuidade do processo de crise do

desenvolvimento das décadas passadas. A despeito das leituras que buscam afirmar haver um

neodesenvolvimentismo em curso no Brasil, a explicação da origem do ciclo de crescimento

que permitiu ligeiro aumento da já pequena margem de manobra do Estado brasileiro está em

determinantes externos, um comportamento típico do reposicionamento do país na divisão

internacional do trabalho. Trata-se de um conjunto de transformações que apontam, na

essência, para o prosseguimento de um processo de reversão neocolonial, entendido como o

comprometimento da capacidade do Estado nacional fazer políticas públicas, garantir direitos

e submeter a acumulação necessidades da coletividade55.

Este capítulo contará com três seções além desta introdução. No item 2, será

apresentada a visão básica sobre o sentido das transformações ocorridas entre o final dos anos

1970 até às vésperas do século XXI. Será mostrado como a junção de determinantes externos

– a transnacionalização do capital e a mudança geopolítica advinda do fim da URSS – e de

determinantes internos – o padrão de ajuste ao pagamento da dívida e de ingresso na

globalização por políticas neoliberais – conduziram o país a um processo de reversão

neocolonial.

No item 3, apresentaremos o debate sobre o significado dos anos 2000,

subdividido em três partes. Na primeira, será apresentada a difundida visão

“neodesenvolvimentista” de que houve uma mudança de qualidade frentes às décadas

anteriores, caracterizado pela retomada do crescimento, equacionamento da vulnerabilidade

externa e pela distribuição de renda. Em resposta a esta visão serão apresentadas visões que

55 Cf. Sampaio Jr. (2012a: p. 44 e p. 98).

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lhe são críticas e que buscam explicar as mudanças no período a partir dos determinantes

externos que deram alguma margem de manobra – dentro do exíguo campo existente – para o

Estado brasileiro flexibilizar sua política econômica e atingir os resultados obtidos. Em

seguida, será apresentada uma crítica ao neodesenvolvimentismo, buscando mostrar que este

pensamento, desprovido de um processo de desenvolvimento nacional e limitado a uma

análise que não enfrenta questões estruturais, se torna uma análise restrita a questões de

gestão da política econômica e aos conflitos internos dos gestores.

No item 4, por fim, serão apresentados os atuais e principais os nexos das

transformações em curso nos anos 2000, buscando explicar como eles condicionam a

continuidade, aprofundamento e aceleração do processo de reversão neocolonial e, desta

forma, permitindo montar um quadro dos determinantes do raio histórico de ação da

burguesia brasileira neste contexto.

2. A crise do desenvolvimento brasileiro como tendência à reversão neocolonial

Como dito anteriormente, este item buscará apresentar alguns elementos que

ajudem na compreensão das transformações conjuntas no plano mundial e no plano doméstico

e como elas resultam em um processo de perda progressiva do controle sobre os fins e os

meios que permitem subordinar a acumulação do capital à vontade coletiva de uma sociedade

nacional, nos quadros da tradição desenvolvimentista56. Os ajustes promovidos nos anos 1980

e 1990, somados à reduzida capacidade do Estado resistir às tendências disruptivas do

capitalismo transnacionalizado e à opção estratégica da burguesia brasileira por uma inserção

subalterna na nova ordem, promoveram um acelerado processo de mudança nos parâmetros

do capitalismo dependente, uma nova (e muito mais especializada) inserção na divisão

internacional do trabalho, uma aceleração da desindustrialização além de uma gigantesca crise

social que desintegram os laços de unidade nacional e entre classes que continha as

contradições dos problemas históricos, legando aos anos 2000 um padrão de transformações

que intensifica o processo de reversão neocolonial.

Segundo a contribuição de Celso Furtado – sintetizada em Hadler (2012) –, a

reorganização do capitalismo no pós-guerra tem como eixo principal o processo de projeção

internacional do sistema econômico da potência hegemônica, os Estados Unidos – seus

56 Ver o capítulo 1, itens 2 e 3.

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41

padrões técnicos, financeiros, culturais e éticos. Este processo de expansão, que se confunde

com a expansão das grandes corporações, evolui de uma concorrência pela conquista de

mercados internos para um processo de transnacionalização do capital. Trata-se da

constituição de um circuito global de valorização do capital, que emerge com força na década

de 1970, movida pela busca das empresas transnacionais pela combinação de recursos

produtivos dispersos em escala mundial sob sua coordenação, apoiada por um braço

financeiro igualmente transnacional capaz de prover liquidez na escala correspondente.

A transnacionalização do capital é um fenômeno crucial devido às consequências

trazidas para o desenvolvimento nacional. Para as sociedades do centro, que seriam

correspondentes ao modelo clássico de desenvolvimento de Furtado, a transnacionalização

representa um confronto direto com os Estados nacionais, ao inviabilizar a sua

governabilidade, deixando-as suscetíveis à instabilidade estrutural e rompendo os vínculos de

solidariedade entre capital e trabalho construídas nos anos anteriores (HADLER, 2012: pp.

132-143). Nas sociedades marcadas pelo subdesenvolvimento e pela dependência, as

consequências são muito mais graves, pois implicam o bloqueio das possibilidades de

emergência de um Estado nacional com autonomia relativa. Como consequência, são

intensificadas as tendências à reversão neocolonial, entendido como processo de dissolução

das bases objetivas e subjetivas que permitem ao Estado Nacional manter uma autonomia

relativa que permitem defender os interesses estratégicos da sociedade nacional, bem como

garantir direitos e políticas sociais que fomentem a integração nacional e regional (SAMPAIO

JR., 2012a: p. 44, p. 98)57. Como a modernização dos padrões de consumo é o fio condutor do

processo de acumulação por substituição de importações, na medida em que se acelera o

progresso técnico e se concentra o seu controle nas mãos das empresas transnacionais, se

aprofunda permanentemente o fosso entre as possibilidades desta sociedade e seus objetivos,

impondo custos crescentes da modernização, bem como a continuidade da heterogeneidade

produtiva e social. A contrapartida da aceleração de um processo de modernização dos

padrões de consumo é o aprofundamento da dependência financeira, que seria decisiva na

57 A reversão neocolonial é entendida como “um processo de mudança econômica, social, política e cultural que compromete definitivamente a possibilidade de conciliar desenvolvimento capitalista, distribuição de renda e soberania nacional. O processo coloca em questão a própria sobrevivência da sociedade nacional como coletividade capaz de controlar os fins e os meios das transformações capitalistas” (SAMPAIO JR., 2012a: p. 44). E também: “(...) o processo de reversão neocolonial não significa o fim do Estado nacional, mas apenas o comprometimento crescente de sua capacidade de fazer políticas públicas, baseadas nas noções de direitos universais e interesses estratégicos da nação” (IDEM: p. 98).

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crise do próprio modelo brasileiro a partir dos anos 1980 (HADLER, 2012: pp. 150-161;

FURTADO, 1983: pp. 34-38).

A eclosão da crise da dívida nos anos 1980 e os desdobramentos que paralisam o

Brasil desde então nada mais representam que o esgotamento do “modelo brasileiro”:

“No entanto, quando tudo parecia indicar que não havia incompatibilidade incontornável entre dependência e desenvolvimento nacional, os processos desestruturantes começaram a vir à tona. Em pouco tempo, a crise da dívida externa, o colapso das finanças públicas, a desarticulação do sistema monetário, a estagnação do crescimento, a submissão incondicional aos ditames da comunidade financeira internacional, o desmantelamento do Estado nacional, a exacerbação dos conflitos federativos, o aumento assustador do desemprego e do subemprego, a progressiva desnacionalização da economia e a elevada vulnerabilidade do parque industrial ao novo padrão de concorrência internacional começaram a evidenciar a pertinência de suas advertências. A total incapacidade do Brasil de reagir de maneira construtiva às profundas transformações provocadas na ordem econômica mundial pelo processo de globalização não deixa margem de dúvida em relação à elevada vulnerabilidade da industrialização brasileira às vicissitudes do capital internacional” (SAMPAIO JR., 1999b: p. 426).

O enquadramento do Brasil às necessidades dos credores internacionais e aos

desígnios das instituições financeiras multilaterais nos anos 1980 impõe a geração de saldos

comerciais geradores de divisas e a aquisição delas pelo Estado para o pagamento da dívida58.

A viabilização deste ajuste passa, por um lado, por reorientar a economia brasileira para

setores em que possa obter competitividade internacional, e por outro, pela contenção das

importações (obtida através da recessão) e pelo endividamento público, constituindo uma

“nova dependência” (FURTADO, 1983: cap.1). Dado que o padrão tecnológico da fronteira é

ferrenhamente controlado pelas empresas transnacionais, ao capitalismo dependente resta uma

combinação entre pagar o preço pela modernização produtiva e se especializar em ramos em

que possuem vantagens comparativas estáticas, geralmente associadas à livre exploração da

força de trabalho e de recursos naturais. E além: a entrada na guerra comercial global passa

por abrir o mercado interno à concorrência externa, expondo as conexões de um sistema

econômico em formação, ainda que subdesenvolvido, à brutal competitividade acumulada

pelas corporações transnacionais. O resultado desta equação só poderia ser a ênfase na

reprimarização contra a industrialização e a ênfase no mercado externo contra o mercado

interno, que conduz a uma conclusão dramática: “Já não se trata mais da interrupção do

processo de formação das bases econômicas de uma nação autodeterminada, mas da

possibilidade de reversão do processo, de destruição daquelas bases materiais e do elemento

que lhe imprimia dinamismo [o espaço econômico nacional]” (HADLER, 2012: p. 168).

58 Cf. Sampaio Jr. (1988).

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Ficam, assim, comprometidas as bases objetivas e subjetivas de um desenvolvimento

nacional:

“Pelo lado das condições subjetivas, abortou-se o processo de formação de uma burguesia nacional que se projetasse como classe dirigente, legitimando-se pela defesa dos interesses nacionais. Quanto às condições subjetivas, o controle das atividades industriais por empresas de atuação transnacional vem corroendo as bases de um sistema econômico nacional, aumentando o grau de desarticulação da economia nacional” (HADLER, 2012: p. 151).

Nos anos 1990, em vez de se interromperem as tendências regressivas, elas se

consolidam em um novo patamar. A partir desta década, a transnacionalização do capital se

converte em padrão único da economia global, correspondente a uma ordem internacional

polarizada pela lógica de conquista da potência americana (SAMPAIO JR., 2012a: pp. 94-95).

Período marcado pela abertura comercial e financeira e pela institucionalização da

estabilização monetária como objetivo maior da política econômica, é nele que o receituário

neoliberal ascende ao centro da agenda política nacional, confirmando uma opção das classes

dirigentes pela incorporação do país à globalização e pelo desfrute – por poucos – da nova

rodada de modernização dos padrões de consumo:

“Desde então [anos 1990], a economia brasileira passou a se organizar em função de dois objetivos primordiais: a abertura de novas frentes de negócios para o grande capital, nacional e internacional; e a viabilização de uma nova rodada de modernização dos padrões de consumo. Abandonava-se o padrão de acumulação baseado na industrialização por substituição de importações (...)” (SAMPAIO JR., 2005 apud SAMPAIO JR., 2012a: p. 99).

Em consonância com a pressão do grande capital e as decisões pela integração ao

todo, coube ao Estado nacional implementar modificações de caráter antinacional em diversos

parâmetros econômicos e estabelecer uma política econômica que no fim sancionasse as

tendências externas59. A abertura comercial expôs definitivamente o parque industrial à

59 “Muito além de buscar o equilíbrio macroeconômico, as medidas que compõem o receituário neoliberal – a prioridade absoluta à estabilidade da moeda, a crescente liberalização comercial e financeira, a privatização indiscriminada, a desregulamentação radical da economia, a busca a qualquer custo da competitividade internacional, o ajuste fiscal permanente, a flexibilização da relação capital-trabalho e todas as mudanças institucionais preconizadas pelos organismos internacionais – têm a finalidade de adequar as estruturas e os dinamismos das economias periféricas às novas exigências do capital financeiro global, redefinindo o padrão de dependência externa, o papel do Estado na economia e a relação capital-trabalho. É, portanto, todo o funcionamento da economia e da sociedade brasileira que precisa se adaptar às novas determinações do capital internacional. O sentido das mudanças é conhecido. No plano das relações do país com os centros de poder do sistema capitalista mundial, trata-se de criar mecanismos de tutela que garantam o controle quase que absoluto da política econômica dos países periféricos pelo capital internacional e pelos organismos internacionais. No que diz respeito ao padrão de intervenção do Estado na economia, o Estado deve ser “máximo” na sua capacidade de abrir novas frentes de acumulação, assegurar o cumprimento dos contratos, selar pela estabilidade da moeda e subordinar a política fiscal aos interesses rentistas dos detentores da dívida pública e, por essa razão, precisa ser “mínimo” na sua capacidade de fazer políticas públicas. No que se refere à relação capital-trabalho, a palavra de ordem é: “direitos mínimos para o trabalho, obrigações máximas para o trabalho” (SAMPAIO JR., 2012a: pp. 100-101).

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predatória concorrência internacional, enquanto que a abertura financeira garantiu a

mobilidade do capital internacional e a vulnerabilidade das contas externas aos fluxos

internacionais (MACHADO, 2011). As privatizações criaram oportunidades de negócios,

muitas vezes subsidiadas, para os grandes capitais nacional e internacional aproveitarem, não

raras vezes associados (BIONDI, 1999). No mesmo sentido, diversos grupos privados

partiram para a linha de menor resistência, promovendo uma onda de desnacionalização de

grupos e setores (GONÇALVES, 1999). Um dos denominadores comuns foi a multiplicação

do rentismo da grande finança apoiada sobre a dívida pública interna ou externa, lastro último

do processo de estabilização monetária (FILGUEIRAS, 2000). Este rentismo não se limitou

aos grupos financeiros, mas virou opção de negócio para parcela da burguesia

(GONÇALVES, 1999), dando continuidade a um padrão de acumulação cuja origem remonta

à década de 1980 (BELLUZZO & ALMEIDA, 2002: cap. 5). Mais uma vez a recessão foi a

contrapartida do ajuste, neste caso devido à estabilização, contribuindo para acumular uma

gigantesca crise social a dar um golpe de morte no sistema econômico nacional, abalado pela

separação entre mercado interno, crescentemente atendido por importações, e produção

interna, pautada pela desindustrialização e pela especialização regressiva. O resultado, como

não poderia deixar de ser, foram dramáticos do ponto de vista do emprego e da crise social

que se alastrou.

Ao iniciarem-se os anos 2000, após a crise cambial de 1998-1999, os parâmetros

que dão substância ao período já estão desenhados: uma necessidade crescente de exportações

que encontra oportunidades em novo ciclo de demanda por commodities; a petrificação do

ajuste fiscal que garante a rolagem da dívida pública, as oscilações cambiais advindas da

especulação do capital financeiro internacional, responsável por desvalorizações e

valorizações da moeda, e a corrosão dos centros internos de decisão, já desprovidos de base

material, instrumentos e lastro social para dirigir qualquer processo de defesa de interesses

nacionais.

3. Os anos 2000 e o neodesenvolvimentismo

Neste tópico, apresentaremos a uma leitura, identificada com as correntes

neodesenvolvimentistas, de que o Brasil nos anos 2000 adquiriu condições de promover

crescimento econômico, distribuição de renda e soberania, condição esta que explicaria a

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origem do ciclo de crescimento que teria inaugurado um momento de qualidade distinta das

décadas de crise anteriores. Em resposta a tais visões serão apresentadas leituras críticas que

afirmam ser o referido ciclo explicado por fatores externos que, apesar das modificações

permitidas por uma melhora marginal na margem de manobra interna, aprofundam um padrão

econômico dependente e antissocial. Feita esta qualificação, o neodesenvolvimentismo pode

ser entendido como parte da crise da teoria do desenvolvimento e uma expressão da falta de

opções do pensamento que não ultrapassa os limites dos parâmetros da ordem capitalista

dependente.

3.1. O neodesenvolvimentismo

Os anos 2000 são marcados por um surto de crescimento que coincidiu com os

dois governos Lula, onde o crescimento do PIB atingiu a média de 4,0% ao ano, contra 2,3%

durante o período FHC (GONÇALVES, 2013), chegando a uma média anual de 4,6% no

segundo mandato. A retomada do crescimento, junto com um conjunto de melhorias nos

indicadores de emprego, salário, desigualdade, investimento, balança comercial, acúmulo de

reservas, expansão do crédito, dentre outros, foi intensamente aclamada em parte do mundo

político e acadêmico como uma virada na história do Brasil, abrindo um novo período de

desenvolvimento. Deste processo surgiram diversas tentativas de interpretação do período que

convergiram para o nome de neodesenvolvimentismo, expressão maior da explicação otimista

das transformações ocorridas, que se sintetiza na máxima de que o Brasil reuniu as condições

para conciliar crescimento com distribuição de renda e uma relativa soberania nacional.

Cogitada desde os primeiros anos do governo Lula (BRESSER-PEREIRA, 2004;

SICSÚ, PAULA & MICHEL, 2005), a ideia de que estão criadas as condições para um novo

período desenvolvimentista ou mesmo que ele está já em curso adquiriram força e

conhecimento público no final da década de 2000, com a recuperação do Brasil do momento

agudo da crise, no biênio 2009-2010, e com o lançamento de trabalhos de pessoas ligadas ao

governo buscando disputar o cenário político das eleições de 2010 e além (SADER &

GARCIA, 2010; OLIVA, 2010a, 2010b). A reivindicação de um novo desenvolvimentismo

(ou neodesenvolvimentismo) fez parte do discurso de diferentes vertentes de autores que

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buscaram explicar as mudanças do período, portadoras de um núcleo comum, mas divididas

por alguns nuances, como mostrado por Monte-Cardoso (2013)60.

O núcleo comum neodesenvolvimentista afirma que o Brasil do final dos anos

2000 é um Estado com condições de promover crescimento econômico alto e sustentado,

conciliando distribuição de renda e redução da vulnerabilidade externa61. Para usarmos a

leitura com maior projeção, alinhada a um certo neodesenvolvimentismo “oficial” – expresso

nas obras de Oliva (2010b), Sader e Garcia (2010) e, no campo econômico, Barbosa e Souza

(2010) –, esta nova fase teria sido resultado principal de decisões políticas dos governos

petistas. Aproveitando um cenário externo favorável, o governo foi capaz de estabelecer uma

estratégia de ampliação dos mercados externos, atração de investimentos e acúmulo de

reservas cujo resultado seria o equacionamento do histórico problema das restrições externas.

Deslocando o peso do ciclo internacional de negócio para um segundo plano (o de condições

que foram aproveitadas), Oliva (2010a, 2010b) mostra que foram decisões internas que

permitiram materializar os benefícios do cenário externo em margem de manobra para

conciliar política anticíclica, investimentos estatais e políticas sociais ampliadas e melhor

coordenadas.

Segundo Monte-Cardoso (2013), em todas as visões neodesenvolvimentistas é

comum a noção de desenvolvimento entendida como crescimento alto e sustentado, que

permite conciliar distribuição de renda e capitalismo. Trata-se de uma forma de diferenciação

tanto com o período anterior, taxado de neoliberal e marcado pela estagnação, como com o

velho desenvolvimentismo, notoriamente antissocial e desequilibrado. O objetivo último é

60 Segundo Monte-Cardoso (2013), seriam três as correntes neodesenvolvimentistas. A primeira corresponderia à leitura oficial, elaborada de forma menos organizada e defendendo o papel primordial do governo Lula. Suas principais expressões são Oliva (2010a, 2010b) e Barbosa e Souza (2010), com aportes relevantes de Sader e Garcia (2010), Mantega (2007), Coutinho (2011), Pochmann (2012), dentre outros. O novo-desenvolvimentismo, corrente mais organizada do ponto de vista teórico, defende uma estratégia macroeconômica export-led com equilíbrio macroeconômico e fiscal. Suas principais teses podem ser encontradas em Sicsú, Paula e Michel (2007), Bresser-Pereira (2010a, 2010b), Oreiro (2012) e Oreiro e Paula (2011). Por fim, o social desenvolvimentismo, uma outra variante acadêmica que disputa os rumos do governo e ainda não tão organizada, advoga o esgotamento do crescimento baseado no consumo interno e prescreve uma estratégia baseada no investimento autônomo, fundamentalmente em infraestrutura. Os trabalhos mais destacados nessa visão são os de Carneiro (2011, 2012), Costa (2012) e Bastos (2012). 61 Como não há um consenso sobre o fato de o Brasil já ter implementado uma estratégia desenvolvimentista, a posição consensual é a de que já há condições para a mudança de qualidade. Há os que afirmam que ele foi coerente desde o começo, fazendo contudo concessões em prol da governabilidade e do ajuste fiscal necessário (OLIVA, 2012b; MANTEGA, 2007; PINHO, 2011). Para outros, o governo só muda a partir de 2005 e 2006, como em Barbosa e Souza (2010), ou 2007-2008, em Coutinho (2011). Há ainda visões dentro do debate que argumentam ainda estar em disputa a orientação do governo, apesar de progressivamente se alinhar ao desenvolvimentismo (ERBER, 2011; MORAIS & SAAD-FILHO, 2011). Em Bresser-Pereira (2010a, 2010b) se encontra uma visão que considera ainda não iniciada a estratégia desenvolvimentista (por ele proposta).

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alcançar os padrões de renda per capita dos países desenvolvidos (catching-up), o que faz

com que a estratégia seja pautada por destravar as amarras do crescimento econômico.

O desafio, que teria sido parcialmente vencido nos anos 2000, é o de garantir a

intervenção do Estado com o papel de correção das “taras” do capital financeiro e promoção

do capital empresário. Trata-se de uma leitura de base keynesiana, que compreende o conflito

social fundado entre classes rentistas e classes produtivas – empresários e trabalhadores62.

Trazendo para o centro da agenda de unidade produtiva a questão social, o

neodesenvolvimentismo coloca o peso da resolução de questões sociais relativas ao

desemprego e à pobreza a dinamização do mercado de trabalho, possível apenas em condições

de alto crescimento no longo prazo, fonte de emprego e margem para políticas sociais. Nesta

leitura, as reformas estruturais como a reforma agrária nem se colocam como pilares de uma

estratégia de desenvolvimento. Os anos 2000, mais uma vez, teriam mostrado não apenas o

sucesso do equacionamento de questões sociais, pela combinação de crescimento do emprego,

do consumo e da redução da pobreza, como mostrado o caminho para a resolução dos

problemas.

Os neodesenvolvimentistas reconhecem no velho desenvolvimentismo legados

decisivos – a industrialização relativamente avançada, ainda que com problemas, e o Estado

com capacidade de fazer a coordenação e o planejamento estratégico do desenvolvimento.

Contudo, também identificam então a não-resolução de problemas que impõem limites e

constrangimentos ao desenvolvimento, dentre os quais estão a falta de bases técnicas e

financeiras próprias, que mantém uma dependência externa e exigem a presença do Estado.

Em suma, o neodesenvolvimentismo é a explicação mais otimista e positiva do

período atual, fortemente associada com a defesa dos méritos ou disputa dos rumos dos

governos petistas. Se se considera de uma lado a mudança no cenário externo, por outro se

joga ênfase decisiva na explicação dos fatos às decisões internas do Estado brasileiro,

explicada apenas por uma condição de considerável autonomia do Estado. Desde a

perspectiva adotada neste trabalho, tal explicação tende a desconsiderar todos os parâmetros

estruturais já apontados e, desta forma, o essencial: o peso mais que proporcional que as

variáveis externas possuem devida à própria posição do Brasil na divisão internacional do

62 Apesar de alguns aportes que reivindicam uma posição de corte classista, as explicações práticas e o programa de desenvolvimento do neodesenvolvimentismo não considera antagonismos entre classes burguesa e trabalhadora, colocando no centro da agenda a capacidade e a necessidade de conciliar interesses em torno do capital produtivo, responsável pelo crescimento. Daí se tratar, fundamentalmente, de uma análise de fundo keynesiano.

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trabalho e à sua vinculação aos negócios transnacionais. O tópico seguinte busca neste

caminho uma explicação para o ciclo dos anos 2000.

3.2. Uma crítica à origem do crescimento nos anos 2000

O “período neodesenvolvimentista” foi fruto de uma margem de manobra aberta

por condições exteriores extremamente favoráveis ao alívio das contas externas, permitida por

um ciclo econômico favorável às exportações brasileiras, especialmente de commodities, e

favorável ao endividamento externo, através de uma nova enxurrada de investimentos

externos. Minorando as pressões sofridas pela economia brasileira no balanço de pagamentos

e viabilizando um período de relativa solvabilidade externa, o ciclo internacional viabilizou

uma flexibilização quantitativa da política econômica, dando alguma margem para o governo

federal implementar políticas sociais e investimentos. Longe, contudo, de alterar os padrões

de inserção externa e as relações de produção que caracterizam a economia brasileira desde a

década de 1990, este período na verdade aprofundou um desenvolvimentismo às avessas.

A ascensão de uma nova divisão do trabalho internacional comandada pelas

relações entre EUA e China promoveu um período de extraordinária dinamização dos

mercados financeiros internacionais e dos mercados de gêneros primários, minerais,

agropecuários ou commodities industriais (FILGUEIRAS et alli, 2010). O Brasil,

crescentemente integrado ao circuito de valorização internacional e em pleno

reposicionamento na divisão internacional do trabalho, foi fortemente influenciado nos anos

2000 por este novo período: viu crescer como nunca o saldo comercial e o afluxo na conta

capital e financeira. Por um lado, o Brasil dispõe de ampla oferta de recursos naturais capazes

de responder à demanda externa, torna-se rapidamente um exportador de gêneros primários,

cujo valor ascende a patamares inéditos mais que proporcional dos preços. Por outro, o país é

inundado por investimentos, em sua maioria especulativos, que buscavam os diferenciais de

juros permitidos pela dívida pública, a especulação com ações de empresas ligadas aos

negócios exportadores e o atendimento a um mercado corporativo carente de financiamentos

de longo prazo (FILGUEIRAS & OLIVEIRA, 2012). Após décadas, o país passou por um

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período sem restrições no balanço de pagamentos63, o calcanhar de Aquiles da economia

brasileira.

Foi este impulso inicial, do ponto de vista macroeconômico, e a condição externa

permitida por ele, do ponto de vista do financiamento da economia, que criou as condições

para o ciclo de crescimento dos anos 2000. Com margem de manobra, ao governo foi possível

executar uma flexibilização quantitativa da política econômica, conciliando a continuidade do

tripé macroeconômico com a execução de políticas sociais e investimentos (FILGUEIRAS et

alli , 2010). O mercado interno obtém um recuperação relativa fundada no crédito que foi

viabilizado, por sua vez, pelo ciclo de liquidez externo (SAMPAIO JR., 2012c). O resultado

foi um período marcado pela aceleração do crescimento, menor desemprego e leve melhoria

na distribuição de renda funcional e pessoal, redução da pobreza extrema e redução da

vulnerabilidade externa conjuntural.

A experiência de uma nova margem de manobra permitiu ao governo inclusive

fazer importantes alterações na estrutura do capital brasileiro através do BNDES,

capitalizando grupos, estimulando a fusão entre eles e sua internacionalização. Este

movimento correspondeu a um atendimento das pressões de empresas64 – como JBS, Fibria,

Gerdau, Camargo Correa, Vale e Odebrecht –, como contrapartida ao papel por elas

executado nas exportações, auxiliando a continuidade da folga nas contas externas

(FILGUEIRAS & OLIVEIRA, 2012: p. 7). A incorporação destes grupos ao núcleo de

relações políticas e econômicas do Estado tem, desta forma, origem no próprio

reposicionamento do país na divisão internacional do trabalho e a crescente dependência

estrutural por commodities.

Contudo, neste período de flexibilização não apenas só não houve mudança de

qualidade no padrão econômico vigente, como não houve o propósito de fazê-la. Os principais

parâmetros que caracterizam o Brasil pós-ajuste neoliberal permaneceram vigentes ou foram

aprofundados (FILGUEIRAS & GONÇALVES, 2007; FILGUEIRAS et alli, 2010). Do ponto

de vista das relações capital-trabalho, continuam marcadas pela retirada de direitos e pela

precarização e pela defensiva das organizações do trabalho, a despeito das melhorias

63 O Brasil chegou a ter superávit em transações correntes e acumulou centenas de bilhões de dólares em reservas. 64 “(...) as atuações estatais que favoreceram a burguesia interna não são fruto de um planejamento desenvolvimentista, mas sim o atendimento à demanda de internacionalização dos grandes grupos econômicos brasileiros, que precisavam de um ambiente externo favorável à sua expansão” (FILGUEIRAS & OLIVEIRA, 2012: p. 7).

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quantitativas; ressalte-se o retrocesso na questão agrária. Do ponto de vista das relações

intercapitalistas, o traço de é intensificação dos processos de concentração e centralização do

capital com participação decisiva do Estado na viabilização de diversos processos65. Quanto à

inserção internacional, prossegue a inserção especializada, agora polarizada pelo “efeito

China”. Quanto à estrutura de funcionamento do Estado, reforça-se a tendência de

subordinação ao capital financeiro. Por fim, a dinâmica macroeconômica pode passar por um

período menos instável do ponto de vista conjuntural, a despeito do agravamento da

vulnerabilidade externa estrutural (FILGUEIRAS & OLIVEIRA, 2012: pp. 8-12).

Um dos pontos mais defendidos como uma mudança de rumos promovida pelo

governo, a política externa, é um desdobramento deste mesmo padrão. Pragmaticamente, ela

serviu para reforçar a nova posição do Brasil na divisão internacional do trabalho: “Na busca

desesperada por novos mercados e por capitais estrangeiros, a Presidência da República foi

instrumentalizada para vender o Brasil como se fosse commodities pelo mundo afora”

(SAMPAIO JR., 2012c). Tal é o comportamento no aprofundamento de relações com países

latino-americanos ou do grupo dos BRICS66. Mais paradigmática ainda é a posição

intransigente de defesa do neoliberalismo em diversos fóruns internacionais, cuja expressão

máxima é a recorrente bandeira pró-liberalismo comercial.

Essencialmente, a noção de que houve ou estaria em curso uma mudança

qualitativa dos rumos da economia brasileira só pode ocorrer se desconsideradas totalmente as

estruturas que repõem o subdesenvolvimento e a dependência:

O mito de que o Brasil estaria vivendo um surto de desenvolvimento que abriria a possibilidade de superação da pobreza e da dependência externa simplesmente ignora a fragilidade das bases que sustentam o ciclo expansivo dos últimos anos e seu efeito perverso de reforçar a dupla articulação responsável pelo caráter selvagem do capitalismo brasileiro: o controle do capital internacional sobre a economia nacional e a segregação social como base da sociedade brasileira (SAMPAIO JR., 2012c).

65 “O ‘retorno’ do Estado aponta para um objetivo claro, qual seja: o fortalecimento de um segmento do capital financeiro no Brasil, no sentido clássico de junção do capital bancário com o capital produtivo (Hilferding, 1985). O BNDES é o locus privilegiado desta operação. Como corolário de todo o processo em curso, vem-se definindo a participação do capital privado e estatal nacional no bloco de poder dominante. No âmbito político-administrativo, as divergências de interesse, no limite, são arbitradas por Lula” (FILGUEIRAS et alli, 2010: pp. 49-50). 66 “[A presidência da República] Também foi fartamente utilizada, principalmente na América Latina e na África, como representante especial de grandes grupos empresariais, basicamente empreiteiras e bancos, em busca de novos mercados nas franjas periféricas do sistema capitalista mundial. O discreto e vacilante apoio a Hugo Chávez, a maior aproximação com Cuba, os flertes com o mundo árabe e a busca de uma relação econômica mais intensa com a Índia, a Rússia e a China respondem a interesses comerciais bem concretos e não devem gerar qualquer tipo de ilusão em relação à articulação de alternativas que signifiquem um desafio à ordem global” (SAMPAIO JR., 2012c).

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Um elemento decisivo que conecta o Brasil às estruturas da dependência é a

aceleração da especialização e a desindustrialização que lhe é correspondente. Ao vincular-se

de forma aberta ao ciclo gerado pelo binômio EUA-China, o país não apenas primarizou sua

pauta de exportações como abriu mão do controle de seu comportamento, pois as variáveis

decisivas são todas externas (FILGUEIRAS & OLIVEIRA, 2012). O reposicionamento não é

apenas pontual, mas possui diversos desdobramentos:

A revitalização do agronegócio como força motriz do padrão de acumulação reforça o papel estratégico do latifúndio. A importância crescente do extrativismo mineral, potencializada pela descoberta de petróleo na camada do pré-sal, intensifica a exploração predatória das vantagens competitivas naturais do território brasileiro. Por fim, a falta de competitividade dinâmica (baseada em inovações) para enfrentar as economias desenvolvidas assim como a insuficiente competitividade espúria (baseada em salário baixo) para fazer face às economias asiáticas levam a um processo irreversível de desindustrialização (SAMPAIO JR., 2012c).

Como o sentido do processo aponta no sentido contrário da constituição de bases

objetivos e subjetivas para um desenvolvimento nacional com um mínimo de autonomia, o

novo desenvolvimentismo só pode ser às avessas:

Portanto, a “inversão de sinais” faz com que se possa atribuir ao Governo Lula a responsabilidade pela implementação do nacional-desenvolvimentismo às avessas. Este resultado tem sérias implicações quanto à trajetória futura do país. Conforme discutido, o ND tem como eixo estruturante a redução da vulnerabilidade externa estrutural. Na medida em que o Governo Lula implementa o ND com “sinal trocado”, ele reduz da capacidade estrutural do Brasil de resistir a pressões, fatores desestabilizadores e choques externos. Isto ocorre em todas as esferas: comercial (desindustrialização, dessubstituição de importações, reprimarização e perda de competitividade internacional); tecnológica (maior dependência); produtiva (desnacionalização e concentração prazo de instabilidade e crise no contexto de crescente globalização econômica) (GONÇALVES, 2012: p. 24).

O neodesenvolvimentismo, portanto, “(...) tal como o velho, sintetiza o

capitalismo possível de existir na periferia do capitalismo na ‘era imperialista’, cujas

características fundamentais são: dependência tecnológico-financeira, concentração de renda,

exclusão social e democracia restrita” (FILGUEIRAS et alli, 2010: pp. 38-39). Nestes marcos,

o raio de manobra da sociedade é mínimo e como não há sombra de ruptura com o legado

histórico de décadas:

Numa sociedade sujeita a um processo de reversão neocolonial, a distância entre a esquerda e a direita da ordem é pequena porque o raio de manobra da burguesia é ínfimo. O grau de liberdade se reduz, basicamente, às seguintes opções: maior ou menor crescimento, num padrão de acumulação que não dá margem para a expansão sustentável do mercado interno; maior ou menor concentração de renda, dentro dos limites de uma sociedade marcada pela segregação social; maior ou menor participação do Estado na economia, dentro de um esquema que impede qualquer possibilidade de políticas públicas universais; maior ou menor dependência externa, dentro de um tipo de inserção na economia mundial que coloca o país a reboque do capital internacional; e, como consequência, maior ou menor repressão às lutas sociais, dentro de um regime de “democracia restrita”, sob controle absoluto de uma

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plutocracia que não tolera a emergência do povo como sujeito histórico - seja pelo recurso ao esmagamento, que caracteriza os governos à direita da ordem; seja pelo recurso à cooptação, como fazem os governos que se posicionam à esquerda da ordem (SAMPAIO JR., 2012c).

3.3. Uma crítica à natureza do pensamento neodesenvolvimentista

Desprovido de uma base histórica de desenvolvimento, o neodesenvolvimentismo

se enquadra perfeitamente como corrente herdeira da crise da teoria do desenvolvimento, que,

ao desconsiderar os vínculos cruciais da dupla articulação, reduziu a problemática do

desenvolvimento ao desenvolvimento capitalista e, como vimos, ao crescimento econômico.

Os planos de análise em que se enquadram os neodesenvolvimentistas encaminham suas

análises e propostas para se limitar a mera tentativa de terceira via entre neoliberalismo e

velho desenvolvimentismo. Desta forma, acaba por tornar-se mais uma proposta de gestão do

exíguo espaço de manobra possível a uma sociedade em processo de reversão neocolonial.

Como mencionado no capítulo 1, surgiu nos anos 1960 e 1970 uma nova árvore

de interpretações sobre os dilemas das sociedades latino-americanas fundadas na ideia-chave

de que seria possível combinar dependência e desenvolvimento (SAMPAIO JR., 1999c). A

consequência prática desta combinação foi a diluição das contradições entre imperialismo e

desenvolvimento nacional e pobreza e desenvolvimento capitalista autodeterminado, o que

levou simplesmente à redução do problema do desenvolvimento a uma questão de

desenvolvimento capitalista (SAMPAIO JR., 2012b: pp. 676-678). Uma vez clara a

correspondência entre crise do desenvolvimento, desde os anos 1980, e a crise do pensamento

que a acompanha, o debate fica condicionado ao desempenho macroeconômico e às crises

pelas quais passa a economia brasileira no período. Considerando o avanço do neoliberalismo

no terreno da política econômica, das reformas estruturais e da ideologia, o pensamento

identificado com o avanço por dentro do capitalismo dependente fica desprovido de respostas

aos problemas candentes não resolvidos da formação e se conformam a um patamar de debate

ainda mais reduzido67.

67 Comentando os dilemas de uma das variantes da crise da teoria do desenvolvimento no Brasil diante das dramáticas transformações em curso nos anos 1990, Sampaio Jr. afirma: “Embora defenda a construção do sistema econômico nacional como objetivo estratégico da sociedade e o controle dos centros internos de decisão como o principal instrumento para alcançá-lo – preservando, assim, objetivos fundamentais da desenvolvimentista latino-americana – o enfoque do capitalismo tardio não dá conta dos problemas atuais do desenvolvimento capitalista dependente. A ausência de espaço de liberdade para ações capazes de superar as estruturas econômicas, sociais e culturais responsáveis pela perpetuação do subdesenvolvimento fecha as portas

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Os neodesenvolvimentistas fazem parte deste processo de crise teórica. Seu

surgimento se deve a um fato concreto – o ciclo de crescimento e os resultados obtidos nos

anos 2000 criaram a impressão, em um país marcado pela recessão, que havia mudanças reais

em curso (SAMPAIO JR., 2012b: p. 679). O problema é que, condicionado pela estreiteza das

opções históricas impostas pela ordem e pela longa tradição de abandono da antiga tradição

desenvolvimentista – vinculada ao problema da formação –, o neodesenvolvimentismo

acabou se tornando um fenômeno isolado ao Brasil e a grupos vinculados ao governo,

limitado a um horizonte de análise restrito a uma macroeconomia de curto prazo. No fundo,

seus limites se revelam na tarefa a que se propõem: ser uma terceira via entre o velho

desenvolvimentismo e o neoliberalismo:

O desafio do neodesenvolvimentismo consiste, portanto, em conciliar os aspectos “positivos” do neoliberalismo – compromisso incondicional com a estabilidade da moeda, austeridade fiscal, busca de competitividade internacional, ausência de qualquer tipo de discriminação contra o capital internacional – com os aspectos “positivos” do velho desenvolvimentismo – comprometimento com o crescimento econômico, industrialização, papel regulador do Estado, sensibilidade social (SAMPAIO JR., 2012c: p. 679).

Uma das lacunas que se sobressai nas leituras neodesenvolvimentistas é a

ausência quase total de menção ao papel cumprido pelas burguesias locais no novo padrão.

Ao contrário da antiga tradição desenvolvimentista, que vinculava as transformações em

curso e as possibilidades inscritas no processo histórico ao protagonismo de uma burguesia

nacional em constituição68, o neodesenvolvimentismo descarrega o peso das decisões e da

realização das transformações no Estado, como se fosse um agente histórico autônomo. Ou,

na melhor das hipóteses, o Estado seria o responsável por destravar o potencial empreendedor

da burguesia brasileira, limitado pela ausência de perspectivas de inversão e pelo alto custo do

investimento. A distância para a velha tradição desenvolvimentista aí se torna gritante:

para o acontecer histórico. Deste modo, a revisão teórica que surgiu em meados da década de 70 para mostrar os horizontes abertos pela industrialização pesada tornou-se, nos anos 90, uma espécie de teoria da resistência, que denuncia os riscos de desestruturação da industrialização capitalista retardatária, mas não propõe alternativas que permitam superar o impasse claustrofóbico que compromete o futuro da nação. Percebendo a impossibilidade de permanecer tal qual e o suicídio que seria acompanhar os ritmos da modernização impostos de fora para dentro, os teóricos do capitalismo tardio procuram ganhar tempo, à espera de dias melhores” (SAMPAIO JR., 1999b: pp. 201-202). 68 “Nessa perspectiva, a superação do capitalismo selvagem não poderia ser concebida como resultado natural e espontâneo do desenvolvimento capitalista. Sem mudanças de grande envergadura, o crescimento e a modernização não resolveriam as mazelas da população. O desenvolvimento nacional supunha a subordinação da acumulação capitalista a uma “vontade” coletiva que integrasse o conjunto da população nos benefícios do progresso técnico. (...) Sem a presença de burguesias nacionais capazes de enfrentar os interesses externos e internos comprometidos com a reprodução da situação de dependência e subdesenvolvimento, a concepção “desenvolvimentista” pereceria, pois não teria como se converter em força real. A sorte do “desenvolvimentismo” confundia-se, assim, com o próprio destino de formação da sociedade nacional” (SAMPAIO JR., 2012b: p. 675).

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A perspectiva do velho desenvolvimentismo é um esforço de mostrar a necessidade inescapável de “reformas estruturais” que desatem a dupla articulação responsável pelo caráter particularmente selvagem do capitalismo na periferia do sistema capitalista mundial. O neodesenvolvimentismo naturaliza a dupla articulação responsável pelo capitalismo dependente. Suas formulações limitam-se a elucubrações sobre a possibilidade de arquiteturas alternativas de política econômica para administrar as estruturas. A perspectiva desenvolvimentista supõe a presença de sujeitos políticos dispostos a enfrentar o imperialismo e o latifúndio. Os novos desenvolvimentistas são entusiastas do capital internacional, do agronegócio e dos negócios extrativistas. Defendem a estabilidade da ordem. Não alimentam nenhuma pretensão de que seja possível e mesmo desejável mudanças qualitativas no curso da história. São entusiastas do status quo. Na sua visão de mundo, desenvolvimento e fim da história caminham de mãos dadas (SAMPAIO JR., 2012b: p. 685).

Criticando a noção presente em Barbosa e Souza (2010) de que a “virada

desenvolvimentista” dentro do governo teria sido um resultado da vitória de uma corrente

sobre a outra dentro do governo, Gonçalves é categórico em afirmar o absurdo de uma

corrente de pensamento que não tenha correspondência nos conflitos de interesses materiais

de classes expressos no Estado:

Como interpretação alternativa, aliados e membros do governo se defendem e argumentam que, em algum momento no final do primeiro mandato, os ‘liberais’ em altos postos foram derrotados pelos ‘desenvolvimentistas’ (Barbosa e Souza, 2010). Assim, segundo esta interpretação, o governo Lula foi salto pelos ‘desenvolvimentistas’ no seu segundo mandato. Ocorre que, segundo essa interpretação, o ‘impulso desenvolvimentista’ é prejudicado pela crise global de meados de 2008. Trata-se de um choque externo que compromete seriamente o desempenho econômico do país.

Assim, no primeiro mandato, os ‘liberais’ teriam impedido o aproveitamento das oportunidades criadas pela conjuntura externa, enquanto no segundo mandato a reversão da fase ascendente do ciclo internacional e a crise global teriam prejudicado a trajetória ‘desenvolvimentista’. A fragilidade analítica desta interpretação é evidente. Só pra ilustrar, ela parte do pressuposto de que estratégias, políticas e gestão dependem do acesso dos good guys aos ‘ouvidos do rei’. E a nomeação dos good guys depende de seus méritos pessoais, dos canais de acesso ao ‘rei’ e da ‘roda da fortuna’. Ou seja, a economia política dos conflitos de interesses entre grupos e classes sociais é desprezada em favor da ‘fulanização’ e dos méritos e deméritos de indivíduos que ocupam postos-chave na administração pública. (GONÇALVES, 2010: pp. 177-178).

Portanto, podemos afirmar que não apenas a pretensão de um novo

desenvolvimentismo como fenômeno é desprovido de base material – mesmo no curtíssimo

período considerado –, como um novo desenvolvimentismo que fizesse jus à tradição

desenvolvimentista não expressa uma necessidade histórica. Em realidade, as correntes assim

identificadas cumprem o terrível papel de reavivar a teoria do crescimento aplicada à

periferia, apontar a modernização e o mito do desenvolvimento como saída para os problemas

brasileiros e servir de lança a conflitos internos de grupos que disputam os rumos do governo

(SAMPAIO JR., 2012b: pp. 685-686).

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4. Reversão neocolonial nos anos 2000

Nos anos 2000, entra em curso um processo de divisão internacional do trabalho

comandado pela intensificação do processo de globalização, exacerbando os interesses das

grandes corporações e do imperialismo de caráter especulativo, rentista e de controle

estratégico do progresso técnico e de mercados. Isso ficou mais nítido ainda com a solução

americana para a crise mundial do final da década. Para os países da periferia e em particular

para o Brasil, apesar da efêmera recuperação no pós-crise, os efeitos desta nova ordem são a

aceleração do processo de reversão neocolonial, reduzindo o horizonte de autonomia e de

capacidade de defesa frente à força do capital transnacional. Uma das principais

manifestações disso reside na redução drástica do poder de barganha da burguesia brasileira,

crescentemente orientada a aproveitar as oportunidades geradas pelo capital internacional em

atividades de baixa tecnologia, voltados para o comércio exterior, e intensivas na

superexploração do trabalho, dos recursos naturais e do suporte estatal.

O resultado do já referido processo de transnacionalização do capital sobre as

sociedades da periferia pode ser sintetizado como a constituição de uma nova dependência

(SAMPAIO JR., 2007: p. 147), explicada por três dimensões. Primeiro, a aceleração do

progresso técnico e o aumento da defasagem tecnológica frente ao centro expõe os países

dependentes a um padrão de concorrência que leva a uma desestruturação produtiva que não

apenas interrompe – como faz regredir a industrialização. Estas regiões, orientadas a

participar de fragmentos do ciclo de acumulação global, atraem investimento direto

estrangeiro na forma de “enclaves” desconectados de um sistema econômico nacional.

Segundo, ocorre uma tendência ao desequilíbrio estrutural do balanço de pagamentos, sob a

forma da incapacidade dos países arcarem com os custos da modernização dos padrões de

consumo. Uma vez cristalizada uma forma de conexão com o todo marcada pela alta

mobilidade do capital e pela garantia da estabilização monetária, as periferias são

pressionadas a especializarem sua pauta de exportações em busca de divisas, ao mesmo tempo

em que elas são subtraídas pelas importações e remuneração de serviços. Desta forma, revela-

se a tendência ao deslocamento do eixo dinâmico das economias para fora do mercado

interno. E terceiro, como a difusão dos padrões de vida do centro é simplificada e

intensificada com o progresso técnico, as periferias se veem enredadas na renovação do

mimetismo cultural e na encarnação da ideologia do mercado que combate o Estado nacional,

único instrumento com alguma capacidade de resistir às tendências deletérias da integração

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(SAMPAIO JR., 2007: pp. 147-149). Como resultado, estes países – e isso é particularmente

válido para o Brasil – se defronta com os desafios da desestruturação produtiva, da ruptura

dos mecanismos de classificação social que estabilizavam e legitimavam a ordem, e fica

exposto a toda sorte de tensões regionais e de segregação social. Daí se falar em fortes

tendências à reversão neocolonial, nos termos já explicados no item 2 deste capítulo.

Um ponto chave para se compreender como as sociedades periféricas –

particularmente aqui as latino-americanas e a brasileira – se expõem e ingressam nesta rede

complexa de determinações é a análise da força relativa da burguesia local no novo contexto.

A questão pode ser resumida da seguinte forma:

O problema central é que o novo contexto histórico reduz dramaticamente os graus de liberdade das burguesias das economias periféricas diante do capital internacional. Como as empresas transnacionais passaram a operar com tecnologias concebidas para mercados supranacionais, com renda média muito elevada, a natureza de seus vínculos com as economias dependentes tornou-se muito mais fluida. A situação é bem diferente daquela que ocorrera na fase final de difusão da Segunda Revolução Industrial. No ciclo expansivo do pós-guerra, a estratégia de conquista dos mercados internos, mediante a transferência de unidades produtivas, levava o capital internacional a exigir espaços econômicos nacionais relativamente bem delimitados. Tratava-se de evitar que unidades produtivas deslocadas para a periferia sofressem a concorrência de produtos importados. É este contexto histórico que permitiu que, até o início dos anos oitenta, as economias mais avançadas da região apresentassem uma certa convergência tecnológica com as economias centrais. Na era da mundialização do capital, estamos assistindo a um fenômeno bem diferente. O objetivo das grandes empresas transnacionais é diluir a economia dependente no mercado global para que possam explorar as potencialidades de negócios da periferia sem sacrificar sua mobilidade espacial. Por esse motivo, os gigantes da economia mundial não querem que as fronteiras nacionais continuem rigidamente delimitadas. O interesse no “Terceiro Mundo” se resume basicamente aos seguintes objetivos: ter livre acesso aos mercados, (não importando se eles serão atendidos com produtos importados ou com produção local –a decisão depende de circunstâncias ditadas pela estratégia de concorrência de cada empresa); ter o máximo de flexibilidade para aproveitar as potencialidades da região como plataformas de exportações que requerem mão-de-obra barata; açambarcar das mãos do capital nacional, público ou privado, os segmentos da economia que possam representar bom negócio.

A adversidade do contexto histórico enfrentado pelos países latino-americanos foi agravada pelo efeito extremamente negativo do colapso da União Soviética sobre o poder de barganha dos países periféricos no sistema capitalista. Sem medo do fantasma comunista, as nações hegemônicas sentiram-se livres para desrespeitar os princípios mais elementares da autodeterminação dos povos. Sem sustentação externa e sem base material interna para sustentar o seu poder de classe, as burguesias dependentes estão se convertendo em burguesias que vivem de intermediar negócios de compra e venda de mercadorias no mercado internacional, de patrimônio público e privado e de ativos financeiros. Isso explica a desfaçatez com que grandes potências, direta ou indiretamente, pressionam as economias dependentes a se adaptar incondicionalmente às suas exigências; bem como a docilidade com que tais pressões são recebidas pelos mandatários-títeres de plantão (SAMPAIO JR., 2007: pp. 146-147).

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A reflexão sobre a nova dependência passa, portanto, sobre o caráter assumido

pelas burguesias locais. A nova configuração da ordem global coloca pouquíssimo raio de

manobra para uma burguesia como a brasileira e a faz mais dependente de negócios gerados

pelo capital transnacional: ela se torna crescentemente uma classe que aproveita

oportunidades na intermediação de mercadorias (comércio exterior), de ativos financeiros e de

patrimônio, próprio ou estatal. Com a desarticulação da industrialização dependente, a

burguesia brasileira sai em busca de todo tipo de negócio especulativo – comercial, financeiro

ou produtivo – no mercado interno ou externo. A questão colocada nos anos 2000 é

justamente a intensificação deste padrão de movimento, que fortaleceu os vínculos da

burguesia com o capital internacional, como vimos na seção anterior.

A grande crise econômica mundial que eclodiu em 2008 apontou novos

condicionantes para o processo de reversão neocolonial. Ao não desvalorizar o estoque de

ativos tóxicos, a estratégia americana para a crise não conseguiu abrir um novo horizonte de

investimentos e não promoveu medidas para controle e coordenação dos mercados de capitais

internacionais, curiosamente criou bases para a recuperação pela qual o Brasil passou em

2009-2010, bem como apontou o aprofundamento das vulnerabilidades estruturais da

economia brasileira (SAMPAIO JR., 2011: pp. 88-93). A combinação entre o estado de

incerteza generalizado e a existência de uma gigantesca massa de capital sem aplicações gera

uma convulsão na busca por oportunidades circunstanciais69. O encontro deste capital com um

país com ampla oferta de negócios ligados à especulação e ao rentismo deu fôlego novo ao

investimento direto externo, que aproveitou, como já vimos, para ganhar com a dívida

pública, com ações e dívidas de empresas ligadas à exportação, ou tão somente passíveis de

especulação, a negócios nos setores primários, importação e exportação etc. Em resumo:

“Antes de significar um ‘descolamento’ da crise internacional, a surpreendente

recuperação do crescimento reflete, na verdade, a forma específica de articulação da

economia brasileira com o movimento de metástase da crise” (IDEM: p. 87).

A crise mundial, desta forma, acirra os processos que impulsionam a reversão

neocolonial. Sampaio Jr., menciona quatro efeitos relevantes que esta crise coloca para o

Brasil: (i) o enorme afluxo de capital e o déficit no balanço de pagamentos reforça o

69 “O estado de incerteza radical gerado pela ausência de uma clara definição sobre as novas frentes de expansão do capitalismo obriga a massa de capital excedente, que foi impedida de se desvalorizar pela providencial intervenção do Estado, a sair como um zumbi pelo mundo afora à cata de negócios circunstanciais, levando ao paroxismo a lógica predatória e ultra-especulativa que preside o movimento do capital em tempos de crise” (SAMPAIO JR., 2011: p. 87).

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desequilíbrio externo estrutural, deixando claro como a questão externa não está equacionada;

(ii) o compromisso e submissão do Estado brasileiro aos interesses do grande capital

estrangeiro e interno (manifesta nas ações de auxílio e socorro via subsídios, desonerações,

incentivos, crédito, encampação da divida etc.) tem como contrapartida a fragilização

financeira do Estado e a redução das margens de manobra; (iii) o financiamento de um ciclo

de crescimento e modernização dos padrões de consumo sobre o endividamento das famílias

expõe todo o sistema financeiro a uma perigosa crise de inadimplência; (iv) a regressão

industrial e a especialização regressiva se aceleram com os incentivos a investimentos

baseados no uso indiscriminado e predatório de recursos naturais (SAMPAIO JR., 2011: pp.

94-95). Particularmente este último merece um detalhamento:

Por fim, a política de incentivar a entrada de indústrias sujas, que se deslocam dos países desenvolvidos para fugir do rigor da legislação ambiental, e a impotência diante da guerra de desvalorização cambial deflagrada pelos Estados Unidos aceleram e aprofundam o processo de regressão industrial e especialização regressiva que caracterizam a inserção passiva da economia brasileira na globalização dos negócios. A exposição da economia brasileira à fúria da concorrência em tempos de crise simplifica ainda mais seu sistema produtivo, pois, sem competitividade dinâmica para enfrentar as economias centrais e sem competitividade espúria para fazer frente às economias asiáticas, o único caminho que lhe resta é explorar as vantagens competitivas absolutas. Na divisão internacional do trabalho que se desenha, o Brasil tende a ser relegado a uma posição terciária de mero fornecedor de produtos primários e semimanufaturados, de baixo conteúdo tecnológico, alto consumo de energia e elevado impacto negativo sobre o meio ambiente (SAMPAIO JR., 2011: pp. 94-95).

Trata-se de um apontamento de extrema importância para a compreensão do que

pode ser o padrão de acumulação desta burguesia. Não apenas é vinculado a negócios

internacionais, como – e exatamente por causa disso – tem como suporte a exploração de

vantagens competitivas absolutas, na medida das possibilidades da superexploração de

variáveis internas, como o trabalho e o meio ambiente70. Daí se falar em produtos primários

ou semimanufaturados – commodities minerais, agrícolas e industriais –, de baixa tecnologia e

alto consumo energético e de recursos naturais abundantes no país.

A conclusão não poderia ser mais desafiadora para quem pensa a formação:

Em suma, na ordem internacional emergente, o desenvolvimento nacional não está no horizonte de possibilidades dos países periféricos. A comunidade internacional reduziu tudo que estiver fora dos megablocos regionais a cobiçados mercados emergentes ou reles zonas de pobreza. Na nova divisão internacional do trabalho, cabem às economias periféricas fundamentalmente três papéis: franquear seu espaço econômico à penetração das grandes empresas transnacionais; coibir as correntes migratórias que possam causar instabilidade nos países centrais; e aceitar a triste

70 Pilar apontado por Florestan Fernandes para dar base material à burguesia dependente, o controle irrestrito e predatório das variáveis econômicas internas, pode não ser o suficiente para enfrentar concorrentes em que as vantagens espúrias pode ser superior à sua. A China é o melhor exemplo.

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e paradoxal função de pulmão e lixo da civilização ocidental (SAMPAIO JR., 2007: p. 147).

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Capítulo 3: Estudo de grupos industriais selecionados da burguesia

brasileira

1. Introdução

Neste capítulo será apresentada uma síntese da pesquisa sobre os grupos

selecionados da burguesia brasileira, bem como uma discussão em que se busca extrair

elementos que ajudem a entender o caráter da burguesia brasileira. Este capítulo é divido em

quatro parte além desta introdução. No item 2, será apresentada a base de dados da qual serão

identificados os maiores grupos da burguesia – o anuário “Valor Grandes Grupos” – e o

critério de seleção dos grupos pesquisados. No item 3, será apresentada a metodologia da

pesquisa. No item 4, serão apresentadas as síntese de cada um dos grupos selecionados:

Cosan, Vale, Gerdau e JBS. Por fim, no item 5, será feita uma discussão em cima dos

resultados.

2. Os maiores grupos econômicos no Brasil

2.1. O conjunto dos maiores grupos econômicos no Brasil

Utilizaremos como fonte principal de apresentação dos maiores grupos

econômicos do Brasil o anuário “Valor Grandes Grupos”, do jornal “Valor Econômico”,

editado desde 2002. Esta publicação mostra um ranking dos 200 maiores grupos econômicos

presentes no Brasil, por receita bruta. A diferença para outras publicações do gênero (como

“Melhores & Maiores”, da Exame, ou “Valor 1000”, também do jornal Valor Econômico) é

que não trata de empresas desagregadas, mas de grupos econômicos, conglomerados de

empresas controladas integral ou parcialmente por um comando único. Este anuário mostra

uma lista com os dados gerais de desempenho dos grupos, como receitas brutas, patrimônio

líquido e lucro líquido, entre outros, e informações importantes para análise, como país de

origem e o ramo de atividade dos grupos. Além disso, ele mostra um organograma de cada

grupo, revelando quais empresas o grupo controla, o percentual do controle (em alguns casos

os sócios mais importantes) e as pessoas, famílias ou empresas que detêm o controle do

grupo.

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A vantagem do estudo do grupo econômico sobre a empresa desagregada é que o

grupo permite compreender a estratégia de um grande capital em sua totalidade e não apenas

do ponto de vista dos resultados de uma parte. Ao buscar a grande burguesia pelos seus

grupos, eliminamos empresas que sejam individualmente grandes, mas que não estejam sob o

comando dos capitais conglomerados que possuem efetivamente o poder econômico dentro do

espaço nacional.

Outro diferencial desta base de dados – de grande importância para este estudo –

são os ramos de atividade utilizados para classificação dos grupos. No “Valor Grandes

Grupos”, os grupos são enquadrados em quatro ramos: finanças, indústria, comércio e

serviços. Desaparecem, portanto, categorias muito específicas que aparecem no estudo das

empresas desagregadas; estas subdivisões são apenas mencionadas na exposição dos

organogramas individuais, dos quais é possível extrair pelo menos os segmentos mais

importantes para cada grupo. Essa classificação é um resultado do próprio estudo dos grupos,

já que eles geralmente englobam negócios em diferentes setores e seria impossível classificá-

los de forma mais específica. Uma das consequências disso, portanto, é o nível de

generalidade que os ramos de atividade carregam. No que interessa a esta dissertação, que é o

estudo de grandes grupos da burguesia brasileira na indústria, a decorrência é que dentro da

categoria “indústria” estão todos os grupos que participam de alguma forma de atividades

produtivas, de bens materiais. Ou seja, trata-se da indústria no seu sentido mais genérico, com

implicações importantes sobre quais grupos serão selecionados, como se verá adiante.

No entanto, a utilização deste tipo de anuário traz um certo problema para a: a

comparação de desiguais, uma vez que são listados grupos de controle brasileiro, cujas

empresas atuam principalmente no espaço nacional, mas que também atingem outros países,

e, ao mesmo tempo, grupos estrangeiros e suas empresas atuantes no Brasil ou,

excepcionalmente, com operação internacional a partir das unidades no Brasil. Portanto, não

podemos ignorar que o peso relativo que os grupos de controle brasileiro possuem possa ser

superestimado na comparação com o dos grupos estrangeiros. De qualquer forma, para fins

dessa pesquisa, a identificação dos maiores grupos brasileiros não é afetada por essa

distorção.

Para identificar o conjunto dos grupos que nos interessaria, foram excluídos,

dentro dos grupos com controle brasileiro, quais eram estatais e quais eram de controle misto,

isto é, em que está discriminado na apresentação do anuário o controle por mais de um país.

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Desta forma, pudemos selecionar apenas os grupos de controle privado nacional e deles

destacar os presentes na indústria. Agregando os valores das receitas de cada grupo, podemos

ter uma mapa do que é o conjunto do grande capital no Brasil, por setor e por país de origem

do controlador.

Tabela 1. 200 maiores grupos no Brasil em 2011, por receitas (R$ mi)

Por setores e país de origem do controlador

Setores

Receitas (R$ mi) Finanças Indústria Comércio Serviços Total Priv. Nac. 359.337 519.057 143.684 84.114 1.288.498 Estatal 221.243 306.234 0 266.420 611.591 Misto 9.422 73.417 52.681 3.372 138.892 Estrangeiro 126.537 289.309 41.016 211.907 668.769 Total 716.538 1.188.018 237.381 565.813 2.707.750 % sobre o setor Finanças Indústria Comércio Serviços Total Priv. Nac. 50% 44% 61% 15% 48% Estatal 31% 26% 0% 47% 23% Misto 1% 6% 22% 1% 5% Estrangeiro 18% 24% 17% 37% 25% % Setor 100% 100% 100% 100% 100% % Setor/Total 26% 44% 9% 21% 100%

Fonte: Valor Grandes Grupos, 2012 (elaboração própria)

Podemos também fazer um exercício específico para entender a magnitude dos

grupos na indústria, mostrando o tamanho do ramo com todos os grupos, sem a Petrobras e

sem a Petrobras e a Vale. À visão geral, adicionamos uma comparação das receitas agregadas

com o PIB brasileiro do mesmo ano.

Tabela 2. 200 maiores grupos econômicos no Brasil em 2011, por receitas (R$ mi)

Receitas (R$ mi) Priv. Nac. Estatal Misto Estrangeiro Total % Total 200 Grupos 1.288.498 611.591 138.892 668.769 2.707.750 100% Indústria 519.057 306.234 73.417 289.309 1.188.018 44% Indústria sem Petrobras 519.057 0 73.417 289.309 881.784 33% Ind. sem PB e Vale 413.537 0 73.417 289.309 776.264 29%

% por corte Priv. Nac. Estatal Misto Estrangeiro Total % PIB 2011 Geral 47,6% 22,6% 5,1% 24,7% 100,0% 65,4% Indústria 43,7% 25,8% 6,2% 24,4% 100,0% 28,7% Indústria sem Petrobras 58,9% 0,0% 8,3% 32,8% 100,0% 21,3% Ind. sem PB e Vale 53,3% 0,0% 9,5% 37,3% 100,0% 18,7%

Fonte: Valor Grandes Grupos, 2012 (elaboração própria)

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Trata-se, portanto, de um conjunto muito importante de empresas, cujas receitas

agregadas atingem 65% do PIB em 2011. Além disso, seu patrimônio líquido total no mesmo

ano – de R$ 1.552,0 milhões – representa 37% do PIB e o resultado líquido total – de R$

200,9 milhões – corresponde a 5% do PIB. É importante frisar, também, que se trata de um

conjunto bastante complexo de grupos, se considerados todos os setores. Com isso, fica claro

que não seria possível esgotar um estudo global sobre a burguesia brasileira apenas estudando

seus grupos industriais, ou mesmo uma seleção destes – e essa dissertação não tem essa

pretensão.

2.2. Os maiores grupos da burguesia brasileira na indústria

Feita a introdução ao conjunto dos maiores grupos, passamos ao conjunto que

realmente importa para este trabalho: o dos grandes grupos industriais privados brasileiros.

Dentro os 200, são 46 grupos que atendem a este corte no ano de 2011. Compilados os

segmentos de atividade específicos que o Anuário traz para cada grupo, podemos ter a noção

do conjunto e, internamento a este, dos mais variados segmentos industriais em que atuam.

É desta lista, portanto, que serão selecionados os grupos da pesquisa.

Tabela 3 – Maiores grupos industriais de controle brasileiro privado por receitas (2011)

Posição 200

Grupo Setores

1 5 Vale Energia Elétrica, metalurgia, mineração, siderurgia, transportes e logística 2 7 Odebrecht Construção, Petroquímica (e Energia Elétrica, Defesa, Transportes Infraestrutura,

Petróleo e Gás, Açúcar e Álcool, Imobiliário) 3 9 JBS Alimentos (carnes) 4 16 Gerdau Comércio (distribuição de produtos siderúrgicos), energia elétrica, metalurgia e

siderurgia 5 17 Votorantim Agroindústria, energia elétrica, finanças, materiais de construção, siderurgia e

metalurgia, papel e celulose, química e petroquímica e TI. 6 21 BRF Alimentos e Comércio 7 22 Cosan Açúcar e Álcool, agricultura, comércio, transportes e logística 8 26 Marfrig Alimentos (Carnes) 9 33 CSN Energia Elétrica, metalurgia e siderurgia, e transportes e logística 10 38 Usiminas Comércio, mecânica, metalurgia e siderurgia, e transportes e logística. 11 55 Embraer Veículos e peças (indústria aeronáutica) 12 78 WEG Comércio exterior, eletroeletrônica, mecânica e química 13 79 Suzano Comércio e Papel e Celulose 14 80 Schincariol Bebidas, comércio e transporte e logística 15 86 Random Veículos e peças 16 92 Paranapanema Metalurgia, Mineração e Química e Petroquimica

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Posição 200

Grupo Setores

17 95 Klabin Papel e Celulose 18 100 Minerva Alimentos (Carnes) e transportes e logística 19 107 Marcopolo Comércio de peças, materiais plásticos, e veículos e peças (carrocerias) 20 116 Iochpe-Maxion Metalurgia e Veículos e Peças 21 120 M. Dias Branco Alimentos 22 128 Positivo Comunicação, Eidtorial, Educacional, e Tecnologia da Informação 23 133 Tigre Plástico e borracha, química e petroquímica 24 136 Unigel Embalagens, Química e Petroquímica 25 141 Aché Farmacêutico 26 142 Spaipa Coca-Cola Bebidas 27 144 Tupy Metalurgia e Siderurgia 28 146 Grupo Brasil Autopeças, metalurgia e siderurgia 29 148 Caramuru Agronegócio e Alimentos 30 151 EMS Sigma Pharma Farmacêutico 31 152 Coteminas Têxtil e Vestuário 32 153 Vonpar Bebidas 33 154 Alto Alegre Açúcar e Álcool 34 156 Granol Alimentos e Comércio 35 168 Vulcabrás/Azaleia Calçados 36 169 Zilor Açúcar e álcool 37 170 Grendene Calçados 38 174 Inepar Construção e Engenharia, energia elétrica, mecânica, Petróleo e Gás 39 181 São Martinho Açúcar e Álcool 40 184 J. Macêdo Alimentos 41 187 Tércio Wanderley Açúcar e Álcool 42 190 Vicunha Têxtil Têxtil e Vestuário 43 195 Ligna Comércio, materiais de construção e decoração, metalurgia 44 196 Bombril Higiene e LImpeza 45 197 Eucatex Construção e engenharia, materiais de construção e decoração, química e

petroquímica 46 198 Grupo Farias Açúcar e Álcool, agricultura e comércio

Fonte: Valor 200 Grupos, 2012 (elaboração própria).

Um exercício interessante é contabilizar quantas vezes cada segmento de

atividade específica foi mencionado na totalidade dos grupos industriais brasileiros privados.

Os resultados não implicam que um segmento é mais importante que o outro (a mineração é

mencionada duas vezes, mas é uma das mais relevantes nas receitas do grupo); servem

somente de termômetro de quais atividades são mais frequentes dentro o grupo.

Curiosamente, a atividade de comércio é a mais frequente dentre os grupos industriais.

Page 70: Monte-cardoso_artur-2014-Burguesia Brasileira Nos Anos 2000 - Versao Final Para Banca

65

Tabela 4 – Setores mais mencionados nos grupos industriais privados brasileiros (2011)

Qtde. Setor Qtde. Setor Qtde. Setor 14 Comércio 3 Materiais de construção 1 Comunicação 11 Metalurgia 3 Mecânica 1 Defesa 8 Alimentos 3 Papel e celulose, 1 Editorial 7 Açúcar e Álcool 3 Veículos e peças 1 Educacional 7 Química e petroquímica 2 Farmaceutico 1 Eletroeletrônica 7 Siderurgia 2 Mineração 1 Embalagens 7 Transportes e logística 2 Petróleo e Gás 1 Finanças, 5 Energia Elétrica 2 Plástico e borracha 1 Higiene e limpeza 4 Agroindústria 2 Tecn. Informação 1 Imobiliário 4 Bebidas 2 Têxtil e Vestuário 1 Infraestrutura 3 Calçados 1 Aeronáutica 3 Construção 1 Autopeças

Fonte: Valor 200 Grupos, 2012 (elaboração própria).

2.3. Os grupos selecionados para a pesquisa

Um primeiro recorte tentado para se chegar aos maiores grupos industriais da

burguesia brasileira foi extrair os 10 maiores grupos.

Tabela 5 – 10 maiores grupos industriais privados brasileiros (2011)

% Receitas 200 Grupos

Grupos Industriais

Ind. sem Petrobras

Receitas (R$ mi)

% PIB 2011

Vale 3,9% 8,9% 12,0% 105.520 2,5% Odebrecht 2,6% 6,0% 8,1% 71.009 1,7% JBS 2,4% 5,4% 7,3% 64.239 1,6% Gerdau 1,5% 3,4% 4,5% 39.820 1,0% Votorantim 1,4% 3,3% 4,4% 38.929 0,9% BRF Brasil Foods 1,1% 2,5% 3,3% 29.361 0,7% Cosan 1,0% 2,2% 2,9% 25.918 0,6% Marfrig 0,9% 1,9% 2,6% 23.030 0,6% CSN 0,7% 1,7% 2,2% 19.784 0,5%

4 grupos selecionadas 8,7% 19,8% 26,7% 235.497 5,7% 10 maiores priv. nac. ind. 15,4% 35,2% 47,4% 417.609 10,1% Todos priv. nac. indústria 19,2% 43,7% 59% 519.057 12,5%

Fonte: Valor 200 Grupos, 2012 (elaboração própria).

Contudo, este conjunto, que pode ser visto na tabela a seguir, contém duas

peculiaridades: possui dentro dele alguns grupos excessivamente diversificados, Odebrecht e

Votorantim, que tornaria muito complexa a pesquisa; e possui grupos em setores coincidentes

– Gerdau, Usiminas e CSN na siderurgia e JBS, BRF e Marfrig no segmento de carnes.

Portanto, excluídos os dois referidos grupos e selecionados os maiores grupos em cada

segmento, foram selecionados os grupos: Vale, JBS, Gerdau e Cosan.

Page 71: Monte-cardoso_artur-2014-Burguesia Brasileira Nos Anos 2000 - Versao Final Para Banca

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O grupo selecionado possui liderança em setores importantes dentro da economia

brasileira e nos quais o Brasil possui destaque no mundo. A Vale não é um dos maiores

grupos do Brasil, maior empresa brasileira no ramo de mineração mundial e uma das três

maiores mineradora do mundo; A JBS é a maior brasileira no segmento de carnes, segundo

setor em exportações do agronegócio brasileiro, e é recém-chegada à condição de maior

empresa do mundo no setor de proteínas; a Gerdau é a maior siderúrgica de controle

brasileiro, maior empresa de aços longos do Brasil e das Américas, com grande presença

internacional; e a Cosan que controla a maior empresa produtora de açúcar e etanol no

mundo, em um ramo em que o Brasil está entre os líderes mundiais.

Por isso, consideramos que estudo do grupo selecionado poderá dar contribuições

relevantes para o entendimento de uma parcela importante da burguesia brasileira, objeto de

investigação dessa dissertação.

3. Metodologia de pesquisa

A pesquisa foi estruturada de forma a permitir a identificação, para cada uma das

quatro empresas pesquisadas, dos parâmetros apresentados no último item do capítulo 1 -

referentes aos nexos da burguesia com mercados interno e externo, à natureza de sua relação

com o capital internacional e com o Estado, a solidez de sua base tecnológica e financeira, e o

caráter de sua estratégia de acumulação71. É a identificação destas características e o esforço

de elaboração de uma apresentação sintética da organização empresarial de cada grupo que

permitirá contribuir para um passo no entendimento das questões levantadas como hipóteses

no último item do capítulo 2, e o papel da burguesia brasileira nos anos 2000.

A investigação se concentrou no estudo dos seguintes grupos: Cosan, Vale,

Gerdau e JBS. Para tanto, buscou investigar dados e informações desde o início da década de

2000 (e, quando necessário, desde o final da década de 1990) até os primeiros anos da década

de 2010, entendendo esse período como um conjunto – os “anos 2000”.

Os procedimentos de pesquisa realizados foram:

(i) Levantamento dos relatórios anuais de cada empresa, obtidos em seus sites na

internet ou através dos sistemas de dados da Comissão de Valores Mobiliários

71 Não foram investigadas a fundo as relações das empresas com o trabalho, ainda que em diversos dados e referências consultadas se permita inferir algum padrão destas relações. A sua investigação a fundo abriria uma outra linha de pesquisa que não poderia ser realizada nesta dissertação devido à extensão e complexidade.

Page 72: Monte-cardoso_artur-2014-Burguesia Brasileira Nos Anos 2000 - Versao Final Para Banca

67

(CVM), através dos progromas DivExt e EmpresasNet. Foram levantados tanto

Relatórios Anuais de ampla divulgação, Relatórios da Administração feitos para

atendimento de requisitos de governança corporativa e os Formulários 20-F (F20-

F), elaborados para a Bolsa de Valores de Nova Iorque (não se aplica à JBS).

(ii) Feito este levantamento, foi feito o resumo da linha geral de evolução das

empresas, extraindo dos relatórios dados referentes às vendas, produção física,

comércio internacional, investimentos e desinvestimentos, e, por fim,

financiamento. Os relatórios permitiram iniciar uma análise qualitativa do

desempenho dos mercados.

(iii) Foi realizada ampla pesquisa de dados objetivando constituir séries históricas de

produção, consumo, exportações e importações dos mercados dos produtos

principais de cada grupo, além de destacar os principais impulsionadores da

dinâmica de cada um deles. Estes dados foram retirados de documentos de órgãos

governamentais brasileiros (MAPA – Ministério da Agricultura, Pecuária e

Abastecimento, MME – Ministério de Minas e Energia, DNPM – Departamento

Nacional de Produção Mineral, MDIC – Ministério do Desenvolvimento,

Indústria e Comércio Exterior) e dos Estados Unidos (USDA – United States

Department of Agriculture, USGS – United States Geological Survey),

associações de produtores nacionais e internacionais (Unica – União das

Indústrias de Cana-deaçúcar, Instituto Aço Brasil, World Steel Association),

organismos internacionais (OCDE – Organização para Cooperação e

Desenvolvimento Econômico, FAO – Food and Agriculture Organization, das

Nações Unidas, UNCTAD – United Nations Conference on Trade and

Development, Banco Mundial, FMI – Fundo Monetário Internacional) e,

eventualmente, nos relatórios das empresas e em outros tipos de trabalhos e

relatórios, acadêmicos ou jornalísticos.

(iv) Foi realizada também uma pesquisa por trabalhos acadêmicos – teses,

dissertações, artigos, relatórios de pesquisa etc. – e por notícias em veículos de

comunicação especializados em economia e negócios – jornais, revistas e sites –

buscando trazer informações relevantes para o esclarecimento da dinâmica dos

setores e dos grupos, em especial fatos decisivos para sua estratégia.

Page 73: Monte-cardoso_artur-2014-Burguesia Brasileira Nos Anos 2000 - Versao Final Para Banca

68

(v) O conjunto de informações foi organizado em quatro Anexos, um para cada grupo

econômico: Anexo A, referente à Cosan, Anexo B, referente à Vale, Anexo C,

referente à Gerdau, e Anexo D, referente à JBS. Os quatro foram estruturados da

mesma forma, de modo a uniformizar a apresentação e o entendimento do

caminho e dos resultados da pesquisa72.

(vi) Com base nos relatórios foi redigida a apresentação dos resultados, no item a

seguir.

4. Síntese dos grupos selecionados

4.1. Cosan

O grupo Cosan se caracteriza por uma trajetória de aquisições e especulação no

setor sucroalcooleiro, que se concluiu com a constituição de uma associação com o capital

internacional em que este último controla a possibilidade de compra ou de venda do negócio

de acordo com suas conveniências. Com origem no mercado de açúcar e álcool, o grupo

orquestrou a fuga do negócio estruturalmente instável em busca de melhores condições em

outras ramos especulativos, como a especulação imobiliária ou os serviços logísticos de

exportação de commodities, intermediação no mercado interno de combustíveis, lubrificantes

e gás natural, sempre associado e financiado pelo capital internacional. Trata-se de um grande

capital oportunista, que modifica suas bases de acumulação de acordo com as conveniências,

mesmo quando é a maior empresa do ramo.

Tabela 6. Posição da Cosan no ranking dos 200 maiores grupos no Brasil (em receitas)

2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 200 grupos 138º 109º ND* 111º 100º 82º 107º 53º 33º 27º 22º 25 indústria priv. nacional - - - 22º 20º 17º 22º 12º 6º 7º 7º

Receitas (R$ milhões) 1004 1569 ND* 2048 2702 3903 2979 7952 18686

19783

25918 *ND: Dado não encontrado

Fonte: Valor Grandes Grupos, diversos anos (elaboração própria)

72 A estrutura de apresentação dos anexos é a seguinte: introdução, histórico do grupo, mercados principais e a dinâmica deles, estratégia e trajetória de crescimento e transformação, sua base produtiva e financeira e uma síntese do grupo.

Page 74: Monte-cardoso_artur-2014-Burguesia Brasileira Nos Anos 2000 - Versao Final Para Banca

69

O grupo Cosan tem como origem o setor sucroalcooleiro, produtor de açúcar e

etanol a partir da cana-de-açúcar. No Brasil, trata-se de um setor de alta produtividade, mas

bastante instável e no qual a produção é pressionada pelos outros agentes da cadeia, obtendo

pequena margem. As usinas são pressionadas, por um lado pelo oligopólio nos fabricantes de

bens de capital, e, por outro, pelo oligopólio dos clientes, as tradings do açúcar e as

distribuidoras de combustíveis. Devido às características técnicas do ramo, as unidades

produtivas são pulverizadas, o que deu origem à pulverização do capital o que, associado aos

vínculos com os outros elos, as flutuações naturais e à volatilidade de preços, torna baixas as

margens de lucro no setor. Em consequência, o setor possui uma base financeira muito frágil.

Basicamente, os diferenciais do setor e em especial da posição dos usineiros é a capacidade de

coordenar ou comandar a produção e as terras, em condições naturais muito favoráveis, e o

trabalho barato.

Dentro deste quadro geral, o setor sucroalcooleiro passou por uma intensa

expansão nos anos 2000, mobilizada principalmente: (i) no ramo do açúcar, pelo aumento da

demanda externa e dos preços a ela associados73; (ii) no ramo do etanol, pela difusão do motor

flex fuel em automóveis de passeio, que tornou o combustível substituto direto da gasolina;

(iii) ainda no ramo do etanol, pelo aumento dos preços do petróleo na década, que permitiram

que o etanol se tornasse competitivo durante alguns anos; (iv) pela projeção mundial e os

investimentos advindos com isso, da decisão de vários países, em especial os EUA, de

incentivar a produção de biocombustíveis74; (v) pelo desenvolvimento da cogeração de

energia elétrica nas usinas, que deu um rendimento adicional aos usineiros75. São em especial

dois fatores exógenos à economia brasileira – (i) e (iii) – que dinamizaram o setor, que esteve

deprimido pela desestruturação do Proálcool desde o início dos anos 199076.

73 Cf. OCDE-FAO (2011: cap. 6). 74 Cf. IEA (2012: cap. 7). Em 2003, os EUA passaram o Brasil e se tornaram o país líder na produção de etanol. em 2003; a partir de 2009, produziu 75% a mais que o Brasil. 75 Cf. Brasil (2010), Conab (2010). 76 Cf. Gonçalves (2009).

Page 75: Monte-cardoso_artur-2014-Burguesia Brasileira Nos Anos 2000 - Versao Final Para Banca

70

Gráfico 1. Brasil – exportações de açúcar – físicas (mi ton.) e valor médio (US$/ton)

Fonte: UNICADATA (elaboração própria)

É neste contexto que o grupo Cosan cresceu. Originário de um negócio familiar

antigo que se consolidou nos final dos anos 1990, o grupo teve como principal estratégia o

crescimento por aquisições77 fortemente associado e financiado pelo capital internacional. Em

uma década, ampliou consideravelmente sua capacidade produtiva à base de aquisições: em

2009, 66,4% da sua capacidade produtiva vinha de usinas adquiridas ao longo da década,

9,4% de duas novas usinas e o restante das usinas originais78. Maior produtor de açúcar e

etanol do mundo pelo menos desde 2002, a Cosan explorou a fragilidade operacional,

financeira e a pulverização do controle existente no setor para comprar e explorar os poucos

ganhos de escala possíveis, de origem administrativa79.

O outro pilar da estratégia da Cosan é sua associação e recurso ao financiamento

do grande capital internacional. Apesar de não haver dados organizados pré-abertura de

capital (2006), reportagens sobre a companhia demonstram operações de sociedade com

grandes empresas do ramo de açúcar desde os anos 1990 em usinas e operações portuárias,

77 Ao longo da década de 2000, a Cosan adquiriu as Usinas Rafard, Gasa, Univalem, Dois Córregos, da Barra e Junqueira (2000-2004), Mundial e Destivale (2005), Bom Retiro, Tamoio e Bonfim (2006), Santa Luiza (2007) e Benálcool (2008). Em 2009, adquiriu o grupo NovAmérica S.A. Agroenergia em 2009 com 3 usinas, 1 projeto greenfield em Caarapó (MS), duas refinarias e quatro empacotadoras de açúcar e as marcas União, Dolce, Neve e Duçula. Por fim, inaugurou uma nova usina em Jataí (GO) em 2009. 78 Calculado com dados de Cosan (2009). 79 Arnt (2002), Blecher (2005).

Page 76: Monte-cardoso_artur-2014-Burguesia Brasileira Nos Anos 2000 - Versao Final Para Banca

71

além do recurso a empréstimos e controle acionário minoritário80. A partir de 2006, com

dados públicos, é possível ver que a empresa cresceu com capital próprio, em grande parte

possibilitado pela abertura de capital, e com o endividamento, majoritariamente em moeda

estrangeira (entre 60% a 80% nos últimos sete anos); os maiores aportes em moeda doméstica

surgem entre 2010 e 2012 vindos principalmente do BNDES. A posição de fragilidade

financeira do capital local é tamanha que, após a abertura de capital da Cosan S.A. na

Bovespa em 2005, a empresa ficou sujeita a tomada de controle por outro grupo na medida

em que o controlador, Rubens Ometto, foi reduzindo sua participação para capitalizar a

empresa. Essa foi a sua justificativa para a criação de uma nova empresa controladora do

grupo, a Cosan Ltd., sediada nas Bermudas, onde a legislação permitia ações especiais com

maior direito de voto, o que permitiu prosseguir a capitalização e o endividamento nos

Estados Unidos, onde a Cosan Ltd. abriu capital em 200781.

Tabela 7. Cosan – endividamento por tipo (%)

2004-05 2005-06 2006-07 2008-09 2009-10 2010-11 Senior Notes 2009 44,7% 18,5% 13,8% 2,3% 0,0% 0,0%

Senior Notes 2017 0,0% 0,0% 27,5% 24,9% 13,5% 10,1%

Senior Notes 2014 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 11,8% 8,9%

Bônus Perpétuos 0,0% 40,7% 31,0% 28,1% 15,2% 19,0%

Resolução 2471 (Pesa) 20,2% 20,3% 16,7% 0,0% 0,0% 0,0%

Finame 3,5% 0,7% 0,3% 1,2% 3,7% 10,8%

Capital de Giro 2,9% 1,7% 1,1% 0,7% 0,0% 0,0%

IFC 0,0% 5,9% 4,6% 3,0% 0,0% 0,0%

Debêntures 0,0% 2,4% 1,8% 0,0% 0,0% 0,0%

Adiantamento de clientes 23,0% 7,0% 3,3% 0,0% 0,0% 0,0%

Notas Promissórias 5,4% 2,9% 0,0% 30,9% 0,0% 0,0%

Empresas ligadas 0,2% 0,1% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0%

Pré-pagamento de exportações 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 18,4% 11,3%

Adiantamente do contratos de câmbio 0,2% 0,0% 0,0% 3,8% 5,6% 3,5%

BNDES 0,0% 0,0% 0,0% 6,1% 19,8% 24,4%

Outros 0,0% 0,0% 0,0% -1,1% 12,0% 12,1%

Endividamento Bruto (R$ milhões) 1170,1 2363,1 3015,3 3755,0 5333,8 6516,8

Disponibilidades R$ (milhões) 180,7 1124,2 1606,9 719,4 1078,4 1254,1

Dívida Líquida (R$ milhões) 989,4 1238,8 1408,3 3035,6 4255,4 5262,7 Fonte: Cosan, Relatório Anual e Relatório da Administração, diversos anos (elaboração própria)

80 Sobre associações e captação de recursos internacionais, ver Arnt (2002) e Blecher (2005). Em Cosan (2007; 2008) há histórico referente a associações em ramos operacionais e participações minoritárias. 81 Cf. Salomão (2007).

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72

No setor sucroalcooleiro, para os dados disponíveis entre 2006 e 2012, a Cosan

tem cerca de 60% das receitas vindas do açúcar (69% do lucro bruto), 35% do etanol (24% do

lucro bruto) e o restante em outros negócios ligados ao ramo, como a cogeração. Na

composição entre mercado externo e interno, sua estrutura é semelhante à do setor no Brasil

como um todo: a maior parte das vendas de açúcar são externas (média de 77% em sete anos),

enquanto que a maioria das de etanol são internas (mesmo valor de 77% no mesmo período);

no global do setor, em média 53% do seu mercado é externo.

Tabela 8. Cosan - Receita Operacional Líquida do setor Açúcar e Álcool (%)

2006 2007 2008 2009 2010(*) 2011(*) 2012(*)

Total 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% Açúcar 60,1% 61,4% 52,2% 56,7% 62,8% 60,3% 54,0% .Mercado Interno 11,8% 9,4% 9,0% 7,3% 19,7% 21,7% 16,8%

.Mercado Externo 48,3% 51,9% 43,2% 49,4% 43,0% 38,6% 37,2%

Etanol 34,6% 32,9% 40,9% 36,9% 32,5% 34,5% 39,6% .Mercado Interno 28,6% 24,6% 29,6% 24,3% 24,6% 30,7% 31,0%

.Mercado Externo 6,0% 8,2% 11,3% 12,6% 7,8% 3,8% 8,6%

Cogeração 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 1,7% 2,9% 3,2% Outros Produtos e Serviços AA 5,3% 5,7% 6,9% 6,4% 3,0% 2,3% 3,1% Mercado Interno 45,7% 39,8% 45,5% 38,0% 49,1% 57,6% 54,2% Mercado Externo 54,3% 60,2% 54,5% 62,0% 50,9% 42,4% 45,8%

Observações: (*) Dados da Raízen

Fonte: Cosan, Relatórios Anuais e de Administração, diversos anos (elaboração própria)

Um dos problemas mais importantes no setor, a posição desfavorável do produtor

frente aos compradores, é também a realidade do grupo Cosan. Pouco mais de metade das

vendas de açúcar é feita para cinco empresas, enquanto que cerca de três quartos do etanol é

vendido para oito empresas. Trata-se de uma condição estrutural do setor no Brasil, que torna

até mesmo a empresa líder mundial na produção sujeita a baixas margens.

Tabela 9. Cosan – Principais compradores de Açúcar (%)

Açúcar 2006 2007 2008 2010-2011 Externo Sucres et Denrées (Sucden) 33,7% 33,3% 23,6% 33,4% Coimex Trading Ltd 11,3% 11,5% 6,9% 12,6% S.A. Fluxo 0,8% 9,5% 11,2% - Tate & Lyle International 10,0% 5,3% 9,2% 5,3% Cane International Corporation 12,8% 2,2% 7,2% - Cargill International S.A. - - - 4,8% Total Externo 68,6% 61,8% 58,1% 56,1%

Fonte: Relatórios Anuais e de Administração da Cosan (elaboração própria).

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Tabela 10. Cosan – Principais compradores de Etanol (%)

Etanol 2006 2007 2008 2010-2011 Externo Vertical UK LPP 9,3% 11,6% 13,6% 8,0% Kolmar Petrochemicals 0,3% 6,2% - - Vitol Inc. - - 3,5% - Morgan Stanley Capital Group - - 2,9% - Alcotra S.A. 5,8% - - - Mitsubishi Corporation - - - 2,0% Total Externo 15,4% 17,8% 20,0% 10,0% Interno Shell Brasil Ltda. 27,8% 14,8% 20,1% 15,0% Petrobrás Distribuidora S.A. 12,0% 9,2% 8,0% 17,0% Manancial Distribuidora de Petróleo Ltda. 2,3% 8,2% - - Euro Petróleo do Brasil Ltda. - - 14,3% 7,0% Cia Brasileira de Petróleo Ipiranga - - 6,1% 15,0% Tux Distribuidora de Combustíveis Ltda - - 5,7% - Cosan Combustíveis e Lubrificantes S.A. - - - 5,0% Braskem S.A. - - - 4,0% Total Interno 42,1% 32,2% 54,2% 63,0% TOTAL 57,5% 50,0% 74,2% 73,0%

Fonte: Relatórios Anuais e de Administração da Cosan (elaboração própria).

No final dos anos 2000, a despeito de toda a euforia do mercado, em particular

desde 200782, o setor sucroalcooleiro entrou em profunda crise manifesta em margens

deprimidas, prejuízos, redução de investimentos e até falências. A crise foi motivada, dentre

outros fatores, por: redução na produtividade física por más safras, inadequação das

variedades de plantas às regiões e pela transição para a mecanização da colheita; posição de

mercado estruturalmente desfavorável do produtor frente ao comprador; custos financeiros

crescente após a crise mundial; sobre-endividamento e expansão excessiva de capacidade;

redução e mesmo fim da competitividade do etanol frente à gasolina83. Os investimentos

previstos pelo BNDES para o quadriênio 2013-2016 caíram 90% frente aos realizados

quadriênio 2008-201184. A conjunção de fatores revela quão instável é o setor nos seus elos

débeis e os sucessivos pleitos da burguesia do setor por suporte do Estado – parcialmente

atendidos85 – revelam quão dependente é o ramo, particularmente na produção de etanol86.

82 Em 2007, o então presidente dos EUA, George W. Bush, visitou o Brasil, tendo como pauta principal a integração do mercado de biocombustíveis, particularmente o etanol. 83 Cf. Conab (2010); Brandão (2012); Barba (2013). 84 Cf. BNDES (2013). 85 Cf. Batista (2014). 86 No início da década de 2010, o controle dos reajustes dos preços da gasolina ofertada pela Petrobras frente aos preços internacionais virou a maior demanda da burguesia sucroalcooleira. Independente do que seria correto a

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74

O passo decisivo que demonstra o padrão especulativo e oportunista da Cosan

ocorre entre o final de 2008 e 2010. Em dezembro de 2008, a Cosan adquire os ativos da Esso

(ExxonMobil) no Brasil: distribuição de combustíveis (atacado) e produção e distribuição de

lubrificantes (com licença da marca Mobil). Com esta aquisição, o grupo Cosan resolvia

parcialmente um problema de margens, compensadas pela entrada em um ramo que absorvia

parcialmente estas margens no etanol. O novo negócio passou a ser o mais importante do

grupo em vendas e a empresa se tornava uma gigante integrada, da produção à distribuição.

Em 2010, a Cosan constituiu com a Shell a joint-venture Raízen, fruto da união dos ativos no

setor sucroalcooleiro (usinas) da primeira e de distribuição de combustíveis de ambas, com

controle dividido igualmente entre elas87. O nó da questão são os termos de constituição da

empresa: o Acordo Vinculante para criação da Joint-Venture, de 25/08/2010, garante à Shell a

possibilidade de compra da participação da Cosan em 2020, embora o contrário possa ocorrer

em 2025 (caso a Shell não compre integralmente a participação da Cosan)88. Em reportagem

da Revista Exame em 16/05/2012 sobre o grupo Cosan, é citado o analista Salim Morsy, da

Bloomberg New Energy Finance, que resume o caráter da associação: “[o] acordo parece

mais uma operação de aquisição do que uma joint-venture”89.

Em um plano geral, é como se a Cosan tivesse adquirido um conjunto de ativos ao

longo da década, aguardado sua valorização e, ao sinal de uma grande turbulência, vendido os

ativos antes de maior desvalorização. O grande executivo e proprietário da empresa, Rubens

Ometto, chegou a afirmar, ao explicar a associação com a Shell e a diversificação do grupo

para outros setores: “O mercado de açúcar e álcool é uma montanha-russa. (...) estou

investindo em setores mais estáveis”90. Mesmo em um país com o setor mais competitivo do

mundo, o negócio seria demais para um burguês local, mesmo o maior deles. Por outro lado,

para uma gigante como a Shell, tratar-se-ia apenas de mais um investimento menor em

se fazer e de quem ganha com isso, o aumento dos preços da gasolina significa uma transferência de renda para os usineiros. 87 Segundo o Acordo Vinculante de criação da joint-venture, a Cosan controla 51% da Raízen Energia (sucroalcooleira) e da Shell, 51% da Raízen Combustíveis (distribuição). Foram excluídos da união os ativos da Cosan na logística, lubrificantes e terras. 88 “A Cosan e a Shell concederão uma a outras opções de compra recíprocas. No 10º aniversário do Fechamento, a Shell terá uma opção para compra de metade ou da totalidade da participação da Cosan na Joint Venture proposta. Caso a Shell opte por exercer tal opção, a Cosan terá o direito de decidir se irá vender metade ou a totalidade de sua participação na JV proposta. No 15º aniversário do Fechamento, uma parte terá o direito de comprar a totalidade ou uma parcela da participação da outra companhia na Joint Venture proposta” (Fato Relevante da Cosan de 25/08/2010). 89 Cf. Onaga (2012). 90 Cf. Onaga (2012).

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75

energias alternativas, do qual ela poderá se desfazer se for conveniente, ou adquirir, se for

rentável. O fato é que o setor passou por um grande processo de internacionalização –

inclusive tido como positivo pelo governo - e que apesar de estagnado, mostra o desequilíbrio

entre o grande capital internacional e o local91. A associação, feita pela Cosan há anos, foi a

linha de menor resistência.

Exacerbando o aproveitamento de oportunidades para fazer negócios certos ou

associados ao grande capital internacional a Cosan, em 2012, vendeu a Cosan Alimentos –

buscando especializar na produção de açúcar para atacado e exportação – e adquiriu o

controle da Comgás, concessionária de distribuição de gás natural no estado de São Paulo,

onde também é associada à Shell (minoritária). Outra fonte de expansão é sua controlada

Rumo Logística, por meio da qual presta serviços de distribuição de commodities via

transporte ferroviário e dutoviário, além da operação portuária. Foi por meio da Rumo, que a

Cosan vislumbrou um novo negócio, ainda inconcluso, de aquisição do controle da

concessionária de ferrovias ALL (América Latina Logística)92. No ápice da especulação está a

controlada Radar, que compra, arrenda e vende terras destinadas à grande produção de

commodities agrícolas, ou seja, a especulação imobiliária. Por fim, a Cosan Lubrificantes e

Especialidades tem como base a associação com a ExxonMobil no uso da marca e na

distribuição de lubrificantes importados, além da fabricação de lubrificantes no Brasil em

fábrica própria.

91 Sobre a internacionalização no setor, ver Benetti (2009) e Siqueira e Castro Júnior (2010). Sobre a análise do governo, ver Brasil (2010). 92 Após tentativas de entrada no grupo controlador e litígio com a ALL devido a contrato com a Rumo, a Cosan despontou como saída governo para destravar os investimentos em ferrovias e capitalizar a ALL, cuja malha atende especialmente o sudeste e o sul, trecho final dos corredores de exportação de commodities ().

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Tabela 11. Cosan - Receita Operacional Líquida (ROL) por segmento (%)93

Obs.: a) Não inclui ativos de Combust./Lubrif.; (b) Inclui 100% da ROL Raízen; (c) Inclui 50% da ROL Raízen.

2006 2007 2008(a) 2009 2010 2011 2012(b) 2012(c) Total 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% 100% Açúcar 60,1% 61,4% 52,2% 28,8% 22,0% 21,3% 8,5% 7,9% Etanol 34,6% 32,9% 40,9% 18,8% 11,4% 12,2% 6,3% 5,8% Cogeração 0,0% 0,0% 0,0% 0,2% 0,6% 1,1% 0,5% 0,5% Outros AA 0,0% 0,0% 6,9% 2,1% 1,0% 0,8% 0,5% 0,5% Venda de Combustível 0,0% 0,0% 0,0% 46,2% 61,5% 60,4% 76,4% 70,8% Venda de Lubrificantes 0,0% 0,0% 0,0% 3,0% 0,4% 4,6% 2,2% 4,1% Outros CL 0,0% 0,0% 0,0% 0,4% 0,5% 0,4% 2,2% 4,1% Logística 0,0% 0,0% 0,0% 0,9% 1,0% 2,5% 1,2% 2,3% Alimentos 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 4,9% 2,0% 3,8% Outros 5,3% 5,7% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,1% 0,2% Elimin. de consolidação 0,0% 0,0% 0,0% -0,3% -2,3% -3,2% 0,0% 0,0%

Fonte: Relatórios Anuais e de Administração da Cosan (elaboração própria).

Originário de um setor agrícola, de base técnica livre, dependente do controle de

terras e acesso a força de trabalho barata, fortemente vinculado a mercados externos, o de

açúcar, e a um setor estruturalmente dependente do Estado, o de etanol, instável e de uma

posição subordinada dos produtores, o grupo Cosan teve seu crescimento baseado em uma

longa lista de aquisições, financiadas em grande medida pelo capital internacional. Ciente da

posição financeiramente inferior e das debilidades estruturais de sua posição na produção, o

grupo Cosan realizou um grande processo especulativo no setor sucroalcooleiro, passando

pela aquisição dos ativos de distribuição de combustível e que teve seu ápice na constituição

da joint-venture Raízen com a Shell, onde a estrangeira comanda as opções de compra ou

venda do controle do negócio. O grupo aproveita formas diferentes de oportunidades de

negócios, ora mais especulativas – como a especulação imobiliária ou a distribuição de

commodities –, ora de maior segurança, como a distribuição de combustíveis, de lubrificantes

e de gás natural. A estratégia do grupo Cosan, expressão maior da burguesia sucroalcooleira

brasileira, revela um comportamento típico de uma burguesia de negócios, vinculada ao

mercado externo na produção, mera intermediária no mercado interno, especuladora,

associada ao capital internacional e detentora de vínculos com o Estado em concessões ou no

financiamento do BNDES.

93 Note-se que ainda não foram incluídos aí as receitas da Comgás. Se adicionássemos a Comgás e retirássemos a Cosan Alimentos do total, a ROL da Comgás significaria 19% em 2011 e 18% em 2012 da ROL total, próximo do negócio da Raízen Energia (Açúcar e Etanol).

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77

4.2. Vale

A Vale pode ser resumida pela maneira como ela mesma define o ramo de

mineração: “especulativo por natureza”. A Vale é um fornecedor de minérios que despontou

nos anos 2000 pelo incremento da demanda internacional por minérios, em especial os de

ferro, e pelo incremento mais do que proporcional dos preços, que veio junto. O motor

principal é o crescimento da produção siderúrgica chinesa para seus principais produtos

(minério de ferro e pelotas, níquel e carvão). Ao ingressar no mercado de fertilizantes no final

do período estudado, a Vale também se conectou com o agronegócio, inclusive o brasileiro,

da qual a companhia é grande fornecedora. No fundo, se trata de um grande negócio montado

em cima de riquezas nacionais privatizadas nos anos 1990, quando deixou de ser estatal, e

cujo aproveitamento do excedente gigantesco obtido se dá de forma privada e

internacionalizada.

Tabela 12. Posição da Vale no ranking dos 200 maiores grupos no Brasil (em receitas)

2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011

200 grupos 15º 12º ND* 5º 5º 5º 3º 5º 6º 4º 5º

25 ind. priv. nacional 3º 1º 1º 1º 1º 1º 1º 1º 2º 1º 1º

Receitas (R$ milhões) 11.015 15.267 ND* 29.020 35.350 46.746 66.384 72.766 49.812 85.345 105.520

*ND: Dado não encontrado

Fonte: Valor Grandes Grupos, diversos anos (elaboração própria)

O primeiro fato importante sobre a Vale é a sua origem estatal, o que fez a

empresa privada já nascer grande, uma das maiores do Brasil em receitas. Em 1995, a antiga

Companhia Vale do Rio Doce (CVRD, nome modificado em 2007), foi incluída dentro do

Programa Nacional de Desestatização e vendida em 1997 de forma subsidiada – com preço

muito inferior ao que valia e com financiamento estatal94. Com a privatização, as ações

ordinárias passaram ao controle de entes privados (CSN, de Benjamin Steinbruch, Eletron

S.A., do grupo Opportunity, Sweet River Invest. Ltd., fundo internacional) e estatais (Litel,

controlada pelos fundos de pensão Previ, Petros, Funcef e Funcesp, BNDESPar e uma parcela

da União), em uma complexa composição entre acionistas diretos minoritários e acionistas do 94 Cf. Biondi (1999).

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controlador Valepar. As ações preferenciais continuaram controladas majoritariamente pelo

setor privado. Esta estrutura de comando, que se modificou pouco desde então, tem como

principal resultado a pulverização, a privatização e a transferência ao exterior do excedente

econômico obtido por um negócio de poucos vínculos com a estrutura econômica nacional e

vinculado principalmente a mercados externos.

Uma vez privatizada, a Vale prosseguiu como uma empresa produtora

majoritariamente de minério de ferro para exportação, inclusive passando de uma das maiores

para a maior do mundo no mercado transoceânico deste produto. As transformações dos

mercados internacionais e a estratégia da empresa levaram, no entanto, a algumas mudanças

importantes. Primeiro, a Vale teve um crescimento espetacular devido ao aumento das

exportações e dos preços de seu principal produto, o minério de ferro e as pelotas, devido

principalmente ao “efeito-China” no mercado de commodities e particularmente na

mineração, devido ao aumento da sua produção siderúrgica. Para uma noção da magnitude

deste efeito, 86% da ampliação da produção física de minério de ferro se destinou à Ásia,

69% só para a China, enquanto que antigos mercados importantes tiveram a participação

relativa (Europa) ou absoluta (Brasil) nas vendas da Vale reduzidas entre 2001 e 2011.

Tabela 13. Vale – exportações de minério de ferro, por região (milhões de ton.)

2001 2006 2007 2008 2009 2010 2011 ∆01-11 % ∆ Ásia 42,5 127,0 145,3 152,6 184,9 187,7 191,5 149,0 86% China 14,9 77,9 96,2 93,2 144,0 133,3 134,0 119,1 69% Restante da Ásia 27,6 49,1 49,1 59,4 40,9 54,4 57,5 29,9 17% Europa 34,4 71,3 74,6 74,2 34,6 59,0 58,6 24,2 14% Brasil 39,9 46,6 45,8 45,4 22,2 32,1 33,8 - 6,1 -3% EUA 2,9 4,5 4,0 2,6 0,2 0,5 0,6 - 2,3 -1% Oriente Médio - - - - - - 6,9 6,9 4% Resto do Mundo 10,2 23,3 21,8 20,4 11,6 11,8 12,3 2,1 1% Total 129,9 272,7 291,5 295,1 253,5 297,3 303,7 173,8 100%

Fonte: Vale, Relatório 20-F, diversos anos (elaboração própria)

Além do efeito quantidade, que impulsionou a produção da Vale a mais do que

dobrar no período; o efeito preço foi ainda mais importante para explicar a magnitude do

crescimento da Vale no período. Como se observa no gráfico abaixo, utilizando os preços de

vendas de minério de ferro e pelotas do Brasil, a Vale esteve sujeita a uma possibilidade de

multiplicar por dez ou mais o valor das vendas do seu principal negócio. Este dado é

altamente correlacionado à multiplicação das vendas em Reais do grupo, como mostrado na

primeira tabela deste item.

Page 84: Monte-cardoso_artur-2014-Burguesia Brasileira Nos Anos 2000 - Versao Final Para Banca

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Tabela 14. Vale - Minério de Ferro e Pelotas – índice de quantidades e preços

(2001=100)

(Índice de preços ao exportador brasileiro; Índice de quantidade produzida pela Vale)

Minério 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 Físico 100 108 113 158 177 198 208 210 188 205 208 Preço 100 98 107 123 160 187 207 305 287 527 741 Valor 100 105 121 195 283 369 431 641 539 1.079 1.541

Pelotas 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 Físico 100 63 80 149 148 129 155 158 101 191 201 Preço 100 97 106 119 198 229 225 359 288 475 582 Valor 100 61 84 178 294 297 350 568 291 908 1.168

Fonte: Vale, Relatório 20-F, diversos anos; DNPM (elaboração própria)

Em segundo lugar, foi também a China que polarizou não somente as vendas do

produto principal, como alguns mercados dentro dos quais a Vale passou a atuar. Dentre eles,

destacamos o Carvão e o Níquel, setores vinculados à produção siderúrgica como fonte de

energia e insumo para a produção de aço inoxidável, respectivamente. Considerando que a

Ásia é o principal destino das vendas da Vale nos dois segmentos, reforça-se a tese do vínculo

estrutural com o crescimento chinês e todos os efeitos daí derivados. A mudança do perfil de

origem das receitas da Vale é significativo: no início do período (2001-2002), Brasil (30%

aprox.) e Europa (46% aprox.) são os principais destinos; no final (2011-2012), os mais

importantes são da Ásia (53% aprox.), com a China – que corresponde a 33%

(aproximadamente.), Japão com 11% (país que manteve sua fatia desde o início do período) e

Coreia do Sul com 4%, ao passo que Brasil caiu para 20% (aproximadamente.) e Europa para

18% (aproximadamente.). Ou seja, uma nova dependência do desempenho de um único

mercado, tanto para vendas físicas, como os preços e, desta forma, para o momento de alta

especulação no ramo em geral.

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Gráfico 2. Vale – Receita bruta por país ou região (em US$ mi correntes)

Fonte: Relatórios Anuais Vale – elaboração própria.

Em terceiro lugar, e como consequência do peso dos mercados que polarizam a

empresa, tanto no que diz respeito a produtos, como no que diz respeito aos países, houve

uma importante modificação nos ativos produtivos. Caiu a importância relativa dos serviços

logísticos e de metais preciosos, acabaram as operações com Caulim, mas, o que é mais

importante, foram vendidas as operações de Alumínio e Bauxita para a norueguesa Hydro

Norsk, desnacionalizando uma parte expressiva deste segmento estratégico para diversos usos

industriais. Por outro lado, além da vinculação ao ramo siderúrgico (Minério de Ferro e

Pelotas, Carvão e Níquel), cresceram com destaque nos últimos anos os Fertilizantes,

vinculados diretamente ao crescimento do agronegócio em escala mundial

Page 86: Monte-cardoso_artur-2014-Burguesia Brasileira Nos Anos 2000 - Versao Final Para Banca

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Gráfico 3. Vale – Receita bruta por produto (em US$ mi correntes)

Fonte: Relatórios Anuais Vale – elaboração própria.

Do lado operacional, as transformações ocorreram por duas vias: no produto

principal, foi intensificada a produção em minas já existentes (Carajás) e consolidadas

operações adquiridas de concorrentes; os novos ramos foram iniciados a partir da compra de

empresas estrangeiras e investimentos em novas unidades fora do país. As principais

aquisições foram a canadense Inco (2006, por US$ 18,2 bi), ativos em empresas de

fertilizantes (em 2010 totalizaram US$ 5,8 bi, além de US$ 1,2 bi na Vale Fertilizantes em

2011), a Caemi, no Brasil (US$ 3,2 bi entre 2003 e 2006) e a participação de 9% na Norte

Energia S.A., consórcio construtor da UHE Belo Monte95 (US$ 1,4 bi em 2011). O ramo de

níquel responde por 51,7% das aquisições (atualizados em preços de 2012) e o de

95 A Vale entrou no consórcio posteriormente à sua constituição, adquirindo a participação da Gaia, do frigorífico Bertin.

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fertilizantes, por 18%. A maioria dos gastos foi realizada fora do país, implicando em um

crescimento forte da internacionalização da companhia no período96.

Tabela 13. Vale – valor das aquisições por ramo (em US$ de 2012)

Ramo US$ (2012) % Total Minério de Ferro e Pelotas 9.740 20,4% Manganês e Ferro-ligas 26 0,1% Carvão 1.432 3,0% Cobre 220 0,5% Níquel 24.624 51,7% Fertilizantes 8.587 18,0% Energia 1.639 3,4%

Logística 1.191 2,5% Alumínio 102 0,2% Aço 87 0,2%

Total 47.646 100,0% Fonte: www.vale.com (elaboração própria)

No lado financeiro, assistiu-se a uma intensificação da aplicação dos recursos

próprios para capitalização, que passaram de 41,3% do passivo total em 2002 para 53,4% em

2010, bem como o endividamento externo (majoritário) e interno (crescente). Contudo, o

endividamento externo acompanhou quase que na mesma proporção a ampliação do passivo e

foi particularmente importante nos momentos de grandes aquisições, como foi o caso da Inco

em 2006, quando o Exigível a Longo Prazo correspondeu a 66,8% do aumento do passivo

entre 2005 e 2006. Dentro do componente endividamento, se destaca o acesso – e a

dependência – dos mercados de capitais internacionais, principalmente em dólares, mas

também em euros. O aumento relativo do endividamento moeda doméstica (15% do total no

começo da série, chegando a 30% no final), associado à trajetória geral de valorização do Real

na década, permite tomar vantagem de um financiamento com custo decrescente (medido em

dólares, moeda principal das receitas) para aquisições feitas principalmente em moeda

estrangeira, uma espécie de especulação contra o Real. Contaram para este último recurso,

empréstimos do BNDES nos últimos anos (em relação ao total do endividamento, os saques

de linhas de crédito junto ao banco totalizaram 5% em 2010, 8% em 2011 e 7% em 2012).

96 O índice de internacionalização (I.I.) da Vale, calculado como média dos índices de receitas, ativos e empregos (percentual fora do país em cada indicador) aumentou de 28,7% em 2006 para 41,2% em 2010, segundo o anuário Valor Multinacionais Brasileiras.

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Tabela 14. Vale – Endividamento Geral e algumas categorias (US$ mi)

Em USD mi 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 Total 3.331 4.028 4.088 5.010 22.581 19.030 18.245 22.880 24.553 23.055 30.267 Longo Prazo 2.366 2.771 3.232 3.715 21.122 17.608 18.168 22.831 24.414 23.033 30.267 Curto Prazo 965 1.257 856 1.295 1.459 1.422 0 49 139 22 0 % Curto Prazo 29% 31% 21% 26% 6% 7% 0% 0% 1% 0% 0% Prazo Médio (anos) ND ND ND ND 8,36 10,70 9,28 9,17 9,92 9,81 10,14 Categorias principais 3.024 3.662 3.834 4.816 21.644 18.540 18.069 22.544 24.071 22.700 29.842 % Total 91% 91% 94% 96% 96% 97% 99% 99% 98% 98% 99% Empréstimos e Financ. em USD 1.465 1.621 1.555 2.442 10.814 6.139 6.115 5.875 4.914 3.189 3.981 Títulos de Renda Fixa em USD 800 900 913 1.213 6.897 6.680 6.510 8.481 10.242 10.483 13.581 Empr. garant. recebíveis exp.. (USD) 300 525 480 427 345 550 204 150 0 0 0 Títulos de Renda Fixa em EUR 0 0 0 0 0 0 0 0 1.003 970 1.979 Debêntures não-conversíveis em BRL 0 0 0 0 2.774 3.340 2.774 3.453 2.767 2.505 2.336 Títulos perpétuos 63 65 65 75 86 87 83 78 78 0 0 Outras dívidas/dívidas moeda local 396 551 821 659 728 1.744 2.383 4.507 5.067 5.553 7.965

Fonte: VALE, Relatórios 20-F, diversos anos (elaboração própria)

As vantagens competitivas da mineração estão mais ligadas às vantagens

comparativas que dizem respeito à qualidade dos minerais e à distância geográfica

(relativamente ao custo do transporte) com relação aos compradores. A Vale (e a Vale no

Brasil) se posiciona principalmente no primeiro polo, devido à qualidade de alguns produtos,

como o minério de ferro brasileiro, que o torna competitivo frente a outros produtores mais

próximos da Ásia, como a Austrália. Também é preciso considerar as fontes de energia

elétrica baratas existentes no Brasil, inclusive com subsídios, e uma parte da infraestrutura já

montada e amortizada, como as ferrovias (apesar dos investimentos de melhoria ou ampliação

em curso). Obviamente há alguma base técnica da produção e da distribuição (importância da

logística, tanto em termos de custos, como em termos de tempo para atendimento dos

clientes), já que o negócio possui preços comandados por bolsas de mercadorias e não pelos

custos e as margens podem ser afetadas. Mas o setor, como ofertante de insumos em

mercados aquecidos, é uma das pontas que mais ganha pelos preços, além das quantidades.

A Vale sai dos anos 2000 mais vinculada a mercados externos ao Brasil do que

entrou, e com uma base produtiva mais internacionalizada também. Portanto, o sucesso da

empresa não significa necessariamente uma oportunidade para o Brasil, já que está

desvinculada da demanda brasileira, com a estagnação relativa da siderurgia brasileira e

mesmo com as estratégias de integração vertical das siderúrgicas operando no país. Ela é, por

natureza da atividade, um ramo com baixos encadeamentos para trás e, se não estiver

vinculada a uma demanda industrial, acaba por operar em um padrão de enclave. E o que é

Page 89: Monte-cardoso_artur-2014-Burguesia Brasileira Nos Anos 2000 - Versao Final Para Banca

84

pior, trata-se de um enclave cujos rendimentos foram, como já foi dito, pulverizados,

privatizados e internacionalizados, restando somente os impostos.

Em síntese, ao ser privatizada, a Vale representa um gigantesco processo de

transferência de riqueza para negócios privados (mesmo quando estão sob controle de entes

públicos, como no caso dos Fundos de Pensão), processo esse que adquiriu uma dimensão

gigantesca com o ciclo das commodities movido pela China especialmente nos anos 2000. Os

principais beneficiários da Vale são, além dos fundos de pensão e do BNDESPar, a parte da

burguesia brasileira que a controla, mas em especial a parte para o grande capital

internacional que participa do controle (recebendo os dividendos) e que a financia. Apesar de

ser um capital brasileiro com atuação em vários países, seu principal ponto de operação é o

Brasil, de onde extrai as riquezas minerais, vantagens tributárias e insumos baratos

(energéticos). A questão é que a Vale deixa uma parcela pequena do excedente no país e que

está progressivamente se desvinculando do sistema econômico nacional (dada a

desindustrialização e a diminuição da importância do Brasil nas suas vendas), a despeito dos

vínculos com fornecedores internos. Seu ciclo de acumulação se inicia e finaliza fora do país,

sendo financiado pelo capital internacional e tendo como cliente final a siderurgia (e a

manufatura) asiática. É um negócio no fundo que objetiva suprir mercados externos e fornecer

rendimentos ao grande capital internacional, utilizando-se de riquezas nacionais privatizadas.

4.3. Gerdau

A Gerdau é uma empresa brasileira do ramo siderúrgico bastante

internacionalizada, mesmo antes dos anos 2000. Seu produto principal, os aços longos, sua

base produtiva, as mini-mills, e o controle de mercados domésticos são seus principais

diferenciais para sobreviver em um ramo crescentemente competitivo, com margens baixas,

capacidade ociosa e custos crescentes – processo polarizado pela produção chinesa. Sua

estratégia histórica de crescimento são as aquisições de concorrentes com problemas

financeiros e operacionais, sendo que nos anos 2000 este processo foi fortemente financiado

pelo capital internacional. Sem base financeira própria nem diferencial de inovação, a Gerdau

acumula através do posicionamento estratégico em mercados nacionais. Diante de um quadro

de alta competitividade, em que passa a concorrer crescentemente com aços importados, a

Gerdau se apoia nos negócios de construção – infraestrutura e mercado imobiliário – gerados

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85

pelo Estado brasileiro, com quem possui boa relação, para garantir seu crescimento, a

despeito da desestruturação da indústria manufatureira brasileira.

Tabela 15. Posição da Gerdau no ranking dos 200 maiores grupos no Brasil (em

receitas). (*ND: Dado não encontrado)

2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011

200 grupos 30º 21º ND* 10º 10º 11º 10º 8º 19º 16º 16º

25 ind. priv. nacional 5º 5º ND* 2º 2º 3º 3º 2º 4º 4º 4º

Receitas (R$ milhões) 7.084 11.144 ND* 23.408 25.486 27.511 34.184 41.908 26.540 35.666 39.820

Fonte: Valor Grandes Grupos, diversos anos (elaboração própria).

Para compreender a Gerdau, é preciso entender o fundamental do ramo: a

siderurgia é um setor puxado pela demanda, tanto no que diz respeito à quantidade quanto aos

tipos de produtos. No setor, não são frequentes inovações radicais e a fronteira tecnológica se

desloca lentamente, apesar do largo espaço melhorias na tecnologia de processo (inovações

incrementais)97. A produção do aço, que é uma liga de ferro e carbono, ocorre basicamente

pelo chamado processo integrado, usando minério de ferro e carvão (“redução” nos “alto-

fornos”) para produzir ferro-gusa e depois a transformação em aço (“refino”, nos fornos a

oxigênio ou elétricos); obtido o aço em solidificação, ele é moldado (“laminação”) de acordo

com o produto desejado. No século XX, houve apenas duas inovações radicais no setor, a

aciaria básica a oxigênio (conversor LD) a ferro-gusa, dos anos 1950, e o lingotamento

contínuo (processo de solidificação), havendo desde então apenas algumas melhorias que

compactaram os processos98. Nos anos 1950, destacou-se ainda o surgimento da aciaria

elétrica (forno elétrico)99, que dispensa a redução, usando sucata de aço ou ferro gusa como

matéria-prima, processo chamado “semi-integrado”; devido às escalas menores, as usinas que

usam este processo foram chamadas de mini-mills100, responsáveis por reduzir as barreiras à

entrada e a mobilidade do capital internacional no setor101 e principal base produtiva da

Gerdau. Em 2011, cerca de 70% da produção global de aço ocorria em processo integrado; no

97 Cf. De Paula (2012). 98 Nas últimas décadas, têm destaque duas tecnologias de compactação de processos que servem às usinas tradicionais integradas a coque (método tradicional): thin-slab-casting e processos alternativos de produção de ferro primário (DE PAULA, 2012: p. 46-49). 99 Cf. De Paula (2012). 100 Para uma análise que enxerga as mini-mills como caso de inovação disruptiva, ver Christensen e Raynor (2003). 101 Cf. Andrade, Cunha e Gandra (2000).

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86

Brasil, o valor era de 75%. No lado da inovação de produto, ao contrário do processo, há

maior apropriabilidade das inovações (capacidade de uma empresa reter os benefícios de uma

inovação), especialmente existentes no desenvolvimento de aços especiais e no

relacionamento com clientes, para produção de materiais e soluções sob demanda.

Para se compreender o padrão de negócio siderúrgico da Gerdau, é preciso

caracterizar três aspectos: seus principais produtos, sua base produtiva e seus mercados

consumidores. No que diz respeito aos produtos, a Gerdau é especializada na produção de

aços longos, comuns (vergalhões, barras e perfis) – destinados à construção civil e manufatura

– e trefilados (arames, arame galvanizado, cercas, telas para reforço de concreto, pregos e

grampos) – destinados à manufatura, construção civil e setor agrícola. Ela ainda possui

operações de aços longos e aços especiais, estes mais elaborados, de maior valor agregado e

com principal consumidor a produção de veículos automotores.

Quanto à base produtiva, a Gerdau é uma empresa concentrada no processo

produtivo semi-integrado. As mini-mills, que respondem por 89% da capacidade produtiva da

empresa, possuem menor escala e, por dependerem da sucata de aço para produzir o aço,

estão próximas de centros urbanos com grande consumo de bens a base de aço ou com

indústria manufatureira, produtora de restos de aço aproveitáveis. Este perfil também teve

influência das origens da expansão da empresa pelo Brasil, já que as longas distâncias

desencorajam a mobilidade tanto de matérias-primas como de produtos finais102.

Por fim e como decorrência do ponto anterior, a Gerdau se desenvolveu

inicialmente como uma empresa que tinha como principal consumidor o mercado interno.

Este perfil se modificou não apenas para a Gerdau, mas para a siderurgia brasileira em geral

nas duas últimas décadas, quando se consolidou uma grande diferença entre a produção e o

consumo aparente103. No Brasil, a Gerdau exporta em média 28% (2008-2012) da produção

física, oscilando de acordo com o desempenho do mercado interno. Esta média cai

significativamente para 14% ( no mesmo período) para a empresa em geral, já que nos demais

países as vendas são fortemente vinculadas aos mercados domésticos. No Brasil, um dos seus

diferenciais é o controle de um grande canal de comercialização de aço, inclusive de outros

produtores, além dos serviços de corte e dobra de vergalhões para construção, através da

empresa controlada Comercial Gerdau.

102 Cf. Gerdau (2012a: pp. 17-18) 103 Cf. Gerdau (2012a: pp.23-24). Em 2012, a exportação representava 32% das vendas brasileiras. As exportações corresponderam, na média dos últimos cinco anos (2008-2012), a 26% da produção física.

Page 92: Monte-cardoso_artur-2014-Burguesia Brasileira Nos Anos 2000 - Versao Final Para Banca

87

Para entender o perfil da companhia na entrada dos anos 2000 e a sua estratégia de

crescimento, é preciso voltar décadas atrás. Quando deixou de ser uma empresa limitada à

região sul e se tornou uma empresa nacional a partir dos anos 1960, a Gerdau cresceu

principalmente adquirindo usinas nas outras regiões que estivessem com problemas

econômicos e que pudessem ser saneadas. Este foi seu padrão de crescimento durante duas

décadas, com exceção da construção, em parceria com a alemã Thyssen, da Cosigua, no Rio

de Janeiro, até hoje é a maior mini-mill da América Latina104.

A partir dos anos 1980, seu crescimento caminhou por duas vias: a primeira, no

plano interno, a Gerdau passou vinte anos sem construir novas usinas e se concentrou em

aquisições, em especial do parque siderúrgico estatal que foi privatizado (três usinas comuns,

uma de aços longos – a Aço Minas – e uma de aços especiais – a Aços Finos Piratini)105; com

a abertura dos anos 1990, se concentrou na unificação das unidades em torno da Gerdau S.A.

e a abertura de capital em Nova Iorque em 1999. No plano externo, a Gerdau iniciou seu

processo de internacionalização com a aquisição de usina no Uruguai, no Canadá, no Chile,

na Argentina e por fim a compra da Ameristeel em 1999-2000, que a fez quase dobrar suas

vendas em dois anos e mudar de 26% de produção física no exterior em 1999 (era 9% em

1994) para 42% em 2000106. A internacionalização foi amplamente motivada pela crise pela

qual ingressou o país nos anos 1980 e o aproveitamento de oportunidades de adquirir

empresas deficitárias, além dos novos determinantes de competitividade internacional do

setor107. Assim, a aquisição de unidades em outros mercados internacionais ou dentro do

Brasil quando um bom negócio (caso das privatizações) foi uma alternativa mais cômoda para

utilizar da capacidade de acumulação e continuar a ganhar espaço. No Brasil, ao final da

consolidação dos anos 1990, permitida pelas privatizações e pela entrada das transnacionais

no país108, a Gerdau era a líder de um duopólio com a empresa Belgo Mineira no setor de aços

longos e a maior siderúrgica do país em produção de aço bruto109.

104 Cf. Gerdau (2012a). No final dos anos 1970, a Gerdau adquiriu a parte da Thyssen na Cosigua. 105 Cf. Athia e Dalla Costa (2009). 106 Cf. Goulart e Paula (2010). Para os dados, ver Gerdau (2001) 107 Athia e Dalla Costa (2009: pp. 136-137) destacam não apenas a instabiidade monetária, mas os desdobramentos na indústria e no comércio exterior da crise econômica brasileira. Goulart e Paula (2010: pp. 88-89) apontam uma pressão do governo nos anos 1980 para que a Gerdau não ampliasse sua fatia do mercado, por um lado, e a busca de oportunidades em mercados com produtores pouco competitivos, como o Uruguai (por onde iniciou a internacionalização) ou, de empresas deficitárias, como no Canadá (segundo país de destino). 108 Cf. BNDES (2001) 109 Cf. Anuário Estatístico do Setor Metalúrgico (MME, 2004).

Page 93: Monte-cardoso_artur-2014-Burguesia Brasileira Nos Anos 2000 - Versao Final Para Banca

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Os anos 2000 são marcados, no setor siderúrgico mundial, pela ascensão da China

ao patamar de maior produtor siderúrgico mundial – com crescente indústria manufatureira.

Gráfico 4. Produção Mundial de Aço Bruto (inclui todos os tipos), em mil ton.

Fonte: World Steel Association – Steel Statistical Yearbook (elaboração própria)

O crescimento chinês repercutiu de duas formas: em um primeiro momento,

estimulou o aumento dos preços e as exportações de outros países, enquanto o país asiático

ainda era importador líquido; no segundo momento, a partir de 2006, quando se tornou

exportador líquido e particularmente após a crise eclodir em 2008, a China concorre para

haver uma gigantesca capacidade ociosa e um encarecimento mundial dos insumos (minério

de ferro, carvão, sucata de aço etc.), fatos que pressionaram para baixo as margens da

siderurgia em plano mundial110.

110 Cf. OCDE (2012a) e McKinsey (2013).

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Gráfico 5. Distribuição do valor dentro da cadeia – integrada (Hot-Rolled Cold Steel)

Legenda: Iron Ore: Minério de Ferro; Coking Coal: Carvão; Steel making: Fabricação do aço

Fonte: Aço Brasil (2013)

Os problemas são que a capacidade produtiva está muito além da demanda, não

recuperada da crise, há uma resistência enorme dos países em permitir que sua siderurgia

simplesmente feche frente a um cenário adverso, há custos muito altos de saída do ramo, e a

siderurgia chinesa possui uma série de incentivos para prosseguir111.

Gráfico 6. Capacidade produtiva (efetiva) e demanda mundiais por aço

Fonte: OCDE (2012b)

Tudo indica que a condição estrutural do setor será de ampla competitividade nos

próximos anos. Sem perspectivas de grandes inovações, a disputa se dará em torno de custos 111 Cf. Euler Hermes (2013).

Page 95: Monte-cardoso_artur-2014-Burguesia Brasileira Nos Anos 2000 - Versao Final Para Banca

90

(insumos metálicos e energéticos, força de trabalho) e do controle de mercados consumidores.

A redução dos custos de frete transoceânicos aponta para a criação de um mercado mundial de

aço, acirrando a competição entre os países. Os países ou empresas capazes de ter acesso a

fontes de vantagens competitivas espúrias (baixo custo energético, baixas exigências

ambientais, força de trabalho barata), canais políticos que garantam mercados e base

financeira que permita atravessar os ciclos terão condições de liderança.

Neste contexto, a tendência é que o setor siderúrgico brasileiro tenha poucas

chances de disputar mercados externos (a despeito da importante fatia exportada), se

restringindo ao interno, conforme aponta um especialista no setor112. O problema é que a

siderurgia brasileira é pressionada pelos custos dos insumos113, o que reduz o peso dos

salários114, custo da energia elétrica que impacta as usinas a forno elétrico, redução dos custos

do frete, que reduzem o peso relativo da proximidade a fontes de minério de ferro. Um outro

problema se refere às importações indiretas de aço através da importação de manufaturas a

base de aço, que atinge o patamar de dois milhões de toneladas (quase um terço das

exportações líquidas de aço do Brasil em 2012), especialmente no setor de automóveis115.

Ao longo dos anos 2000, o mercado siderúrgico brasileiro passou por algumas

modificações. Em primeiro lugar, sua produção física aumentou abaixo da média mundial,

diminuíndo a fatia do país no total. Em segundo lugar, prosseguiu um processo de

consolidação e internacionalização do setor, com partida de algumas poucas novas

companhias116. Em terceiro lugar, com relação ao uso final (interno) do aço brasileiro, houve

o crescimento do setor de construção civil, autopeças e automóveis, ambos setores que

tiveram fortes incentivos governamentais no período (o primeiro em especial com os

programas de infraestrutura e construção residencial, além dos “megaeventos”).

112 Cf. Ribeiro (2012). 113 A despeito da disponibilidade da oferta e qualidade do minério de ferro brasileiro, o seu preço internacional é o que conta na contabilidade. Isso fez várias siderúrgicas incorporarem ou aprofundarem operações de mineração, inclusive exportando minério de ferro, como faz a Gerdau. Além disso, o carvão é todo importado, além de outros insumos necessários. 114 Com tal indicação, podemos inferir da análise do professor Germano de Paula (RIBEIRO, 2012) que os custos salariais são ou foram um diferencial competitivo para o Brasil no setor. 115 Cf. Guaraná, Molajoni e Szewczyk (2013). 116 Partiram: em 2010, a CSA (RJ), da ThyssenKrupp em parceria com a Vale, voltada para exportações, e 2009 a Sinobras (PA), do Grupo Aço Cearense, voltada para material de construção.

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Gráfico 7. Aço – Vendas internas por setor - maiores setores, exceto distribuidores (%)

Fonte: Ministério de Minas e Energia - Anuário Estatístico do Setor Metalúrgico (elaboração própria)

A Gerdau prosseguiu nos anos 2000 com sua estratégia de crescimento, inclusive

com sua internacionalização, através, prioritariamente, de aquisições117, conduzida pelo

endividamento principalmente em dólares no mercado internacional. No mercado interno,

prosseguiu as aquisições e voltou a construir usinas novas, além de dar grande importância

para a Gerdau Açominas, sua grande usina de aços planos, uma das mais competitivas para

exportações e com operações integradas de mineração – inclusive exportação de minério de

ferro. Em um plano geral, buscou o segmento de aços especiais com operações no Brasil,

EUA, Espanha e Índia (no Brasil seu maior mercado é o automobilístico). Embora difícil de

precisar devido à falta ou descontinuidade de dados da empresa, os mercados que aparecem

mais recorrentemente como os principais da Gerdau em seus relatórios foram a construção em

primeiro lugar e depois a indústria, em particular máquinas e equipamentos agrícolas e bens

de capital e veículos; também constam as vendas diretas para a agropecuária. Nos últimos

dois anos, o mercado brasileiro da Gerdau tem ênfase nas obras de infraestrutura, programas

residenciais e os “megaeventos”118.

117 Cf. Athia e Dalla Costa (2009 ). 118 “A Gerdau continuará fornecendo aço para a construção de estádios de futebol e também de obras de infraestrutura, como Bus Rapid Transit(bRTs), ferrovias, usinas eólicas, portos e estradas. Em 2012, o setor da construção civil deverá ser impulsionado pela aceleração das obras para a Copa do Mundo de 2014 e pela continuidade do programa governamental Minha Casa, Minha Vida”. (GERDAU, 2011b: p. 22). “As obras para a Copa do Mundo em 2014 e para os Jogos Olímpicos de 2016 estão em pleno andamento e deverão seguir um ritmo mais acelerado durante 2013. Nesse sentido, a Gerdau seguirá fornecendo aço para a construção e a renovação de estádios de futebol, assim como para obras de mobilidade urbana e de infraestrutura, como aeroportos, ferrovias, portos e estradas, as quais serão executadas em ritmo mais lento que a expectativa. Dentro

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Do ponto de vista do financiamento, a Gerdau é dependente do financiamento do

capital internacional para viabilização de sua principal estratégia de crescimento: as

aquisições de outras usinas119. Como a empresa compra se endividando e os credores exigem

o controle do endividamento, a Gerdau possui uma capacidade limitada de expansão120. Para

melhorar as condições de alavancagem, a empresa busca tomar empréstimos nas moedas com

que paga as aquisições, utiliza forma escriturais de aquisição, como a troca das ações da

empresa adquirida por ações da própria Gerdau, e busca financiamento com menores juros –

Bolsa de Nova Iorque no estrangeiro e BNDES no Brasil. O BNDES além de acionista121, é

fonte de uma parcela razoável de empréstimos à empresa122. De uma maneira geral, a Gerdau

usa também o mercado acionário para se capitalizar, sendo que o controlador (Metalúrgica

Gerdau, de propriedade da família) possui três quartos das ações ordinárias, mas menos de

30% das preferenciais.

Gráfico 8. Gerdau – Endividamento bruto e endividamento líquido (US$ mi)

Fonte: Gerdau, F-20-F, diversos anos (elaboração própria).

Frente a algumas outras siderúrgicas brasileiras (CSN e Usiminas), ela possui

algumas vantagens que tornam sua posição menos frágil: a produção em mini-mills imobiliza

desse cenário de expansão da demanda por aço, a Gerdau está preparada para atender plenamente o mercado”. (GERDAU, 2012b: p. 14). 119 Mais de 90% do endividamento da Gerdau é em moeda estrangeira (GERDAU, 2012a). 120 Cf. Vieira (2007). 121 O BNDESPar é detentor de 7% das ações ordinárias e 2% das preferenciais da Gerdau S.A. pelo menos desde 2001. 122 Do BNDES foram R$ 1,75 bi entre 1999 e 2006 (SOARES, 2006), R$ 345,4 milhões em 2007 (BNDES, 2006), até R$ 1,5 bi em crédito em 2009 (BNDES, 2009) e enfim até R$ 776,6 milhões em 2012-13 (LISBOA, 2012), equivalente a cerca de R$ 4,4 bi no período.

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menos capital e dá mais flexibilidade em períodos de crise; possui margens um pouco

melhores atribuídas a capacidades de gestão123; os canais comerciais e os serviços para

construção (diferencial frente à concorrência124); possui posição oligopsonista no mercado de

sucata de aço, ainda relativamente desorganizado no Brasil125; ativos de alta rentabilidade,

como a usina de Ouro Branco (ex-Açominas), inclusive com a capacidade de exportação de

minério de ferro; uma dependência menor de clientes da indústria manufatureira e uma

possibilidade maior de usufruir da demanda construída pelo Estado (construção),

potencializada pelas boas relações políticas dos dirigentes do grupo com os governos

petistas126 – ou seja, há espaço para criação de negócios, independente da sua vinculação

orgânica com o mercado interno ou com uma economia nacional mais integrada.

Ainda assim, o período pós-crise (últimos cinco anos), os resultados da Gerdau

foram condizentes com o panorama descrito para o setor mundialmente: crescimento menor,

redução das margens e ampliação do endividamento. A empresa sofre as consequências, ainda

que em menor escala, do processo de desindustrialização, já que uma parcela menor da

produção ainda é destinada à indústria de transformação; possui uma forte dependência de

financiamentos externos, em moeda estrangeira; e o setor siderúrgico mundial, estimulado

pela capacidade ociosa e custos de frete em redução, está criando um espaço para

concorrência com aços longos comuns importados no Brasil127.

123 Cf. Macadar (2009) e Vieira (2007). 124 A Comercial Gerdau comercializa aços planos, que está começando a fabricar, de outras siderúrgicas. 125 Cf. GO Associados (2013). 126 Os dirigentes da Gerdau possuem relações estreitas com o ex-presidente Lula e a presidente Dilma, sendo o presidente do Conselho de Administração, Jorge Gerdau, conselheiro do governo para questões de gestão. 127 “A Companhia vem sofrendo a concorrência das importações de aços longos comuns,principalmente oriundos da Turquia, com mais intensidade a partir de 2010. A Companhia acredita que a diversificação de seus produtos, o desenvolvimento de soluções por meio de suas unidades de corte e dobra e a descentralização de seus negócios proporcionam uma vantagem competitiva sobre seus principais concorrentes” (GERDAU, 2012a: p. 34).

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Gráfico 9. Gerdau – Indicadores de margem (%)

Fonte: Gerdau, Formulário 20-F, diversos anos (elaboração própria)

A empresa depende de mercado gerado pelo Estado, vinculado a setores sob

pressão de grandes negócios internacionais – como negócios de comércio internacional

demandantes de infraestrutura para escoamento, ou o mercado imobiliário, crescentemente

dominado por uma lógica financeira128. Os mercados nacionais em que atua não são os mais

dinâmicos do mundo, o que nos leva a crer que sua expansão tem mais a ver com conquista de

market-share e aproveitamento de oportunidades de acumulação pelo controle de mercados

cativos do que com uma lógica mais agressiva de disputa com concorrentes. Além disso,

como a tecnologia é dada, a capacidade de a Gerdau ou outra empresa adquirir lucros

extraordinários a partir de inovações radicais é baixa; aliás, a própria Gerdau se contenta com

baixo P&D e com a aquisição da tecnologia necessária no mercado129. Por fim, apesar da

conduta prudente com operações financeiras, a Gerdau não possui uma base própria de

acumulação que permita financiar sua expansão e por isso é dependente de financiamento

estatal no Brasil e especialmente do financiamento no mercado internacional de capitais, que

a expõe a um risco macroeconômico. Sua proporção de dívida em moeda estrangeira é

superior à proporção de receitas em moedas estrangeiras e seus indicadores de endividamento

– que são condicionantes para contratar empréstimos e lançar títulos de dívida – estão

deteriorados em 2012 e as condições do setor não apresentam cenário de melhora

extraordinária. Por tudo isso, a Gerdau é uma empresa grande, mas uma “campeã” que não

controla os elos estratégicos da indústria siderúrgica. 128 Cf. Fix (2011). 129 Na companhia, os gastos com Pesquisa e Desenvolvimento são baixos e a empresa considera que a tecnologia de que precisa pode ser adquirida no mercado (CHEVARRIA & VIEIRA, 2007).

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Em suma, a Gerdau possui uma posição relativamente melhor dentro de uma

siderurgia em um país subdesenvolvido. Seu mercado está mais vinculado a decisões políticas

(onde tem boas relações) e grandes negócios do mercado de construção, voltadas para a

provisão de insumos energéticos, corredores de exportação ou especulação (mercado

imobiliário), do que à indústria de transformação que está sendo desestruturada. Isto significa

que a Gerdau possui espaço para crescimento no Brasil. Mas, apesar de algumas vantagens do

ponto de vista do vínculo com os mercados consumidores, acesso a Energia e insumos

baratos, ela está crescentemente suscetível à sua fonte de financiamento originada no capital

financeiro internacional – o que expõe a crises de estrangulamento cambial –, e suscetível

também à concorrência internacional, que está se iniciando em alguns de seus produtos.

Desprovida de base financeira própria e de inovação, fará parte de um setor de concorrência

agressiva, em que serão decisivos a escala de acumulação de capital e de poder político

(envolvido no planejamento e garantia de mercado para a produção) muito acima das

possibilidades do Brasil – ou da Gerdau.

4.4. JBS

A JBS é um grupo que atua dentro do segmento de agronegócio e que cresceu

especialmente através de aquisições, fortemente financiado pelo Estado brasileiro. É a partir

do processo de internacionalização, iniciado em 2005 e acelerado em 2007, que se torna a

empresa com projeção internacional. Sua estratégia consiste em adquirir e sanear empresas

concorrentes com dificuldades financeiras e operacionais. No entanto, tanto a posição da

empresa na cadeia produtiva quanto o custo do endividamento necessário para as aquisições

implicam baixas margens e um pequeno raio de manobra da empresa. O decisivo é que, além

de não ter a base financeira necessária para executar sua estratégia, a JBS atua em um

segmento da cadeia de carnes que é comandado por outros segmentos. Sua tecnologia é

básica, suas margens são pequenas, a eficiência exige escalas muito altas e ela não controla os

canais mais importantes da cadeia, no varejo ou na incorporação de progresso técnico na

criação dos animais. Desta forma, apesar de atuar como uma empresa transnacional, sua

condição não a torna uma líder real do setor. O fortalecimento da JBS fortalece o agronegócio

no Brasil, a dependência tecnológica e de mercados externo, o padrão de uso da terra baseado

no latifúndio e o financiamento do Estado para gerar grandes negócios privados.

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Tabela 16. JBS – Posição no ranking dos 200 maiores grupos no Brasil (por receita)

2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011

200 grupos - - ND* - - 69º 31º 17º 5º 5º 9º

25 ind. priv. nacional - - ND* - - 14º 6º 5º 1º 2º 3º

Receitas (R$ milhões) - - - - - 4.749 14.727 31.106 55.224 57.107 64.239

*ND: Dado não encontrado

Fonte: Elaboração própria com dados do anuário Valor Grandes Grupos.

O segmento de atuação da JBS é o setor de carnes e derivados. Trata-se de um

setor dirigido pela demanda – que, por sua vez, é movida pela renda130 – e dividido em quatro

grandes grupos por origem animal: suíno, aves ou frango (poultry131), bovino e ovino, sendo o

segmento bovino a origem e especialidade do grupo JBS. De uma maneira geral, o segmento

tem como fonte de crescimento a ampliação do consumo em países “emergentes”, que

transitam das fontes vegetais de proteínas para as animais na medida em que há um aumento

de renda correspondente a processos de crescimento econômico e urbanização132. Os países

desenvolvidos já têm um consumo per capita de proteína animal mais alto e a modificação

dos padrões de consumo diz respeito a busca por alimentação mais prática e saudável. Um

fator que motiva ambos os mercados são os preços mais baixos e a praticidade de preparo das

carnes de frango133, o que fez a produção desta carne ser a que mais cresce no mundo. A carne

de porco ainda é a mais consumida no mundo e a carne bovina é a terceira, especialmente por

causa dos preços muito acima das outras duas.

130 Cf. OCDE/FAO (2009: p. 168). 131 A denominação poultry ou aves corresponde a um segmento um pouco mais amplo que o de frangos (incluindo, por exemplo, o peru). Contudo, devido à predominância absoluta de frangos na oferta de carne de aves, o setor de aves também é tratado simplesmente como setor de frangos. 132 Cf. OCDE/FAO (2009: p. 168). 133 Cf. OCDE/FAO (2008: p. 125).

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97

Gráfico 10. Oferta mundial de carne por tipo (bilhões de toneladas)

Fonte: FAOSTAT (Elaboração própria)

Uma característica importante do mercado de carnes, particularmente aplicável à

carne bovina, é que seus preços oscilam menos e, durante o processo de alta dos preços das

commodities, eles aumentaram em proporção menor do que de outros produtos134. Isso se

explica pela conjunção de alguns fatores: as carnes são parte menor da alimentação básica, o

que as tornam menos suscetíveis à ampliação da demanda por alimentos em geral; devido à

sua perecibilidade, é um produto menos estocável e por isso menos influenciado por

especulação com estoques; ainda há fatores técnicos, mas aplicáveis à carne bovina, que diz

respeito ao tempo que os produtores têm para reagir a mudanças nos preços dos insumos

alimentícios, já que o ciclo de criação ao abate dura meses até anos135.

134 Segundo dados da OCDE/FAO (2013), considerando índices de preços (nominais) com base em 2002 (2002=100), a carne bovina chegou a 183 em 2012, a de porco atinge 175 em 2012 (pico de 189 no ano anterior), a ovina atinge 263 e a carne de frango, exceção, atinge 318 em 2012 (pico de 347 no ano anterior). A efeito de comparação, no mesmo período e com mesmo índice, o etanol atingiu 303, o açúcar chegou a 271, o arroz a 231 e as oleaginosas a 264. 135 “Unlike cereals, oilseeds and dairy markets, meat prices did not show a spectacular development in 2008. This is partially explained by the relatively limited role meat plays as a staple and the limited storage capacities, that make panic-buying unlikely. High cereals prices translate into high feed costs in production systems where cereals play an important role as feed. However, producers have only limited ability to respond to suddenly increasing feed costs as production decisions are taken in the beginning of the production cycle and cannot respond quickly to price signals. These two factors are probably the most relevant in explaining why meat prices remained rather stable during the recent turbulent period” (OCDE/FAO, 2009: p. 168).

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98

Gráfico 11. Preços mundiais de carnes (termos reais) – em US$/ton.

Fonte: OCDE/FAO (2012)

Uma questão importante diz respeito à dinâmica do comércio internacional de

carnes. Apesar de uma parte pequena, ainda que crescente, da produção mundial ser destinada

às exportações136, a dinâmica comercial tem grandes efeitos sobre os países exportadores137.

Primeiro, no comércio internacional ficam explícitos os requisitos que dão ao demandante

poder sobre o ofertante, pois os requisitos de qualidade, de saúde animal, rastreamento da

produção etc., requisitos religiosos138 e a política comercial (com a imposição de cotas e

tarifas) são grandes determinantes da quantidade, dos preços e das regiões que conseguem

exportar em determinado momento139. Isso é particularmente importante para grandes

exportadores (o caso da JBS), dado que uma proibição ou limitação à importação de suas

carnes leva à execução de uma parte da produção no mercado interno, derrubando os preços.

136 Segundo dados compilados do USDA, a parcela exportada (exportações/produção total) de carnes é pequena, mas crescente: sai de 7,5% em 2000 para 16,4% em 2012 para carnes bovinas; de 4,2% em 2000 para 6,9% em 2012 para carnes de porco; e de 9,7% em 2000 para 12,1% em 2012 para carnes de aves. 137 Como o comércio de carnes ainda é muito local ou regional e pouco internacional, em geral apenas grandes produtores possuem excedentes exportáveis. 138 Por exemplo: a exportação para país predominantemente muçulmanos exige uma preparação especial em várias fases do processo – o abate Halal. Somente com o certificado Halal é possível vender para estes mercados (onde o Brasil tem crescido nos últimos anos). 139 OCDE/FAO (2011: pp. 137-141).

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99

Tabela 17. Principais Exportadores e Importadores de carne bovina

Exportadores 2000 2006 2012 Importadores 2000 2006 2012 Brasil 8,3% 29,3% 18,7% Rússia 9,3% 17,6% 15,4% Índia 6,2% 9,6% 17,3% EUA 26,8% 26,2% 15,2% Austrália 22,6% 20,1% 17,3% Japão 20,7% 12,7% 11,1% EUA 18,9% 7,3% 13,7% Hong Kong 0,0% 1,8% 3,6% Nova Zelândia 8,5% 7,5% 6,3% China 0,0% 0,0% 1,5% Ururguai 4,0% 6,5% 4,4% Coreia do Sul 6,3% 5,6% 5,6% Canadá 8,8% 6,7% 4,1% União europeia 8,8% 13,4% 5,3% Paraguai 0,0% 0,0% 3,1% Canadá 5,1% 3,4% 4,5% União Europeia 10,9% 3,0% 3,6% México 8,2% 7,2% 3,2% Argentina 6,0% 7,8% 2,0% Egito 4,6% 5,5% 3,8% México 0,0% 0,5% 2,5% Venezuela 0,0% 0,0% 3,3% Subtotal 94,3% 98,3% 92,0% Subtotal 89,9% 93,4% 72,6%

Fonte: USDA (elaboração própria)

Segundo, há uma grande divisão entre dois tipos de mercados: os fidelizados por

requisitos de saúde animal, que importam de países com histórico livre de doenças, em

particular a febre aftosa, e os que compram de produtores onde há recorrência desta doença140.

Essa segmentação surge por barreiras impostas pelos compradores, geralmente países

desenvolvidos com critérios mais rigorosos para alimentação (Europa, Japão, Coreia do Sul).

Disto decorre uma dificuldade de alguns produtores, dentre eles o Brasil, de conseguir atingir

o mercado brasileiro. O Brasil tem como principais destinos a Rússia, países do chamado

“MENA” (Middle East, North Africa, Oriente Médio e Norte da África), alguns países da

Europa e América do Sul141. Como veremos, as aquisições da JBS nos EUA e na Austrália

abrem as portas da companhia para os mercados mais valorizados.

140 Cf. OCDE/FAO (2009: p. 168). 141 Cf. ABIEC (2013).

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100

Figura 1. Bovinos - Fluxos de Comércio, inclusive vivos (2011-2012)

Fonte: GIRA Consultancy and Research (2012)

É neste ambiente de mercado que despontou o grupo JBS em 2007. Originário de

uma empresa familiar no ramo de abate e carne industrializada142 que tinha como antigo nome

“Friboi” (que hoje ainda é uma marca da empresa), a JBS é um frigorífico especializado em

carne bovina in natura, com operações com outros tipos de carne. Embora fosse já uma

grande empresa brasileira nos anos 2000, a JBS só adquiriu este nome e ganhou destaque no

Brasil e no Mundo em 2007, após iniciar um conjunto de aquisições de empresas estrangeiras

do mesmo ramo, tornando-se em alguns anos a maior empresa de proteína animal do mundo.

142 Para mais detalhes do Histórico, ver: Lethbridge e Juliboni (2009) e Gruley e Kassaj (2013).

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Gráfico 12. JBS - Receitas líquidas, Resultados e Lucro/Prejuízo (em R$ bilhões)

(Eixo da direita para Receita Líquida)

Fonte: JBS - Relatórios Anuais (Elaboração própria)

Na realidade, a estratégia de aquisições e internacionalização da JBS se iniciou

pouco antes, ainda nos anos 1990. Nesta década, a então Friboi cresceu adquirindo plantas de

abate de empresas em dificuldades e mesmo de frigoríficos estrangeiros que saíam do país

devido à sonegação fiscal dos concorrentes nacionais143. Também foi aí que a empresa iniciou

o processo de exportações, em um cenário de dificuldades para o mercado de carnes, sob

competição da carne de frango e problemas operacionais do setor144. Mas o decisivo foi o

conjunto de aquisições iniciado ainda com um pequeno passo, a Swift Armour da Argentina,

em 2005, por US$ 210 mi. Na sequência, vieram, para citar as mais importantes: a Swift

Foods Co. dos EUA, por US$ 1,5 bilhões, em 2007; aquisição de 50% da italiana Inalca, por

US$ 331 milhões, do Tasman Group da Austrália, por US$ 150 milhões e do Smithfield Beef

dos EUA por US$ 565 milhões em 2008; e a aquisição da Pilgrim’s Pride dos EUA por US$

800 milhões em 2009145. Também ocorreu a fusão com o grupo brasileiro concorrente, Bertin,

aquisição feita em troca de controle acionário da JBS. O conjunto de aquisições não apenas

levou a JBS a outros países como a outros tipos de carnes, passando a produzir suínos, ovinos

e aves.

143 Cf. Salomão, Ribeiro e Todeschini (2009). 144 Cf. Zucchi e Caixeta-Filho (2010). 145 Cf. Macedo e Lima (2012).

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Tabela 18. JBS – Capacidade de abate diário por segmento e região (%)

Bovinos 2007 2008 2009 2010 2011 2012 Total 51.400 65.700 90.290 86.000 87.100 83.991 Brasil ou JBS Mercosul 18.900 ND ND 53.000 42.550 Argentina 6.700 ND ND ND 1.730 Paraguai - ND ND ND 521 Uruguai - ND ND ND 900 EUA ou JBS EUA 28.600 ND ND 34.100 26.025 Austrália 8.500 ND ND ND 7.765 Canadá - ND ND ND 4.500 Outros 3.000 ND ND ND - Aves 2007 2008 2009 2010 2011 2012 Total 0 0 7.600.000 7.600.000 7.200.000 8.950.000 Brasil - - - - 1.450.000 JBS USA (EUA, Mex. Porto Rico) - 7.600.000 ND 7.200.000 7.500.000 Suínos 2007 2008 2009 2010 2011 2012 Total 47.900 47.900 48.500 48.500 50.100 51.300 JBS USA (EUA) 47.900 47.900 48.500 ND 50.100 51.300 Ovinos 2007 2008 2009 2010 2011 2012 Total 0 20.500 27.500 27.500 28.300 24.900 EUA 4.000 ND ND ND 2.800 Austrália 16.500 ND ND ND 22.100 Couros (peças) 2007 2008 2009 2010 2011 2012 Total ND ND 55.600 ND ND 73.800 Brasil 55.600 71.600 China - - - 2200

Fonte: JBS - Relatórios Anuais (Elaboração própria)

Embora o grupo JBS e boa parte da cobertura jornalística e dos estudos

acadêmicos enfatizem bastante o que seria um diferencial gerencial146 da JBS que permitiu

adquirir e recuperar várias unidades deficitárias, este não foi o decisivo no crescimento da

JBS. O fato básico que permitiu tamanho salto foi um significativo financiamento estatal

através do BNDES. Não apenas por empréstimos, mas principalmente através da participação

acionária. Desde 2007, quando a Friboi se tornou JBS S.A. e abriu o capital na Bovespa, o

146 A JBS carrega consigo uma curiosa característica de um grupo de gestão ainda familiar: a simplificação dos processos e o conhecimento operacional do negócio. Como se trata de um mercado de grande competitividade e baixas margens, onde o processo de criação e alimentação dos animais e os processos de embalagem e distribuição não possuem grande diferenciação, o processo de abate e corte é um dos diferenciais (FAO, 2009; SCHNEPF, 2013; LEAHY, 2013). A presença quase folclórica dos filhos do fundador no comando direto da companhia – e seu “modelo” de gestão “Frog”, ou “From Goiás” – é o que, aparentemente, viabilizou sucesso na empreitada de internacionalização e recuperação de gigantes adquiridas, como a Swift e a Pilgrim’s Pride nos EUA, como foi coberto pela imprensa e academia internacional: estudo da Harvard Business School/HBS (BELL & ROSS, 2008) e reportagens da Businessweek (GRULEY & KASSAJ, 2013) e do Financial Times (LEAHY, 2013), além do The Washington Post (FORERO, 2011); na mesma linha, a reportagem da EXAME (LETHBRIDGE & JULIBONI, 2009) e da Época Negócios (Salomão et alli, 2009).

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103

BNDESPar é o maior acionista minoritário declarado nos relatórios. Neste período, o BNDES

fez aportes significativos em paralelo a todas as aquisições significativas mencionadas, como

a capitalização de R$ 1.115 milhões em 2007 e a capitalização dos créditos das debêntures da

JBS no valor de R$ 3.477 milhões.

Tabela 19. JBS - Composição do Controle Acionário

Acionistas 2007 2008 2009 2010 2011 2012 J&F Participações S.A. 55,4% 44,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% FB Participações S.A. 0,0% 0,0% 59,1% 54,5% 43,2% 44,0% Banco Original (J&F) 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 2,5% 3,3% Administradores 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% ZMF Fundo de Invests. Parts. 8,2% 6,1% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% Ações em Tesouraria 0,0% 2,4% 1,9% 2,9% 3,2% 0,0% Ações em circulação (total) 36,4% 47,5% 39,0% 42,6% 51,1% 0,0% BNDES Participações S/A 12,9% 13,0% 18,5% 17,0% 30,4% 19,9% FRDT-FP/PROT-FIP 0,0% 14,3% 8,7% 8,0% 6,7% 0,0% Caixa Econômica Federal 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 0,0% 10,1% Minoritários 23,5% 20,2% 11,9% 17,5% 14,0% 22,8%

TOTAL DE AÇÕES (mi) 1.077 1.438 2.367 2.567 3.061 2.944 Capital Social (R$ mi) 1.945,6 4.495,6 16.483,5 18.083,5 21.561,1 21.506,2 Parcela BNDESPar* (R$ mi) 251,9 584,2 3.043,3 3.078,7 6.557,3 4.269,8 (*) Avaliada em cima do percentual sobre o capital social e não sobre o valor de mercado

Fonte: JBS – Relatórios de Administração, diversos anos (elaboração própria).

No fundo, a construção do que ficou conhecido como “campeãs nacionais”,

grandes empresas brasileiras com atuação multinacionais, foi parte de um plano maior de

fortalecimento de setores onde o Brasil tem grande atuação. Esta política pode ser vista no

diagnóstico dos setores líderes147 da política industrial do segundo governo Lula, a Política de

Desenvolvimento Produtivo (PDP). Segundo o relatório final da PDP, havia o objetivo de

tornar o Brasil o maior exportador mundial de carnes e de torná-las o segmento mais

exportado do agronegócio brasileiro (mas não superior à mineração), ou seja, está vinculado

ao fortalecimento da balança comercial. Uma dos resultados conquistados segundo o relatório

foi a constituição de “players internacionais” (JBS, Marfrig e BRFoods) e que as metas

147 Os setores são: complexo aeronáutico, petróleo, gás e petroquímica, bioetanol, carnes, celulose e papel, siderurgia e mineração. Não à toa, em quase todos os casos há uma correlação com setores muito oligopolizados ou uma atenção especial para os grupos maiores. Para mencionar os de controle brasileiro, que compões a lista dos maiores, temos: Embraer, Petrobras, usinas como a Cosan, os frigoríficos JBS, Marfrig, Minerva, Bertin, Fibria, Suzano, siderúrgicas como Gerdau, Usiminas e CSN, além da Vale.

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104

futuras buscavam enfrentar questões sanitárias e de rastreamento – fundamentalmente

fortalecer a posição de exportador148.

O tamanho e os recordes da empresa não revelam, contudo, uma questão decisiva:

a posição do frigorífico na cadeia produtiva das carnes, em especial a bovina. A JBS atua

particularmente na Indústria de 1ª transformação (abate e corte em peças) e menos no

segmento de 2ª transformação (industrialização propriamente dita). Secundariamente opera

ainda nos segmentos de atacado e exportação149. Este segmento é conhecido pela tecnologia

tradicional, de uso generalizado e relativamente livre, isto é, não há muita diferenciação entre

produtores nacionais e estrangeiros. A questão reside no fato de que o frigorífico não atua

nem no setor que incorpora progresso técnico, a produção da matéria-prima (animais), nem no

setor que comanda a cadeia, o varejo e o “food-service”. No segmento de criação de animais,

além da disponibilidade de terras ou ração animal básica, há uma série de tecnologia que

incorporam boa parte do valor, mas que estão sob controle do capital internacional, como os

aditivos alimentares, a farmacêutica veterinária e o setor de melhoramento genético150. Na

outra ponta, estão os grandes varejistas (como redes de supermercados) ou varejistas em

alianças com frigoríficos, que são capazes de comandar a cadeia, ou liderar a “governança” da

cadeia, dirigindo a demanda (tipos e quantidades) e se apropriando de uma parcela maior do

valor final151. Como resultado, os frigoríficos acabam se apropriando de parcelas menores do

valor agregado ao longo da cadeia152, resultado que se expressa no cenário internacional e no

brasileiro153.

148 Cf. Brasil (2010). 149 Para o esquema completo da cadeia, consultar MAPA (2007). 150 Para o cenário geral, ver Martinelli et alli (2011). Para o segmento de aditivos alimentares, ver MDIC (2012). Para a farmacêutica, ver Capanema et alli (2007) e sobre vacinas, ver Fernandes et alli (2013). Sobre o melhoramento genético, ver Espíndola (2005). 151 Ver Gereffi e Lee (2009) e Lundstrom (2007). Para tendências do segmento, ver MAPA (2007: pp. 55-56). 152 Para dados de 2000 no Brasil, o estudo de Perez et alli (2002) estimou dados para duas empresas da participação no preço final da carne bovina (cortes tradicionais) em 22,4% e 26,1%, sendo que em ambos os casos a maior parte da agregação (52,6% e 64,1%) ficavam com o pecuarista. No estudo do IPARDES e GEPAI (2002: p. 168) para o setor de carnes no Paraná, foram apurados os seguintes valores para o valor adicionado pela indústria: em 1995, no setor de carne suína era de 8,01%, no de bovina 7,24% e no de aves, 28,81%; em 2000, no de suína era de 14,43%, no de bovina, 6,45%, e no de aves, 48,65%. Já o estudo de Viana e Silveira (2007: p. 1126) chega ao resultado de 7,61% da participação da indústria no setor de carnes do Rio Grande do Sul com venda em Santa Maria em 2005. Os dados o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA/Economic Research Service) mostram valores compatíveis, em torno de 8.0%. 153 Cf. Sehnem et alli (2012)

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105

Gráfico 13. JBS – Margens Operacional, EBITDA e Líquida (%)

Fonte: JBS - Relatórios Anuais (Elaboração própria)

Do ponto de vista estrito da empresa, a situação não é simples. Ainda que ela

tenha contornado o problema do acesso aos mercados consumidores dinâmicos, com a

aquisição de operações nos EUA e Austrália, e ainda que esteja posicionada em um país com

consumo crescente de carnes (e carnes bovinas), sua posição na cadeia é desfavorável. Além

disso, a JBS passa por dificuldades de conciliar o crescimento rápido, a aquisição de unidades

deficitárias, as margens reduzidas e o custos financeiros da sua dívida, a tal ponto de passar

dois anos sem distribuir dividendos aos acionistas (dentre eles o BNDES)154. Seu

endividamento é considerado alto pelos próprios critérios expressos nos relatórios anuais,

fortemente vinculados ao processo de aquisição.

154 O pagamento de dividendos como percentual do lucro líquido foi 18,5% em 2004, 37,7% em 2005, 7,1% em 2006, -10,1% em 2007 (com prejuízo líquido), 54,6% em 2008, 27,9% em 2009, 0,0% em 2010e 2011 e 22,4% em 2012. Além de não recuperar o patamar, a margem líquida também diminui, minorando os efeitos das altas receitas.

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106

Gráfico 14. JBS – Dívida Bruta (R$ mi) e razão Dívidas Bruta e Líquida/EBITDA (%)

Fonte: JBS, Relatórios Anuais, diversos anos (elaboração própria)

Desta forma, a transnacionalização da JBS, que reduz seus vínculos com o

mercado interno, ainda que ele continue a ser importante mercado consumidor, reforça

características regressivas do agronegócio: o uso intensivo de recursos naturais e da terra; o

custo do suporte estatal ao setor; a busca por atender a mercados externos – e a

correspondente vulnerabilidade aos choques de demanda típicos do setor primário; a busca

pelo diferencial em atividades de gestão e não na incorporação de progresso técnico ou

criação de novas mercados; a constituição da empresa em mais uma peça das estratégias

globais do capital que podem desestruturar economias nacionais com mudanças de planos

produtivos e financeiros, exacerbando as tendências à reversão neocolonial.

5. Discussão

O estudo dos quatro grupos controlados por brasileiros realizado nessa pesquisa

pretende contribuir para o entendimento da natureza da burguesia brasileira, fornecendo

elementos empíricos para elucidar as estratégias de acumulação e o caráter dos nexos destas

frações de capital com o espaço econômico nacional, a economia internacional, o grande

capital internacional e o Estado brasileiro – elementos essenciais para a compreensão do

padrão de exploração do trabalho que fundamenta em última instância o processo de

valorização do capital desses grupos. O trabalho é, evidentemente, apenas o início de uma

investigação e certamente não autoriza conclusões definitivas. No entanto, pela posição de

liderança desses grupos em seus respectivos setores e pela relevância dos setores na economia

brasileira, acreditamos que o conhecimento da sua forma de atuação constitui informação

Page 112: Monte-cardoso_artur-2014-Burguesia Brasileira Nos Anos 2000 - Versao Final Para Banca

107

importante para a identificação de padrões e tendências de comportamento que são

fundamentais para uma melhor caracterização sobre as potencialidades e debilidades da

burguesia brasileira. Nesta conclusão, arriscaremos uma síntese mais geral sobre os resultados

da investigação, ressaltando as características comuns e as particularidades dos quatro grupos.

Do ponto de vista tecnológico, a base produtiva dos grupos estudados é muito

simples e com uso de tecnologias acessíveis no mercado. Mesmo quando exigem certa

imobilização de capital (siderúrgicas), são segmentos de atividade em que conta muito pouco

a inovação disruptiva e mais as inovações incrementais, quando possíveis. São setores muito

intensivos em recursos naturais, energia elétrica e força de trabalho barata. De uma maneira

geral, os grupos revelaram baixa capacidade de incorporação de progresso técnico e, em

consequência, alta dependência tecnológica e financeira em relação ao grande capital

internacional. O resultado, como veremos, é o condicionamento destes grupos a se apoiarem

em outros fatores para competir que não a elevação da produtividade pela técnica.

De maneira geral, os segmentos de atividade, e as empresas estudadas dentro

deles, têm sua dinâmica ditada pelo crescimento da demanda final (alimentos e combustível

ou gás natural para consumidor final, minérios para siderurgia, aço para construção ou

indústria), de tal forma que o ritmo de expansão e os preços são em geral pouco influenciados

pelas empresas produtoras.

Do ponto de vista da força relativa destes grupos dentro das cadeias produtivas,

pode-se enxergar uma posição em geral subordinada e que corresponde a parcelas menores

sobre o valor agregado. Este padrão é mais acentuado nos ramos do agronegócio, em que

pesam os insumos e, principalmente, as empresas que controlam a intermediação - tradings,

distribuidoras de combustíveis, redes de supermercados etc. É relevante também a

dependência de critérios de compras de países importadores no setor de carnes ou as pressões

de custos à medida em que se intensifica o progresso técnico na criação animal. No caso da

Vale, a posição é um pouco diferente por estar no início da cadeia com os produtos minerais

valorizados. Na siderurgia, a Gerdau possui controle de canais comerciais estratégicos: a

compra de sucata de aço e a distribuição de aço, apesar de não controlar o patamar dos preços.

Os mercados internos e externos são importantes para todas as quatro empresas,

mas é possível notar um claro viés para o aproveitamento de oportunidades de exportação. Os

mercados externos têm maior peso relativo para a Vale, em que o dinamismo do produto –

quantidades e preços – é todo explicado pela demanda asiática, enquanto que as vendas físicas

Page 113: Monte-cardoso_artur-2014-Burguesia Brasileira Nos Anos 2000 - Versao Final Para Banca

108

no mercado brasileiro estagnaram e participação relativa do país nestas vendas caíram.

Dinâmica semelhante se estabelece para a Cosan no mercado de açúcar ou nas operações de

transporte para exportações (Rumo Logística), bem como para a JBS, que tem cerca de

metade das receitas em exportações nas operações do Brasil e que também atinge mercados

externos a partir de operações estrangeiras. Os mercados regionais das Américas são

relevantes para a Gerdau, em particular a partir das operações brasileiras, estruturalmente

dependente das vendas externas dado a diferença entre a produção e a absorção interna.

O mercado interno é relevante para estes grupos sob duas formas. A primeira é a

existência de um mercado cativo em que os grupos tenham algum controle. A Gerdau

participa de um duopólio nos aços longos, possui vantagens comerciais (compra do insumo e

venda do produto) e influência política para conquistar a dinamização da demanda

(construção e automóveis). A JBS detém fatia importante em um mercado de alto consumo de

carnes, ainda que o crescimento dependa da continuidade do crescimento econômico e da

renda. A Cosan produz etanol que possui uma demanda atrelada ao aumento da frota de

veículos, mesmo quando o combustível não é competitivo (vai misturado à gasolina). A

segunda forma é a intermediação comercial. No caso da Cosan, é um negócio muito

importante, que ocorre tanto na distribuição de combustíveis como nos serviços de

distribuição de gás natural e na revenda de lubrificantes. Por fim, vale mencionar as operações

no mercado imobiliário da Cosan, onde o especulativismo aparece na sua forma pura.

A estratégia de expansão dos quatro grupos possui um denominador comum: as

aquisições de operações já existentes. É o que explica, inclusive, a possibilidade do

crescimento de empresas como a JBS, a Gerdau ou a Cosan. Este padrão se concretiza em

experiências que vão desde a Gerdau e JBS que usam a expansão para conquista de market-

share – nas aquisições nos EUA, América Latina e outros –, passam pelo aproveitamento do

momento bom de um ciclo de alta de preços, como ocorreu com a Vale – aquisição de

operações de níquel, mas também de fertilizantes e carvão – e mesmo com a Cosan, mas que

chega ao máximo da operação de especulação na criação da joint-venture Raízen da Cosan

com a Shell, onde ao capital transnacional é oferecida toda sorte de benefícios para

concretizar a venda – o que é na prática. Em um polo, compra-se para “reformar” (para usar

as palavras do proprietário da JBS), em outro, compra-se para vender.

O financiamento das empresas, condição fundamental para a execução do intenso

e acelerado processo de aquisições das empresas, teve como base duas fontes: o capital

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internacional e o Estado. O capital internacional, até onde a pesquisa conseguiu chegar, é a

principal fonte de financiamento dos grupos estudados. Não à toa, os capitais estrangeiros

buscaram antes e mesmo depois da crise ativos com diferenciais de retorno, o que foi

enxergado nas ações e títulos de dívidas de empresas ligadas aos setores de commodities

agropecuárias, minerais e industriais. Apesar de tais empresas terem receitas em dólar, o

desequilíbrio patrimonial revelado no momento mais agudo da crise demonstra quão

vulneráveis estão estas empresas ao estrangulamento cambial promovido com a fuga de

capitais. Isto é, as empresas brasileiras são ao mesmo tempo beneficiadas pelo movimento de

entrada no ciclo especulativo como ficam fragilizadas no movimento de saída, da mesma

forma que a economia brasileira em conjunto. O outro pilar de financiamento, o Estado, teve

participação em todos os grupos com importâncias distintas, seja como acionista (BNDESPar

na Vale, Gerdau e JBS), seja como banco para todos os grupos em distintos momentos,

chegando ao limite de representar o fator decisivo responsável pela constituição da JBS.

A expansão destes grupos ainda tem como pressuposto e resultado o controle e

aprofundamento do uso de fatores que dão vantagens absolutas: a exploração do trabalho

barato e de recursos naturais (solo, subsolo, energia). Seus negócios supõem, portanto, a

presença de uma ampla abundância de força de trabalho barata e a depredação do meio

ambiente.

O Estado, diga-se de passagem, é mobilizado não apenas, como já vimos, no

financiamento, mas também através da criação de uma série de condições que viabilizam os

negócios. A política de setores líderes e “campeãs nacionais” surge do vínculo estratégico dos

setores, e das empresas dentro dos setores, para o Estado, expresso como a possibilidade e a

necessidade de expansão de exportações e consolidação do grande capital no país. Para tanto,

são mobilizadas infraestrutura, a diplomacia para abrir oportunidades de exportações e

investimentos, subsídios e incentivos diversos para o aprofundamento de tais negócios. Cabe

lembrar ainda a contribuição dada no momento anterior ao período aqui estudado, quando as

privatizações foram responsáveis pela liquidação do patrimônio público em favorecimento

destes negócios de grandes capitalistas brasileiros e estrangeiros, processo que aparece nesta

pesquisa desde algumas unidades produtivas, no caso da Gerdau, até a empresa inteira e tudo

o que ela carregou junto, no caso da Vale.

O caráter tributário e associado destes ramos de atividade, ainda que diferenciado

entre eles, aparece no surgimento e no aproveitamento das oportunidades de negócios abertas

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por condições externas ao país – mudanças na divisão internacional do trabalho, especulação

comercial e financeira do capital financeiro internacional. Os negócios são fonte ao mesmo

tempo de oportunidades de ganho na alta do ciclo, como de vulnerabilidade e derrocada na

baixa do ciclo. Elas surgem nas associações diretas da Cosan com a Shell e a ExxonMobil, na

dependência do comportamento de mercados externos para a Vale, no crescimento da

siderurgia chinesa e de outros países para a Gerdau ou na importância crescente de mercados

consumidores com poder de barganha para a JBS. Nos quatro casos assistimos a momentos de

ascensão e queda dentro mesmo dos anos 2000, revelando a atualidade do alerta de Caio

Prado Jr. sobre a importância – hoje crescente – do ciclo de acumulação internacional para a

criação de negócios de empresas brasileiras, bem como sua vulnerabilidade às crises de

reversão exatamente pela natureza do processo cíclico de acumulação e pela posição

periférica do Brasil perante a ele.

Os grupos pesquisados nesta dissertação permitem materializar de que forma uma

parte da burguesia brasileira se insere no processo da globalização, uma vez decidida pela

integração acelerada em um contexto de nova lógica transnacional e mudança na divisão

internacional do trabalho. A esta burguesia cabe o comando de setores especializados em

atividades primárias ou de baixa intensidade tecnológica, considerada a defasagem gritante

entra sua base técnica e a das grandes corporações e dos países imperialistas. Desta forma, o

uso crescente das condições socioeconômicas internas, que são as variáveis que dão alguma

competitividade à burguesia e que podem ser manejados com relativa ampla liberdade, passa

a ser o pilar da viabilidade econômica de muitos dos negócios aqui analisados. Dentre estas

condições não estão somente aquelas que dizem respeito às vantagens competitivas estáticas,

certamente muito relevantes, mas também a disponibilidade de mercados cativos, um

diferencial importante e ainda não de todo corroído pela competição internacional, pelo

menos não para todos os setores ou empresas da burguesia brasileira. Por outro lado, o que

interessa é que tais setores e grupos empresariais são crescentemente polarizados por

condições externas ao Estado e à economia brasileira e estão mais vinculados com as

estratégias globais de grandes empresas ou países na disputa pelo controle tecnológico, de

mercados e de recursos estratégicos, além da disputa pela capacidade de extrair os melhores e

maiores ganhos na especulação e no rentismo mundial. É precisamente dentro deste contexto

geral que operam, no fundo e muitas vezes na mais explícita realidade dos fatos, os grandes

capitais aqui estudados: no aproveitamento de oportunidades possíveis abertas pelo grande

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capital estrangeiro no comércio internacional, na especulação com ativos financeiros e com o

patrimônio estatal e dos próprios grupos, no caso extremo. É este padrão de participação na

totalidade do sistema que permite enquadrar a burguesia estudada nesta pesquisa como aquilo

que foi chamado anteriormente de “burguesia de negócios”. Ou seja, é este o caráter da

burguesia dependente brasileira correspondente ao período histórico de processo de reversão

neocolonial.

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Considerações finais

Este trabalho surgiu da preocupação com o entendimento do movimento concreto

de transformação da burguesia brasileira no neste novo século e a sua relação com a economia

brasileira. Diante da imensa quantidade de leituras que postulavam um suposto

neodesenvolvimentismo no Brasil, surgidas no final da década de 2000, uma grande

inquietação surgiu: se há um novo desenvolvimentismo, onde está a burguesia que o

protagoniza? Para além da muita propaganda e apologia que se fez e se faz na mídia, no

Estado e na academia acerca das “campeãs nacionais” ou das “multinacionais brasileiras”,

muito pouco foi exposto além da superfície dos dados sobre elas. Ao mesmo tempo, como

seria possível pensar em desenvolvimento se o Brasil era rapidamente reposicionado na

divisão internacional do trabalho, processo explícito através da mudança na composição da

balança comercial e da desestruturação das cadeias produtivas que anunciavam o

aprofundamento da desindustrialização? Com pensar que uma nova fase da Histporia

brasileira se abria se os problemas históricos da desigualdade, da exploração, da autocracia e

da submissão aos desígnios do grande capital internacional prosseguiam firmes a despeito da

algumas mudanças quantitativas? Seguindo os ensinamentos do maior economista brasileiro,

Celso Furtado, compreendia não ser possível pensar em desenvolvimento sem

industrialização, integração nacional e um sistema econômico voltado para o mercado interno.

Diante dessa contradição e da motivação de explicá-la, surgiu o projeto de estudo

dos grandes grupos econômicos como uma forma de iniciar um longo caminho de pesquisa

para dar contribuições ao debate, sem a pretensão de esgotá-lo. Tratava-se de entrar no campo

dos atores do desenvolvimento, de compreender seus limites e potencialidades e o sentido da

sua ação histórica. Nenhuma classe em estudo poderia condensar tantas relações e ajudar a

explicar tanto sobre o sentido da História brasileira quanto a nossa burguesia.

A conclusão a que chegamos, a partir de uma pequena, porém representativa,

seleção de grupos econômicos, joga luz e novas hipóteses para trabalhos futuros. Se é verdade

que temos uma “burguesia dos negócios” no Brasil e que é possível definir desta maneira a

fração do capital estudada nesta pesquisa, ainda existe um grande caminho a ser trilhado,

tanto no aprofundamento desta caracterização como na expansão dos grupos e setores a serem

compreendidos.

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Duas indicações de estudos futuros saem desta pesquisa. A primeira é a busca por

mais setores representativos de grandes negócios, sejam eles claramente identificados com o

padrão encontrado nessas empresas, como outros setores do agronegócio ou de commodities

industriais e indústria básica, ou mesmo, por outro caminho, as empreiteiras, sejam eles

considerados a ponta de lança da tecnologia brasileira, como os grupos do setor aeronáutico.

A segunda indicação é dos caminhos a se percorrer na investigação dos grupos brasileiros.

Fica claro que a simples comparação de um grupo brasileiro com seus congêneres de outros

países não é capaz de revelar a natureza de seus nexos com a economia brasileira e a mundial,

sua estratégia de acumulação, sua maneira de se relacionar com o trabalho e a natureza. Uma

das pistas encontradas – e trilhada de forma apenas incipiente – nesta dissertação foi a busca

pela posição relativa das empresas brasileiras nas cadeias de valor de seus setores. É esta

força relativa que é capaz de explicar como grandes empresas podem ser apenas a reposição

de uma burguesia dependente em outros níveis.

O senhor de engenho brasileiro do século XVI ou XVII participava de uma das

cadeias produtivas mais dinâmicas, vendia para os mais importantes mercados consumidores,

era financiado pelas maiores casas financeiras e comerciais europeias, operava uma das

tecnologias mais modernas de sua época e estava no centro das rotas comerciais mais

promissoras. Mesmo assim, sua margem de manobra e sua participação no excedente

econômico eram mínimas e tudo o que controlava estava da porteira para dentro: suas terras,

que soube utilizar até a exaustão, e seus escravos, que soube explorar até a morte. Não seria

um retrato de nossa moderna burguesia dos negócios?

Este trabalho buscou dar sua pequena contribuição – e provocação – para uma

pesquisa e um debate mais amplos, que ajudem responder se um futuro diferente para o nosso

país pode estar nas mãos da burguesia brasileira ou se será preciso colocá-lo em outras mãos.

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