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Mirabilia 6 Revista Eletrônica de História Antiga e Medieval Journal of Ancient and Medieval History December 2006 ISSN 1676-5818 COSTA, Ricardo da (coord.). A educação e a cultura laica na Idade Média La educación y la cultura laica en la Edad Media The educacion and secular culture in the Middle Ages Em um locus amoenus uma dama de longas madeixas "prende" um jovem apaixonado com uma forquilha (que, ajoelhado, lhe jura fidelidade vassálica, com as mãos fechadas), enquanto porta em sua mão esquerda uma ave de rapina, demonstrando assim sua condição nobre. Detalhe de uma caixa esmaltada (c. 1180, Limoges).

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Revista Eletrônica de História Antiga e Medieval Journal of Ancient and Medieval History December 2006

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Mirabilia 6

Revista Eletrônica de História Antiga e Medieval

Journal of Ancient and Medieval History

December 2006 ISSN 1676-5818

COSTA, Ricardo da (coord.). A educação e a cultura laica na Idade Média

La educación y la cultura laica en la Edad Media – The educacion and secular culture in the Middle Ages

Em um locus amoenus uma dama de longas madeixas "prende" um jovem apaixonado com uma forquilha

(que, ajoelhado, lhe jura fidelidade vassálica, com as mãos fechadas), enquanto porta em sua mão esquerda

uma ave de rapina, demonstrando assim sua condição nobre.Detalhe de uma caixa esmaltada (c. 1180, Limoges).

*

Apresentação – Presentación – Editorial

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Artigos – Artículos – Articles

Apresentação

Ricardo da Costa (Ufes)

A Idade Média é conhecida por ser o tempo da religiosidade, do cristianismo, enfim, da fé. Costumeiramente pouca ênfase é dada ao mundo laico e às suas manifestações (tanto nos documentos escritos quanto imagéticos). Em contrapartida, hoje são muitos os estudos que se dedicam à educação medieval. Portanto, para esse novo volume da Mirabilia, decidimos fundir os dois temas em um só, e oferecer ao leitor de língua portuguesa um conjunto de trabalhos que abordam distintos aspectos da cultura laica e da educação.

Nosso objetivo é proporcionar ao leitor de língua portuguesa uma outra perspectiva da Idade Média: a de um mundo apenas parcialmente cristianizado, de um cristianismo de verniz, que poucas vezes conseguiu alcançar os substratos mais profundos do pensamento dos homens de então. Assim, apresento nossos autores e seus textos.

Ronaldo Amaral analisa o Saber e a Educação na Antigüidade Tardia a partir da relação dos Padres monásticos com a cultura greco-romana, especialmente Atanásio de Alexandria, São Jerônimo e Isidoro de Sevilha.

O artigo de Ofelia Manzi y Patricia Grau-Dieckmann (Universidad de Buenos Aires), “Los textos apócrifos en la iconografía cristiana”, analisa as novas formas iconográficas do século IV e que se baseiam nos Evangelhos apócrifos.

Carlile Lanzieri Júnior apresenta um dos primeiros trabalhos em português sobre Guiberto de Nogent (1055-1125). Seu artigo, “Formação, obediência e humanismo: considerações sobre a educação infantil medieval nas Monodies do abade Guiberto de Nogent (séc. XII) ”, aborda várias e interessantes facetas da educação monástica do período imediatamente anterior à explosão das universidades.

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O artigo de Hilda Gomes Dutra Magalhães (UFT), Eliane Cristina Testa (UFT) e Izabel Cristina dos Santos Teixeira (UFT), intitulado “O imaginário cristão nas novelas de cavalaria e nas cantigas de amor”, trata da influência da educação cristã no imaginário laico medieval, a partir de A demanda do Santo Graal e das cantigas de amor produzidas a partir do século XII. As autoras concluem que apesar da influência da Igreja, substratos das tradições culturais anteriores ao cristianismo se desenvolveram no imaginário medieval.

Terezinha Oliveira (DFE/PPE/UEM) resgata a Memória da Universidade medieval através de três autores: Savigny, Steenberghen e Jacques Verger, para assim dar seu próprio olhar e lembrança de nossa milenar instituição, lembrança essa que é uma marca, segundo a autora, de nosso presente.

Meu trabalho na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) teve como um de seus pilares a disponibilidade do trabalho de pesquisa ao corpo discente. Em outras palavras, abri as portas para alunos desejosos de iniciarem-se no verdadeiro estudo do passado: o trabalho com as fontes. Um resultado desse investimento humano foi o trabalho com a graduanda e bolsista do CNPq Nayhara Sepulcri, intitulado “A donzela que não podia ouvir falar de foder” e “Da mulher a quem arrancaram os colhões”: dois fabliaux e as questões do corpo e da condição feminina na Idade Média (sécs. XIII-XIV). Nele, analisamos os fabliaux, gênero literário profano, para vislumbrar a condição feminina medieval. O resultado foi bastante diferente da ladainha “mulher-sofredora-oprimida” muitas vezes apresentada.

Álvaro Alfredo Bragança Júnior (UFRJ) trouxe outra interessante contribuição para a Mirabilia: um estudo sobre os provérbios medievais , no qual se insere na temática de nosso volume e analisa a apropriação da cultura laica pelo discurso religioso. Há tempos o Prof. Álvaro Bragança trabalha com a paremiologia medieval, sempre com instigantes e ousadas interpretações, aproximando os textos literários da realidade histórica. Sentimo-nos honrados com esse seu presente para Mirabilia 6.

Gerard Marí i Brull (Universitat de Barcelona), como grande especialista catalão do tema, recupera e renova a

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tradição heráldica medieval com seu artigo “Heráldica medieval: una creación cultural para una sociedad laica”, onde aborda suas origens históricas, a linguagem específica da descrição heráldica e a transmissão desse importante conhecimento, historicamente alheio às manifestações culturais religiosas.

Moisés Romanazzi Tôrres (UFSJ) nos oferece outra análise do tema em que é um notável especialista: o pensamento de Dante Alighieri. No Convivio e na obra De Monarchia, Romanazzi nos informa que Dante traçou sua ética, de cunho aristocrático e elitista. Dante propôs o governante-filósofo, incumbido de guiar as multidões humanas à felicidade e perfeição terrestres.

Esses são os textos que ora apresentamos ao público. Agradecemos sobremaneira aos autores que nobilitaram mais esse nosso esforço em difundir a História Antiga e Medieval, e esperamos que você, caro leitor, aprecie mais essa iniciativa da Revista Mirabilia.

 

Ricardo da Costa (Ufes)

Saber e Educação na Antigüidade Tardia: os Padres monásticos e eclesiásticos

diante da cultura greco-romana

Ronaldo Amaral

ResumoA Antiguidade Tardia é certamente um dos períodos mais

importantes para a compreensão de nossa civilização e sua cultura. Berço do cristianismo e daquilo que viria a ser a civilização cristã ocidental, para nos restringirmos ao mundo latino, é neste período

que surge e toma corpo, senão propriamente nossas estruturas materiais, em grande medida nossas estruturas mentais, uma vez

que devemos ao cristianismo e sua principal corrente de pensamento desta época, a Patrística, o essencial não só de nosso credo religioso,

mas mesmo da gênese de nosso modo e razão de pensamento. A cultura cristã, por sua vez, fora devedora de outras tradições

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religiosas e culturais, a partir das quais se edificou ao incorporá-las. Este processo deu-se, sobretudo, nesse período que nos ocupa e por meio de muitos daqueles que viriam a ser conhecidos como padres

da Igreja.

AbstractThe Late Antiquity is certainly one of the most important periods for

the understanding of our civilization and its culture. Cradle of the Christianity and of that that would come to be the western Christian civilization, for we restrict ourselves to the Latin world, it is in this period that appears and it takes body, or else properly our material

structures, in our great measure mental structures, once we owed to the Christianity and its main current of thought of this time, the

Patristic, the essential not only of our religious credo, but even of the genesis in our way and thought reason. The Christian culture, for its time, had been indebted of another religious and cultural tradition,

being built to the incorporation of that another tradition. This process was developed above all in this period that occupies us and

by means of many of those that would come to be known as priests of the Church.

Palavras-chaveCristianismo – Cultura – Antiguidade Tardia

KeywordsChristianity – Culture – Late Antiquity

*

A Antigüidade Tardia, como é sabido, esteve marcada por um espírito alicerçado em um forte ideal ascético e escatológico, que fundamentou em grande medida o ideário e as condutas

dos primitivos cristãos. Partindo desta observação, poderemos entender a relação desconcertante, quando não antagônica, entre muitos dos primeiros padres da Igreja, e o saber secular, a cultura produzida e praticada pelo século.

A literatura patrística da Antigüidade Tardia ou por alguns de seus exemplares, tanto do Oriente quanto do Ocidente,

demonstrou correntemente uma substancial resistência às expressões culturais mais refinadas de seu tempo, ou seja, ao saber erudito, ao espírito investigativo, filosófico, e às letras. O ideal cristão primitivo como sucessor e herdeiro do ideal

evangélico deveria relegar a um segundo plano, quando não negar de todo, o saber do “mundo”, que, como as práticas

sociais – família, sexo, cargos e dignidades – ligariam demasiadamente o homem ao temporal e o desviariam de seu

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objetivo maior: a vida celeste, que deveria ser conquistada ainda neste mundo, ainda que fosse tão somente pela

negação deste último para estar plenamente a espreita do mundo que havia de vir.

Assim, afirmaria Paulo em sua Primeira Epístola ao Coríntios, que ele próprio não utilizaria recursos oratórios e nem da

sabedoria erudita para falar de Cristo, pois

Na realidade, é aos maduros na fé que falamos de uma sabedoria que não foi dada por este mundo, nem pelas autoridades passageiras deste mundo. Ensinamos uma coisa misteriosa e escondida: a sabedoria de Deus, aquela que ele projetou desde o princípio do mundo para nos levar a sua glória [...] Quanto a nós, não recebemos o espírito do mundo, mas o espírito que vem de

Deus, para conhecermos os dons que vem da graça de Deus. Para falar destes dons, não usamos a linguagem ensinada pela sabedoria humana, mas a linguagem que o espírito

ensina, falando de realidades espirituais em termos espirituais [...]. (1Cor.  2  6-8, 12-13)

Percebe-se que a recusa aos estudos e ao saber secular seria estrita, pois o verdadeiro conhecimento parecia residir

precisamente em sua antítese, na ignorância completa, que abria caminho e deixava lugar para o espírito humano se

ocupar da sabedoria do espírito de Deus. 

As obras patrísticas, inspiradas sobretudo na literatura bíblica e particularmente em Paulo, seriam ainda produzidas

em ambientes tomados pela cultura helenística, tanto no Oriente com a língua grega, quanto no Ocidente e em suas

regiões mais continentais com a língua e tradições romanas. Entenderiam assim, que esta seria a cultura a se condenar, porque proveniente de um meio demasiado ligado ao saber

humanístico e filosófico, portanto temporal, além de ligado ao paganismo que também seria condenado e rechaçado pelos grupos cristãos, particularmente os mais radicais, como os

monásticos.

Deste modo, ao mesmo tempo em que se repudiava a cultura erudita, de modo particular a helenística, por ser pagã e

referir-se a temas e questões seculares, que, no mais, ainda que buscasse especular sob as coisas divinas, o fazia por

um[a] meio “ilícito” e “ineficaz”, na medida em que se utilizaria de teorias, de obras literárias e filosóficas, e não da

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práxis espiritual, contemplativa, fundava-se concomitantemente uma outra “cultura”, edificada em uma

“ciência espiritual”, onde, ainda que houvesse o uso de algum material para o estudo e reflexão, este seria tão somente a

Bíblia e em segundo lugar os escritos dos Padres.

E para os mais austeros, nem mesmo estaria permitido o estudo investigativo das Sagradas Escrituras e dos demais escritos da tradição cristã, cuja utilização se prestaria tão

somente para constituir-se em arma contra o demônio e seus ataques. A sabedoria única e verdadeira deveria ser

dispensada pela providência de Deus, da contemplação pura e simples do Senhor, não do estudo, mas do dom da

santidade e da contemplação (COLOMBÁS, 1989: 152). O verdadeiro sábio cristão seria assim o theodidactos,

“instruído por Deus”, como o veremos por meio de Atanásio de Alexandria na Vita Antonii (ATANÁSIO DE ALEXANDRIA,

1988).

Assim o repúdio da cultura seria antes de tudo a negação de uma prática e tradição estabelecidas por uma elite intelectual, que possuía seus produtos e modelos

especulativos bem precisos. Eram estes os filósofos, os historiadores e os literatos gregos e romanos, que segundo o

ponto de vista destes ascetas, só sabiam cuidar das coisas temporais, puramente humanas, e quando se dedicavam ao

conhecimento das coisas divinas o faziam por meio da atividade filosófica e das letras. Deste modo, se o

cristianismo destes primeiros tempos negava o “mundo” e se pretendia realizável fora dele, tudo o que o comportava lhe seria insatisfatório. Daí que se negaria a cultura fundada no

humano e em suas especulações e fundar-se-ia uma nova cultura, assentada a partir de então no mais antigo dos

saberes, o do conhecimento prático do Senhor, pois, se o cristianismo não veio para conquistar o mundo e sim para tolerá-lo e dele se desvencilhar sempre que oportuno, por

que cultivar seu saber e seu entendimento?

Todavia, o cristianismo em um momento preciso e fundamental conquistara a história e nesta se inserira, pois seu próprio Deus se encarnara e legara uma tradição, uma

prática a ser vivenciada. Agora, a matéria consistirá na única característica que fará o cristão asceta dignar-se a lidar com

especulações literárias, já que estas diziam respeito ao

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sagrado, ao espiritual, e isto era, convém lembrarmos, admissível e praticável por aqueles ascetas mais instruídos

ou abertos a uma interpretação menos literal do texto bíblico. O saber lhes seria, portanto, um meio e não um fim, como vinha sendo até então, ainda que sob outras perspectivas,

para a filosofia e as especulações humanísticas.

A Vita Antonii de Atanásio de Alexandria será o documento mais nítido deste ideal de recusa ao saber profano, uma vez que demonstrara com contundência as atitudes e mesmo as

teorias desta recusa ao saber secular por parte dos primeiros monges, que, como veremos, teriam a partir de então sua atenção voltada quase totalmente aos textos sagrados do

cristianismo, que no mais deveriam ser lidos como escritos revelados e reveladores de uma verdade absoluta acerca de

Deus e de sua criação, portanto desprovida de críticas e atitudes investigativas.

Assim, segundo Atanásio, o solitário Antão desconheceria todo saber profano e seus representantes, os filósofos, provando em certa ocasião seu hagiografado, deviam

reconhecer que a sabedoria das “coisas de Deus”, conquistada pelo solitário, estaria acima daquele saber que

representavam, a cultura greco-romana, e a postura crítica e filosófica diante do mundo e mesmo da divindade. Antão

receberia no monte onde residia a visita de dois filósofos que viriam interrogá-lo acerca de sua sabedoria, e embora o

tenha “vencido”, ao convencê-los de seu poder sobrenatural, receberia novas visitas de tantos outros filósofos.

Outros, como estes (os filósofos), acercaram-se do monte exterior, com a intenção de mofar-se daquele que não tinha

letras. E Antão lhes disse: Diz-me, que é anterior, o entendimento ou as letras? Quem é a causa de quem? A inteligência das letras, ou as letras da inteligência? Eles

contestaram que o espírito era anterior, e que dele procede a sabedoria. E Antão replicou: ‘o que tem um espírito são não necessita estudar’ Ante estas palavras, eles e muitos outros

estiveram atônitos e partiram assombrados de encontrar tanta sabedoria em um homem sem estudos. Seus modos

estavam libertos de toda rusticidade, como seria de esperar em quem havia vivido e envelhecido nas montanhas. Era muito associável e agradável em seu trato. Suas palavras

tinham o sabor do divino; sempre era fonte de gozo e nunca

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de discórdias, para os visitantes. (ATANÁSIO DE ALEXANDRIA, 1988: 73).

O asceta de Belém São Jerônimo, em epístola enviada a Eustóquia, uma de suas discípulas, nos indicaria um

pensamento e uma concepção de igual temor e abandono à cultura secular. O lugar dado a partir de agora à literatura cristã bíblica e patrística deveria ser único e exclusivo na leitura e educação do cristão, e do monge em particular.

Jerônimo que havia se desvencilhado dos bens e do convívio com o “mundo” não conseguiria, no entanto, se desapegar de

sua biblioteca que conteria um grande número de obras clássicas. Levada consigo ao deserto, passaria a ocupar-lhe

demasiadamente o tempo com as leituras dos autores clássicos que possuía.

Deste modo, o anacoreta de Belém desprezaria os autores cristãos que lhe pareceriam pouco cultos e dedicaria parte de seu tempo à leitura daquela tradição estranha e anterior ao cristianismo, em lugar da total dedicação às leituras e aos exercícios espirituais exigida pela vida acética e solitária.

Esta conduta de Jerônimo seria seriamente repreendida por Deus, que exigiria de seu seguidor uma dedicação exclusiva às obras que somente a Ele e a sua história respeitassem,

uma vez que, sofrendo de uma grave enfermidade, a Ele seria conduzido para que fosse castigado e orientado para uma existência mais estritamente cristã, o que lhe custaria o desapego total de sua cultura e erudição clássica, sem, é

claro, que isto tenha se realizado real e efetivamente.

[...] De repente, fui arrebatado em espírito e arrastado diante do tribunal do Juiz. A luz ambiente era tão deslumbrante que, prostrado

em terra, não ousava levantar os olhos. Interrogado sobre minha condição, respondi. ‘sou cristão’; mas, o que presidia disse: ‘Mentes,

és cicerioniano e não cristão; onde esta teu tesouro, aí esta teu coração’(Mt 6,2) [...] (JERÔNIMO, 1993: Epístola 25)

Jerônimo seria açoitado e, novamente diante do Juiz, arrepender-se-ia de seu apego aos livros e autores profanos.

[...] Quanto a mim, vendo-me em situação tão crítica, estava disposto a prometer ainda mais. Por isso comecei a jurar em nome de Deus: ‘Senhor, dizia eu, se algum dia possuir obras profanas ou as ler, é

como se te negasse’ Ao fazer este juramento, fui posto em liberdade e voltei a terra [...] possa eu jamais sofrer semelhante interrogatório! Ao despertar estava com os ombros machucados, e sentia a dor das

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feridas. Desde então, li os livros divinos com mais afinco do que lera outrora as obras dos mortais. (JERÔNIMO, 1993: Epístola 25)

Esta epístola de Jerônimo que pretendia dar a conhecer a Eustóquia a vida ascética e solitária, seu estado, suas formas e razões, se prestaria também a incitá-la, como aos demais

leitores desta correspondência, particularmente os professos cristãos, a enxergar e a exercitar a prática dos estudos a partir do abandono da antiga cultura greco-romana pelo exclusivismo das obras cristãs, que embora contivessem, como é sabido, elementos e argumentos clássicos, já se

encontrariam em grande medida naturalizados pela e para a causa do cristianismo.

No entanto, o próprio Jerônimo, que tivera que prestar contas a Deus por sua simpatia pelos autores clássicos,

chegaria mesmo em outra ocasião a justificar e a testemunhar seu uso das obras clássicas e de tantos outros

autores cristãos, como veremos mais abaixo.

Um reflexo desta nova “tendência cultural” inaugurada pelo cristianismo, que tornaria lícito somente as obras e autores

cristãos, cujo uso ainda, muitas vezes, somente se restringiria a uma leitura piedosa e não especulativa,

encontrara-se na educação aconselhada e organizada por estes mesmos ascetas. Garcia Colombás nos informará que

nas agrupações monásticas destes primeiros séculos cristãos, como se sabe, incumbidas da educação de crianças e jovens

entregues ou não ao estado monástico, o método de educação dispensada divergiria daquela encontrada até

então nas escolas da antiguidade clássica. As regras de São Basílio, por exemplo, para exercitar a leitura da Bíblia,

instruiria para que se ensinassem máximas, listas de nomes, pequenas histórias, retiradas desta mesma obra

(COLOMBÁS, 1974: 305).

Jerônimo, preocupado com a educação das crianças e jovens cristãs, recomendara que lhes oferecessem para a leitura os textos bíblicos e os escritos dos Padres, devendo ainda ser os primeiros memorizados e lidos com freqüência. A oração, a

participação em atos religiosos e as práticas de ascese também comporiam as atividades desta educação dirigida

pelo asceta.

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Entretanto assistiríamos mais do que um repúdio absoluto da cultura greco-romana, uma reutilização de seu conteúdo para a nova cultura cristã, ou seja, embora aquela sobrevivesse ao advento de Cristo, deveria tomar corpo neste e adaptar-se,

inclusive para sua justificação.

E aqui são enfáticas as palavras de Santo Agostinho a este respeito

Pois tal como os egípcios não só possuíam ídolos e grandes cargas que o povo de Israel não podia senão detestar e evitar, também

possuíam vasilhas e adornos de ouro e prata e vestimentas que o povo que saia do Egito reivindicou como destinados ao melhor uso,

não levados pela sua própria decisão, senão por mandato divino, assim as doutrinas dos gentios não só contém criações inventadas e perniciosas e alforjas carregadas de esforço inútil, coisas todas que

nós que saímos da sociedade dos gentios, sob a guia de Cristo, devemos não aceitar e evitar, senão também matérias dignas de

aprendizagem adequadas para acender as verdades da fé e certas normas morais muito úteis e também que se encontram certas

verdades sobre o culto de Deus. O cristão deve tomá-las com o justo fim de predicar o evangelho (AGOSTINHO DE HIPONA, 1969: 408).

Para predicar a verdade contida na literatura cristã, sobretudo a bíblica, poder-se-ia usar as doutrinas dos pagãos, sendo tal postura apenas permissível, caso preparassem para

o entendimento daquela. Assistiríamos assim uma reorientação do saber antigo, greco-romano, para adequá-lo

as verdades da fé cristã. Utilizar-se-iam obras clássicas desde que cristianizadas, desprovidas de seu sentido primitivo,

original em sua essência, passando então a justificar as idéias cristãs, ou para servi-las de instrumento para seu bom entendimento e propagação –  por exemplo por meio do

trivium e do quadrivium – ajudando em sua escrita, seu bem falar e seu entendimento.

As obras clássicas fragmentadas e assim desprovidas de seu conteúdo e sentido mais amplo, rechaçadas pelo seu valor literário, estabelecedor de sua cultura, de suas tradições e crenças, virão a assistir o seu uso a partir de então para o conhecimento da língua latina, da história romana ou da geografia, das artes liberais ou mesmo de muitas de suas idéias, mas desde que ganhassem um sentido colaborador

com o cristianismo.

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São Jerônimo, que havia sido repreendido e castigado por Deus pelo uso dos autores pagãos, como vimos, e

recomendava veementemente a seus leitores que também não os lessem, em outra ocasião professara abertamente sua

consulta, chegando mesmo a justificar a sua utilização.

A respeito do que me perguntas no final da carta, porque em minhas obras ponho às vezes, exemplos da literatura profana e mancho a candura da Igreja com as imundícias dos gentis,

aqui tens minha resposta em poucos palavras: nunca haverias perguntado isto se a ti mesmo não o dominara Túlio totalmente, se leras as Escrituras Santas e, deixando de lado a Volcacio, consultaras com assiduidade os intérpretes das

mesmas.

Porque quem não sabe que nos rolos de Moisés e dos profetas há coisas tomadas dos livros dos gentis, e que Salomão colocou algumas questões aos filósofos de Tiro e lhe respondeu a outras. Daí que, no exórdio dos Provérbios, nos admoesta ele mesmo a que entendamos

os decursos ou discursos??? da prudência e os artifícios das palavras, a parábola e a linguagem obscura, os ditos dos sábios e seus

enigmas, coisas que pertencem propriamente aos dialéticos e aos filósofos. O mesmo apóstolo Paulo, em carta a Tito, se aproveitou do

verso do poeta Epiménides [...]. (JERÔNIMO, 1993: Epístola 70)  

Esta nova visão e prática da “cultura” inaugurada pelo cristianismo primitivo não se restringiram ao Oriente.

Constituindo-se parte formadora e caracterizadora do ideal religioso cristão nascente, a atitude diante do despojar ou

reorientar a cultura profana em função do conhecimento do sagrado cristão disseminou-se por praticamente todas as

manifestações da religião e religiosidade cristã ocidental, a que acrescentamos aqui a Gália e a Hispânia.  Quanto a esta região temos que sublimar a eminente figura de Isidoro de

Sevilha.

O grande número da produção literária de Isidoro de Sevilha e, sobretudo, a multiplicidade de temas e questões que tratara, pois não apenas se restringira à teologia ou às demais questões relacionadas à Igreja e à fé cristã, mas

buscara entender e dar a entender temas ligados à filosofia, literatura, história, cosmografia, medicina, física, ciências

naturais, poesia, entre outros, nos indicariam que sua formação e trabalho intelectual compreendiam uma

substancial bagagem literária clássica. A atitude do bispo de

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Sevilha em relação ao saber clássico seguirá assim aquela tendência já observada nos Padres anteriores, ora

rechaçando-o categoricamente, ora aproveitando-o quando a autoridade daqueles convinham à fé cristã.

Escolas filosóficas clássicas, como o estoicismo e o neoplatonismo, por suas naturezas mesmas, seriam as mais

absorvidas pela teologia cristã. Isidoro, todavia, e talvez como um traço singular frente a outros padres bem mais

“conservadores” da nova ordem, não deixaria em algumas ocasiões de se referir positivamente aos pensadores antigos e

fazer uso deles por eles mesmos. (SEBASTÍAN, 1982: 92)

O saber e a cultura promovida por Isidoro de Sevilha no Reino visigodo o colocaria em um preeminente papel, não só de intelectual, mas também de educador e, tanto do clero – regular e secular, quanto dos laicos (DOMINGUEZ DE VAL,

1970: 8). As Etimologias demonstram-nos esta sua preocupação de promover uma cultura mais geral. A

dedicação às artes liberais que compõe seus três primeiros livros nos indicaria que Isidoro se preocuparia em instruir

seus múltiplos leitores, dando-lhes os alicerces para o aprendizado, tanto do sagrado, quanto do secular, este,

entretanto, desde que sob uma ótica cristã, como já salientamos.

Esta obra demonstra, por exemplo, o interesse de Isidoro por uma cultura mais geral, ou seja, não somente por aquela que concernia, de modo explícito, ao cristianismo. Promoveria,

não obstante, o gosto pela história, trataria das ciências humanas, naturais, da filosofia e das mais variadas

ocorrências da vida material e do cotidiano. Dispensaria um saber enciclopédico, o primeiro que assistira a cristandade

(QUILES, 1965: 53). Ao mesmo tempo, as Etimologias seriam um dos mais importantes salvo-condutos das obras e dos

autores pagãos para a medievalidade, não somente porque os conteriam, mas porque demonstrariam sua utilização, sua

aplicabilidade para este novo meio.

Deste modo, pudera afirmar Carmem Codoñer, que o impacto de Isidoro sobre seu tempo e mesmo em épocas posteriores

tem sua origem no inesperado e desusado interesse pela cultura, não necessariamente eclesiástica, nem política, mas

sim a entendida no sentido profano. Contudo Isidoro, seguindo a seus predecessores, padres latinos e orientais,

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viria a fazer um uso não indiscriminado da cultura clássica, pois seus autores e obras seriam utilizados desde que

auxiliassem ao entendimento das Sagradas Escrituras, uma vez que [...] os livros são um legado cultural que a cada

período são objetos de leituras distintas e inclusive encontradas. Há leituras de época, leituras pessoais dentro das épocas. Também há modos de ler. Não se lê gramática

por prazer, senão para poder desfrutar das leituras de outros livros [...] (MERINO, 2002: 109).

Desse modo, Isidoro, no terceiro livro das Sentenças assim admoestava “[...] não é bom ler as fabulas dos poetas, porque

com o afável das fábulas vazias se desperta na mente o apetite da voluptuosidade. Não somente se sacrifica aos

demônios, oferecendo-lhes incenso, senão também recebendo com agrado suas palavras [...]”. (ISIDORO DE SEVILHA, 1991: 89). Esta mesma repreensão encontrara-se em sua Regula Monachorum “[...] O monge não deve ler livro de autores pagãos ou hereges, pois é preferível ignorar suas doutrinas perniciosas que cair no laço de seus erros pela

própria experiência [...]” (ISIDORO DE SEVILHA, 1971: 103).

Para Isidoro de Sevilha, a cultura clássica seria um bem reservado àqueles que dela soubessem fazer uso, ou seja, soubessem desprovê-la, ou mesmo e anteriormente, provê-

las, dos “erros”, dos “demônios”, ao cristianizá-la. Feito isto, poder-se-ia realizar um uso seguro, preciso e conveniente

com a nova fé e seus alicerces que se inaugurariam. Aqui, o próprio se inseriria com competência e autoridade

singulares.

Assim, o cristianismo que inauguraria uma nova época criaria um novo modo de ler as obras daquela anterior, modo este conduzido e arrazoado pela mais eminente mentora destes novos tempos – a Igreja – que se auto impôs a condição de

porta-voz desta nova tradição cultural – o cristianismo.

*

Fontes e bibliografia

AGUSTÍN DE HIPONA. Obras completas de San Agustín. XV: Escritos bíblicos (1.º): La doctrina cristiana. Comentario al Génesis en réplica a los maniqueos. Comentario literal al Gênesis. Edición bilingüe preparada por Balbino Martín Pérez. Madrid: BAC, 1969.

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ATÁNASIO Vida de Antonio. Tradução, introdução e notas por A. Ballano. Zamora: Ediciones Monte Casino, 1988.

JERÔNIMO. Epistolário. Ed. bilingüe (Latim-Espanhol) introdução e notas por Juan Bautista Valero. Madrid: BAC, 1993. Epistola a

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ISIDORO DE SEVILHA. Etymologiarum. Edición bilíngüe (latim-espanhol) de J. º Reta e M. A. M. Casquero, com introdución de

Manuel C. Díaz e Díaz. Madrid: BAC, 2004.

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ISIDORO DE SEVILHA. El libro 2º e 3º de las Sentencias. Introdução e tradução D. Juan Oteo Uruñela. Sevilla: Apostolado Mariano, 1991.

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COLOMBÁS, Gárcía. O Monacato Primitivo.Madrid: BAC, 1974. 2v.

COLOMBÁS, Gárcia. La Tradición Benedictina. T. I Las Raíces. Zamora: Ediciones Monte Casino, 1989.

DOMINGUEZ DEL VAL, Urcisino. Características de la Patrística Hispna en el siglo VII. In: La Patrologia Toledano Visigoda. XXVIII Semana Española de Teologia. Toledo 25 -29 de septiembre, 1967.

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Los textos apócrifos en la iconografía cristiana

Ofelia Manzi y Patricia Grau-Dieckmann(Universidad de Buenos Aires)

ResumenEn el siglo IV surge en el ámbito cristiano una iconografía rica y exuberante que no encuentra su inspiración únicamente en los

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Evangelios canónicos, cuyos relatos escuetos y sucintos permitían poco vuelo a la imaginación artística. La fecundidad de las novedosas

escenas tiene su origen en textos que se constituyeron en fuente invalorable e ineludible para la iconografía cristiana tanto oriental como occidental: los Evangelios apócrifos. Aunque tempranamente

rechazados por la Iglesia por extravagantes y delirantes, crecieron –paradójicamente– al amparo de las autoridades eclesiásticas, quienes les otorgaron un lugar preponderante dentro de los propios espacios

sacros.

Palabras claveApócrifos – Iconografía – Canónicos – Arte – Cristianismo

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En el siglo IV surge en el ámbito del arte cristiano una iconografía que no encuentra su inspiración únicamente en los Evangelios canónicos, cuyos relatos escuetos y sucintos permitían poco vuelo a la imaginación artística. La fecundidad de las novedosas escenas tiene su origen en textos que se constituyeron en fuente invalorable e ineludible para la iconografía cristiana tanto oriental como occidental: los Evangelios apócrifos. Aunque tempranamente rechazados por la Iglesia por extravagantes y delirantes, crecieron –paradójicamente– al amparo de las autoridades eclesiásticas, quienes les otorgaron un lugar preponderante dentro de los propios espacios sacros.

1. Primeras imágenes cristianas

Tanto en Occidente como en Oriente, el arte cristiano desde muy temprano plasmó didáctica y evocativamente aquellas figuras que evocaban la divinidad, incluso cuando la irritante discusión sobre la legitimidad y conveniencia de representar imágenes no había sido aún zanjada. Para el pueblo judío, la señalada prohibición de hacer imágenes (Génesis, Deuteronomio, Éxodo, Levítico) no representó el conflicto que sí se suscitó en la nueva religión. “La aparición de las imágenes cristianas estuvo ligada desde un comienzo a la contradicción existente entre la necesidad de la creación de un lenguaje plástico orientado a trasladar elementos del dogma y las escrituras a la forma y la expresa prohibición contenida … [en diversos pasajes de la Biblia]” (Manzi, 1985: 5).

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Las primeras representaciones cristianas, circunscriptas a catacumbas y sarcófagos, datan de aproximadamente el año 200 (Grabar, 1985: 17) y presentan un número limitado de temas tomados del Antiguo y del Nuevo Testamento. Entre diversas figuras (orantes, el Buen Pastor), se destacan las imágenes-signo que aluden a la salvación de los protagonistas, como las de Daniel, Noé, los Tres Hebreos, Jonás, Lázaro (Manzi, 1985: 5). “(…) las primeras imágenes surgidas en el seno de las comunidades de cristianos, tiene un rasgo común derivado de la necesidad de enfatizar la existencia de la salvación.” (Manzi, 1997: 128)

2. Cambio en la iconografía2.1. Sus fuentes

Ya para la época teodosiana (345-395), las representaciones escapan los muros de las catacumbas y las caras de los sarcófagos y se ubican en soportes más visibles, resultado de la aceptación del cristianismo en el imperio. Emerge una iconografía novedosa que excede el mero sentido salvífico primitivo (Grabar, 1967: 33). Surgen los temas triunfales, prueba de la vigencia y eficacia de la Iglesia cristiana, en los que se asimila a Cristo, a sus discípulos y a otros personajes sagrados con la aristocracia y la burocracia imperiales (Manzi, 2004: 207 y ss).

En pinturas de iglesias, monasterios, en iconos, manuscritos, tallas en marfiles, etc., se representan los ciclos de las vidas de Jesús y de María, imágenes que perduran en el tiempo. No se trataba de un saber que sólo dominaran los religiosos, los laicos estaban también imbuidos de dicho saber. Esta iconografía resultaba fácilmente reconocible por el fiel de cualquier condición cultural ya que los relatos que le daban sustento a las historias no sólo reflejaban fuentes escritas sino que también respondían a una transmisión oral (Grau-Dieckmann, 2003: 421 y ss). Las nuevas imágenes sagradas, según posterior declaración del Sínodo de París de 825, eran “(…) para las gentes instruidas un ornamento y un recuerdo piadoso y, para los iletrados, un medio de aprender.” (Michel, 1962: 8).

En primer lugar, y sin dudar, su fuente principal fueron los Evangelios canónicos. Del griego evaggelia (“las buenas nuevas”) se consideran inspirados por Dios y llevan las buenas nuevas de la vida terrena del Cristo y su palabra y

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enseñanzas. Escritos por Mateo, Lucas, Marcos y Juan, a los tres primeros se los llama sinópticos (del griego synopsis, “visión de conjunto”) pues son similares entre sí en forma y contenido y fueron redactados en la segunda mitad del siglo I (Marcos fue escrito después del año 66, Mateo y Lucas entre los años 70 y 80). Diferente a los anteriores, el Evangelio de Juan se fecha con posterioridad al año 100.

Sin embargo, es notorio que los textos oficiales no fueron suficientes para producir la riqueza iconográfica que se despliega en las nuevas representaciones, cuya abundancia de detalles y prodigalidad de situaciones, diversidad de personajes y elaborada imaginería no puede provenir únicamente de los Evangelios canónicos. Éstos, escuetos y parcos, presentan una pobreza descriptiva que coincide con el interés de estas tempranas redacciones oficiales por enfatizar el alto valor didáctico y moral de sus enseñanzas, actitud prácticamente incompatible con una adecuada y completa formulación plástica cuyo vehículo visible es la imaginación. El mensaje debía llegar, principalmente, a quienes no gozaban del contacto diario con las enseñanzas religiosas, al pueblo llano.

2.2. Los textos apócrifos

Por diferentes motivos, y casi simultáneamente a los escritos canónicos, surgen en las diferentes comunidades cristianas otras redacciones “paralelas” que explican muchas cuestiones poco definidas, las iluminan y aclaran, explican cronológicamente la historia sagrada, calculan años entre uno y otro episodio, hacen coincidir fechas, agregan nombres a los personajes y convierten en creíble un relato fragmentado. Respondían a esas preguntas de los fieles que no encontraban cabida en los textos oficiales. Se trata de los llamados Evangelios apócrifos, textos que fueron redactados, recopilados y descubiertos a lo largo de los siglos y que principalmente se constituyeron en fuente invalorable e ineludible de la inspiración artística cristiana.

Forman un corpus muy disímil: muchos de ellos han llegado hasta nuestros días como textos incompletos y fragmentarios; algunos han sobrevivido en diversos manuscritos e incluso han logrado ser reconstituidos en forma completa; otros son de diferentes épocas y variados autores pero se han fundido a lo largo de los siglos en una única recopilación. En algunos

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casos, se los conoce sólo por menciones o frases sueltas que han perdurado en forma de citas dentro de otros escritos. Un caso inusual lo constituyen los trece manuscritos descubiertos en la biblioteca egipcia de Nag Hammadi en 1945 que contienen más de cincuenta textos gnósticos. Hasta que su tardío hallazgo los reveló ante los ojos del mundo, sólo se los conocía por menciones y se creía que habían sido completamente destruidos por la ortodoxia.

Es difícil establecer si los textos escritos surgieron como consecuencia de los relatos que ya circulaban oralmente, o si las expectativas y curiosidad de los fieles fueron deliberadamente satisfechas por historias redactadas ex profeso, aunque obedecían a distintas intencionalidades doctrinarias, dogmáticas y propagandísticas. Los Evangelios apócrifos complementan lo que los canónicos no especifican, llenan los huecos que la memoria o el desconocimiento dejan vacíos y explican situaciones apenas insinuadas en los textos oficiales. Pero, sobre todo, pueblan sus relatos con detalles anecdóticos que darán origen a muchas expresiones plásticas, aunque ciertamente, la sobreabundancia de detalles puede llevar a un obvio escepticismo en cuanto a su autenticidad (Ranke-Heinemann, 1995: 92).

2.2.1. Posibles autores y sus ámbitos de creación

La palabra apócrifo proviene del griego apokkruphos (“oculto, secreto”) y primitivamente sólo se refería a textos considerados de menor autoridad que las oficiales. El término fue en un principio utilizado por las comunidades gnósticas para referirse a sus propios escritos ya que consideraban que transmitían revelaciones secretas. Prueba de ello son los crípticos Evangelio de Felipe y Evangelio gnóstico de Tomás, ambos provenientes de la Biblioteca de Nag Hammadi. Este último comienza su introducción con palabras que advierten sobre el contenido oculto del enigmático texto: “Éstas son las palabras secretas que pronunció Jesús el Viviente y que Dídimo Judas Tomás consignó por escrito.” (Los Evangelios Apócrifos, 2002: 372).

Para encontrar cabida y difusión en los ambientes ortodoxos y extra gnósticos, estos “libros secretos” fueron atribuidos a algún apóstol o personaje cercano y contemporáneo de Jesús, y presentados convincentemente bajo la forma de evangelios (De Santos Otero, 2002: XII).

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Sin embargo, esta literatura no fue originada exclusivamente en sectores heterodoxos –círculos maniqueos, gnósticos, nestorianos y más tardíamente cátaros– sino que también hay escritos surgidos en esferas pseudo oficiales, tanto en Oriente como en Occidente. La intencionalidad, en muchos casos, fue la de ratificar algún dogma en peligro, como la necesidad de reafirmar la virginidad perpetua de María (antes, durante y después del parto) para contrarrestar las numerosas menciones de los “hermanos y hermanas” de Jesús en los textos oficiales (entre otros, Mt. 12:46-47 y 13:55; Mc. 3:32; Lc 8:19; Jn. 2:12 y 7:3-5), contradicción a la que hace frente el Protoevangelio de Santiago (compuesto alrededor de 150), sumamente popular en esferas bizantinas.

La mayor parte del corpus no canónico ha sido redactado y conservado en lenguas griega, siríaca, armenia, copta, georgiana, eslava, etíope, árabe y, así, con las múltiples versiones y traducciones, se logró su principal conservación y pervivencia en el ámbito oriental. A ello se sumó que ciertos escritos fueron incorporados por la Iglesia bizantina a su propia liturgia. En Occidente, muchas veces la difusión de los apócrifos se debió a las versiones latinas reelaboradas a partir de modelos griegos.

Muchos textos orientales, como el Protoevangelio de Santiago, se difundieron tardíamente en Europa. Cuando su traducción se conoció, fue recibida sin interés pues el Evangelio del Pseudo Mateo –el más popular e iconográficamente el más importante de todos los relatos apócrifos occidentales– suplía satisfactoriamente el interés por episodios que no eran mencionados en los escritos ortodoxos. Este texto fue tomando su forma definitiva con el transcurso de los siglos, como resultado de la combinación de antiguos manuscritos (sus historias son préstamos del Evangelio del Pseudo Tomás –se trata de un escrito diferente del encontrado en Nag Hammadi– y de los textos apócrifos Natividad de María e Infancia del Salvador) y de la adición de nuevas y desconocidas leyendas.

Algunas fuentes se remontan hasta el siglo I (el Evangelio del Pseudo Tomás contiene párrafos de los siglos I, II y III; Ranke-Heinemann, 1995: 135 y ss), pero la mayoría se ubica entre los siglos V y IX (Michel y Peeters [1998: 24] sitúan al evangelio no antes del siglo IV y probablemente después del

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VI. M. Nicolas [1998: 24] lo ubica definitivamente al final del siglo V. De Santos Otero [2002: 76] sostiene que su composición es del siglo VI. Ranke-Heinemann [1995: 200] lo ubica en el siglo VIII o IX). En el siglo XIII se convirtió en la fuente casi inagotable en la que abrevó Jacobo de Vorágine para redactar su Leyenda Dorada.

2.3. Temas iconográficos apócrifos

Mimetizado entre las representaciones canónicas, el arte de origen apócrifo no se distingue del estrictamente oficial. Ambos conviven en programas iconográficos en los que sólo los entendidos pueden diferenciarlos. Es justamente esta avenencia lo que constituye la paradoja de su armónica coexistencia: las autoridades eclesiásticas son las que les han dado cabida en soportes sacros: frescos, mosaicos, pinturas, libros, iconos, esculturas. Las escenas que mencionaremos a continuación –apenas una breve selección de la extensa temática disponible– tienen como exclusiva fuente los relatos de los Evangelios apócrifos.

En primer lugar se encuentran, por cantidad y variedad, las escenas de las vidas de Jesús y de María. El de la Infancia es uno de los ciclos más enriquecidos, tanto en las escenas de la Natividad (por ejemplo, la combinación de caverna y pesebre, el buey y burro, la comadrona con el brazo seco, el baño del Niño) como en las que le siguen cronológicamente, y cuyos motivos han sido tomados del Protoevangelio de Santiago, del Evangelio del Pseudo Mateo y del Evangelio árabe de la Infancia. De este último, datado en el siglo VII, se sostiene tradicionalmente que contiene las historias sagradas que María la copta le relatara a su esposo el profeta Mahoma.

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Imagen 1

Natividad Cátedra del Obispo Maximiano de Ravena. Siglo VI.La partera Salomé muestra su brazo paralizado.

Uno de los motivos más enriquecidos es el de los “magos venidos de Oriente” (el único relato canónico es del de San Mateo. Los otros evangelistas ignoran esta visita). Una primitiva iconografía los presentaba como sacerdotes de Mitra, vestidos “a la persa” con pantalones y gorros frigios, marchando a paso vivo hacia donde se encontraba el Niño con su madre. Tertuliano (c. 160-230) fue el primero en intentar identificar a los magos con reyes. Para ello, encontró muy conveniente citar el versículo del salmo 72 (71) que, adecuadamente, habla de regalos y de tributos “Y los reyes de Tarsis y las islas le pagarán tributo, los reyes de Saba, los de Arabia le traerán presentes”. La transformación no fue inmediata, ambos tipos de representación (como sacerdotes persas y como reyes) coexistieron sin conflictos (para más información sobre el tema, ver Grau-Dieckmann, Mirabilia 2).

Posteriormente, el Evangelio Armenio de la Infancia (evangelio apócrifo datado en el siglo VI, durante la época en que el movimiento nestoriano procedente de Siria intenta establecerse en Armenia; De Santos Otero, 2002:185) recoge esta tradición y sostiene que eran tres hermanos. Melkon reinaba sobre los persas, Gaspar era rey de la India y Baltasar era el rey de Arabia. De esta manera, ya más frecuentemente, aparecen las coronas, las capas brocateadas y otros despliegues de riqueza propios de su calidad real, a

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más de otros detalles que surgen exclusivamente de los apócrifos.

En 649 el concilio de Letrán declaró dogma la triple virginidad de María (Maria fuit Virgo post connubium, virgo post conceptum, Virgo post partum – Virgen antes del matrimonio, después de la concepción y hasta después del parto) (Réau, 1996: 97). Ello suscitó una contradicción con respecto a la mención de “hermanos y hermanas” de Jesús en los textos canónicos. Como contrapartida, el Protoevangelio de Santiago relata que José era viudo y que tenía seis hijos de su primer matrimonio, a los que Jesús consideraba como sus hermanos por haberse criado con ellos. De este evangelio se toma el relato en el que la palmera se inclina para brindar sus frutos a María en un descanso durante la Huida a Egipto, viaje en el que los acompañan algunos de los hijos de José, especialmente el supuesto autor del relato, Santiago el Menor. Otro tema popular pero casi siempre secundario es la representación de los ídolos que se derrumban ante la llegada del Niño Dios, como reconocimiento a su divinidad.

Imagen 2

Santa María la Mayor Roma. Cristo ante Afrodisio. Siglo V. Escena de la Huida a Egipto.

A partir del siglo X se divulga el Evangelio de Nicodemo, un texto formado por la fusión de dos manuscritos latinos, las Actas de Pilatos (pese a ciertas objeciones, en general se

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coincide en datarlo en el siglo II) y El Descendimiento de Cristo a los Infiernos, que dará origen a un tema creado en Bizancio y que luego pasó –con escasa repercusión– al arte occidental (Réau, 1996: 554). Se trata de la Catábasis, descenso de Jesucristo al Limbo de los Justos (Inferos), para encadenar a Satanás y rescatar a Adán y Eva, Abel, Seth, David, Salomón, Habacuc, Isaías, Juan el Bautista y el Buen Ladrón entre otros.

Imagen 3

San Juan de Mustair. Descenso al limbo. Siglo IX.

En cuanto a la vida de María, prácticamente toda la información sobre ella está tomada de estos relatos (Protoevangelio de Santiago, Evangelio del Pseudo Mateo, Evangelio de la Natividad de María, Evangelio Armenio de la Infancia, entre otros). Los evangelios tradicionales apenas si la mencionan en circunstancias puntuales, como la Anunciación, las Bodas de Caná y la Crucifixión. Los textos apócrifos de la infancia remontan sus relatos hasta la historia de la Virgen: la esterilidad de sus padres Joaquín y Ana, su Inmaculada Concepción mediante un casto beso en la Puerta Dorada, su presentación en el templo, las varas de los pretendientes, su desposorio con José, etc. La Iglesia aceptó

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como veraces estos relatos, cuyas representaciones fueron abiertamente incluidas. No obstante ello, fue únicamente en 1854 cuando la Inmaculada Concepción de María fue declarada oficialmente dogma. Una vez más, el imaginario popular se adelantó, por muchos siglos, a la palabra oficial de la Iglesia.

En otro orden, se han conservado más de setenta manuscritos generados entre los siglos IV y VI que tratan sobre la Asunción de la Virgen María (Libro de San Juan Evangelista – El Teólogo; Libro de Juan, Arzobispo de Tesalónica, Tránsito de la Bienaventurada Virgen María y la Narración del Pseudo José de Arimatea, entre otros). Las fechas de redacción son coherentes con el decreto del emperador Mauricio (582-602), que estableció el 15 de agosto para celebrar este acontecimiento (De Santos Otero, 2002: 305 y ss) en el que María es llevada en cuerpo y alma al cielo por su hijo Jesucristo (este episodio, en el que los apócrifos correspondienes relatan que todos los apóstoles, inclusos los fallecidos, menos Santo Tomás, fueron transportados milagrosamente a su lecho de moribunda, se conoce también como Dormición, Tránsito o Koimesis).

Finalmente, mencionaremos un tipo de retratos de Jesús denominados acheiropoietés, o sea, producidos directamente por divinidad (del griego poïein “hacer” y kheir “mano”: “no hechos por la mano del hombre”). Uno es el mandylion, con el rostro de Cristo impreso en el pañuelo o lienzo del rey Abgar de Edesa, inspirado en un texto muy temprano que consiste en cartas (Correspondencia entre Jesús y Abgar) citadas por Eusebio de Cesarea (c. 230-340) en la Historia Eclesiástica (I, 13; II, 1.6-8). De origen oriental, el tema encuentra su equivalente tardíamente en Europa en el paño de la Verónica con el rostro impreso de Jesús y cuyo apoyo literario se basa en las leyendas tardo medievales del Evangelio de la Venganza del Salvador y del Evangelio de la muerte de Pilatos.

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Imagen 4

Representación del Paño de la Verónica(Mateo Paris, Chronica Majora, primera parte, 1245-1253 circa)

3. Los apócrifos y la Iglesia

Estos constituyen sólo unos pocos ejemplos entre los innumerables motivos que han encontrado su única justificación e inspiración en los textos apócrifos. Sin embargo, pese al papel fundamental que tuvieron en el desarrollo del arte cristiano al suplir con su riqueza descriptiva la parquedad de los textos canónicos –incapaces de generar por sí solos la prodigalidad iconográfica que notoriamente se desarrolla en las escenas cristianas– los evangelios apócrifos fueron oficialmente prohibidos por la

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Iglesia. La separación definitiva se dio en el Concilio de Trento (1545-1563), que declara a la Vulgata latina como “el único texto auténtico para la enseñanza y la predicación”, aunque, peculiarmente, se establece que “al lado de la escritura debía admitirse también la tradición, como fuente de la revelación divina” (Paredes, 1999: 632).

Sin embargo, la disociación comenzó con los primeros Padres de la Iglesia. Acérrimo enemigo de estos textos, San Jerónimo (¿347?-420) los rechaza por extravagantes y “delirantes” (Mâle, 1931: 212). Su contemporáneo, el papa Dámaso (366-394) inicia la primera separación entre los libros canónicos y los heréticos. En el siglo siguiente, el papa Gelasio (492-496) promulga su Decreto gelasiano (Paredes, 1999: 53) en el que proporciona una lista de los escritos reprobados, culminando con su condenación. En su decreto, veintisiete textos del Nuevo Testamento fueron ingresados oficialmente al canon:

“Éstos y otros escritos similares, como los de Simón el Mago, (…) y sus partidarios, y todos los discípulos de la herejía y de los herejes y los cismáticos, cuyos nombres apenas fueron preservados, que enseñaron o escribieron, y no sólo son repudiados por toda la Iglesia Católica Apostólica Romana, sino que deben ser eliminados los autores y sus seguidores, y condenados con el indisoluble vínculo del anatema eterno.” (Ranke-Heinemann, 1995: 196).

El canon se ha definido como “… la poesía de Dios donde no se encontrará ningún producto del mito sino que se verán todas las reglas inalterables de la verdad” (Croatto, 2002: 467). Ésta es justamente la clave de los apócrifos más populares: no muestran las reglas inalterables de la verdad, se conceden exageraciones, fantasías. En los apócrifos, la imaginación se permite volar, remontarse al mito. El pueblo raso, el fiel muchas veces ignorante, necesitaba apoyar su religiosidad en el mito para comprender aquellas enseñanzas que a menudo excedían su entendimiento, simple y espontáneo.

4. Conclusión

Aunque fueron marginados y mantenidos a lo largo de los siglos en esa condición, singularmente los evangelios apócrifos no fueron erradicados en su expresión artística ni por la iglesia de Oriente ni por la de Occidente. Las escenas

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inspiradas a partir de sus relatos fueron avaladas por las propias autoridades eclesiásticas que no sólo las toleraron permisivamente sino que, sorprendentemente, fueron deliberadamente ubicadas en lugares destacados, en sitios consagrados, en emplazamientos sacros. No fue el inculto artista/artesano quien las planificó. Abades, obispos, instruidos clérigos, importantes comitentes eclesiásticos mezclaron unas y otras escenas, las diseñaron y ordenaron su ejecución.

Esta concesión no fue inocente. Laicos y religiosos, letrados e iletrados manejaban ese saber, reconocían las escenas, eran movidos mediante su contemplación a la piedad y a la devoción. “(…) lo que las escrituras son para los educados, las imágenes son para los ignorantes” (San Gregorio Magno [540-604], Epístola XI 13 PL 77, 1128c). Gregorio sabía que no había distinción entre esas historias oficiales y aquéllas que eran repetidas de boca en boca, de generación en generación, amparadas por el deseo de saber más, de comprender los elusivos misterios de una religión a menudo dogmáticamente ininteligible.

El poder evocativo, anagógico y didáctico reconocido a las imágenes se encuentra más allá de la estricta determinación del origen y consideración de los textos referenciales y constituye un justificativo más que suficiente para comprender el beneplácito con que fueron, y siguen siendo, aceptadas dentro del marco de la ortodoxia. El caso testimonia una cierta libertad en la elección de los temas mediante los cuales se genera el discurso iconográfico, reconociendo su innegable capacidad de privilegiada comunicación.

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Formação, obediência e humanismo: considerações sobre a educação infantil

medieval nas Monodies do abade Guiberto de Nogent (séc. XII)

Carlile Lanzieri Júnior

ResumoEm 1115, o abade beneditino Guiberto de Nogent (1055-1125)

concluiu a sua obra de memórias, comumente chamada De vita sua pelos autores modernos. Dividida em três livros, essa obra chama atenção pelo caráter absolutamente pessoal de sua primeira parte. Nela, Guiberto escreveu detidamente sobre vários acontecimentos

que se estenderam de sua infância até parte de sua vida adulta. Dentre eles, analisaremos nesse artigo aqueles nos quais o abade

relembrou os detalhes da educação que recebera quando criança e nos primeiros anos em que vivera em um mosteiro. Uma educação

marcada pelo rigor, mas também pela preocupação com a formação moral e acadêmica do indivíduo, traços marcantes da pedagogia

monástica beneditina medieval.

AbstractIn 1115, the benedictine abbot Guibert of Nogent (1055-1125)

concluded his book of personal memories, usually called De vita sua by modern authors. Shared in three parts, this book calls attention

because the absolutely personal aspect of its first part. In it, Guibert wrote very much about the several events that happened in his infancy and part of his adulthood. Among some of then, we will analyze in this article those in which the abbot remembered the

details about the education that he received when he was a boy and in the early years in which he lived in a monastery. An education signed by the hardness, but also the worring with the moral and academic formation of the individual too, important marks of the

medieval benedictine pedagogy monastic.

Palavras-chaveGuiberto de Nogent – monasticismo – educação medieval.

KeywordsGuibert of Nogent – monasticism – medieval education.

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Imagem 1

Nessa iluminura das Estórias da Bíblia de Pedro Comestor (Paris, 1372, f. 327v), há dois personagens: à direita, um professor, à

esquerda, seu aluno. Sentado em um banco e tendo à frente uma prancha com um livro aberto, esse educador conversa com seu

discípulo, o que é confirmado pelo dedo indicador que ele aponta para o rapaz. Sentado em uma almofada, o jovem, ainda imberbe,

veste uma túnica escura, e com as mãos segura um livro. Estaria ele ouvindo considerações sobre a obra que está diante de seu

professor? Algumas gramíneas espalhadas pelo chão sugerem que as lições eram realizadas ao ar livre. A cor vermelha do fundo da

imagem é a mesma do barrete do professor e da almofada na qual o aluno está acomodado, o que pode ser uma pista que demonstra o

domínio do docente sobre a situação.

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Em 1115, o abade beneditino Guiberto de Nogent (1055-1125) concluiu a sua obra de memórias pessoais: Monodies (Edições críticas: ARCHAMBAULT, 1996; BENTON, 1984; LABANDE, 1981). Dividida em três livros distintos, pesquisadores modernos a definiram como um texto autobiográfico, devido ao caráter absolutamente particular de sua primeira parte. Por conseguinte, chamaram-na De vita sua. Composta por 26 capítulos, a etapa de abertura dessa obra do abade de Nogent encontra-se recheada com episódios marcantes ocorridos basicamente em sua infância e juventude.

Neste artigo, teremos como mote analisar os capítulos nos quais esse abade nos disse algo sobre a educação elementar que recebera em seus primeiros anos de vida. Na visão de Guiberto, tratou-se de um ensino deficiente e que marcou profundamente as lembranças de seu tempo de menino. Entretanto, serão justamente as críticas proferidas por Guiberto de Nogent que irão nos permitir compreender algumas das singularidades (teorias e métodos) da pedagogia disseminada em boa parte dos mosteiros medievais dos séculos XI e XII. Uma forma de se pensar a educação muito diferente da concepção estritamente técnica que prevalece na sociedade coeva.

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Guiberto de Nogent era o filho mais novo de uma nobre família do norte do reino da França medieval. Sua mãe casou-se muito nova, com cerca de doze anos de idade. Durante um longo período, ela permaneceu infértil. Segundo Guiberto, a explicação para o casamento infrutífero de seus pais seria um feitiço lançado por uma tia do noivo, que almejava vê-lo casado com outra pessoa. Somente depois de sete anos nasceram os primeiros filhos deste casal, um claro sinal de que o casamento, enfim, recebera as bênçãos celestiais (DUBY, 1988: 105).

O nascimento de Guiberto fora marcado por dúvidas e tensões: o parto estava complicado, conduzindo mãe e filho à morte. Sob o comando do pai do futuro abade Nogent, os familiares que presenciavam aquela terrível cena decidiram que o melhor a fazer era rezar. Diante do altar da Virgem

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Maria, o preocupado esposo resolveu que se a vida da criança fosse poupada ela seria destinada à Igreja, não importando o sexo que viesse ter. O pedido feito aos céus fora atendido e ambos acabaram sobrevivendo.

Para Guiberto não havia dúvidas: a decisão tomada por aquele homem e as orações dos que lhe acompanhavam foram decisivas para a sua salvação. Mas o abade nos revela em suas memórias que sua mãe tinha certeza de que seu esposo quebraria o voto feito à Virgem em futuro não muito distante. Isso aconteceria no momento em que o menino estivesse na ocasião de ser armado cavaleiro. No fim, a tradição cavaleiresca deveria falar mais alto, o que despertava um grande temor na devotada mãe do abade. Mais uma vez o providencialismo divino voltou a atuar na vida do pequeno Guiberto: seu pai faleceu poucos meses após o seu nascimento. O destino de Guiberto de Nogent não mais corria riscos de ser alterado.

A jovem esposa fora tomada por uma imensa dor. Sua tristeza encontrava consolo apenas no fato de ter a certeza de que o seu caçula permaneceria no caminho que havia sido traçado para ele desde o instante exato em que viera ao mundo. Viúva e aparentemente sem a presença de uma figura masculina mais influente em sua vida, a mãe de Guiberto recusou um novo matrimônio e dedicou-se a cuidar de seu último rebento e de seu patrimônio. Uma liberdade que ela desfrutou até por volta de seus quarenta anos de idade, quando decidiu mudar de vida, indo viver ao lado de uma velha em um casebre perto da abadia de Saint-Germer de Fly (MULDER-BAKKER, 2005: 24-50). Guiberto tinha cerca de doze anos nessa época. Poucos meses depois, ele fora aceito nessa mesma abadia a pedido de sua mãe.

Ao contrário da maioria dos jovens meninos de sua idade, Guiberto de Nogent permaneceu sob os cuidados de sua progenitora. Dessa mulher, ele se separou em definitivo apenas por volta de seus cinqüenta anos, quando fora eleito abade do mosteiro Saint-Marie de Nogent (c. 1104). Ao longo de sua vida, ela deu a Guiberto atenção e muito carinho, preparando-o dia-a-dia para a vida religiosa que o aguardava.

Tu sabes, ó único Todo Poderoso, como ela me cultivou de acordo com seus modos sagrados. Quantos trabalhos ela teve para escolher minhas enfermeiras, tutores e mestres! Meu corpinho não foi

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desprovido de roupas luxuosas, quando eu era muito jovem, tanto que me parecia nobremente vestido como um jovem príncipe ou conde. [...] Ó Deus, tu sabes quantas advertências ela colocou diariamente dentro de meus ouvidos, para que não pudesse ouvir as vozes da corrupção. Quando arranjava algum tempo livre e longe das tarefas domésticas, ela me ensinava como rezar e com quais intenções. Só tu sabes quantos sofrimentos ela teve – comparáveis com aquele do parto – para impedir que um espírito imundo pervertesse a sã e promissora juventude que eu devia a tua generosidade. (Monodies, livro 1, cap. XII)

Sempre atenta e zelosa, essa mulher ensinava seu filho mais moço o caminho de uma vida cristã, desviando-o de tudo que considerasse impuro. Dividia seu tempo entre os afazeres domésticos e religiosos e a criação do pequenino. Quando Guiberto de Nogent estava com seis ou sete anos, ela lhe providenciou um tutor (grammaticus), que ficaria a cargo de sua educação formal inicial.

Há algumas décadas, o historiador francês Philippe Ariès (s/d: 17-22) afirmou que no mundo medieval não havia lugar para a infância e que as crianças eram simplesmente tratadas como pequenos adultos. Essa tese influenciou uma geração de pesquisadores, mas foi recentemente refutada por Ricardo da Costa (2002: 13-20) pelo fato de o autor europeu ter se utilizado apenas de algumas fontes iconográficas para estabelecer tal tipo de afirmação. Para Costa, os medievais tinham uma forma diferente de lidar com seus filhos, o que não pode ser interpretado como indiferença ou falta de amor. A grande vontade demonstrada pelo pai de Guiberto de Nogent em salvar a vida de seu filhinho e a posterior preocupação de sua esposa com o bem-estar e o bom desenvolvimento intelectual do garoto também contrariam as assertivas de Ariès, ajudando a confirmar a inadequação de sua teoria.

Em momento algum, Guiberto mencionou durante suas Monodies o nome do educador que lhe assumira como aluno. Analisando outras fontes primárias, Jay Rubenstein (2002: 18-19) levantou a hipótese de que “Solomon” seria o provável nome desse homem. Todavia, esse autor deixou essa questão em aberto, ao afirmar que o referido termo também poderia ser uma expressão utilizada simplesmente para demonstrar respeito à autoridade do professor. Como há muitos manuscritos medievais com iluminuras em que o professor é

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representado como “Salomão”, para nós, a segunda opção apontada por Rubenstein parece ser a mais provável.

Imagem 2

Estórias da Bíblia de Pedro Comestor (Paris, 1372, f. 225r). Com uma imensa vara na mão esquerda, Salomão admoesta incisivamente o

aluno ao estudo, que, por sua vez, folheia um livro. Para os educadores medievais, o controle do corpo precedia o da mente, o que tornava os castigos um corretivo, ou seja, um ato que traria a correção aos estudantes relapsos e ainda pouco afeitos aos rigores

inerentes ao bom desenvolvimento intelectual.

No início, esse tutor demonstrou um pouco de receio em atender o pedido feito pela mãe de Guiberto de Nogent, pois já se encontrava encarregado de cuidar da instrução de outra criança. Para o abade, ele intimamente temia perder os privilégios materiais que a família desse aluno lhe oferecia. Sua mudança de opinião aconteceu após um sonho, no qual viu o jovem Guiberto sendo a ele conduzido pelas mãos de um ancião. Esse sonho foi apenas o primeiro que o abade de Nogent nos contou em suas memórias. Um sonho de natureza absolutamente decisiva e reveladora. Como muitas outras que se sucederam, essa experiência onírica foi capaz de

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mudar o rumo dos acontecimentos na vida desse beneditino (Cf. LE GOFF 2002: 511-529 e 1994: 283-348).

Ainda que obscurecido pela falta de um nome próprio que o identificasse diretamente, esse homem mostrou-se dedicado à função que lhe fora confiada (PARTNER, 1996: 360). Com Guiberto, permaneceu por cerca de seis anos seguidos. Em constante vigília, procurava manter o garoto bem afastado das frivolidades do mundo e das más companhias de outros meninos da mesma idade. Mas para Guiberto, o grande esforço do tutor não era capaz de compensar seu despreparo explícito no conhecimento da gramática, a primeira das sete artes liberais (Cf. COSTA, 2005 e MONGELLI, 1999).

O homem a quem minha mãe decidiu me enviar tinha começado a estudar gramática tarde na vida e era o mais incompetente em sua arte, pois havia absorvido pouco dela em sua juventude. Entretanto, ele era um homem muito modesto, compensou em honestidade o que lhe faltava em conhecimento literário. (Monodies, livro 1, cap. IV)

Guiberto de Nogent descreveu seu professor como um indivíduo portador de algumas qualidades pessoais, mas não era um homem de saberes acadêmicos vultosos. A razão disso: ele havia iniciado os estudos em uma idade avançada. Entregando-se de corpo e alma ao trabalho que lhe fora confiado, ele tentava superar a formação deficitária que possuía. Demandava sempre o máximo de Guiberto e vigiava cada um de seus passos. Por sua vez, o menino comportava-se religiosamente, seguindo o ritmo contínuo imposto pela vigorosa batuta de seu tutor.

Eu não podia ir a lugar algum sem a sua permissão, não podia comer fora de casa ou aceitar presentes de ninguém sem o seu consentimento. Eu não podia fazer qualquer coisa destemperada, quer fosse em pensamento, palavra ou ação. Ele parecia esperar que me comportasse mais como um monge do que como um clérigo. (Monodies, livro 1, cap. V)

Desde cedo, Guiberto era preparado para servir à Igreja. Todas as suas atitudes eram supervisionadas pelo severo tutor. Sua rígida rotina de estudos era diária e não excluía nem mesmo os domingos e dias santos. Qualquer uma das atividades sociais do menino deveria passar pela prévia aprovação desse grammaticus. Quando o aluno cometia algum erro ou não conseguia aprender o que lhe era

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ensinado, recebia grandes surras como punição e advertência. Motivo para queixas por parte de Guiberto:

Claramente, não merecia as saraivadas que ele me deu, pois se tivesse sido um professor especializado, como tinha se gabado, eu seria perfeitamente capaz, apesar de ser uma criança, de entender o que estava dizendo, caso tivesse dito corretamente. Mas, dificilmente, ele poderia expressar uma frase completa, visto que estava tentando mostrar algo que não estava claro em sua mente. Quando falava, delirava em banalidades, nunca podia totalmente dar conceitos, nem ao menos conferir inteligibilidade ao que estava dizendo. (Monodies, livro 1, cap. V)

Aos olhos do abade, aquele homem acabou fracassando em seu trabalho por não ter os mínimos predicados intelectuais para tanto. Confundia-se em tudo que tentava fazer, demonstrando despreparo e superficialidade. Sem querer discordar das duras e francas críticas do abade, devemos apenas salientar que Guiberto de Nogent falou a respeito daquele convívio muitas décadas depois de ter ocorrido, quando ele já era um teólogo com algum reconhecimento e autor de várias obras de grande erudição e sensibilidade. Assim, é provável que sua percepção sobre a falta de conhecimentos do tutor tenha aparecido tardiamente.

Também não devemos tomar as ações desse professor em relação a seu aluno como simples atos de brutalidade e incompreensão, pois sovas e castigos eram comuns às práticas pedagógicas medievais. A própria Regra de São Bento (c. 480 - c. 550) (1999: 163, 169 e 227) previa esse tipo de punição para jovens monges estudantes relaxados e indisciplinados (COSTA, 2002: 17-18). Punir para formar, educar e preservar a disciplina. Entretanto, um fato parece estar bem evidente no discurso deixado pelo abade Guiberto de Nogent: apenas professores bem preparados deveriam cuidar da educação dos mais novos, ainda pouco constantes em seu comportamento.

Para os medievais, o conhecimento já se encontrava presente no ser humano (COSTA, 2003: 102). Ao educador ficava a responsabilidade de descobrir uma forma de fazer esse saber aflorar – o que nos faz pensar que não se excluía a aplicação de algumas pancadas! Mas segundo Jay Rubenstein (2002: 19), em um momento específico o tutor de Guiberto acabou excedendo o padrão de violência corporal considerado

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normal ao senso de propriedade do século XII, o que deixou a mãe do futuro abade muito preocupada.

Como normalmente fazia, ela começou a me perguntar se eu tinha sido espancado naquele dia. Então, para não parecer que queria denunciar meu tutor, não fiz afirmações diretas. Sem pedir permissão, minha mãe tirou minha roupa de baixo (alguns chamavam túnica, outros de camisa de baixo). Ela viu que meus bracinhos estavam negros e azuis, e que a pele em minhas costas estava inchada, devido às pancadas que tinha recebido. Minha mãe suspirou quando viu como cruelmente eu tinha sido tratado em tenra idade. Ela estava perturbada e totalmente agitada, seus olhos caíram em lágrimas quando disse: “Se esse é o caminho que está tomando, não se tornarás um clérigo!” Deveria adicionar aqui que ela já tinha me prometido que, quando eu tivesse idade, iria me prover com armas e equipamentos, caso quisesse me tornar um cavaleiro. (Monodies, livro 1, cap. VI)

O excesso punitivo cometido contra o menino fora tamanho, que despertou desconfianças em sua mãe. Ela queria transformar o filho em um homem da Igreja, mas seria capaz de abrir mão disso, caso fosse feito uso de tratamentos cruéis e violentos (ARCHAMBAULT, 1996: 41, nota 41). Mesmo com o corpo ferido pelas saraivadas recebidas, Guiberto não quis aceitar a oferta materna. A existência errante e brutal de um cavaleiro não lhe despertava paixões, a aspiração de assumir a vida monástica, para a qual fora prometido desde o nascimento, ainda permanecia acima de qualquer coisa, uma chama que jamais se apagaria.

Nas entrelinhas, ainda podemos perceber que o intento do abade Guiberto de Nogent nessa passagem era ser uma boa referência de vida através do comportamento firme que assumiu diante de sua mãe. Antes de proferir qualquer palavra (verbo), um monge deveria ensinar a seus irmãos pelas boas atitudes (exempla): silêncio, caridade, prudência, obediência e humildade (BYNUM, 1982: 40). Deste modo, Guiberto desejava se mostrar como um bom exemplo de superação e controle de seus desejos mais íntimos. Desde muito cedo, o século não fora capaz de seduzi-lo.

Embora machucado, Guiberto continuou sua caminhada ao lado de seu rígido tutor. Separando o método da pessoa, o abade demonstrou a maturidade construída durante anos de vida no claustro, ao diminuir sua aparente hostilidade em relação a seu professor. Na verdade, Guiberto de Nogent

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acabou por demonstrar em suas lembranças um certo afeto tardio por aquele professor, deixando seus ataques recaírem mais sobre a forma de trabalhar e tentar instruir que esse homem lhe impôs.

Estou dizendo isso, Senhor, não porque queira estigmatizar esse homem que, apesar de tudo, foi um bom amigo, mas na condição de deixar os leitores saberem, quem quer que sejam, que não devemos pensar que somos autorizados a ensinar como verdade qualquer coisa que atravessa nossas mentes. Não nos deixe perder outras pessoas nas sombras de nossas próprias teorias. (Monodies, livro 1, cap. V)

Bem no fundo, o abade de Nogent minimizou suas críticas iniciais ao entender que aquele homem tinha bons sentimentos em relação a ele. É plausível afirmar que o tempo e a vida adulta mostraram para o abade que aquele rude professor dava-lhe carinho e proteção a seu modo. De certa forma, a vigilância constante desse indivíduo ajudou na formação de Guiberto, desde cedo familiarizado com o rigorismo exigido pela existência monástica. Vejam: as repreensões e surras não causaram traumas posteriores em Guiberto! Mesmo sem conseguir bons resultados em seu intento, esse tutor ambicionava tirar o melhor que podia de seu aluno, preparando-o para um amanhã que já estava há muito projetado.

Por mais opressivo que fosse, meu mestre tornou claro para mim que de todas as formas me amava não menos do que amava a si mesmo. Ele zelava por mim com grande diligência. Cuidava de meu bem estar com muita atenção, temendo as más intenções que algumas pessoas me direcionavam. Ele me avivou urgentemente a me guardar contra a corrupção de algumas pessoas que tinham os seus olhos em mim e também advertiu minha mãe contra me vestir tão elegantemente. Em uma palavra: ele parecia mais um pai que um tutor, mais o zelador de minha alma do que meu corpo. (Monodies, livro 1, cap. VI)

Depois de investir contra o trabalho desenvolvido por seu antigo tutor, Guiberto de Nogent demonstrou que havia conseguido compreender que esse homem o amou. Um amor que poderia ser observado nos conselhos e advertências que ele lhe dera. Mesmo assim, o abade não abriu mão de falar uma vez mais acerca da necessidade de um professor ser uma pessoa de bom preparo acadêmico, o que certamente lhe impediria de cair no senso comum e ensinar como

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verdade qualquer coisa que lhe viesse à mente. A mãe do abade sempre estava próxima desse educador, confidenciando-lhe seus sonhos e angústias mais íntimas. Na ausência de um marido, ele acabou exercendo o papel de pai de seu filho.

Das críticas diretas, Guiberto passou para o campo das soluções. Do alto de seu profundo conhecimento teológico e filosófico e da vivência adquirida nas escolas monásticas, o abade de Nogent ofereceu a seus leitores uma interessante forma de se compreender e trabalhar a mente dos educandos:

Então, é de minha opinião, que qualquer mente concentrada em um objeto específico deveria trabalhar variando os graus de atenção. Alternadamente, pensando sobre uma coisa e depois outra, nós deveríamos ser capazes de nos voltarmos para a única coisa sobre a qual nossa mente mais se interessa, como se renovada pela recreação que demos a nós mesmos. A natureza também tende a ficar cansada e deveria encontrar o seu remédio em uma variedade de atividades. Devemos lembrar que Deus não criou um mundo uniforme, mas nos permitiu desfrutar as mudanças do tempo [...]. Pessoas que se chamam de professores deveriam encontrar maneiras de variar a educação das crianças e dos jovens. Em minha opinião, mesmo estudantes que têm a seriedade de pessoas mais velhas não deveriam ser tratados de forma diferente. (Monodies, livro 1, cap. V)

Escrito ainda nas primeiras décadas do século XII, o moderno método de estudo proposto por Guiberto de Nogent para a elevação de jovens estudantes ao conhecimento individual e espiritual era bem prático e simples: variedade, mudanças de ritmo e exercícios (ARCHAMBAULT, 1996: 17, nota 37). Sem qualquer tipo de imposição ou pedantismo por parte dos educadores, os momentos para descanso da mente deveriam ser respeitados. Para dar força às suas afirmações, o abade relembrou que nem mesmo Deus, em sua perfeição e grandeza infinitas, criou o mundo todo igual.

Mas o que nos salta aos olhos é o humanismo e a preocupação demonstrados por Guiberto de Nogent com o imperativo de se ter os alunos como o centro das atenções. Não importando seu temperamento, cada um deles teria um tratamento diferenciado e afinidades respeitadas. Ao que tudo indica, nosso personagem tinha clara consciência a respeito da existência de diferentes formas de inteligência. De acordo com a pedagogia medieval, os estímulos recebidos

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teriam puramente a função de instigar aqueles que estivessem em processo de aprendizagem, não asfixiá-los. Muitos séculos antes, Santo Agostinho (354-430) (2002: 42), uma das fontes de inspiração de Guiberto, afirmou em suas Confissões: “[...] ninguém faz bem o que faz contra a vontade, mesmo que seja bom o que faz.”

Se levarmos em conta a procedência beneditina de Guiberto de Nogent, entenderemos melhor esse seu cuidado. A Regra de São Bento tinha como uma de suas principais balizas a premissa de se tratar os reclusos respeitando gostos, virtudes e limitações (COLOMBÁS, 1990: 65). Nem mesmo a autoridade do abade era absoluta, existindo alguns espaços para diálogos e troca de experiências. Como um pastor bom e prudente, Guiberto demonstrava ter consciência de que era preciso administrar sabiamente as diversidades, pois as pessoas não são iguais, nem mesmo os monges.

Outra ressonância da regra beneditina no método do abade Guiberto é o incentivo à obediência. Uma obediência que deveria ser conquistada pela confiança e na esperança de dias melhores ao lado de Deus. Nesse ponto, o abade muito bem utilizou sua própria vida como um belo modelo edificante: obedecer sempre, mesmo que o fardo imposto fosse muito difícil de ser carregado. Eis uma pequena parte do que a regra nos diz sobre esse tema específico:

Mas essa mesma obediência somente será digna da aceitação de Deus e doce aos homens, se o que é ordenado for executado sem tremor, sem delongas, não mornamente, não com murmuração, nem com resposta de quem não quer. Porque a obediência prestada aos superiores é tributada a Deus. (Cap. 5, 14-15)

Em suma, para a Regra de São Bento obedecer piamente era sinônimo de agradar a Deus. Também seria uma maneira de imitar o martírio purificador de Jesus Cristo, que suportou todos os sofrimentos e foi obediente até mesmo na eminência de sua morte. Ao afirmar que se sujeitou a seu tutor, Guiberto de Nogent tinha estes dois princípios bem pontuados em seus pensamentos.

À obediência dos beneditinos, seguia-se a necessidade incessante de ser exemplo. Um modelo a ser seguido sobretudo pelos mais novos, ainda pouco afeitos às severidades do claustro. Ao expressar suas idéias mais

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recônditas, o abade Guiberto de Nogent intentava cuidar de seu rebanho, oferecendo a ele sua história pessoal como prova de boa conduta e de que o amor de Deus era o tesouro a ser encontrado ao fim de uma árdua e longa caminhada.

Figura 3

Vestindo uma túnica preta, Guiberto de Nogent ajoelha-se diante de Deus e lhe entrega seu Tropologiae in prophetis, um livro com

comentários bíblicos. A cena é faustosa e solene. Sentado em posição majestática no interior de uma letra “A” e proporcionalmente maior

que os outros personagens retratados, Deus recebe com sua mão direita o que o abade lhe entrega; na mão esquerda, segura as Escrituras Sagradas, símbolo máximo do saber cristão por Ele

inspirado. Testemunham de perto o acontecimento São Jerônimo e o profeta Oséias. O primeiro traz nas pontas de seus dedos uma pena, o segundo porta um pergaminho, ambos objetos que simbolizavam o

saber. O ato de Guiberto e todos os simbolismos presentes nesta

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iluminura nos permitem vislumbrar o quanto a escrita de um livro e a busca pelo conhecimento – com seu posterior crescimento espiritual – representavam para os homens da Idade média. (BN lat. 2502, f.

1r, em RUBENSTEIN, 2002: 200)

O abade Guiberto de Nogent escreveu seu livro de memórias por volta de seus sessenta anos. Nesse momento de sua vida, ele era um homem possuidor de grande sabedoria e autor de várias obras de teor teológico. Também era uma pessoa conhecida e reverenciada por seus pares devido à sua capacidade de se expressar em público e escrever majestosos sermões edificantes. No princípio de sua carreira monástica – por volta dos dezoito anos de idade, ou um pouco mais –, Guiberto teve o privilégio de ser aluno de Santo Anselmo de Bec (1033-1109), uma das cabeças mais brilhantes do pensamento medieval. Com Anselmo, ele encontrou a oportunidade de desenvolver sua capacidade intelectual e formar uma base filosófica sólida para entender os mecanismos de funcionamento da mente humana e o que seria mais natural ao bom progresso cognitivo de um verdadeiro cristão (ABULAFIA, 1992: 30-32).

Sabidamente, os monges foram os grandes responsáveis pela preservação de importantes obras do pensamento clássico e fomentadores dos hábitos de escrita e leitura entre os cristãos (GARCIA-VILLOSLADA, 1999: 254). O que o abade Guiberto em detalhes nos contou sobre a primeira formação que recebera e os apontamentos que fizera para uma educação infantil adequada são um precioso testemunho acerca da maneira pela qual o universo monástico beneditino medieval de sua época lidava com suas necessidades educacionais internas e latentes. Ensinar com propriedade, respeitar as singularidades do processo de aprendizagem, incentivar as boas obras, buscar a evolução espiritual contínua e punir com rigor e rapidez os que cometessem infrações eram diretrizes muito claras entre os responsáveis pela educação disseminada nos mosteiros do período medieval. Infelizmente, estes são alguns dos numerosos preceitos ensinados pelos medievais que a moderna pedagogia há muito perdeu de vista.

*

Trago a público os meus sinceros agradecimentos aos amigos Inácio Frade (Mestrando PPCIR-UFJF) e João Gomes Silva (Doutorando

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pela Sorbonne) pela gentileza de terem feito a leitura crítica desse artigo. Suas sugestões foram de extrema valia.

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Fontes Primárias

A Regra de São Bento (edição bilíngüe: latim/português). Juiz de Fora: Lumen Christi, 1999.

ARCHAMBAULT, Paul J. A monk´s confession: the memoirs of Guibert of Nogent. [S/l]: Pennsylvania State University Press, 1996.

BENTON, John. Self and society in medieval France. Toronto: University of Toronto Press, 2002.

LABANDE, Edmond-René. Guibert de Nogent: autobiographie. Paris: Les Belles Lettres, 1981.

SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Martins Claret, 2002.

Fontes Secundárias

ABULAFIA, Anna Sapir. “Theology and commercial revolution: Guibert of nogent, St. Anselm and the Jews of northern France”. In: ABULAFIA, David; FRANKLIN, Michael; RUBIN, Miri (ed.). Church and city (1000-1500): essays in honour of Christopher Brooke. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, s/d.

BYNUM, Caroline Walker. Jesus as mother: studies in the spirituality of the high Middle Ages. Los Angeles: University of California, 1982.

COLOMBÁS, Garcia M. La tradición benedictina: ensayo históricos (los siglos VI y VII). Zamora: Monte Casino, tomo segundo, 1990.

______. La tradición benedictina: ensayo histórico (los siglos VIII-XI). Zamora: Monte Casino, 1991.

COSTA, Ricardo da. “A educação infantil na Idade Média”. In: Videtur, Porto, n. 17, 2002.

______. “A educação na Idade Média. A busca da sabedoria como caminho para felicidade: Al-Farabi e Ramon Llull (séculos X-XIII)”. In: Dimensões: Revista de História da Ufes, Vitória, n. 15, p. 99-115, 2003.

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______. Las definiciones de las siete artes liberales y mecánicas en la obra de Ramón Llull. São Paulo/Porto: Mandruvá, 2005.

DUBY, Georges. O cavaleiro, a mulher e o padre. Lisboa: Dom Quixote, 1988.

GARCIA-VILLOSLADA, Ricardo. Historia de la Iglesia católica (800-1303): la cristandad en el mundo europeo y feudal. Madrid: BAC, tomo II, 1999.

LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval. Lisboa: Estampa, 1994.

______. “Sonhos”. In: Dicionário temático do ocidente medieval. São Paulo: Edusc, 2002, v. 2, p. 511-529.

MONGELLI, Lênia Márcia (coord.). Trivium & quadrivium: as artes liberais na Idade Média. São Paulo: Íbis, 1999.

MULDER-BAKKER, Anneke. Lives of the anchoresses: the rise of the urban recluse in medieval Europe. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2005.

PARTNER, Nancy. “The family romance of Guibert of Nogent: his story / her story”. In: PARSONS, John Carmi; WHEELER, Bonnie (eds.). Medieval mothering. New York/London: Garland, 1996, p. 359-379.

RUBENSTEIN, Jay. Guibert of Nogent: portrait of a medieval mind. New York: Routledge, 2002.

 

O imaginário cristão nas novelas de cavalaria e nas cantigas de amor

Hilda Gomes Dutra Magalhães (UFT)Eliane Cristina Testa (UFT) e

Izabel Cristina dos Santos Teixeira (UFT)

ResumoAnalisamos, neste texto, a influência da educação cristã no

imaginário laico medieval, mais especificamente na novela A demanda do Santo Graal e nas cantigas de amor produzidas na

Europa a partir do Século XII. Ao longo das nossas reflexões percebemos uma forte influência da Igreja tanto nas novelas de

cavalaria quanto nas cantigas de amor, entretanto, tais influências não foram suficientemente fortes para evitar que a individualidade,

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substrato das tradições culturais anteriores ao Cristianismo, se desenvolvesse no imaginário medieval.

Palavras-chaveEducação cristã - Novelas de cavalaria - Cantigas de amor.

AbstractWe analyze, in this text, the influence of the christian education in

the secular imaginary of the Middle Age, more exactly in the story of chivalry Search for the Holy Grail and in the plaintive love songs, produced in the Europe in the twelfth century.  Throughout the reflection, we observed an important influence of the Church as

much in the cavalry stories as in the plaintive love songs, but these influences weren't sufficient for to avoid the increase, in the

imaginary of Middle Age, of the individuality, cultural substratum of the Europe anterior the Christianism.

KeywordsChristian Education - love songs - chivalry story.

*

Propomo-nos, neste artigo, refletir sobre como os valores da educação cristã medieval acham-se presentes no imaginário laico da Idade Média, mais especificamente nos romances de

cavalaria e nas cantigas de amor, produzidos na Europa a partir do século XII.

Para atingir nossos objetivos, analisaremos tanto a temática quanto o perfil dos principais personagens da novela de

cavalaria A demanda do Santo Graal, de origem francesa, quanto a temática do amor cortês e sua ligação com o

sofrimento e com o sublime, nas cantigas de amor, utilizando como suporte teórico básico as reflexões de Joseph Campbell sobre a mitologia medieval, publicadas em As transformações

do mito (1997).

Com essa análise, esperamos compreender melhor as influências da educação cristã na literatura laica da Idade

Média, concebendo a Educação como um processo que inclui e extrapola a realidade escolar propriamente dita, ou seja,

tanto a educação formal quanto a informal.

Informa-nos Campbell (1997: 197) que na Europa medieval existiam quatro tradições culturais bem definidas, antes do

Cristianismo: a grega clássica, a itálica clássica, o céltico e o

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germânico, todas calcadas em um princípio comum: o respeito pelo indivíduo.

Essa realidade começa a ser modificada pela educação informal, mais especificamente através do poderio militar exercido pelo Império Romano, durante os séculos IV e V

d.C., de tal forma que a Educação teria continuado a partir da ação da Igreja Católica, ao longo de toda a Idade Média, tendo sido complementada por um sistema educacional que começou a se organizar nos últimos séculos desse período.

De fato, nos primeiros anos da Idade Média, durante o período de formação do sistema feudal, não existiam escolas propriamente ditas e, por isso, a formação cristã se dava de

modo informal, pela disseminação, pela Igreja, dos ensinamentos ditados pelos Evangelhos. Repetindo as

palavras de Paul Monroe (1987: 100), na reação contra a sociedade corrupta que marcou os últimos anos da sociedade pagã, “a vida da Igreja Cristã primitiva era em si mesma uma

escola de enorme importância”.

Com a queda do Império Romano, o sistema educacional, construído e herdado a partir da tradição grega, foi

totalmente desarticulado, iniciando-se uma nova prática educacional apoiada nas escolas catequéticas e nas

atividades dos mosteiros, objetivando, em princípio, a conversão dos europeus à nova religião. Temos, portanto, o surgimento de uma escola voltada unicamente ao caráter

doutrinário, dentro dos dogmas cristãos. Só após o fortalecimento da sociedade feudal e a realização das primeiras cruzadas é que as escolas começaram a se

espalhar pela Europa e sempre sob a tutela da Igreja. Essa educação incentiva o surgimento de uma nova cultura, que tem como mola propulsora os valores do Cristianismo, se

espalha rapidamente na Europa e caracteriza as formas de pensar e de agir do homem medieval.

Uma situação nova dentro da Europa se desenvolveu por influência dessa realidade: a Igreja difundia valores e

princípios do Cristianismo a um povo cuja tradição estava fortemente baseada na individualidade. O resultado é uma longa transformação cultural, que se observa na fusão de

signos mitológicos de tradições antigas com valores cristãos, motivando, por um lado, uma cultura essencialmente

comprometida com os dogmas da Igreja e, por outro, uma

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produção cultural híbrida, com elementos herdados das tradições originais, fundidos a elementos de origem cristã.

A primeira produção está ligada aos mosteiros, com seus monges altamente preparados e, posteriormente, às

Universidades, espaço em que cresceu a intelectualidade da época. A segunda, de natureza laica, está vinculada à vida secular, à tradição oral, celebrada nos castelos e entre o povo. É justamente nessa cultura que vamos observar a

sobrevivência do subjetivismo que caracteriza o modo de ser e de pensar ocidental.

É preciso lembrar que a filosofia cristã nega a individualidade. Tudo é feito em nome da comunidade, e as instituições religiosas, assim como as escolas (também de

origem religiosa) se incumbem de divulgar esses valores em toda a Europa. São conhecidas inúmeras formas de

autoflagelação praticadas dentro dos mosteiros, com o objetivo de anular os desejos, ou seja, as individualidades.

Todo esse esforço, entretanto, que, na doutrina da Igreja, se concretizava na apologia do sofrimento como forma de se

anularem os desejos, não foi suficiente para apagar a tradição pré-cristã que existia na Europa e é dentro desse

contexto que, a partir do século XII, surgem os romances de cavalaria e a poesia trovadoresca.

Em ambos os gêneros literários, o culto ao indivíduo é evidente e nos mostra que essa tradição está inscrita de forma bastante evidente no imaginário da Idade Média,

sobretudo nos romances do Graal, dentre os quais ressaltamos a importância de Perceval, de Chrétien de

Troyes, Persifal, de Wolfram von Eschenbach, e A busca do Santo Graal, de autor desconhecido. De acordo com Simões

(1967: 24), esses autores se distinguiam nas cortes medievas pelo seu conhecimento de cultura latina, bem como da lírica da época. Assim, inspiraram-se em textos bretões, porém, mesmo mantendo o lado maravilhoso, aproximaram-se dos dramas da humanidade, dando-lhes um conteúdo humano

que aqueles não tinham.

Nestes textos seculares, não temos uma simples negação dos valores cristãos, mas uma fusão destes aos valores pré-existentes ao próprio Cristianismo, como, por exemplo, amores, aventuras guerreiras, lutas com gigantes, fadas

madrinhas de cavaleiros, num processo de atualização de

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toda a criação mítica celta. Conforme Simões (1967: 24), esses ingredientes foram transplantados para as cantigas dos trovadores e, animados pelo espírito cortesão, constituíram o

substrato do lirismo do século XII, presente, tanto nas novelas quanto nas cantigas. Como características

fundamentais da mensagem poética dos autores da época, temos a presença do Amor e de Deus, tido como um

confidente da tragédia amorosa.

Evidentemente, a Igreja não aprovava essas espécies literárias, e muito menos os valores que veiculava e, segundo

Campbell (1997: 198), embora os primeiros registros das novelas medievais tenham sido feitos por clérigos, a

Inquisição foi a responsável pelo desaparecimento repentino dessas produções na Europa. Ora, tanto os romances de

cavalaria quanto as cantigas, principalmente as cantigas de amor, que nos propomos a analisar, são expressões de dois

aspectos indesejáveis na filosofia cristã: o amor entre o homem e a mulher e o individualismo.

O amor era um tema “proibido” e “aterrador” pelos devastadores resultados que acarretava no plano social. As

uniões matrimoniais eram todas arranjadas, sem a exigência de sentimentos de qualquer das partes, e era natural os

noivos só se conhecerem no momento do casamento. O amor cortês, presente tanto nas novelas de cavalaria quanto nas cantigas de amor, mesmo que sublime e sublimado, não é

bem visto pela Igreja, que considerava pecaminoso até mesmo o amor entre pessoas casadas. Para a Igreja, o amor

entre um homem e uma mulher deveria se restringir ao amor comunitário (a caridade, a fidelidade), e a relação sexual era

vista como tendo por único fim a reprodução. Todo sentimento que levasse ao prazer individual , tanto carnal

quanto afetivo, era considerado pecaminoso.

É natural, portanto, que a Igreja recriminasse essa forma de afeição, pois se tratava de um sentimento que surgia de

dentro para fora, visando satisfazer a anseios e necessidades também subjetivas. Além disso, o amor cortês faz a apologia

do amor adúltero e coloca em risco todo o equilíbrio social da época, que consistia principalmente na realização, pelo

matrimônio, de alianças de interesses políticos e econômicos. Mas, apesar de toda a força da Igreja Católica, e aqui

estamos falando não apenas no sistema educacional, mas na

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educação informal, exercida, por exemplo, no seio da família e nos rituais da igreja, esse tipo de amor se afirma como um dos principais pilares da cultura laica do período medieval,

sobretudo nos seus últimos séculos.

Sobre a influência da cultura celta nas novelas de cavalaria, Bulfinch (1965: 289) nos informa que o sistema druida estava no seu apogeu na época da invasão romana no País de Gales e que, ainda hoje, ali se realizam reuniões dos amantes da

poesia e da música gaélicas, o que nos dá uma idéia do quanto a cultura celta pode ter influenciado na formação do

imaginário medieval. De fato, analisando os romances arturianos, observamos que há dois personagens míticos básicos: o primeiro é o próprio Artur e o segundo, Merlin. Ambos não têm correspondentes diretos com a mitologia cristã, representando seres mitológicos de origem celta

atualizados nas novelas medievais.

Temos a notícia da existência de um Artur histórico, herói bélico que viveu entre os séculos IV e V d.C. e defendeu os bretões dos ingleses, entretanto o herói da épica medieval, mais do que uma referência ao Artur histórico, se afirma

como a atualização arquetípica de entidades ancestrais. No caso específico do mito arturiano, este está mais ligado a Artur ou Artehe, divindade de origem celta cultuado nos

Pirineus (CAMPBELL, 1997: 209), que ao guerreiro histórico.

A este respeito, afirma Eliade (1992: 44) que a redução dos “eventos a categorias, e dos indivíduos a arquétipos, levada a

cabo pela consciência das camadas populares da Europa, quase até nossos dias, é realizada de conformidade com a

ontologia arcaica” e, por isso, a memória histórica só subsiste na medida em que ela se aproxima e se confunde com os

conteúdos míticos.

Do mesmo modo, o Graal está ligado, nos romances arturianos, à tradição celta, na medida em que pode ser

compreendido como a representação da tigela de Gringastip, encontrada na Dinamarca e pertencente a rituais antigos

celtas, mas também como sendo o cálice de Cristo.

Essas características, que adornam e transformam os heróis antigos em heróis da literatura laica da Idade Média são resultados de longos séculos de educação cristã, mas, ao

mesmo tempo, revelam que, apesar de todo o empenho da

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Igreja em difundir valores comunitários, o indivíduo da sociedade medieval caminha para a afirmação da sua

individualidade, herdada de culturas antigas não cristãs.

A educação cristã é, portanto, a responsável por grande parte da aura de mistério que se instaura nos romances de cavalaria, cujas estórias começam sempre com a ocorrência

de algum fato mágico, a partir do qual os cavaleiros resolvem colocar-se à prova, buscando, cada um, o seu próprio

caminho, na tentativa de desvendar um mistério divino. No caso da novela A demanda do Santo Graal, o Graal é o

próprio mistério, o objeto de desejo de todos e também a metáfora da busca individual, do autoconhecimento.

Os conteúdos da mística cristã estão todos sintetizados na imagem do Vaso Santo, cuja aparição, no Dia de Pentecostes,

incita os cavaleiros da Távola Redonda, do Reino de Camaalot, a empreenderem a grande demanda. Em última

análise, o santo cálice, usado por Cristo na sua última refeição e que teria sido trazido por José de Arimatéia, representa a Vida, a última ceia, o sangue de Jesus e,

portanto, o próprio Cristo, que nela bebeu.

É preciso ressaltar que os cavaleiros, além de visualizarem o cálice santo, antes de saírem, ouvem missa. Há, portanto,

uma “preparação espiritual”, de cunho cristão, que antecede a aventura. Assim, toda a epopéia funciona como uma

cruzada particular objetivando a conquista da relíquia santa, uma cruzada dos cavaleiros do Rei Artur contra o Mal,

representado por toda sorte de engodos e perigos e, em última análise, pela morte.

A influência da educação cristã se verifica também na conformação dos personagens dos cavaleiros da Távola

Redonda. Se Artur e Merlin remetem às entidades míticas celtas, os demais representam a figura do herói tipicamente

cristão, que, em função de resgatar os valores do cristianismo, saem pelejando em nome do próprio Cristo e

não em função de algum amor carnal, como se verá nas novelas e romances posteriores, como, por exemplo, Tristão e

Isolda, Romeu e Julieta, Amor de Salvação, entre outros.

Mas, dentre todos os cavaleiros, Galaaz é o mais perfeito: foi o único que conseguiu retirar a espada da pedra de mármore

e, na interpretação de Massaud Moisés, esse personagem

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representa o próprio Cristo em sua peregrinação entre os homens, a fim de pacificá-los, defendendo os fracos e

oprimidos. Neste sentido, afirma o teórico (MOISÉS, 1997: 35), a influência da educação cristã nesta novela foi tamanha que ela se reveste mesmo de uma função doutrinária, posto

que exorta os leitores “à prática das virtudes cristãs e a pregar a salvação do mundo pelo exemplo de Cristo e seus

apóstolos, encarnados em Galaaz e irmãos de armas”.

Como os registros das histórias de cavalaria foram, na sua maioria, feitos por monges, eles exercerem também uma espécie de censura nestes textos, punindo o herói pelo

sentimento que nutre pela sua dama. Não é à toa, portanto, que apenas Galaaz pôde contemplar o Santo Graal, e

Lancelot, embora tenha tido a mesma oportunidade, foi impedido no último momento de fazê-lo, pelo único motivo de

que não era puro o suficiente, pois nutria um amor sem arrependimento por Guinevière.

Como se pode observar, mais do que uma busca coletiva, o que temos é uma cruzada particular de cada um dos

cavaleiros, no alargamento de sua individualidade. Por isso, cada herói terá que abrir, contando apenas com a proteção

de Deus, seu próprio caminho. Sobre a inexistência de caminhos e a busca da afirmação da individualidade nas

novelas medievas, Campbell (1997: 199) afirma que

“...quando alguém encontra o caminho de outrem e pensa: ‘Ele está chegando lá!’ e começa a seguir por ali, logo em seguida se vê completamente perdido, muito embora aquele outro possa ter

chegado ao seu destino. É uma história maravilhosa: o que pretendemos, a viagem, a meta, é a realização de algo que nunca antes existira sobre a terra – nossa própria potencialidade. Cada

impressão digital é diferente de todas as outras. Cada célula, cada estrutura de nosso corpo é diferente da de qualquer outra pessoa

que já esteve nesta terra; cabe a cada um de nós trabalhá-la, elaborá-la, colhendo nossas informações aqui e ali.”

Percebe-se que a épica medieval ensina o indivíduo a trilhar o caminho da subjetividade, buscando o sentido do mundo a

partir das percepções e dos sentimentos próprios e não apenas mediante valores e saberes pré-estabelecidos. É

exatamente esse mesmo percurso que fundamenta e caracteriza a poesia trovadoresca, mais especificamente a

cantiga de amor.

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Como nos explica Massaud Moisés (1997: 15), quatro são as possíveis origens da poesia trovadoresca: arábica, folclórica,

médio-latinista e litúrgica. De acordo com sua natureza, a poesia trovadoresca divide-se em duas categorias: a lírico-

amorosa, expressa pela cantiga de amor, e a cantiga de amigo e a satírica, expressa na cantiga de escárnio e de

maldizer. A letra era sustentada por um acompanhamento musical, com instrumentos de corda, sopro e percussão,

como, por exemplo, viola, alaúde e flauta.

Dentre as cantigas trovadorescas, a primeira nos interessa justamente por tematizar o amor platônico inspirado por uma

dama ao trovador. Como já nos referimos anteriormente, o amor entre homem e mulher, como instituição social, não

existia na época. Tratava-se de algo extremamente transgressor e por isso não era bem visto pela Igreja, pois

afrontava os bons costumes, a ordem e a moral.

Portanto, cabia ao trovador cantar o amor, mas este deve ser sempre idealizado e inatingível, o amor espiritual

sobrepondo-se ao carnal. Para o trovador, o amor cortês é uma força espiritual e mística em oposição ao amor erótico e

carnal. Priorizar o amor espiritual, valorizando-o, é uma forma do trovador aperfeiçoar-se moralmente, transitar na

espiritualidade, no amor-divino, para a grandeza de sua alma. Portanto, está próximo aos princípios cristãos medievais, que

propunham ao homem abandonar ou vencer as paixões carnais como uma forma de elevar-se, transformando, por

ascese, este amor humano a divino.

Este platonismo típico da Idade Média observa-se no fragmento de uma cantiga de amor, de Joan Airas de

Santiago, citada por Maria José Barbosa (s.d: 35):

Desej’ eu ben aver de mnha senhor,mais non desej’ aver ben d’ ela tal,

por seer meu ben, que seja seu mal,e por aquesto, par Nostro Senhor,

nom queria que mi fezesse benen que perdesse do seu nulha ren,

ca non é meu ben o que seu mal for.

O trovador apresenta seu respeito pela sua “senhor”, mesura que o leva a esquecer de si próprio, demonstrando sua

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vassalagem amorosa, seu amor puro e desinteressado ; um amor-adoração, que se satisfaz numa idolatria da sua

“senhor” (ele só quer o “ben” se a sua dama estiver “ben”). O poeta a venera como a uma mulher divina, idolatria que será depois recuperada mais tarde por Petrarca, Camões e pelos poetas do Romantismo. Percebe-se, portanto, que o ideal de

amor é Platônico e o de mulher é idealizado e espiritual.

Para nós, a concepção de amor do trovadorismo é clara, entretanto não havia, naquela época, consenso em relação ao

conceito desse sentimento. Uma das formulações mais completas seria a de Girhault de Borneilh, citado por

Campbell (1997: 216), como se segue: “Os olhos são os batedores do coração. Eles vão à frente para encontrar uma

imagem que possam recomendar ao coração. E, tendo-a encontrado, se esse coração (e aí vem a palavra-chave) for um coração cavalheiresco (ou seja, um coração capaz não

somente de luxúria, mas também de amor, duas coisas inteiramente distintas), nasce então o amor.”

Em nome do amor, os trovadores cometiam loucuras, esperando ser notados pelas suas damas. Campbell (1997:

217) narra o caso de um trovador que se fantasiou de lobo e fingiu investir contra as ovelhas, tendo sido atacado pelos

cães pastores, com o objetivo de ser levado para o interior do castelo e ser tratado pela mulher amada; outro comprou um manto de um leproso, decepou dois dedos e se colocou no meio deles, para atrair a atenção e a afeição de sua dama.

O amor era um desafio e, muitas vezes, uma grande transgressão, ao mesmo tempo em que se definia também como uma versão do solitário caminho de desafios a ser

percorrido pelos heróis dos romances de cavalaria atualizado na poesia. Não ter caminhos abertos e, mesmo assim, jogar-se no escuro, esse era o desafio para o amante. Se, por um

lado, o amor cortês aponta para um refinamento dos indivíduos e para a valorização da mulher, preparando a

sociedade para a Idade Moderna, por outro lado, era uma espécie de “contra-ensino” (uma contra-cultura) em relação à Educação que recebia o homem medieval, no que diz respeito

ao casamento e à fidelidade.

Tanto os romances quanto as cantigas de amor faziam a apologia do amor adúltero, tendo-se criado, inclusive, um código de honra, que era conhecido tanto pelos amantes

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quanto pelas damas. Quando esse código de honra era quebrado, lembra-nos Campbell (1997: 217), os “tribunais do

amor”, em que as damas exerciam o papel de juízes e decidiam questões relativas à relação entre o amante e a

dama, eram chamados a interferir.

O desafio para a dama consistia em distinguir o que seria um amor cortês de um amor lascivo, para daí aceitar a corte e, por isso, o jovem se submetia a uma variedade enorme de

desafios. Quando a dama se certificava de que o amor que lhe era devotado não era de luxúria, podia então aceitar a corte, concedendo-lhe em troca o merci, ou seja, uma espécie de recompensa, que podia variar de um beijo na nuca uma vez

ao ano ou ir “muito além” (CAMPBELL, 1997: 217-218). Entretanto, com a Inquisição, as produções foram se transformando: o amor se torna mais platônico, mais

sublimado, enquanto que a mulher se aproxima cada vez mais do ideal da Madona, propagado pelo marianismo

medieval.

Embora muito distante dos textos produzidos dentro dos mosteiros, a influência da educação cristã e de sua moral na

poesia trovadoresca é bastante forte, sobretudo após a criação dos tribunais inquisidores. Assim, do mesmo modo que nas novelas de cavalaria, o amor que o trovador sente

pela dama é um amor sublime e sublimado, com a diferença de que, na cantiga de amor, ele tem um sentido mais positivo

do que nas novelas. Isso se explica, em parte, pelo fato de não sofrer censura direta da Igreja, já que os trovadores não

pertencem, em princípio, à vida monástica.

Na cantiga de amor, a dama, tida como um ser superior, era vista pelo poeta como uma deusa, pela qual valia a pena morrer. É o que lemos no texto abaixo, de D. Diniz (apud

MOISÉS, 1997: 20-21):

Em gran coita, senhor,que peior que mort’é,

vivo, per boa fé,e pólo voss’amor

         essa coita sofr’eu         por vós, senhor, que eu

Vi pólo meu gran mal,e melhor mi será

de morrer por vós já

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e, pois meu Deus non val,          essa coita sofr’eu

          por vós, senhor, que eu

Pólo meu gran mal vi,e mais mi val morrer

ca tal coita sofrer,pois por meu mal assi

          essa coita sofr’eu          por vós, senhor, que eu

Vi por gran mal de mi,pois tan coitad’and’eu.

O poema é sustentado por dois campos semânticos. Um, representado pela coita (sofrimento), e o outro, pela morte. Os dois, entretanto, não estão numa relação antagônica. Ao

contrário, amor e morte se equivalem. Notemos que o eu lírico que se desnuda na cantiga é um eu lírico que crê (“vivo,

per boa fé,/e pólo voss’amor”). A presença dos valores cristãos pode ser observada tanto na referência ao

sofrimento (coita), valorizado pelo Cristianismo, quanto na concepção de amor platônico, sublimado na imagem da

mulher inatingível, que se aproxima do ideal divino.

A interpelação a Deus é clara também na cantiga de Bernal de Bonaval (apud MOISÉS, 1997: 21), abaixo transcrita:

A dona que eu am’e tenho por senhoramostrade-me-a Deus, se vos em prazer for,

        se non dade-me-a morte.

A que tenh’eu por lume destes olhos meuse por que choram sempre amostrade-me-a Deus,

       se non dade-me-a morte.Essa que Vós fizestes melhor parecer

de quantas sei, ai Deus, fazde-me-a veer,              se non dade-me-a morte.

Ai, Deus, que me-a fizestes mais ca mim amar,mostrade-me-a u possa com ela falar,

             se non dade-me-a morte.

Observemos que o poeta, em seu sofrimento, se dirige a Deus, pedindo-lhe que interceda para que possa ver a amada, o que nos leva a pensar que, para o trovador, o amor que ele sente pela dama, sendo um amor puro, vem de Deus e é por

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ele abençoado. Neste sentido, a dor que o poeta sente passa a ter, também, um sentido místico, como ocorre na filosofia

cristã.

Já analisando a dor pela perspectiva do desenvolvimento da subjetividade, o sofrimento é o grande caminho através do qual se aventura o amante. Trata-se a dor de uma forma de autoconhecimento, de autonomia, não apenas no sentido de que enfrenta a ordem vigente para cantar esse amor, mas

também no sentido de que o que move o poeta é um imperativo que nasce de dentro para fora (da subjetividade) e

não uma necessidade ditada pelo exterior. Estar completamente apaixonado por alguém, fazer de sua vida uma vida de provações para obter as atenções da pessoa

amada, e, sobretudo domar esse amor, sublimando-o, esse é o difícil caminho que o homem medieval percorre na Idade

Média para sondar a subjetividade.

A presença da palavra “morte” nas duas cantigas nos remete à compreensão do sentido negativo do amor na Idade Média

e de como esse sentido negativo se concretiza na poesia. Assim, apesar de os amantes não medirem esforços para ter a recompensa (o merci) de sua dama, também para eles o

amor estava associado à morte, ou seja, à destruição extrema. O aceite da corte, por parte da dama, não

significava que o amor seria menos platônico e muito menos que evoluiria para uma relação carnal. Entretanto isso era

suficiente para o cavaleiro.

A dor maior consistia, portanto, não na impossibilidade de realização carnal do amor, mas na não aceitação da corte,

por parte da dama. É o que podemos perceber na leitura da cantiga abaixo, transcrita por Spina (1996: 273):

Senhor do corpo delgado,en forte pont’eu fui nado!que nunca perdi cuidadonen afan, des que vos vi.

En forte pont’ eu fui nado, Senhor, por vós e por mi!

Con est’ afan tan longado,en forte pont’eu fui nado!

que vos amo sen meu gradoe faço a vós pesar i.

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En forte pont’eu fui nado,senhor, por vós e por mi!

Ai eu, cativ’e coitadoEn forte pont’eu fui nado!Que servi sempr’endõadoOnd’un bem nunca prendi.En forte pont’eu fui nado,Senhor, por vós e por mi!

Observa-se nesta cantiga de amor, de Pero da Ponte, que o trovador descreve sua indignação por perceber que o seu amor é irrealizável, quando afirma que nasceu num dia de

azar “En forte pont’eu eu nado”, contrapondo a essa afirmativa a constatação de que amou a sua dama desde o

dia em que a viu ou a conheceu. O trovador sabe que serve a uma dama inacessível, idealizada, mas mesmo assim ele não deixa de adorá-la. O poeta pinta o retrato da mulher quando

diz “Senhor do corpo delgado”, mas este retrato é superficial, na medida em que representa, implicitamente, o retrato moral desta senhora, que não sustenta este amor, não dá

esperanças de que o mesmo será correspondido, para grande desespero do trovador.

Finalizando essas reflexões, podemos concluir que a influência do imaginário cristão na literatura medieval laica é

evidente, mas ela ocorre de forma diversa em cada um dos gêneros. Não podemos ignorar o papel dos tribunais

inquisidores na transformação tanto das novelas quanto das trovas, entretanto, nas primeiras, justamente por terem sido registradas, na maioria das vezes, por clérigos, a influência da igreja cristã parece ter sido maior, exercendo mesmo um

papel censor, principalmente no que diz respeito ao amor cortês, que aparece sempre com um sentido negativo.

Já no que se refere às cantigas de amor, produzidas por trovadores oriundos do povo, essa influência parece estar

mais ligada ao culto a Nossa Senhora, sobretudo se considerarmos que um dos traços da religiosidade na Idade Média está exatamente no desenvolvimento do marianismo,

fortemente presente naquela época.

Seja como for, a influência do imaginário cristão na cultura laica do período medieval, ainda que importante, não será

suficientemente forte a ponto de anular o traço mais

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representativo da civilização ocidental, claramente delineada no imaginário medievo: a individualidade; essa mesma

individualidade que, anos mais tarde, será uma das responsáveis pelo declínio da Idade Média e pela descoberta

de um novo modo de ser e de se comportar no mundo, caracterizando a Idade Moderna.

*

Bibliografia

BARBOSA, Maria José. A lírica trovadoresca. Men Martins: Sebenta, s.d.

BULFINCH, Thomas. O livro de outro da mitologia : história de deuses e heróis. Trad. David Jardim Júnior. Rio de Janeiro:

Tecnoprint, 1965.

CAMPBELL, Joseph. As máscaras de deus: mitologia primitiva. Trad. Carmem Fischer. São Paulo: Palas Athena, 1992. V1

___________. As transformações do mito. Trad. Heloysa de Lima Dantas. 10 ed. São Paulo: Cultrix, 1997.

ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno: cosmo e história. Trad. José Anônio Ceschin. São Paulo: Mercuryo, 1992.

MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. 22 ed.São Paulo: Cultrix, 1997.

MONROE, Paul. História da educação. Trad. Ider Becker. 18 ed. São Paulo: Nacional, 1987.

SIMÕES, João Gaspar. História do romance português. Lisboa: Estudios Cor, 1967.

SPINA, Segismundo. A lírica trovadoresca. São Paulo: EDUSP, 1996.

A universidade medieval: uma memória*

Terezinha Oliveira (DFE/PPE/UEM)

ResumoNeste artigo pretendemos analisar, em linhas gerais, as origens da Universidade medieval, considerando–a como local novo, próprio do

saber, que comungava com os interesses da comunidade e era, legitimamente, reconhecida como um espaço fundamental pelo

governo laico e eclesiástico. Neste estudo nos basearemos em alguns

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estudiosos que se ocuparam das Universidades na Idade Média, como SAVIGNY (1844), VERGER (1973), STEENBERGHEN (198?) e NARDI (1996). Acreditamos que as questões tratadas pelos teóricos

medievais e que esses estudiosos destacam não expressam preocupações individuais, mas inquietações e indagações que a

sociedade fazia nessa época histórica. Por meio dessas questões, buscamos as origens da Universidade, o que é uma forma de indagar pela razão da sua existência. Mas, vemos nesse estudo um alcance maior do que um debruçar sobre as medievais. Ao assim fazermos, julgamos estar tangenciando questões que as perpassam hoje, não por achar que os problemas sejam os mesmos, mas por se tratar da

mesma Instituição. Desse modo poderemos, ao menos, verificar como os homens de saberes daquela época construíram esse espaço que

continua sendo um espaço próprio e oportuno para o conhecimento. Com isso, ao estudarmos as origens das Universidades medievais por

meio da historiografia e de documentos medievais estamos, igualmente, criando uma nova memória e um novo espaço de saber

estabelecido pelos nossos problemas e pelas nossas relações cotidianas.

AbstractIn this article, we intend to analyze in general, the origins of the

medieval university, considering it as a new place, favorable to the knowledge that participated with the community interests and it was legitimally knew as a fundamental space by the laic and ecclesiastic government. In this study we have based in some studious writers who held good position studying about the medieval university as

SAVIGNY (1844), VERGER (1973), STEENBERGHEN (198?) e NARDI (1996). We believe that the questions treated by the medieval

theoretical and what these studying people try to put in relief don’t express only the individual worries, but inquietudes and questions

that the society asked in this historic epoch. Through these questions, we look for the origins of University that in other ways is a meaning of asking for the reasons for its existence. But we see in this study a further reach, not only just a look over the medieval. Doing this, we judge to be referring questions concerned to the future too, not thinking that there are the same problems, but because we are talking about the same Institution. In this way, we will be able, at least, to verify how the wise men of that epoch built these spaces

that continue being a proper and opportune space for the knowledge. With that when we study the origens of the medieval universities

using the historiography and the medieval documents, we are, in the same manner, creating a new memory and a new space of

knowledge, established by our problems and our daily relations.

Palavras-ChaveUniversidade Medieval – História da Educação – Memória –

Intelectuais.

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KeywordsMedieval University – History of Education – Memory – Intellectuals.

*

Afinal, se nestes últimos oitocentos anos a Igreja mudou muito – os monges já não são o que foram –, a Universidade, nem tanto. Nossos graus acadêmicos ainda são os mesmos, a duração média dos cursos, a persistência com que a Universidade se arroga o direito de não se submeter, legitimamente, a poderes externos a ela, o corporativismo – no que tem de melhor, como defesa da dignidade profissional ou no que tem de pior [...] (VERGER, 1990).

Uma das questões que mais inquietam os educadores na atualidade diz respeito ao papel que as Universidades devem desempenhar e, ao mesmo tempo, à crise de identidade que estão atravessando. De um lado, indagamos, freqüentemente, acerca dos benefícios que elas trazem à sociedade. Afinal, em que medida nós, docentes, pesquisadores, participamos da comunidade e com ela contribuímos. Por outro lado, como somos vistos por esta sociedade e, especialmente, pelas autoridades que representam e legitimam o Estado.

Diante desse quadro de indefinições dos papéis políticos e sociais, faz-se extremamente oportuno, a nosso ver, um estudo sobre as origens medievais dessa Instituição que é, de fato, nosso espaço do saber e do conhecimento. Paradoxalmente, quando olhamos e buscamos a memória das Universidades medievais, observamos que essas duas faces apontadas atualmente, não estavam presentes no século XIII.

Com efeito, como corporação de ofício, era necessário o estabelecimento de leis que protegessem a Universidade e assegurassem a sua liberdade, posto que a sociedade percorria outros caminhos e interesses. Contudo, essas leis ou privilégios, como queiram denominar, não impediram que essa Instituição se aproximasse dos interesses da comunidade e, muitas vezes, correspondesse aos seus anseios.

Concomitantemente, também, verificamos a promulgação de leis reais e papais (portanto, governamentais) visando aos interesses imediatos das Universidades. Assim, nesse texto, pretendemos analisar, em linhas gerais, as origens dessa Instituição, considerada como um local novo, próprio do

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saber, que comungava com os interesses da comunidade e era, legitimamente, reconhecida como um espaço fundamental pelo governo laico e eclesiástico do medievo.

Para tanto nos basearemos em alguns estudiosos que se ocuparam das Universidades na Idade Média, vale dizer, do nascimento e dos primeiros passos dessa Instituição. Trataremos ainda de algumas questões com que eles se depararam. Acreditamos que as questões levantadas, no estudo dessa Instituição, não expressam preocupações de indivíduos, mas preocupações e indagações que a sociedade fez em uma dada época histórica. Buscar as origens da Universidade não é, talvez, indagar pela razão de sua existência?

Assim, em uma época como a nossa, em que se questiona a própria universidade e a sua função social, buscar a sua origem talvez seja uma forma de perguntar pelo seu verdadeiro papel na atual sociedade, e, em última instância, buscar nossa própria identidade.

Na verdade, embora não tratemos das Universidades contemporâneas, mas somente das medievais, estamos também tangenciando questões que as perpassam hoje, não por achar que os problemas sejam os mesmos, mas por ser a mesma Instituição. Assim, poderemos, ao menos, verificar como os homens de saberes daquela época construíram esse espaço que continua sendo um espaço próprio e oportuno para o saber. Além disso, ao estudarmos, no presente, as origens das Universidades medievais, por meio da historiografia e por documentos medievais, estaremos, nós mesmos, criando uma nova memória e um novo espaço de saber, estabelecido pelos nossos problemas e pelas nossas relações cotidianas.

Destacamos, para esse momento de análise, a abordagem de três autores de período e de formação distintas, pois acreditamos que ao darmos voz a diferentes intérpretes da história das universidades poderemos observar diferentes momentos de abordagem ou, colocado de outra forma, diferentes momentos e locais de memória.

Principiemos pelo eminente jurista e político alemão da primeira metade do século XIX, Savigny (1779-1861) que publicou, entre outras obras, a monumental Histoire du droit

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romain au Moyen Âge (1815-1831) – nesse texto nos reportaremos à edição italiana de 1844. A edição francesa que temos acesso não possui a parte referente às Universidades medievais.

Parte dessa obra é dedicada ao estudo da história da Universidade na Idade Média. Nesse estudo, o autor efetua uma detalhada investigação das origens das Universidades européias em geral. Traça um quadro das diferentes Universidades, dos seus docentes, da relação entre as Universidades com a Igreja e os reis, enfim, constrói o perfil dessas instituições.

Uma vez que a universidade não é uma criação arbitrária, não se pode determinar com exatidão a época em que surgiu. Uma escola de direito formada pela reputação de um professor e pelo zelo de alguns discípulos por muito tempo não pôde ser uma corporação e nem ao menos uma constituição estabelecida. Por meio de um privilégio imperial os professores obtiveram a jurisdição, e com o número crescente de alunos a universidade se constituiu, de modo que a organização se desenvolveu rapidamente e logo foi reconhecida como direito (SAVIGNY, 1844: 108, trad. livre).

Ao estudar as origens das Universidades, o primeiro problema com o qual Savigny se depara é a dificuldade de se definir um fato específico que teria marcado o nascimento dessa Instituição. Do seu ponto de vista, essa origem pode ser explicada pela existência de um grande mestre, por um privilégio imperial, por uma concessão eclesiástica, enfim, nada assegura, com exatidão, o acontecimento que permitiu o nascimento dessa corporação.

É exatamente por causa dessa dificuldade que Savigny decide buscar as origens da Universidade na cidade de Bolonha, pois lá seria encontrado o documento mais antigo que legisla sobre a criação da primeira unidade dessa Instituição, a Universidade de Bolonha. Cumpre observar aqui que não podemos nos esquecer da formação desse intelectual. Trata-se, como já mencionamos, de um jurista, portanto, as leis constituem um elemento essencial de sua abordagem. Isso não quer dizer, contudo, que Savigny não possa ser encarado do ponto de vista da história, muito pelo contrário.

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O primeiro fato histórico do qual devo tratar é o privilégio concedido por Frederico I em novembro de 1158, na assembléia de Roncaglia. Embora Bolonha não tenha sido escolhida não tinha como não conceder-lhe esse privilégio. O privilégio foi estabelecido em favor daqueles que viajam com o intuito de estudar e os professores de direito são especialmente mencionados com palavras muito honrosas. [...]

Este privilégio tinha dois objetivos: em primeiro lugar concedia proteção especial aos estudantes estrangeiros que por amor a ciência enfrentavam tantas dificuldades. Eles tinham o direito de viajar livremente por toda parte, era proibido submetê-los a qualquer tipo de vexação sob pena de severíssimas punições, também não podiam ser acusados pelos delitos ou pelos erros de seus compatriotas. Existia, além disso, uma jurisdição particular fora da qual não poderiam ser conduzidos (SAVIGNY, 1844: 108-109).

A passagem acima explicita claramente que os estudantes e mestres, especialmente os de direito, passaram a ter determinados privilégios que lhes possibilitaram se dedicarem com mais tranqüilamente aos estudos. E um dos mais importantes privilégios nesse sentido foi a liberdade dada aos homens de saberes para que pudessem viajar livremente. Para nós, contemporâneos, esse direito é algo bastante estranho, na medida em que temos, em geral, inteira liberdade de viajar.

Contudo, para o homem medieval isto era bem diferente, embora essa sociedade seja a de “andarilhos”, os homens não podiam viajar sem a autorização de seus senhores, fossem laicos ou eclesiásticos. Além disso, eram constantemente importunados nas paragens, nos pedágios. Ao dar liberdade de locomoção, Frederico I permite, ao menos no âmbito da legislação, que os homens dedicados ao conhecimento não passassem mais por esses aborrecimentos.

Paulo Nardi, um teórico contemporâneo, ao analisar as relações entre as Universidades e os poderes (laico e eclesiástico, entenda-se governo), chama-nos a atenção para a importância da lei de Frederico I, a Authentica Habita, mencionada por Savigny.

Nardi, do mesmo modo que o jurista alemão, considera que a primeira medida real de proteção “às gentes de estudo” foi tomada por Frederico I, em fins do século XII, por ocasião da promulgação de uma “constituição”, intitulada Authentica

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Habita, na qual se colocava sob proteção o saber científico e todos aqueles que se dedicassem a ele, fossem habitantes naturais da Itália ou estrangeiros.

[...] a Authentica Habita, uma constituição publicada pelo imperador Frederico I, o Barba Roxa, quando foi a Itália pela primeira vez para receber a coroa. Ele reuniu-se com os mestres e estudantes da escola de Direito em Maio de 1155, perto de Bolonha. Segundo o autor anónimo de ‘Carmen de gestis Frederici I’, aqueles suplicaram ao imperador que proibisse o exercício do direito de represália contra os escolares estrangeiros (captura de pessoas ou propriedade para satisfazer dívidas em que incorriam os seus compatriotas) e que lhes concedesse a todos liberdade de movimento << para que todos os homens inclinados ao estudo sejam livres de ir e vir e vivam em segurança [...] Frederico I, o Barba Roxa, publicou imediatamente a famosa constituição em que – em primeiro lugar – afirmava o valor preeminente do saber científico e reconhecia que todas as pessoas que, em busca desse saber, eram obrigadas a viver longe do seu país eram dignas de louvor e mereciam proteção (NARDI, 1996: 76).

De acordo com o autor, as medidas promulgadas pela Authentica não foram totalmente respeitadas, inclusive em função das condições históricas da época. A insegurança que rondava as cidades, a rejeição aos estrangeiros, a pouca importância que a população citadina dava aos homens que se devotavam ao saber, os privilégios dos mestres e dos escolares em relação à população local, ou seja, um conjunto de condições e fatores obstaculizaram o livre cumprimento dessa lei. Contudo, isso não impediu que novas leis fossem criadas pelo rei, na Itália, visando a proteção das “gentes do saber”. Isso demonstra que se tratava de uma luta intensa para estabelecer e proteger o saber, pois, mesmo o rei não estava conseguindo.

Em 1220, Frederico II edita uma nova lei para proteger as pessoas que se devotavam ao saber, especialmente as do Direito de Bolonha e de Nápoles. Aliás, há que se destacar um fato notável: o rei promulga essa lei no dia da sua coroação, o que demonstra a importância dessa Instituição para o seu governo

No dia da sua da sua coroação, em 22 de Novembro de 1220, o imperador Frederico II promulgou a constituição denominada De statutis et consuetudinibus contra libertatem Eclesiae editis, em que se salvarguardavam as imunidades e privilégios do clero, e ordenou

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aos juristas de Bolonha que o integrassem no grande Corpus de Direito Romano. Ele mostrava, deste modo, que o poder político imperial continuava interessado nas escolas de Direito, no seguimento de uma tradição que já remontava à constituição Habita, mas que depressa foi interrompida pela guerra e pela crise dinástica que precedeu a sua ascensão ao trono. Mesmo assim, o imperador Frederico II não tinha intenção de competir com o Papa como protector do studium de Bolonha; tinha, porém, outros planos, mais ambiciosos – como viriam a mostrar os anos de sua enérgica governação da Itália. O seu primeiro acto importante no campo da política acadêmica foi a fundação do studium de Nápoles, com o objetivo de formar a classe dirigente do reino da Sicília – um território que não era menos querido a Frederico II do que o Sacro Império Romano. Em 1224, enviou uma carta a todos os dignatários do reino, na qual expunha as razões para a sua decisão e o modo como esta deveria ser posta em prática; esta carta fazia eco de partes da constituição Habita e seguia algumas de suas directivas. Mas por razões completamente diferentes: embora ambos os documentos mostrassem a intenção de proteger os estudantes e os professores em relação aos desconfortos do estatuto de estrangeiros (peregrini), a constituição Habita oferecia protecção a todos os centros de ensino possíveis e proibia represálias de qualquer espécie, ao passo que a <<circular>> de 1224 limitava essa protecção aos indivíduos que freqüentassem o studium de Nápoles. (NARDI, 1996: 84-85).

Essa nova lei lembrava, em muitos aspectos, a Authentica. Todavia, ela está, efetivamente, mais dirigida ao ensino do direito, objetivando conservar os privilégios do clero na Universidade de Bolonha e proteger os alunos e os studia da Itália, em virtude, inclusive, da ambição política de Frederico II de expandir o seu Império. Nesse sentido, essa nova lei se diferencia da de 1155 uma vez que aquela estendia a proteção e o privilégio a todos os estudantes, inclusive aos estrangeiros e aos diferentes studia sob o governo de Frederico I. A de 1224, por seu turno, se limita a proteger os mestres e escolares de Nápoles. Mais do que isso, está dirigida ao curso que poderia prover o rei de pessoas bem formadas para auxiliá-lo em suas ambições políticas.

Contudo, se Savigny, no século XIX, e Nardi, no século XX, destacam a Authentica Habita como a primeira lei que ressalta a importância dos homens de saberes e vêem nela um dos fatos ligados às origens das Universidades medievais, o filósofo alemão da primeira metade do século XX, Steenberghen, ao analisar as correntes filosóficas na Idade Média, nos brinda com uma excelente análise sobre as

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origens das Universidades medievais e destaca as escolas do século XII como um dos fatos mais relevantes para o surgimento dessa Instituição medieva. Aliás, muitos autores de renome, destaque-se o próprio Jacques Le Goff, na sua obra Os Intelectuais na Idade Média, comungam dessa concepção acerca das origens da Universidade medieval:

Já no século XII, algumas escolas emergem e se tornam célebres, sobretudo em França: Paris (Notre-Dame e São Victor), Chartres, Claraval, etc.

O fenómeno da concentração escolar acentua-se no século XIII: alguns centros de estudo assumem uma importância verdadeiramente excepcional. Vê-se afluírem lá os mestres e os estudantes: o ensino ganha aí um desenvolvimento novo; enfim e sobretudo, estes centros recebem uma organização jurídica análoga à das corporações de ofícios. Tal é a origem das universidades.

Porquê este centro mais que aqueloutro? Em virtude de circunstâncias diversas, a examinar em cada caso.

As mais antigas universidades são de as Paris e Bolonha (cerca de 1200), depois as de Oxford (cerca de 1214) e Nápoles (1224), [...]. Dentro em pouco, as grandes ordens religiosas vão fundar centros de estudos regionais, entre outros os studia generalia dos Pregadores (Colónia, em 1248, Nápoles em 1272, etc.)

Paris será doravante até o fim da Idade Média, metrópole universitária da cristandade. Centro principal dos estudos filosóficos e teológicos, comanda as grandes correntes doutrinais (Bolonha será sobretudo célebre pelo direito, outros centros pela medicina). É importante, pois, compreender o que era a Universidade de Paris no século XIII. Ela serviu de modelo às outras universidades e, além disso, pouco evoluiu na sua constituição e na sua organização geral (STEENBERGHEN, 198-, 90-91).

Essa passagem evidencia a concepção de Steenberghen acerca das origens dessa Instituição, ou seja, as universidades surgiram a partir das escolas dos séculos XII e XIII e se organizaram sob a forma de corporação de ofício, do mesmo modo que as demais profissões do período estavam se organizando. Assim, na sua concepção, as universidades, os profissionais do saber precisaram se organizar de acordo com as relações que estavam se estabelecendo na sociedade e criar locais próprios do e para o conhecimento que eram

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protegidos por leis e regulamentos que norteavam as relações feudais.

Não queremos dizer com isso que a Universidade e as corporações de ofícios fossem corpos estranhos e fora do universo medievo, mas, indubitavelmente, eram instituições novas que principiavam a ser constituídas por intermédio de leis novas, portanto, buscavam nos privilégios e proteções os elementos essenciais para a sua existência.

A <<Universitas magistrorum et scholarium>> é, em suma, a mesma corporação parisiense das gentes de estudo.

O chanceler é um mestre que representa o bispo de Paris, chefe da Universidade. Os mestres são os <<patrões>>, os bacharéis são os <<companheiros>>, as faculdades são os <<ofícios>>. Cada mestre tem os seus bacharéis e os seus estudantes; não há, pois, especialização, divisão do trabalho como hoje, pelo menos em princípios (STEENBERGHEN, 198-: 91).

Um outro aspecto salientado pelo autor que merece ser destacado é a ênfase dada à Universidade de Paris. Esse destaque não é só dele. Pieper, em sua análise sobre a Escolástica, também nos chama a atenção para a importância dessa Instituição. Tanto Steenberghen como Pieper observam que a Universidade de Paris tornou-se o centro da cristandade latina porque foi nela que as questões mais importantes da humanidade estavam sendo debatidas, elaboradas, defendidas e criticadas, pois, era nela que se concentravam as principais tendências filosóficas e teológicas do Ocidente do século XIII.

Por último, em relação a Steenberghen vale ressaltar o fato de que ele descreve o sistema de ensino das universidades medievais sem estabelecer nenhuma crítica negativa como, em geral, encontramos na historiografia. Entretanto, não se trata de uma descrição apenas, mas de uma valoração desse sistema de forma positiva, o que estimula a reflexão. Sob este aspecto Pieper tece comentários no mesmo sentido.

A universidade medieval conhece duas formas de ensino complementares: a lectio e a disputatio.A lectio é o curso propriamente dito, feito sobre a base de um texto <<lido>>.

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A disputatio é um exercício de discussão. A disputatio ordinária realiza-se regularmente, cada semana ou cada quinzena.A disputatio solemnis, generalis ou de quodlibet, realiza-se duas vezes ao ano, na presença do bispo, do chanceler e de toda a faculdade. O mestre que aceitou a presidência deve estar disposto a responder a todas as questões que se lhe queira pôr (daí o título de quodlibet, disputas quodlibéticas, quodlibeta). Estas grandes sessões académicas lançam uma viva luz sobre os ambientes teológicos do século XIII: testemunharam a virtuosidade dialéctica, o espírito combativo, a franqueza e, sobretudo, as preocupações doutrinais dos teólogos da época (STEENBERGHEN,198-: 92-93).

Ao descrever a lectio e a disputatio como um sistema de ensino combativo, franco, Steeenberghen permite-nos olhar essa época sem ter que necessariamente tomar partido, ou seja, não precisamos nem defendê-la nem combatê-la, mas tão somente entender como um modo no qual os homens de saberes produziram uma forma própria e nova do conhecimento.

Após considerarmos as origens da Universidade medieval em Steenberghen, passemos agora a fazer alguns comentários sobre o estudo de Jacques Verger, uma das maiores autoridades contemporâneas sobre a temática. Já na introdução de sua obra intitulada As Universidades na Idade Média, Verger delimita o seu campo de estudo.

De início, falaremos apenas das universidades, daquilo que, ao menos a partir do início do século treze, designa um tipo bastante preciso de instituição. Deixaremos de lado as demais formas de ensino que existiam no Ocidente nessa época: de um lado, os monastérios (bem menos importantes, é verdade, do que na Alta Idade Média); de outro, todos os tipos de escolas que não integravam as universidades (“pequenas escolas” de gramática, preceptoras privadas, escolas de notários de direito, de mercadores, etc.). Não ignoramos o interesse que teria o estudo delas; sem dúvida, estamos respeitando uma concepção muito tradicional ao isolarmos as universidades do resto do mundo das escolas. (VERGER, 1973: 7-8, trad. livre).

As palavras de Verger não deixam dúvidas de que faz um recorte específico em relação aos homens de saberes: ele vai tratar, nessa obra, somente das Universidades no medievo, especialmente aquelas do século XIII.

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Após definir o seu objeto, o autor analisa a importância e o papel que os homens e o conhecimento veiculados nessa Instituição desempenharam na sociedade. Nesse sentido, uma das questões que mais nos chamam a atenção é o fato de Verger procurar definir uma origem para as Universidades. Segundo ele, podemos detectar ao menos três origens distintas para essa Instituição, ou seja, diferentemente de Savigny e de Stenberghen, que procuram as origens dessa Instituição em um aspecto, uma lei, um grande acontecimento, Verger busca explicitar o nascimento da Universidade em função de elementos variados.

Para esse historiador, podemos definir as origens dessa corporação de ensino a partir de suas relações com o poder, de suas relações com as escolas anteriores e em função das lutas entre as gentes de saberes com as demais pessoas do local onde estavam localizadas. Nesse sentido, do ponto de vista de Verger, não se pode entender as origens das Universidades sem considerar os acontecimentos sociais que marcaram o Ocidente medieval do século XIII. Exatamente por isso vincula sua origem aos principais aspectos históricos desse período.

Dentre esses aspectos, destaca o início das disputas entre os poderes laico e eclesiástico e aquelas entre os habitantes das comunas e os privilégios dados aos homens que se dedicavam ao saber, as disputas pelas cartas de liberdade, enfim, os diferentes avanços e conflitos que marcaram esse período.

É em função dessa realidade de crescimento e de profundos conflitos que ele define três origens distintas para as Universidades medievais. A primeira delas denomina de espontâneas.

A. Universidades “espontâneas”Chamam-se assim universidades nascidas do desenvolvimento “espontâneo” de escolas pré-existentes. As de Paris e de Bolonha são pois exemplos absolutamente típicos. Um outro caso clássico de universidade nascida “espontaneamente” é o da universidade de Oxford [...] (VERGER, 1990: 41).

Essas Universidades espontâneas teriam surgido, segundo Verger, de alguma importante escola que existia. Ao se desenvolverem as relações sociais nesses locais, essas

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escolas passam a agregar um número cada vez maior de pessoas e a unir interesses diversos em seu seio. Nesse sentido, essa modalidade de Universidade aproxima-se muito da discussão de Steenberghen, mas lembremos que para Verger essa é apenas uma das explicações para a origem das Universidades, enquanto que para Steeenberghen essa seria a única.

Uma segunda origem para as Universidades seria aquelas oriundas de migrações de professores e alunos.

B. Universidades nascidas por migração Os exemplos de Paris e Bolonha mostram-nos que a “secessão” fora uma das principais armas das jovens universidades em luta contra as autoridades locais. [...]

Mas outros sobreviveram. Sua organização refletia a da universidade “mãe”. Como as universidades “espontâneas”, essas universidades nascidas por migração funcionavam muitas vezes longamente de fato antes de receberam uma bula de fundação e seus primeiros estatutos oficiais.

Na Inglaterra, a universidade de Cambridge (oficialmente reconhecida somente em 1318) nasceu da secessão oxfordiana de 1208..

Na França, a grande secessão parisiense de 1229-1231 dispersou mestres e estudantes em numerosas cidades da metade norte da França; em Angers e Orléans, encontraram escolas de Arte e de Direito que existiam desde o século XII. Por isso, mesmo após o final da secessão, tais escolas continuaram a funcionar com a amplitude de verdadeiras universidades, tanto mais que nelas podia-se estudar livremente Direito civil, proibido, pelo contrário, em Paris, desde 1219. Angers só foi oficialmente reconhecida como universidade em 1337, Orléans em 1306 (VERGER, 1990: 43).

As Universidades por secessão teriam sua origem em virtude das disputas entre as autoridades locais e os homens de saberes que, muitas vezes, saíam de um local onde já se encontravam havia bastante tempo e iam para os locais onde tivessem mais proteção e aceitabilidade das autoridades e da população em geral.

Verger define a terceira origem para as Universidades em função das estreitas relações existentes entre os homens de saberes e o poder, seja ele laico ou eclesiástico. Exatamente por isso as denomina de Universidades criadas.

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C. Universidades “criadas”Chamamos desta maneira universidades “criadas” de uma só vez pelo Papa ou pelo Imperador; tais universidades recebiam pois, desde sua origem, uma bula ou uma carta de fundação que definia a priori seus estatutos e privilégios.

Na verdade, as poucas universidades “criadas” do século XIII tiveram, em relação às grandes universidades “espontâneas”, resultados medíocres: essa fórmula não conhecerá verdadeiro sucesso senão nos séculos XIV e XV. Contudo, é preciso mencioná-la no momento preciso, pois, ela traduz uma atitude completamente nova diante do fenômeno universitário. Ela significa que papas e soberanos não se contentam em tolerar ou encorajar o desenvolvimento espontâneo de universidades nascidas antes de tudo do desenvolvimento intelectual do século XII, mas que empreendem eles mesmos a criação de universidades, tendo tomado consciência do papel que elas podiam desempenhar ao colocar à disposição da Igreja ou do Estado um pessoal intelectualmente qualificado. Significava reconhecer na formação universitária, além de seu valor cultural e de seu prestígio, uma utilidade prática e um alcance político.

O primeiro exemplo, perfeitamente claro em suas motivações, foi a fundação da universidade de Nápoles por Frederico II, em 1224. (VERGER, 1990: 44).

Ao analisar essa terceira origem das Universidades medievais, Verger traça um quadro bastante explícito do caráter prático que o governo vai buscar nessa Instituição. Não se trata apenas do conhecimento e do saber, mas de tornar esse saber e conhecimento em um instrumento político útil ao governo. O Papa, um imperador, um rei, ao criarem uma Universidade estariam, em última instância, criando as bases teóricas de sustentação de seu poder. Esses governantes procuram nas Universidades não só quadros administrativos, mas, efetivamente, verdadeiros defensores de seu governo.

Aliás, dois grandes exemplos da influência dos teóricos do século XIII e XIV a serviço do poder são a Bula Unan sanctam, do papa Bonifácio VIII, e a obra de Marsílio de Pádua, Defensor da Paz. Na Bula papal encontramos passagens muito semelhantes à obra de Egídio Romano, Sobre o Poder Eclesiástico (EGÍDIO ROMANO, 1989: 26-27). A obra de Marsílio de Pádua, jurista italiano do final do século XIII e início do XIV, que, inclusive, ocupou o cargo de reitor da Universidade de Paris, é um verdadeiro tratado

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contra a ingerência do poder eclesiástico e uma plena defesa da soberania do poder laico.

Essas duas obras refletem claramente a importância que os intelectuais estavam assumindo na sociedade e, concomitante, verificamos a importância que os poderes políticos lhes davam, pois são personagens importantes não só no campo do saber, mas também no âmbito do poder. Exatamente por isso a Universidade se constitui, na Idade Média, uma Instituição que precisa de privilégios e de proteção.

Decorridos oito séculos de sua criação, como nós, pessoas da Universidade, nos colocamos diante de sua história e de sua memória? Indubitavelmente, não podemos mais analisá-las com os olhos de Savigny, de Steenberghen ou Verger, pois suas análises estão datadas historicamente. Savigny, como autor alemão do século XIX, certamente tinha inquietações muito vinculadas aos embates políticos desse período. Não podemos nos esquecer que Alemanha e França, em fins do século XVIII e início do XIX, em virtude das lutas políticas instauradas nessas duas nações, criaram uma grande corrente teórica que procurou recuperar a Idade Média em nome da construção de suas identidades nacionais, por meio do Romantismo.

Steenberghen também tem seu olhar datado historicamente pelos acontecimentos europeus da primeira metade do século XX. Além das duas guerras que assolaram o mundo, no campo teórico, também se verifica um grande debate entre o marxismo e outras correntes histórico-filosóficas. Mesmo a obra de Verger, que está bem mais próxima de nós, porque é do início de 1970, também tem marca de seu tempo: a França havia passado pelos tumultos de 1968, o debate entre o marxismo e uma infinidade de outras tendências teóricas estava em cena, influenciando, inegavelmente a memória dos historiadores. Verger, como cientista social, não ficou incólume a essas mudanças e perturbações.

Desse modo, ao voltarmos para as Universidades medievais, não podemos apenas contemplar as análises e as memórias de outros tempos. Precisamos, é verdade, considerar como válidas essas análises por expressarem interpretações e memórias datadas historicamente. No entanto, precisamos construir a nossa própria lembrança do passado, precisamos,

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de fato, construir nossa interpretação e isso só será possível por meio da recuperação dos documentos.

Novamente precisamos buscar nos estatutos das Universidades, nos seus privilégios, nas Bulas papais, nas condenações de Tempier, de 1277, especialmente nos escritos dos teóricos daqueles tempos vividos, as lembranças que precisamos recuperar para que possamos também escrever a nossa história e a nossa memória da Universidade medieval. Tudo isso para que o nosso olhar também tenha a marca de nosso presente e possa a vir a ser também uma lembrança.

Que possamos fazer a nossa própria leitura dos documentos medievos à luz de nossas questões. Ao nos defrontarmos, por exemplo, com o primeiro parágrafo da Parens Scientiarum, de 1231, possamos identificar questões novas, sem que isso implique, claro, na “invenção da roda”, mas que possamos, ao menos, verificar como esse documento nos toca, o que ele nos diz.

Paris, mãe das ciências, como uma outra Cariath Sepher [ou Kiriath-sepher, também denominada Dabir ou Lo-debar, atualmente, Tall Bayat Mirshan, era uma antiga cidade da Palestina que encerrava o depósito dos livros de Israel], cidade das letras, brilha com um esplendor digno da maior consideração, grande, sem dúvida, faz dela esperar grandes coisas, graças àqueles que nela aprendem e graças àquele que nela ensinam. [...] Também não resta dúvidas que, aquele que, na cidade acima mencionada, esforçar-se, de alguma maneira, para perturbar uma graça tão manifesta ou aquele que não se opor claramente e com força àqueles que a perturbam, desagrada profundamente a Deus e aos homens. Tendo considerado atentamente aos problemas que a nós foram submetidos a propósito da discórdia que nela nasceu por instigação do diabo e que perturbam gravemente os estudos, julgamos, auxiliados pelo conselho de nossos irmãos, que era preferível resolvê-los por meio de um regulamento sábio do que por uma decisão judiciária (PARENS SCIENTIARUM UNIVERSITAS, 13 de Abril de 1231).

Ao lermos esse documento promulgado pelo papa Gregório IX (1227-1241), considerado, em geral, a carta magna de criação da Universidade de Paris, verificamos o grau de importância que essa autoridade eclesiástica devotava a essa Instituição do saber. Ele considera Paris como a “mãe das ciências” é como considerá-la um local sagrado, que precisa ser protegido por todos e que todos aqueles que, de algum

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modo, possam prejudicá-la precisam ser impedidos, ou seja, nada pode perturbar o estudo e o ensino.

Nesse sentido, ao defrontarmos com esse documento, no qual a autoridade máxima, o papa, define que a Universidade de Paris deve ser protegida por todos e de todos, podemos, ao menos, perguntar porque nossa Universidade, o local por excelência do conhecimento e do ensino hoje, não é mais um local sagrado ou, colocado de outro modo, um local respeitado por todos, especialmente pelas autoridades? Talvez porque ela tenha adquirido independência diante desses poderes. Mas, diante dessa nova situação, qual deve ser seu papel na sociedade? Qual é o conhecimento e o saber que interessa realmente a ela?

A independência não pode ser confundida com descomprometimento. As questões acima formuladas expressam novos desafios que somente poderemos enfrentar se estivermos, como estava a Universidade em sua origem, respondendo às exigências do momento histórico. Além disso, atualmente, o conhecimento e o saber deixaram de ser a essência do ser, característica fundamental da Universidade medieva. Desse modo, a nosso ver, em virtude desses dois aspectos, o político e o esfacelamento do conhecimento, é que faz sentido dar voz aos documentos do passado.

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Bibliografia

EGÍDIO ROMANO, Sobre o Poder Eclesiástico. Petrópolis: Vozes, 1989.

LE GOFF, J. Os Intelectuais na Idade Média. Lisboa: Gradiva, 1984.

LE GOFF, J. Os Intelectuais na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 1989.

MARSÍLIO DE PÁDUA, Defensor da Paz. Petrópolis: Vozes, 1997.

PARENS SCIENTIARUM. In: Chartularium Universitatis Parisiensis. Éditions H. Denifle et E. Chatelain. Paris, Delalain, 1889, Tome 1, p. 136-139.

STEENBERGHEN, F. História da Filosofia. Período Cristão. Lisboa: Gradiva, 1980.

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VERGER, J. As Universidades na Idade Média. São Paulo: Unesp, 1990.

 

* Este texto faz parte de uma exposição feita na IV Jornada de Estudos Antigos e Medievais, na Universidade Estadual de Maringá, em outubro de 2005.

 

“A donzela que não podia ouvir falar de foder” e “Da mulher a quem arrancaram os colhões”: dois fabliaux e as questões

do corpo e da condição feminina na Idade Média (sécs. XIII-XIV)

Ricardo da Costa (Ufes) eNayhara Sepulcri(CNPq - Ufes)

RésuméLe present article analise deux fabliaux médiévaux pour

présenter une étude de la réalité féminine, et des corps, dans les XIIIème et XIVème siècles. De cette façon, nous avons

choisi, comme référence de cette idée, les discours normatives des moralistes que, en effect, n’arrivent pas a

changer substantiellement la vie quotidienne de la population, particulièrement de la couche sociale inférieur

médiévale. En plus, les auteurs relacionent ceux contes satiriques avec les images erotiques, car, selon Gustave

Cohen, la lecture des fabliaux a, probablement, inspirée les artistes médiévaux dans ses reliefs, enluminures et

sculptures.

Mots-ClésFabliaux – Moyen Âge – Histoire des femmes – Histoire du

corps.

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Imagem 1

A transgressão institucionalizada: com um generoso sorriso, a “donzela” volta suas imensas nádegas para os transeuntes da praça da catedral de Freiburg im Breisgau (Alemanha, escultura do séc. XIV). Essa curiosa escultura encima uma bela seqüência narrativa

escultória da expulsão de Adão e Eva do Paraíso, que adorna um dos portões laterais da catedral. A analogia é muito poderosa: Adão e Eva foram expulsos do Paraíso da mesma forma que as fezes são

expelidas pelo corpo humano. A solução arquitetônica é completada artisticamente nos dias de chuva, quando a água acumulada escorre

pelas canaletas e sai pelo ânus da donzela, criando uma inusitada cascata na frente do portão. Como bem observou Gustave Cohen (1997: 135), muitos fabliaux inspiraram os artistas medievais em seus relevos satíricos, nos detalhes externos das catedrais, nas

gárgulas, etc., e isso bem pode ter ocorrido no caso das esculturas da catedral de Freiburg, o que nos mostra a extraordinária fantasia

das mentes da época e a original composição dos opostos sagrado/profano no próprio espaço sagrado. Ademais, a escolha da mulher sorridente como instrumento que expele o mal é um sinal

claro da consternadora ambivalência feminina na visão dos homens medievais, característica tão combatida pelos clérigos da época. In:

Die Wasserpeier am Freiburger Münster. Lindenberg: Kunstverl. Fink, 1997: 19.

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Cena 1 – “A donzela que não podia ouvir falar de foder”

Era uma vez uma donzela muito orgulhosa e rebelde. Se ela ouvisse alguém “falar de foder” ou algo semelhante, ficava com um ar muito ofendido. Ela era a única filha de um bom homem, um rico camponês que não tinha nenhum servo em sua casa porque a moça não suportava ouvir esse tipo de conversa típica de servos. Ela “...nunca poderia suportar / que um servo falasse de foder / de caralho, colhões ou coisa semelhante” (Fabliaux, 1997: 63).

Um belo dia, um jovem velhaco de nome David chegou àquela aldeia e ouviu falar da filha que odiava os homens. Decidiu então conferir a curiosa estória, oferecendo seus préstimos: disse que sabia lavrar, semear, debulhar o trigo e peneirar. O camponês agradeceu, mas respondeu que tinha uma filha que sentia tanta náusea das coisas obscenas que os homens conversam que não poderia aceitar sua oferta. David fingiu ser um homem temente a Deus e clamou pelo Espírito Santo. Ao ouvir suas palavras, a filha do rico camponês pediu ao pai que contratasse o rapaz, pois ele compartilhava suas idéias.

Houve então uma grande festa para comemorar a contratação do “servo beato”. Quando chegou a hora de dormir, o bronco camponês perguntou à filha onde David descansaria: “Senhor, se isso vos agrada / ele pode dormir comigo / ele parece ser de confiança / e ter estado em casas nobres” (Fabliaux, 1997: 67).

O ingênuo pai concordou. A donzela era muito graciosa e bela, e o servo, matreiro, logo colocou sua mão direita nos alvos seios da moça, depois em seu ventre e seu sexo, sempre perguntando à donzela o que era aquilo que tocava: “David desceu a mão / direto à fenda, sob o ventre / onde o pau entra no corpo / e sentiu os pêlos que despontavam / ainda macios e suaves (...)”. E perguntou:

Por boa fé, senhora, disse David (...)o que é isto no meio do pradoesta fossa suave e plena?Disse ela: é a minha fonteque ainda não brotou.E o que é isto aqui ao lado /

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disse David, nesta guarita?É o tocador de trompa que a guardaresponde a jovem, verdadeiramentese um bicho entrasse no meu pradopara beber na fonte clarao vigia tocava logo o cornopara lhe fazer vergonha e medo. (Fabliaux, 1997: 68)

A seguir, a jovem virgem decidiu ousar e passou a tomar a iniciativa, apalpando igualmente o servo beato. O poema compara o pênis a um potro e os testículos a dois marechais. A donzela pede então que o belo potro do jovem paste em seu prado. David teme que o “tocador de trompa” da moça – provavelmente uma metáfora ao clitóris feminino – faça barulho, isto é, que a jovem grite de dor e prazer. Ela responde: “Se ele disser mal / batê-lo-ão os marechais. / David responde: Muito bem dito.”

E assim a jovem virgem e falsa pudica “foi derrubada quatro vezes”, “...e se o tocador de corno troou / foi batido pelos dois gêmeos / Com esta palavra termina o fabliau.” (Fabliaux, 1997: 70)

Cena 2 – “Da mulher a quem arrancaram os colhões”

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Imagem 2

A elegante dama concede o (saboroso) privilégio ao cavaleiro de colocar sua longa “chave” no orifício de seu largo e

profundo “cofre”. A iluminura explicitamente joga com o duplo sentido dos objetos chave (pênis) e cofre (vagina).

Ademais, a longa chave do cavaleiro, posicionada justamente na direção de seu pênis, também insinua sua incontida

excitação (talvez o único gesto comedido da cena seja a mão direita da donzela estendida: ela parece pedir calma,

delicadeza e carinho ao extasiado cavaleiro). "São desenhos eróticos típicos dos que se faziam nas chamadas Cortes de

Amor, denotando uma surpreendente liberdade dos costumes". Iluminura das Aquarelas eróticas da Corte de

Borgonha (c. 1470). In: MINDLIN, José. Reencontros com o tempo. São Paulo: Edusp / Companhia das Letras, 1997: 154.

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Antes de começar a contar sua estória, o escritor adverte: “não deveis doar tudo a vossas mulheres, de medo que vos amem menos”, e sugere aos leitores que tomem a estória como um exemplo.

Houve outrora um rico cavaleiro dono de grandes riquezas. Ele amava tanto a sua esposa que lhe doara o senhorio de sua terra e de sua casa. Contudo, ela o desprezava tanto que tudo o que dizia, ela contradizia, e desfazia tudo o que ele fazia. Eles tinham uma bela filha, da qual um conde “jovem, de grande discernimento e cheio de sabedoria” se enamorou porque ouviu falar de sua beleza.

Certo dia, após uma caçada, aquele conde e seus cavaleiros perderam-se numa floresta. A casa mais próxima que avistaram foi a do cavaleiro, pai da bela donzela. Devido ao mau tempo, o conde pediu abrigo. O cavaleiro negou, afirmando que era por sua mulher que o fazia: “Por causa de minha mulher, que por preço nenhum concorda com que eu faça ou diga”. O cavaleiro então forjou um diálogo com o conde, de maneira que a mulher – para contrariá-lo – aceitasse albergar e servir os hóspedes. E conseguiu.

Após o jantar, o conde, seduzido pelo amor, pediu a jovem filha do cavaleiro em casamento. Astuto, o pai da dama negou. A mãe tomou-lhe a palavra e entregou a donzela ao conde, além de ouro e prata. Aconselhou ainda sua filha a ser altiva como ela para que mantivesse a honra das suas.

A jovem e o conde se casaram. Ele a levou à principal cidade de seu domínio, onde, reunidos, estavam os barões e os vassalos, muito tristes, porque acreditavam terem perdido seu senhor. Com grande júbilo, todos receberam a ele e a nova senhora. O conde então organizou uma grande festa para celebrar suas núpcias. Pediu ao cozinheiro que fizesse temperos que lhe agradassem, além de saborosos molhos. A senhora chamou o cozinheiro e, seguindo o conselho de sua mãe, contradisse as ordens do marido, pedindo-lhe os molhos com alho.

Ao servir as iguarias, o conde ficou perplexo: o cozinheiro não fizera o ordenado. Após a saída dos convidados, ele chamou o cozinheiro e o puniu, furando-lhe um olho, cortando-lhe a orelha e uma das mãos e, por fim, exilou-o de sua terra. Quanto à senhora, julgou que não poderia perdoá-

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la sem castigo. Com um bastão de espinhos, castigou-a tanto que quase a matou. [1] Ela ficou deitada por três meses sem poder sentar à mesa. E lá o conde a fez sarar.

Entrementes, a orgulhosa mulher do homem probo foi tomada por um desejo de visitar sua filha. A contragosto o conde recebeu sua sogra. Após saborearem iguarias e bons vinhos, no dia seguinte, o conde, triste por seu senhor ter uma mulher má, pediu-lhe que fosse caçar com seus valetes e cavaleiros. Em segredo, disse a um de seus mouros que lhe trouxesse os colhões de um touro, uma faca e uma lâmina bem afiadas. E assim fez o outro sem hesitar.

O conde pegou então a dama pela manga, sentou-a a seu lado e falou:

– Dizei-me, e que Deus vos ajude, dizei-me o que vou perguntar.– De bom grado, senhor, se eu souber.– Tenho muita vontade de saber de onde tens esse orgulho, e que não importa o que ele diga vós dizeis o que lhe desagrada e ordenais que seja feito o contrário? Uma esposa não comete maior vilania do que desprezar seu marido.– Senhor, sei mais do que ele sabe e ele nada faz que me agrade.– Senhora, sei muito bem de onde isso vos vem. Essa altivez está alojada em vossos rins. [2] Bem vi em vosso olhar que tínheis nosso orgulho. Tendes colhões como nós e vosso coração sente orgulho disso. Quero mandar apalpar-vos lá. Se lá estiverem, farei que sejam retirados. (Pequenas Fábulas Medievais, 1995: 167)

O conde chamou seus homens, estendeu a mulher na terra e um deles fendeu-lhe a nádega, fingindo tirar de seu corpo um dos colhões do enorme touro. Rapidamente, colocou o colhão em uma bacia, e a mulher acreditou ser verdade. O homem fendeu-lhe a outra nádega e fingiu arrancar-lhe outro colhão, jogando-o, ensangüentado, na bacia. A mulher desmaiou.

Quando voltou a si, o conde lhe disse: “Senhora, agora temos conosco o orgulho que vos fazia ousar”. Sem esperar, a mulher fez um juramento e uma promessa: nunca mais contestar seu senhor e o servir de boa vontade. Um médico a

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curou e ela amou e serviu a seu senhor, não lhe recusando mais nada.

O cronista conclui: “Bendito seja ele (o conde) e todos os que castigam suas mulheres más (...) E que males e desgraças recaiam sobre a mulher intratável de raça infame.” (Pequenas Fábulas Medievais, 1995: 169)

Cena 3 – O fabliau : espelho do cotidiano ?

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Imagem 3

Um cavaleiro totalmente equipado e visivelmente excitado (repare em seu pênis, saindo de sua cota de malha) investe

de lança em riste contra o castelo (a virgindade) da donzela, que, com sua mão esquerda aberta, lhe pede parcimônia.

Iluminura das Aquarelas eróticas da Corte de Borgonha (c. 1470). In: MINDLIN, José. Reencontros com o tempo. São

Paulo: Edusp / Companhia das Letras, 1997: 154.

Os fabliaux foram redigidos entre os séculos XIII e XIV, período em que nasceu a literatura da narrativa curta. As

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temáticas perpassam o erotismo, a fantasia, o sadismo e, em nosso juízo, nos permitem entrever cenas do cotidiano. São peças onde o profano e o vulgar justapõem-se ao sagrado. Provavelmente destinavam-se à recitação dos jograis, tanto em ambientes domésticos quanto públicos. [3] Os assuntos tratados distanciam-se tanto das aventuras aristocráticas corteses quanto da literatura clerical.

Entretanto, há um problema relativo à classificação das diversas categorias literárias do período, pois uma das características principais dessa literatura é a imbricação de seus grupos. Os fabliaux assemelham-se ao conto moral, ao conto satírico, ao ensinamento, à literatura exemplar. A maioria das peças de narrativas curtas foi redigida em francês, em versos octossilábicos rimados. Os fabliaux, contudo, apresentam o que Nora Scott chama de “tendências”: são breves e têm uma propensão a reduzir as personagens e os eventos a tipos, estereótipos, tendência que contrasta com o desenvolvimento das descrições e dos episódios dos romances (SCOTT, 1995).

Criado o acontecimento, ele se manifesta em uma relação de causa e efeito, quase sempre a serviço de uma linha mestra – lição, moral, provérbio – enunciada nos primeiros versos ou resumida nos últimos. A história é constituída de qui fut fète e à quoi vint (o que foi feito e o que adveio). Esse tipo de construção cria no ouvinte/leitor uma sensação de continuidade temporal. Nessas narrações, “as conclusões esgotam as premissas” e trazem sempre com isso uma lição, mesmo que espirituosa. A moral da narrativa curta é explicitada e, nesse sentido didático, o fabliau e o exemplum se assemelham. [4]

Bem, com qual objetivo essas histórias eram contadas? Para agradar, divertir e instruir. Mas quem ria, para quem era o exemplo, e por quem o exemplo era dado para ler? Estas são questões abertas. Não há como determinar ao certo o público dos fabliaux. Gustave Cohen supõe que possa ser o povo dito “de taberna” que, após muita comida picante e muita bebida, não suportaria ouvir uma estória muito longa e/ou edificante (COHEN, 1997: 135).

Deparamos-nos ainda com outra importante questão: qual a relação entre a literatura e a realidade? A imagem da sociedade que aparece na literatura é, simultaneamente,

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“expressão, reflexo e sublimação ou camuflagem da sociedade real”. (LE GOFF, 1980: 122); assim o é também em relação a outras fontes. As deformações ocorrem sempre nos documentos, em maior ou menor grau, pois olhamos o passado sempre através da ótica de alguém e estamos freqüentemente sujeitos às sensibilidades, aos interesses – conscientes ou não – e aos preconceitos do nosso narrador.

Pernoud destaca a impropriedade da utilização de fontes literárias no ofício do historiador criticando, em especial, as canções de gesta e os romances de cavalaria, quando tomados por fontes históricas. Para ela, pode-se construir a história real através de documentos judiciários, cartulários [5], inquéritos e coleções sobre os costumes ou estatutos de cidades (PERNOUD, 1994: 114-115).

Em posição contrária, Le Goff e Truong (2006: 41) admitem que os romances, contos e fábulas extraem suas histórias, farsas e intrigas do dia-a-dia do “homem medieval", os situando como “uma representação convencional do amor e da sexualidade”.

Para nós, mesmo com essas deformações, a literatura certamente diz muito, não só sobre as aspirações humanas, mas também sobre as atitudes e comportamentos sociais. A ficção literária, se historicamente tratada como produto cultural, possibilita-nos um viés para a reconstrução do passado (BRAGANÇA JÚNIOR, 2001: 57-68).

Cena 4 – A mulher e o corpo na Idade Média: questões ainda abertas

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Imagem 4

A Volúpia (Freiburg im Breisgau, Münster U. L. Frau, séc. XIII). Nessa belíssima escultura, a Volúpia, muito jovem,

quase uma ninfeta, está envolta em uma sinistra pele de bode - símbolo por excelência do diabo (repare que ela

maliciosamente oculta seu sexo com uma das patas do

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animal, enquanto deixa seus pequenos seios à mostra). Seus grandes e belos olhos, emoldurados por longas sobrancelhas

arqueadas, olham fixa e incisivamente para o espectador, enquanto suas narinas arfam. A Volúpia representa aos olhos

dos clérigos medievais o que de mais sinuoso e traiçoeiramente existe na alma feminina.

São duas coisas que nos chamam a atenção na leitura dos dois fabliaux que selecionamos: o poder feminino e o medo dos homens.

No medievo, o domínio do corpo e a continência eram prescritos pela Igreja, bem como a passividade da mulher perante o homem. Por sua vez, Abelardo (1079-1142), ao contrário da maioria dos clérigos, chegou a dizer que a dominação masculina terminava no ato conjugal, no qual homem e mulher detinham igual poder sobre o corpo um do outro (LE GOFF e TRUONG, 2006: 41-42).

Contudo, o primeiro fabliau nos mostra uma situação social oposta às prescrições da Igreja, pois percebe-se claramente a ousada iniciativa da donzela. Nosso conto, portanto, diverge da tradicional idéia clerical segundo a qual o homem é o possuidor, o dominador, e que a mulher, passiva, naturalmente aceita sua condição. Ao tomar a iniciativa, a falsa pudica nos mostra um universo em que o poder feminino se manifesta através da sedução e do erotismo. Além de enganar o pai, que acredita em sua pureza, ela seduz o rapaz através de um malicioso e lascivo jogo.

O corpo é o emancipador social da condição feminina. Em especial se belo. À literatura de divertimento é atribuída sua exaltação. [6] Ao lado da escultura gótica (ver imagem 4), a literatura apresenta um código específico que lhe atribui os componentes de uma beleza canônica: brancura da tez, realçada por um toque de rosado, cabelos louros, disposição harmoniosa dos traços, rosto alongado, nariz alto e regular, olhos vivos e risonhos, lábios finos e rubros [7] (RÉGNIER-BOHLER, 1990: 357-358).

Sob os olhares clérigos, o corpo feminino era reflexo do corpo de Adão, mas invertido, essencialmente no que se referia aos órgãos sexuais, de mesma estrutura, porém secreto e, por isso, suspeito. O corpo feminino era considerado mais permeável à corrupção porque menos

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fechado, e necessitava de uma guarda mais atenta, cabendo ao homem a sua vigilância (DUBY, 1990: 518). A cada passo, portanto, convinha à mulher manifestar o controle sobre seu corpo, pois ela permanecia sempre exposta aos olhares, e o olho é fonte de mal (RÉGNIER-BOHLER, 1990: 349). [8]

Os atrativos físicos eram vistos pelos moralistas com ressalvas e, em certos casos, com aversão. Isso porque as pulsões e apetites corporais diziam respeito ao lado frágil e perigoso do ser humano, sob a constante tentação pecaminosa, o que denunciava as almas fracas, facilmente dominadas pelos desejos passageiros. (DUBY, 1990: 515).

Por isso, não é por acaso que a luxúria [9] aparece nas representações alegóricas na lista dos vícios e defeitos a serem evitados. E sua associação com o corpo feminino era ainda mais evidente. [10]

Os filósofos do século XIII, retomando os saberes gregos, latinos e árabes, consideravam o desejo como “subversão e submersão do ser”. O gozo físico era distinto do prazer racional, sendo visto como uma força incontrolável, uma espécie de loucura. Os órgãos genitais eram as partes mais vulneráveis do homem, e não estavam sob o controle integral de sua vontade. E a mulher era particularmente sujeita ao desejo, porque, dotada da capacidade de gozos sucessivos, superava em muito o prazer que o homem podia alcançar, e era, por isso, insaciável (ROSSIAUD, 2002: 479).

Mas a tentativa dessa espécie de “normatização do prazer” [11] por parte da Igreja não parece ter tido o alcance esperado. Mesmo após a reforma gregoriana. Reflexo disso é, por exemplo, a subsistência de um grupo estável de clérigos concubinados. Nos próprios fabliaux encontramos padres e monges jurando “por sua virgindade”, obviamente numa alusão satírica a esse tipo de comportamento. O concubinato resistiu ao casamento tão bem que, nos séculos XIII e XIV, os civilistas fizeram dele um “quase matrimônio”, e alguns pensaram inclusive que ele não deveria ser submetido a uma pena legal (ROSSIAUD, 2002: 484-485).

Outra nuance dessa tentativa de instituição da moderação sexual foi o adultério. As aventuras extraconjugais “brilhavam” nas grandes famílias nobres. A poligamia era

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praticada e na verdade, admitida (LE GOFF e TRUONG, 2006: 45).

Na busca do prazer comum, resta-nos saber a proporção dos homens que o faziam em harmonia com sua parceira. Essa é uma outra lacuna. Há quem pense que esta é uma parcela mínima do grupo masculino. Rossiaud concorda com essa postura e fundamenta-se nas expressões utilizadas por trabalhadores ou artesãos do século XV, que quando de suas aventuras dizem ir “cavalgar”, “lutar”, “lavrar” ou roissier, que quer dizer, “bater, golpear” (ROSSIAUD, 2002: 488).

Em contraposição, destacamos o depoimento que Jacques Fournier, o futuro papa Bento XII, fez transcrever em 1326. Nele ouvimos a voz de Grazida, uma camponesa de 22 anos, interrogada em 1320. Provavelmente pressionada, confessa seu relacionamento (consensual e mutuamente prazeroso) com o cura de Montaillou, Pedro Clergue, primo de sua mãe:

- Se tu tivesses sabido que a tua mãe era prima direita desse cura por bastardia, terias aceitado ser conhecida por ele?- Não. Mas porque isso me dava prazer, assim como ao cura, quando nós nos conhecemos carnalmente, eu não pensava, por isso pecar com ele.- Quando eras conhecida por este padre, seja antes de teres um marido, seja durante o casamento [o marido consentia!], julgavas estar a pecar?- Porque nessa época isso me agradava, e ao cura também, o conhecermo-nos mutuamente, eu não acreditava, e não me parece, que fosse um pecado. Mas porque agora já não me agrada ser conhecida por esse padre, se o fosse, julgaria pecar. [12]

Além da união carnal consensual, percebemos nesse trecho a própria manifestação da vontade feminina.

Portanto, em relação ao primeiro fabliau, as mulheres, a despeito das tentativas repressoras misóginas, por meio do poder de seu erotismo e sensualidade poderiam dominar seus homens. Sobretudo no ambiente privado. De maneira consciente, sabiam servir-se das partes de seu corpo que deviam ser mostradas e das que se deviam ocultar [13], num fetichismo que lhes foi propício, pelo poder que dele obtiveram.

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O segundo fabliau nos remete a uma visão masculina particular em relação a um tipo de mulher autoritária. Cremos ser uma reação a um tipo feminino autêntico, o que nos liga a uma possível realidade: as mulheres também mandavam!

A intenção do conto nos parece ser ridicularizar tal comportamento, de modo a despertar os homens para que não passem por tal situação. Como ilustra, à época, o provérbio: “Ao bom e ao mau cavalo, a espora; à boa e à má mulher, um senhor, e por vezes o bastão”. [14]

A necessidade de subordinar a mulher – e também o seu corpo – liga-se intimamente à submissão deste veículo de manifestação do poder feminino. Controlar ou castigar as mulheres, e antes o seu corpo e a sua sexualidade desconcertante ou perigosa, era tarefa dos homens.

Nossa intenção na escolha destes contos é, portanto, demonstrar a possibilidade de existência desse tipo feminino autoritário, e justifica-se na medida em que expõe as advertências aos homens contra esse tipo de mulher, mesmo que satiricamente.

IV. Conclusão

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Imagem 5

Parecendo demonstrar um profundo arrependimento, a dama se confessa, ajoelhada, reza e pede perdão por sua volúpia.

Compreensiva porque católica, a senhora toca-lhe a cabeça e a perdoa. Iluminura das Aquarelas eróticas da Corte de

Borgonha (c. 1470). In: MINDLIN, José. Reencontros com o tempo. São Paulo: Edusp / Companhia das Letras, 1997: 154.

Muito se tem escrito sobre a condição feminina na Idade Média. Quase sempre nossos autores coetâneos destacam a subserviência feminina e sua condição inferior, o discurso misógino da Igreja, os desmandos masculinos, etc.

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Cabe, entretanto, abrir um parêntese para ressaltar que a influência feminina na sociedade medieval provavelmente diminuiu somente ao resgate do Direito romano nos estudos jurídicos, retomado por legisladores ávidos no início do século XIV, em especial em Bolonha, na Itália. O Direito romano conferia aos proprietários o jus utendi et abutendi, direito de usar e abusar, diametralmente oposto ao direito consuetudinário de então. O Direito romano não é favorável à mulher, nem à criança. Percebe-se então uma nítida regressão relativa ao Direito consuetudinário na restrição da liberdade feminina e de sua capacidade de ação (PERNOUD, 1994: 105).

Na Idade Média, algumas mulheres usufruíram na Igreja – e também no século – de um extraordinário poder. A par de suas funções religiosas, elas exerciam, mesmo na vida laica, um poder que muitos invejariam no presente. Administravam vastos territórios e paróquias. Algumas abadessas eram verdadeiras senhoras feudais, respeitadas por seu poder do mesmo modo que outros senhores o eram.

No ocaso do medievo, os homens esforçaram-se em melhor limitar a extensão das capacidades jurídicas das mulheres, ou o seu exercício do poder, e utilizaram Aristóteles para conferir autoridade teórica às suas construções a respeito da fraqueza constitutiva da mulher e sua submissão. [15] Os princípios neo-aristotélicos utilizam-se da idéia de imperfeição do corpo da mulher, justificando assim a hierarquia dos sexos. Habilmente, e sobre essas bases, o clero construiu seu discurso misógino, que ecoou durante séculos. Fascinados pela virgindade – culto mariano – e desejosos de impor um modelo monástico, alguns clérigos depreciaram a vida laica, a maternidade, o papel da esposa, e a mulher em sua totalidade (L’HERMITE-LECLERCQ, s/d:303).

Entretanto, não devemos nos deixar envolver pelo discurso dos moralistas, e a partir deles interpretar a totalidade da sociedade medieval. Se houve a tentativa de imposição de normas de controle do corpo feminino, e se os castigos corporais subsistiram para puni-lo, verdadeiramente ele exercia alguma ameaça. E era dono de grande poder, podemos supor, dada a abundância das advertências e sermões moralizantes.

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As realidades medievais, sob o aspecto dos prazeres corporais, foram menos repressivas e ríspidas do que alguns historiadores crêem. Através dos fabliaux, nos permitimos reconstruir um passado no qual algumas mulheres eram dominadoras e poderosas, donas de seus corpos e de sua vontade. Utilizando-se de sua persuasão, elas eram ativas, possuíam desejos e, quando lhes convinha, manipulavam os homens a seu favor. Características tão propriamente femininas que atravessaram as fronteiras temporais, mas que, em alguns momentos do passado, em especial do medievo, podemos não perceber, por estarem ocultas sob as cortinas misóginas clericais.

- Este pequeno trabalho é dedicado ao eterno mestre José Rivair Macedo -

Notas

[1] A violência contra a mulher era recorrente nas sociedades pré-industriais (e perpassou todo o período medieval e moderno, chegando ao século XX): “A situação feminina era ainda pior nas camadas sociais inferiores (burgueses e camponeses). Naturalmente, a descoberta da cortesia nas classes altas do século XII não se difundiu rapidamente por todo o corpo social. No século XIV um texto do direito de Aardenburgo (cidade flamenga que seguia o costume de Bruges) é muito chocante no que diz respeito à condição das mulheres burguesas: “Um homem pode bater na sua mulher, cortá-la, rachá-la de alto a baixo e aquecer os pés no seu sangue; desde que, voltando a cosê-la, ela sobreviva; ele não comete nenhum malefício contra o senhor.” – COSTA, Ricardo da e COUTINHO, Priscilla Lauret. “Entre a Pintura e a Poesia: o nascimento do Amor e a elevação da Condição Feminina na Idade Média”. In: GUGLIELMI, Nilda (dir.). Apuntes sobre familia, matrimonio y sexualidad en la Edad Media. Colección Fuentes y Estudios Medievales 12. Mar del Plata: GIEM (Grupo de Investigaciones y Estudios Medievales), Universidad Nacional de Mar del Plata (UNMdP), diciembre de 2003: 10.

[2] Isidoro de Sevilha afirma: “Varrão diz que os rins se chamam renes porque deles brota uma corrente de um humor obsceno. As veias e medulas transpiram nos rins um líquido rápido que mais tarde, a partir dos rins, brotará para

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o exterior liberado pelo calor venéreo.” – SAN ISIDORO DE SEVILLA, Etimologías II, Libro XI, 1, 97 (BAC, 1994: 29). Para a tradição clássica – e medieval – os rins (e também o pâncreas) exerciam uma importante função emocional de relação do humano com as dimensões mais espirituais da vida secular. Por exemplo, na Árvore da Vida da cabala judaica, a sétima letra sefirot (Netzach) representa a virtude da ausência de egoísmo que, se invertida, resulta no vício da luxúria e na falta de pudor – materializado no corpo justamente no comportamento bilioso dos rins. Para a questão dos sefirot, ver HAMES, Harvey J, The Art of Conversion. Christianity & Kabbalah in the Thirteenth Century, Leiden, Boston, Köln: Brill, 2000.

[3] Os jograis eram todos aqueles que ganhavam a vida atuando perante um público, para recreá-lo com a música, ou com a literatura, ou com jogos de mão, de acrobatismo de mímica dentre outros. A designação jogral, sob a forma jocularis já aparece por volta do século VII, mas vulgariza-se no XII, em substituição às designações tradicionais – mimi, historiones, thymelici. Embora socialmente e intelectualmente inferior ao trovador, o jogral podia subir para a categoria de trovador e vice-versa. O jogral costumava acompanhar o trovador pelas cortes; outras vezes viajava por sua conta própria, quase sempre recorrendo ao trovador e pedindo-lhe uma nova canção com que ganhar a vida. A partir da segunda metade do século XVI a jogralia palaciana entra em declínio, e o jogral, que abandonava agora o ofício poético da execução e da composição, passa à simples condição de músico ou de bobo. O próprio nome tornou-se pejorativo e, a partir do século XIV, a designação francesa menestrel suplanta a de jogral como músico da corte. Ver SPINA, Segismundo. A Lírica trovadoresca, São Paulo: EDUSP, 1996: 385-386.

[4] O exemplum é um conto breve dado como verídico – histórico – e destinado a convencer um auditório por meio de uma lição salutar. O período áureo do exemplum é o século XIII. Utiliza-se da narrativa breve, assim como o lai, o fabliau e o conto. Situa-se numa realidade temporal geralmente próxima e seu propósito é conduzir à salvação. O tempo histórico do exemplum tende para um presente de conversão que deverá dar início à futura entrada na recompensa celestial. Assim, tem como função “enxertar a realidade

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histórica na aventura escatológica”. O tempo do exemplum está sujeito à dialética da salvação, que constitui uma das principais tensões da Idade Média Central – séculos XII-XIII. Ver LE GOFF, Jacques, O imaginário Medieval, Lisboa: Estampa, 1994: 123-126.

[5] Cartulários eram os registros dos títulos ou antiguidades de uma corporação, convento ou igreja.

[6] Dispomos de graciosas descrições de belezas femininas nos cantos goliardos (Carmina Burana). Escritos entre os séculos XIII e XIV por esses “clérigos errantes”, celebravam o prazer carnal, a beleza e o amor: "Lasciva, de atractiva sonrisa, / lleva trás si todas las miradas; / los lábios / amorosos, gordezuelos / pero bien delineados, causan um extravio / suavísimo / y destilan / uma dulzura, como la miel mas fina, cuando besan, como para hacerme olvidar, más de uma vez, que soy mortal. / Y la frente alegre, tan nívea, l adorada luz de sus ojos, / el cabello rojido, las manos que superan a los lírios me sumen em suspiros. [...]", Carmina Burana. In: ECO, Umberto. Historia de la Belleza. Barcelona: Editora Lumen, 2004: 158.

[7] O ideal de beleza física para os medievais é descrito no Roman de la Rose, de Guilherme de Lorris. No momento em que o Amor encontra-se com uma dama chamada Beleza, o autor a descreve: "Tinha todas as boas qualidades: não era de pele escura, nem demasiado morena, mas brilhava como a Lua, aquela frente a qual as estrelas parecem tímidas velas. Tinha a carne frágil como o orvalho (...), seu rosto era suave e liso, estava um pouco delgada, era ágil e não havia se maquiado nem se pintado, pois não tinha necessidade de se arrumar nem de se enfeitar."

"Tinha os cabelos lourinhos e longos até os calcanhares, um nariz bem feito, como os olhos e a boca. Em meu coração entra uma grande doçura – que Deus me ajude! – quando me lembro do aspecto de cada um de seus membros, pois não houve ainda mulher mais formosa no mundo. Para ser breve, direi que ela era muito jovem e loura, agradável, afável, cortês e elegante, bem proporcionada e um pouco magra, gentil e alegre."

[8] Obviamente inspirada nas Escrituras Sagradas, a relação dos medievais com o pecado quase sempre passa pelos

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sentidos, especialmente os olhos: “A lâmpada do corpo é o olho. Portanto, se o teu olho estiver são, todo o teu corpo ficará iluminado; mas se o teu olho estiver doente, todo o teu corpo ficará escuro. Pois se a luz que há em ti são trevas, quão grande serão ais trevas!”. Mt 6: 22-23.

A candeia alude obviamente à fonte de luz, de bondade, em contraposição às trevas, que se referem ao pecado e à danação. Ainda em Mateus (5:29): “Caso o teu olho direito te leve a pecar, arranca-o e lança para longe de ti, pois é preferível que se perca um dos teus membros do que todo o teu corpo seja lançado na geena”.

[9] A propensão à luxúria é frequentemente associada à riqueza e à abundância. Abelardo, no século XII, admite: “A prosperidade enfatua os tolos, e a segurança material mina o vigor da alma e a dissolve facilmente entre as seduções carnais” - ABELARDO, "De Abelardo a um Amigo". In: Correspondência de Abelardo e Heloísa. São Paulo: Martins Fontes, 2002: 38.

[10] MACEDO, Rivair. "A face das filhas de Eva - os cuidados com a aparência num manual de beleza do século XIII". In: Revista História. Universidade Estadual Paulista - UNESP, vol. 17-18, 1998-1999: 293-314.

[11] Reflexo dessa (por vezes frustrada) tentativa de controle sexual são os chamados penitenciais. Manuais destinados aos confessores, os penitenciais possuem um “repertório” dos pecados da carne, associando-os aos castigos e às penitências que lhes correspondem. Obviamente muitos dos pecados são relativos ao sexo. E mais uma vez relacionamos os castigos infligidos ao corpo ao prazer. O manual do bispo de Worms, intitulado, como muitos, Decreto, escrito no século XI, pergunta ao homem casado se ele “se acasala por trás, à maneira dos cães”. A condenação para tal pecado é a “penitência por dez dias a pão e água”. Também a felação (sexo oral no genital masculino), sodomia, masturbação, adultério e a fornicação com os monges são, um a um, condenados (LE GOFF e TRUONG, 2006: 43-44). Isso nos leva a conjecturar quão comuns eram essas práticas, ao ponto de serem descritas num documento dessa natureza.

[12] Trecho extraído de DUBY, Georges. "Depoimentos, testemunhos, confissões". In: DUBY, Georges e PERROT,

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Michele (dir.). História das Mulheres no Ocidente. Volume 2 - A Idade Média. Porto: Edições Afrontamento / São Paulo: Ebradil, s/d, p.593-595.

[13] Há muito já sugeria Ovídio (43 a.C.-17 d.C.), em sua Arte de Amar, um celebrado manual de amor na Idade Média: “Cada mulher deve escolher, no ato sexual, a posição que favoreça o seu tipo físico”. E mais: ainda sugere o ambiente para que ambos sintam profundamente o “prazer de Vênus”. Veja: “Não deixe a luz penetrar por todas as janelas no quarto de dormir; muitas partes do seu corpo não são favorecidas não sendo vistas à luz do dia”. OVÍDIO. A Arte de Amar. Porto Alegre: L&PM, 2001: 118-120.

[14] “Buon cavallo e mal cavallo vuole sprone; buona donna e mala donna vuol signore, e tale bastone”. Paulo de Certaldo, Libro di buoni costumi, n.º 209, in Mercanti scrittore, ed. V. Branca, Milão, Rusconi, 1986: 43. Citado por KLAPISCH-ZUBER, Christiane. In: DUBY, Georges e PERROT, Michele (dir.). História das Mulheres no Ocidente. Volume 2 - A Idade Média. Porto: Edições Afrontamento / São Paulo: Ebradil, s/d: 28.

[15] A influência de Aristóteles sobre os teólogos medievais não trouxe beneficio à condição feminina. Por ele, e a partir dele, a mulher foi considerada um “macho defeituoso”, e essa fraqueza psíquica diretamente influenciou o entendimento e vontade da mulher, marcando indelevelmente seu comportamento pela incontinência (LE GOFF e TRUONG, 2006: 54). A imaginação medieval fez Aristóteles, apesar de sábio, não passar incólume à sedução feminina. A Queda de Aristóteles (Lai de Aristóteles, c. 1223), poema composto pelo clérigo e trovador normando Henri de Andeli (c. 1220-1240), bem o ilustra. O filósofo, envolvido pelo amor, abandona a filosofia e as atividades intelectuais. E mais, segundo o lai, submisso aos encantos femininos, se deixa montar por uma mulher! (COSTA, 2003).

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Fontes

FABLIAUX. Erótica Medieval Francesa. Lisboa: Editorial Teorema, 1997.

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Os provérbios medievais em latim e a apropriação da cultura laica pelo

discurso religioso – algumas palavras

Álvaro Alfredo Bragança Júnior (UFRJ)

ResumoO discurso paremiológico em latim medieval apresenta, aos

estudiosos, várias matizes acerca de normas comportamentais e de conduta condizentes com uma visão do mundo, cujo sustentáculo é a Igreja. Este artigo pretende demonstrar, de forma sucinta, porém,

como temas pertencentes ao universo da Antigüidade Clássica, bem como a representação dos animais como modelos de vícios e virtudes humanas são apropriados pelo discurso eclesiástico, que transforma um saber e experiência laicos em provérbios com finalidade explicita

ou implicitamente educativas.

AbstractThe paremiological discourse in medieval latin shows the scholars a lot of nuances about norms of behaviour and propriety of conduct

corresponding to a point of view, supported by the Church. However, this paper aims to present briefly, how topics connected to the

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Classical Antiquity, as well as to the representation of animals as models of vices and virtues are appropriated by ecclesiastical

discourse, which turns secular wisdom and experience into proverbs with explicitly or implicitly purposes.

Palavras-chaveParemiologia – Latim medieval – Antigüidade Clássica – Discurso

eclesiástico.

KeywordsParemiology – Medieval latin – Classical Antiquity – Ecclesiastical

discourse.

 

I. À guisa de introdução

A pesquisa dos provérbios medievais rimados em latim nos levou à observação sobre alguns eixos temáticos, cuja incidência, posteriormente, ajuda-nos a ratificar a hipótese de que os provérbios possuiriam função didático-moralizante dentro da sociedade medieval.

A tradição fabulística de Esopo, Fedro e Aviano legou à humanidade o uso de animais como imagens refletidas, metáforas do próprio homem, com seus sentimentos nobres e vis. Joyce E. Salisbury em The beast within. Animals in the Middle Ages (1994: 105) salienta o papel dos animais para o próprio autoconhecimento do homem, pois quando “... as pessoas podem ver um animal agindo como um homem, a metáfora pode ser eficaz nos dois sentidos, revelando o animal dentro de cada ser humano”.

Com a incorporação do legado cultural clássico e desenvolvimento de uma ciência medieval em diversos ramos do saber humano, como Arquitetura, Astronomia, Direito, Filosofia, Gramática, História, Matemática, Medicina, Música e Retórica, dentre outros, a transmissão desse novo conhecimento despertou uma busca à sabedoria, quer através de discussões e debates dentro das universidades e escolas seculares, quer nas ruas e tavernas. Como monumento maior da cultura de então temos a Summa theologica, de São Tomás de Aquino, onde obra na qual a ciência do homem é embasada pelo conhecimento da sabedoria divina.

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Destarte, o homem medieval une o profano ao sagrado para conseguir sabedoria através da religião (etimologicamente “religação”). O sagrado norteia a vida humana e o homem (rei ou vassalo, nobre ou clérigo) precisa ter acesso à verdade cristã para poder sobreviver na Terra, enquanto aguarda a eternidade. Em cadernos escolares, os jovens clérigos recebiam em seus primeiros estudos, provérbios, muitos deles rimados, que continham, em doses diminutas, ensinamentos práticos para a vida. Esses mesmos clérigos, mais tarde padres e monges, proferiam-nos diante da massa não litterata para servirem de fio condutor de suas ações. Os provérbios refletiam atitudes, sentimentos, condutas, modos de agir e de pensar que conviriam ou não a um cristão. A mensagem simbólica daqueles expressaria e justificaria o seu uso.

No campo da Literatura, Grécia e Roma forneceram para o mundo medieval europeu autores, temas e personagens. Ovídio, Virgílio, Cícero, Ulisses, Helena, Enéas, Tirésias, Baco, Vênus, dentre inúmeros nomes, entraram para a galeria de personagens medievais como arquétipos de autoridade, astúcia, beleza, coragem, sabedoria, prazeres mundanos e amor. Os compêndios de provérbios medievais as incluem constantemente, representando deuses pagãos ou simples mortais, figuras heróicas ou vilãs, que fazem parte da história universal. Seus comportamentos são motivo de reprimenda ou louvor e caberá ao homem “saber” discernir o que aquelas figuras universais trazem de contribuição para suas vidas no claustro, no palácio e na casa simples.

A alusão a personagens da mitologia greco-romana demonstra, da mesma forma, o trabalho intelectivo com as fontes escritas, onde as mesmas se encontram. No labor dos scriptoria e nas salas de aula e átrios de igrejas e universidades, o elemento cultural pagão, que podemos aqui associar a um conhecimento laico, o qual segundo a definição de Aurélio Buarque de Holanda (1995: 1004) pode ser compreendido como “que vive no ou é próprio do mundo, do século; secular (por oposição a eclesiástico)” é assimilado e compreendido dentro de uma ótica cristã e exercerá a função de espelhar vícios e virtudes comuns a quaisquer homens, em quaisquer épocas.

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A partir desta perspectiva sobre laicidade em contraste com a espiritualidade dogmatizada e hierarquizada da Igreja medieval serão comentados de forma sucinta os tópicos acima expostos.

II. Os animais e a paremiologia medieval

A partir da herança clássica, os animais ganharam cada vez maior prestígio dentro da literatura medieval. Esopo, Fedro e Aviano influenciaram na confecção de fabulários, bestiários e livros de falcoaria, obras de grande circulação nos meios intelectuais e entre os nobres. Intelectuais medievais como Babrius, Marie de France, Odo de Cheridon, homens e mulheres da Igreja divulgavam estórias sobre animais que supostamente instavam as pessoas a uma conduta moral superior (apud SALISBURY, 1994: 105). A partir do século XII, foram incluídos nos sermões exempla e proverbia com o uso de animais para, segundo a recomendação de Bernardo de Claraval, “estimular o intelecto do leitor” (apud SALISBURY, 1994: 126).

Várias foram as funções dos animais presentes nos textos medievais. Essencialmente, as principais referiam-se a eles como símbolos do trabalho, de comida e de paródia ao comportamento humano. Dentre eles, temos o lobo, a raposa, o leão, o cão, o cordeiro, a serpente, o boi, o sapo, o burro, o macaco, o gato, a cegonha, o esquilo e o veado. Dos animais imaginários, não constantes do corpus de nossa pesquisa e abundantes também na literatura da época, temos o unicórnio, o dragão e seres ambíguos (metade ser humano, metade animal), como o centauro e a sereia.

Portanto, os animais veiculavam mensagens que serviam para a reflexão do ouvinte/leitor (se adotarmos a dualidade produção escrita, destinada a um público litteratus x oralidade, presente, por exemplo, nas homilias e sermões), mensagens essas que estavam imbuídas de uma sabedoria experiencial aliada à sabedoria primeira oriunda do conhecimento e aplicação diária da palavra de Deus.

II.1. Animais no corpus paremiológico

Vários foram os nomes de animais arrolados no corpus rimado de Jakob Werner. Procedendo-se a uma análise mais pormenorizada, chegamos ao seguinte quadro esquemático:

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A. Distribuição dos animais por ordem alfabética:Letra A – 3 ocorrências,Letra B – 4 ocorrências;Letra C – 12 ocorrências;Letra D – 8 ocorrências;Letra E – 11 ocorrências;Letra F – 5 ocorrências;Letra G – 1 ocorrência;Letra H – 2 ocorrências;Letras I-J – 6 ocorrências;Letra L – 3 ocorrências;Letra M – 9 ocorrências;Letra N – 11 ocorrências;Letra O – 5 ocorrências;Letra P – 9 ocorrências;Letra Q – 12 ocorrências;Letra R – 4 ocorrências;Letra S – 14 ocorrências;Letra T – 1 ocorrência;Letras U–V: 8 ocorrências.Total: 128 ocorrências.

B. Número total de incidência de cada animal:agnus (cordeiro) – 5 ocorrências;anguilla (enguia) – 1 ocorrência;asinus (asno) – 6 ocorrências;avis (ave) – 8 ocorrências;bos (boi) – 7 ocorrências;camelus (camelo) – 1 ocorrência;canis (cão) – 14 ocorrências;cattus (gato) – 9 ocorrências;cervus (cervo) – 1 ocorrência;cornix (gralha) – 3 ocorrências;corvus (corvo) – 2 ocorrências;equus (cavalo) – 8 ocorrências;formica (formiga) – 1 ocorrência;gallina (galinha) – 1 ocorrência;gallus (galo) – 1 ocorrência;grus (grou) – 1 ocorrência;lepus (lebre) – 5 ocorrências;lupus (lobo) – 13 ocorrências;milvus (milhafre) – 2 ocorrências;mus (rato) – 11 ocorrências;musca (mosca) – 2 ocorrências;

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ovis (ovelha) – 6 ocorrências;passer (pardal) – 3 ocorrências;piscis (peixe) – 4 ocorrências;psittachus (papagaio) – 1 ocorrência;pulex (pulga) – 2 ocorrências;pullus (frango) – 4 ocorrências;rana (rã) – 1 ocorrência;rata (ratazana) – 1 ocorrência;serpens (serpente) – 1 ocorrência;sus (porco) – 5 ocorrências;taurus (touro) – 3 ocorrências;vacca (vaca) – 3 ocorrências;vitulus (bezerro) – 2 ocorrências;vulpes (raposa) – 8 ocorrências;Total: 141 ocorrências.

Os animais, cuja incidência nas expressões proverbiais rimadas perfizeram cinco ou mais de cinco registros, foram selecionados e destes retiramos para análise uma parêmia retificadora de nossa hipótese de trabalho. A seguir discorreremos acerca de alguns exemplos por nós encontrados.

II.2. Provérbios

Agnus et lupusProvérbio: Dum lupus instruitur in numen credere magnum,                  Semper dirigitur oculi respectus ad agnum.

Tradução: Enquanto o lobo se instrui em crer em um grande poder,                 A atenção do seu olho sempre se dirige para o cordeiro.

A partir do século XII, “os animais tornam-se importantes como metáforas, como guias para as verdades metafísicas, como exemplares humanos”. Deste modo, Joyce Salisbury (1994: 103) trata a questão da utilização de animais para representar características humanas.

Neste dístico composto por versos collaterales aparecem dois dos mais importantes animais presentes na simbologia medieval. Por um lado, o cordeiro, dentro do ideário cristão, remete-nos à figura do agnus Dei, o cordeiro de Deus, Jesus

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Cristo. Joyce Salisbury assim sintetiza a opinião corrente medieval a esse respeito:

Cristo foi tanto o cordeiro de Deus quanto o bom pastor juntando os bons ao rebanho. O cordeiro permaneceu como símbolo para o melhor no auto-sacrifício conforme a tradição cristã. S. Francisco (sempre simpático a todos os animais) gostava particularmente dos cordeiros, porque, como escreveu seu biógrafo S. Boaventura, os cordeiros “apresentam um reflexo natural da misericordiosa bondade de Cristo e o representam no simbolismo das Escrituras” (1994: 132).

Entretanto, uma outra consideração sobre o animal, a partir de um ponto de vista mais ligado à natureza, apresenta-nos o cordeiro como vítima natural de seus predadores, mormente o lobo. Segundo esta perspectiva, as ovelhas e “os cordeiros eram considerados estúpidos e covardes, quase que merecendo aquilo que recebiam” (SALISBURY, 1994: 132). Por isso, lemos no manuscrito Ba 53, Si lupus est agnum, non est mirabile magnum, “Não nos causa grande admiração, se o lobo come o cordeiro”.

O papel do lobo dentro da imagística medieval prende-se ao caráter negativo a ele atribuído. Desde a fábula 1 do livro I de Fedro, cujo título seria Lupus et agnus, já se tomaria conhecimento sobre seu papel de dominador inescrupuloso dos oprimidos. Ele traria injustiça à ordem social em virtude de sua excessiva ganância, que o fez perder sua nobreza. Interessante notarmos, como afirma Joyce Salisbury (1994, 130), que o lobo não era criticado por ser predador, já que, “enfim, a guerra – ocupação predatória – era privilégio da classe nobre; era a razão para a sua existência. Aquela classe favorecia seus animais de caça acima de todos os outros ...”. Todavia, a insaciável voracidade retiraria prestígio do animal. A pesquisadora americana assim cita a fábula medieval do pregador e do lobo, que bem explicita o caráter de insaciabilidade do canis lupus:

Nesta fábula, um pregador tenciona ensinar ao lobo o alfabeto (talvez para melhorar seu caráter). O lobo concentra muito tempo seus esforços para alcançar a letra C, mas quando ele é perguntado sobre o que deveria pronunciar, ele responde “cordeiro”, revelando que sua mente não tinha se libertado do seu estômago.

Este texto, portanto, segundo a autora, mostraria a ameaça à hierarquia medieval, a qual

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punha a nobreza no topo, e essa ameaça era o que os fabulistas criticavam em suas representações dos homens agindo como lobos. Eles não advogavam violar uma ordem social na qual regiam os predadores nobres, porém eles tentavam insistir em moderação, a qual, após tudo isso, seria o único jeito de preservar tal ordem social.

A denúncia, por fim, associaria então os cordeiros aos menos favorecidos e os lobos aos mais abastados, como se depreende do final da seguinte fábula de Marie de France (apud SALISBURY, 1994: 132):

O lobo então apanhou o tão pequeno cordeiro,Estraçalhou o pescoço, tudo extinguiu.........................................................................Eles [as pessoas ricas] retiram daqueles [dos pobres] carne e Pele,Como o lobo fez com o cordeiro.

*

AsinusProvérbio: In quo nascetur asinus corio, morietur. Tradução: No couro em que nascer, o asno há de morrer.

A caracterização do asno dentro da tradição paremiológica medieval em latim faz-se notar desde a época greco-romana. Os fabulários de Esopo e de Fedro e os fabulistas medievais sempre utilizavam este animal em seus textos. Como animal de carga, a sua função seria exclusivamente a de ajudar seu senhor no transporte de mercadorias, bem como, muitas vezes, levá-lo sobre seu lombo.

Mais tarde, paralelamente à sua atividade de trabalho, o asno possuiria também papel importante dentro da própria história do Cristianismo, à medida que Cristo teria entrado em Jerusalém montado sobre tal animal, no domingo de Ramos.

A sua pusilanimidade em não sair de seu estado de subserviência ao seu dono, contudo, foi associada metaforicamente a uma total falta de iniciativa, que expressaria então a imagem que até hoje temos deste animal como dócil, porém parvo.

Enquadrando-se dentro do fechado modelo social da Idade Média, tal concepção seria muito bem evidenciada nos proverbia daquela época como sinônimo da estultice humana

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em aspirar por ascensão social fora dos padrões de sua classe de origem. Em alusão a tal tema, Joyce Salisbury (1994:131) cita alguns animais como não dignos de muita admiração nos textos de então, observando que, “muitos como o asno são estúpidos, especialmente quando aspiram por um status maior do que o do seu nascimento”. E acrescenta (1994: 131): “Muitas das fábulas sobre pessoas que circulavam com as coleções de fábulas sobre animais lidam com classes inferiores e refletem a imagem de animais impotentes”. Em nossa parêmia em verso leonino, percebe-se claramente a mensagem de manutenção da ordem social vigente. O ciclo da vida, nascimento e morte, já estaria preparado para o asno, que deveria simplesmente segui-lo, já que sua roupagem estaria adequada às suas funções de servir ao seu senhor.

No tocante ao campo fabulístico, Marie de France sintetiza muito bem esse discurso conservador, ao lançar mão da fábula do asno que deseja brincar com seu dono como se fosse um cão fraldeiro, para demonstrar que nem todos têm a mesma aptidão dada pela natureza e conseqüentemente a observância de seus próprios limites sociais deve ser mantida:

Aqueles que aspiram engrandecer a si mesmosE que desejam um lugar mais elevado –Um que não é apropriado às suas cinturasE na maioria dos casos, não ao seu nascimento.O mesmo resultado sucederáA muitos, como ao asno espancado.

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BosProvérbio: Bos bos dicetur, terris ubicumque videtur.Tradução: O boi se chamará boi em qualquer terra onde for visto.

Economicamente, a importância do boi para a Idade Média era incontestável. Como fornecedor de alimentação e utilizado para arar o solo, o boi era considerado um animal doméstico, cuja disseminação em terras européias já estava consolidada desde a Alta Idade Média. Seu valor como bem material era, pois, grande, como sintetiza Joyce Salisbury (1994: 34), “depois dos animais de guerra ou de caça, os

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mais valorizados eram aqueles utilizados para o trabalho. Bois e éguas faziam a maior parte do duro trabalho de arar, desterroar, debulhar e puxar carros e todos os códigos os colocavam em alto grau...”.

Uma outra visão medieval do boi consistia em inseri-lo, assim como o cordeiro e o asno, dentro da história cristã, pois segundo os textos da época pesquisados por Jeffrey Russell um boi jamais seria possuído pelo demônio, porque aquele estivera presente no nascimento de Cristo e mais ainda, “além de suas associações com o nascimento de Jesus, o boi era provavelmente um animal tão mundano, tão associado à propriedade, para ser unido à presença diabólica” (apud SALISBURY, 1994: 171).

Com toda certeza, esse grau de “mundanidade” transformou a figura do boi, no correr da Idade Média, em um animal “inferior”, ou seja, refletia exatamente as condições reais de seu trabalho servil. Tecendo comparações com os servos da gleba e demais tipos de vassalos, então, vemos o animal representar metaforicamente a classe serviçal, o que para nós se torna evidente no provérbio acima exposto, composto em verso leonino, pois em qualquer lugar onde esteja, o boi – servo da gleba, vassalo – será sempre reconhecido e chamado de acordo com seu status social.

Um outro provérbio da época, Bos fenum comedit, cum pectoris ira recedit, “o boi come o feno, quando a ira de seu peito se afasta” também mostra o quadrúpede em aparente quietude, porém aqui aludindo a uma ira pectoris anterior, que nos leva a conjectura uma possível tentativa de sublevação contra sua vida - metaforicamente, a posição social do homem medieval -, que termina com alguns bons feixes de feno, ou seja, tendo a alimentação como sustento nada mais há para o homem comum almejar no mundo medieval. Nota-se nesta parêmia em verso leonino a monotongação do ditongo ae em e no caso de faenum > fenum. Ressalte-se, do mesmo modo, o uso já corrente da forma verbal comedit “come” e não edit, onde a primeira já suplanta a segunda, da qual é um composto.

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CanisProvérbio: Dum canis os rodit, socium quem diligit odit.Tradução: Enquanto o cão rói o osso, odeia o companheiro, a quem estima.

O cão teria sido o primeiro animal a ser domesticado pelo homem. Descendente do seu ancestral lupino, o canis canis possuía durante a Idade Média um valor que poderia ser auferido de acordo com a tarefa à qual era confiado. No Bestiário do século doze, citado por Salisbury (1994: 18), vemos explicitadas não apenas algumas de suas espécies, mas também suas qualidades e atribuições:

Há numerosas espécies de cães. Algumas seguem a pista das criaturas selvagens dos bosques para caçá-las. Outras guardam vigilantemente os rebanhos contra as infestações de lobos. Outras, os cães domésticos, cuidam das paliçadas de seus donos, a fim de que não sejam roubados à noite pelos ladrões e para defender seus donos até a morte. Eles prazerosamente despedaçam a caça com o dono e sempre guardarão seu corpo quando morto, e não o deixarão. Em suma, é parte de sua natureza que eles não podem viver sem os homens.

Quanto à caça, a ajuda dos cães era sobremaneira útil, pois inclusive, como descreve Joyce Salisbury (1994: 45-46), tal atividade

era uma caçada altamente ritualizada que dependia de um mastim especialmente treinado, o qual conduzia um caçador até um animal apropriado para a caça. Então, muitos cães seriam soltos para caçar o animal enquanto seus tratadores os seguiam, guiando e encorajando os mastins com gritos e berrantes. Uma vez que os cães obrigassem o animal a parar, eles o acuariam latindo, enquanto um dos caçadores o matava com uma espada ou com uma lança.

A dedicação dos cães a seus donos resumia-se assim, por um lado, à idéia de servidão, pois a sua lealdade tornava-os servos de seus senhores. Uma outra postura era assumida, quando se atribuía ao cão defeitos como ganância, gosto pelo litígio e tagarelice. Ao mencionar uma fábula de Marie de France, onde o cão é personagem central, Joyce Salisbury (1994: 133) assim sumariza a evolução dessa apreciação negativa do animal ao dizer que “os primeiros pensadores medievais constantemente atribuíam características desagradáveis para o melhor amigo do homem.

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Tertuliano escreveu que os cães eram impuros e Boécio disse que eles eram impacientes e ladravam sempre. A confluência dessas duas caracterizações do cão como guarda e como litigante está bem visível na remissão à figura do mitológico Cérbero, cão que guardava as portas da região infernal na mitologia grega. Nos Carmina Burana 131 e 131 a menciona-se que “Pape ianitores / Cerbero surdiores” – “os porteiros do papa / são mais surdos do que Cérbero”.

No provérbio acima arrolado, composto em verso leonino, percebe-se a ganância como principal marca distintiva desse cão, que na hora de roer seu alimento odeia o companheiro, a quem pouco tempo atrás estimara. O sentimento de sociabilidade canina desaparece a partir do momento em que o alimento está à disposição. Isto sucede, do mesmo modo, em outra parêmia, onde lemos “Ne latrare velit canis, os precluditur osse; Sic, ut homo parcat, patet illud munera posse” e que traduzimos como “Para que o cão não ladre, sua boca está fechada com um osso; Assim, para que o homem economize, torna-se evidente que possua bens”.

Este provérbio em versos caudati, que tem em precluditur com a redução do ditongo ae para e e com o significado de “fechar, tapar, obstruir” um termo com a monotongação típica em textos medievais, equipara o comportamento do cão ao do homem, cada um cuidando de suas riquezas, o osso e os bens materiais, como se estivessem a guardá-los com avidez, o que nos leva a corroborar as palavras de Joyce Salisbury (1994: 131) ao registrar que

na classificação metafórica medieval, os cães perderam seu grande status em conformidade por serem carnívoros, porque eles eram, portanto, servos. Na ordem social medieval que se tornou modelo para o mundo animal, os cães foram situados em uma classe social mais baixa do que a dos predadores livres.

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LepusProvérbio: Qui silva latitat, leporis mensam caro ditat. Tradução: A carne da lebre enriquece a mesa daquele que se esconde na floresta.

Vistas apenas como meros animais, desprovidas de significados simbólicos, as lebres serviram de fonte de

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alimentação durante as caçadas medievais. Joyce Salisbury (1994: 52) escreve que as mesmas “ofereciam a melhor caça e os mastins podiam ser mantidos em forma para caçar gamos seguindo a rápida e astuta lebre”. Ao descrever uma iluminura da época, a estudiosa afirma que características do seu comportamento podiam ser até mesmo reconhecidas durante as caçadas com mastins:

Os caçadores medievais teriam reconhecido que o mastim... estava preparado para uma longa corrida, já que a lebre é mostrada com suas orelhas voltadas para frente. De acordo com os tratados medievais de caça, isso indicava que ela era forte e estava confiante em escapar. Somente quando ela mantinha suas orelhas para trás é que demonstrava cansaço.

A suspeita sobre a prática sexual do animal levava vários autores eclesiásticos, que se ocupavam da medicina, a não recomendarem a carne da lebre para consumo. Todavia aquela fazia parte de diversos livros culinários da época. Essa posição ambígua é assim sintetizada por Joyce Salisbury (1994: 52):

Alguns tratados médicos alertam que a carne da lebre causa insônia e produz humores de melancolia. Porém, a despeito de todas as advertências, os livros de receitas culinárias ofereciam receitas para carne de lebre, e parece muito plausível que as lebres tenham sempre formado uma parte da dieta medieval.

Metaforicamente, pode-se pelo menos remontar a presença da lebre à tradição fabulística greco-latina. Fedro menciona em Lepus et bubulcus, “a lebre e o vaqueiro”, a história do animal que pede proteção a um vaqueiro para não denunciar seu esconderijo a um caçador. Aquele não o faz com palavras, mas sim através do olhar, o que não é percebido pelo caçador. Ao final, ao inquirir o animal sobre sua atitude que salvou sua vida, recebeu o vaqueiro esta resposta: “Linguae prorsus non nego habere atque agere gratias me maximas; verum oculis ut priveris opto perfidis”, ou seja, “Não nego absolutamente que me sinto (reconhecida) e agradeço muito à tua língua, mas desejo que sejas privado dos pérfidos olhos”.

O provérbio oriundo da biblioteca da universidade de Paris, composto em verso leonino, parece querer estimular o leitor a se esforçar na busca de algo melhor, pois a menção à carne da lebre ditat, “enriquece”, “enobrece” aquele que se esforça

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por alcançá-la, quase que espontaneamente nos levando a traçar um paralelismo temático com o conhecido provérbio, “Deus ajuda a quem cedo madruga”.

Uma outra fábula do mesmo autor, Passer ad leporem consiliator, “O pardal conselheiro para a lebre”, tem como fórmula moral que abre o texto, “Sibi non cavere et aliis consilium dare / stultum esse paucis ostendamus versibus”, isto é, “Mostremos em poucos versos que é insensato não se acautelar a si e dar conselhos aos outros”. Na fábula, uma lebre é censurada pelo pardal por ter-se deixado, inadvertidamente, capturar por uma águia, no momento em que um açor o apanha e o mata sem misericórdia. As palavras finais da lebre moribunda refletem o ensinamento dos versos iniciais da fábula: “Mortis en solacium! / Qui modo securus nostra inridebas mala, / simili querela fata deploras tua.”, i.e., “Eis a consolação da morte! / (Tu) que há pouco descansado escarnecias de nossos males, / choras os teus destinos com igual queixume.”

A capacidade de reprodução do animal é citada em Quot campo lepores, tot sunt in amore dolores, “Tantas as lebres nos campos quanto as dores no amor”, que, em verso leonino, compara a grande quantidade de lebres ao grande número de sofrimentos, ou em linguagem da lírica medieval galego-portuguesa, coitas de amor, sendo aqui, em nosso entender, a expressão proverbial um resultado da observação direta do mundo animal transplantada para a realidade do coração humano.

*

SusProvérbio: Sus taciturna vorat, dum garrula voce laborat. Tradução: A porca silenciosa devora, enquanto trabalha com a voz loquaz.

No que concerne ao interesse da Europa Ocidental pelo porco como animal doméstico, temos os primeiros indícios com os anglo-saxões, que o incluíam em suas comunidades, segundo Salisbury (1994: 27). Outras tribos germânicas, como a dos francos, estabeleciam códigos legais que cuidavam de disposições sobre os rebanhos de suínos:

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Nas leis dos francos, por exemplo, há mais leis regulamentando o trato com os porcos do que com qualquer outra espécie animal. As leis fazem referência a rebanhos de porcos com mais de cinqüenta cabeças que eram cuidados por um porqueiro. Pelo menos um porco em cada rebanho portava uma campainha e era designado como “porco líder”, de maior valor do que o restante. Algumas vezes eles estavam nas pastagens e algumas vezes guardados em terrenos cercados (apud SALISBURY, 1994: 27).

Como fonte de alimentação, sua carne era uma das mais apreciadas, inclusive porque podiam ser abatidos ainda jovens, o que proporcionaria uma carne ainda mais tenra.

Por outro lado, conforme as Sagradas Escrituras, a carne de porco era considerada impura. No Velho Testamento, em Levítico 11.7 lê-se que não se pode comer o porco, “o qual tem a unha fendida, mas não rumina”. Apesar de se dirigir essencialmente aos judeus, a mensagem bíblica provocou questionamentos entre os pensadores cristãos. Joyce Salisbury (1994: 61) assim esquematiza a situação especial da carne de porco:

O porco era biblicamente impuro, mas era um prato favorito entre as tribos germânicas. Entretanto também havia precedentes bíblicos para ignorar tais proibições nas cartas de S. Paulo. Conforme esta tradição, Ambrósio disse, “Uma coisa (...) parece-me ridícula, que alguém possa jurar se abster da carne de porco (...) Já que nenhuma criatura feita por Deus em ação de graças deve ser rejeitada”.

Com o aumento do requinte à mesa dos nobres durante a Baixa Idade Média, a carne de porco começou a perder prestígio, tornando-se praticamente refeição da classe serviçal. Especialmente na Inglaterra, após a vitoriosa chegada dos normandos em 1066, os porcos foram considerados “animais de homens pobres”, enquanto os anglo-saxões o tinham em alta conta. Esta dieta alimentar dos servos parece ser exposta no provérbio acima.

A expressão em verso leonino descreve uma porca, que mesmo durante sua alimentação, solta seus grunhidos característicos. Tal fato alude aos modos inconvenientes dos vassalos à mesa, pois uma das marcas do código de ética da nobreza feudal germânica seria a zuht, alemão moderno Zucht, que representaria a educação formal necessária a todo homem pertencente à classe dirigente ou que a ela aspirasse.

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Uma outra parêmia ratifica essa imagem, ao afirmar que Sus magis in ceno gaudet quam fonte sereno, “Um porco alegra-se mais por estar na lama do que em uma serena fonte”. O texto medieval apresenta em cenum a forma reduzida do ditongo clássico ae, todavia deixa transparecer em sua mensagem constatadora de uma condição social, que cada um tende, devido a sua própria natureza, a preferir determinados ambientes, o porco, impuro, a lama e animais mais nobres uma serena fonte, ou seja, transportando para o mundo dos homens as diferenças básicas e “naturalmente” imutáveis entre as classes sociais.

Como síntese, temos então especialmente durante a Baixa Idade Média uma produção paremiológica rimada que faz uso dos animais como espelhos do comportamento humano. Estes eram estimados conforme sua serventia dentro da comunidade, pois desde a época dos germanos, “em todos os códigos, o valor de um animal era baseado na função que ele servia para a comunidade mais do que em algum outro padrão” (apud SALISBURY, 1994: 33) e com eles estabeleciam-se pontos de interseção e de afastamento com o homem.

Como elementos delineadores e condutores de um discurso social de manutenção de valores hierárquicos e perenes, os provérbios ligados ao mundo animal contribuíram, portanto, não apenas para divertir o público ouvinte e leitor, mas principalmente para ajudar o ser humano, segundo a visão de grande parte da intelectualidade oriunda do clero, a trilhar os caminhos deste mundo conforme os seus preceitos.

III. A Antigüidade Clássica nos provérbios medievais

Ernst Robert Curtius, em Literatura européia e Idade Média latina (1957:51), ao tratar da questão de quais autores seriam os mais utilizados dentro do sistema educacional medieval, cita-nos uma lista de vinte e um nomes de autoria de Konrad von Hirsau, monge germânico do século XII:

1) o gramático Donato; 2) o aforista Catão ...; 3) Esopo ...; 4) Aviano ...; 5) Sedúlio ...; 6) Juvenco ...; 7) Próspero de Aquitânia ...; 8) Teódulo ...; 9) Arátor ...; 10) Prudêncio ...; 11) Cícero; 12) Salústio; 13) Boécio; 14) Lucano; 15) Horácio; 16) Ovídio; 17) Juvenal; 18) “Homero”; 19) Pérsio; 20) Estácio; 21) Virgílio...

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Dessa lista, prossegue Curtius (1957: 51),

a escassa seleção compreende pagãos (de preferência da fase final da Antigüidade) e cristãos, sem levar em conta a cronologia; dos clássicos, somente Cícero, Salústio, Horácio e Virgílio - quatro autores que, porém, pela sua associação com os outros quinze, perdem a sua posição especial de clássicos e cujo mérito é considerado quase exclusivamente pelo seu efeito moral.

Atesta-se esta particularidade, ou seja, a utilidade dos autores para veicular lições de moral, na literatura de cunho dogmático-doutrinário, que tinha, entre as suas formas de expressão, os exercícios escolares com provérbios rimados, muitos deles usados como preparo para o recreio do espírito e da inteligência”.

O enfoque novo, pois, dado às obras da Antigüidade Clássica refletia a tomada de posicionamento da elite cultural de então, isto é, o clero. Utilizava-se o legado cultural dos textos antigos, porém não se pretendia imitar os seus padrões. Como bem assevera Régine Pernoud (s.d.: 113)

se se vê então na Antigüidade um reservatório de imagens, de histórias e de sentenças morais, não se vai ao ponto de a enaltecer como um modelo, como o critério de toda a obra de arte; admite-se que é possível fazer tão bem e melhor do que ela; admiram-na, mas preservar-se-iam de a imitar.

Não a imitação pura e simples dos autores, mas sim o plágio criativo, que nos casos dos libri proverbiorum, podia ser encontrado na ampliação e modificação das palavras originais. Ruy Afonso da Costa Nunes (1979: 199) cita, como exemplo, referindo-se ao renascimento cultural do século XII, John of Salisbury, “um professor de literatura para quem a composição literária devia inspirar-se nos grandes mestres do passado, mas sem plagiá-los, e que procurava ensinar aos alunos a arte de ler bem e de bem redigir”, acrescentando a seguir (1979: 199):

Antes dos humanistas dos séculos XV e XVI, os estudiosos medievais de Chartres, Paris, Orleãs, etc., redescobriram os encantos das belas-letras e deram o máximo realce no ensino à leitura e à imitação dos clássicos latinos. Do ponto de vista educacional, o renascimento do século XII foi sobretudo literário.

Tal assertiva é do mesmo modo expressa por Jacques Le Goff (s.d.: 31), quando menciona o fato de os professores

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medievais, como clérigos, fazerem uso não apenas das fontes cristãs mas também principalmente das obras das auctoritates greco-latinas, por considerá-las trabalhos científicos:

Se estes mestres que são clérigos, que são bons cristãos, preferem como text-book Virgílio ao Eclesiastes e Platão a Santo Agostinho, não o fazem apenas por estarem persuadidos de que Virgílio e Platão contêm ensinamentos morais ricos e que, por dentro da casca existe o miolo...; fazem-no porque, para eles, a Eneida e o Timeu são antes de mais nada obras científicas – escritas por sábios e apropriadas para serem objecto de ensino especializado, técnico, enquanto as Escrituras e a Patrística, que podem ser ricas em matéria científica ..., o são apenas secundariamente.

Sem negar, portanto, o embasamento cultural dos textos da tradição cristã-patrística, os autores medievais, e, sobretudo, os do século XII, retomam os autores antigos como alavancas para a ampliação do horizonte cultural de então, cuja importância foi tornada célebre através das palavras de Bernardo de Chartres (apud LE GOFF, s.d.: 32): “Somos anões que treparam aos ombros dos gigantes. Desse modo, vemos mais e mais longe do que eles, não porque a nossa vista seja mais aguda ou a nossa estatura maior, mas porque eles nos erguem no ar e nos elevam com toda a sua altura gigantesca”.

Os exemplos de parêmias rimadas dentro dos manuscritos selecionados por Werner, que contêm nomes de autores e de personagens famosos da Grécia e Roma antigas, fornecem-nos uma pequena amostra de sua aplicação e conhecimento dentro dos círculos intelectuais medievos.

III.1 A Antigüidade Clássica no corpus paremiológico

a) Distribuição dos nomes de autores e/ou de personagens da Antigüidade Clássica por ordem alfabética:Letra A: 2 ocorrências;Letra B: 1 ocorrência;Letra C: 3 ocorrências;Letra D: 1 ocorrência;Letra G: 3 ocorrências;Letra H: 1 ocorrência;Letra N: 2 ocorrências;Letra Q: 2 ocorrências;

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Letra R: 1 ocorrência;Letra S: 3 ocorrências;Letra T: 1 ocorrência;Letras U-V: 2 ocorrências.Total: 22 ocorrências

b) Número total de incidência de cada autor e/ou de personagem da Antigüidade Clássica:Aristoteles (Aristóteles) – 1 ocorrência;Bachus (Baco) – 3 ocorrências;Boreas (Bóreas) – 1 ocorrência;Cato, Marcius Porcius (Catão) – 1 ocorrência;Erinnys (Erínis) – 1 ocorrência;Fortuna (Fortuna) – 1 ocorrência;Ianus (Jano) – 1 ocorrência;Iuppiter (Júpiter) – 1 ocorrência;Melampus (Melampo) – 1 ocorrência;Naso, Publius Ovidius ( Públio Ovídio Nasão) – 2 ocorrências;Neptunus (Netuno) – 1 ocorrência;Troya (Tróia) – 1 ocorrência;Venus (Vênus) – 8 ocorrências. Total: 23 ocorrências

O maior número de citações referentes a Baco, Vênus e Ovídio nos leva a comentá-los dentro do provérbio por nós escolhido para análise.

III.2. Provérbios

BachusProvérbio: Tesseribus, Bacho, stabili meretricis amore                  Qui committit ei, proprio privatur honore. Tradução: Nos dados, em Baco, no constante amor de uma meretriz                 Quem nisso incorre, é privado da própria honra.

Baco, o deus da vinha, teve uma história atribulada. Era filho de Júpiter e de Sêmele, princesa tebana, filha de Cadmo. Devido aos ciúmes de Juno, esposa de Júpiter, o palácio onde vivia com sua mãe foi incendiado, vindo sua mãe, em conseqüência, a perecer, sendo ele, ainda nascituro, salvo por intermédio de Mácris, filha de Aristeu e posteriormente entregue a Júpiter que o introduziu em sua coxa até a hora

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de seu nascimento. Sua associação ao vinho assim é descrita por Commelin (1906: 75):

Quando cresceu, conquistou as Índias com um bando de homens e mulheres, conduzindo tirsos e tambores em vez de armas. A sua volta foi uma marcha triunfal, dia e noite. Em seguida esteve no Egito onde ensinou a agricultura e a arte de extrair o mel; plantou a vinha e foi adorado como deus do vinho.

Commelin (1906:77-78) assim o descrê fisicamente:

Baco é geralmente representado com cornos, símbolo da força e do poder, coroado de pâmpanos, de hera ou de figueira, sob a aparência de um jovem risonho e festivo. Com uma das mãos segura um cacho de uvas ou um chifre em forma de taça; com a outra um tirso cercado de folhagens e de fitas. Os olhos são negros e, sobre as espáduas, a sua longa cabeleira lisa com reflexos doirados, cai em tranças ondeadas.

A sua relação com o suco fermentado do fruto da videira reflete-se nas oferendas feitas pelos seus seguidores. Como afirma o estudioso francês, “imolavam-lhe a pega, porque o vinho solta a língua e torna os bebedores indiscretos”. (1906: 78) Seus outros nomes também se relacionavam com seu poder sobre o vinho (1996: 78-79):

Às vezes é chamado Liber (Livre), porque o deus do vinho liberta o espírito de qualquer cuidado; Evan, porque as suas sacerdotisas, durante as orgias, corriam de todos os lados gritando: Evohé, Bacche, termo derivado de uma palavra grega que significa “gritar”, alusão aos gritos das bacantes e dos grandes bebedores. Tem ainda outros sobrenomes provenientes do seu país de origem ou dos efeitos da embriaguez: Nysoeus, de Nysa, Lyaeus, que afugenta a mágoa.

Pelo exposto, nota-se, a partir da definição de seus atributos, que o deus Baco e o vinho simbolizam uma união, cujo resultado é expresso basicamente em orgias e descontrole ao falar, derivados da embriaguez, que, segundo a visão eclesiástica medieval, afasta os homens da sobriedade e sapiência indispensáveis ao comportamento de um cristão.

Jogo, bebida e prostitutas são temáticas recorrentes na Idade Média como dignas de sérias reprimendas àqueles que a elas se dedicam. O fascínio exercido pelo jogo, onde sorte e azar convivem lado a lado e levam os homens muitas vezes à completa ruína financeira, sem falar na moral; ao vinho, que desde os antigos era a bebida da verdade, pois in vino

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veritas, entregavam-se os homens sem limites; as mulheres de vida fácil fechavam o ciclo de prazeres mundanos, ofertando-se, em troca de pagamento, àqueles que as procuravam para a fruição da carne.

As meretrizes completam o quadro de caos moral e de costumes. Elas formariam a casta de mulheres, que, de maneira contrária aos preceitos cristãos, entregavam-se fisicamente aos homens, não unidas pelos laços indissolúveis do matrimônio, mas por dinheiro. Jacques Rossiaud em A Prostituição na Idade Média (1991:12) informa-nos sobre vários tipos de prostituição, porém

a partir do século XIII, no mundo novo e mutante constituído pela cidade, sempre distinguia-se entre as prostitutas públicas e as outras. Prostituições, portanto, não apenas uma, coexistentes e respondendo a ‘demandas de prostituição’... igualmente diferentes, nas quais os imperativos de natureza, cultura e sociabilidade ordenavam-se de forma desigual.

Quaisquer que tenham sido os motivos que conduzissem a mulher à prostituição (pobreza, miséria, não conformidade com o código sexual de valores para com a mulher, dentre outros), a qualidade da relação, ou seja, o que definia sua ilegitimidade e não consonância com uma atitude cristã seria a própria condição de prostituta e não o que ela adquiria com o comércio de seu corpo, fundamentando o seu valor moral, totalmente antagônico aos preceitos cristãos.

A partir das considerações acima expostas, acreditamos, pois, que o provérbio em dístico por nós analisado é um veemente ataque àqueles que preferem os prazeres do mundo à santidade de vida, ou seja, referendando um discurso pedagógico de censura que tenciona nortear o mundo de acordo com um ponto de vista espiritual. O elemento mitológico da Antigüidade greco-latina, aqui Baco, não estava imbuído de qualidades e virtudes cristãs, manifestando somente suas características perversoras e nocivas a uma comunidade regulamentada pelas palavras de Cristo.

Contra ele, o jogo e a prostituta se ergue a voz moral de fundamento cristão. Seu efeito retórico persuasivo apela diretamente ao proprius honos do censurado, de forma a reconduzi-lo ao Pai com as bênçãos da Igreja.

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Um outro dístico medieval, em versos unisoni, também utiliza-se de Baco e introduz Vênus: Raro frigescit Bacho Venus, ipsa calescit; / Litigium vita! tibi res honesta petita, “Raramente Vênus esfria com Baco, ela própria se aquece; / Foge da contenda! Tu deves te dirigir para coisas honestas.” Aqui Vênus, simbolizando a beleza do sexo feminino, une-se a Baco, o deus do vinho, aquele que, como anteriormente considerado, desestabiliza o homem através dos efeitos da bebida. Juntos os dois, o amor de uma mulher e o vinho corrompem e abalam as estruturas do edifício individual do cristão medieval e devido a isso o autor do provérbio, em tom exclamativo, exorta o leitor-ouvinte a se abster de ambos, pois a res honesta petita é certamente o cumprimento das palavras de Deus ensinadas pela mater ecclesia.

*

Venus Provérbio: Nescit quid doceat, quem Venus illaqueat Tradução: Desconhece o que deve ensinar, aquele a quem Vênus seduz.

Afrodite para os gregos e cultuada em Roma como Vênus, a deusa latina presidia os prazeres do amor. Há duas versões sobre o seu nascimento, uma que a descreve como filha de Júpiter e de Dionéia, filha de Netuno e a outra, mais conhecida e contada por Homero, segundo a qual a deusa teria sido formada

da espuma do mar aquecido pelo sangue de Celo ou Urano, que se lhe misturou, quando Saturno levantou mão sacrílega sobre seu pai. Acrescenta-se que dessa mistura nasceu a deusa, perto da ilha de Chipre, dentro de uma madrepérola. Diz Homero que ela foi conduzida a essa ilha por Zéfiro, que a entregou entre as mãos das Horas, que se encarregaram de educá-la. Essa deusa assim concebida seria a verdadeira Afrodite, isto é nascida da espuma, em grego Aphros. (apud COMMELIN, 1906: 68)

Como deusa da beleza, dos prazeres e dos amores, possuía conforme o estudioso francês (1906: 69) um cinto onde encerrava as “graças, os atrativos, o sorriso sedutor, o falar doce, o suspiro mais persuasivo, o silêncio expressivo e a eloqüência dos olhos”.

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Com tais armas, seu poder sobre os mortais era irresistível. Templos lhe foram construídos em Chipre, Pafos, Citera, sendo seu culto um dos mais populares na Antigüidade. Desposou Vulcano, adulterou com Marte, apaixonou-se, porém, pelo mortal Adônis e o amou, até que este foi assassinado pelo deus da guerra metamorfoseado em javali. Ao descer aos infernos, o jovem foi amado pela rainha do reino inferior, Prosérpina, o que fez com que Vênus, indignada, se queixasse junto a Júpiter, que resolveu o litígio ao decidir que Adônis estaria livre durante quatro meses ao ano, os quais passaria na companhia da deusa, enquanto no tempo restante estaria nas regiões infernais ao lado de Prosérpina.

Embora fosse a deusa do amor, seu comportamento estava longe de ser totalmente amável. Commelin (1906: 71) menciona e exemplifica seu caráter vingativo, ao afirmar que Vênus era

muito vingativa e impiedosa nas suas vinganças. Para punir o sol (Febo) da indiscrição de haver advertido Vulcano do seu adultério com Marte, tornou-o infeliz em quase todos os amores. ... Vingou-se da ferida que recebera de Diomedes diante de Tróia, inspirando a Egíale, sua mulher, paixões por outros homens. Castigou da mesma maneira a musa Clio que havia censurado o seu amor Adônis, a Hipólito que desdenhara os seus atrativos.

Essas duas faces do amor personificadas pela deusa – a paixão carnal e o sentimento de vingança – foram realçadas por boa parte dos litterati medievais, que viam nelas um fator de desagregação e de distanciamento do elemento masculino da palavra bíblica. Personificada pela mulher, Vênus seduziria negativamente os homens, dominando suas mentes com o apelo da carne, assim como Baco faz com o vinho, e os conduziria desta forma para a perdição e danação eternas, pois o paraíso celeste requer o primado do espiritual e, com isso, o domínio sobre o corpo corruptível.

No provérbio em verso leonino a deusa romana literalmente laça – de in, “dentro de” e laqueare, verbo preso ao substantivo laqueus, “laço” – aquele que não tem consciência de que há assuntos mais importantes a serem aprendidos do que se deixar enredar pelas teias do amor.

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Esta total submissão aos caprichos da deusa e conseqüente falta de vigilância também podem ser encontradas em outra parêmia, Curis artatur, si quis Veneri famulatur, “Se alguém é criado de Vênus, é afligido de cuidados”. Neste provérbio em verso leonino, o traço social de vassalagem medieval é transposto para a relação entre Vênus e seu seguidor, sintetizada pelo verbo famulari, “servir como criado”. Aqueles que seguem os prazeres advindos do corpo da mulher, portanto, descuidam-se dos bens do espírito, cujas repercussões ulteriores serão funestas fatal e eternamente.

A tentação das filhas de Eva, adornadas pelo cinto de Vênus, é do mesmo modo retratada em Cuius forma bona, Veneri sit femina prona, “A mulher, cuja beleza é perfeita, está inclinada para Vênus”. Evidencia-se neste exemplo o poder de sedução feminino quase irresistível exercido pela deusa, que apenas seria detido, se o homem se dispusesse a se armar defensivamente com o Verbo divino.

Por fim, um outro provérbio, em dístico com rimas leoninas, reúne Vênus a Baco e ao jogo, completando o quadro desarticulador do cristão medieval: Alea, vina, Venus; tribus hiis sum factus egenus; / Hec tria qui poterit spernere, dives erit, “Os dados, os vinhos e Vênus; eu sou feito desprovido dessas três coisas; / Quem puder essas três coisas desprezar, rico será”. A monotongação do ditongo –ae - em e no caso de hec aparece com bastante freqüência nos textos medievais.

Nesse provérbio, os três elementos talvez mais perniciosos dentro da vida cotidiana do medievo, o jogo, o vinho e a mulher, simbolizada por Vênus, são criticados a partir do ponto de vista do autor, que afirma estar livre deles e em conseqüência disso, fixa um parâmetro de riqueza, que não está contido neles. À medida que o tom do discurso proverbial é pedagógico-moralizante, logo podemos deduzir que o mesmo pretendia afastar o público leitor e/ou ouvinte desse trinômio desestruturador da vida social de fundamentação cristã da Idade Média, o que, por fim, configuraria sua redação no seio eclesiástico.

Conforme o material por nós submetido à análise, portanto, vemos na figura de Vênus a imagem da mulher insinuante, que ao lançar mão dos seus atributos físicos e demais recursos de sedução, instaura um grande perigo para a cristandade ocidental em terras em sua grande maioria

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germânicas. Assim, a representação da deusa romana associada às suas características do amor carnal somente poderia suscitar reprimendas àqueles que desejassem servi-la, pois em um mundo, no qual o homem deveria estar se preparando para a verdadeira vida post mortem, a base moral da vida passageira centrava-se na palavra da Igreja.

*

Publius Ovidius Naso Provérbio: Qui studium spernit simul et tua carmina, Naso!                  Nil sibi contingat melius quam fiat agaso.

Tradução:  Quem ao mesmo tempo despreza o estudo e os teus versos, Nasão!                  Não terá sorte melhor do que tornar-se lacaio.

Publius Ovidius Naso nasceu em Sulmona no ano 43 a.C. Filho de um comerciante abastado, teve educação esmerada, estudando filosofia, retórica e gramática junto a grandes mestres. Exerceu a função de advogado e outros cargos dentro da magistratura romana, conforme desejo paterno. Entretanto, a posteridade lembra-se de Ovídio como poeta. Em Roma, recebe os amigos para festividades em sua rica moradia. Rômulo Augusto de Souza (1977: 220) traça os passos da produção literária do poeta de Sulmona:

As suas primeiras obras, representadas pelas elegias amorosas, refletem esse clima requintado e erótico em que vivia o poeta. Como bom discípulo da escola alexandrina, Ovídio procurou fazer um poema mais sério, com tonalidades épicas e didáticas, sobre a criação do mundo e das coisas, ao qual deu o título de Metamorphoses, considerada a sua melhor obra. Em seguida, publicou os Fasti, espécie de calendário explicado dos dias úteis.

Já reconhecido dentro da corte de Augusto, Ovídio parecia ter consolidado sua posição como escritor, quando ao estar concluindo os Fasti

foi surpreendido por um edito do imperador desterrando-o para o Ponto Euxino, região fria e inóspita da Ásia. Os motivos dessa decisão de Augusto nunca ficaram bem esclarecidos. Uns dizem que foram as suas publicações eróticas, sobretudo a Ars Amandi que teriam suscitado a represália do imperador, há muito esperando um pretexto para afastar de Roma o poeta, cujas obras contrariavam sua política de moralização. Outros afirmam que Ovídio sabia e favorecia os amores secretos de Júlia, neta de Augusto. Parece, entretanto, que

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os motivos políticos relacionados com a sucessão de Augusto foram os verdadeiros fatores da decretação do exílio do poeta, que figurava entre os opositores dos planos de Lívia, visando transmitir o império a Tibério e não a Agripa. (apud SOUZA, 1977: 220)

Ovídio passou os seus anos restantes de vida no Ponto, onde escreveu Tristia, Epistolae ex Ponto, a parte final dos Fasti e a sátira Ibis, vindo a falecer durante o reinado de Tibério aos 63 anos de idade no ano 18 da nossa era.

O talento artístico e o preciosismo literário do poeta foram redescobertos pelos lectores medievais. Konrad von Hirsau – primeira metade do século XII – aceita a leitura dos Fasti e das Epistolae ex Ponto, recusando as obras eróticas e as Metamorphoses.180 Por outro lado, no final deste mesmo século, Alexander Neckam (apud CURTIUS: 1957:52) admite a leitura das Metamorphoses e para combater os seus possíveis efeitos, os Remedia amoris e seus poemas são analisados à luz de artifícios retóricos. Todavia, um outro aspecto importante do trabalho com seus textos possibilitou aos clerici deles depreender expressões proverbiais, as quais tiveram largo uso durante o medievo.

Da Literatura para a Retórica, entremeado de exemplos moralizantes, Ovídio foi uma das auctoritates mais significativas dentro do universo intelectual medieval. Tal assertiva pode ser defendida, se atentarmos para o provérbio por nós arrolado, em versos caudati, onde o vocábulo nil aparece grafado sem os grafemas –hi- da forma clássica nihil, tendência essa já constatável a partir do sermo vulgaris. No que tange explicitamente à parêmia, notamos que a referência ao poeta de Sulmona se inicia praticamente com a equivalência entre o studium, entendido como o ingresso na universidade, e o conhecimento dos versos de Ovídio, o que confirma ser sua leitura indispensável pelo menos para o curso das disciplinas do trivium.

Caso, contudo, seu estudo seja negligenciado ou propositalmente rejeitado, triste sina estará reservada ao autor de tal temeridade, pois não obterá posição de destaque dentro da sociedade medieval, cabendo-lhe possivelmente o papel de lacaio.

Neste ponto, este provérbio mostra-se extremamente rico em considerações de ordem social sobre o medievo, a saber:

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1. No estudo universitário, a leitura dos carmina ovidianos era indispensável;

2. O conhecimento delas advindo poderia proporcionar futuramente ascensão social dentro do universo dos litterati medievais;

3. O desconhecimento das obras do sulmonês, em contrapartida, poderia determinar uma posição de inferioridade no âmbito do saber e a palavra agaso, “lacaio”, pode perfeitamente ser aplicada quase como sinônima de vassalus.

Uma segunda parêmia em versos caudati lembra o sofrimento de Nasão por ter sido expatriado por Augusto: Dicas, cum pateris, que forsan non meruisti: / Hec modo Naso feres, quoniam maiora tulisti, “Tu dirias aquelas coisas, que talvez não mereceste, embora as sofras: / Logo, ó Nasão, suportarás estas, visto que suportaste males maiores”. Além das observações de cunho gramatical, onde se destacam a monotongação do ditongo ae em que e hec – formas clássicas quae e haec – e a sintaxe do verbo dicere -formando uma oração subordinada, visualiza-se por trás da menção aos sofrimentos de Ovídio uma mensagem de reconforto, pois muitas vezes cometem-se injustiças e pessoas inocentes são as vítimas expiatórias das mesmas.

Como não perceber aqui, então, a palavra cristã do encorajamento à prática da abnegação, pois se o Mestre dos Mestres padeceu sob as injustas acusações dos fariseus, a tudo aceitando, pois estava cônscio de que daquela forma cumpriria a vontade de seu Pai, ele, Ovídio, um mortal, como se acabasse de adentrar a época do autor da parêmia, deveria mirar-se no exemplo de Cristo e aguardar a sua misericórdia. A intertextualidade entre os textos de Ovídio e a Sagrada Escritura revela-se, pois, presente no século XV, fazendo com que o poeta de Sulmona, cidadão romano, possa ser ornado quatorze séculos depois com as virtudes de um cristão.

IV. Considerações finais

O material paremiológico insere-se perfeitamente dentro desta ótica de retomada dos antigos valores do catolicismo. Aliando a sabedoria advinda do conhecimento divino e a cultura laica de tradição eminentemente greco-romana configurou-se, através de exercícios escolares de escrita com

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finalidade mnemônica, o discurso proverbial intelectualizado, em forma metrificada, que deveria ser aplicado à realidade concreta do dia-a-dia.

As “estratégias para situações”, pois, incluíam diversos topoi de recorrente cunho no discurso paremiológico. Assim, encontramos metaforicamente associados aos animais, com sua aplicabilidade cotidiana, práticas comportamentais do próprio homem, aliando-se à simples descrição de seu estado in natura os traços louváveis ou execráveis da espécie humana.

Como homens de letras, os clérigos autores das parêmias rimadas colocavam à disposição do seu público discente e/ou ouvinte suas pílulas de erudição, ao resgatarem os personagens da Antigüidade greco-romana e para deles se servirem como exemplificação modelar, retrabalhando suas características originais sob as vistas da religião.

Em suma, animais como metáforas do comportamento humano e o legado cultural da Antigüidade Clássica presente em personagens reais e mitológicos carregados de uma nova simbologia, determinam, em linhas gerais, algumas das principais temáticas dos provérbios medievais rimados, reflexos incontestáveis de uma sociedade, que ainda tinha na palavra de Deus e na escritura da Igreja os sustentáculos morais de sua própria sobrevivência!

*

V. Bibliografia

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Heráldica medieval: una creación cultural para una sociedad laica

Gerard Marí i Brull (Universitat de Barcelona)

SummaryThis paper aims to show how Heraldry is a medieval cultural

phenomenon of first importance created and developed outside the ecclesiastical world, through the analysis of three specific aspects:

its origins, the language for the heraldic description and the ways of transmission of its knowledge.

KeywordsHeraldry – Medieval History – Coats of arm.

*

Los emblemas heráldicos son una creación cultural que tiene su origen en la época bajo-medieval, que han sido profusamente utilizados a lo largo de la historia hasta el momento presente (prueba de ello son las abundantes representaciones de todas las épocas que se conservan), siendo en la actualidad un fenómeno bastante incomprendido, un hecho histórico injustamente olvidado e imperdonablemente ignorado (RIQUER, Prólogo, 1986: 8). No me refiero a un desconocimiento sobre sus orígenes, sus funciones, su evolución... sino al conocimiento general que tiene la sociedad actual sobre la Heráldica.

Esto ocurre no solamente al nivel superficial del hombre de la calle, sino incluso en determinadas esferas especializadas del conocimiento universitario y académico en general e histórico en particular, hasta el punto de producirse un auténtico prejuicio anti-heráldico y un rechazo de la materia como objeto de estudio científico, de la misma manera que existe en el ámbito de la genealogía (MARÍ, 2004: 61-76).

Los motivos de este desconocimiento y desinterés hacia la Heráldica son diversos. Es cierto que la obra de la Revolución Francesa y su lucha contra el Antiguo Régimen desarrolló en su momento un concepto muy negativo de los emblemas heráldicos, considerándolos marcas nobiliarias y signos de feudalidad. Pero el motivo principal es la incapacidad o el rechazo de los heraldistas en general para

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llevar la materia más allá del estrecho marco de la historia genealógica y nobiliaria.

Así, los estudios publicados no siempre han tenido el rigor científico necesario, a menudo encerrados en el uso de una terminología y de unas reglas más o menos esotéricas, desarrollando una heráldica teórica, normativa, ajena al tiempo y al espacio, compilando un interminable e inútil listado de términos, figuras y normas, sin aportar ningún tipo de análisis que tuviera una utilidad para la investigación histórica y arqueológica (PASTOUREAU, 1997: 11-12). Esta ausencia de un estudio histórico rigoroso de los emblemas heráldicos es también consecuencia del abandono por parte de los historiadores de profesión, por falta de interés en el tema, dejando el campo exclusivamente a los “heraldistas puros” (CENCETTI, 1936: 165-169).

Afortunadamente, desde hace ya algunas décadas se hacen evidentes las muestras de una cierta renovación, si bien adolece de ciertos desequilibrios. Por ejemplo, entre heráldica medieval, donde se da una mayor renovación metodológica, y heráldica moderna (o contemporánea), menos estudiada y con enfoques más tradicionales. También desequilibrios cuantitativos y cualitativos entre distintos países, donde destacan de manera especial los autores franceses. Finalmente, existen desequilibrios entre los diferentes campos de la investigación: heráldica de personas físicas y heráldica de personas jurídicas, heráldica noble y no noble, heráldica laica y eclesiástica... (PASTOUREAU, 1997: 296-297).

Uno de los temas más apasionadamente estudiados estos últimos años y, por consiguiente, más conocido es el de los orígenes de los emblemas heráldicos. Nacidos con una aplicación militar, aunque no de manera exclusiva sino como catalizador de un fenómeno de más largo alcance, no está estudiado de manera específica el proceso por el que llegaron a ser utilizados por parte de la Iglesia (HEIM, 2000: 23).

Una idea clave para el tema que se desarrolla aquí es el hecho que la Iglesia (el mundo eclesiástico en general) es prácticamente ajena al nacimiento de los emblemas heráldicos (PASTOUREAU, 2004: 233), y sólo posteriormente hace uso de ellos. Efectivamente, la heráldica es una de las

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más destacadas creaciones culturales de la Edad Media de estricto ámbito laico, aunque posteriormente se extienda a todos los grupos de la sociedad. Como dice Anthony Wagner refiriéndose a la obra de Matthew Paris, “sus descripciones son obra de un agudo y cuidadoso observador, pero un clérigo, en definitiva uno que mira la heráldica desde el exterior” (WAGNER, 1967: IX).

El carácter laico del fenómeno heráldico se puede seguir de manera evidente atendiendo a tres puntos específicos:

sus orígenes históricos, ya que nacen en el seno de una clase social militar y sólo más tarde, por imitación, son adoptados por religiosos.

el lenguaje utilizado para la descripción heráldica, que se desarrolla en el ámbito de la lengua vulgar y no del latín, la lengua de la Iglesia por excelencia.

el estudio y las vías de transmisión de su conocimiento, que evoluciona por unos cauces específicos, ajenos a las manifestaciones culturales del mundo eclesiástico.

I. Orígenes históricos

El conocimiento de los orígenes de los emblemas heráldicos y su posterior difusión en la sociedad nos ilustran sobre su vinculación primigenia con las necesidades de grupos humanos ajenos al mundo eclesiástico.

Han sido numerosas las diferentes hipótesis que históricamente han pretendido explicar el origen de la heráldica, generalmente sin rigor científico. Ya en el siglo XVII, el erudito francés Claude-François Ménestrier enumeraba más de una veintena, la mayoría muy fantasiosas (MÉNESTRIER, 1671: 109-194).

La hipótesis que más auge ha tenido en los últimos decenios argumenta que la aparición de los emblemas heráldicos está vinculado a necesidades estrictamente de tipo bélico, es decir, como una consecuencia de la evolución del equipo militar entre finales del siglo XI y mediados del XII. Los combatientes fueron cubriendo su cuerpo cada vez más con diversos sistemas para protegerse del ataque de los adversarios, de manera que llegaron a hacerse

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completamente irreconocibles debido a la cota de mallas y al uso del casco con nasal, elementos éstos que ocultaban buena parte de su rostro.

Entonces, la necesidad de hacerse reconocibles a distancia en el campo de batalla propició el uso de signos de reconocimiento personal llevados sobre sí mismo, concretamente pintados sobre la superficie del escudo (GALBREATH, 1942: 24-25). Así, los combatientes fueron tomando progresivamente la costumbre de hacer pintar figuras geométricas, animales, florales... sobre su escudo, de tal manera que el uso constante de la misma figura o figuras por parte de un personaje, representadas siempre según unos principios específicos, desembocó finalmente en el nacimiento del fenómeno heráldico como lo conocemos actualmente.

Pintura mural representando un caballero con decoración heráldica.

Este proceso cristaliza con la aparición de los emblemas heráldicos a mediados del siglo XII, en un amplio margen de tiempo que ha sido fechado entre 1120 y 1160.

En la actualidad, en cambio, se tiende a relativizar la importancia de las funciones militares de los emblemas heráldicos en sus inicios, ya que esta aplicación de identificación personal destinada a cubrir una necesidad originada por la evolución del arte de la guerra no basta por sí sola para explicar los hechos. Los testimonios más antiguos conservados comprenden utilizaciones en otros soportes

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(especialmente los sellos), con fines que no eran el reconocimiento personal e incluso ajenos a la función militar. Por otra parte, el uso del casco con nasal precedió en muchos años a los emblemas heráldicos pintados sobre los escudos y nunca se ha demostrado una relación de causa a efecto o siquiera un correspondencia cronológica (MENÉNDEZ-PIDAL, 1993: 50-51).

En realidad, la aparición de los emblemas heráldicos es un hecho socio-cultural circunscrito al mundo Occidental (es decir, no en Oriente, sea en Bizancio o en el Islam) que se produce en un momento que la sociedad está rearticulando sus estructuras. Con la finalidad de situar los individuos en su grupo social correspondiente (sea familiar, socio-jurídico, religioso o profesional) y cada grupo social en el conjunto de la sociedad, se crean signos, marcas y códigos cada vez más numerosos, más precisos y formando sistemas cada vez más rigurosos.

No es por azar que las armerías aparecen en el momento en que se están modificando los sistemas antroponímicos, que se producen cambios en la indumentaria, la cual se carga de marcas taxonómicas de todo tipo, y que la iconografía multiplica el uso de atributos y signos deícticos con la intención de identificar, clasificar y jerarquizar las representaciones de las imágenes. La aparición de la heráldica no es ajena a estos fenómenos, todos en definitiva ligados a la expresión de la identidad.

Aunque se pueda vincular su nacimiento sobre el campo de batalla con la intención práctica de permitir la identificación de los combatientes, en realidad se trata de una manifestación de cambios sociales más profundos. Se afirma incluso que el fenómeno heráldico habría surgido igualmente, de una u otra manera, independientemente de la evolución del equipo militar, que en definitiva no fue más que un hecho meramente circunstancial (PASTOUREAU, 1997: 298-300).

Por lo tanto, vemos que las armerías nacen en el seno de una clase social guerrera, primero grandes dinastías y señores feudales, para irse extendiendo a los niveles inferiores de la escala nobiliaria, la mediana y pequeña nobleza. Así pues, los orígenes del fenómeno heráldico están estrechamente ligados a la evolución de la organización feudal y nobiliaria y

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se mantienen ajenos, en un primer momento, al mundo eclesiástico.

Efectivamente, sólo con posterioridad se introducirá el uso de emblemas heráldicos en instituciones de la Iglesia, cuando a partir de la segunda mitad del siglo XIII, un siglo después de su aparición, se va desarrollando lentamente el uso de armerías en los sellos eclesiásticos (JÉQUIER, 1983: 337). Es entonces cuando se produce también la transformación (adaptación) de los emblemas y símbolos sagrados que la Iglesia ya utilizaba desde sus orígenes en figuras heráldicas (BASCAPÉ Y DEL PIAZZO, 1983: 317).

Esa distancia entre el fenómeno heráldico y la Iglesia se hace más patente todavía por el hecho evidente que el lenguaje propio de la heráldica no es el latín, que era la principal lengua de cultura, de la enseñanza y de la Iglesia en el período que nacen las armerías.

II. El lenguaje de la descripción heráldica

Efectivamente, otra manifestación evidente de cómo los emblemas heráldicos se desarrollan en un ámbito ajeno al mundo eclesiástico es la formación del vocabulario específico para la descripción heráldica. Desde sus orígenes, el lenguaje heráldico se formó dentro de la lengua vulgar y no en latín.

La lengua característica de aquella primitiva descripción heráldica, y que ha influido extraordinariamente el resto de idiomas hasta la actualidad, ha sido el francés, la lengua madre de la heráldica (FLUVIÀ, 1982: 17). En los inicios, la descripción de los emblemas heráldicos corría a cargo de los mismos hombres de guerra y de los heraldos y de los escribanos y personal de las escribanías y cancillerías encargados de gestionar el uso de los sellos en la documentación que expedían. Se trataba de una lengua que no era culta ni literaria, tomada en buena parte del vocabulario de los tejidos y de la indumentaria, con una sintaxis original que no procedía de ningún modelo literario, pero que permitía describir todas las armerías con una gran economía de medios y con extrema precisión. De todas maneras, no se debe entender que fuera un lenguaje completamente inventado por éstos, sino que en su mayor parte procedía del lenguaje cotidiano del mundo del arte (BRAULT, 1972: 5).

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En cambio, para los usos literarios o cultos en general, en caso que fuera imprescindible desarrollar una descripción en latín, es donde se produjeron las mayores dificultades. Desde finales del siglo XII cronistas, escribas, redactores de anales,... se vieron en la necesidad de realizar descripciones de armerías, aunque sólo fuera para mencionar los sellos que pendían de los documentos. Para ello intentaron soluciones diversas, por lo habitual poco satisfactorias: una forma era realizar una traducción completa al latín, de lo que resultaban descripciones inexactas, confundiendo el nombre de las cargas e ignorando los elementos más dificultosos; en otros casos mezclaron términos latinos y vulgares, que daba un resultado poco inteligible; finalmente, también procedieron a introducir en medio de la frase latina el enunciado completo en lengua vernácula, a menudo con la fórmula “quod vulgo dicitur...”.

Sólo a partir del siglo XIV se intentó la creación de una verdadera lengua latina para el blasonamiento heráldico, que fuera rigurosa y precisa y que respondiera a las necesidades de juristas y notarios, historiadores y autores de tratados de cualquier género, para cartas y documentos administrativos, para textos históricos y narrativos, para obras literarias y jurídicas, para tratados sobre la nobleza y sobre los mismos emblemas heráldicos redactados en latín. Se procedió entonces a hacer un calco de la terminología vulgar, sólo que aplicando en lo esencial la sintaxis latina.

Puesto que los escudos heráldicos habían evolucionado y eran en aquellos momentos aún más recargados y complicados que en sus orígenes, divididos en más cuarteles que anteriormente, la descripción latina debía recurrir en mayor grado al uso de preposiciones y frases subordinadas a fin de hacer más precisa la descripción. De esto resulta que, contrariamente a lo que ocurre en otros ámbitos técnicos o científicos, la frase latina del blasón es siempre más extensa que la frase en lengua vernácula: allá donde un escudo puede ser descrito con dos o tres líneas, el latín necesita a menudo seis o siete (PASTOUREAU, 2004: 233-235).

Que la formación de un vocabulario latino para el blasonamiento fue un hecho a posteriori, artificial y culto lo revela la obra de John Gibbon, en 1682, cuando en el prefacio manifiesta que, siendo el latín es el más útil y universal de los

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idiomas a través del cual los eruditos han transmitido su conocimiento, el objetivo de su trabajo está en conseguir un blasonamiento latino más correcto que el utilizado por sus antecesores, los antiguos maestros ingleses, en sus publicaciones (GIBBON, 1681: s.p.).

GIBBON, JOHN: Introductio ad Latinam Blasoniam, Londres, 1682.

Así pues, vemos como todavía el siglo XVII no está resuelta la cuestión de la descripción heráldica en latín. De hecho, desde el siglo XVI, eruditos, filólogos, historiadores, juristas y teóricos del blasón intentaron eliminar a la lengua latina sus imprecisiones e insuficiencias al mismo tiempo que procuraron dotarla de una autonomía mayor respecto a la lengua vulgar, pero el resultado fue a menudo una descripción llena de neologismos eruditos y de términos inusuales. A la postre, estos intentos de creación o fijación de un blasonamiento en latín entraron en desuso a partir de finales del siglo XVII (PASTOUREAU, 2001: 297-298).

III. Los textos y vías de transmisión del conocimiento heráldico

En las primeras etapas de su historia, siglo XII, los emblema heráldicos son simplemente utilizados y evolucionan en los objetos sobre los que se representan, pero no son objeto de un estudio deliberado. A mediados del siglo XIII, en cambio,

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llegan las primeras actitudes reflexivas y el deseo de estudiarlos, que lleva a compilar colecciones de escudos, tanto pintados como simplemente descritos; son los libros llamados armoriales. Sólo a partir del siglo XIV se empiezan a escribir los primeros tratados sobre heráldica, atendiendo a sus aspectos jurídicos, formales y finalmente históricos (MENÉNDEZ-PIDAL, 1993: 21-22).

Los armoriales, diversos en cuanto al formato (libros o rollos) y al sistema de representación (pintados o descritos), diversos también en función de la zona geográfica donde fueron creados, se pueden clasificar a partir de sus características internas en cinco tipos:

Armoriales ocasionales, cuando contienen las armas de personajes reunidos por un motivo específico, generalmente de tipo militar (torneo, campaña militar...) o político (un tratado, una reunión diplomática...). Se pueden fechar con facilidad, puesto que se elaboran en el momento o poco después, y la información genealógica y heráldica que contienen es bastante fiable.

Armoriales institucionales, que reúnen las armas de personajes que forman parte de una determinada organización social: cofradía, orden de caballería, asociación profesional... Su redacción se lleva a cabo a lo largo de los años, a veces más de un siglo, y por este motivo permiten una visión de la evolución de la heráldica a través del tiempo.

Armoriales generales, cuando pretenden reunir todos los emblemas heráldicos correspondientes a un territorio concreto, más o menos extenso: un condado, un reino, toda la cristiandad... A menudo contienen, junto a armerías auténticas, emblemas heráldicos de personajes legendarios, bíblicos o históricos pertenecientes a períodos anteriores a la heráldica.

Armoriales ordenados, donde los escudos están clasificados según las figuras representados; son obra de heraldistas profesionales y su finalidad es permitir la identificación de un escudo anónimo.

Armoriales marginales, obras literarias o narrativas en general en las cuales se mencionan y describen escudos heráldicos, sean auténticos o inventados.

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Muchas de estas obras son anónimas, pero la mayoría debieron ser elaboradas por heraldos. Actualmente se cree que a menudo fueron fruto de un trabajo en equipo (PASTOUREAU, 1997: 223-226).

Armorial de Tolosa (s. XVI) y Heraldo Sicilia, al servicio de Alfonso el Magnánimo.

Los heraldos eran los profesionales de la heráldica, en su origen de procedencia modesta y que a partir del siglo XIV ven cada vez más definidas sus funciones, pasando paulatinamente a desarrollar sus funciones como miembros de la corte de grandes señores, príncipes y reyes y quedando estructurados en una jerarquía de tres categorías: los reyes de armas, los heraldos propiamente dichos y los persevantes, conocidos todos por la expresión genérica de oficiales de armas.

Participaban en la organización de los torneos y en las campañas militares, especialmente con la tarea de organizar e identificar los participantes, actuaban como mensajeros y embajadores, eran imprescindibles en las grandes solemnidades de la corte... En definitiva, eran los expertos en heráldica: crear escudos y sobre todo identificarlos eran los conocimientos indispensables de estos oficiales de armas y para ello procedieron a compilar la mayor parte de los armoriales (RIQUER, Heráldica castellana, 1986: 38-56).

En cambio, no tuvieron jamás jurisdicción en materia de derecho heráldico. En sus orígenes, las cuestiones relativas al uso de emblemas heráldicos no dieron lugar a auténticos procesos judiciales, y sólo a partir del siglo XIV los litigios

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sobre derecho heráldico se empezaron a someter a la jurisdicción real de derecho común; pero los oficiales de armas no formaban parte del tribunal, sino que actuaban sólo como asesores, exponiendo su opinión (MATHIEU, 1946: 66-68).

A partir del siglo XVI se produce una drástica reducción de sus atribuciones, puesto que el modo de hacer la guerra hace inútil su misión: el uso principal de las banderas en el campo de batalla en detrimento de los escudos de armas, una indumentaria militar uniforme y la substitución de la hueste feudal por ejércitos permanentes llevan a limitar sus funciones a cuestiones de ceremonial cortesana (RIQUER, 1983: 35).

Los heraldos jamás fueron personajes eclesiásticos, aunque se puedan mencionar puntualmente algunos grandes especialistas en heráldica, por lo general poco conocidos fuera del ámbito heráldico, como sería el caso del jesuita padre Claude-François Ménestrier, (1631-1705), o el benedictino Bernard de Montfaucon (1655-1741).

* * *

Así pues, el grupo humano en que nace la heráldica, la condición social de sus cultivadores y expertos, incluso el lenguaje específico para la descripción y el estudio de los emblemas heráldicos en la inmensa mayoría de los armoriales y tratados... son la demostración más evidente de cómo los emblemas heráldicos son una creación cultural laica, ajena en sus orígenes al mundo eclesiástico y que sólo posteriormente fue utilizado por la Iglesia, sin olvidar que fueron todos los estamentos de la sociedad en general quienes se volcaron en el uso de dichos emblemas.

*

 

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A perspectiva “pedagógica” de Dante Aliguieri no acesso à verdadeira nobreza

e à beatitude terrestre

Moisés Romanazzi Tôrres (UFSJ)

ResumoÉ no Convivio que Dante traça sua ética, delineando o ideal de uma existência perfeita e nobre. Tal perspectiva é aristocrática, pois a cultura do espírito se reserva a uma elite: determinadas gentes da

nobreza. Aqui o elemento central é o aristotelismo. São governantes-filósofos que, recebendo exatamente como uma recompensa pelo seu

esforço filosófico o dom da nobreza verdadeira, se encontram incumbidos de guiar, em seus feudos, reinos, cidades, as multidões humanas à felicidade e perfeição terrestres. No livro terceiro da De

Monarchia, Dante, fechando esta perspectiva “pedagógica”, caracteriza definitivamente o imperador como o Grande Filósofo da

Cristandade e, assim, o Mestre, quer dizer, o guia em última instância do gênero humano ao esplendor místico da nobreza

verdadeira e da beatitude filosófica ou terrestre.

AbstractDante, in the pages of Convivio, develops his ethics, establishing the

model of the ideal life, perfect and nobly. This point of view is aristocratic because the spirit culture is reserved for special peoples of nobility. Here, the central element is the aristoteleanism. Dante

imagines a group of governor-philosophers that received, exactly as a reward by your philosophical effort, the gift of the true nobility. They are assigned of guiding, in your feuds, kingdoms, cities, the human crowds to the happiness and terrestrial perfection. In the third book of the De Monarchia, Dante, closing this “pedagogic” perspective, characterizes the emperor definitively as the Great

Philosopher of the Christianity and, like this, the Master, the

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ultimately guide of the men to the mystic splendor of the true nobility and of the blessedness philosophical or terrestrial.

Palavras-chaveNobreza verdadeira - Governante-filósofo - Imperador.

KeywordsTrue nobility - Governor-philosophers - Emperor.

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Dante Alighieri desenvolve, fundamentalmente no Convivio e no terceiro livro da De Monachia, uma perspectiva, que poderíamos chamar de pedagógica, com relação ao acesso à verdadeira nobreza e à beatitude terrena ou filosófica. Nesta trajetória, o papel de “mestre dos mestres” se reserva ao imperador, visto como um filósofo peripateísta. Com efeito, o maior filósofo da Cristandade (Christianitas). Nossa intenção neste artigo é mapear a argumentação dantesca, passo a passo, com o intuito de caracterizar suas continuidades com a tradição greco-romana e medieval e de salientar sua grande originalidade, ou seja, a concepção de uma beatitude terrestre. Iniciaremos pelas páginas do Convivio. É nesta obra que os diversos aspectos da “pedagogia” dantesca são traçados.

O Convivio apresenta-se como um primeiro momento do pensamento moral e político de Dante. Nele podemos precisar os termos gerais nos quais se colocam para Dante os problemas essencialmente humanistas do conhecimento e da ação humana e, de imediato, a maneira como nosso pensador concebe a formação e educação do tipo superior de ser humano (RENAUDET, 1952: 57-58).

Para Renaudet, o Convivio aparece como a obra de um filósofo aristotélico e cristão. Ele atribui à razão humana um elevadíssimo valor, mas, simultaneamente, ressalta que seus ensinamentos se completam com a ajuda da Revelação. Ele atribui também uma enorme importância à vida ativa, à ação do indivíduo na societas, do político na civitas, mas seguindo a tradição cristã e, aliás, de pleno acordo com Aristóteles, reconhece na contemplação o mais alto esforço do espírito humano, esforço criador da mais alta beatitude onde o homem, desde esta vida, pode começar a se elevar.

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Esse filósofo, ao mesmo tempo racionalista e iluminado, reconhece na Ética a mais essencial entre as disciplinas instituídas pelo trabalho da inteligência. Ele procura então, ao longo do Convivio, estabelecer uma moral. E o problema que sua ética tenta resolver é um problema humanista por excelência: como, por quais métodos, reconquistar e fundar a verdadeira nobreza humana? (RENAUDET, 1952: 71).

A obra apresenta três grandes linhas de força: a perspectiva e o progresso simbólico que Dante usa para representar a Filosofia, a classificação das disciplinas do saber e a definição das relações entre a Filosofia e o poder imperial (CALAFATE, 1989: 1274). Com efeito, estes são os três alicerces sobre os quais Dante embasa a questão maior a qual o Convivio procura responder, isto é, a questão, humanista e ética por excelência, da educação da nobreza humana. Ele assim se propõe de procurar, descobrir e cultivar as forças morais do homem. Ele se esforça no sentido de elevar o indivíduo ao mais alto tipo de humanidade e, em conseqüência, realizar na sociedade política a forma mais elevada das relações humanas, uma vez que a perfeição individual é o ponto de partida para a perfeição da cidade.

O título da obra refere-se ao Banquete de Platão. No diálogo platônico os interlocutores são verdadeiramente os convivas de um banquete (simpósio). Ao contrário, no texto dantesco, é apenas o próprio autor que convida seus leitores a um “banquete filosófico”, ele é o único que discursa perante eles. A obra deveria se desenvolver em uma introdução seguida de quatorze tratados. Seu objetivo era compor uma summa, essencialmente moral e política, da nobreza humana. Mas como Dante, além de filósofo escolástico, era também um poeta lírico, os quatorze tratados deveriam tomar a forma de comentários escritos de Canzoni eruditas, da qual o amor e a virtude formariam a trama. A poesia cortesã e amorosa emprestaria seus símbolos à definição de uma ética e de uma política.

O que Dante evidentemente queria fazer no Convivio quando apresentava canções e depois oferecia as regras para sua interpretação era, por um lado, seguir a tradição alegórica medieval e assim não podia mesmo conceber uma poesia que não tivesse um significado figural. Por outro lado, ele não se contrapunha absolutamente a teoria tomista porque entendia

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que o que deriva da interpretação alegórica da canção é exatamente o que o poeta quer dizer (ECO, 1989: 95-103).

Realmente, Santo Tomás representa um marco na estética medieval porque sua obra sanciona o fim do alegorismo cósmico e dá lugar a uma visão mais racional do fenômeno. Com a discussão tomista sobre o sentido da Escritura, a natureza deixa de ser uma floresta de símbolos (onde as coisas valiam não por aquilo que eram, mas por aquilo que significavam).

Percebe-se, ao contrário, que a Criação não consiste numa organização de signos, mas em uma produção de formas. O século XIII em geral, através da aceitação do aristotelismo, vai definitivamente fixar sua atenção na forma concreta das coisas e o que sobra do alegorismo universal degenera em vertiginosas séries de correspondências numéricas. Assim, sob o velame dos versos, de acordo com o modo parabólico, revela-se o sentido literal da canção, e este é a tal ponto verdadeiro que Dante escreve seu comentário justamente para que este sentido seja literalmente entendido (ECO, 1989: 157).

Mas Dante compôs apenas quatro tratados. A introdução onde definiu seu propósito e se justificou de escrever em volgare toscano; o segundo onde ele fala do seu amor pela Filosofia, representada por uma mulher plena de misericórdia; o terceiro que é igualmente um hino de louvor a Filosofia. Nestas duas últimas partes, realmente, além de definir a Filosofia, ele estabelece seu papel, suas legítimas ambições, as forças e limites da razão humana, os contatos da Filosofia com a Teologia, da Razão com a Revelação.

Finalmente chegamos ao quarto tratado, onde Dante estabelece, após longa discussão, os caracteres da nobreza verdadeira. Ele desejou no Convivio definir ainda a temperança, a força d’alma, a generosidade, a graça amável e a justiça (ou seja, de certa forma, as virtudes filosóficas). Estes tratados foram provavelmente compostos entre 1304 e 1307. As Canzoni comentadas, possivelmente de 1293 a 1299.

Com efeito, o tema central da Introdução talvez seja o porquê do uso volgare florentino. Este ético-humanista, nutrido do pensamento greco-romano e dos saberes cristãos, escreveu

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em volgare e não em latim, porque pretendia se dirigir, não aos Doutores das escolas e universidades, mas de imediato esclarecer os homens que detém o primeiro rang da sociedade humana e o governo da cidade (RENAUDET, 1952: 63).

Na realidade, Dante evoca três razões para o uso da língua toscana em vez do latim: “uma deriva da cautela contra uma ordenação inconveniente; outra, da prontidão da liberalidade; a terceira, do natural amor à mesma” (DANTE ALIGHIERI, 1992: Conv., I,V). Estando a justificativa apontada por Renaudet inclusa na segunda destas três razões. Ela, com efeito, foi a grande razão do uso do volgare. Dante queria instruir a nobreza.

Nosso pensador e poeta escreveu em volgare e não em latim escolástico para atingir a esse público, ao mesmo tempo superior e restrito, que são os aristocratas. Ele acreditava que as gentes onde existem os germens da verdadeira nobreza raramente se encontram, salvo exceções, no mundo das escolas; mas sim em outros grupos da sociedade, grupos que se expressam em língua vulgar: príncipes e barões, cavaleiros e senhores, damas da nobreza e da alta cultura.

Conforme visto acima, o Convivio proclama, especialmente na segunda e terceira partes, a grandeza de todo esforço filosófico. Dante, com a elaboração do Convivio, propusera-se iniciar na Filosofia os concidadãos cujos cargos públicos ou responsabilidades de outra ordem impediam de se instruírem nestas matérias e, por elas, alcançarem aquele grau de perfeição a que, pela sua natureza e condição de seres racionais, tinham direito (CALAFATE, 1989: 1274). Ou, em outras palavras, esta obra é uma verdadeira iniciação filosófica para certas gentes do mundo, as gentes da nobreza.

Entre as disciplinas que servem de base ao esforço filosófico, é, conforme visto, à Ética que Dante atribui o papel principal. John B. Morall caracteriza tal escolha não aristotélica (em Aristóteles, a disciplina fundamental é a Metafísica) pelo fato de existir em Dante a crença que a Filosofia tem uma finalidade prática por excelência. Para este autor, o fato de Dante caracterizar Aristóteles como sendo a principal autoridade filosófica, não corresponde a um título meramente abstrato; implica sim no critério que determina o correto comportamento prático do homem.

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Dante sublinha com ênfase a praticabilidade da Filosofia, salienta Morrall, quando coloca em primeiro lugar, entre suas subáreas, a Ética (ainda que, neste ponto, contrarie o Filósofo, como vimos). No entanto, isto não significa que, no pensamento de Dante, a Metafísica e a vida em contemplação fossem intrinsecamente inferiores à Ética e à vida em ação social; mas ele pensava que, para a maioria dos homens, as primeiras não eram imediatamente relevantes, daí a sua escolha pelas segundas. Assim, complementa Morrall, não é apenas Aristóteles, mas um Aristóteles bastante utilitário que é para Dante a última palavra em autoridade filosófica (MORRALL, 1971: 97).

Renaudet, por sua vez, situa a origem desta escolha simplesmente na própria vida do exilado Dante:

“A inquietação dolorosa da prática, da vida moral e social, conduziu o Florentino direto à ética (...) Homem político, partidário ferido na luta das facções, ele sofreu e sofre com a desordem da sociedade humana; ele procura com angústia fundar a regra e a lei” (RENAUDET, 1952: 63).

Com efeito, para Dante a Ética funda a ordem e a harmonia na alma humana e na civitas. Assim, todas as ciências (saberes) lhe estão subordinadas. Pois se o homem procura se compreender e compreender o mundo é para deduzir deste conhecimento a regra mais apropriada para conduzir sua vida.

Mas se se recusa a seguir Aristóteles na classificação das ciências (saberes); é com a ajuda do Filósofo que Dante procura constituir para ele mesmo e para a cidade dos homens, uma ética que, como a aristotélica, é profundamente humanista.

Entretanto ele não ignora a insuficiência de uma ética puramente aristotélica e de um humanismo puramente humano para satisfazer uma inteligência e um mundo cristãos. Sabe muito bem que um humanismo puramente humano pode somente fundar uma ética fechada no universo de uma cidade humana. E ele deseja mais, quer ser “(...) cidadão daquela Roma onde Cristo é romano” (DANTE ALIGHIERI, 1999: Purg., XXXII, 101-102) ou seja, da Roma Santa, da Cidade Cristã.

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Assim Dante ordena sua procura (da ordem e da lei) seguindo o mistério de um modelo sobre-humano. Conseqüentemente ele, humanista cristão, ao compreender a necessidade de ultrapassar o debate filosófico, admite a importância do caráter transcendente da Teologia, e, a um humanismo puramente humano, helênico, aristotélico, racionalista, Dante vai coroá-lo com outro que se completa em uma mística. Isto é o trabalho da Commedia. Com efeito, ao longo dos quatro tratados do Convivio, Dante permanece essencialmente e cuidadosamente aristotélico.

De fato, por mais suprema que seja a Teologia, Dante não quer que a Filosofia lhe seja subordinada. Ele pretende sim um sistema de colaboração entre as duas já que há entre elas uma harmonia necessária e preestabelecida. Pois para ele a Razão, como a Revelação, é uma criação miraculosa de Deus, e conseqüentemente Filosofia e Teologia se reencontram necessariamente na infinitude divina.

É, com efeito, como nos informa Renaudet: Dante jamais opõe os domínios da Razão e da Revelação, o dos conhecimentos intelectuais e o das verdades divinas, a natureza e a graça. Para ele, a natureza, todo o domínio da natureza, e conseqüentemente o próprio espírito humano, estão penetrados da graça, e a própria existência da razão no intelecto humano é da ordem da graça. Assim, definitivamente, não é necessário que a Teologia guie a Filosofia em seus passos (RENAUDET, 1952: 64).

Calafate realça a importância da classificação dantesca das várias ciências (saberes), elaborada em correspondência simbólica a cosmologia medieval da pluralidade dos céus e sua hierarquia qualitativa. Ela estabelece qual era para Dante a hierarquia das mesmas: o céu da Lua é correspondente à Gramática, o de Mercúrio à Dialética, o de Vênus à Retórica, o do Sol à Aritmética, o de Marte à Música, o de Jove à Geometria, o de Saturno à Astrologia, o céu estrelado à Física e a Metafísica, o céu cristalino se compara à Filosofia Moral (a Ética).

Como podemos ver, em sua ascendente progressão, a Filosofia Moral (a Ética) é elevada ao mais alto grau, ela corresponde ao mais digno dos céus naturais, o cristalino. Seguindo as perspectivas tomistas, onde a Filosofia Moral (a Ética) já era quem movia os homens e os dirigia para o

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restante das disciplinas, Dante ressaltará que o eclipse da Moral (da Ética) faria com que todas as demais ciências existissem em vão (CALAFATE, 1989: 1275).

Hans Kelsen salienta exatamente a importância do nono céu na argumentação dantesca, corroborando a perspectiva vista acima. O nono céu corresponde ao primum mobile, de onde deriva o movimento de todos os outros. Como vimos, ele representa a Ética, que, assim, contém em si o princípio motor do intelecto (KELSEN, 1974: 50).

Mas, prossegue Calafate, acima dos nove céus naturais, está o céu Empíreo que, pela sua paz, assemelha-se à Ciência Divina, ou seja, à Teologia, já que esta também está cheia, repleta de paz, uma vez que , segundo Dante, não sofre qualquer contenda de opiniões ou argumentos sofísticos, pela certeza excelentíssima do seu objeto, o qual é Deus (CALAFATE, 1989: 1275).

Desta forma, ao lado de uma Teologia transcendente, surge uma Filosofia que, no entanto, encontra seus limites. A razão humana, em seu esforço para construir uma teoria do mundo, opera unicamente sobre dados fornecidos pelos sentidos. A razão disto é que, ao curso da vida terrena, Deus não quis lhe conceder total iluminação. Mas, mais que a transcendência da Teologia não reduzir a grandeza da Filosofia em seu próprio domínio (que é o conhecimento do mundo e do homem uma vez que se encontra condicionada pela experiência), os limites que são impostos pela medida do saber humano na procura das causas primeiras não diminuem a dignidade do esforço racional.

O conhecimento destes limites, tanto quanto a transcendência da Teologia, nos fazem mais exatamente saber o que é e deve ser o objeto deste esforço: o homem, estudado na realidade da sua vida moral e material, individual e social, a Ética e a Política. Desta forma, a finalidade da Filosofia, assim compreendida e determinada, aparece como sendo essencialmente humanista: a cultura do homem e o progresso da sociedade.

Mas, assimilada a um humanismo cristão, a procura filosófica não deixa de ser, ao mesmo tempo, uma obra divina porque seu objetivo é divino: o homem, o milagre de sua razão, a santidade de sua majestade. Pois ainda que a santidade do

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homem se encontre reduzida, ainda que a semelhança divina (que, aliás, facilmente apresenta) esteja nele por demais obscurecida, ainda assim ele permanece uma criatura divina.

Dante aqui se aproxima muito de São Bernardo que considera o homem uma criatura divina que possui em potência uma majestade: celsa creatura in capacitate maiestatis. Assim, paralelamente, a sociedade humana e política (a societas, a civitas) também aparece como uma obra divina, uma santidade (RENAUDET, 1952: 66).

Dante assim reconhece a dignidade, fundada em Deus, da vida ativa. Mas ao mesmo tempo ele reconhece a suprema dignidade da vida contemplativa. Ademais, ele se esforça em realizar uma justa síntese das duas. Natural é que nosso pensador tome uma perspectiva em favor da vida ativa, sendo, como é, um homem de ação, engajado numa luta política pela reforma da república florentina, das repúblicas e signorie itálicas, dos Estados cristãos, da Cristandade inteira. Mas nisto ele não é em nada revolucionário, segue sim a tradição dos Padres da Igreja e dos teólogos que se esforçam de resguardar a dignidade necessária da vida prática.

Também Dante, igualmente seguindo a tradição cristã, não poderia concluir algo diferente que o primado da vida contemplativa. Primado, aliás, admitido no próprio raciocínio aristotélico. Renaudet nos informa que o livro décimo da Ética a Nicômaco afirma que a mais alta felicidade ao qual o homem pode pretender se encontra na vida contemplativa (RENAUDET, 1952: 67).

A fórmula é então, tanto para Dante quanto para o humanismo cristão em geral, a seguinte: “à vida ativa corresponde um valor elevado, mas a vida contemplativa é excelente”. A grande inovação dantesca é que, por ter um princípio mais vivo que os demais intelectuais contemporâneos no que se refere à autonomia das coisas terrestres, das coisas humanas, ele chega a estabelecer, respectivamente para as vidas ativa e contemplativa, a correspondência de duas beatitudes.

De fato é no Convivio que aparece pela primeira vez no conjunto do pensamento dantesco, embora ainda só em esboço, de forma imatura ou incompleta portanto, a inovadora idéia que na De Monarchia inspirará em Dante

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linhas claras e precisas. Aqui, efetivamente, o Florentino não chega a falar claramente em dois fins últimos entendidos enquanto duas beatitudes, mas muitos dos elementos básicos de sua teoria, como a beatitude da vida ativa e da vida contemplativa, a importância das virtudes morais e das virtudes teologais, etc., já aparecem nitidamente em diversas passagens:

“De onde, como aquela que é aqui a humana natureza não tem uma só beatitude, mas duas, qual a da vida social e a da vida contemplativa, irracional seria que aceitássemos terem aqueles (falando dos anjos) a beatitude da vida activa, isto é, social, no governo do mundo, e não terem a da contemplativa, mais excelente e mais divina” (DANTE ALIGHIERI, 1992: Conv., II, IV).

“Em verdade o uso do nosso espírito é duplo, isto é, prático e especulativo (prático significa operativo). O dom prático consiste em obrar por nós virtuosamente, isto é, honestamente, com prudência, com temperança, com fortaleza e com justiça (ou seja, as quatro virtudes morais); o do especulativo não é obrar por nós, mas considerar as obras de Deus e da natureza” (DANTE ALIGHIERI, 1992: Conv., IV, XXII).

“E assim aparece que a nossa beatitude (esta felicidade de quem se fala) primeiro a podemos encontrar, imperfeita, na vida activa, isto é, nas operações das virtudes morais, e depois, perfeita, nas operações das intelectuais” (DANTE ALIGHIERI, 1992: Conv., IV, XXII).

Feitas todas estas considerações, Dante inicia o quarto tratado e nele, sem demora, parte para a construção de uma ética: ele esboça o ideal de uma existência perfeita e nobre. Institui aqui um princípio aristocrático e um ensino restrito a alguns iniciados. Dante deixa a entender que a elevada cultura do espírito se reserva cuidadosamente a uma elite, a única capaz e digna de conduzir as multidões humanas. Verdadeiramente é a idéia de uma sociedade aristocrática, fundada e mantida pelos privilégios da inteligência. Idéia antiga, sem dúvida platônica, revivida vigorosamente em Petrarca; mas distante da humildade do Evangelho.

De fato, Dante não conseguiu jamais conciliar em sua obra a humildade cristã e a soberba humanista. Ele, como Petrarca e os humanistas do Renascimento, concorda fielmente com a tradição aristocrática do humanismo greco-romano (RENAUDET, 1952: 72).

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Não que a estirpe seja a causa da nobreza. Esta causa que, aliás, nos parece não muito bem definida por Dante (ele de fato nos diz apenas que as virtudes são o fruto da nobreza e Deus põe esta naquela alma que esteja bem assente), pode ser entendida, entretanto, pelo amor da Filosofia. Na verdade são estas pessoas que por serem singulares fazem nobre a estirpe. Vejamos nas suas palavras:

“O verdadeiro dom deste comento é o conteúdo das canções pelas quais se elaborou, o qual maximamente pretende induzir os homens à ciência e à virtude (...) Não podem deixar de exercitar este conteúdo aqueles em que foi a verdadeira nobreza semeada pelo modo que se dirá no quarto tratado; e estes são quase todos vulgares, tal como o são os nobres (...) E não há contradição no facto de que algum literato com eles alinhe; que, tal como diz o mestre Aristóteles, no primeiro livro da Ética, ‘uma andorinha não faz a primavera’” (DANTE ALIGHIERI, 1992: Conv., I, IX).

“Assim que não diga um qualquer dos Uberti de Florença, nem um outro dos Visconti de Milão: ‘Porque sou de tal linhagem, sou nobre’; pois que a semente divina não cai na linhagem, isto é, na estirpe, mas sim nas pessoas singulares, e, tal como abaixo se provará, a estirpe não faz nobre as pessoas singulares, mas estas a estirpe” (DANTE ALIGHIERI, 1992: Conv., IV, XX).

Natural é que a verdadeira nobreza humana possa apenas se manifestar onde as condições da vida social assegurem os lazeres necessários a mais alta cultura do espírito, à arte, à poesia, ao pensamento. É definitivamente preciso educar esta elite, lhe ensinar um ideal de grandeza humana. Natural também que Dante, como membro da nobreza (além evidentemente das conclusões que seu próprio raciocínio o conduziu), tenha desenvolvido princípios favoráveis à aristocracia. Estranho é que, com tudo isso, ele tenha em sua própria vida ativa, ou seja, nas disputas político-sociais internas de Florença, assumido posições contrárias aos magnate.

Mas isto se explica, simplesmente, por Dante discordar terminantemente do envolvimento destes com o Papado. Discordar das ingerências da Santa Sé na vida política florentina com o intuito de controlar a comuna e do consentimento dos magnate que, assim, permitiam, a fim destes poderem se opor ao poder crescente dos mercadores, tais interferências.

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Este humanismo aristocrático que pretendia realizar, como falamos, na cidade dos homens a mais alta forma de humanidade, quer realmente a reconhecer no filósofo cujo supremo esforço e cuja obra tinha como grande remate formular os princípios e regras de uma ética. Este tipo superior de humanidade aparece aos olhos de Dante na pessoa de Aristóteles, o filósofo por excelência, o mestre de todos os filósofos e de todo o pensamento, cuja doutrina possui uma autoridade irrefutável. O filósofo, a exemplo de Aristóteles, é de imediato o homem que percorreu todo o ciclo das ciências humanas, toda a enciclopédia dos conhecimentos que o intelecto humano, com a ajuda da experiência interpretada pela razão, pode adquirir sobre o mundo e sobre o homem.

O filósofo impõe a ele mesmo uma disciplina de exatidão crítica e de modéstia; ele está obrigado a se fazer o discípulo dos únicos e grandes mestres que constituíram as diversas ciências, a fim de recolher junto destes únicos os elementos de sua síntese. Assim nos diz Dante: “(...) em cada arte e cada mester os artífices e os aprendizes são, e devem ser, sujeitos ao príncipe e ao mestre deles, naqueles mesteres e naquelas artes”. (DANTE ALIGHIERI, 1992: Conv. IV, X).

É então somente que este homem especial pode, com a ajuda da razão, tentar perceber e de certa forma aproveitar as leis eternas por onde se exprime a ação deste Deus que os homens conhecem apenas pelos efeitos materiais de sua potência, e que o Convivio às vezes parece identificar com a ordem cósmica e natural por ela mesma, já que a “natura universal” e Deus se confundem.

Evidente que este esforço filosófico guiado pela razão já é uma obra divina, pois a razão é um elemento da natureza que ultrapassa a natureza (da ultranatureza). Pela razão, o homem participa da inteligência divina, ainda que, como vimos, Deus lhe tenha recusado, no curso da vida corporal, a plenitude das realidades da graça.

Dante quer então que o indivíduo superior e genial, do qual ele tenta traçar o modelo, seja em princípio um filósofo: que ele, diante dos problemas infinitos que pairam sobre o mundo e o homem, se comporte como um filósofo, que ele conduza sua procura e formule suas conclusões segundo os métodos racionais dos filósofos.

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Apesar disto, Dante não ignora, ou melhor, ele afirma a existência de uma outra via de conhecimento, por onde o homem, respondendo o convite da Teologia, que lhe inspira o amor e o desejo das realidades da graça, pode se engajar até o reencontro com Deus. De forma que, entre os filósofos, os únicos capazes de personificar ao mais alto estado do gênio humano, são aqueles onde a busca científica e a dialética racional se completam em uma mística.

Já no terceiro tratado, Dante analisava a noção de intelecto que ele chamou mente, onde ele reconhecia a faculdade que corresponde na alma à razão e, seguindo Aristóteles, ele a decompôs em faculdade científica, faculdade de raciocínio e de conselho, faculdade de julgamento e de invenção. Dotadas destas faculdades que Dante chamou de virtudes, o intelecto forma a parte mais nobre da alma. Mas Dante não se limita, como Aristóteles, a exaltar esta grandeza intelectual. Ele prossegue sua análise, e a psicologia aristotélica se exprime daí em diante em mística. Assim, além dos limites do intelecto, ele pensa discernir esta muito sutil e preciosa parte da alma, que ele diviniza (aquela onde se pode estabelecer, em certos momentos privilegiados, o contato entre a criatura humana e o ser divino).

Dante aqui parece se aproximar da mística especulativa do século XIV, Eckhart ou Tauler. Mas, prossegue Renaudet, entre Dante e estes místicos há uma diferença fundamental. Eles ensinam que a alma humana, pela via da meditação e da ascese, pode se elevar até o grau da simplicidade, da privação e do vazio onde, as faculdades discursivas entrando no silêncio, ela aguarda o umbral misterioso no qual surge a presença divina. Mas, aos olhos de Dante, o mais sutil ponto da alma, por onde ela se eleva até Deus, é já divino.

Dante assim se aproxima mais do misticismo das escolas antigas e pagãs. É principalmente um misticismo platônico e ciceroniano o que vemos no Convivio. A idéia central, o que Renaudet chamou de “teorema essencial do humanismo dantesco no Convivio”, é que a criatura humana pode se elevar por suas próprias potências, apenas pelo esforço de sua razão, guiado do seu livre arbítrio, até um tal grau de perfeição que Deus reconhece nele o mais sublime dos seres que ele criou. Dante aqui nos fornece inclusive os aspectos da preferência divina: Deus ama a criatura humana quando

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ela se mostra perfeita, bela, virtuosa, pronta a seguir a conduta da razão, a procurar a verdade. Deus ama a Filosofia, a contempla com predileção, pois ela realiza o tipo ideal do ser humano tal como ele preexistia na inteligência divina (RENAUDET, 1952: 76-77).

Mas qual será a recompensa divina para estes seres guiados pela razão? Dante não tarda em esclarecer. Deus lhes concede então as iluminações necessárias ao complemento de sua beleza moral e espiritual. Vejamos nas palavras dantescas:

“(...) tal como cada mestre mais ama a melhor de suas obras, assim Deus mais ama a pessoa humana óptima que todas as outras; e por isso que a sua largueza se não restringe pela necessidade de quaisquer limites, não olha o seu amor ao que é devido àquele que recebe, mas antes o supera em dom e benefício de virtude e de graça.” (DANTE ALIGHIERI, 1992: Conv., III,VI, 115).

Mas é só quando o filósofo, ao fim de sua pesquisa racional, escuta o apelo misterioso da Teologia, que Deus lhe concede voluntariamente a revelação de algo das verdades da graça. É só então que a mais sutil parte, já divina da alma, se comunica com a Divindade. Esta ascensão filosófica do espírito para o mundo das realidades inacessíveis obedece a conduta dialética amorosa do Banquete de Platão, de que Dante conhecia, pela tradição das escolas antigas e medievais, as teses fundamentais. É assim que o Convivio, banquete dantesco do pensamento puro e do amor, tomou a forma de glosas de Canzoni do qual o amor e a virtude formam a trama.

É por causa disto que, no segundo tratado, Dante comentava sobre as essências espirituais que conduzem o céu de Vênus, de onde as influências amorosas descem sobre os homens. É por isto que, no terceiro tratado, Dante expunha a significação simbólica da Canzone: Amor che ne la mente mi ragiona. O símbolo amoroso persiste no primeiro verso da Canzone que é comentada no quarto tratado: Le dolce rime d´amor ch´io solia. Talvez, num tratado que Dante não chegou a escrever, ele definisse o verdadeiro amor, que se liga às verdades divinas.

Entretanto, não é no Convivio que esta mística platônica se desenvolveu e, também, a mística que anima a Commedia é

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essencialmente outra. Esta aspiração a uma forma de conhecimento que ultrapassa a razão não obteve no Convivio a resposta aguardada. O quarto tratado vai ser todo destinado ao debate de um problema ético. Ao fim desta exaltação da Filosofia, que funda esta eterna Atenas onde se reconciliarão no conhecimento e no amor o pensamento e o ensino das diversas escolas, Dante se encontra preso por uma espécie de angústia intelectual. O mais elevado conhecimento, que é simultaneamente amor, deveria assegurar aos homens a felicidade mais plena.

Mas se está comprovado que este conhecimento não conduz jamais à verdade completa, se o desejo essencial do homem, que é de saber, permanece necessariamente insatisfeito, de que vale a felicidade humana? A via aristotélica-tomista explica que a natureza (ou seja, a vontade de Deus) exige que na vida terrena o desejo do homem se limite a medida da luz que lhe é dispensada. Se ele tenta ultrapassar esta medida, ele comete um erro, pois ele tenta um esforço que excede os limites fixados pela lei divina.

É impossível à nossa natureza, devido o que nos foi concedido da luz divina, conhecer filosoficamente o que é Deus e o que são as essências espirituais, assim não convém que o tentemos. Tal argumentação, no entanto, não convence jamais nosso pensador e sua angústia intelectual permanece sempre indissipada. Dante endereça sempre, sem saber se merece de ser deferido, um apelo desesperado à mística. Ele sabe ao menos que o amor das coisas eternas, o amor intelectual das obras divinas e de Deus, é o único que não se enfraquece jamais na alma humana (RENAUDET, 1952: 78).

O filósofo representa então para Dante o tipo superior de humanidade. Mas como ele escreveu apenas um quarto da vasta enciclopédia moral que pretendia, se ignora em que ordem ele desejava classificar as outras formas da atividade humana. Nós sabemos como ele concebia as relações entre a Filosofia e a Teologia, mas nós não sabemos como ele definia o tipo humano e vivo do teólogo, como ele concebia e definia as relações humanas do filósofo e do teólogo. Mas, ao menos, em alguns trechos do quarto tratado, ele ensaiou suas teses imperiais e inclusive desenvolveu o papel do imperador. Aparecem já aqui alguns princípios fundamentais do chamado gibelinismo dantesco: a idéia de ordenação a um

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fim terrestre único – à vida feliz, a ordinatio ad Unum (ordenação ao Uno, ao imperador), o Império como o único meio de se eliminar as discórdias e guerras e se resguardar a paz, o papel de Aristóteles e a missão providencial de Roma. Vejamos então as palavras de Dante sobre tudo isto:

“O fundamento radical da majestade imperial, conforme a verdade, é a necessidade da sociedade civil, que a um fim está ordenada, isto é a vida feliz (...) Como o animal humano não se aquiete numa determinada possessão de terra, mas sempre deseje ganhar glória (...) não podem deixar de surgir discórdias e guerras entre reino e reino, as quais são tribulações para as cidades, e para as cidades das vizinhanças, e para as vizinhanças das casas, e para as casas do homem; e assim se impede a felicidade. Pelo que, para evitar estas guerras e suas causas, convém da necessidade que toda a terra e quanto o foi dado ao género humano para sua posse seja Monarquia, isto é, um só principado, e tenha um único príncipe (...)” (DANTE ALIGHIERI, 1992: Conv., IV, IV, 154 e 155).

“(...) tal como cada oficial ordena a sua operação ao seu fim, assim existe um que todos esses fins considera e os ordena no último de todos; e esse é o timoneiro, a cuja voz todos devem obedecer. Porque manifestamente se pode ver que para a perfeição da religião universal da espécie humana convém que seja um, como que timoneiro, que, considerando as diversas condições do mundo, tenha o ofício, de todo universal e impugnável, de comandar, para ordenar os diversos e necessários ofícios. E este ofício por excelência se chama Império (...)” (DANTE ALIGHIERI, 1992: Conv., IV, IV).

“(...) é manifesto o principal desígnio, isto é, que a autoridade do filósofo sumo de que se fala seja plena de todo o vigor. E não repugna à autoridade imperial; mas ela sem esta é perigosa, e esta sem aquela é quase débil, não por si, mas pelo desacordo; assim que juntas uma como outra são utilíssimas e pleníssimas de todo o vigor (...) juntai a autoridade filosofia com a imperial, para bem e perfeitamente reger”. (DANTE ALIGHIERI, 1992: Conv., IV, VI).

“E por isso que mais doce natureza no senhorear, e mais forte em sustentar, e mais subtil em conquistar não foi nem será do que aquela gente latina e maximamente do povo santo no qual o alto sangue troiano se misturava, isto é, Roma, preferiu-o Deus para esse ofício (...) De onde não da força principalmente foi assumido pela gente romana, mas pela divina providência, que se situa acima de toda razão (...); e assim se conclui que não a força, mas a razão, e, para mais, divina, foi o princípio do império romano” (DANTE ALIGHIERI, 1992: Conv., IV, IV).

Mas, como veremos, é somente na De Monarchia que a doutrina imperial dantesca irá se desenvolver

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completamente. Esta irá representar o fecho de toda essa perspectiva “pedagógica”. Com efeito, como estudaremos melhor abaixo, determinadas gentes da nobreza, aquelas que receberam como recompensa do seu mérito filosófico o dom divino da verdadeira nobreza, deverão guiar, em suas cidades, feudos, reinos, os seus súditos à felicidade e perfeição terrestres. Mas, acima de todos, está o imperador. É ele que guiará, como ordenador do genus humanum, esses governantes-filósofos e seus súditos, a Cristandade inteira, à beatitude filosófica ou temporal.

O Convivio, obra incompleta e logo abandonada, não nos permite saber exatamente sequer como o Florentino concebia o tipo ético do filósofo. Ao menos, como vimos, a maior parte do quarto tratado foi consagrada a um longo debate sobre a verdadeira nobreza. Ele, como já comentamos, descarta resolutamente toda nobreza de raça e de origem; admite apenas a nobreza dos indivíduos que por sua excelência intelectual ou suas virtudes morais souberam se elevar a um tipo superior de humanidade. Concorda portanto com a tradição aristotélica e estóica. Mas certas almas se mostram mais aptas que outras a realizar a humanidade perfeita. É que elas possuem uma espécie de germe da nobreza.

Tal presença é entendida apenas como um dom divino. É a esta elite que cabe cultivar, em si, por intermédio de uma pedagogia da virtude, o germe sagrado, e de se elevar até ao ideal desta humanidade quase divina que Aristóteles pressentiu. Mas em Aristóteles, logicamente, este ideal permanece com um caráter filosófico e racional.

Atingindo este ponto, Dante, pensador cristão, quer introduzir, na descrição puramente filosófica da ascensão de uma alma para a mais alta grandeza, algumas noções teológicas. À esta alma que pelo seu esforço aguardava o cume da nobreza humana, o Espírito Santo concede seus dons. De outra forma, ele recebe a graça, compreendida em pleno sentido cristão e teológico. Mas esta graça não é um dom arbitrário, inexplicável, preexistente; ela recompensa um mérito.

Assim se busca, se persegue a educação de uma alma privilegiada, cujo esforço tende a nela realizar a verdadeira nobreza humana. É a este propósito que nosso pensador abre

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o debate sobre a vida ativa e a vida contemplativa que estudamos, mantendo o elevado preço da primeira e a excelência da segunda. Mas ele sabe que, ligado a um corpo mortal, a alma não alcança jamais, nem a contemplação perfeita, nem a visão de Deus (suprema essência inteligível). Daí o cume da vida ativa ser naturalmente algo do mundo; mas a contemplação, ainda que iniciada na vida terrena, só poderá se completar na outra vida, essencialmente espiritual.

Dante vai então mostrar, etapa por etapa, nas diversas idades da vida humana, o progresso de uma alma nobre para sua sublime perfeição. Na primeira, a adolescência (que vai até os vinte e cinco anos), época das incertezas e dos erros humanos, a docilidade é uma preciosa disciplina. O adolescente deve possuir a doçura, base indispensável da amizade, para a formação do caráter e do espírito. Deve ser também sensível à honra e pronto à admiração e ao respeito. Finalmente, deve também possuir beleza corporal:

“(...) esta primeira idade é porta e via pela qual se entra na nossa boa vida. A boa natureza, dá, então, a esta idade quatro coisas necessárias para se entrar na cidade onde bem se vive. A primeira é obediência; a segunda, suavidade; a terceira, vergonha; a quarta, elegância corporal (...)” (DANTE ALIGHIERI, 1992: Conv., IV, XXIV).

Na segunda idade, a juventude, que dura mais ou menos até os quarenta e que corresponde ao “auge de nossa vida”, a alma chega conseqüentemente ao pleno desenvolvimento das suas potências. Ela torna-se ao mesmo tempo temperada e forte, cortês e leal. Ela une a temperança à força; ela sente vivamente o amor humano e divino; ela pratica na sociedade dos homens a cortesia e a lealdade – representa, como Enéias no poema de Virgílio (“o nosso maior poeta”), o tipo completo de homem em pleno gozo de seu gênio e de sua virtude: “(...) A nobre natureza (...), também na juventude se faz temperada, forte, amorosa, cortês e leal: as quais cinco coisas parecem, e são, necessárias à nossa perfeição, enquanto temos respeito por nós mesmos” (DANTE ALIGHIERI, 1992: Conv., IV, XXVI).

Pelos vinte anos que seguem, com o início da velhice ou senectude aparecem outras virtudes. Estas são as virtudes altruístas. Realmente a alma que nas idades anteriores realizou sua própria perfeição, deve agora desenvolver nas outras almas tudo o que a vida pode lhe ensinar. Seu papel é então de aconselhá-las e guiar com prudência, com sabedoria e afabilidade:

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“E diz que alma nobre na senectude é prudente, é justa, é larga, e contente de dizer bem em prol dos outros, e de ouvir, isto é, é afável. (...) Após, então, a perfeição própria, que se adquire na juventude, convém chegar àquela que alumia não só a si mas também aos outros; e convém que o homem se abra como uma rosa que não pode mais estar fechada, e que tem de expandir o perfume que gerou dentro de si (...)” (DANTE ALIGHIERI, 1992: Conv., IV, XXVII).

Aos sessenta anos começa a velhice avançada ou a senilidade, o último estágio da vida. A alma então retorna mansamente a Deus. Retorna a Deus sem qualquer angústia ou temor. Dante aqui, efetivamente, desconhece os terríveis castigos eternos que logo evocará no Inferno, mas igualmente nada aparece dos esplendores do Paradiso; a morte é vista segundo a cultura clássica e a autoridade evocada é a de Túlio no De Senectude – a morte surge apenas como o porto final e de retorno, o repouso, da longa navegação da vida:

“(...) aquilo que faz a nobre alma na última idade, isto é, na senil (...) ela faz duas coisas: uma, que ela volta para Deus, como para o porto de onde ela partiu quando veio para entrar no mar desta vida; a segunda, que ela bendiz o caminho que fez, para isso que foi direito e bom e sem amargura de tempestade. E aqui é de saber que, tal como diz Túlio no De Senectude, a morte natural é para nós como que porto de longa navegação e repouso” (DANTE ALIGHIERI, 1992: Conv., IV, XXVIII).

Mas, ao fim destas meditações antigas, Dante, pensador cristão, vai introduzir algumas idéias familiares aos cristãos. Ele, discutindo então o caso de certas pessoas que, por volta do fim da vida, se impõem a regularidade monástica numa idéia de penitência, declara que para praticar a verdadeira religião de Cristo, o hábito monacal não é necessário. Ele afirma, de acordo com São Paulo, que a verdadeira religião não consiste de práticas exteriores, mas está viva no coração do fiel.

Restava ainda estudar as virtudes essenciais. O tratado que ele pretendia dedicar a justiça tentaria, dentro do quadro de uma sociedade bem ordenada, definir a mais alta perfeição das relações humanas. Mas Dante, como visto, não chegou a escrevê-lo. A razão de não tê-lo feito é explicada por Augustin Renaudet. Segundo este autor, Dante, desde então mais e mais atraído pela poesia virgiliana, que lhe aparecia simultaneamente como rica em doutrina e povoada de

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símbolos, como poeta e artista irresistivelmente cativado pelos aspectos vivos do mundo material e pelo drama da história humana, a exposição aristotélica de noções claras e distintas, não mais satisfazia seu espírito e coração.

Desde este momento definitivamente inclinado para a Teologia e profundamente atraído pela mística de São Bernardo e São Boaventura, um ideal de sabedoria helênico, ainda que concorde com o Evangelho, não lhe parecia mais capaz de instituir algo além de um humanismo por demais humano. Daí abandoná-lo e seguir um novo rumo, um recomeço sem dúvida: a Commedia (RENAUDET, 1952: 72).

Grande é o paradoxo existente entre a serenidade do Convivio e os horrores do Inferno. O abandono brusco de uma obra dedicada à cultura e nobreza humanas e o começo de uma nova, um poema onde logo surge, em mortais trevas, o pecado e o castigo, nos levam a pensar que Dante, então descontente com seu trabalho, intenta o refazer sob um outro espírito e dentro de outro estilo. Ele, que se maravilhava no espetáculo das virtudes humanas, toma uma consciência mais nítida do ódio, do erro e do pecado em que vivem estes mesmos homens. É preciso então revirar as perspectivas e introduzir em sua obra o grande “drama da humanidade”.

Sem dúvida, já o primeiro canto do Inferno marca o despertar do cristão que toma decisivamente consciência de seu pecado, de sua miséria, do pecado e da miséria moral de uma sociedade em ruínas, sem lei e sem medida. Daí em diante, nada interessa mais para Dante além de sua própria salvação eterna e, simultaneamente, a reforma intelectual, moral, religiosa e política de toda a Cristandade.

Não é, no entanto, a Commedia que marca o fecho da perspectiva “pedagógica” que o artigo traça. Como já comentado, seu fecho, triunfal, corresponde ao fecho, igualmente triunfal, da De Monarchia. É somente no final do terceiro livro da De Monarchia, dedicado a demonstrar que o poder imperial deriva diretamente de Deus, que Dante desenvolve, em linhas de clareza indubitável, a sua tese da existência dois fins últimos entendidos como duas beatitudes, sem dúvida sua maior contribuição para o conjunto do pensamento medieval.

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Nessas linhas, Dante caracteriza definitivamente o papel do imperador como o Grande Filósofo da Cristandade e, assim, o guia em última instância do gênero humano ao esplendor místico da nobreza verdadeira e da beatitude filosófica ou terrestre. Por relação ao imperador, caracteriza também o papel do papa: aquele que tem por finalidade, também em última instância, guiar o gênero humano à beatitude espiritual, à fruição de Deus. Devemos então seguir sobre os passos de sua argumentação.

Inicialmente, o Florentino nos informa que, embora tenha demonstrado (ao longo da De Monarchia) que o poder do imperador não depende do papa, até então não havia provado, senão por via de conseqüência, que a autoridade do primeiro depende imediatamente de Deus. Ele então se propõe de iniciar imediatamente tal comprovação. É então que, com o intento de demonstrar a imediatabilidade do poder imperial, que Dante institui o inovador princípio dos dois fins últimos entendidos como duas beatitudes.

Principia por uma constatação: que o homem, entre todos os seres, é o único que possui o meio das coisas corruptíveis e incorruptíveis. Se considerarmos o homem segundo uma ou outra parte essencial, a alma ou o corpo, é que ele é, respectivamente, incorruptível ou corruptível. Aqui o princípio aristotélico é evidente: é exato por ser o homem um composto de alma e corpo, um ser portanto de dupla natureza, o único entre todos os entes, é que ele terá um duplo fim; ou, da mesma forma, está ordenado a dois fins respectivos, um enquanto ser incorruptível, outro enquanto ser corruptível. É o que Paul-Laurent Assoun chamou de a antropologia dantesca (ASSOUN, 1993: 295). Vejamos as palavras de Dante:

“Se então o homem é o meio entre os corruptíveis e os incorruptíveis, como todo o meio participa da natureza dos extremos, necessário é que o homem tenha uma e outra natureza. E como toda natureza está ordenada a um fim último resulta que o homem existe para um duplo fim” (DANTE ALIGHIERI, s/d: De Mon. III, XVI).

Mas quais seriam estes dois fins? Dante não tarda em nos explanar. Estes, dados ao homem pela “inefável Providência”, são: a beatitude desta vida, ou seja, “o exercício da própria virtude”, que se figura pelo paraíso terrestre; e a beatitude da vida eterna, isto é, “a fruição da presença divina”, a qual

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não se pode chegar a virtude se não for ajudado pela luz divina, e que se estende pelo paraíso celeste.

Neste momento, Dante passa a estudar os meios necessários para que o homem alcance seu duplo fim: como são conclusões distintas, a elas chegamos por meios distintos: à beatitude terrena chegamos por doutrinas filosóficas, desde que, nosso pensador frisa bem, “sigamos os ensinamentos destas e exercitemos as virtudes morais e intelectuais”; a beatitude celeste é alcançada por meio de doutrinas espirituais, algo que está além da razão humana como Dante grifa, mas desde “que a ponhamos em prática com auxílio das virtudes teologais”.

Em mesmos termos, temos dois caminhos distintos para atingirmos estes dois fins, igualmente distintos. O primeiro destes é a própria razão humana, se encontrando plenamente expressa na obra dos filósofos; o segundo está no Espírito Santo que nos revela a “verdade sobrenatural” (ou seja, está na Revelação), se encontrando explanado nos Profetas e Hagiógrafos, em Jesus Cristo e seus discípulos. Ou seja, ele aqui nos indica as fontes dos dois saberes necessários para conduzir o homem a cada uma das duas beatitudes.

Uma questão que pode parecer controversa é que Dante nos fala aqui em doutrinas filosóficas em geral, em obra dos filósofos como um todo, mas é evidente que há, em toda sua argumentação, seja no Convivio seja na De Monarchia, uma doutrina filosófica por excelência e um filósofo entendido como mestre de todos e, portanto, a fonte fundamental que o homem enquanto corruptível deve buscar para alçar à beatitude terrena, sem dúvida alguma o peripateísmo.

Para esclarecer melhor sobre estas virtudes, morais e intelectuais por um lado, teológicas por outro, recorremos a Ernest Kantorowicz em sua obra clássica: Os Dois Corpos do Rei. Este autor nos informa que, baseando-se nos meandros do raciocínio agostiniano, os teólogos dos séculos XII e XIII reconhecem somente as virtudes infusas (teológicas) como autênticas (verae virtutes). Eles negavam, certamente, a existência de virtudes políticas ou morais (adquiridas), mas, além disso, negavam sua razão de ser sem suas irmãs teologais-infusas, porque eles não atribuíam a estas virtudes puramente humanas nenhum mérito sobrenatural autônomo e, em conseqüência, aquelas ações virtuosas, que podiam ser

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executadas mesmo por um pagão ou um infiel, não tinham nenhuma conseqüência para a Salvação.

Foi apenas Santo Tomás de Aquino que, sob a inspiração de Aristóteles, rompeu com essa tradição e atribuiu às virtudes éticas-políticas um valor pleno. Segundo ele, uma virtude política é boa em si mesma (actus de se bonus) e se uma tal ação é suscitada pela graça, ela será ainda mais digna de mérito. Dante, “discípulo fiel ainda que indisciplinado de São Tomás” (como literalmente aponta Kantorowicz), aceita plenamente sua doutrina enquanto considera um ato de virtude política como de se bonus; mas vai muito além disso.

Santo Tomás se contenta de fazer a distinção entre virtudes intelectuais e teológicas, suas funções e fins, sem romper uma unidade fundamental das sete virtudes (que se opõem respectivamente aos sete vícios); Dante distingue os dois grupos de virtudes. Ele as combinava com sua concepção de dois paraísos, atribuindo as virtudes intelectuais ao paraíso terrestre e as virtudes infusas ao paraíso celeste (aliás, como já vimos). Ou seja, as rotas para os paraísos são marcadas pelas sete virtudes: a do paraíso terrestre pelas intelectuais (ou éticas-políticas) - a Prudência, a Firmeza da alma, a Temperança e a Justiça; a do paraíso celeste pelas virtudes teológicas, conhecidas tecnicamente como virtutes infusae ou divinitus infusae - a Fé, a Caridade e a Esperança (KANTOROWICZ, 1989: 338-339).

Mas Dante, muito descrente da humana rigidez de princípios e, uma vez ainda, por demais temeroso da cupidez dos homens, deixa bem claro que, para que o gênero humano siga estes dois caminhos distintos e, conseqüentemente, alcance seus dois fins igualmente distintos, é necessário um duplo poder diretivo. Vejamos o que ele nos diz: “(...) estas conclusões, e estes meios, digo, seriam desprezados pela cupidez humana, se os homens, como cavalos selvagens, não fossem obrigados na sua bestialidade vagabundante a manter-se no caminho direito 'pelo chicote e pelo frei” (DANTE ALIGHIERI, s/d: De Mon., III, XVI). Assim Dante nos apresenta nesta passagem, de forma límpida, a razão que o leva a evocar a necessidade de guias: simplesmente sua preocupação com a iniqüidade humana quando falta um efetivo controle. Os dois condutores serão,

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naturalmente, o imperador e o papa. O imperador que, de acordo com as lições da filosofia, dirige o gênero humano à felicidade temporal e o papa que, segundo a Revelação, guia o homem à vida eterna. Assim a idéia de ordenação ao Uno (ordinatio ad Unum), que no Convivio (igualmente no primeiro livro da De Monarchia) se aplicava ao imperador somente, passa agora a ser empregada também em relação ao papa.

São efetivamente duas ordenações distintas a dois chefes últimos. É como nos diz Etienne Gilson. Este grande estudioso da filosofia medieval observa que, da mesma forma que há em Dante duas finalidades e dois meios que são últimos, cada um em sua via, há também dois poderes, últimos e supremos cada um na sua. Acima de um e de outro há apenas Deus. A Monarquia de Dante anunciava assim um universo regido no temporal por um imperador único e no espiritual por um papa único, isto é, ela anunciava o acordo, sob a autoridade suprema de Deus, de dois universalismos justapostos (GILSON, 1995: 720).

Hans Kelsen observa que em Dante, o poder imperial aparece como uma determinada concessão que provém do povo romano. Esta, correspondente à tradição germânica, considera a posição do soberano como ofício, que comporta não apenas direitos mas também deveres. Trata-se do que Dante chama de “officium Monarchiae” ou “officium deputatum imperatori”. Tal ofício visa o serviço e o interesse de toda a coletividade que, naturalmente, corresponde a Cristandade inteira (KELSEN, 1974: 106-109).

Como vimos acima, para Dante, o imperador é, no que respeita às coisas terrestres, o educador da Cristandade, devendo assim dirigi-la, a partir dos ensinamentos da filosofia aristotélica, à felicidade e perfeição temporais, à beatitude desta vida. Este papel, isto é, o de Mestre, é também compreendido enquanto um ofício, não a totalidade do ofício imperial, mas o seu ofício por excelência.

Dante Alighieri passa então, imediatamente, a identificar o ambiente necessário, algo como uma precondição essencial, para que esta felicidade temporal possa de fato ser conquistada e que, conseqüentemente, é o principal objetivo do “curador do orbe”. Observemos nas palavras do Florentino:

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“E como a este porto nenhuns ou poucos, e mesmo assim com extrema dificuldade, podem chegar, se o gênero humano não desfruta da tranqüilidade da paz, que é o apaziguamento de todas as paixões enganosas, o fim que mais deve procurar servir o curador do orbe, chamado príncipe dos Romanos, é que nesta habitação mortal se viva livremente em paz” (DANTE ALIGHIERI, s/d: De Mon., III, XVI).

Finalizando sua demonstração, Dante fornece o derradeiro argumento que prova a imediatilidade divina da autoridade imperial. Este argumento encontra-se baseado no fato de que, para Dante, o imperador é a ligação entre o macrocosmos e o microcosmos, entre o Céu e a terra.

De fato, para Alain de Libera, o imperador dantesco é o nexus mundi. A filosofia política de Dante corresponde a uma visão muito particular não apenas da alma humana (a do composto aristotélico, como vimos), mas também do cosmos. O monarca perfeito é aquele que assegura a comunicação do mundo de cima, dos astros e das configurações astrais, com o mundo de baixo, das ações e das paixões humanas. Tudo se ordena em torno desse vínculo privilegiado que é uma continuação ou emanação da ordem cósmica no mundo dos homens (DE LIBERA, 1998: 451).

O imperador é então o elo de ligação entre os dois mundos. Tal elo realiza-se na prática através da função a qual só ele está investido, a de ser o representante, não só de Cristo (vicarius Christi), mas do próprio Deus (vicarius Dei), sobre a terra. Para Dante, o mundo terreno deve ser organizado segundo os padrões celestes para que a liberdade e a paz triunfem. Deus, o organizador dos céus, deve assim dispensar diretamente as doutrinas que embasarão a ação política do seu vigário na organização do mundo. Vejamos nas palavras de Dante:

“Como a disposição do mundo é conseqüência da posição dos astros no firmamento, segue-se que para que as doutrinas de liberdade e paz sejam aplicadas adequadamente pelo curador do mundo aos diversos lugares e tempos, devem as mesmas ser dispensadas por Aquele que presencialmente intui a total disposição dos céus” (DANTE ALIGHIERI, s/d: De Mon., III, XVI). A frase seguinte é decisiva: “(...) só Deus elege, só Deus investe, porque só Deus não tem superior”(DANTE ALIGHIERI, s/d: De Mon., III, XVI).

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Assim, Dante, em um mesmo golpe, além de afastar de vez as pretensões papais com relação à tutela do poder imperial, rechaça também alguma que poderia ter os príncipes germânicos. Diz claramente que estes últimos, em vez de eleitores, deveriam se chamar “reveladores da providência divina”, lhes retirando assim qualquer iniciativa no processo. E se há desacordo entre os “reveladores”, isto mais uma vez se explica pela cupidez, obscurecedora dos espíritos, que os faz não discernir bem para onde se dirigem as irradiações divinas.

Assim não se admite mais dúvidas: “(...) a autoridade temporal do Monarca desce sobre ele, sem qualquer intermediário, desde a fonte da autoridade universal: fonte que, no cume da sua simplicidade, por múltiplos veios se derrama em abundância de bondade” (DANTE ALIGHIERI, s/d: De Mon., III, XVI).

Mas como conciliar esta perspectiva, ou seja, a da imediatilidade divina do poder imperial com a idéia de concessão popular vista mais acima? Na realidade, dizer, segundo a percepção dantesca, que o poder imperial provém diretamente de Deus, não significa dizer que não haja nisto a mediação dos romanos, mas antes que o poder imperial não é uma concessão dos papas ou dos príncipes germânicos. A origem do poder imperial é diretamente divina porque é Deus quem inspira os romanos e, assim, estes são o instrumento de Deus quando escolhem o imperador. O papa não tem nenhum papel aqui e o papel dos príncipes é desprovido de qualquer iniciativa. Com efeito, tal escolha não se faz diretamente, mas através do colégio representativo dos príncipes eleitores, ou melhor, dos príncipes reveladores que, desta forma, como falei acima, apenas tornam visível ao povo romano e a cada um de seus cidadãos a vontade divina, quer dizer, a velada vontade consensual dos próprios romanos.

Antes de encerrar o ensaio político, Dante fez, porém, uma ressalva: há um campo em que o imperador deve ser submisso ao papa. É exato pelo fato da felicidade mortal estar de certo modo ordenada à felicidade imortal, que a natureza precisa da iluminação da graça, que César deve ter por Pedro “o respeito dum filho primogénito por seu pai” (DANTE ALIGHIERI, s/d: De Mon., III, XVI).

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Em nossa leitura, Dante pretende dizer que, simplesmente, tal submissão se dá tão e só ao nível de todas as coisas espirituais, domínio em que o papa é o único guia e senhor. Embora não esteja claramente expresso no texto dantesco, nos parece estar subentendido a veracidade da recíproca: que em todas as coisas terrenas, o papa, como súdito do imperador, está a ele diretamente ordenado e, portanto, lhe deve igual submissão. É, de fato, como nos revelou Gilson: dois universalismos justapostos.

A premissa fundamental da De Monarchia é que Dante, baseado em Aristóteles, atribui a comunidade humana um fim moral e ético que é um “fim em si”, para-eclesiástico e então independente de uma Igreja que tem, por sua vez, fins próprios. Em outras palavras, Dante cria todo um setor do mundo independente, não somente do papa, mas também da Igreja e, virtualmente, mesmo da religião cristã - um setor do mundo atualizado no símbolo do paraíso terrestre. Em verdade, a felicidade terrena servia ao mesmo tempo de propileu da felicidade eterna, uma vez que a perfeição do homem em Deus três em um e no paraíso eterno era precedida por sua perfeição no paraíso terrestre, sua perfeição em Adão.

Mas o homem enquanto homem não tem necessidade do apoio da Igreja para chegar a uma beatitude filosófica, à paz temporal, à justiça, à liberdade, à harmonia. Para Kantorowicz isso só foi possível porque a “cirurgia metafísica de Dante” foi mais longe que a dos outros que, antes dele, tinham destacado o Império do conjunto da Igreja, distinguido a razão filosófica da teológica e colocado em questão a unicidade da “alma intelectual”, religando, de alguma forma, o intelecto ao Estado e deixando o cuidado da alma à Igreja. Dante efetivamente não opunha a Humanitas à Christianitas, mas ele as separava completamente uma da outra; ele extraia o “humano” do complexo cristão e o isolava completamente (KANTOROWICZ, 1989: 334-336).

Ao nosso ver, muito apesar da grande densidade e meticulosa argumentação da análise desenvolvida sobre Dante nos Dois Corpos do Rei, Kantorowicz aqui claramente exagera muito. Um dos princípios básicos de Dante (como do pensamento medieval como um todo) é o da unidade, em se preservar a unidade. Conseqüentemente não podemos ver nele nenhuma

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idéia de separação radical como Kantorowicz salienta; mas apenas, a partir do reconhecimento de uma determinada dualidade, um desejo de distinção.

Com efeito, para Alain de Libera a idéia-força de Dante é que a sociedade cristã é dual, que isso não compromete sua unidade, mas ao invés a reforça. O homem é uno e duplo, a sociedade na qual ele vive deve sê-lo também (DE LIBERA, 1998: 453).

De fato, em toda a Idade Média o Estado está para a Igreja assim como a filosofia está para a teologia e como a natureza está para a graça, ou seja, “toda a doutrina medieval tende a absorver o Estado na Igreja, a distingui-lo dela da mesma maneira e com as mesmas nuanças com que tende a absorver a filosofia na teologia e a natureza na sobrenatureza, e a distingui-las” (GILSON, 1995: 308 e 309).

Dante efetivamente distingue primeiro para unir depois, ou, da mesma forma, ao distinguir o Império da Igreja, ele tem a finalidade criar um ambiente favorável, pela paz e harmonia que se entenderia pelo mundo quando não mais houvesse a confusão dos dois, para, a partir daí, se poder construir uma efetiva unidade do gênero humano, já que paz e harmonia são, com vimos, precondições básicas para o perfeito desenvolvimento do homem.

O que nos parece, em última análise, é que na ânsia de utilizar Dante como fecho de sua obra e estudo clássicos, Kantorowicz acaba vendo em seu pensamento princípios no mínimo inapropriados para um medievo.

Finalmente, devo esclarecer dois pontos. Por um lado, para Dante as duas beatitudes não estão situadas no mesmo plano de importância: a terrena é logicamente inferior à celeste. Apenas não existe em Dante um princípio de hierarquização, a subordinação de uma a outra: as duas beatitudes são vistas como os cumes de duas vias, a filosófica e a teológica. Dois caminham que, entretanto, se associam. A perfeição terrena, como Kantorowicz observa acima, aparece como um estágio inicial necessário, a pré-condição para a perfeição eterna. Também esta última completa e consagra a primeira. Em outras palavras, o dom da verdadeira nobreza, concedido por Deus como recompensa do esforço filosófico é fundamentalmente necessário para, como o auxílio da

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Teologia, levar a alma à fruição divina, e esta última é a consagração final de uma vida filosoficamente perfeita.

Por outra, o fim último terrestre, racional, filosófico, é já plenamente sagrado. Ele é uma santidade da natureza, que não se confronta com a Santidade, puro dom da graça, mas, ao inverso, como falamos acima, por um lado é sua pré-condição para o desenvolvimento da alma e, por outro, prepara já esta alma, para que a graça complete e dignifique ainda mais a santidade da natureza. São portanto duas santidades, cumes de duas bem-aventuranças, efetivamente duas beatitudes.

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Referências Documentais

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Referências Bibliográficas

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