monografia - a revolução francesa e os direitos humanos
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
FACULDADE DE DIREITO
COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA
RAONI MEDEIROS GARCIA
A REVOLUÇÃO FRANCESA E OS DIREITOS HUMANOS: UMA
PERSPECTIVA CRÍTICA
2014
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
FACULDADE DE DIREITO
COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA
RAONI MEDEIROS GARCIA
A REVOLUÇÃO FRANCESA E OS DIREITOS HUMANOS: UMA
PERSPECTIVA CRÍTICA
Trabalho de conclusão de curso apresentado
à Coordenação de Monografia do Curso de
Direito da Universidade Federal de Mato
Grosso, como requisito para aprovação na
disciplina Orientação de Monografia.
Orientadora: Prof. Msc. Vera Lúcia Marques Leite
CUIABÁ-MT
MARÇO/2014
A meus pais
AGRADECIMENTOS
A minha família, por me dar suporte em
todos os momentos.
A minha orientadora, pela compreensão
e absoluta liberdade com que me
permitiu desenvolver este trabalho e
enfrentar todos os obstáculos para sua
conclusão.
Aos colegas de graduação, pelo
companheirismo e fraternidade. Em
especial, Lucas Lelis, pela amizade e
pelo apoio fundamental ao longo dos
anos de faculdade.
A todos aqueles que, de alguma maneira,
contribuíram para a finalização desta
etapa.
5
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................... 6
1 – ORIGENS FILOSÓFICAS .................................................................................................. 8
1.1 O ILUMINISMO ............................................................................................................... 8
1.2 O DIREITO NATURAL .................................................................................................. 13
1.2.1 THOMAS HOBBES .................................................................................................. 17
1.2.2 JOHN LOCK .............................................................................................................. 19
2 – A REVOLUÇÃO FRANCESA E A DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E
DO CIDADÃO (1789) ............................................................................................................... 26
2.1 A REVOLUÇÃO FRANCESA NA HISTÓRIA DO MUNDO ...................................... 26
2.2 A DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO (1789) ............. 29
2.3 A DECLARAÇÃO FRANCESA E AS DECLARAÇÕES NORTE-AMERICANAS ... 33
2.4 A UNIVERSALIDADE DA DECLARAÇÃO DE 1789..................................................37
3 – AS CONSEQUÊNCIAS DA DECLARAÇÃO DE 1789 .................................................. 42
3.1AS MINORIAS RELIGIOSAS......................................................................................... 43
3.2 OS NEGROS E A ESCRAVIDÃO .................................................................................. 44
3.3 OS DIREITOS DAS MULHERES .................................................................................. 56
4 - CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS E A HERANÇA REVOLUCIONÁRIA........65
4.1 AS REFLEXÕES DE EDMUND BURKE......................................................................65
4.2 AS CRÍTICAS DE KARL MARX...................................................................................72
4.3 DIREITOS HUMANOS E UTOPIA................................................................................78
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 85
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................... 87
6
INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende analisar as relações entre a Revolução Francesa e
os direitos humanos, abordadas sob um viés crítico, discutindo os interesses e
contradições que se ocultam por trás dos direitos humanos das primeiras declarações de
direitos, ao mesmo tempo revelando seu potencial libertador, fornecendo assim
subsídios teóricos para uma melhor compreensão desses direitos hoje.
Para atingir o objetivo proposto, será utilizado o método da pesquisa
bibliográfica. Além disso, será feita uma abordagem interdisciplinar, valendo-se do
conhecimento produzido em diversas disciplinas, como História, História do Direito,
Direitos Humanos, Filosofia, Filosofia do Direito, etc. Contudo, não se trata de uma
interdisciplinaridade meramente formal, mas que tem presente a crítica do conteúdo
problematizado, servindo para enriquecer as questões colocadas ao longo do trabalho.
Para melhor organização do texto, o trabalho será desenvolvido em quatro
capítulos. O primeiro capítulo tratará sobre as origens filosóficas da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão (1789), com vistas a compreender os direitos nela
proclamados. Assim, analisar-se-á a filosofia do Iluminismo e a evolução da doutrina do
Direito Natural até o Jusnaturalismo moderno, no qual serão aprofundadas as teorias de
Thomas Hobbes e John Locke, pela sua importância na compreensão dos direitos
naturais.
O segundo capítulo, primeiramente, destacará o significado e a importância da
Revolução Francesa na História Mundial. Em seguida, será analisada a Declaração de
1789, sua importância, os direitos nela proclamados, sua relação com as declarações de
direitos norte-americanas e por fim o seu caráter universal.
O terceiro capítulo, por sua vez, terá como objetivo retraçar as consequências
imediatas da Declaração, enfocando três grupos sociais: as minorias religiosas, os
negros e as mulheres. Com isso, buscar-se-á evidenciar, por um lado, os enormes
avanços na conquista por direitos de cidadania na França; por outro, os paradoxos
surgidos com a proclamação dos direitos humanos, bem como os limites da Revolução
Francesa, a despeito de sua vocação universalista.
7
Por fim, o quarto capítulo abordará, primeiramente, as duas principais críticas
aos direitos humanos proclamados pela Revolução Francesa e que repercutem até hoje:
as críticas de Edmund Burke e Karl Marx. Por último, será apontado o caráter utópico e
ainda atual dos lemas da Revolução Francesa e dos direitos humanos nela proclamados,
a partir da perspectiva de Ernst Bloch.
8
CAPÍTULO I – ORIGENS FILOSÓFICAS
1.1. O ILUMINISMO
O século XVIII, a época da Revolução Francesa, é conhecido como o “Século
das Luzes”, a era do “Iluminismo”. Esse vasto movimento de ideias ocorrido na Europa
– especialmente na França, na Inglaterra e na Alemanha – exerceu uma influência
considerável sobre os grandes acontecimentos políticos ocorridos no continente europeu
e nas colônias americanas.
Quando falamos em Iluminismo não estamos nos referindo a um movimento
homogêneo, uma doutrina sistemática, uma escola. Além da grande variedade de pontos
de vista doutrinários, em cada país, o Iluminismo tem particularidades próprias,
variando quanto à periodização, a problemáticas, a relação entre estratos sociais, etc.
Trata-se de um movimento eclético. O que caracteriza as Luzes é uma nova
mentalidade, um “espírito comum”, uma profunda crença na razão humana universal e
nos seus poderes.
Segundo Diderot, no verbete ecletismo, da Enciclopédia:
O ecletismo é uma filosofia que, calcando aos pés os preconceitos, a
tradição, a velharia, o consenso, universal, a autoridade, em suma,
tudo o que subjuga o espírito, ousa pensar por si mesma, remontar aos
princípios gerais mais claros, nada admitindo que não tenha passado
pelo filtro dos sentidos e da razão.1
“Pensar por si mesmo”, tal é a palavra de ordem. “Sapere aude!” (“ousa
saber!”), afirma Kant no ensaio “O que é o Esclarecimento?”, publicado em 1784. Para
1 Apud SOBOUL, Albert. História da revolução francesa. Tradução de Hélio Pólvora. 3. ed. Rio de
Janeiro: Zahar, 1981, p. 54.
9
Kant, o Iluminismo (Aufklärung) significava autonomia intelectual, “a saída do homem
de sua menoridade pela qual ele próprio é responsável”.2
Para os iluministas, não há nenhuma autoridade acima da razão. Contra as
superstições e os preconceitos, eles impunham as armas da crítica racionalista. Tudo
deve ser submetido ao espírito crítico. Os filósofos das Luzes “opuseram em todos os
domínios o princípio da razão ao da autoridade e da tradição, quer se trate de ciência,
crença, moral ou organização política e social”.3
O desenvolvimento das ciências naturais proporciona a segurança e a confiança
na razão. Essa confiança na ciência apresenta-se como característica do espírito
moderno, herdeiro do racionalismo de Descartes e do empirismo de Bacon.
A este respeito Cassirer irá afirmar: “O século XVIII está impregnado de fé na
unidade e imutabilidade da razão. A razão é uma e idêntica para todo o indivíduo
pensante, para toda a nação, toda a época, toda a cultura”.4
Princípio de toda verdade, autônoma por definição, a razão iluminista
se opõe a tudo que é irracional e se oculta sob as denominações vagas
de “autoridade”, “tradição” e “revelação”. Tampouco essa razão é
escrava dos dados empíricos, daquilo que chamamos de “fatos”, uma
vez que a verdade jamais é diretamente “dada” por qualquer tipo de
“evidência”. Para o pensamento iluminista, a razão é trabalho,
trabalho de intelecto, cujas ferramentas são a observação e a
experimentação. A razão é instrumento de mudança: o primeiro passo
é mudar o próprio modo de pensar.5
Neste sentido, Diderot declara que a Enciclopédia foi criada não para ser um
mero acervo de conhecimentos, mas “pour changer la façon commune de penser”
(“para mudar a maneira comum de pensar”).6
O principal centro das Luzes foi a França e sua capital, Paris, a grande metrópole
do século XVIII. Foi lá que foi publicada a monumental Enciclopédia ou Dicionário
2 KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: o que é o esclarecimento? Tradução de Luiz Paulo Rouanet.
Disponível em:<http://ensinarfilosofia.com.br/__pdfs/e_livors/47.pdf> Acesso em: 27 mar. 2014. 3 SOBOUL, ob. cit., p. 53.
4 CASSIRER, Ernst. A filosofia do iluminismo. Tradução de Álvaro Cabral. 3. ed. Campinas: Editora da
UNICAMP, 1997, p. 23. 5 FALCON, Francisco José Calanzas. Iluminismo. São Paulo: Ática, 1986, p. 36-37.
6 CASSIRER, ob. cit., p. 34.
10
Raciocinado das Ciências, das Artes e dos Ofícios. Tendo começado a ser publicada em
1751, organizada por Denis Diderot e o matemático D’Alembert, a Encyclopédie reuniu
estudos e comentários críticos, em todos os campos do conhecimento.
A crítica à religião e ao obscurantismo, a crença no progresso e na
razão, o otimismo com relação ao futuro, a liberdade de pensamento, a
preocupação com as técnicas, a importância dada à experimentação
como método científico, tudo isso unia os enciclopedistas.7
Vários pensadores ilustres – a elite do pensamento científico da França nessa
época – colaboraram na Enciclopédia: Voltaire, Montesquieu, Rousseau, Buffon,
Quesnay, Turgot, Holbach, Helvetius, Condillac, etc. Os enciclopedistas foram
contundentes contra o absolutismo. A liberdade é reivindicada em todos os domínios,
das liberdades individuais à liberdade econômica (“liberalismo”, laissez-faire).
A Encyclopédie, entrando em luta contra as instituições e as ideias
políticas, jurídicas e religiosas do regime feudal e absolutista, abriu
fogo contra todas as frentes das fortificações ideológicas da
feudalidade. Nela encontramos as principais ideias da burguesia do
século XVIII.8
O ideal revolucionário na França é preparado pelo clima que o Iluminismo
ajudou a criar, muito embora fosse inerente ao pensamento iluminista, ao exigir
mudanças radicais em todos os domínios, supor também que elas se fariam
racionalmente, sem violência, ou seja, por meio de reformas. Entretanto, não é menos
evidente para todos os enciclopedistas “que compete à razão assumir a direção do
movimento de renovação política e social, a ela cumpre empunhar o facho”.9
Nesse sentido, conclui Florenzano:
A crítica iluminista, como toda crítica verdadeira, era a um só tempo
crítica ao estado de coisas vigente e proposta alternativa a ele. Neste
sentido, a observação de que os filósofos iluministas foram uma das
causas da revolução é verdadeira na medida em que elaboraram, a
nível teórico, um projeto social. Mas deve se considerar que, embora o
7 MOTA, Carlos Guilherme. A revolução francesa. São Paulo: Ática, 1989, p. 48-49.
8 MANFRED, A. A grande revolução francesa. Tradução de Maria Aparecida de Camargo e Antonia da
Costa Simões. São Paulo: Cone, 1986, p. 46. 9 CASSIRER, ob. cit., 354.
11
Iluminismo enquanto tal fosse revolucionário, a maioria, senão todos,
os filósofos eram reformistas. Acreditavam que o Estado, através da
ação esclarecida do Príncipe, seria capaz de realizar as reformas
necessárias que o conduziriam a sociedade no caminho do progresso e
da razão. Ora, na França, a incapacidade da monarquia absolutista em
realizar as reformas que a burguesia exigia, cada vez com mais
determinação, foi fatal para a sua sobrevivência.10
Como veremos mais à frente, a Revolução Francesa levou às últimas
consequências alguns dos princípios iluministas e, acima de todos, a ideia de liberdade.
Entre os filósofos franceses do período, Jean-Jaquecs Rousseau certamente foi o
que exerceu maior influência entre os revolucionários.
Nas suas obras Discurso sobre as ciências e as artes e Discurso sobre a origem
e os fundamentos da desigualdade entre os homens, Rousseau atacava a “civilização”,
de um lado, e, de outro, a própria organização da sociedade atual. Ambas, para
Rousseau, degenerativas para o homem. No seu O Contrato Social, Rousseau
desenvolveu as grandes teorias sobre o Estado e o direito que influenciarão a Revolução
Francesa.
“Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de
cada associado de toda força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só
obedeça a si mesmo, permanecendo tão livre quanto antes”,11
eis o problema
fundamental a que o contrato social dá solução, segundo Rousseau.
“Se, afinal, – declara Rousseau – retira-se do pacto social aquilo que não
pertence à sua essência, veremos que ele se reduz aos seguintes termos: cada um põe em
comum sua pessoa e todo seu poder sob a suprema direção da vontade geral; e
enquanto corpo, recebe-se cada membro como parte indivisível do todo”.12
“O contratualismo rousseauniano pleiteia a solução racional do problema
político associando ao máximo de liberdade o máximo de poder”.13
10
FLORENZANO, Modesto. As revoluções burguesas. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 24-25. 11
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a economia política e do contrato social. Tradução de
Maria Constança Peres Pissarra. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 78. 12
Ibid., p. 79. 13
BONAVIDES, Paulo. Democracia e liberdade no contrato social de Rousseau. In Estudos em
homenagem a J.J. Rousseau. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1962, p. 156.
12
A vontade geral é a vontade do povo, da qual deriva a lei como ato de soberania.
Esta vontade geral é inalienável e indivisível; a democracia só pode ser direta. Todo
poder que não emanar do povo será um poder fora da lei, será o despotismo. A
soberania popular se transforma assim em fonte primária e absoluta da ordem política.
Para Rousseau, as formas de organização da sociedade e as formas de
organização política têm que repousar no consentimento de todos. “É unicamente sob
esse interesse comum que a sociedade deve ser governada”,14
afirma Rousseau.
Fora da França, no campo da ciência do direito, além dos pensadores que
trataremos no próximo tópico, destaca-se o italiano Cesare Beccaria. Beccaria teve uma
grande influência na defesa dos direitos da humanidade e na reforma do direito penal.
Sua obra “Dos delitos e das penas” (1764) é a filosofia iluminista aplicada à legislação
penal: contra os preconceitos e uma tradição jurídica bárbara, invoca a razão e o
sentimento humanitário; defende a presunção de inocência do acusado, o fim da tortura,
da punição cruel, da pena de morte (algo extraordinário para a época). Em síntese,
conclui que a pena deve ser essencialmente pública, pronta, necessária, proporcional ao
delito e determinada pela lei (nullum crimen, nulla poena sine lege). A maior parte das
ideias de Beccaria encontram-se na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
1789 e nos Códigos penais de 1795 e 1810.
No campo da filosofia jurídica, o Iluminismo estava ligado aos teóricos do
direito natural. A ideologia jurídica do liberal-contratualismo do século XVIII refletiu as
condições sociais e econômicas da burguesia capitalista ascendente, conforme ensina
Wolkmer:
A função ideológica da teoria jusnaturalista, enquanto proposição
defensora de um ideal eterno e universal, nada mais fez do que
esconder seu real objetivo, ou seja, possibilitar a transposição para um
outro tipo de relação política, social e econômica, sem revelar os
verdadeiros atores beneficiados. A ideologia enunciada por este
jusnaturalismo mostrou-se extremamente falsificadora ao clamar por
14
ROUSSEAU, ob. cit., p. 87.
13
uma retórica formalística da igualdade, da liberdade, da dignidade e da
fraternidade de todos os cidadãos.15
Foi na doutrina do direito natural que se inspirou a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão (1789). Considerando isso, no próximo tópico iremos retraçar a
evolução do conceito de “direito natural” até a definição que encontram nas Declarações
do século XVIII.
1.2 O Direito Natural
A noção de “direito natural” remonta a pelo menos dois mil anos antes do início
da Idade Moderna. As primeiras manifestações de jusnaturalismo se dão na Antiguidade
grega. Ao lado das leis escritas, havia entre os gregos a noção de “leis não escritas”,
“leis divinas” e “eternas”, que aparecem no século V a.C. na tragédia Antígona de
Sófocles. Nas gerações seguintes, o fundamento religioso dessas leis universais foi
dando lugar a outro. “Para os sofistas e, mais tarde, para os estóicos, esse outro
fundamento universal de vigência do direito só podia ser a natureza (physis)”.16
Mas, segundo Michel Villey, a ideia de um direito que se extrai da “natureza do
homem” individual e não mais da natureza cósmica, da ordem natural, somente
aparecerá a partir do nominalismo de Guilherme de Ockham, no século XIV, e dele, a
noção de direito subjetivo, de direito como poder do indivíduo, e, como consequência, o
de lei concebida como emanação desse poder. O nominalismo será o ponto de partida
para as grandes filosofias do direito da era moderna.17
Da antiga Grécia, é importante citarmos a contribuição duradoura dos estóicos,
descrita por Bobbio:
15
WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, estado e direito. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003,
p. 159. 16
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva,
2011, p. 26. 17
VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Tradução de Claudia Berliner. São
Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 225- 296. “Para o franciscano Guilherme de Ockham, existem tão-
somente indivíduos: este mundo é um mundo de pessoas e de coisas singulares; toda ciência se constrói
não mais sobre a noção dos conjuntos, mas a partir de coisas singulares, e toda ciência humana, a partir e
em torno dos indivíduos. Assim como as noções gerais, os organismos coletivos, as pólis não são
naturais: são criações artificiais dos indivíduos”. (Ibid., p. 693)
14
O Jusnaturalismo, presente igualmente em Platão e, se bem que
incidentalmente, também em Aristóteles, foi elaborado na cultura
grega, principalmente pelos estóicos, para quem toda a natureza era
governada por uma lei universal racional e imanente; conhecemos a
sua doutrina sobre este ponto sobretudo pela divulgação que Cícero
dela fez em Roma, em páginas que exerceram uma influência decisiva
no pensamento cristão dos primeiros séculos, no pensamento medieval
e nas primeiras doutrinas jusnaturalistas modernas. Numa celebre
passagem do De republica, Cícero defende a existência de uma lei
“verdadeira”, conforme à razão, imutável e eterna, que não muda com
os países e com os tempos e que o homem não pode violar sem
renegar a própria natureza humana. 18
Na Idade Média, a lei natural passa a ser a lei de Deus, manifestada ao homem
de forma direta, com a revelação, ou indiretamente, pela razão. No Decretum de
Graciano, de 1140, o direito natural é definido como sendo o que está contido na lei
revelada por Deus a Moisés (os Dez Mandamentos) e no Evangelho (“Jus naturale est
quod in lege et in Evangelio continetur”).19
A ideia de que o mundo implica uma ordem e não é efeito do acaso era o legado
comum de Aristóteles, de Platão, dos estóicos; São Tomás de Aquino encontrou a
confirmação dessa tese em certos textos do Gênese e no conjunto do dogma cristão. Na
Suma Teológica, São Tomás faz uma classificação das leis e coloca no cume de todo
sistema legislativo a “lei eterna” (lex aeterna) tomada de Santo Agostinho: razão de
Deus ordenando o universo. A lei natural é um princípio depositado na razão humana
por Deus, consistente na máxima “deve-se fazer o bem e evitar o mal”, da qual a razão
deduz todos os outros. O direito natural fornece diretrizes de caráter muito geral,
flexíveis. É um direito natural relativo. A lei humana é expressão e prolongamento da
lei natural, uma adaptação à situação concreta.20
A doutrina de São Tomás serviu às necessidades da sociedade de seu tempo
ressuscitando o método e as fontes do direito antigo. A justiça tornou-se uma categoria
do direito natural e expressava a supremacia da hierarquia da Igreja e feudal. “A
18
BOBBIO, Norberto. Jusnaturalismo In Dicionário de política. 4. ed. Brasília, Editora Universidade de
Brasília, 1992, p. 656. 19
BOBBIO, NORBERTO. Locke e o direito natural. 2. ed. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1997, p. 37. 20
VILLEY, ob. cit., p. 148-149.
15
autoridade, a dominação política, a sujeição, a hierarquia são justificados como
naturais”.21
Segundo Bobbio:
Na realidade, a doutrina tomística da lei natural não fazia senão
repetir, embora inserindo-a em moldes teológicos, a doutrina estóico-
cíceroniana da lei “verdadeira” enquanto racional. [...] o
Jusnaturalismo moderno (que assumiu, principalmente no século
XVIII, características acentuadamente laicas e, no campo político,
liberais) procede, em grande parte, da doutrina estóico-ciceroniana do
direito natural, propagada justamente graças à acolhida que lhe
dispensou o tomismo. Isso se deu sobretudo na medida em que a
corrente tomista se opôs energicamente, a partir do século XVI, no
tempo da Reforma, ao voluntarismo teológico inspirado nas teses de
Guilherme de Occam, que punha como fonte primeira de toda norma
de conduta e como fonte de legitimidade de autoridade política a
vontade divina e, consequentemente, a Sagrada Escritura. Entre o
voluntarismo e o Jusnaturalismo de inspiração tomística, os teólogos
juristas espanhóis do século XVI (entre eles, o maior de todos,
Francisco Suárez), que trataram amplamente do direito natural,
tentaram, em geral, uma mediação.22
Contra o voluntarismo das alas extremas do calvinismo (defensores da tese de
Calvino da predestinação) – que deduz o direito de uma vontade divina absolutamente
irracional – de um lado, e o pensamento absolutista – que vinha ganhando terreno desde
a Renascença, presente nas obras de Maquiavel e Bodin, – de outro, o holandês Hugo
Grotius sustenta a tese de um direito que está acima de todo poder humano ou divino e
que dele é independente, um direito baseado na razão pura. Sua doutrina é reconhecida
como a origem do direito natural moderno.23
Na obra De iure belli ac pacis (Do direito da guerra e da paz), de 1625, Grotius
põe o direito natural como fundamento de um direito que poderia ser reconhecido por
todos os homens e aceito por uma pluralidade de Estados soberanos (aquilo que virá a
ser o Direito Internacional).
21
Ibid., p. 162. 22
BOBBIO, ob cit., p. 657. 23
CASSIRER, ob. cit., p. 322.
16
Para Grotius, os preceitos da lei natural são normas jurídicas universalmente
obrigatórias e imutáveis, que “existiriam de qualquer maneira, mesmo se admitíssemos
[...] que Deus não existe”.24
Essa famosa afirmação é, evidentemente, uma simples
hipótese, pois Grotius é um pensador profundamente religioso. A luta que Grotius trava
é pela autonomia da ciência jurídica. O Direito não deve apoiar-se em nenhuma
existência, seja ela empírica ou absoluta.25
Se no plano internacional, o apelo à razão natural tinha como objetivo encontrar
um fundamento autônomo e laico para o Direito das Gentes, no plano interno ele tinha
como meta, na elaboração contratualista, chegar a uma justificação para o Estado e o
Direito que não encontra o seu fundamento no poder do soberano ou no poder de Deus,
mas sim da vontade dos indivíduos.
Direitos inatos, estado de natureza e contrato social foram os
conceitos que, embora utilizados com acepções variadas, permitiram a
elaboração de uma doutrina do Direito e do Estado a partir da
concepção individualista de sociedade e da história, que marca o
aparecimento do mundo moderno. São estes conceitos os que
caracterizam o jusnaturalismo dos séculos XVII e XVIII, que
encontrou o seu apogeu na Ilustração.26
Esses conceitos característicos do jusnaturalismo moderno encontram-se de tal
modo presentes em todas as doutrinas do direito natural dos séculos XVII e XVIII que
se pode falar de uma “escola do direito natural”. Entre os jusnaturalistas modernos,
além de Grotius, podemos citar Hobbes, Locke, Pufendorf, Wolff, Burlamaqui, Vattel e
Rousseau.
Posto isso, apresentar-se-á, doravante, uma análise do pensamento de dois dos
grandes filósofos do jusnaturalismo desse período, são eles: Thomas Hobbes e John
Locke.
1.2.1 Thomas Hobbes
24
Apud VILLEY, ob. cit., p. 647. 25
CASSIRER, ob. cit., p. 323-324. 26
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah
Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 38.
17
Thomas Hobbes dedicou parte das suas obras políticas – o De cive (1642) e o
Leviatã (1651) – ao estudo do direito natural.
Hobbes, para construir sua teoria no Leviatã, transfere para a política o método
de “resolução” e de “composição” que Galileu empregou na física. Assim, para a
compreensão do todo, Hobbes começa por reduzir a realidade, mediante análise, a
elementos simples, às unidades últimas e indecomponíveis; depois a reconstrói,
mediante síntese.
Ele concebe um “estado de natureza” feito de uma poeira de homens
isolados, e a sociedade, as instituições serão reconstruídas a partir dos
homens. Inversão da filosofia de Aristóteles. Pois Aristóteles observa
na “natureza” homens encerrados em grupos sociais; o homem, dizia
ele, é naturalmente “político” (Zôon politikón). Hobbes, impregnado
da lógica de Guilherme de Ockham, partidário do nominalismo, nela
só encontrará indivíduos, mas providos de uma “natureza” comum;
naturalmente iguais e livres, subtraídos a qualquer hierarquia.27
O problema da teoria política consiste em explicar como, desse isolamento
absoluto de indivíduos, pode nascer uma associação que deve acabar por uni-los num
todo único. Tal é o problema que Hobbes quer resolver mediante a doutrina do estado
de natureza e do contrato social.
Por “estado de natureza” entende-se o estado em que o homem se encontrava, ou
se encontraria em determinadas circunstancias, sem o apoio de um poder civil. A
natureza, para Hobbes, é dominada pelas paixões, os instintos, o egoísmo. Os homens
comportavam-se, nesse estado natural, uns contra os outros, como lobos. Hobbes não
nega que o estado de natureza seja um estado de liberdade e igualdade, diferentemente
do civil, mas justamente por isso o estado de natureza é intolerável e deve ser
suprimido.
No De cive, Hobbes define como iguais: “Aqueles que podem executar, um
contra o outro, os mesmos atos; aquele que pode agir com relação ao seu semelhante de
27
VILLEY, Michel. O direito e os direitos humanos. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado
Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 145.
18
forma extrema, isto é, matá-lo, pode fazer tudo o que podem os demais.”28
Liberdade,
no sentido jurídico, é, para Hobbes, a faculdade de fazer tudo o que não é ordenado ou
proibido pelas leis.
No início do capitulo XIV do Leviatã, afirma Hobbes:
O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus
naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio
poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria
natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo
aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios
adequados a esse fim.29
Esse texto é uma clara definição dos modernos direitos do homem, os direitos
individuais. O direito natural em Hobbes deriva exclusivamente da natureza de “cada
homem”.
O direito natural, diz o texto, é absoluto: liberdade que o indivíduo tem de usar
seu próprio poder, da maneira que quiser. A liberdade do sujeito é ilimitada. Cada
indivíduo, motivado por seu apetite de conservação, desfrutando de uma total liberdade,
tem direito a tudo. Como conseqüência, as ações de uns e outros colidem no mesmo
objeto, os homens disputam com violência o acesso a todas as coisas, levando a todo
tipo de desgraça. O estado natural dos homens então é o estado de guerra perpétua de
todos contra todos, marcado pela insegurança, miséria e barbárie.
Justamente porque o estado da natureza é marcado pela insegurança perpétua, os
homens, por razões de segurança (a busca da paz), aspiram a passar para o estado civil.
Para isto, eles fazem entre si um contrato, no qual renunciam a todos os direitos que
tinham no estado de natureza – exceto o direito à vida –, transferindo-os ao poder
soberano que instituirá a ordem e a paz. Os homens, ao criarem o Estado, ganharam as
condições da prosperidade, da aquisição de direitos subjetivos eficazes, protegidos pela
espada do príncipe. Assim justifica-se o poder absoluto do soberano.
O contrato social, o ato que constitui inicialmente a sociedade, apenas será, para
Hobbes, um contrato de submissão. “O contrato social, entendido como contrato de
28
Apud BOBBIO, ob. cit., p. 173. 29
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de
João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 78.
19
sujeição é, portanto, o primeiro passo que conduz do “status naturalis” ao “status
civilis” e continua sendo a conditio sine qua non da manutenção desse estado civil”.30
Se de um lado Hobbes pertence à tradição do jusnaturalismo, de outro é
considerado também um precursor do positivismo jurídico. Como explica Bobbio,
“Hobbes adota a doutrina do direito natural não para limitar o poder civil – como fará,
por exemplo, Locke –, mas para reforçá-lo”.31
No estado civil o soberano fará a ordem, o direito, por suas leis; as leis civis têm
a vantagem de serem acompanhadas de coerção, tornando as obrigações eficazes.
“Assim, se no estado civil os indivíduos são obrigados a obedecer às leis civis, isto
significa que nele só existe um direito, imposto pelo soberano, ou seja, o direito
positivo”.32
A lei natural passa a ser identificada com a lei civil concedida pelo Estado, e a
justiça torna-se obediência às leis, às ordens do soberano. Com isso, inverte-se a função
tradicional do direito natural, que passa a justificar o poder soberano ilimitado.
1.2.2 John Locke
John Locke, o primeiro grande filósofo do liberalismo, em seus dois Tratados
sobre o governo civil (1690), defende a ideia de que o poder estatal deve ser limitado
pelas leis naturais. Seus escritos políticos dirigem-se especialmente contra duas linhas
de argumentação absolutista. Uma era a teoria patriarcal da monarquia por direito
divino, defendida por Robert Filmer, e a outra era a tese do absolutismo apresentada por
Hobbes.
Como Hobbes, Locke começa sua teoria política com a descrição do estado de
natureza. Porém, diferentemente da teoria hobbesiana, para Locke, o estado de natureza
não é originariamente um estado de guerra, mas tende a tornar-se um; não é
essencialmente mau, mas apresenta inconveniências.
30
CASSIRER, ob. cit., p. 341-342. 31
BOBBIO, ob. cit., p. 41. 32
Ibid., p. 43.
20
Locke parte também do pressuposto de que o estado de natureza é uma situação
de liberdade e igualdade. Contudo, liberdade não significa o jus in omnia ilimitado de
Hobbes. Ela se define como o direito “de regular as suas ações e de dispor da sua
propriedade e da sua pessoa como melhor se queira, dentro dos limites da lei da
natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de ninguém mais”.33
Trata-se,
portanto, de uma liberdade negativa, isto é, a liberdade do homem de seguir a sua
própria vontade em tudo aquilo que não seja regulado por lei.
Da mesma forma, a igualdade de que fala Locke não é a igualdade de forças,
física ou material, a que se referia Hobbes, mas uma igualdade jurídica, na qual não há
subordinação ou sujeição de um indivíduo a outro.
O inconveniente do estado de natureza assim concebido está no fato
de que, se uma lei natural é violada, isto é, se um indivíduo abusa da
sua liberdade – a qual consiste em fazer tudo o que é permitido pelas
leis naturais –, há ausência de subordinação. Em outros termos, a
igualdade, implica que, quando ferido pela violência alheia, o
indivíduo deve fazer justiça por si.34
Mas quem é juiz em causa própria dificilmente consegue ser imparcial e tende a
vingar-se, em vez de punir. Em conclusão, o problema maior do estado de natureza é a
falta de um juiz imparcial para julgar as controvérsias que nascem entre os indivíduos
que participam de uma sociedade. O estado de natureza de Locke não é anárquico por
princípio, mas, por não ter juízes imparciais, corre sempre o risco de degenerar em
anarquia.
“Para Hobbes, o estado civil deve proporcionar uma lei aos indivíduos que
fogem do estado da natureza. Para Locke, a rigor, é preciso que haja um juiz, porque a
lei – a lei natural – preexiste e continua vigente na nova situação”.35
A função do poder
civil que surge com o contrato social é conservar o elemento positivo do estado de
natureza – os direitos naturais – e eliminar o elemento negativo – a falta de um juiz
imparcial. Além dos direitos naturais à liberdade e a igualdade, Locke descobre no
estado de natureza um outro direito: o direito à propriedade.
33
BOBBIO, op. cit., p. 180. 34
Ibid., p. 181. 35
Ibid., 182.
21
Hobbes tinha negado que o direito de propriedade fosse um direito natural. Para
Hobbes, a propriedade, entendida como um direito garantido contra todos, nascia
exclusivamente depois da instituição do Estado e mediante a sua proteção; era, portanto,
um instituto de direito positivo.
“A concepção hobbesiana da propriedade era justamente o oposto da que
convinha a Locke e aos políticos das suas relações de amizade, que lutavam para
proteger os proprietários da espoliação arbitrária pelo soberano”.36
Locke demonstra que a propriedade é um direito natural no sentido específico de
que ele nasce e se aperfeiçoa no estado de natureza, ou seja, antes que o Estado seja
instituído e de forma independente. Assim, Locke dá à propriedade individual um
fundamento que a protege da ingerência do soberano e das outras pessoas estranhas ao
acordo.
Para Locke, o fim principal da reunião dos homens em sociedade é a
conservação da sua propriedade.37
O filósofo sustenta que o fundamento da propriedade
individual deve ser procurado no trabalho, empregado para apossar-se de uma coisa ou
para transformá-la, valorizando-a economicamente, como se lê nessa passagem:
Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os
homens, cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa. A
esta ninguém tem direito algum além dele mesmo. O trabalho de seu
corpo e a obra de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele.
Qualquer coisa que ele então retire do estado com que a natureza a
proveu e deixou, mistura-a a ele com o eu trabalho e junta-lhe algo
que é seu, transformando-a em sua propriedade.38
A propriedade é o direito que cabe inicialmente ao individuo sobre a “sua
pessoa”, em consequência sobre seu trabalho, sobre suas atividades. É o trabalho que dá
valor às coisas. A propriedade de cada um se estende aos frutos de seu trabalho. Locke
afirma que “embora as coisas da natureza tenham sido dadas em comum”, o homem
“sempre teve em si mesmo o primeiro fundamento da propriedade”.39
36
Ibid., p. 190. 37
LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Tradução de Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes,
2005, p. 579. 38
Ibid., p. 409. 39
Apud BOBBIO, ob. cit., p. 196.
22
No estado de natureza, esse direito de propriedade é limitado. Esse limite está
ligado ao próprio fim do instituto da propriedade, que serve para o sustento de cada um,
com sua família; o que pode ser efetivamente aproveitado. O que ultrapassar esse limite
excede a parte de cada um, e pertence aos outros. Mas esse limite vale somente em uma
sociedade primitiva, antes do surgimento da moeda. Com a introdução da moeda, os
homens permitiram uma acumulação potencialmente sem limites, que é uma das
características determinantes da concepção capitalista da propriedade.
Mas, se a propriedade é fruto do trabalho, a rigor só deveria possuir a terra quem
pode lavrá-la. Porém, ao falar de trabalho, Locke inclui o trabalho alienado, o trabalho
que o homem presta em troca de um pagamento. Assim, ficam superados os limites à
propriedade impostos pela força dos braços: quem tem mais empregados tem mais
propriedade. Como o trabalho dos empregados pode ser comprado com direito, quem
tem mais dinheiro tem mais empregados.
A teoria de Locke sobre a propriedade foi revolucionária e é considerada a parte
mais original de sua filosofia política. Como afirma Bobbio, no pensamento jurídico e
econômico do filósofo inglês, “justamente com respeito ao problema da propriedade,
fazem sua aparição triunfal a teoria da acumulação capitalista ilimitada e a defesa da
sociedade burguesa, que vive e prospera alimentando-se do trabalho alienado”.40
Sobre a concepção de estado de natureza de Locke, analisa Bobbio:
O “estado da natureza” em abstrato dos teólogos e dos jusnaturalistas
é preenchido, em Locke, com um conteúdo concreto. É o local das
relações econômicas entre os indivíduos e representa muito bem a
descoberta de um plano econômico das relações humanas, distinto de
um plano econômico das relações humanas, distinto do plano político.
Ou ainda, o estado de natureza significa a individuação do momento
econômico como momento precedente e determinante do político. A
sociedade natural, isto é, a sociedade na qual os homens vivem
conforme as leis naturais – não impostas mais ou menos
arbitrariamente por uma autoridade – se transforma em uma sociedade
40
Ibid., p. 197.
23
dominada pelas leis da livre concorrência econômica, elas também
naturais.41
Como afirmamos no início do tópico, Locke combate a teoria absolutista. Para
Locke, a monarquia absolutista é incompatível com a sociedade civil. No Estado
despótico, o soberano, que detém todo o poder, tanto o legislativo, como o executivo, se
subtrai do julgamento de um juiz imparcial, cuja constituição é o principal objetivo do
governo civil.
Para explicar a formação do poder civil, Locke repete a teoria tradicional que
fundamenta o poder político no chamado “contrato social”. O que diferencia o contrato
social de Locke do de Hobbes é o fato de que a renúncia aos direitos naturais, em vez de
ser total – exceto o direito à vida – compreende somente um – o direito de fazer justiça
por si mesmo –, conservando todos os demais. A consequência disso é que o Estado de
Locke surge com poderes bem mais limitados do que o de Hobbes. O Estado não deve
intervir no âmbito privado do cidadão, na vida econômica, familiar e religiosa, devendo
respeitar a liberdade de consciência e de opinião.
A sociedade civil – ou política – não suprime a sociedade natural,
porém a conserva e aperfeiçoa. É inútil acrescentar que essa
configuração do Estado é que deu corpo à tradição do Estado liberal,
entendido como Estado negativo, custódio, limitado, etc.; à concepção
das relações entre indivíduo e Estado definida pela fórmula da
liberdade do Estado. Mais ainda: da idéia de um Estado cuja função
principal é julgar imparcialmente, nasceu a figura do Estado de
direito, que se contrapõe ao Estado patrimonial de então [...]
Locke define os limites a que se deve submeter o Poder Legislativo. O primeiro
limite é a proteção e a conservação dos direitos naturais inalienáveis e invioláveis, dos
quais o indivíduo não pode ser despojado pelo poder civil. O segundo limite é imposto
pela afirmação do princípio da legalidade. O poder supremo deve regular a conduta dos
cidadãos mediante leis e não decretos casuísticos, garantindo a igualdade de todos os
cidadãos perante a lei pelo critério da generalidade, e à certeza do direito, pelo seu
caráter abstrato. O terceiro limite sanciona solenemente o princípio da liberdade
econômica que inspira a ideologia de Locke. O poder supremo não pode privar um
41
Ibid., p. 205-206.
24
cidadão de sua propriedade. Pode-se dizer que, para Locke, a propriedade é “sagrada e
inviolável”, como consta no art. 17 da Declaração de 1789.
Locke organiza seus direitos humanos para o proveito de uma classe social, em
cujo lado ele é engajado. Esses direitos do homem “formais” (liberdades) não são para
todos, mas para uma minoria: a classe proprietária. Nesse sentido, a opinião de Bobbio:
Se tivessem dito a Locke, campeão dos direitos da liberdade, que
todos os cidadãos deveriam participar do poder político e, pior ainda,
obter um trabalho remunerado, ele teria respondido que isso não
passava de loucura. E, não obstante, Locke tinha examinado a fundo a
natureza humana; mas a natureza humana que ele examinara era a do
burguês ou comerciante do século XVIII, e não lera nela, porque não
podia lê-lo daquele ângulo, as exigências e demandas de quem tinha
uma outra natureza ou, mais precisamente, não tinha nenhuma
natureza humana (já que a natureza humana se identificava como a
dos pertencentes a uma classe determinada).42
A organização política da sociedade inglesa vem atender às exigências de
liberdade para os negócios de uma burguesia ansiosa por direitos plenamente
institucionalizados na Carta Política, na legislação, no Estado. Locke é o teórico do
ideal do modelo mercantil, que exige uma segurança vantajosa para o desenvolvimento
da livre iniciativa no domínio da economia.43
Para Locke, considerado erroneamente o pai da teoria da separação dos três
poderes, o poder civil é formado por apenas dois, o Legislativo e o Executivo – o
Parlamento e o rei. Ademais, a teoria de Locke é a teoria da separação dos poderes, não
da separação e do equilíbrio entre eles. O Poder Executivo deve estar subordinado ao
Legislativo – a doutrina constitucional que se encontra na base dos modernos Estados
parlamentaristas. A teoria do equilíbrio dos poderes é a que foi elaborada por
Montesquieu e será acolhida pela Constituição dos Estados Unidos da América.44
42
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 9. ed. Rio de Janeiros: Elsevier, 2004. 43
BOBBIO, ob. cit., p. 81. 44
Ibid., p. 231-236. Micheline Ishay afirma que Locke “ponderava que os direitos individuais somente
estariam protegidos de forma confiável num governo em que os três poderes básicos – legislativo,
executivo e federativo – fossem separados um do outro. Suas justificações dos direitos de propriedade e
da separação dos poderes deixaram sua marca na Constituição dos Estados Unidos (1776) e na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789).” (Direitos humanos: uma antologia. Tradução
de Fábio Duarte Joly. São Paulo: Edusp, 2013, p. 25). Ocorre que, conforme ensina Bobbio, o Poder
25
Se, para Locke, o Poder Executivo responde perante o Legislativo, o Legislativo,
que também é limitado pelos direitos naturais, responde perante o que? A resposta:
perante o povo, no qual se encontra, em última instância, o poder originário da
comunidade – embora por “povo” Locke entendesse a sociedade dos proprietários.
Contra a tirania, o povo tem o direito legítimo de resistência. Quando o Poder
Legislativo viola os direitos naturais dos indivíduos, Locke afirma que o poder deve
retornar ao povo, que tem o direito de retomar sua liberdade original e instituir um novo
Legislativo.
As últimas páginas do Segundo tratado constituem um apelo à resistência à
opressão, ao direito que têm os cidadãos de não se deixarem oprimir por governos
inescrupulosos, e terá “o efeito de suscitar ecos de simpatia e de adesão em todos os
envolvidos na preparação e na execução das duas grandes revoluções do século
XVIII”.45
Compreende-se, agora, a influência da doutrina de Locke na definição dos
“direitos do homem” que encontraremos na Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão (1789), art. 2º: “A finalidade de toda associação política é a conservação dos
direitos naturais e imprescritíveis do homem. Tais direitos são a liberdade, a
propriedade, a segurança e a resistência à opressão”.46
Federativo de que fala Locke é “claramente uma parte do Executivo, isto é, do poder coativo do Estado,
voltado não para o interior, mas para o exterior, conforme a distinção clássica entre a ordem interna e
externa, a paz social e a internacional. Está, assim, ligado indissoluvelmente, ao Poder Executivo, do qual
é um aspecto”. (Ob. cit., p. 234) 45
Ibid., p. 245. 46
COMPARATO, ob. cit., p. 170.
26
CAPÍTULO II – A REVOLUÇÃO FRANCESA E A DECLARAÇÃO DOS
DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO (1789)
2.1 A REVOLUÇÃO FRANCESA NA HISTÓRIA DO MUNDO
CONTEMPORÂNEO
A Revolução Francesa (1789-1799) assinala uma ruptura definitiva com o
Antigo Regime, por meio da destruição do regime senhorial, varrendo os vestígios das
antigas autonomias, destruindo os privilégios locais e os particularismos provinciais. O
súdito torna-se cidadão e o Reino, um Estado sob a unidade nacional.
Revolução burguesa clássica, ela marca uma etapa decisiva na transição do
feudalismo ao capitalismo, tornando possível a instauração de um Estado moderno
correspondendo aos interesses e às exigências da burguesia. Ao Estado absolutista,
encarnado na figura do monarca Luís XVI, ela ofereceu um Estado liberal e laico,
fundado nos princípios da soberania nacional e na igualdade civil. Ela é, ao mesmo
tempo, uma ruptura e uma fundação (fim do Antigo Regime e criação da nação-
soberana).
Com a Revolução do século XVII e a Revolução Industrial do século XVIII na
Inglaterra, e ainda com a Revolução Americana de 1776, a Revolução da França lança
os fundamentos da História Contemporânea. “Se a economia do mundo do século XIX
foi formada principalmente sob a influência da revolução industrial britânica, sua
política e ideologia foram formadas fundamentalmente pela Revolução Francesa”.47
Com a Revolução Francesa, velhas palavras ganham novos conteúdos, entre
elas, “cidadão”, “pátria”, “nação”, “república”. A própria palavra “revolução” 48
adquire
47
HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções: europa 1789-1848. Tradução de Maria Tereza Lopes
Teixeira e Marcos Penchel. 9 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994, p. 71. 48
O termo é derivado da astronomia, onde revolução designava o movimento regular e cíclico dos corpos
celestes dentro de suas órbitas; retorno de um astro ao seu ponto de partida. O exemplo clássico é dado
pela obra de Copérnico De revolutionibus orbium coelestium (1543). É no século XVII que a palavra vem
a ser usada como termo propriamente político, para indicar um retorno às origens, a uma ordem
preestabelecida que foi perturbada. O termo é usado, pela primeira vez, pelos ingleses para caracterizar a
27
um novo sentido, e passa a indicar uma inversão radical da ordem constituída; uma
ruptura com o passado e o inicio de uma nova era:
[...] da mera restauração de uma ordem perturbada pelas autoridades,
se passa à fé na possibilidade da criação de uma ordem nova; da busca
da liberdade nas velhas instituições, se passa à criação de novos
instrumentos de liberdade; enfim, é a razão que se ergue contra a
tradição ao legislar uma constituição que assegurasse não só a
liberdade, mas trouxesse também a felicidade ao povo.49
Dessa forma, “os revolucionários já não são os que se revoltam para restaurar a
antiga ordem política, mas os que lutam com todas as armas – inclusive e sobretudo a
violência – para induzir o nascimento de uma sociedade sem precedentes históricos”.50
Vale reproduzir em detalhes a conclusão de Soboul sobre os caracteres próprios
da Revolução Francesa perante as diversas revoluções similares:
Se se mostrou a mais brilhante das revoluções burguesas, eclipsando
pelo caráter dramático de suas lutas de classe as revoluções que a
tinham precedido, ela o deveu sem dúvida à obstinação da
aristocracia, ancorada em seus privilégios feudais, que recusava
qualquer concessão, e ao encarniçamento oposto das massas
populares. A contra-revolução aristocrática obrigou a burguesia
revolucionária a prosseguir, não menos obstinadamente, a destruição
total da antiga ordem. Mas esta somente chega a isto aliando-se com
as massas rurais e urbanas às quais era preciso contentar: a
feudalidade foi destruída, a democracia instaurada. O instrumento
político da mutação foi a ditadura jacobina da pequena e da média
burguesias, apoiada nas massas populares: categorias sociais cujo
ideal era uma democracia de pequenos produtores autônomos,
camponeses e artesãos independentes, trabalhando e trocando
livremente. A Revolução Francesa se fixou assim um lugar singular na
restauração monárquica de 1660, após a ditadura de Cromwell. Precisamente com o mesmo sentido
(restauração), a palavra foi usada em 1688, quando os Stuarts foram expulsos e o poder real foi
transferido para Guilherme e Maria, acontecimento que ficou definitivamente marcado na historiografia
como a Revolução Gloriosa. (ARENDT, Hannah. Da revolução. Tradução: Fernando Dídimo Vieira. 2.
ed. São Paulo: Ática-UNB, 1990, p. 34) 49
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 2.
ed.Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1986, p. 1123. 50
COMPARATO, ob. cit., p. 141.
28
história moderna e contemporânea: a revolução camponesa e popular
estava no âmago da revolução burguesa e a impelia para a frente.
Estes caracteres explicam a ressonância da Revolução Francesa e seu
valor de exemplo na evolução do mundo contemporâneo.
Indubitavelmente, foram os exércitos da República, em seguida os de
Napoleão, que, mais do que a força das ideias, abateram nos países
por eles ocupados o Antigo Regime: abolindo a servidão, libertando
os camponeses dos foros senhoriais e dízimos eclesiásticos, pondo em
circulação os bens de mão morta, a conquista francesa limpou a casa
para o desenvolvimento do capitalismo. Mais ainda, foi graças à
própria extensão do capitalismo, conquistador por natureza, que os
princípios novos e a ordem burguesa se apoderaram do mundo,
impondo em toda parte as mesmas transformações.51
A referência francesa serviu de matriz às revoluções nacionais e liberais do
século XIX até 1917, permanecendo até essa data o maior exemplo a uma modificação
violenta da ordem social e institucional, como o lugar fundador de toda uma filosofia
política.
Os motivos que explicam que ela tenha, de certo modo, ofuscado os outros
movimentos contemporâneos ou antecedentes, e suas consequências tenham sido mais
profundas, são assim sintetizados por Hobsbawm:
Em primeiro lugar, ela se deu no mais populoso e poderoso Estado da
Europa (não considerando a Rússia). [...] Em segundo lugar, ela foi,
diferentemente de todas as revoluções que a precederem e a seguiram,
uma revolução social de massa e incomensuravelmente mais radical
do que qualquer levante comparável. [...] Em terceiro lugar, entre
todas as revoluções contemporâneas, a Revolução Francesa foi a única
ecumênica. Seus exércitos partiram para revolucionar o mundo; suas
ideais de fato o revolucionaram.52
51
SOBOUL, Albert. A revolução francesa. DIFEL: São Paulo, 1974, p. 115-116. 52
HOBSBAWM, op. cit., p. 72.
29
Como notou Tocqueville,53
a Revolução considerou o cidadão de uma maneira
abstrata, do mesmo modo como as religiões consideram o homem em geral,
independentemente do país ou da época. Dessa forma, ela operou como uma revolução
religiosa, e conseguiu tornar-se compreensível a todos e copiável em todos os lugares:
Todas as revoluções civis e políticas tiveram uma pátria e nela se
fecharam. A Revolução Francesa não teve um território próprio, mais
do que isso, teve por efeito por assim dizer apagar do mapa todas as
antigas fronteiras. Aproximou ou dividiu os homens a despeito das
leis, das tradições, dos caracteres, da língua, transformando às vezes
compatriotas em inimigos e irmãos em estranhos ou, melhor,
formando acima de todas as nacionalidades uma pátria intelectual
comum da qual os homens de todas as nações podiam tornar-se
cidadãos.54
A influência da Revolução Francesa é, portanto, universal. Como afirmou o
revolucionário francês Maximilien Robespierre, ela foi “a primeira revolução feita em
nome dos direitos da humanidade”.55
2.2 A DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO (1789)
No final de julho e início de agosto de 1789, em meio à atmosfera
revolucionária, os deputados da Assembléia Nacional (que desde 9 de julho
autoproclamara-se Assembléia Nacional Constituinte) ainda estavam debatendo se
precisavam de uma declaração, se ela deveria aparecer como preâmbulo à Constituição
e se deveria ser acompanhada por uma declaração dos deveres do cidadão.
A divisão sobre a necessidade de uma declaração refletia os desacordos
fundamentais sobre o curso dos acontecimentos. Se a autoridade monárquica precisasse
apenas de uma reforma, uma declaração dos "direitos do homem" não era necessária.
53
TOCQUEVILLE, Alexis de. O antigo regime e a revolução. Tradução de Yvonne Jean. 3. Ed. São
Paulo: Hucitec, 1989, p. 59. 54
Ibid., p. 59. 55
GAUCHET, Marcel. “Direitos do Homem”. In: FURET, F.; OZOUF, M. (Orgs.). Dicionário crítico da
revolução francesa. Tradução de Henrique de Araújo Mesquita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, p.
679.
30
Para aqueles, em contraste, que defendiam que o governo tinha de ser reconstruído do
nada, uma declaração de direitos era essencial. Como os princípios que iam ser
proclamados condenariam as ordens e privilégios, os aristocratas sustentavam o
adiamento, esperando conseguir algumas de suas prerrogativas.
Por fim, na histórica noite de 4 de Agosto, a Assembléia Nacional suprimiu
todos os privilégios e os direitos feudais e votou por redigir uma declaração de direitos
sem os deveres. O debate na Assembléia Nacional que antecedeu e deu feição à
Declaração durou quinze dias, de 11 a 26 de agosto, quando finalmente foi aprovada,
com dezessete artigos.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamando a liberdade, a
igualdade e a soberania nacional, representa, na famosa expressão do historiador
Alphonse Aulard, “o atestado de óbito” do Antigo Regime.56
A Declaração afirma que todos os homens "nascem e permanecem livres e iguais
em direitos" (artigo 1º). A igualdade proclamada é uma igualdade formal, jurídica, ou
seja, a lei é a mesma para todos, não há mais distinções de nascimento; profissões e
funções públicas são igualmente acessíveis a todos. A liberdade é definida como sendo
o direito de “poder fazer tudo o que não prejudique os outros” (art. 4º). Trata-se de uma
liberdade negativa, isto é, permite-se aos indivíduos tudo o que não é proibido por lei.
Além da liberdade, também são definidos como "direitos naturais e imprescritíveis do
homem": a propriedade (sem preocupação com a imensa massa dos que nada possuem),
a segurança e a resistência à opressão (art. 2º). O objetivo do governo civil é a garantia
desses direitos individuais. Note-se que a igualdade não figurou entre os “direitos
naturais e imprescritíveis”.57
“O princípio de toda a soberania”, dizia a Declaração, “reside essencialmente na
nação” (art. 3º). Desta forma, os constituintes substituíram a soberania do monarca pela
do “povo”, e, ao fazerem isso, eles anularam o poder pessoal do rei; “de atributo do
56
Apud LEFEBVRE, Georges. A revolução francesa. Tradução de Ely Bloem de Melo Pati. São Paulo:
IBRASA, 1966, p. 147. 57
A igualdade só vai aparecer entre os “direitos naturais” na “Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão” da Constituição do Ano I (1793). De caráter mais social e igualitário, a Declaração de 1793
proclamava que a “a finalidade da sociedade é a felicidade comum”, definia o direito ao trabalho ou
subsistência, a instrução pública e o direito de insurreição no caso de violação dos direitos dos povos. A
Constituição de 1793 estabelecia o sufrágio universal, foi “a primeira constituição genuinamente
democrática proclamada por um Estado moderno.” (HOBSBAWM, ob. cit., p. 87). Porém, jamais foi
aplicada, pois após sua promulgação a Convenção Nacional instituiu um governo de exceção
(revolucionário), que deveria atuar enquanto durasse a guerra com as potências monárquicas.
31
monarca proprietário, o Estado transformou-se em mandatário dos governados, e sua
autoridade subordinou-se às prescrições de uma Constituição”.58
A monarquia não foi
posta em discussão, mas Luís XVI passou a ser “o primeiro funcionário da nação”. 59
Se Luís XIV tinha proclamado: “A nação não se corporifica na
França, ela reside inteiramente na pessoa do rei”; se Luís XV
reafirmara, cem anos mais tarde (3 de março de 1766): “Os direitos e
os interesses da nação, de que se ousa fazer um corpo separado do
monarca, estão necessariamente unidos aos meus e não repousam
senão em minhas mãos”; a Declaração dos direitos humanos e do
cidadão (26 de agosto de 1789) afirma, ao contrário, que o princípio
de toda a soberania reside essencialmente na nação e que nenhum
corpo nem nenhum indivíduo pode exercer autoridade se não emanar
expressamente dela (art. 3º).60
A lei passa a ser a formalização da “vontade geral” (nítida inspiração de
Rousseau), "todos os cidadãos" têm o direito de participar na sua formação,
“pessoalmente, ou por seus representantes” (art. 6º). Na prática, a Constituinte
estabeleceu um regime exclusivamente representativo, não se exercendo a soberania
nacional senão no momento das eleições. Assim, define o título III, art. 2º da
Constituição de 1791: “A Nação, de quem unicamente emanam todos os Poderes, não
pode exercê-los senão por delegação. – A Constituição francesa é representativa”.61
Todos os cidadãos também têm o direito de consentir na tributação (art. 14), que
deveria ser dividida igualmente segundo a capacidade de pagar (art. 13). A necessidade
de uma "força pública" para garantia dos direitos do homem e do cidadão foi incluída
no artigo 12°. No campo penal, fixou-se o princípio da anterioridade da lei penal (art.
8º) e da presunção de inocência (art. 9º). Além disso, a declaração proibia "ordens
arbitrárias" (art. 7°), punições desnecessárias (art. 8º) ou apropriação governamental
abusiva da propriedade, considerada inviolável e sagrada (art. 17). Afirmava que
“ninguém deve ser molestado por suas opiniões, mesmo as religiosas" (art. 10), uma
alusão discreta a tolerância religiosa, enquanto enunciava com mais vigor a liberdade de
58
LEFEBVRE, op. cit., 494. 59
Como explica Lefebvre, não há nessa designação intenção difamante, pois, na época, chamavam-se
funcionários os próprios mandatários políticos do povo, e não seus empregados salariados. (Ibid., p. 151) 60
BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, ob. cit., p. 30. 61
COMPARATO, ob. cit., p. 156.
32
imprensa (art. 11). No artigo 16, estabelece a concepção moderna de Constituição, que
assegura a garantia dos direitos individuais e determina a separação dos poderes.
Num único documento, portanto, os deputados franceses tentaram
condensar tanto as proteções legais dos direitos individuais como um
novo fundamento para a legitimidade do governo. A soberania se
baseava exclusivamente na nação (artigo 3º), e a "sociedade" tinha o
direito de considerar que todo agente público devia prestar contas de
seus atos (artigo 15). Não era feita nenhuma menção ao rei, tradição,
história ou costumes franceses, nem à Igreja Católica. Os direitos
eram declarados "na presença e sob os auspícios do Ser Supremo",
mas por mais "sagrados" que fossem não lhes era atribuída uma
origem sobrenatural. Jefferson tinha sentido a necessidade de afirmar
que todos os homens eram "dotados pelo seu Criador" com direitos,
mas os franceses deduziam os direitos de origens inteiramente
seculares: a natureza, a razão e a sociedade. Durante os debates,
Mathieu de Montmorency havia afirmado que "os direitos do homem
na sociedade são eternos" e "não é necessária nenhuma sanção para
reconhecê-los". O desafio à antiga ordem na Europa não poderia ter
sido mais direto.62
Conquanto a Declaração de 1789 tenha sido precedida pela norte-americana,
foram os princípios de 1789 que constituíram, durante um século ou
mais, a fonte ininterrupta de inspiração ideal para os povos que
lutavam por sua liberdade e, ao mesmo tempo, o principal objeto de
irrisão e desprezo por parte dos reacionários de todos os credos e
facções.63
As críticas conservadoras e reacionárias não tardaram a aparecer. Tão logo
chegam à Inglaterra as notícias de Paris, é publicado em 1790 o panfleto escrito por
Edmund Burke, Reflexões sobre a revolução em França, uma das mais duras e
virulentas críticas aos novos princípios franceses, que desencadeou um frenesi de
discussão em vários idiomas sobre os direitos do homem. Burke, condenando a
abstratividade e pretensa universalidade desses direitos, argumentava: “Não fomos
62
HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009, p. 132. 63
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 9. ed. Rio de Janeiros: Elsevier, 2004, p. 118.
33
preparados e fixados de modo a que sejamos recheados, como pássaros embalsamados
de museus, com farelos e trapos e pedaços miseráveis de papel sujo sobre os direitos do
homem”.64
As réplicas vieram logo em seguida, a mais famosa delas é a de Thomas Paine,
Os direitos do homem, publicado em duas partes, em 1791 e 1792.
"O sr. Burke, com sua costumeira violência", escreveu Paine,
"insultou a Declaração dos Direitos do Homem. [...] A essa chamou de
'pedaços miseráveis de papel borrado sobre os direitos do homem'. O
sr. Burke pretende negar que o homem tenha direitos? Nesse caso,
deve querer dizer que não existem esses tais direitos em nenhum
lugar, e que ele próprio não tem nenhum: pois quem existe no mundo
senão o homem?" Embora a resposta de Mary Wollstonecraft,
Vindication of the Rights of Men, in a Letter to the Right Honourable
Edmund Burke; Occasioned by his Reflections on the Revolution in
France, tivesse sido publicada antes, em 1790, Os direitos do homem
causou um impacto ainda mais direto e estupendo, em parte porque
Paine aproveitou a ocasião para argumentar contra todas as formas de
monarquia hereditária, inclusive a inglesa. A sua obra teve várias
edições inglesas ainda no primeiro ano de sua publicação.65
A polêmica entre os escritores de língua inglesa ajudou a disseminar a
linguagem dos direitos humanos por todo o mundo ocidental.
2.3 A DECLARAÇÃO FRANCESA E AS DECLARAÇÕES NORTE-AMERICANAS
Ao se relacionar a Declaração de Direitos da França às Declarações de Direitos
do Estado Unidos, é preciso atentar-se, em primeiro lugar, para as enormes diferenças
históricas entre a Revolução Americana - a revolta das treze colônias inglesas da costa
64
BURKE, Edmund. Reflexões sobre a revolução em frança. Tradução de Renato Assunção Faria, Denis
Fontes de Souza Pinto e Carmen Lidia Richter Ribeiro Moura. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1982, p. 107. Examinaremos mais detidamente as críticas de Burke no capítulo 4. 65
HUNT, ob. cit., p. 135.
34
leste da América do Norte, contra sua metrópole, entre 1776 e 1783 - e a Revolução
ocorrida na França no século XVIII.
A Revolução Americana não se revestiu do mesmo caráter tão ambiciosamente
universal que caracterizou o grande evento político francês, ela não teve necessidade de
derrubar um estado social aristocrático para instaurar uma sociedade de indivíduos
livres e iguais. O estado social aristocrático, os colonos americanos deixaram-no para
trás, ao deixar a Inglaterra ou a Europa para vir para o “novo mundo”. Além disso, a
Inglaterra já havia se livrado do feudalismo e do absolutismo com as suas revoluções e
desenvolvido noções jurídicas de liberdade individual e garantias pessoais. Essas
noções, com as restrições à participação que existiam na metrópole (como o voto
censitário para as assembléias locais), foram estendidas aos súditos das treze colônias.
Os colonos norte-americanos já possuíam a experiência de autogoverno e herdaram das
revoluções inglesas uma tradição política constitucional/liberal. Assim, o que a
Revolução Americana derrubou não foi o feudalismo e o absolutismo, mas os laços
coloniais com a metrópole. Por isso,
[...] o período da Independência Americana, dito período
revolucionário, não questionava realmente o modo de vida dos
habitantes das colônias, suas relações mútuas ou seus interesses
imediatos. Fora da zona limitada das operações e das desordens
passageiras suscitadas pelas manobras militares, prosseguia e
prosseguiria a mesma existência, sem que se modificassem os
equilíbrios fundamentais. A República federal americana continuou,
sem grandes alterações, um movimento que adquirira no curso do
tempo seus equilíbrios específicos. Pôs-se um presidente no lugar do
monarca constitucional da Inglaterra; o Congresso de Washington
substituiu o distante Parlamento de Londres. Alguns intelectuais
entraram em polêmica, de modo cortês, quanto a essa transformação
dos poderes, que influiu fracamente na vida cotidiana de uma
população habituada ao funcionamento de órgãos representativos. Os
insurretos americanos lançaram mão das armas para garantir uma
liberdade que já possuíam. Qualquer que tenha sido a emoção dos
momentos de crise, a violência dos sobressaltos populares e a coragem
dos combatentes, a liberdade não se iniciou nos Estados Unidos em
1776-1777, em 1783 ou 1787; não foi arrancada das mãos do ‘tirano’
35
de Londres; não deu origem a uma nova ordem de coisas. Ela é
contemporânea do estabelecimento das primeiras colônias. Os colonos
se revoltaram porque tiveram o sentimento de que se queria despojá-
los das prerrogativas de que sempre haviam usufruído. Vê-se aqui,
sem dúvida, uma diferença fundamental entre os acontecimentos da
América e os da França. O que estava em jogo na Revolução Francesa
era uma total mutação da existência comunitária, uma transformação
pela raiz da ordem social, das hierarquias tradicionais, das estruturas
políticas e econômicas, uma redistribuição da propriedade, uma
renovação dos valores psicológicos e morais, que também se afirmou
na ordem da moral, da língua, do costume. Nada seria como antes,
enquanto nos Estados Unidos tudo continuou como antes, com
exceção de certas estruturas políticas. A despeito de alguns violentos
safanões, as colônias da América não foram submersas por um
cataclisma; o abalo permaneceu superficial, e a continuidade
sobrepujou a ruptura. Antes, como depois, habeas corpus é a lei do
país, e os cidadãos votavam para eleger seus representantes nas
assembléias locais.66
Quanto à influência das declarações norte-americanas na elaboração da
declaração francesa, do ponto de vista da própria ideia de uma declaração como algo
que devia preceder a Constituição, é inegável que o exemplo norte-americano
representou um papel decisivo na elaboração da Declaração francesa. 67
E mais do que a
Declaração de Independência dos Estados Unidos de 1776, foram as declarações de
direitos contidas nas Constituições dos Estados norte-americanos (redigidas
separadamente pelas colônias rebeldes após a independência e antes da Constituição Fe-
deral) que serviram de modelo aos deputados franceses em 1789 – em especial a de
Virgínia (12 de junho de 1776) – as quais haviam sido reunidas, traduzidas e publicadas
na França em duas ocasiões, em 1778 e 1783, a segunda sob o patrocínio direto de
Benjamin Franklin.
Ressalta-se que a própria idéia de se publicar uma declaração de direitos à
humanidade, como fizeram os norte-americanos com a Declaração de Independência em
1776, constitui um fato sem precedentes. Como afirma Comparato, “a ideia de uma
66
GUSDORF, Georges. As Revoluções da França e da América. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.
192. 67
BOBBIO, ob. cit., p. 104.
36
declaração à humanidade está intimamente ligada ao princípio da nova legitimidade
política: a soberania popular”.68
Nas cartas de direitos que precederam as declarações de 1776 na América e a de
1789 na França, os direitos ou liberdades não eram reconhecidos como existentes antes
do poder soberano. Sem a concessão do soberano, o súdito jamais teria tido qualquer
direito. Assim, a Magna Carta de1215 formalizou os direitos dos barões ingleses em
relação ao rei inglês; a Petição de Direitos de 1628 confirmou os “diversos Direitos e
Liberdades dos Súditos”; e a Bill of Rights inglesa de 1689 validou “os verdadeiros,
antigos e indubitáveis direitos e liberdades do povo deste reino”.69
Diversamente, a Declaração de Independência de 1776 estabelecia que os
direitos não originavam-se de um acordo entre o governante e os cidadãos, menos ainda
de uma petição a ele ou de uma carta concedida por ele, mas antes da natureza do
homem em geral. Desta forma, elas ajudaram a tornar efetiva uma transferência de
soberania, do monarca para o povo. Os governos são instituídos para assegurar esses
direitos e derivam seus poderes legítimos do consentimento dos governados. A partir de
então, esses direitos universais passaram a ser o fundamento do governo.
A Declaração de Independência dos EUA é o primeiro documento político que
reconhece, além da legitimidade da soberania popular, a existência de direitos inerentes
a todo ser humano, conforme se observa no seu famoso trecho:
Consideramos estas verdades autoevidentes: que todos os homens são
criados iguais, dotados pelo seu Criador de certos Direitos
inalienáveis, que entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca da
Felicidade. – Que para assegurar esses direitos, Governos são
instituídos entre os Homens, derivando seus justos poderes do
consentimento dos governados. – Que, sempre que qualquer Forma de
Governo se torne destrutiva desses fins, é Direito do Povo alterá-la ou
aboli-la [...]7071
68
COMPARATO, ob. cit., p. 118. 69
HUNT, ob. cit., p. 114. 70
Ibid., p. 219. 71
“Grande parte da história norte-americana subsequente seria a implementação das implicações de
princípios tão eloquentemente enunciados no documento.” (MAY, Charles Sellers Henry; MCMILLEN,
Neil R.Uma reavaliação da história dos estados unidos. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro:
Zahar, 1990, p. 72)
37
O texto da Declaração é uma lembrança quase literal dos princípios básicos da
teoria de Lock: direitos naturais, governo instituído para preservar os direitos naturais, e
direito à rebelião.
As "Declarações" e a Constituição americanas tinham claro
fundamento na filosofia jusnaturalista da época e na tradição
constitucional inglesa. Além de limitarem o poder arbitrário dos
governantes sobre a pessoa (o que já existia nos textos anteriores da
ex-metrópole), ampliavam a autonomia dos indivíduos em relação ao
Estado. Tratavam apenas de direitos civis e políticos, nenhuma
cogitação de direitos sociais (isso não cabia no credo liberal). Mesmo
os direitos civis e políticos enunciados, teriam – malgrado o
"universalismo" que perpassava as "Declarações" – que percorrer uma
longa jornada pela frente até começarem a ser estendidos a homens
mais pobres, a escravos, a índios e a mulheres.72
2.4 A UNIVERSALIDADE DA DECLARAÇÃO DE 1789
Como afirma Comparato:
O estilo abstrato e generalizante distingue nitidamente, a Declaração
de 1789 dos bills of rights dos Estados Unidos. Os americanos, em
regra, com a notável exceção, ainda aí, de Thomas Jefferson, estavam
mais interessados em firmar a sua independência e estabelecer o seu
próprio regime político do que em levar a idéia de liberdade a outros
povos.73
Por quase dois séculos, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
incorporou a promessa de direitos humanos universais. Em 1948, quando as Nações
72
TRINDADE, José Damião de Lima. Anotações sobre a história social dos direitos humanos. In:
ESTADO DE SÃO PAULO. Procuradoria Geral do Estado. Direitos humanos: construção da liberdade e
da igualdade. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 1998, Série Estudos, n. 11,
p. 32. “Tanto na Declaração de Virgínia, como na portentosa Declaração de Independência, afirmava-se
que todos os homens são livres e iguais. Mas o próprio Thomas Jefferson, um dos fundadores da nação
americana e redator da Declaração de Independência, continuou — após essa Declaração — a ser
proprietário de quase duas centenas de escravos. Ainda se passariam mais noventa anos até que os
escravos negros fossem legalmente emancipados em toda a extensão do país - e, ainda assim, à custa de
uma guerra civil (1861-1865) que matou mais de 600.000 pessoas”. (Ibid., p. 32) 73
COMPARATO, ob. cit., p. 145.
38
Unidas adotaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o artigo 1º dizia:
"Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos". Em 1789, o
artigo 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão já havia proclamado: "Os
homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos".
Sobre a Declaração, o historiador Jules Michelet destacou o seguinte:
Não se tratava de maneira nenhuma de uma Petição de Direitos, como
na Inglaterra, de um apelo ao direito escrito, às cartas contestadas, às
liberdades, verdadeiras ou falsas, da Idade Média. Não se tratava,
como na América, de ir buscar, de Estado em Estado, os princípios
que cada um deles reconhecia, de resumi-los, generalizar, e com eles
construir, a posteriori, a fórmula total que a federação aceitaria.
Tratava-se de apresentar do alto, em virtude de uma autoridade
soberana, imperial, pontifical, o credo da nova era. Qual autoridade?
A Razão, discutida por todo um século de filósofos, de profundos
pensadores... Tratava-se de impor como autoridade à razão o que a
razão descobrira no fundo do livre exame. Era a filosofia do século,
seu legislador, seu Moisés, que descia da montanha, trazendo na
fronte raios luminosos, e as tábuas nas mãos...74
Para entendermos as razões que levaram a Declaração de 1789 a assumir um
caráter mais universal que a sua equivalente norte-americana, além das já mencionadas
diferenças históricas entre as Revoluções Americana e Francesa, devemos analisar,
ainda que brevemente, as circunstancias de sua elaboração.
O primeiro a apresentar um projeto oficial de declaração à Assembléia Nacional
foi o marquês de La Fayette, herói da Guerra de Independência dos Estados Unidos,
inspirado pelas declarações norte-americanas e muito provavelmente auxiliado por Thomas
Jefferson (então embaixador dos Estados Unidos em Paris), em 11 de julho.
Em resposta à proposta de Lafayette, o conde Lally-Tollendal expressou
preocupação pela possibilidade de a declaração anteceder e assumir uma forma avulsa à
Constituição. Conforme ele declarou à Assembléia,
74
MICHELET, Jules. História da revolução francesa. Da queda da bastilha à festa da federação.
Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 210-211.
39
“os franceses não são um povo infante anunciando seu nascimento ao
universo... um povo colonial quebrando os vínculos com um governo
distante”, mas “um antigo e imenso povo, um dos primeiros do
mundo, o qual adotara para si uma forma de governo para os últimos
quatorze séculos e obedecera a mesma dinastia nos últimos oito, que
apreciava este poder quando o mesmo foi temperado por costumes e
irá reverenciá-lo uma vez que seja regulado pelas leis”. Semelhante
sociedade, concluía Tollendal, poderia ser precipitada rapidamente na
desordem pela propagação de princípios metafísicos e noções
abstratas de igualdade.75
Nos debates da Assembléia sobre a redação da Declaração, o deputado do
Terceiro Estado, Jérome Pétion, rejeita a proposta daqueles que desejavam seguir o
modelo da Declaração de Independência dos Estados Unidos, que referenciava os
acontecimentos históricos envolvendo a Grã-Bretanha e as Colônias que então
alcançavam a independência. Pétion afirmou: “Não se trata aqui de fazer uma
declaração de direitos unicamente para a França, mas para o homem em geral”.76
E
esses direitos, como afirmou o deputado Mathieu de Montmorency (outro veterano da
guerra da independência americana), são “invariáveis como a justiça, eternos como a
razão; eles são de todos os tempos e de todos os países”.77
Nos debates, o duque Mathieu de Montmorency exortou seus colegas deputados
a "seguir o exemplo dos Estados Unidos: eles deram um grande exemplo no novo
hemisfério; vamos dar um exemplo para o universo". 78
Ele defendeu que os franceses
não apenas deviam seguir o exemplo oferecido pelos norte-americanos, como tinham o
dever de “aperfeiçoá-lo”, invocando “mais altamente a razão”.79
Contrário aos deputados da direita moderada, como Mounier e Tollendal
(adeptos da Monarquia temperada, com um sistema bicameral a exemplo da
Constituição inglesa), o deputado da esquerda Emmanuel-Joseph Sieyès foi crítico em
relação às cartas norte-americanas.
75
SOARES, José Miguel Nanni. A declaração francesa de 1789: o atestado de óbito do antigo regime.
In: ANNONI, Danielle et. al. (Org.). A influência da declaração dos direitos do homem e do cidadão
(França, 1789). Curitiba: Multideia, 2013, p. 170-171. 76
Apud COMPARATO, ob. cit., p. 146. 77
Ibid., p. 146. 78
Apud HUNT, ob. cit., p. 117. 79
Apud SOARES, ob. cit., p. 171.
40
Para o abade Sieyès, a Revolução Americana foi pioneira em romper com o
esquema tradicional das declarações de direitos, uma vez que não se limitou em obter
concessões do “senhor” ou “suserano”, mas derrubou por completo o jugo do
despotismo. Contudo, para Sieyès, era inadmissível que um povo que reconquistava sua
soberania mantivesse uma imagem antiga do poder e seus limites.80
Assim, entendia o
deputado que
Ao orientarem sua declaração para uma demanda específica (isto é,
resposta aos agravos imediatos do governo inglês e controle sobre o
futuro governo central), os revolucionários norte-americanos teriam
produzido declarações particularistas (direitos válidos para os
cidadãos de cada um dos estados, não para o “homem” enquanto tal e,
no que tange ao caráter federativo, anteriores à “Nação” ou ao
Estado), sintomas de uma revolução incompleta.81
Com efeito,
Os novos governos estaduais dos Estados Unidos começaram a adotar
declarações individuais dos direitos já em 1776, mas os Artigos da
Confederação de 1777 não incluíam nenhuma declaração de direitos, e
a Constituição de 1787 foi aprovada sem nenhuma declaração desse
tipo. A Bill of Rights americana só passou a existir com a ratificação
das primeiras dez emendas da Constituição, em 1791, e era um
documento profundamente particularista que protegia os cidadãos
americanos contra abusos cometidos pelo seu governo federal. Em
comparação, a Declaração da Independência e a Declaração de
Direitos da Virginia de 1776 tinham feito afirmações muito mais
universalistas. Na década de 1780, os direitos na América tinham
assumido uma posição menos importante do que o interesse em
construir uma nova estrutura institucional nacional. Como
consequência, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
1789 de fato precedeu a Bill of Rights americana, e logo atraiu a
atenção internacional.82
80
SOARES, ob. cit., p. 171. 81
Ibid., p. 171-172. 82
HUNT, ob. cit., p. 126.
41
O objetivo dos constituintes franceses era diverso do dos americanos. Tratava-se
para os franceses, ao elaborarem a Declaração de 1789, de “destruir tudo para
reconstruir tudo”, ou seja, depor a ordem social do Antigo Regime, libertando a nação
dos privilégios aristocráticos e do absolutismo monárquico, e instaurar uma ordem
nova, fundada nos direitos naturais.
Embora redigida num estilo abstrato, cada um dos direitos e liberdades
elencados na Declaração podem ser interpretados como a representação de uma espécie
de antítese contra os fatos concretos que os constituintes haviam suportado e desejavam
combater. Como declarou Mirabeau na Assembleia Constituinte, a Declaração não era
uma lista de declarações abstratas, mas “um ato de guerra contra os tiranos”.83
E os
princípios nela insculpidos iriam transcender largamente não apenas a sua época, mas
também o seu território e os interesses da própria classe burguesa que a redigira. Assim
resume Godechot:
A declaração não é, pois, nem a cópia servil de modelos americanos,
nem a transcrição prematura de ideias filosóficas. Foi uma obra
humana que teve o maio número de contingências históricas no meio
das quais nasceu. Embora redigida pela burguesia francesa do século
XVIII e em seu interesse, ela ultrapassou amplamente, devido à sua
importância, os interesses desta classe, as fronteiras da França e os
limites do século. Ela também despertou no mundo inteiro profundas
repercussões.84
83
BOBBIO, ob. cit., p. 92. 84
GODECHOT, Jacques. As revoluções: 1770-1799. Tradução de Erothildes Millan Barros da Rocha.
São Paulo: Pioneira, 1976, p. 46.
42
CAPÍTULO III – AS CONSEQUÊNCIAS DA DECLARAÇÃO DE 1789
Antes da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, a
humanidade jamais havia sido sujeito de direitos. Em seu artigo 1º, a Declaração afirma
que “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”.85
Não os homens
franceses, não os homens brancos, não os católicos, mas os “homens”, o que tanto
naquela época quanto hoje não significa apenas pessoas do sexo masculino, mas
membros da raça humana. Porém, logo ficou claro que os deputados que com tanta
confiança declararam que esses direitos são universais tinham algo muito menos
inclusivo em mente.
A declaração de direitos de 1789 se destinava a articular os direitos universais da
humanidade e os direitos políticos gerais da nação francesa e dos seus cidadãos. Não
cuidava das diferenças na posição política. Na semana de 20-27 de outubro de 1789, os
deputados aprovaram uma série de decretos estabelecendo as condições de elegibilidade
para votar. Esses requisitos nada diziam sobre religião, raça ou sexo, embora fosse
claramente pressuposto que as mulheres e escravos estavam excluídos.86
Entretanto, como veremos, o universalismo abstrato da Declaração de 1789
acabou por favorecer grupos inicialmente excluídos de determinados direitos,
legitimando uma série de reivindicações.
Os deputados tinham reagido à recomendação insistente do duque de
Montmorency – "dar um grande exemplo" redigido uma declaração de
direitos – e em algumas semanas começaram a descobrir como
podiam ser imprevisíveis os efeitos desse exemplo. "A ação de
afirmar, dizer, apresentar ou anunciar aberta, explícita ou
formalmente", implícita no ato de declarar, tinha uma lógica própria.
Uma vez anunciados abertamente, os direitos propunham novas
questões – questões antes não cogitadas e não cogitáveis. O ato de
declarar os direitos revelou-se apenas o primeiro passo num processo
extremamente tenso que continua até os nossos dias.87
85
Apud COMPARATO, ob. cit., p. 170. 86
HUNT, op. cit., p. 149. 87
Ibid., p. 149.
43
Os grupos que trataremos a seguir buscaram ligar suas reivindicações específicas
ao movimento revolucionário mais amplo que ocorria na França e que teve
consequências no mundo inteiro.
3.1 AS MINORIAS RELIGIOSAS
A Declaração reconhecia a liberdade de religião, mas isso implicava direitos
iguais para as minorias religiosas?
A França era o lar de cerca de 40 mil judeus em 1789, além deter de 100 mil a
200 mil protestantes (os católicos formavam os outros 99% da população). Os
protestantes já haviam ganhado seus direitos civis com o Edito de Tolerância de 1787,
mas eram excluídos dos cargos políticos pela lei desde a revogação do Edito de Nantes,
em 1685.88
Na Assembléia Nacional, eles argumentaram que os princípios gerais
proclamados na Declaração não admitiam exceções, que todos aqueles que preenchiam
as condições de elegibilidade tinham de ser automaticamente elegíveis e que, portanto,
as restrições anteriores contra os protestantes já não eram válidas. A porta estava aberta
para que outros grupos reivindicassem os mesmos direitos.
Ao contrário dos protestantes, que possuíam debutados eleitos na Assembléia
Nacional, os judeus parisienses não passavam de algumas centenas e não tinham status
corporativo. Durantes os debates na Assembléia, a sugestão de conceder direitos
políticos iguais aos judeus, historicamente vítimas de preconceito, suscitou furiosa
resistência.
Em 24 de dezembro de 1789, a Assembléia votou por estender direitos políticos
iguais aos “não-católicos” e a todas as profissões89
, ao mesmo tempo que adiava a
questão dos direitos políticos dos judeus.
88
Ibid., p. 146. 89
Aos carrascos e os atores eram negados direitos políticos no passado por serem considerados
desonrados. Os carrascos porque ganhavam a vida matando pessoas; os atores porque fingiam ser outra
pessoa. (HUNT, ob. cit., p. 147).
44
Apenas um mês depois, os judeus espanhóis e portugueses do sul da França
apresentaram a sua petição à Assembléia, argumentando que, como os protestantes, eles
já estavam participando da política em algumas cidades francesas no sul. Assim, o que
eles pediam era apenas que continuassem a gozar os direitos de cidadãos ativos que eles
já exerciam.
Quando os deputados reconheceram os direitos dos judeus do sul, em janeiro de
1790, foi questão de tempo para que esses direitos fossem estendidos para os outros.
Assim, em 27 de setembro de 1791, a Assembléia revogou todas as suas reservas e
exceções anteriores com respeito aos judeus, concedendo a todos eles direitos iguais.
Em dois anos, portanto, as minorias religiosas tinham ganhado direitos iguais na
França. Embora o preconceito não tenha desaparecido, especialmente com relação aos
judeus, a grandiosidade de tal mudança em tão pouco tempo pode ser percebida ao se
comparar o exemplo francês com a Grã-Bretanha, majoritariamente protestante, onde os
católicos só puderam ser eleitos para o Parlamento britânico depois de 1829, e os judeus
depois de 1858.90
3.2 OS NEGROS E A ESCRAVIDÃO
Em meados do século XVIII, a servidão e a escravidão tornaram-se alvo de
veementes ataques de alguns escritores da Ilustração. A escravidão havia se tornado a
metáfora fundamental da filosofia política ocidental, significando a subordinação
política do homem tanto na Europa absolutista, quanto na América colonial. Esse
deslocamento metafórico se faz presente nos artigos Despotisme e Esclavage da
Encyclopédie de Diderot e D'Alembert, em que a servidão é associada às formas
despóticas e tirânicas de governo.91
É isso que se vê na afirmação de Adam Smith de que um tipo de
escravidão "ainda subsiste na Rússia, Polônia, Hungria, Boêmia,
Morávia, e outras partes da Alemanha. É somente nas províncias do
90
Ibid., p. 160 91
VENTURA, Roberto. Leituras do Abade Raynal na América Latina. In: COGGIOLA, Osvaldo. (Org.).
A revolução francesa e seu impacto na América Latina. São Paulo: Nova Stella, 1990, p. 174.
45
oeste e do sudoeste da Europa, que ela vem sendo gradualmente
abolida", ou na censura de Raynal a Montesquieu, dado que este
último havia dito que cristianismo e escravidão eram incompatíveis:
"na Alemanha católica, na Boêmia, na Polônia, países muito católicos,
o povo é ainda escravo".92
John Locke inicia o seu Dois tratados sobre o governo (1690) declarando que
"A escravidão é uma condição humana tão vil e deplorável, tão diametralmente oposta
ao temperamento generoso e à coragem de nossa Nação, que é difícil conceber que um
inglês, muito menos um fidalgo, tomasse a sua defesa."93
Mas, como observa BUCK-
MORSS,
[...] o ultraje de Locke contra "as cadeias para toda a humanidade" não
era um protesto contra a escravização de africanos negros em
plantações do Novo Mundo, e muito menos em colônias que fossem
britânicas. Pelo contrário, a escravidão era nesse caso uma metáfora
para a tirania legal, conforme o uso corrente nos debates
parlamentares britânicos sobre teoria constitucional. Como acionista
da Real Companhia Africana, envolvida na política colonial
americana na Carolina, Locke "claramente considerava a escravidão
negra como uma instituição justificável". O isolamento do discurso
político do contrato social em relação à economia da produção
doméstica (oikos) tornou possível essa visão dupla. A liberdade
britânica significava a proteção da propriedade privada, e os escravos
eram propriedade privada. Enquanto os escravos se situassem no
âmbito de autoridade doméstica, sua condição era protegida pela lei.94
A publicação do Espírito das Leis (1748) de Montesquieu é considerada um
divisor de águas na evolução da crítica antiescravista. Nele a escravidão é duramente
censurada por ser contrária à moral, ao direito natural, ao espírito da monarquia, ao
92
ROCHA, Antonio Penalves. Idéias antiescravistas da Ilustração da sociedade escravista brasileira.
Revista brasileira de história, São Paulo, v. 20, n. 39, p. 43-79. 2000, p. 38. 93
LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Tradução de Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes,
1998, p. 203. 94
BUCK-MORSS, Susan. Hegel e Haiti. Novos estud. – CEBRAP, São Paulo, n. 90, jul. 2011. Disponível
em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002011000200010> Acesso em:
25 jan. 2014.
46
direito civil e incompatível com o cristianismo, além de considerar o trabalho escravo
menos produtivo que o do homem livre.95
Muito embora Montesquieu tivesse condenado a escravidão, nunca defendeu a
sua extinção imediata. Montesquieu acreditava que a escravidão, empregada em certas
circunstâncias, apesar da injustiça causada pelos abusos que lhe são inerentes, e dos
perigos que representa, teria o seu bom funcionamento garantido se fosse regulada por
leis adequadas. Nesse sentido, afirma que “qualquer que seja a natureza da escravidão,
cumpre que as leis civis procurem dela extirpar, de um lado, os abusos e, de outro, os
perigos”.96
Montesquieu preocupava-se, sobretudo, com a manutenção da ordem nas
colônias, onde, em razão do grande número de escravos, a ameaça de revoltas era
constante: “a benevolência para com os escravos, nos Estados moderados, poderá
prevenir os perigos que se poderia temer de seu número excessivo”.97
Poucos anos depois da publicação do livro de Montesquieu, suas ideias contra a
escravidão foram ordenadas por Jaucourt, que as veiculou nos artigos "Escravidão" e
"Tráfico negreiro" da Enciclopédia.
A História filosófica e política do estabelecimento e comércio dos europeus nas
duas Índias, ou apenas História das Duas Índias, do Abade Raynal98
, publicada em
1770 e revista em 1774 e 1780, aborda a história dos impérios coloniais europeus desde
a descoberta da América. A obra foi um dos manifestos filosóficos mais importantes e
influentes de sua época. A Histoire des Deux Indes marcou o momento em que a crítica
da moderação da escravidão colonial evoluiu para planos de sua supressão gradual.
Na edição de 1774, há uma importante mudança no tema da escravidão colonial,
que assume um tom mais inflamado e ameaçador. Em um trecho da obra, é evocado um
95
Entretanto, Montesquieu se mostra extremamente preconceituoso em relação aos negros: “Não
podemos aceitar a idéia de que Deus, que é um ser muito sábio, tenha introduzido uma alma, sobretudo
uma alma boa, num corpo completamente negro” [...] “É impossível supormos que tais gentes sejam
homens, pois, se os considerássemos homens, começaríamos a acreditar que nós próprios não somos
cristãos.” (MONTESQUIEU. O espírito das leis. Coleção Os Pensadores, XXI. São Paulo: Abril, 1973, p.
223) 96
Ibid., p. 225. 97
Ibid., p. 227. 98 “Como tantas outras grandes obras do enciclopedismo, a famosa Histoire des Deux Indes foi na
realidade obra coletiva: Valadier, Deleyre, Pechméja, St. Lambert e Diderot nela amplamente
colaboraram. [...] De importância decisiva parece ter sido a contribuição de Diderot, que radicalizou as
posições anticolonialistas de Raynal.” (NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na Crise do Antigo
Sistema Colonial (1777-1808). 8.ed. São Paulo: HUCITEC, 2005)
47
futuro líder, “um novo Spartacus”, que guiaria as massas escravas na sua luta pela
liberdade e na vingança pelos séculos de sofrimento.
As rebeliões de escravos na colônia francesa de São Domingos e a Revolução
Haitiana em 1791 dão a algumas passagens da História das Duas Índias, como o apelo
ao Spartacus negro (que, no futuro, seria associado à Toussaint Louverture), um tom
profético, gerando o temor de uma ampla revolta racial:
Onde está esse grande homem que a natureza deve a seus filhos
vexados, oprimidos, atormentados? Onde está ele? Ele aparecerá, não
duvidemos, ele se mostrará, ele elevará o estandarte sagrado da
liberdade. Esse sinal venerável reunirá ao seu redor os companheiros
de seu infortúnio. (...) Os campos americanos se inebriarão de forma
arrebatada com um sangue aguardado há tempos, e as ossadas de
tantos infelizes amontoadas há três séculos tremerão de alegria.99
No entanto, os escritores da Ilustração como Raynal jamais tiveram a intenção
de incitar os escravos à revolta, predicando a sua sublevação. Na verdade, a ideia da
revolta foi usada para fins retóricos, a fim de chamar a atenção para as atrocidades
cometidas nas colônias contra os negros e persuadir por intimidação seus
contemporâneos sobre a necessidade de reformar a escravidão e preparar sua abolição
gradual. Um exemplo desta nova posição gradualista encontra-se nas Reflexões sobre a
Escravidão dos Negros (1781) de Condorcet, que seria a base do programa da
“Sociedade dos Amigos dos Negros”.
Somente na década de 1780, foram fundadas sociedades abolicionistas na
Europa, tendo sido a primeira delas criada na Inglaterra, em 1783, para lutar pelo fim do
tráfico negreiro. Mas, suas atividades só se iniciaram efetivamente em 1787, quando
passou a se chamar "Sociedade pela abolição do tráfico e da escravidão dos negros".
Seguindo o modelo inglês, os abolicionistas na França criaram em 1788 a Société des
Amis des Noirs (Sociedade dos Amigos dos Negros), formada por algumas das maiores
figuras da Revolução, como Brissot, La Fayette, Mirabeau, Condorcet, Clavière, Sieyès,
Grégoire, Pétion, etc. Era uma sociedade de elite, composta por nobres, homens de
letras e de finanças. A sociedade defendia meios para amenizar o estado dos negros e
abolir a escravidão de forma gradual, primeiramente o tráfico, dentro dos limites ditados
99
Apud VENTURA, ob. cit., p. 173.
48
pela continuidade da produção colonial. Os Amigos dos Negros atacavam a escravidão,
mas não a preservação da ordem colonial. Estavam, portanto, longe de pregar algum
tipo de revolução nas colônias ou fomentar a insurreição dos escravos. Porém, sua causa
esbarrava no quadro de uma revolução que tinha no comércio de produtos coloniais uma
de suas bases econômicas.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, ao proclamar que
todos os homens nasciam e permaneciam livres e iguais em direito, não mencionava os
negros, mas não abria nenhuma exceção à sua universalidade. No plano do discurso, a
Revolução Francesa era apresentada como um movimento pela liberdade, não só da
França, mas de todos os povos contra a tirania e a opressão. Essa percepção encontrava,
entretanto, seu primeiro limite na questão colonial.
Os revolucionários franceses sempre se viram a si mesmos como um
movimento de libertação que livraria as pessoas da "escravidão", das
iniquidades feudais. Em 1789, os lemas "Liberdade ou morte" e
"Antes a morte que a escravidão" eram correntes, e a "Marseillaise"
denunciava l'esclavage antique ["a escravidão antiga"] nesse contexto.
Era uma revolução não apenas contra a tirania de um governante
específico, mas contra todas as tradições antigas que violavam os
princípios gerais da liberdade humana. [...] Mas e as colônias, a fonte
da riqueza de uma porção tão grande da população francesa? O
significado da liberdade estava em jogo em sua reação aos eventos de
1789, e em lugar nenhum mais do que na joia da coroa, Saint-
Domingue.100
As colônias ocupavam um lugar primordial na organização econômica da França
do final do século XVIII. A principal delas era Saint-Domingue (hoje Haiti), a “pérola
das Antilhas”.
Em 1789, a colônia francesa das Índias Ocidentais de São Domingos,
representava dois terços do comércio exterior da França e era o maior mercado
100
BUCK-MORSS, Susan, op. cit.
49
individual para o tráfico negreiro europeu. Era a colônia mais produtiva do mundo, sua
estrutura era sustentada pelo trabalho de meio milhão de escravos.101
Além dos escravos negros, havia em São Domingos cerca de trinta mil brancos e
um número um pouco inferior de mulatos livres. Excluídos por decreto real de praticar a
maioria das profissões ou até de adotar o nome de parentes brancos, os livres de cor
eram, na sua maioria, artesãos, pequenos comerciantes e pequenos proprietários. Mas
também havia mulatos donos de grandes propriedades. Em 1789, eles possuíam cerca
de um terço das plantações e um quarto dos escravos de São Domingos. O grande
aumento da população escrava em São Domingos se tornava uma ameaça à conservação
da ordem, o que só fortalecia a segregação racial por parte dos brancos.
Com a chegada das notícias da Revolução em São Domingos, a sociedade
colonial viu-se dividida. Os ricos plantadores brancos exigiam uma maior autonomia na
gestão de seus interesses e ameaçavam exigir a independência. Os brancos mais pobres,
por outro lado, esperavam que a revolução na França lhes trouxesse compensação
contra os brancos mais ricos, no intuito de obter maior poder político na colônia.
Se os brancos viam na Revolução a oportunidade de se livrar do pacto colonial,
os homens de cor livres viram nela uma oportunidade de reivindicar os seus direitos de
cidadania e o fim das leis discriminatórias.
Um de seus delegados em Paris em 1789, Vincent Ogé, tentou
conquistar os cultivadores brancos enfatizando os seus interesses
comuns como donos de plantações: "Veremos derramamento de
sangue, nossas terras invadidas, os objetos de nosso trabalho
destruídos, nossas casas queimadas [...] o escravo levará a revolta
mais longe". A sua solução era conceder direitos iguais aos homens de
cor livres como ele próprio, que então ajudariam a conter os escravos,
ao menos por um tempo.102
Em 8 de março de 1790, os deputados votaram por excluir as colônias da
Constituição e portanto da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. O decreto
ainda considerava criminoso todo aquele que procurasse incitar levantes contra os
101
SAES, Laurent Azevedo Marques de. A Société des Amis des Noirs e o movimento antiescravista sob a
Revolução francesa (1788-1802). Tese de Doutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2013. 102
HUNT, ob. cit., p. 163.
50
colonos. “Na sua primeira abordagem colonial, a Assembleia Constituinte traía
completamente os princípios e os direitos por ela proclamados menos de um ano
antes”.103
Vincent Ogé deixou Paris em maio de 1790, para reivindicar os direitos dos
homens de cor em São Domingos. Chegou à ilha em outubro e liderou uma revolta de
mulatos livres. A revolta fracassou, e Ogé e seus companheiros foram condenados ao
suplício da roda.104
Em Paris, a agitação contínua dos Amigos dos Negros conquistou um decreto,
em maio de 1791, que concedia direitos políticos a todos os homens de cor livres
nascidos de mães e pais livres. Porém, diante de uma forte pressão do partido colonial
contra o decreto, alertando para os perigos que dele resultariam, ele acabou sendo
revogado em setembro do mesmo ano. Numa tentativa de conciliação, no mesmo mês
foi aprovada uma lei que declarava que todo homem que entrasse no território francês
seria livre e admissível a todos os direitos previstos na Constituição. A lei reconhecia,
desta forma, os direitos políticos dos negros e homens de cor residentes na metrópole e
que preenchiam as condições para a cidadania ativa.
A Constituição, proclamada em setembro de 1791, dispunha, no Título
VII, art. 8º, que: “As colônias e as posses na Ásia, África e América,
embora façam parte do Império francês, não estão compreendidas na
presente Constituição”. Mais do que nunca, o que valia para a
metrópole não valia para as colônias. Enquanto, no território francês,
prevalecia o princípio da liberdade e o fim das discriminações, nas
colônias, consolidava-se um sistema baseado na segregação e na
desigualdade jurídica dos indivíduos. Para manter viva a ordem
escravista colonial, erigia-se uma ordem constitucional distinta.105
Entretanto, a 22 de agosto de 1791, tinha início um evento que abalaria o mundo
colonial francês: a insurreição dos escravos negros em São Domingos. Enquanto mesmo
os mais ardentes opositores da escravidão na França esperavam passivamente por
mudanças, os escravos em São Domingos tomavam nas próprias mãos as rédeas da luta
103
SAES, ob. cit., p. 210 104
HUNT, ob. cit., p. 163. 105
Ibid., p. 290.
51
pela liberdade, não através de petições, mas por meio de uma revolta violenta e
organizada.
A revolta dos escravos havia atraído até 10 mil insurgentes já no final de agosto
de 1791, um número que continuava a crescer rapidamente. Bandos armados de
escravos massacravam os brancos, queimavam os campos de cana-de-açúcar, as casas
das plantações e as paróquias. Os colonos imediatamente culparam os Amigos dos
Negros de terem estimulado a insurreição negra, pregando ideias de liberdade e
igualdade desmedidamente. Mas, para os Amigos dos Negros, a revolta escrava não era
uma via legítima para a supressão da escravidão: ela tinha que ser contida antes que um
processo de emancipação gradual pudesse ter início.
A conjuntura revolucionária havia criado as condições para que a revolta escrava
assumisse um caráter verdadeiramente abolicionista. Embora inicialmente as
motivações concretas dos escravos nada tivessem a ver com a Revolução na metrópole,
esta não apenas forneceu o contexto para uma insurreição generalizada, mas permitiu
aos escravos que ampliassem seus horizontes, concebendo a própria liberdade como o
resultado de uma transformação revolucionária do sistema que os oprimia.
Tendo inicialmente rejeitado a visão dos Amigos dos Negros, um número cada
vez maior de deputados em Paris começou desesperadamente a endossá-la no início de
1792. O resultado foi o decreto de 24 de março de 1792, que concedia a igualdade plena
de direitos a todas as pessoas de cor livres das colônias. Os deputados esperavam que os
homens de cor livres pudessem barrar a revolta escrava. Deputados como Armand-Guy
Kersaint, antigo senhor de escravos, passaram a defender a própria abolição gradual da
escravidão.
No verão de 1793, as colônias francesas estavam em total sublevação.
Uma república havia sido declarada na França, e a guerra agora
opunha a nova república à Grã-Bretanha e à Espanha no Caribe. Os
cultivadores brancos procuraram fazer alianças com os britânicos.
Alguns dos escravos rebeldes de Saint Domingue juntaram-se aos
espanhóis, que controlavam a metade leste da ilha, Santo Domingo,
em troca de promessas de liberdade para si mesmos. Mas a Espanha
não tinha a menor intenção de abolir a escravidão. Em agosto de 1793,
52
enfrentando um colapso total da autoridade francesa, dois comissários
enviados da França começaram a oferecer a emancipação aos escravos
que lutavam pela República Francesa, e depois também a suas
famílias. Além disso, prometiam concessões de terra. No final do mês,
estavam prometendo liberdade a províncias inteiras. O decreto
emancipando os escravos do norte abria com o artigo 1º da Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão: "Os homens nascem e
permanecem livres e iguais em direitos". Embora inicialmente
temerosos de uma trama britânica para solapar o poder francês por
meio da libertação de escravos, os deputados em Paris votaram por
abolir a escravidão em todas as colônias em fevereiro de 1794.106
No período da Convenção Republicana Jacobina (2 de junho de 1793 a 28 de
julho de 1794), a Revolução atinge seu ponto mais fundo, em que o domínio da
Montanha na Convenção Nacional e a instauração de uma ditadura jacobina de salvação
pública apoiada nos sans-culottes permitiram vencer as resistências quanto à promoção
de um relativo igualitarismo social. Os movimentos populares tiveram importância
fundamental na aprovação da lei de abolição.
O decreto de 4 de fevereiro de 1794, além de abolir a escravidão dos negros em
todas as colônias, decretava que “todos os homens, sem distinção de cor, domiciliados
nas colônias, são cidadãos franceses e gozarão de todos os direitos garantidos pela
constituição.”107
Num momento em que a distinção entre cidadãos ativos e passivos
tinha sido suprimida, isso significava que os antigos escravos eram agora eleitores e
tinham sido incorporados à ordem republicana francesa. O decreto – ao contrário da
abolição final de 1848 – recusava qualquer tipo de indenização aos proprietários de
escravos.
A Revolução Francesa tinha levado cinco anos para aplicar à escravidão os
princípios da Declaração dos direitos, a “liberdade universal”. A universalidade dos
seus ideais foi posta em prática. A abolição não era uma conseqüência da corrente
antiescravista desenvolvida a partir da metade do século XVIII, representada pelos
Amigos dos Negros, que defendiam a superação gradual da escravidão.
106
HUNT, ob. cit., p. 165. 107
SAES, ob. cit., p. 419.
53
“A abolição era o resultado da ascensão de um ideal abolicionista
radical impulsionado pela revolta dos escravos em São Domingos e
favorecido por fatores conjunturais importantes, tais como a guerra
externa e a evolução da Revolução na França para um republicanismo
de base popular. A insurreição escrava nas colônias, a postura
contrarrevolucionária dos colonos e a ameaça estrangeira forneceram
o impulso necessário para que se passasse do plano das ideias para o
plano da ação política concreta.108
Mais uma vez, a potente combinação de teoria (declaração dos direitos) e prática
(nesse caso, franca revolta e rebelião), forçou os deputados a reconhecer a
aplicabilidade dos direitos do homem em lugares, e em relação a grupos, que eles
tinham originalmente esperado excluir desses direitos. Os escravos utilizaram-se do
discurso dos revolucionários franceses para legitimarem sua luta.
Embora os escravos talvez não tivessem compreendido todas as
sutilezas da doutrina dos direitos do homem, as próprias palavras
passaram a ter um efeito inegavelmente talismânico. O ex-escravo
Toussaint Louverture, que se tornaria em breve o líder da revolta,
proclamou em agosto de 1793 que "Eu quero que a Liberdade e a
Igualdade reinem em Saint Domingue. Trabalho para que elas passem
a existir. Uni-vos a nós, irmãos [companheiros insurgentes], e lutai
conosco pela mesma causa". Sem a declaração inicial, a abolição da
escravatura em 1794 teria permanecido inconcebível.109
Foram necessários anos de derramamento de sangue antes que a escravidão - não
apenas sua metáfora, mas a escravidão real - fosse abolida nas colônias francesas, e
mesmo então os ganhos foram apenas temporários. Entre o verão de 1794 e 1802, a obra
abolicionista da Convenção Jacobina deu gradualmente lugar ao retorno da política
colonial escravista do Antigo Regime e da Constituinte.
Em 1802, Napoleão enviou uma imensa força expedicionária da França sob o
comando do próprio cunhado, o general Leclerc, para capturar Toussaint Louverture e
restabelecer a escravidão nas colônias francesas. Mas, ao contrário de suas expectativas,
defrontou-se com uma resistência feroz. Diante da valentia dos negros, excedeu-se na
108
SAES, ob. cit., p. 422. 109
HUNT, ob. cit., p. 166-167.
54
prática de crueldades. O país foi reduzido a cinzas pelos incêndios ateados pelos
combatentes dos dois lados. Preso e transportado de volta para a França, Toussaint
morreu na prisão, em abril de 1803, louvado pelo poeta inglês William Wordsworth110
e
celebrado pelos abolicionistas em toda parte.
Mas a deportação de Toussaint não trouxe a vitória para Leclerc. Jean-Jacques
Dessalines e outros líderes negros prosseguiram o combate e conseguiram derrotar e
expulsar o exército francês. No processo da luta, massacraram a maioria dos brancos,
que antes dominavam a colônia. Dos 60 mil soldados franceses, suíços, alemães e
poloneses enviados à ilha, apenas uns poucos milhares retornaram ao outro lado do
oceano. Os outros tinham tombado em combates ferozes ou pela febre amarela que
dizimou milhares, inclusive o comandante-chefe das forças expedicionárias, Leclerc.111
Em 1º de janeiro de 1804, Dessalines deu o passo final ao declarar
independência da França, combinando, assim, o fim da escravidão com o fim da
condição colonial. O novo Estado foi batizado Haiti, nome indígena original da ilha.
O sangrento desfecho da história colonial da Revolução Francesa é revelador dos
limites – geográficos, mas também políticos e econômicos – que ela, revolução liberal e
burguesa, foi incapaz de ultrapassar, a despeito de sua vocação universalista.
[...] a lei consular de 30 floreal do ano X (20 de maio de 1802), ao
restabelecer o tráfico e a escravidão nas colônias francesas, falaria
expressamente em restaurá-los tal como eram praticados em 1789, o
que era estranho visto que medidas abolicionistas só foram adotadas
em 1793-94. A referência a 1789 não faz sentido a não ser pelo fato de
que, a despeito das intenções da maioria da burguesia revolucionária,
a Revolução francesa, ao entrar em contato com as realidades
colônias, desencadeou, de imediato, um curso de eventos cujos
110
Wordsworth escreveu o poema Para Toussaint L’Overture (1803): “Toussaint, o mais infeliz dos
homens!/ Se o Rústico sibilante lavra terra/ Ao alcance do teu ouvido, ou se tua cabeça estiver agora/
Repousando na cova de uma profunda masmorra/ Sem ouvidos; - Ó miserável Capitão! Onde e quando/
Terás paciência! Mas não morras;/ Usa em tuas algemas uma fronte jovial;/ Embora caído, para nunca
mais levantar,/ Vive e consola-te. Deixaste para trás/ Poderes que trabalharão por ti; ar, terra, céus;/ Não
há sopro de vento comum/ Que te esquecerá; tens grandes aliados;/ Teus amigos são exultações, agonias,/
E amor, e a mente invencível do homem.” (apud HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Tradução
de Berilo Vargas. 4.ed. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 131) 111
HUNT, op. cit. p. 168.
55
resultados superaram até mesmo as pretensões dos antiescravistas da
metrópole.112
Em 1807, a Grã-Bretanha votou pelo fim da participação no tráfico de escravos e
em 1833 aboliu a escravidão nas colônias britânicas. Na França, foi necessária uma
nova revolução, a republicana de 1848, para o país suprimir definitivamente a
escravidão. “A escravidão não pode existir em nenhuma terra francesa”, declara o artigo
6º da Constituição Francesa de 1848.
A história nos Estados Unidos foi mais sombria porque a Convenção
Constitucional de 1787 não concedeu ao governo federal o controle
sobre a escravidão. Apesar de o Congresso ter também votado a
proibição da importação de escravos em 1807, os Estados Unidos só
aboliram oficialmente a escravidão em 1865, quando a 13ª emenda da
Constituição foi ratificada. Além disso, o status dos negros livres na
realidade declinou em muitos estados depois de 1776, atingindo o seu
nadir no notório caso Dred Scott, de 1857, quando a Suprema Corte
dos Estados Unidos declarou que nem os escravos nem os negros
livres eram cidadãos. Dred Scott só foi derrubado em 1868, quando a
14ª emenda da Constituição dos estados Unidos foi ratificada,
garantindo que "Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos
Estados Unidos e sujeitas à sua jurisdição são cidadãos dos Estados
Unidos e do estado em que residem".113
O Brasil foi a última nação do continente americano a abolir a escravidão, em 13
de maio de 1888. A abolição da escravidão não alterou a situação marginalizada dos
negros na sociedade brasileira e a discriminação racial persistiu, conforme observa
Florestan Fernandes:
O sistema de castas foi abolido legalmente. Na prática, porém, a
população negra e mulata continuou reduzida a uma condição social
análoga à preexistente. Em vez de ser projetada, em massa, nas classes
sociais em formação e diferenciação, viu-se incorporada à “plebe”,
como se devesse converter-se numa camada social dependente e
tivesse de compartilhar uma “situação de casta” disfarçada. Daí resulta
que a desigualdade racial manteve-se inalterável, nos termos da ordem
112
SAES, op. cit., p. 25 113
HUNT, op. cit., p. 161.
56
racial inerente à organização social desaparecida legalmente, e que o
padrão assimétrico de relação social tradicionalista (que conferia ao
“branco” supremacia quase total e compelia o “negro” à obediência e
à submissão) encontrou condições materiais e morais para preservar-
se em bloco.114
3.3 OS DIREITOS DAS MULHERES
No século XVIII, as mulheres eram vistas como dependentes de seus pais e
maridos, um estado definido pelo seu status familiar, e assim, por definição, não
plenamente capazes de autonomia política. O espaço da mulher na sociedade era
claramente definido como sendo o espaço privado. A mulher que atuava nos territórios
“masculinos” da cultura e da política era repudiada em favor da mulher doméstica,
limitada ao cuidado do lar e da família. Na obra Emílio, Rousseau propõe o modelo de
uma educação feminina exclusivamente voltada para o casamento, à submissão ao
homem, a maternidade e domesticidade.115
Apesar disso, durante a Revolução Francesa, dezenas de milhares de mulheres
entraram na arena política. Elas tiveram atuação vigorosa na militância política das
classes populares no período inicial da Revolução, participando intensamente do
movimento revolucionário, organizando-se em clubes políticos e exercendo na prática
alguns direitos políticos reservados aos homens. As militantes adquiriram uma
visibilidade nunca antes imaginada para mulheres do povo, despertando o interesse e a
inquietação de integrantes do governo acerca da questão dos direitos civis e políticos
femininos.
114
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Difusão Européia do Livro,
1972, p. 85. 115
“[...] a mulher foi feita especialmente para agradar ao homem. [...] Se a mulher foi feita para agradar e
ser subjugada, deve tornar-se agradável ao homem em vez de provocá-lo; sua violência própria está em
seus encantos; é por eles que ela deve forçá-lo a descobrir sua força e a usar dela”. (ROUSSEAU, J.-J.
Emílio, ou, Da educação. Tradução Roberto Leal Pereira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 517).
57
As mulheres não constituíam uma categoria política claramente separada e
distinguível antes da Revolução. Como categoria, elas não apareceram nas discussões
da Assembleia Nacional entre 1789 e 1791.116
No final de 1789, direitos iguais para a classe feminina era algo quase
impensável para quase todo mundo, tanto homens quanto mulheres. Entretanto, depois
da promulgação da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, uma minoria
ousou reivindicar os direitos das mulheres como parte dos direitos humanos universais.
Entre eles, destacaram-se o marquês de Condorcet, Olympe de Gouges e Mary
Wollstonecraft.
O filósofo iluminista Condorcet foi o mais aberto defensor masculino dos
direitos políticos das mulheres durante a Revolução. Em julho de 1790, publicou em um
jornal o ensaio Sur l'admission des femmes au droit de cité (“Sobre a admissão das
mulheres aos direitos da cidadania”), tornando explícito o fundamento lógico dos
direitos humanos:
[...] os direitos dos homens resultam simplesmente do fato deles serem
racionais, sensíveis, capazes de adquirir ideias de moralidade e de
raciocinar com relação a estas ideias. Ora, se as mulheres têm essas
mesmas qualidades, elas têm necessariamente os mesmos direitos. Ou
todos os indivíduos da espécie humana não podem desfrutar de
nenhum direito verdadeiro, ou todos têm os mesmos direitos; e aquele
ou aquela que votar contra os direitos de seu semelhante, seja qual for
sua religião, cor ou sexo, por este fato irá abjurar os seus próprios
direitos.117
Sobre o trecho acima, observa Hunt:
Aí estava a filosofia moderna dos direitos humanos na sua forma pura,
claramente articulada. As particularidades dos humanos (excluindo-se
talvez a idade, as crianças ainda não sendo capazes de raciocinar por
116
HUNT, ob. cit., p. 170. 117
CONDORCET, Marquês de. Sobre a admissão das mulheres aos direitos da cidadania. Tradução de
Paulo Costa Galvão. Disponível em: < http://www.revistasol.com.br/nabigcondorcettrad.html> Acesso
em: 15 fev. 2014.
58
conta própria) não devem pesar na balança, nem mesmo dos direitos
políticos.118
Condorcet se opõe à farta argumentação sobre as razões “naturais” para a
discriminação das mulheres, sua sujeição aos maridos (a qual chama de “tirania da lei
civil”) e sua pretensa inferioridade. Ele desafiava os seus leitores a reconhecer que as
mulheres sempre tiveram direitos, absolutamente os mesmos que os dos homens, e que
a força do costume os cegara para essa verdade fundamental.
Poderia haver prova mais forte do poder que tem o hábito, mesmo
entre homens sábios, do que ouvir-se invocar o princípio da igualdade
de direitos em favor de talvez uns 300 ou 400 homens - os quais
tinham sido privados deles por preconceitos absurdos - e esquecer
esses direitos com relação a doze milhões de mulheres?119
O filósofo elenca uma série de grandes mulheres da história, como a rainha
Elizabeth da Inglaterra e as duas Catarinas da Rússia, para demonstrar a hipocrisia de se
julgar as mulheres inferiores moral e intelectualmente, incapazes para exercerem todas
as funções públicas, embora fossem capazes de exercer a realeza e funções tipicamente
masculinas, muitas vezes superando os próprios homens:
Será possível manter que a Senhora Macauley não teria expressado
suas opiniões na Casa dos Comuns melhor que muitos dos
representantes da nação britânica? Lidando com a questão da
liberdade de consciência, não teria ela expressado princípios mais
elevados que os de Pitt, bem como um raciocínio mais poderoso?
Apesar de ser uma entusiasta da causa da liberdade tão grande quanto
o pôde ser Mr. Burke, embora fosse opositora dele, enquanto
defendendo a Constituição Francesa teria ela feito uso duma falta de
senso tão absurda e ofensiva quanto a que este celebrado retórico usou
para atacar essa Constituição? Em 1614, não teria a filha adotiva de
Montaigne melhor defendido os direitos dos cidadãos em França do
que o Conselheiro Courtin, que acreditava em magia e em poderes
ocultos? Não era a Princesa de Ursins superior a Chamillard? O
Marquês de Chatelet escreveria tão bem quanto escreveu Madame
Rouillé? Teria Mme. de Lambert feito leis tão absurdas e bárbaras
118
HUNT, ob. cit., p. 171. 119
CONDORCET, ob. cit.
59
quanto as da "garde dês Sceaux" ou as de Armenouville, contra os
Protestantes, contra invasores da privacidade doméstica, os ladrões e
os negros? Examinando a passada lista dos que governaram o mundo,
os homens têm pouco direito de serem considerados seres tão
elevados.120
Assim, Condorcet121
derruba, um a um, os argumentos comumente utilizados na
época como desculpas para continuar recusando às mulheres o desfrute dos direitos da
cidadania. No entanto, as ideias de Condorcet sobre os direitos cívicos femininos
tiveram pouca repercussão entre os líderes revolucionários.
A dramaturga e escritora francesa Olympe de Gouges (1748-1793) encabeçou a
luta pelos direitos da mulher durante a Revolução Francesa. A sua Declaração dos
Direitos da Mulher e da Cidadã (1791), dirigida à rainha Maria Antonieta, inverteu a
linguagem da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e insistia que "A
mulher nasce livre e permanece igual ao homem em direitos" (artigo 1º)122
. Olympe de
Gouges argumentava que todos os direitos dos homens, enumerados pelos
revolucionários em 1789, também pertenciam às mulheres. Tendo-se oposto à execução
de Luís XVI, ela mesma foi morta na guilhotina em 1793.
Na Inglaterra, as mesmas preocupações com as mulheres foram expressas pela
escritora Mary Wollstonecraft. Em Vindication of the Rights of Woman (1792),
manifesto escrito em tom urgente e apaixonado, ela impelia a sociedade e as próprias
mulheres a lutar por mudanças de atitude e de mentalidade capazes de tornar mais digno
o seu lugar na vida social, acabando com todas as formas de despotismo na sociedade.
Na obra, a escritora critica o modo como as mulheres foram orientadas a
permanecer inocentes (“como é chamada polidamente a ignorância”123
) e submeter-se
cegamente à autoridade. Um tipo de educação que visa a superficialidade e a
dependência, que as orienta a ter como único objetivo o casamento, tornado-as um
simples objeto de desejo. A escritora ressalta que as mulheres não foram criadas apenas
para saciar o apetite do homem, ou para servi-lhes de serva; não era natural nelas ter sua
existência voltada para agradar e atrair os homens. Era fundamental, portanto, explicava
120
Ibid. 121
Ibid. 122
GOUGES, Olympe de. Declaração dos Direitos da Mulher. In: ISHAY, Micheline R. (Org.). Direitos
humanos: uma antologia. Tradução de Fábio Duarte Joly. São Paulo: Edusp, 2013, p. 250. 123
WOLLSTONECRAFT, Mary. Os direitos da mulher. In: ISHAY, ob. cit., p. 263.
60
Wollstonecraft, que as mulheres fortalecessem suas mentes e seu senso moral de
responsabilidade por meio de uma educação pública e igualitária, que as tornasse
independentes, capazes de tomar as próprias decisões.
Uma vez desencadeado o momentum, os direitos das mulheres não
ficaram limitados às publicações de uns poucos indivíduos pioneiros.
Entre 1791 e 1793, as mulheres estabeleceram clubes políticos em ao
menos cinquenta cidades provincianas e de maior porte, bem como em
Paris. Os direitos das mulheres começaram a ser debatidos nos clubes,
em jornais e em panfletos. Em abril de 1793, durante a consideração
da cidadania numa nova proposta de Constituição para a república, um
deputado argumentou detalhadamente em favor de direitos políticos
iguais para as mulheres. A sua intervenção mostrava que a idéia tinha
ganhado alguns adeptos. "Há sem dúvida uma diferença", ele admitia,
"a dos sexos [...] mas não compreendo como uma diferença sexual
contribui para uma desigualdade nos direitos. [...] Vamos antes nos
desvencilhar do preconceito do sexo, assim como nos liberamos do
preconceito contra a cor dos negros." Os deputados não seguiram a
sua orientação.124
Em outubro de 1793, após lutas nas ruas entre militantes da Sociedade das
Republicanas Revolucionárias e vendedoras de mercado a respeito do uso de insígnias
revolucionárias, o deputado Fabre d´Églantine expressou suas preocupações com as
sociedades de mulheres. Para o deputado, tais sociedades não eram “compostas de mães
de família, moças de família, irmãs ocupadas com irmãos mais novos, mas sim espécies
de aventureiras, cavaleiras errantes, jovens emancipadas, granadeiras”.125
Églantine
considerava que as revolucionárias não eram respeitáveis, porque não eram mães ou
moças dedicadas à família.
No dia seguinte, Jean-Batiste André Amar, relator do Comitê de Segurança
Geral, apresentou um relatório sobre as sociedades de mulheres. No documento, não só
negava às mulheres o direito de se reunir em Sociedades populares, como julgava que o
sexo feminino como um todo era incapaz de exercer direitos políticos.126
A Convenção
124
HUNT, ob. cit., p. 172-173. 125
Apud MORIN, Tania Machado. Práticas e representações das mulheres na revolução francesa –
1789-1795. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2009, p. 148-149. 126
Ibid., p. 148.
61
votou por suprimir todos os clubes políticos femininos. Derrotadas politicamente, as
militantes passaram a simbolizar o modelo negativo de comportamento feminino. As
razões apresentadas pelo deputado são relevantes para a compreensão da repressão
política das ativistas:
“As funções privadas às quais a mulher está destinada pela natureza se
relacionam à ordem geral da sociedade; tal ordem resulta da diferença
existente entre o homem e a mulher. Cada sexo foi chamado a um
gênero de ocupação que lhe é próprio, sua ação está circunscrita num
círculo que ele não pode ultrapassar (...) o homem é forte, robusto,
nascido com grande energia, audácia e coragem (...) só ele tem a
inteligência e a capacidade para meditações profundas e sérias que
exigem um grande controle do espírito e longos estudos que a mulher
não foi feita para seguir. Qual é o caráter da mulher? A moral e os
bons costumes determinam as suas funções: começar a educação dos
homens, preparar o espírito e o coração das crianças de acordo com as
virtudes públicas (...)127
Para o deputado, as mulheres não tinham o conhecimento, a dedicação ou a
impassibilidade exigidos para governar. Deviam se ater aos cuidados que a natureza
lhes reservou. Seu discurso deriva de um ideal de mulher típico de alguns filósofos do
Iluminismo, como Rousseau, que inscreviam as desigualdades de gênero nas leis
naturais. Os homens eram biologicamente fortes, audaciosos e empreendedores; as
mulheres eram o seu oposto: fracas, sensíveis e intelectualmente inferiores. Assim,
recusa-se qualquer papel intelectual e político às mulheres; uma carreira pública
destruiria a família, fundamento da sociedade e base da ordem natural.
A honestidade de uma mulher permite que ela se mostre em público,
lute com homens, e discuta (...) questões das quais depende a salvação
da República? Em geral, as mulheres são pouco capazes de
concepções elevadas (...) Vocês querem que na República francesa
elas venham à tribuna (...) abandonando a sua reserva, fonte de todas
as virtudes desse sexo, e os cuidados de suas famílias? Nós cremos
127
Apud MORIN, ob. cit.,p. 151-152.
62
que uma mulher não deve sair de sua família para se imiscuir nos
negócios do governo.128
André Amar ressalta o ideal de mulher virtuosa de Rousseau, sentimental,
passiva, modesta, dependente e destinada ao lar, tão criticado por Mary Wollstonecraft.
A mulher que abandona seus deveres de mãe e esposa para se imiscuir na vida política
está prejudicando a própria República. Sobre o discurso do deputado, observa Hunt:
O fundamento lógico não era nenhuma novidade; o que era novo era a
necessidade de vir a público e proibir as mulheres de formar e
frequentar clubes políticos. As mulheres podem ter surgido por último
nas discussões e como tema de menor importância, mas os seus
direitos acabaram entrando na agenda, e o que foi dito a seu respeito
na década de 1790 – especialmente em favor dos direitos – teve um
impacto que durou até o presente.129
Seus direitos políticos foram negados, mas, pela primeira vez o assunto foi
debatido e os deputados tiveram que explicar a exclusão publicamente. Antes da
Revolução, nenhuma explicação teria sido necessária.
Entretanto, a Revolução trouxe importantes avanços em relação aos direitos civis
das mulheres. Elas ganharam direitos iguais de herança e o direito ao divórcio pelas
mesmas razões de seus maridos. O divórcio não era permitido pela lei francesa antes de
sua decretação em 1792.130
O Código Civil francês de 1804 reagiu contra o que foi
designado então como “torrentes de imoralidades” nascida das leis revolucionárias. O
divórcio por mútuo consentimento foi mantido, mas tornou-se mais difícil por um
processo longo e complicado. Entretanto, a monarquia restaurada revogou o divórcio
em 1816 – quando a religião católica foi declarada religião do Estado. Nem mesmo a
Revolução de 1848 pôde restabelecer o divórcio, que só foi reinstituído em 1884 (graças
128
Ibid, p. 152. 129
HUNT, ob. cit., p. 173. 130
“A Revolução Francesa, rompendo com a concepção canônica da indissolubilidade, admite a
dissolução completa e definitiva do laço conjugal, na condição de ser proferida por um tribunal. A lei
francesa de 20 de setembro de 1792, admite o divórcio com a maior facilidade: o divórcio pode ser obtido
não apenas por consentimento mútuo, como ainda por inúmeras causas, entre as quais a simples
incompatibilidade de feitio alegada por um dos cônjuges.” (GILISSEN, John. Introdução histórica ao
direito. Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. 4. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian,
2003, p. 576).
63
à intensa campanha de mulheres e à aliança entre feministas e republicanos), e mesmo
então com mais restrições do que as aplicadas em 1792.131
Os próprios revolucionários sentiram a necessidade de marcar um
limite intransponível, de mostrar claramente que as mulheres estavam
do lado privado e os homens do lado público. A partir de 1794, em
1803, em 1816 e ao longo de todo século XIX, essa demarcação entre
o público e o privado, o homem e a mulher, a política e a família,
acentuou-se de forma constante. [...] Mas as ondas de choque que
criaram não deixaram de se fazer sentir até a década de 1970, quando
as leis francesas sobre a família finalmente retomaram alguns
princípios de 1792: a lei sobre o divórcio de 11 de julho de 1975
tornou o procedimento tão fácil quanto em 1792; a lei de 4 de junho
de 1970 livrou o casal dos resquícios da supremacia conjugal do
marido, tal como nos primeiros anos da Revolução; a lei de 3 de
janeiro de 1972 assegurou aos filhos naturais direitos que já haviam
sido concedidos a eles no ano II. Haverá maneira melhor de avaliar a
modernidade dos princípios da Revolução e os efeitos a longo prazo
(positivos e negativos) da herança revolucionária? 132
Depois de 1793, as mulheres se viram mais reprimidas no mundo oficial da
política francesa. Embora as ativistas da Revolução Francesa tenham sido derrotadas (e,
posteriormente, por muito tempo, repudiadas e esquecidas) e conquistas femininas
específicas tenham sido desprezadas, sua promessa de direitos não foi esquecida e seu
legado será retomado, mais tarde, nos diversos campos de ação de mulheres em suas
lutas a partir da década de 1830.133
Na França, as mulheres aproveitaram as novas oportunidades de
publicação criadas pela liberdade de imprensa para escrever mais
livros e panfletos do que nunca. O direito das mulheres à herança
igual provocou incontáveis processos na justiça, porque as mulheres
determinaram se agarrar ao que era agora legitimamente delas. Afinal,
131
Retomando o sistema do Code Civil de 1804, a lei de 19 de julho de 1884 restringe a possibilidade do
divórcio aos casos de adultério (no caso do marido, unicamente se manteve a concubina na casa comum),
sevícias, injúrias graves ou condenação a pena infamante. (Ibid, p. 576-577). 132
HUNT, Lynn. Revolução francesa e vida privada.In: ARIES, Philippe; DUBY, Georges (Orgs.).
História da vida privada.Tradução Denise Bottman e BernardoJoffily. São Paulo: Companhia das Letras,
1991, p. 51. 133
PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria. Igualdade e especificidade. In: PINSKY, Jaime;
PINSKY, Carla Bassanezi (Orgs.). História da cidadania. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2010, p. 270.
64
os direitos não eram uma proposição tudo-ou-nada. Os novos direitos,
mesmo que não fossem direitos políticos, abriam o caminho de novas
oportunidades para as mulheres, e elas logo as aproveitaram. Como as
ações anteriores dos protestantes, judeus e homens de cor livres já
tinham mostrado, a cidadania não é apenas algo a ser concedido pelas
autoridades: é algo a ser conquistado por si mesmo. Uma medida da
autonomia moral é essa capacidade de argumentar, insistir e, para
alguns, lutar.
O direito à participação política das mulheres só foi conquistado depois de
muitas lutas ao longo dos séculos XIX e XX. Nos Estados Unidos, em junho de 1919, o
Senado aprovou a 19ª emenda, reconhecendo como cidadãs todas as mulheres com mais
de 21 anos. Na Inglaterra, embora o sufrágio feminino tenha sido aprovado em 1918, foi
somente em 1928 que o Parlamento inglês permitiu o voto para as mulheres em igual
condição à dos homens. No Brasil, a conquista do voto feminino data de 1932. Com
relação à França, causa espanto a demora em conferir às mulheres esse direito político.
Somente em 1944 o direito de voto foi concedido às francesas.134
134
Ibid., p. 294-297.
65
CAPÍTULO IV – CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS E A HERANÇA
REVOLUCIONÁRIA
Neste capítulo, serão analisadas nos dois primeiros tópicos as críticas clássicas
de Edmund Burke e Karl Marx aos “direitos do homem” proclamados pelas Declarações
da Revolução Francesa. Em conjunto com essas críticas, iremos citar as de outros
autores que concordaram com seus pontos principais e os desenvolveram em outras
direções. Conforme afirma Douzinas, “se as declarações do século XVIII constituem a
base do discurso dos direitos, as reflexões de Burke e Marx a respeito da Revolução
Francesa constituem a base das críticas a esse discurso”.135
As críticas que esses autores
fizeram aos fundamentos dos direitos humanos permanecem vivas até hoje. Por fim, o
último tópico falará sobre a herança utópica dos direitos humanos legados pela
Revolução Francesa, a partir da perspectiva de Ernst Bloch.
4.1 AS REFLEXÕES DE EDMUND BURKE
A obra Reflexões sobre a Revolução em França, do britânico Edmund Burke, foi
publicada em novembro de 1790. Seu objetivo era criticar os defensores ingleses da
Revolução Francesa, entre os quais estava o pastor dissidente da Igreja Anglicana
Richard Price. Num sermão, de novembro de 1789, Price exaltara a luta dos
revolucionários franceses:
Vivi para ver os direitos dos homens mais bem compreendidos do que
nunca, e nações ansiando por liberdade que pareciam ter perdido a
ideia do que isso fosse. [... ] Depois de partilhar os benefícios de uma
Revolução [1688], fui poupado para ser testemunha de duas outras
Revoluções [a americana e a francesa], ambas gloriosas.136
135
DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p 160. 136
Apud HUNT, ob. cit., p. 134
66
Burke foi o “primeiro grande homem na Inglaterra” a denunciar os perigos da
Revolução em marcha na França.137
Burke percebeu, com horror, a ameaça que este
acontecimento representava:
Privada de seu antigo governo ou, mais exatamente, de qualquer
governo, parecia que a França era mais um objeto de insulto e
compaixão que o flagelo e o terror do gênero humano. Mas do túmulo
desta monarquia assassinada saiu um ser informe, imenso, mais
terrível que qualquer daqueles que já acabrunharam e subjugaram a
imaginação dos homens. Este ser hediondo e estranho marcha em
linha reta para seu alvo sem deixar-se apavorar pelo perigo ou deter-se
pelo remorso; contendor de todas as máximas herdadas e de todos os
meios habituais, derruba aqueles que nem podem compreender como
chega a existir.138
A crítica de Burke nas Reflexões tem por fim repelir os argumentos dos
defensores na Inglaterra das ideias que impulsionaram a Revolução na França. Era
preciso proteger a Inglaterra, e, se possível, toda a Europa do contágio dos novos
princípios franceses. Philip Francis definiu – logo em 1791 – as Reflexões como “um
manifesto da contra-revolução”.139
É importante lembrar que Burke, que era membro do partido liberal inglês Whig,
é considerado “o pai do conservadorismo”.140
Não se pode perder de vista o momento
histórico a partir do qual e sobre o qual se desenvolve sua concepção: a transição da
antiga ordem feudal para a nova ordem capitalista, burguesa. O conservadorismo, como
reação ao movimento revolucionário, dirigia-se para a defesa intransigente da velha
ordem, feitas as adaptações necessárias à sua sobrevivência.
O espírito da renovação total e radical; a destruição de todos os
direitos consagrados pela tradição; o confisco da propriedade, a
destruição da Igreja, da nobreza, da família, dos costumes, da
137
BURKE, ob. cit., p. 14. 138
Apud Tocqueville, ob. cit., p. 52. 139
Ibid., p. 22. 140
MONTENEGRO, João Alfredo de Souza. O discurso autoritário de Cairu. 2 ed. Brasília: Senado
Federal, Conselho Editorial, 2000, p. 173.
67
veneração aos ancestrais, da nação – esse é o catálogo de tudo aquilo
que Burke odiava.141
Neste ponto, cabe ressaltar a influência das ideias de Burke no Brasil, mais
precisamente no discurso liberal-conservador de José da Silva Lisboa, o Visconde de
Cairu (1756-1835), importante personagem de nossa história. Coube ao Visconde a
primeira tradução para a língua portuguesa da obra Reflexões sobre a revolução em
França, através do livro Extratos das obras políticas e econômicas de Edmund Burke
(1812).
No prefácio da obra, o escritor afirma que tomou o trabalho de vertê-la ao
português persuadido de que ela serviria de “antídoto contra o pestífero miasma, e sutil
veneno das sementes da Anarquia e Tirania da França”, e sublinha a “extraordinária
ótica mental” de Burke, que viu “as fatais consequências do Mal Francês, com que
ambiciosos, entusiastas, e sofistas, ofertando atraiçoados presentes de amor, tinham
feito a Declaração, e Propaganda dos Falsos Direitos do Homem”.142
Para Burke, ao contrário dos “direitos metafísicos”, os “verdadeiros direitos do
homem” são os direitos que a sociedade civil proporciona ao homem.143
O publicista inglês chama os legisladores franceses de “metafísicos e alquimistas
da legislação” por terem nivelado todos os homens, reduzindo-lhes “à mera condição de
números em uma conta, sem conceder-lhes a importância decorrente dos lugares que
ocupam” na sociedade, em diferentes classes. 144
Para Burke, apenas uma pequena
parcela da população, aquela que dispunha de determinadas condições econômico-
sociais, podia ter acesso à política.
Burke via o Estado como ente orgânico que se eleva sobre a vontade dos
indivíduos, com missão sagrada, com vinculação no eterno. Contra o que ele chama de
“constituição geométrica e aritmética”145
e uma “monstruosa ficção”146
, ele invoca o
exemplo da Constituição britânica, sólida, estável, cuja autoridade deriva de sua antiga
141
O’BRIEN, Connor Cruise. In: ob. cit., p. 3. 142
LISBOA, José da Silva. Extractos das obras políticas e economicas do grande Edmund Burke. 2. ed.
Lisboa: Viuva Neves e Filhos, 1822, p. V. 143
BURKE, ob. cit., p. 88. 144
Ibid. p. 178. 145
Ibid., p. 85. 146
Ibid., p. 72.
68
tradição e sabedoria. Os ingleses são um povo “que detém, de uma longa linha de
ancestrais, seus privilégios, suas franquias e suas liberdades”.147
As liberdades dos ingleses são antigas liberdades, reivindicadas como uma
herança recebida dos antepassados. “Nem todos os sofistas de seu país poderão produzir
nada melhor para garantir uma liberdade razoável e generosa que o método que
adotamos”148
, afirma Burke para o fidalgo francês para quem escreve.
Burke foi crítico do racionalismo iluminista. Sua principal crítica em relação ao
discurso dos direitos do homem é o seu idealismo e racionalismo metafísico. De acordo
com Burke, direitos metafísicos são moral e politicamente falsos149
. Para os direitos
realmente serem eficazes é imprescindível que estejam arraigados a uma história,
tradição e cultura particulares. Não é possível conhecer os homens fora da história de
cada povo, pois os homens são seres socialmente determinados e historicamente
construídos.
O cosmopolitismo da filosofia do Iluminismo foi amplamente contestado pelos
conservadores, como Joseph de Maistre, que no mesmo diapasão de Burke escreveu:
A Constituição de 1795, tal como as suas irmãs mais velhas, é feita
para o homem. Ora, não há homem no mundo. Em minha vida, vi
franceses, italianos, russos etc. Sei até, graças a Montesquieu, que se
pode ser persa: mas quanto ao homem, declaro que nunca o encontrei
em toda a minha vida; se ele existe, eu o ignoro completamente.150
Burke defende que não é possível os homens serem esvaziados de seus antigos
costumes e regras de vida, de um momento para outro, e recheados com valores novos,
criados pela doutrina de homens de letras e políticos, que acreditam que “a forma de
governo pode mudar como a moda”.151
“Na Inglaterra, ainda não fomos completamente esvaziados de nossas
entranhas naturais; ainda temos entre nós, e os estimamos e
cultivamos, os sentimentos inatos que são os guardiães fiéis e os
ativos conselheiros do dever, bem como os verdadeiros suportes de
147
Ibid., p. 69. 148
Ibid., p. 70. 149
BURKE, ob. cit., p. 91. 150
Apud COMPARATO, ob. cit., p. 145 151
BURKE, ob. cit., p. 108.
69
todos os costumes viris e liberais. Não fomos preparados e fixados de
modo a que sejamos recheados, como pássaros embalsamados de
museus, com farelos e trapos e pedaços miseráveis de papel sujo sobre
os direitos do homem”.152
Nesse sentido, cabe citar o juízo de H. A. Taine sobre a Declaração Francesa,
segundo o qual a maior parte dos seus artigos
não são mais do que dogmas abstratos, definições metafísicas,
axiomas mais ou menos literários, ou seja, mais ou menos falsos, ora
vagos, ora contraditórios, suscetíveis de mais de um significado e de
significados opostos (...), umas espécie de insígnia pomposa, inútil e
pesada, que (...) corre o risco de cair na cabeça dos transeuntes, já que
todo dia é sacudida por mãos violentas.153
Finalmente, a célebre objeção de Burke aos direitos do homem:
“De que adianta discutir o direito abstrato do homem à alimentação ou
aos medicamentos? A questão coloca-se em encontrar o método pelo
qual se deve fornecê-la ou ministrá-los. Nessa deliberação,
aconselharei sempre a que busquem a ajuda de um agricultor ou de um
médico, e não a de um professor de metafísica”.154
Douzinas complementa a crítica de Burke a partir de uma perspectiva
contemporânea: “de que adianta o direito abstrato à vida ou à liberdade de expressão e
de imprensa às vítimas de fome e da guerra ou às pessoas incapazes de ler por falta de
recursos educacionais?”155
Burke, ao defender as liberdades dos americanos contra o rei e o parlamento
inglês, dos hindus contra os europeus, defendeu essas liberdades não porque eram
novidades, descobertas na “Era da Razão”, mas porque elas eram prerrogativas antigas,
garantidas por costumes imemoriais.156
Conforme opina Montenegro, tais argumentos estão relacionados
152
Ibid., p. 107. 153
Apud BOBBIO, ob. cit., p. 91. 154
BURKE, ob. cit., p. 88-89. 155
DOUZINAS, ob. cit., p. 165. 156
MONTENEGRO, ob. cit., p. 164.
70
“com os caracteres socioculturais da sociedade britânica, ciosa de suas
prerrogativas de liberdade, de suas tradições jurídicas, do espírito de
legalidade que permeia as suas instituições desde a célebre Carta
Magna, elevando-a ao primeiro plano das nações. O que só seria
conquistado na França e em outros países depois de lutas sangrentas,
com a Revolução, e a partir de outro quadro ideológico, a do
Nacionalismo apoiado na Metafísica, na Razão abstrata”.157
Feitas estas considerações, não se pode negar que a crítica de Burke ao caráter a-
histórico e abstrato dos direitos humanos foi a matriz de boa parte das críticas
posteriores. Muitas de suas análises acerca das dificuldades confrontadas por qualquer
teorização consistente sobre os direitos humanos não se mostraram equivocadas.158
A Declaração de 1789 introduziu a distinção entre ser humano e cidadão,
abrindo uma lacuna entre a universalidade proclamada a toda humanidade e o conceito
de cidadania estabelecido. Ela também criou o conceito de soberania nacional e deu
início ao nacionalismo, que no futuro levaria a consequências nefastas como genocídios,
conflitos étnicos, minorias, refugiados e apátridas.159
O Estado-nação passa a existir com
a exclusão de outras pessoas e nações:
Após as revoluções, os Estados-nação são definidos por fronteiras
territoriais, que, os separam de outros Estados e excluem outros povos
e nações. A cidadania passou a ser exclusão de classe para exclusão de
nação, que se tornou uma barreira de classe disfarçada.160
Ao mesmo tempo que os direitos humanos são universais e inalienáveis, só o
Estado pode garantir ao “homem” quaisquer direitos. Hannah Arendt reconheceu que os
argumentos com que Burke se opôs à Declaração de 1789 soam, irônica e amargamente,
proféticos à luz dos fatos ocorridos depois da primeira guerra mundial, em que milhões
de pessoas sem território ficaram da mesma forma sem direitos que as protegessem.161
Os Direitos do Homem, afinal, haviam sido definidos como
“inalienáveis”, porque se supunha serem independentes de todos os
157
Ibid., p. 164-165. 158
DOUZINAS, p. 160. 159
Ibid., 116. 160
Ibid., p. 116. 161
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004, p. 333.
71
governos; mas sucedia que, no momento em que seres humanos
deixavam de ter um governo próprio, não restava nenhuma autoridade
para protegê-los e nenhuma instituição disposta a garanti-los.162
A perda de suas nacionalidades levou a perda de seus lares, e o que é pior, levou
a impossibilidade de encontrarem um novo lar. Ao perderem seus direitos de cidadania,
os apátridas perderam a proteção do governo, e isso não significava apenas a perda da
condição legal no próprio país, mas em todos os países. Ficou claro, portanto, que a
perda da nacionalidade representava a perda dos direitos humanos.163
Estes fatos parecem confirmar a afirmação de Burke de que os direitos humanos
eram uma “abstração”, que seria muito mais sensato confiar nos direitos como uma
herança transmitida entre gerações, e afirmar que os seus direitos são os “direitos de um
inglês”, os direitos que emanam “de dentro da nação”, e não os direitos inalienáveis do
homem.164
Os sobreviventes dos campos de extermínio, os internados nos campos
de concentração e de refugiados, e até os relativamente afortunados
apátridas, puderam ver, mesmo sem os argumentos de Burke, que a
nudez abstrata de serem unicamente humanos era o maior risco que
corriam. Devido a ela, eram considerados inferiores e, receosos de que
podiam terminar sendo considerados animais, insistiam na sua
nacionalidade, o último vestígio da sua antiga cidade.165
É a partir dos problemas jurídicos suscitados pelo totalitarismo que Hannah
Arendt enfatiza que o primeiro direito humano é o direito a ter direitos.166
Para Arendt, não é verdade que “todos os homens nascem livres e iguais em
dignidade e direitos”, como afirma o art. 1º da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, de 1948, na esteira da Declaração Francesa de 1789 (art. 1º). Nós não
nascemos iguais: nós nos tornamos iguais como membros de uma coletividade em
virtude de uma decisão conjunta que garante a todos direitos iguais. A igualdade não é
162
Ibid., p. 333. 163
Ibid., p. 325-327. 164
Ibid., p. 333. 165
Ibid., p. 333. 166
LAFER, ob. cit., p. 154
72
um dado, não é natural. Ela é um construído, elaborado convencionalmente pela ação
conjunta de homens através da organização da comunidade política.167
4.2 AS CRÍTICAS DE KARL MARX
Na obra A questão judaica, publicada em 1844, Marx faz a crítica aos direitos
naturais do homem, previstos nas Declarações Francesas do período revolucionário.
Trata-se da análise de Marx mais desenvolvida sobre o tema.
Ainda que, em obras como Para a Crítica da Filosofia do Direito de
Hegel e Crítica ao Programa de Gotha subjaz preocupações com a
realidade jurídica, é, entretanto, em A Questão Judaica que fica
melhor realçada a crítica aos direitos formais das sociedades
burguesas presentes nas Declarações Americana e Francesa do século
XVIII.168
Para Marx, os franceses, ao suprimirem o feudalismo e o poder senhorial,
realizaram uma revolução apenas “parcial”, “puramente política”, visto que emancipou
apenas uma parte da sociedade civil, a burguesia dos proprietários. É nesta sociedade
individualista,
fundada nos interesses particulares, que o Estado moderno se erige
como figura subordinada, tal como vimos surgir da Revolução
Francesa, isto é, como Estado democrático representativo que sucedeu
ao Estado monárquico. Seu caráter representativo exprime a separação
da sociedade em relação ao Estado e seu caráter democrático
(universal), a abstração da cidadania igualitária considerada em
relação às situações reais dos indivíduos membros do corpo social. O
Estado democrático representativo constitui a ilusão comunitária da
167
LAFER, ob. cit., p. 150. 168
WOLKMER, Antônio Carlos. Marx, a questão judaica e os direitos humanos. Revista Seqüência, n.º
48, p. 11-28, jul. de 2004, p. 21.
73
história real, que é a história das desigualdades das riquezas e da
dominação burguesa.169
Assim, afirma Marx que a “emancipação política é a redução do homem, de um
lado, a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente e, de outro, a
cidadão do Estado, a pessoa moral”.170
Eis por que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão concede ao
homem, membro da sociedade civil, uma primazia absoluta sobre o cidadão, figura do
novo Estado democrático. Distintos como são dos direitos do cidadão, os direitos do
homem não se referem ao homem em geral, mas ao homem egoísta da sociedade
burguesa, “o homem separado do homem e da comunidade”.171
Marx analisa cada um dos direitos naturais e imprescritíveis dispostos no art. 2º
da Declaração Francesa da Constituição de 1793, a “mais radical das Constituições”: a
igualdade, a liberdade, a segurança e a propriedade.
A liberdade (la liberté), comenta Marx, “é o direito de fazer e empreender tudo
aquilo que não prejudique os outros”.172
O limite dentro do qual todo homem pode mover-se inocuamente em
direção ao outro é determinado pela lei, assim como as estacas
marcam o limite ou a linha divisória entre duas terras. [...] Trata-se da
liberdade do homem como mônoda isolada, dobrada sobre si
mesma.173
Essa liberdade do homem é fundada, portanto, não na associação entre os
homens, “mas, pelo contrário, na separação do homem em relação a seu semelhante. A
liberdade é o direito a esta dissociação, o direito do indivíduo delimitado, limitado a si
mesmo”.174
A aplicação prática da liberdade é o direito à propriedade privada.
O direito humano à propriedade privada
169
FURET, François. Marx e a revolução francesa. Tradução: Paulo Brandi Cachapuz. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1989, p. 19. 170
MARX, Karl. A questão judaica. São Paulo: Moraes, s/d, p. 51. 171
Ibid., p. 41. 172
Ibid., p. 42. 173
Ibid., p. 42. 174
Ibid., p. 42
74
é o direito de desfrutar de seu patrimônio e dele dispor arbitrariamente
(à son gré), sem atender aos demais homens, independentemente da
sociedade, é o direito do interesse pessoal. A liberdade individual e
esta aplicação sua constituem o fundamento da sociedade burguesa.175
A igualdade “nada mais é senão a igualdade da liberté acima descrita, a saber:
que todo homem se considere igual, como uma mônoda presa a si mesma”.176
Por fim, o
direito a segurança “é o conceito supremo da sociedade burguesa, o conceito de polícia,
segundo o qual toda a sociedade existe para garantir a cada um de seus membros a
conservação de sua pessoa, de seus direitos e de sua propriedade”.177
De qualquer modo,
acrescenta que o “conceito de segurança não faz com que a sociedade burguesa se
sobreponha a seu egoísmo. A segurança, pelo contrário, é a preservação deste
[egoísmo]”.178
Assim, conclui Marx:
Nenhum dos chamados direitos humanos ultrapassa, portanto, o
egoísmo do homem, do homem como membro da sociedade burguesa,
isto é, do indivíduo voltado para si mesmo, para seu interesse
particular, em sua arbitrariedade privada e dissociada da comunidade.
Longe de conceber o homem como um ser genérico, estes direitos,
pelo contrário, fazem da própria vida genérica, da sociedade, um
marco exterior aos indivíduos, uma limitação de sua independência
primitiva. O único nexo que os mantém em coesão é a necessidade
natural, a necessidade e o interesse particular, a conservação de suas
propriedades e de suas individualidades egoístas.179
Marx procede desta forma à desmistificação do suposto “universalismo” dos
direitos humanos. A burguesia francesa, ao falar em nome do homem em geral, disfarça
seus interesses e o novo domínio que pretende estabelecer na sociedade.180
175
Ibid., p. 43. 176
Ibid., p. 43 177
Ibid., p. 44. 178
Ibid., p. 44. 179
Ibid., p. 44-45. 180
FURET, ob. cit., p. 44.
75
Com a emancipação política, “o homem não se libertou da religião; obteve, isto
sim, liberdade religiosa. Não se libertou da propriedade, obteve a liberdade de
propriedade. Não se libertou do egoísmo da indústria, obteve a liberdade industrial”.181
Embora, para Marx, a emancipação política represente um grande progresso, ela
não é a última etapa da emancipação humana em geral. Para ele, a Revolução francesa
não criou uma emancipação “universalmente humana”. Essa só pode ser realizada por
uma classe submetida a grilhões radicais, sem outra num escalão inferior e,
consequentemente, portadora, dessa vez, da emancipação do homem. “A primeira era a
revolução do cidadão, a segunda seria a do homem”.182
Ao derrubar o Antigo Regime, a Revolução Francesa criou a política
moderna, característica da sociedade mercantil. Entretanto, como a
política é uma ilusão produzida pela alienação dos cidadãos
“democráticos” no novo Estado, a Revolução Francesa por seu turno
deverá ceder a vez a uma “verdadeira” revolução, que destruirá
precisamente o político, absorvendo-o no social: o que significa dizer
que ela deve realizar não mais a transformação do Estado, mas sua
abolição, e promover o homem à condição denominada por Marx de
“ser genérico” (isto é, sua humanidade”) pela destruição da figura
intermediária de sua alienação na ilusão política representada pela
cidadania.183
Portanto, a emancipação humana somente pode ocorrer quando o Estado e a
sociedade civil já não estiverem mais separados, e os direitos humanos forem
afirmados, tendo em vista a existência propriamente humana dos homens e não apenas a
sua existência jurídica.
A revolução proletária irá concretizar as aspirações dos direitos
humanos ao negar não apenas sua forma moralista, mas também seu
conteúdo idealista, exemplificado pelo homem abstrato e isolado. A
negação combinada de conteúdo e forma, no comunismo, atribuirá aos
181
MARX, ob. cit., p. 50. 182
FURET, ob. cit., p. 10. 183
Ibid., p. 20.
76
direitos fundamentais o seu verdadeiro significado e introduzirá a
liberdade e a igualdade verdadeiras a um novo homem socializado.184
É importante considerar que a crítica de Marx em A Questão Judaica ainda não
apreende uma específica correlação, que mais tarde Marx reconheceria como
necessária: a relação entre os direitos humanos e as formas concretas assumidas pelas
relações econômicas no capitalismo, a relação de troca de mercadorias.185
Por outro lado, importantes pensadores marxistas recentes, como Etienne Balibar
e Claude Lefort, criticam Marx por depositar uma ênfase exagerada na separação entre
homem e cidadão e compreender mal, consequentemente, a inovação política da
Declaração Francesa: em vez de separar, ela identificou homem e cidadão, aproximou
pela primeira vez liberdade e igualdade e criou um direito universal à participação
política.186
As reivindicações de direitos expressam uma demanda de ampliação do
significado de cidadania ou de uma nova ampliação da liberdade e da igualdade.
Conforme afirma Zizek, “foi a ‘liberdade formal’ burguesa que colocou em movimento
as demandas políticas e práticas bem “substanciais” do feminismo e do
sindicalismo”.187
Para Zizek, a ambiguidade radical da noção marxista da “diferença” entre a
democracia formal – os Direitos do Homem, as liberdades políticas – e a realidade
econômica de exploração e dominação, pode ser lida de duas formas. A primeira é a
forma “sintomática” padrão: a democracia formal é uma expressão necessária, porém
ilusória de uma realidade social concreta de exploração e de dominação de classe.188
Contudo, conforme opina Zizek, ela
também pode ser lida em um sentido mais subversivo de uma tensão
na qual a “aparência” da égaliberté não é uma “mera aparência”, mas
contém uma eficácia própria, que a permite pôr em movimento a
rearticulação das relações socioeconômicas reais por meio de sua
184
DOUZINAS, ob. cit., p. 173. 185
TRINDADE, José Damião de Lima. Os direitos humanos na perspectiva de Marx e Engels.
Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2010, p. 57. 186
DOUZINAS, ob. cit., p. 183. 187
ZIZEK, Slavoj. Contra os direitos humanos. Revista: Mediações. Traduzido por Sávio Cavalcante, p.
27. 188
Ibid., p. 27.
77
progressiva “politização”. Por que às mulheres também não deveria
ser permito o voto? Por que as condições de trabalho não deveriam ser
também uma questão de interesse público?189
Nesse sentido, afirma Zizek:
Não é suficiente apenas firmar uma articulação autêntica de uma
experiência do mundo e da vida que depois é reapropriada por aqueles
que estão no poder para servir aos seus interesses particulares ou para
fazer de seus súditos dóceis peças na engrenagem social. Muito mais
interessante é o processo oposto, no qual algo, que era originalmente
um edifício ideológico imposto por colonizadores, é tomado
subitamente em seu conjunto pelos súditos como uma maneira de
articular suas queixas “autênticas”.190
Desta forma,
Embora os direitos humanos não possam ser postulados como um
Além a-histórico e “essecialista” em relação à esfera contingente das
lutas políticas, como “direitos naturais do homem” universais
dissociados da história, eles também não deveriam ser descartados
como um fetiche reificado, produto do processo histórico concreto de
politização dos cidadãos.191
Por outro lado, não se pode exagerar os efeitos igualitários da Revolução
Francesa e sua Declaração. Nesse sentido, argumenta Douzinas:
É verdade que a política democrática da modernidade estabeleceu um
espaço público no qual a igualdade política pudesse ajudar a
minimizar as reais desigualdades da esfera privada. Esta igualdade da
cidadania criada por meio do exercício dos cidadãos com idênticas
liberdades políticas. Mas o conjunto de cidadãos permaneceu
severamente restrito em sua composição por exclusões raciais, étnicas,
189
Ibid., p. 27-28. 190
Ibid., p. 28. 191
Ibid., p. 28.
78
legais e de gênero durante mais de um século, e a cidadania ainda
obedece geralmente a limites territoriais arbitrários [...]192
Douzinas reconhece ter sido Marx o primeiro crítico radical que insistiu no
caráter histórico dos direitos humanos em oposição às afirmações dos ideólogos dos
direitos naturais:
Depois da crítica de Marx, ficou claro que, embora os direitos
humanos fossem apresentados como eternos, eles são criações da
modernidade; embora passassem por naturais, eles são construtos
sociais e legais; embora fossem apresentados como absolutos, eles são
os instrumentos limitados do Direito; embora fossem concebidos
acima da política, eles são o produto da política do seu tempo;
finalmente, embora fossem apresentados como racionais, eles são o
resultado da razão do capital e não da razão pública da sociedade.
Todas essas inversões entre fenômeno e realidade significavam que,
para Marx, os direitos humanos representavam o principal exemplo da
ideologia de seu tempo.193
4.3 DIREITOS HUMANOS E UTOPIA
O filósofo marxista Ernst Bloch preserva os principais elementos da crítica de
Marx aos direitos, mas descobre, na tradição do Direito Natural o traço humano
historicamente variável, porém eterno, de resistir à opressão e lutar pela dignidade
humana.194
Bloch diferencia utopias sociais das utopias jurídicas. As primeiras representam
buscas pela felicidade humana, dirigidas, sobretudo, à eliminação da miséria, enquanto
que o direito natural está dirigido à busca pela dignidade humana, à eliminação da
humilhação humana.195
192
DOUZINAS, ob. cit., p. 184. 193
Ibid., p. 174-175. 194
DOUZINAS, op. cit., 187. 195
MASCARO, Alysson Leandro. Utopia e direito: Ernst Bloch e a ontologia jurídica da utopia. São
Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 135.
79
Por isso, Bloch se vale dos temas do direito natural e da dignidade humana como
bandeiras políticas. Ele entende que o campo da felicidade do homem, no qual se situa
sua emancipação econômica, o fim da exploração do trabalho, o fim das classes, não
esgota necessariamente o campo da dignidade humana.196
Para Bloch, as três cores da Revolução Francesa, seus lemas “liberdade,
igualdade e fraternidade”, contém uma utopia que ainda não se cumpriu e que aponta
um horizonte utópico socialista. Mas a utopia que Bloch aponta não é a utopia abstrata,
idealista, como são a de Thomas More, de Campanella, dos franceses socialistas Charles
Fourier, Saint-Simon e outros. A utopia que se refere Bloch é a utopia concreta197
, que
está ligada à situação real da história e suas contradições, vinculada à atividade humana,
à práxis orientada para o futuro.198
Para Bloch, os lemas da Revolução Francesa, embora inicialmente sejam lemas
burgueses, só podem se concretizar na transcendência da sociedade burguesa. A
burguesia, por se basear na exploração, na divisão de classe, é incapaz de levar adiante
tal processo de emancipação proposto pelos lemas da Revolução.199
De tal forma, Bloch deposita nas mãos da classe proletária a utopia da
liberdade, da igualdade e da fraternidade. A bandeira da Revolução
Francesa persiste, empunhada agora por outra classe. A utopia mais
uma vez se levanta, trazendo do passado os seus sonhos mais
profundos, mas sendo concretizada pela concretude da ação social
revolucionária.200
A liberdade, para Bloch, ao mesmo tempo em que é individual, nas escolhas e
eleições, é libertação da opressão, da exploração da propriedade. A igualdade, da
mesma forma, não é um conceito estrito, e só pode ser pensada juntamente com a
liberdade. Uma só existe com a outra. Assim, afirma Bloch:
196
Ibid., p. 135-136. 197
A noção de utopia concreta de Bloch refere-se a uma sociedade onde os seres humanos não têm mais
que viver suas vidas como meio para se manter através de desempenhos alienados. Utopia concreta:
‘utopia’ porque tal sociedade ainda não existe em lugar algum; ‘concreta’ porque tal sociedade é uma
possibilidade real. (...) Que uma qualidade de vida alternativa seja possível foi demonstrado. A utopia
concreta de Bloch pode ser alcançada. (MARCUSE apud MASCARO, ob. cit., p. 113) 198
Ibid., p. 114. 199
Ibid., p. 155-156. 200
Ibid., p. 156.
80
Não só a partir de um ângulo formal, mas também parcialmente, a
partir do ângulo de seu conteúdo, a liberdade se prestou a ser
transformada e definida como a liberdade do sujeito econômico
individual, ou, pelo menos, pôde ser contida nestes limites; no entanto,
a igualdade e a fraternidade, se não permanecem no âmbito do formal
e pretendem receber um conteúdo, ou bem são socialistas ou nada são
em absoluto.201
A fraternidade, por sua vez, se dirige à paz, e a paz, para Bloch, só pode ser
obtida por meio da superação da exploração de classes. A fraternidade é a concretização
da liberdade e da igualdade.202
“Liberdade, igualdade, fraternidade, a intentada
ortopedia do andar ereto, do orgulho viril, da dignidade humana, apontam muito mais
adiante do horizonte burguês”.203
Bloch aproveita parte da tradição do direito natural, naquela em que está
presente a utopia da dignidade humana, e afasta outros princípios jurídicos que, durante
a história, com este contrastaram. Mas ele não adota uma teoria jusnaturalista
tradicional. Seu método de reflexão sobre o direito natural não é jusnaturalista, ou seja,
não é idealista, metafísico ou burguês, e sim marxista, baseado na história e na práxis.204
Assim, afirma Bloch: “Não é sustentável que o homem seja, por nascimento,
livre e igual. Não há direitos inatos, e sim que todos são adquiridos ou têm todavia que
ser adquiridos em luta”.205
Portanto, conclui Mascaro:
O que resta, assim, ao marxismo, da doutrina do direito natural, é
justamente aquilo a que os jusnaturalistas pouco se aferram nas suas
lutas por metafísicas e absolutos: a inspiração pela dignidade humana
e o andar ereto. Na ânsia pela defesa da propriedade privada,
inscreveram-na num rol fundamental. Este rol fundamental, no
entanto, há de ser aproveitado para a dignidade, e sua marca maior é
201
Apud MASCARO, ob. cit., p. 157. 202
Ibid., p. 157. 203
BLOCH Apud MASCARO, ob. cit., p. 158. 204
Ibid., p. 162-163. 205
Apud MASCARO, ob. cit., p. 162.
81
ser uma justiça a partir de baixo, não patriarcal nem metafísica.
Constrói-se na história, por meio dos explorados.206
Para Bloch, “não pode haver dignidade humana sem o fim da miséria e da
necessidade, tampouco felicidade humana sem o fim das velhas e novas formas de
servidão”.207
Para Douzinas, o fim dos direitos humanos, assim como o fim do Direito
Natural, é a promessa do “ainda não”: a utopia. Os direitos humanos perdem sua
finalidade quando perdem sua utopia.
No Direito, a utopia tem um papel decisivo, como observa Herkenhoff:
É a utopia que dá luzes para ver e julgar o Direito vigente na
sociedade em que vivemos e para estigmatizá-lo como um Direito que
apenas desempenha o papel de regulamentar a opressão.208
A utopia é um projeto, algo que o homem lança em sua frente para, a seguir,
partir em busca de sua realização. A imaginação utópica sempre existiu nas sociedades
históricas e continuará existindo, pois é inerente ao homem. Ela é o motor das
invenções, das descobertas, das reformas e das revoluções.209
Consoante afirma Teixeira
Filho, ela é “uma necessidade e um direito, a sobrepor-se aos apelos e exigências
amortalhantes feitos pelo real, pela ‘realidade’”.210
A imaginação utópica é um direito que não se contenta com o sonho, apenas,
quer transformar-se em algo concreto, aspira a realizar seu objetivo numa proximidade
imediata.211
Mas ela não se esgota por aí, segundo lição de Teixeira Coelho, na esteira
de Ernst Bloch:
Mesmo quando este [objetivo] se apresenta como algo concreto, como
resultado da ação utópica, há um resto que permanece para ser
retomado por outra imaginação utópica do mesmo homem, do mesmo
grupo social. Há sempre um excedente utópico a funcionar como mola
206
Ibid., p. 164. 207
Apud DOUZINAS, ob. cit., p. 190. 208
HERKENHOFF, João Baptista. Direito e utopia. 3.ed. Porto Alegre: Revista do Advogado, 1999, p.
15. 209
COELHO, Teixeira. O que é utopia. São Paulo: Brasiliense, 1980, p. 9-14. 210
Ibid., p. 12. 211
Ibid., p. 12.
82
de um novo ciclo imaginativo, há sempre algo de irrealizado que
busca realizar-se numa nova projeção.212
No reconhecimento da existência desse excedente utópico está a esperança. É o
“princípio esperança” de que fala Bloch que nos faz resistir a dobrar os joelhos diante
de uma realidade opressiva.
Este “princípio esperança”, segundo o qual todas as relações nas quais
o homem é um “ser degradado, escravizado, abandonado ou
desprezado” deveriam ser destruídas, continua tão válido hoje quanto
jamais foi e consiste na melhor justificativa e no mais efetivo fim para
os direitos humanos.213
Os direitos humanos devem ser vistos como parte da luta de grupos sociais
empenhados em promover a emancipação humana. Não devemos esquecer sua enorme
capacidade de gerar esperanças nas lutas contra as injustiças e explorações que sofre
grande parte da humanidade.
Embora com todas as profundas críticas mencionadas ao longo deste trabalho, a
Declaração de 1789 tornou possível reivindicações antes não imaginadas ou
imagináveis, abriu espaços de luta pela dignidade humana e aumentou o poder de
indignação pela violação dos direitos nela inscritos. A Revolução Francesa gerou
excedentes utópicos e energias para a transformação social e política que foram
apropriados posteriormente em diversos domínios.
Como afirma Hunt:
A noção dos "direitos do homem", como a própria revolução, abriu
um espaço imprevisível para discussão, conflito e mudança. A
promessa daqueles direitos pode ser negada, suprimida ou
simplesmente continuar não cumprida, mas não morre.214
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi importante para grupos e
indivíduos na sua luta por emancipação, que se apoderaram de suas palavras e buscaram
torná-las realidade.
212
Ibid., p. 12. 213
DOUZINAS, ob. cit., p. 191-192. 214
HUNT, ob. cit., p. 176.
83
Algo parecido foi observado nos Estados Unidos e sua Declaração de 1776. Às
vésperas da aprovação da lei de 1964 (Civil Rights Act) que bania, na forma jurídica,
quaisquer distinções de raça, sexo, cor, religião ou origem natural, reafirmando assim os
mesmos princípios contidos na Declaração de Independência de 1776, Martin Luther
King retomou a tradicional argumentação do século XVIII na sua defesa à igualdade
racial.
No seu famoso discurso (I have a dream, “Eu tenho um sonho”), Luther King
afirma que nem a Independência nem o fim da escravidão significaram o fim das
limitações à cidadania dos negros e cobra que os direitos expressos na Declaração de
Independência sejam compreendidos amplamente:215
Quando os arquitetos de nossa república escreveram as magníficas
palavras da Constituição e da Declaração de Independência, estavam
assinando uma nota promissória de que todo norte-americano seria
herdeiro. Esta nota foi a promessa de que todos os homens, sim,
homens negros assim como homens brancos, teriam garantidos os
inalienáveis direitos à vida, liberdade e busca de felicidade.216
Um pouco mais adiante, afirma Luther King:
Eu tenho um sonho de que, um dia, esta nação se erguerá e viverá o
verdadeiro significado de seus princípios: “Achamos que estas
verdades são evidentes por elas mesmas, que todos os homens são
criados iguais”. Eu tenho um sonho de que, um dia, nas rubras colinas
da Geórgia, os filhos de antigos escravos e os filhos de antigos
senhores de escravos poderão sentar-se juntos à mesa da
fraternidade.217
A promessa de “liberdade, igualdade e fraternidade”, herança da Revolução
Francesa, permanece viva até hoje. Como valores, segundo Comparato218
, eles formam
os princípios fundamentais em matéria de direitos humanos e estão inscritos no artigo 1º
da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948: “Todas as pessoas nascem
215
KARNAL, Leandro. Estados Unidos, liberdade e cidadania. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla
Bassanezi (Orgs.). História da cidadania. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2010, p. 151. 216
Apud KARNAL, op. cit., p. 156. 217
Ibid., p. 156. 218
COMPARATO, ob. cit., p. 240.
84
livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir
em relação umas às outras com espírito de fraternidade”.219
Mas os direitos humanos perdem sua finalidade quando deixam de ser uma
prática de resistência para se transformarem em instrumentos de opressão, ou quando se
tornam letra morta em inúmeros tratados internacionais. A bandeira dos direitos
humanos deve ser levantada no combate contra a dominação, a segregação, o
colonialismo, o imperialismo, e não para justificá-los, acobertá-los ou aceitá-los. Os
direitos humanos devem trazer consigo a utopia de um mundo sem exploração,
alienação ou fronteiras. Eles devem ser instrumentos de luta contra toda forma de
opressão.
219
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Coletânea de direito internacional, constituição federal. 8. ed. Ver.,
ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 787.
85
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após examinar e problematizar as relações entre a Revolução Francesa e os
direitos humanos, conclui-se que muitas das causas dos problemas que cercam os
direitos humanos atualmente, sua finalidade, suas contradições, seu caráter ideológico,
suas aporias, originaram-se desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
(1789) e sua repercussão imediata, na teoria e na prática. Por outro lado, evidenciou-se a
importância histórica dos direitos e ideais proclamados na Revolução Francesa na luta
pela dignidade humana.
Primeiramente, procurou-se traçar as origens das ideias da Revolução Francesa.
Tais ideais são produto da filosofia do Iluminismo, que na França era representada pelos
filósofos da Enciclopédia. Após, abordou-se a doutrina do direito natural, que marcou a
época e influenciou decisivamente as primeiras declarações de direitos. Para
compreender os seus fundamentos, foi feito um retrospecto histórico, da Antiguidade à
era medieval, até chegar à formulação individualista que ganhou na era moderna,
destacando as teorias dos filósofos Tomas Hobbes e John Locke.
Ressalta-se que esses tópicos foram abordados como desenvolvimento
necessário para se compreender a Revolução Francesa e os direitos humanos nela
proclamados, mencionados ao longo do trabalho.
No segundo capítulo, comentou-se primeiramente a importância da Revolução
Francesa na história. Ela inaugurou uma nova era, pôs fim ao absolutismo monárquico
na França, instaurou um Estado liberal e laico, fundado nos princípios da soberania
nacional e na igualdade civil, e repercutiu no mundo inteiro. Ela também nos legou a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), marco fundamental no
processo de afirmação histórica dos direitos humanos. Foram analisados sucintamente
os direitos nela proclamados.
Em seguida, se relacionou a Declaração francesa e as Declarações norte-
americanas, destacando o pioneirismo da Declaração de 1776 no reconhecimento de
direitos inerentes a todo ser humano, levando em conta, ainda, a diferença entre os dois
eventos históricos nos quais surgiram, a Revolução na França e a Revolução Americana.
86
Discutiu-se, também, o caráter universal da Declaração de 1789, que a diferenciou da
sua equivalente norte-americana.
No terceiro capítulo, foram abordadas as consequências advindas da
proclamação da Declaração de 1789, na França e no mundo. Dentre as muitas
repercussões, escolheu-se privilegiar três: a luta pelo reconhecimento de direitos civis
das minorias religiosas na França; o impacto da Declaração na colônia francesa de São
Domingos (Haiti) e as pioneiras reivindicações pelos direitos das mulheres.
Devido à sua importância nas lutas por direitos humanos ao longo da história, as
duas últimas consequências foram mais aprofundadas. No segundo tópico, restou
evidente que os princípios da declaração dos direitos não valiam para todos os homens,
nem para todos os lugares. Ainda assim, depois de campanhas abolicionistas na França
e combates intensos na colônia, a escravidão foi abolida e os negros conquistaram
direitos de cidadania importantes. Por fim, no terceiro tópico, foi mostrado que, em
relação à igualdade, a linha foi traçada nas mulheres, tendo sido negado a elas os
direitos políticos, mas pela primeira vez a questão teve que ser discutida publicamente.
As reivindicações e a promessa daqueles direitos, no entanto, não foram esquecidas.
No quarto capítulo, inicialmente foi analisada a crítica de Edmund Burke ao
caráter metafísico e abstrato dos direitos do homem. Em seguida, foi abordada a crítica
de Karl Marx, mostrando que por trás do homem universal e abstrato da Declaração, o
que existia de fato era um tipo muito determinado de homem: o homem burguês. Por
fim, o tópico final traz um alento para os direitos humanos, apontando o seu caráter
utópico e libertador.
O universalismo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789),
fruto do Iluminismo, embora tenha sido criticado por operar com um conceito abstrato
de homem em geral, não atentando suficientemente para a existência de diferenças reais,
gerou efeitos importantes, como a condenação de qualquer forma de racismo, de
colonialismo, de sexismo. Esse universalismo foi consolidado pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948.
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