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  • MDIA E IMAGINRIO

    Projeto, Produo e CapaColetivo Grfico Annablume

    Conselho EditorialEduardo Peuela CaizalNorval Baitello junior

    Maria Odila Leite da Silva DiasCelia Maria Marinho de Azevedo

    Gustavo Bernardo KrauseMaria de Lourdes Sekeff (in memoriam)

    Pedro Roberto JacobiLucrcia DAlessio Ferrara

    1 edio: agosto de 2012

    Gustavo de Castro

    ANNABLUME editora . comunicaoRua M.M.D.C., 217. Butant

    05510-021 . So Paulo . SP . BrasilTel. e Fax. (011) 3539 0226-6764 Televendas 3539 0225

    www.annablume.com.br

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao - CIP

    C355 Castro, Gustavo de, Org.Mdia e imaginrio. / Organizao de Gustavo de Castro. Introduo

    de Srgio Dayrell Porto. So Paulo: Annablume, 2012. 214 p. ; 14x12 cm

    Linha de pesquisa Imagem e Som, do Programa de Ps-Graduao em Comunicao da UnB

    ISBN 978-85-391-0425-3

    1. Lingustica. 2. Comunicao. 3. Linguagem Miditica. 4. Mdia. 5. Imaginrio. 6. Anlise do Discurso. 7. Braslia. I. Ttulo. II. Porto, Srgio Dayrel. III. Kamper, Dietmar. IV. Wulf, Christoph. V. Dravet, Florence. Vi. Montoro, Tnia. VII. Madeira, Lavinia. VIII. Ferreira, Clodomir. IX. De-sidrio, Plbio. X. Oliveira, Selma. XI. Renault, Letcia. XII. Silva, Gislene. XIII. Vincent, Frdric. XIV. Castro, Gustavo de, Organizador.

    CDU 82.0.03CDD 418

    Catalogao elaborada por Ruth Simo Paulino

  • La imaginacin es un msculo como otrocualquiera y hay que desarrollarlo.

    Laura Gallego

    O mundo se torna uma fbula.Friedrich Nietzsche

    Imaginar uma lmpada at acend-la.Roberto Juarroz

    A imaginao, a poesia e a fantasiaso mdias porque transportam o homem para estados supra-reais. So canais que

    irrigam a realidade, o pensamento e a ideia. Eugenio Montale

  • Sumrio

    Primeiras linhas 00Srgio Dayrell Porto

    Abertura s linhas imaginrias 00Gustavo de Castro

    1. Imagem 00Dietmar Kamper

    2. Imagem e fantasia 00Christoph Wulf

    3. Imaginrio, literatura e mdia 00Gustavo de Castro

    4. Imaginrio e narrativa 00Selma Regina Nunes Oliveira

    5. O imaginrio da linguagem entre logos e mythos 00Florence Dravet

  • 6. A cincia no imaginrio miditico 00Lavina Madeira Ribeiro

    7. Imaginando o tringulo: msica, comunicao e histria 00Clodomir Ferreira

    8. O imaginrio, o sensvel e o jornalismo 00Gislene Silva

    9. O imaginrio, web e telejornalismo 00Letcia Renault

    10. Imaginrio inicitico, imerso e cibersociabilidade 00Frdric Vincent

    11. Mito e imaginrio na telenovela 00Plbio Desidrio

    12. Imagens e imaginrios de Braslia no cinema 00Tnia Montoro

  • Primeiras linhas

    Michel Foucault, em seu livro A Ordem do Discurso (1971), nos fala da figura do sujeito fundador. Da imagem extrada da sua conscincia filosfica e potica, a que o tradutor chamou de sujeito fundante, refere-se funo primordial do sujeito identifi-cado com a ideia de que o universo est repleto de lugares vazios e que cabe a esse sujeito fundador o preenchimento desses espaos, utilizando-se da linguagem de que possuidor nato.

    As intuies, as iluminaes, os conceitos, as ideias, as ima-gens, as proposies, as frases, as sentenas, as oraes, os discur-sos, as narrativas que o sujeito fundante capaz de fazer e ter, esto a para preencher essa enorme lacuna do mundo, mundo vazio, por mais que a notcia e a informao queiram trazer para si o direito roubado de que nunca elas sero demais, por mais, outros vazios, elas possam causar.

    So Joo, o evangelista do quarto evangelho, que o mesmo So Joo, o escatologista do apocalipse, preenchendo os espaos vazios em torno de Jesus Cristo vivo e amigo, portando-se como sujeito fundador nos traz as seguintes imagens que j pr-exis-tiam em sua conscincia de poeta:

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    No princpio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus e o ver-bo era Deus. No princpio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito. E o que foi feito nele era a vida, e a vida era a luz dos homens; e a luz brilha nas trevas, mas as trevas no a apreenderam Prlogo do evangelho de So Joo, versculos 1 a 4.

    Imagens tambm que j ocupavam seu imaginrio apocalp-tico e escatolgico:

    Depois disso, tive uma viso: havia uma porta aberta para o cu, e a primeira voz, que ouvira falar-me como trombeta, disse: sobe at aqui, para que eu te mostre as coisas que devem acon-tecer depois destas. Fui imediatamente movido pelo Esprito: eis que havia um trono no cu, e no trono Algum sentado... O que estava sentado tinha o aspecto de uma pedra de jaspe e cornalina, e um arco-ris envolvia o trono com reflexos de esmeralda Joo, Apocalipse, cap. 4, vers. 1 a 4.

    Este Mdia e Imaginrio, livro contendo artigos de profes-sores e alunos ligados linha de pesquisa Imagem e Som, do Programa de Ps-Graduao em Comunicao da UnB, alm de outros autores do Brasil e do exterior, percorre as linhas imagi-nrias de alguns vazios, sempre carentes, que compem o espao do comunicador de hoje: a prpria imagem, a literatura, a mdia, as narrativas, os discursos, a linguagem em si, o logos, os mitos, a cincia, o jornalismo, a rede web, o telejornalismo, a ciberso-ciabilidade, a telenovela, o cinema, a cidade, Braslia. Em sua leitura notamos a encarnao, cada um sua maneira e com suas imagens idiossincrticas:

    O sujeito fundante, diz Foucault, com efeito, est encarrega-do de animar diretamente, com suas intenes, as formas vazias da lngua; ele que, atravessando a espessura ou a inrcia das coisas vazias, reapreende, na intuio, o sentido que a se encon-tra depositado. Na sua relao com o sentido, o sujeito fundador dispe de signos, marcas, traos, letras. Mas, para manifest-los, no precisa passar pela instncia singular do discurso.

    Termino essas primeiras linhas escritas lembrando que s coi-sas j ditas ou interditas, existem muitas imagens a dizer e a mos-

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    trar, na fluncia dos acontecimentos miditicos, cujos coment-rios so sempre fertilizados por imagens que ainda no foram ne-gociadas por seus possuidores, com seus arquivos e conscincias.

    Srgio Dayrell Porto, Braslia, 2012.

  • Abertura s linhas imaginrias

    No raro as pesquisa acadmicas no campo da comunicao desmerecem as contribuies e possibilidades analticas presentes nas teorias do imaginrio. Pouco a pouco, contudo, essa realida-de vem mudando. E muda com a crise pela qual passa a prpria noo de realidade. Erroneamente o imaginrio visto como o contrrio de realidade. Em certa medida, verdade que o imagi-nrio no trata da realidade mas de nveis de realidade: revela as suas mscaras. Neste sentido, no se ope ao real, mas o comple-menta, critica, consuma e realimenta.

    Do que j se especulou sobre o papel da imaginao e dos sonhos na Comunicao, percebe-se a existncia e a experincia de um imaginrio que abastece os sonhos e a realidade scio-miditica, ao mesmo tempo em que alimentado por elas. Ao jogo de re-troalimentao permanente e abastecimento podemos entender a complexidade da Cultura dos Media.

    O imaginrio um sistema-poema (transcultural e transco-municacional) que s pode ser acessado atravs do prprio ima-ginrio ou do pensamento simblico, ou da interpretao desse pensamento. Ele ganha significado a partir da interpretao que,

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    por sua vez, busca referncias no conhecimento do senso comum; das representaes coletivas ou dos enigmas. O imaginrio revela os aspectos profundos da realidade, desafiando qualquer outro meio de conhecimento. As imagens, os smbolos e mitos no so apenas criaes aleatrias da psique.

    O imaginrio um meio condutor do conhecimento huma-no, formado por smbolos, sonhos, ideias e mitos, enfim, pelas modalidades de sonhos produzidos pelas culturas, que se torna-ram indispensveis para a nossa vida social. S por ser caracteri-zado por Bachelard como meio condutor, j valeria um estudo no campo comunicacional.

    Com Bachelard, acreditamos que as linhas imaginrias so as verdadeiras linhas da vida, aquelas que mais dificilmente se rompem. Imaginao e vontade so dois aspectos de uma mesma fora profunda. Sabe querer quem sabe imaginar.

    Edgar Morin traa um complexo trinitrio que exemplifica a dinmica de formao do imaginrio e de sua influncia sobre a vida dita real. Esse complexo seria composto de psicosfera, socio-sfera e noosfera. A psicosfera seria a esfera dos espritos/crebros individuais. A fonte das representaes, dos sonhos e dos pensa-mentos.

    A concretizao fenomnica dos mitos, dos deuses, das ideias e das doutrinas, s possvel na e atravs da sociosfera. Nas inte-raes apreendemos iluses e verdades na mesma realidade social. Atravs da materializao dos pensamentos da psicosfera na sociosfera, alimenta-se a noosfera (noos = mente), reiniciando assim o ciclo de formao do imaginrio.

    O imaginrio na comunicao um circuito que se retroali-menta, ao passo que um dilogo e um trnsito entre psicosfera-sociosfera-noosfera alimentado pela dinmica informao-comu-nicao-conhecimentos. Neste sentido, a comunicao (esttica) engloba o estudo do sonho e da imaginao.

    Como a Comunicao, o imaginrio possui o papel de rela-cionar esprito e natureza, o interior com o exterior, as intuies com os conceitos. O imaginrio liga conceitos (entendimentos) a

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    intuies (sensibilidades) de duas maneiras: ou subordinando as intuies aos conceitos (conhecimento objetivo) ou relacionan-do-os funcionalmente entre si. quando temos o prazer esttico.

    A Comunicao, assim como o imaginrio, joga com o en-tendimento e a sensibilidade. Possui a livre legalidade da imagi-nao. A arte opera como meio de comunicao de pensamentos e sensibilidades que complementam o conhecimento objetivo, que est limitado rbita dos fenmenos, das representaes, dos conceitos, situada at mesmo alm da experincia sensvel.

    Em doze artigos, que tratam da relao do imaginrio com a cincia e a linguagem, passando pela questo da arte, do simb-lico e das narrativas, at o cinema, a publicidade e o jornalismo, este Mdia e Imaginrio se insere dentro da noo que Dietmar Kamper chamou de rbita do imaginrio: a esfera imagtica da histria humana suspensa e presente a volta que dialoga e con-trasta com a fora da imaginao (Enbildungskraft) humana, o instante criativo das imagens produzidas pela vontade do corpo (Krperdenken). Ao passo que o imaginrio permite a visibilida-de, tambm a oculta. Ao passo que o imaginrio permite a visi-bilidade, tambm a oculta. No devemos confundir imaginrio com cultura visual.

    No mapa de compreenso do imaginrio, necessitamos en-tender as relaes entre os meios de comunicao e as novas sen-sibilidades. Frequentemente associado a posturas desviantes e il-gicas, que podem parecer interessantes apenas para o domnio das artes, do espetculo e do ldico, sem qualquer valor para nossos modelos de conhecimento, o imaginrio merece nova presena. Perante universos de significao cada vez mais plurais e parado-xais, temos a necessidade da compreenso destes condutores de enganos, sentido e de saberes.

    O imaginrio no satisfao dos instintos reprimidos, nem uma reificao alienante do homem, nem o novo jugo, como cr Habermas, antes a capacidade elementar e irredutvel que cada ser humano tem de presentificar (no sentido de ter presente, a-presentar; re-presentar) uma imagem-ideia (ou vrias) em sua

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    vida. Toda imagem-ideia inicia um processo que, incessantemen-te, se reconstri, de modo que associada s outras imagens-ideias, constitui imaginrios coletivos e individuais, formando uma nova arquitetura dos saberes pessoais e grupais. Nossa proposta olhar um pouco os aspectos narrativos, fazer dialogar discur-sos cientficos, terico-metodolgicos, com discursos miditicos, produtos, obras e processos comunicacionais.

    Entre as autocrticas, a primeira a de que o tema ainda nos escapa. Este livro tenta avanar parcialmente da discusso mi-ditica, que vai da noo de imagem de imaginao, passando obviamente pela de imaginrio.

    A ideia ir ampliando pouco a pouco, para facilitar a apre-enso e o entendimento. Neste sentido, fizemos o percurso (par-tindo) da imagem, passando pelas narrativas, a literatura e a po-esia, a questo problemtica da nomeao, a msica, o canto e o encanto (mgico); mythos, logos, techn; a discusso da cincia a luz do imaginrio miditico, o audiovisual e o jornalismo; as tecno-visualidades: web, cyber, a telenovela e o cinema.

    Aqui, gostaria de homenagear Dietmar Kamper, cujo texto abre o livro. Fui seu aluno em Natal, em 1997, onde ministrou curso na UFRN, sobre histria do olhar e do imaginrio. Desde ento, passei a ler e publicar o seu trabalho. Outro agradecimen-to vai para Norval Baitello Jr., que traduziu o texto de Kamper. Ainda inspirados em Kamper, preparamos o curso Filosofia da Comunicao: Imagens, Corpos e Imaginrios, no Programa de Ps-Graduao em Comunicao, da Universidade de Braslia (UnB), ministrado de Maio a Agosto de 2010, por mim, Floren-ce Dravet e Selma Oliveira. Este curso tambm o gene ancestral da formao do grupo de estudos e pesquisas Com Versaes e do Laboratrio de Narrativas, da Faculdade de Comunicao.

    guStavo De CaStro.Vero de 2012

  • 1. Imagem

    Dietmar Kamper1

    Os versos de Hlderlin, tirados de Hiprion, O homem um deus quando sonha, um mendigo quando pensa, representam bem, em sentido literal, o significado ambivalente da imagem. A pesquisa etimolgica da palavra Bild ( imagem, em alemo) re-vela diversos significados: bilidi (do alto alemo antigo) significa, efetivamente, por um lado, signo (sobrenatural), ser, forma; e, por outro, imagem, cpia, reproduo (hoje questiona-se se o radical bil- encontrado em billig, Bilwis no significa direito, ou ainda certo, justo). Acentua-se portanto, por um lado, o meio pelo qual uma coisa toma forma, assume uma natureza qual-

    1 Doutor em Filosofia. Professor da Universidade de Marburg de 1973 a 1979. Professor de sociologia cultural e membro do Centro de Investi-gao em Antropologia Cultural na Universidade Livre de Berlim. Autor de Sobre a histria da imaginao. Hanser Verlag, Mnchen Wien, 1981, e do A Sociologia da imaginao. Hanser Verlag, Mnchen Wien, 1986. Este texto foi extrado do livro Cosmo, Corpo, Cultura. Enciclopdia Antropologica. De Christoph Wulf. Ed. Mondadori. Milano. Itlia. 2002. (Trad. Llia Lustosa. Reviso tcnica Florence Dravet).

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    quer, revelando seu poder mgico; por outro, retoma-se aquilo que representa, copia ou indica uma determinada forma original.

    Esta posio movedia entre uma ordem mgica de presena absoluta, na qual a imagem idntica ao que ela representa, e uma ordem de representao que tende negao, em que, na melhor das hipteses, se encontrar a semelhana um carimbo, um espelho, uma alegoria... Esta ambivalncia nunca se perdeu realmente. Estamos certamente acostumados a pensar uma passa-gem histrica e biogrfica partindo da magia representao, da realidade da imagem que compreende a realidade como um ser na imagem ao exerccio do desenho moderno, que no concebe outro sistema alm do que o de referncias. a isso que se referem os versos de Hlderlin. Mas estes vestgios mgicos sobrevivem at mesmo em tempos esclarecidos: na tradio dos cones das igrejas ortodoxas, na eucaristia do culto catlico, em certas tendncias poticas atuais e na Arte.

    possvel, portanto, deduzir que haja uma realidade imut-vel e hierrquica da imagem e, ao mesmo tempo, compreender melhor, a partir da, os importantes efeitos produzidos pela massa de imagens que nos inunda nestes tempos de completa abstrao. O vazio deixado ao centro das imagens no poder jamais ser preenchido pela construo da razo produtora de signos. Porm, como ningum est altura de resistir ao horror vacui2, um crculo de ersatz3 se instaura cada vez mais rapidamente. Ora, um evento que nunca aconteceu agir mais imperativamente que um ato mgico que tenha acontecido de fato.

    Nos artigos do Dicionrio Histrico de Filosofia4, a irritao causada pelos significados cintilantes da palavra Bild chega a

    2 Medo do espao vazio. Nas artes, significa preencher a obra em sua totali-dade, no deixando nenhum espao vazio.

    3 Substitutos de qualidade inferior, que no esto altura do original.4 O Historisches Wrterbuch der Philosophie um dicionrio alemo de

    termos filosficos, de 13 volumes, editado, em sua origem, por Joachim Ritter e Karlfried Grnder.

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    ser ostensiva. possvel definir as diferentes correntes de pensa-mento analisando suas posies com relao magia e represen-tao. Os termos gregos eikon e o latim imago conservam o mesmo sentido duplo que a palavra bilidi, ainda que o trabalho terico da filosofia grega e a exegese bblica judaica e crist te-nham, sem dvida alguma, acelerado o afastamento da aceitao mgica da imagem.

    Plato j havia em funo de sua falta de confiana nos poe-tas estabelecido uma diviso clara entre a ideia e a imagem, ten-do, com isso, tornado suspeitas a imaginao e suas fisionomias ilusrias. As influncias gnsticas puderam frear esta tendncia com suas hierarquias da semelhana.

    Um momento ainda mais decisivo para o destino ocidental da imaginao foi o do princpio judeu-cristo do imago Dei, in-fluenciado essencialmente pelas especulaes paulinas em torno do primeiro e do ltimo Ado.

    Eikon pode significar assim como imago a impres-so de um selo, o reflexo no espelho, a sombra de uma pessoa, logo, toda uma gama de relaes em que os graus de semelhana variam. , ento, possvel se falar de um filho como o eikon de seu pai. E neste sentido que So Paulo reclama para Cristo - ltimo Ado - a definio de imagem de Deus, e o coloca em contato com o homem ednico de antes do pecado. Surge assim um conceito na histria crist, que tem como signo essencial uma determinada verso da imagem para o Princpio e para o Fim (a saber, sua funo de espelho, refletindo o cheio como se vazio fosse), e que postula para a histria intermediria um distancia-mento seguido de uma reaproximao da realidade da imagem.

    A fecundidade eminente deste conceito no deve, no entan-to, esconder que, devido a sua falta de substncia que de fato uma relao pura! ele se abre abstrao (que ele quer evitar), como se pode observar na metfora de reflexos infinitos de Nico-lau de Cusa ou no conceito leibniziano das mnadas: um espe-lho do universo. Mas esta fecundidade conceitual nos conduz, sobretudo, a fazer da imagem um completo tabu. Constata-se,

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    ao longo da histria da filosofia, desde a Idade Mdia, que a con-cretizao do conceito de imago Dei vem acompanhada de ondas iconoclastas, sem que possamos, no entanto, falar de preconceito.

    Pode-se, ento, encontrar nesses atos de destruio violenta da imagem idolatrada uma prova ex negativo de seu poder mgi-co. Um tema que, at a Revoluo Francesa, ainda seria conside-rado pblico: ...os Girondinos estavam assim profundamente convencidos de que o mundo maldito dos reis no encontraria seu fim, enquanto eles continuassem a viver de imagens (Schra-der 1965: 15). Decapitou-se, portanto, os dolos esculpidos do poder.

    De outro lado, Francis Bacon deu incio, de certa maneira, histria da ideologia, ao definir a idola como imagens engano-sas do mercado, numa tentativa de transgredir cientificamente o mundo da iluso. A filosofia Iluminista se ops, ela tambm, presso da magia que, sob forma de fetiche, havia sobrevivido s dependncias pessoais e objetivas da burguesia. Pode-se at questionar o sucesso desta abordagem, que tenta compreender e teorizar o mercado e o poder, sobretudo depois que a crtica ideolgica mais sofisticada de todas - a teoria marxista, que pos-tulava a necessidade da aparncia social - se v atropelada pelo modelo universalista da teoria do reflexo e da reproduo, que, curiosamente, remetem especulao crist. Se no quisermos, no entanto, dar razo a uma simulao teoricamente intranspo-nvel como ncleo vazio do real, assim como afirma a arqueologia estruturalista moderna, talvez ento possamos aceitar plenamen-te a proposta de Walter Benjamin de recorrer aos monumentos, que nos permitem decifrar at mesmo a existncia profana como a um enigma. As imagens, que rasgam como um abalo ssmico constelaes histricas precisas, tm o ncleo temporal de uma dialtica imvel e permitem liberar-se de um acordo com os vencedores da Histria.

    A imagem assume, de acordo com seu significado, trs fun-es: a de presena mgica, a de representao hbil e a de simu-lao tcnica. Funes que se sobrepem e se intersectam cons-

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    tantemente. Uma substituio do real pelo imaginrio cujos efeitos so parcialmente ignorados se forma fundamentalmente na orientao humana.

    Os homens no vivem hoje no mundo. Eles no vivem nem mesmo na lngua. Eles vivem em suas imagens, nas imagens que fazem do mundo, deles mesmos e dos outros. E eles vivem mais mal do que bem nesta imanncia imaginria. Nela eles morrem. E nesse paroxismo de produo de imagens, problemas surgem enormemente. H interferncias icnicas que tornam ambguas a vida e a morte no interior das imagens. Estados de mortos-vivos ou situaes de vida moribunda se multiplicam. Esta indeciso entre se saber morto ou vivo deve-se s imagens, pelo menos a partir do momento da simulao pura sem referente. S se pode responder, ento, provisoriamente exortao de se servir dessas imagens como se fossem um tipo de tratamento de reanimao da experincia. Uma oscilao prolongada entre os dois estados dificilmente suportvel.

    Teria chegado ento a hora de sair desta caverna que ns mesmos construmos e que agora est se fechando novamente. No fcil. No parece possvel tomar emprestado o caminho do ascetismo ou de uma nova iconoclastia. Neste Fin de sicle de proibio proibio, isso parece ser, por si s, proibido. O cami-nho contrrio seria ento o do xtase hiperblico. Procuraramos escapar atravs das imagens. Tentaramos encontrar algo alm da imagem, dentro da prpria imagem. Mas como as imagens so planas, a procura pela profundidade no fcil, agravada talvez pelas perturbaes evocadas acima. O exagero da ambiguidade do homem como living dead conduz a uma image-killing, a uma fragmentao ofensiva, a uma reproduo e funcionalizao, a uma anlise, a uma banalizao, a uma canalizao, a um abc que exige, de fato, muito treino.

    A fuga para fora da caverna, fora da imanncia do imagi-nrio, seja ela agressiva ou reflexiva, evoca ainda um outro pro-blema: o reverso das imagens povoado de monstros. Para cada fugitivo aparecem aqueles monstros que lhes causam mais medo.

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    Nenhuma definio pode confront-los. E mesmo os discursos mais sofisticados no so capazes de enfrent-los. Os nicos ad-versrios desses monstros, que so gerados nos sonhos da razo e que se subordinam ao regime de poder da fantasia, so as figuras de fico. Somente a imaginao pode ajudar a lutar contra o imaginrio. Uma imaginao produtora de personagens, de apa-ries, de figuras que no pertencem ao homem individual e que trabalham de acordo com o princpio da criao da vida procria-dora. A percepo dos monstros significa, ao contrrio, a inven-o de figuras que jogam um jogo perptuo no palco da vida. O roteiro tem um valor cognitivo. No se trata de um campo suple-mentar do imaginrio, mas de uma oportunidade de aproximar criticamente as imagens, que de outra forma no seria possvel.

    Dois axiomas so necessrios para conseguirmos decifrar o que a imagem, o que so as imagens. Contra o medo da mor-te, os homens tm como nica possibilidade a criao de uma imagem. por isto que as imagens so cheias de esperana de imortalidade. A esfera de ao do imaginrio sustentada pela eternidade, e por isto que os homens sofrem sua morte antes mesmo de morrerem. Para escapar seria preciso relegar as ima-gens, encontrar um ponto alm da imagem, de onde o retorno imortalidade no fosse mais possvel. Atingir este ponto no impossvel. Os dois axiomas so muito simples: enquanto ima-gem, os homens so imortais; sem imagens, eles poderiam ser mortais.

    Mas as concluses so complicadas, em funo de suas assi-metrias e implicaes.

    A primeira imagem nasceu do medo da morte, ou mais pre-cisamente, do medo de ter que morrer sem ter vivido, bem antes da tomada de conscincia. Ela tinha por funo fechar a ferida da qual o homem surgiu. Mas esta funo irrealizvel. Cada tapa-memria chama novamente para a memria. por isso que cada imagem fundamentalmente sexual, mesmo que ela parea profundamente religiosa. Assim, a imagem pode ser quali-ficada como faz Roland Barthes de morte em pessoa.

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    Por meio do medo, a imagem desempenha um papel essen-cial na renncia aos desejos humanos. Ela substitui uma indife-rena experimentada na origem, se colocando no lugar do Mal. Ela deixa espao para a esperana de que a voz da me ressoe atravs de todas as ambivalncias. Ela segue a evoluo do sagra-do ao banal porque o segundo captulo deste domnio do medo se chama reproduo. A imagem deve se perder dentro das ima-gens. Isto no funciona. A iluso, dos dois lados, leva a dizer : aquele que encontra a imagem, se encontra em sua origem. Mas isto tambm falso. O primeiro um segundo. O corpo est diante da imagem (e da conscincia); aquele que destri a imagem, venceu o medo. Mas isto tambm falso. Porque a prpria imagem e mais ainda, as imagens uma estratgia do medo. O desejo, que quer a eternidade, penetra na imagem. Mas a vingana tambm, que rejeita aquilo que no ama no ima-ginrio, a fim de ban-lo da vida. Fazer a imagem de um corpo humano significa, ento, torn-lo imortal, organiz-lo no grupo dos mortos-vivos, dos fantasmas, dos espectros. Transformar a imagem - que se pretende substituta da imortalidade do homem - em signos e milagres eternos uma pura iluso. Estaria ento o desejo enganado? No estaria a vingana compreendendo o que est de fato acontecendo? quase isto.

    Por meio das imagens, impossvel se lembrar e se esquecer. Este limite est sempre em construo. Ou seja, o imaginrio esta vontade de esquecer que lembra, e esta vontade de lem-brar que esquece. Pode-se certamente afirmar que quanto me-nos imagens h, mais lembranas existem (em benefcio de uma imagem); e que quanto mais imagens h, menos memria existe. Mas a diferena entre imagem e imagens refere-se secundari-dade da eternidade. O corpo mortal domina finalmente. E isto pode ser experimentado.

    A imagem que se coloca no lugar da ferida deve, antes de mais nada, se transformar, ela prpria, em ferida, a fim de que a sada do imaginrio possa se tornar visvel. o que acontece aps a proibio de imagens. Existe uma voz, por detrs do espelho,

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    que se encontra atrs das cortinas. essa voz que as religies iconoclastas tentaram calar. Elas construam uma unidade que impunha o desvio do corpo e a destruio do dilogo sobre a mortalidade dos homens. Essa voz ressoa para alm do desejo (proibido) e da vingana (autorizada).

    O mais difcil , sem dvida alguma, a existncia sem ima-gem. Ter-se-ia a impresso de no existir, de no se estar aqui. Esta existncia no entraria na encenao da vida atual. A pos-sibilidade de morrer no nem um programa, nem um projeto. A existncia sem imagem um fracasso, uma renncia, uma in-sistncia na incomensurabilidade. Seria uma ancoragem na pa-lavra - falada ou ouvida -, surgida no limite do insensato; uma ancoragem na materialidade da voz, e no no que ela diz. O risco aumenta pelo fato de que as religies que probem a imagem pactuam, desde o princpio, com o sentido. A mortalidade, no entanto, oferece uma outra forma de sada do imaginrio, di-ferente daquela que o medo prope, um tipo de retorno a uma realidade que nunca existiu.

    Polissmica desde seu princpio, a imagem o Bild desig-na, assim, entre outras coisas, a presena, a representao e a si-mulao de uma coisa ausente. Alm disso, ao se examinar diver-sas misturas histricas, acentuadas cada uma delas de diferentes maneiras, notar-se- que o estado das coisas apresenta bastantes razes de diferenciao. A presena uma dimenso mgica; a representao rene os poderes da mimesis, a faculdade de mostrar as imagens como imagens, o arsenal completo de fices extremamente criativas; e a simulao evoca iluso incluindo sobre si prpria. Uma auto-iluso que floresce em contato com as leis de mercado e de troca. A coeso e as oposies entre a presena, a representao e a simulao formam o objeto e o horizonte da reflexo, mesmo que o objeto no tenha nada de objetivo, e o horizonte, nada de muito definido. Poder-se-ia, cer-tamente, desenvolver uma teoria sobre a decadncia da imagem, segundo a qual teria havido uma regresso da presena total presena vazia e morta, simulada ou refletida. Mas existem ain-

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    da argumentos por uma simultaneidade dolorosa e dificilmente explicvel destes trs elementos surgidos, sem dvida, de um es-foro de presena simulada. Seria, de toda maneira, fcil demais falar de pocas histricas unicamente por meio da imagem, sem prestar ateno influncia da atual mistura pr-histrica/me-dieval/moderna/ps-moderna/ps-histrica de produo e de recepo de imagens sobre nossa percepo. Por detrs do ho-rizonte e dentro do objeto surge o ameaador horror do vazio, o horror vacui. A matria, que as imagens representam em suas diferentes verses, a ausncia, o vazio, uma falta fundamental, e se ainda quisermos tambm a experincia da perda do ventre da me, que faz sofrer o homem prematuro por toda sua vida. Ele nasce e deve morrer. Essa conscientizao necess-ria para se poder viver a experincia da perda irreversvel, porm substituvel. As imagens so, sob essa perspectiva, substitutos do que falta, do que est ausente, sem, no entanto, jamais atingir a dignidade daquilo que substituem. , porm, justamente essa insuficincia que constitui a razo de ser de todas essas variantes e reflexes. Dado que as imagens no podem se confundir com seus objetos, existe hoje um movimento histrico no sentido de estabelecer uma organizao experimental, da qual faz parte a pesquisa sobre razes justificveis. O pensamento nasce da mes-ma fonte que produz as imagens e apresenta, portanto, grandes semelhanas com estas ltimas. A expresso fundamental fora visionria no cobre, de forma alguma, todas as diferenas que a histria inventou. Trata-se, antes de mais nada, de trs variantes das quais participam a fantasia, a imaginao e a fora visionria:

    Uma presena de esprito no sentido de uma percepo radical, que no tem nada a ver com a verdade, mas mui-to com o awareness5, a sensao de traos de uma vida corporal, atenta ao perigo e venerao;

    5 Qualidade ou estado de ser cnscio, ciente, atento, advertido.

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    Uma lembrana, que no significa um retorno a um es-tado perfeito, mas a capacidade de colocar uma coisa no lugar de outra, enquanto fico, enquanto inveno que deixa as imagens aparecerem como imagens;

    Uma iluso, estratgias ldicas que entram em acordo para colocar novamente em jogo a verdade, que se pres-tam ao ilusionismo, que colocam em cena os simula-cros e aceitam as simulaes superpostas.

    A presena, a representao e a simulao de uma ausncia apresentam diferentes resultados, que agem dentro de uma rede de interdependncias mltiplas. O mecanismo, hoje bem conhe-cido, de recriao exata da imagem autntica em uma cpia, ou ainda, a associao de simulao e presena, que contradiz o jul-gamento diferenciado do poder de representao, so duas das numerosas possibilidades de processos a serem levados em consi-derao. por esta razo que se faz necessrio tomar como tema a juno curiosamente cruzada entre visvel e invisvel. A imagem tem uma estrutura fundamental de quiasmo.

    O quiasmo significando aqui na continuidade de certas reflexes de Merleau-Ponty o cruzamento de tendncias fun-damentais que captamos na separao da imagem e do corpo. preciso deslocar a ateno, que centramos hoje na imagem, na moldura (borda exterior) e no suporte (fundo) para a forma cru-ciforme que estrutura a imagem a partir de seu interior. assim que podemos pensar, sem dvida, na Histria antes, durante, e aps os tempos modernos, o tempo da imagem mundana, se-gundo Heidegger, de maneira completa.

    A tenso viva entre estes dois polos cruzados de quiasmos, e que no apenas histrica, vai desde a imagem interna es-pcie de ilha da memria que recorda uma lembrana original mtica no passado (tradio da anamnsis e de altheia) at a imagem externa pura repetio (que no est relacionada a nada), que produz um tipo de esquecimento do esquecimento, uma tabula rasa. Mas difcil pensar que a dimenso desses

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    tempos sempre vlida, no apenas na diacronia, mas tambm na sincronia.

    O espao e o tempo so, efetivamente, na Europa, concebi-dos em cruz como templum e tempus: o espao, com suas cruzes de coordenadas (como os que podem ser encontrados em certos rituais de fundao de cidades); e o tempo, com sua cruz erigida sobre o monte Glgota (cf. a profecia de um signo que indica vitria). Essas duas cruzes vm luz novamente como vestgios de um mundo habitado e do corpo do homem desenhado. Elas se mostram atravs das imagens, parecendo at que so um nico e mesmo signo. Poderiam elas, agora que so visveis, serem retra-balhadas, modificadas, a fim de que se findem os entraves secu-lares, e que os homens possam, enfim, adotar o comportamento sereno que convm aos temas do imaginrio.

  • 2. Imagem e fantasia6

    Christoph Wulf7

    Sobre a antroPologia hiStriCa Da imagem

    Embora educao tenha sido sempre um conceito central da Pedagogia e o conceito remeta imediatamente ao significado da imagem para os processos de educao e formao, a imagem por muito tempo no foi levada em considerao na Pedagogia.

    6 Traduo: Tereza Maria Souza de Castro, Reviso: Paulo Oliveira.7 Professor de Antropologia Histrica e Cincia Educacional, membro do

    Centro de Excelncia em Representatividade das Culturas e membro do departamento de doutorado da Universidade Livre de Berlim, Alemanha. Publicaes recentes: (com Gebauer, G.) Mimesis. Culture, Art, Society (1995); Education in Europe. An Intercultural Task (1995); Violence. Nationalism, Racism, Xenophobia (1996); Vom Menschen. Handbu-ch Historische Anthropologie (1997); Education for the 21th Century. Commonalities and Diversities (1998); (with Gebauer, G.); Spiel, Ritu-al, Geste (1998). Editor chefe do Paragrana, revista transdisciplinar de antropologia histrica. Texto apresentado no Seminrio Internacional Ima-gem e Violncia, promovido pelo Cisc Centro Interdisciplinar de Semitica da Cultura e da Mdia, no Sesc Vila Mariana, em So Paulo, durante os dias 29, 30, 31 de maro e 1 de abril de 2000.

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    Com o iconic turn, a situao no campo de nossa disciplina se transformou. A imagem se tornou interessante e questionvel. O que uma imagem? uma das perguntas mais fascinantes nas cincias culturais. Em consequncia desse processo, a ima-gem se tornou, h algum tempo, um tema para a Pedagogia. Uma questo de interesse central est na imagem como fonte de pes-quisa pedaggica. Que informaes as imagens contm sobre a infncia, o relacionamento entre geraes, a escola ou a organi-zao dos processos de aprendizagem? Pouca ateno foi dada at agora pergunta sobre a inter-relao entre a viso, o surgimento de imagens e a formao de imagens interiores. Muito menos consideradas ainda foram as relaes entre as imagens filogenti-cas e as ontogenticas, entre as imagens coletivas e as individuais, entre sequncias de imagens e estruturas de imagens. Essa ques-to conduz relao entre viso, imagem e fantasia, corpo, cul-tura e Histria. Como se relaciona o mundo de imagens interior, individual, o imaginrio individual, com o mundo de imagens da cultura, do imaginrio coletivo? Tais questes remetem aos fundamentos histricoculturais, pedaggico-antropolgicos da educao e da cultura, e inauguram um campo de pesquisa ainda novo para a cincia da educao.

    FantaSia imaginao FaCulDaDe imaginativa

    A fantasia uma das capacidades humanas mais enigmticas. Perpassa o mundo da vida e se manifesta das mais variadas for-mas. Torna-se manifesta apenas em suas concretizaes. Ela mes-ma escapa a uma definio inequvoca. Fantasia abrange a capa-cidade de perceber imagens, mesmo quando a coisa representada no est presente. Caracteriza a capacidade de ver interiormente. A mais antiga meno definitria se encontra na Politeia de Pla-to. No dcimo livro do Estado a mimese do pintor definida como imitao de algo que aparece, como aparece. Em Arist-teles l-se: A fantasia um colocar diante dos olhos (pro homaton gar esti ti poiesasthai), como procede o artista da mnemnica, que

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    escolhe certas imagens, e aquilo que, como se diz, faz surgir em ns uma apario (phantasma). Na Antiguidade romana, imaginatio substitui a phantasia. Imaginatio caracteriza a fora ativa de assimilar imagens, criar imagens. Paracelso traduziu essa palavra para o alemo como Einbildungskraft (capacidade imagi-nativa). Fantasia, imaginao e capacidade imaginativa so trs definies da capacidade humana de assimilar imagens de fora para dentro, portanto de

    transformar o mundo exterior em mundo interior, assim como a capacidade de criar, manter e transformar mundos ima-gticos interiores, de origem e significado variados.

    A fantasia tem uma estrutura de quiasma, na qual interior e exterior se cruzam. Tanto Maurice Merleau-Ponty como Jacques Lacan chamaram a ateno para essa estrutura to importante para a percepo e para a produo de imagens. insuficien-te uma ideia de ver, que parta do pressuposto de que objetos idnticos a si mesmos estariam defronte do sujeito (que v) pri-meiramente vazio. Muito mais dado, no ver, algo do que s podemos nos aproximar ao explorarmos com a viso, coisas que nunca conseguiramos ver totalmente nuas, porque o prprio olhar as envolve e as cobre com sua carne... O olhar envolve as coisas visveis, as explora e se une a elas. Assim como se houvesse entre elas e ele uma relao de harmonia preestabelecida, assim como ele delas soubesse ainda antes que as conhecesse, ele se mo-vimenta de sua maneira, em seu estilo apressado e autoritrio, e contudo as vises obtidas no so arbitrrias, no observo o caos, mas coisas, de forma que finalmente no se pode dizer se o olhar ou as coisas que prevalece. Tal cruzamento entre os sentidos e o exterior percebidos por eles se realiza no apenas na viso, mas tambm no tato, na audio e a princpio tambm no olfato e na gustao.

    Portanto, a viso humana tem pressupostos. Por um lado, ve-mos o mundo antropomorficamente, isto , sob a base dos pres-supostos fisiolgicos de nosso corpo. Por outro lado, fazem parte de nossa viso pressupostos histricos, antropolgicos, culturais.

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    Isto , por exemplo: aps a inveno e a difuso da escrita, a viso se modifica com relao viso na cultura oral. De forma seme-lhantemente radical, ela se transforma atravs dos novos meios e da rapidez a eles inerente. Como mostraram as pesquisas da psicologia da Gestalt, a fantasia importante j na simples per-cepo, por exemplo na complementao da percepo. Isso vale tambm para o contexto de referncia cultural, o qual concede s coisas vistas seu significado e seu sentido. Cada ver possibilita-do e limitado histrica e culturalmente ao mesmo tempo. Dessa forma mutvel, contingente e aberto ao futuro.

    Para Lacan, o ver est arraigado no imaginrio. Lacan rela-ciona o ver a um estado pr-lingustico corporal, no qual o indi-vduo ainda no est consciente de seus limites, de sua falta. Pos-teriormente, o imaginrio passa a ter sua origem na identificao da criana pequena, de modo to intenso que a criana ainda no percebe a me como diferente de si. A fascinao da criana pequena consiste em ser impressionada pela unidade corporal da me. Como em um espelho, na totalidade corporal dela viven-ciada a prpria incolumidade e poder. Mas, ao mesmo tempo, a experincia da totalidade da me leva ameaa da prpria com-pletude e vivncia da imperfeio e da dependncia do outro. Na experincia da prpria imperfeio e limitao est tambm a origem do sujeito sexual. Para Lacan, o imaginrio com seu mun-do imagtico uma preparao para o simblico com seu mundo lingustico. Cornelius Castoriadis assume essa posio e define a relao entre os dois mundos da seguinte forma: O imaginrio deve usar o simblico, no apenas para se expressar, isso bvio, mas para existir, para se tornar algo que no seja mais apenas virtual. A loucura elaborada , exatamente como a fantasia mais secreta e mais nebulosa, feita de imagens, mas essas imagens re-presentam uma outra coisa, portanto tm funo simblica. Mas tambm, por outro lado, o simbolismo pressupe a capacidade imaginativa (capacit imaginaire), pois baseia-se na capacidade de ver em uma coisa uma outra, ou: ver uma coisa diferente do que . Na medida porm em que o imaginrio tem sua origem em

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    uma capacidade original de se ter presente, com ajuda da ima-ginao, uma coisa ou uma relao que no esto presentes (que no so ou nunca foram dados pela percepo), falaremos de um imaginrio ltimo ou radical, como raiz comum do imaginrio atual ou do simblico. Trata-se da capacidade elementar e irre-gressvel de evocar uma imagem.

    Tambm a tentativa de situar a fantasia feita por Arnold Geh-len aponta, apesar de diferenas considerveis na argumentao, em uma direo semelhante. Assim ele escreve: Com base no impulso do sonho ou dos tempos de vida vegetativa condensa-da na infncia ou no contato dos sexos, justamente onde se mostram as foras da vida por vir a ser, certamente existem, sob imagens muito variveis, certas fantasias primordiais de um pr-esboo da vida, que se sente na tendncia de um aumento de altura da forma, de intensidade da corrente: estas porm como sinais de uma identidade vital direta, isto , de um direcionamen-to a uma qualidade ou quantidade superior inerente substantia vegetans, sendo que mesmo o direito a essa distino permanece questionvel. Gehlen interpreta fantasia como projeo de ex-cessos de estmulo. Porm a fantasia talvez se antenceda aos ex-cessos de estmulo, para que o impulso vital possa esboar nela, para si, imagens de sua satisfao. De qualquer forma, na viso de Gehlen, a fantasia est ligada ao status do ser humano como ser carente, ao seu aparato instintivo residual e ao hiato entre estmulo e reao. Destarte, a fantasia est relacionada com ne-cessidades, instintos e desejos de satisfao. Porm a atividade da fantasia no se esgota nisso. A plasticidade humana e a abertura para o mundo remetem necessidade de sua configurao cultu-ral. A fantasia desempenha aqui um papel to central que o ser humano seria mais corretamente designado como ser da fantasia do que como ser da razo.

    Apesar de todas as diferenas no ponto de partida e na argu-mentao, as posies de Gehlen e Castoriadis so idnticas em sua maneira de compreender o imaginrio como uma fora cole-tiva, que gera sociedade, cultura e individualidade. Referindo-se

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    aos trabalhos tardios de Merleau-Ponty sobre o quiasma do corpo humano e sua percepo, Lacan mostrou que o imaginrio atua at nas percepes sensoriais do cotidiano do sujeito social.

    magia, rePreSentao, Simulao

    Imagens so ambguas. A suposio de que surgiriam do medo da morte, ou do medo de ter que morrer, muito antes do desenvolvimento da conscincia, no despropositada. Dietmar Kamper supe: a imagem tem a finalidade de cobrir a ferida da qual os homens se originam. Porm essa finalidade inconver-svel. Toda falsa lembrana recorda tambm. Por isso, toda a imagem a princpio sexual, mesmo quando profundamente religiosa pelo seu movimento. Por isso a imagem pode ser in-titulada (como o faz Roland Barthes) como morte da pessoa. Atravs do medo, a imagem desempenha o papel principal na distrao do desejo humano. Ela substitui a experiente indife-rena da origem. Est no lugar do primeiro mal. Primeiramente sustenta a esperana de que a voz da me vibre atravs de todas as ambivalncias. Transforma-se tambm do sagrado para o banal. Pois o segundo captulo na superao do medo chama-se repro-duo. A imagem deve se perder nas imagens. Isso no possvel.

    Em um questionamento cientfico cultural distinguem-se trs tipos de imagens:

    a imagem como presena mgica; a imagem como representao mimtica; a imagem como simulao tcnica.

    Entre esses tipos de imagens h diversas superposies. Contu-do, uma tal diferenciao apresenta-se como conveniente; ela permi-te a identificao de caractersticas icnicas distintas e parcialmente contraditrias. Das imagens que surgiram em um tempo no qual as imagens ainda no haviam se tornado obras de arte, fazem parte ima-gens mgicas, imagens de culto, imagens sacras. Hans Belting dedicou-

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    lhes ateno em sua Histria da imagem antes da era da arte. Ele ocupou-se porm apenas com a imagem de culto desde o final da Antiguidade, cujo objetivo sempre foi a representao. Imagens que conferem presena mgica a deuses so denominadas imagens de deuses ou de dolos. Elas podem ser encontradas, por exemplo, em culturas arcaicas. Antigas representaes de deusas da fertilidade em barro ou pedra so algumas delas. Gilbert Durand esboou em seu famoso livro As estruturas antropolgicas do imaginrio um cosmo imagtico cujas imagens pertencem, em grande parte, ao mundo das imagens mgicas. feita uma distino entre as imagens da ordem do dia e da ordem da noite, das quais trata nas respectivas partes de seu livro. A terceira parte dedicada finalmente a imagens fan-tsticas transcendentais. O estudo de Durand tenta representar e es-truturar grandes partes do imaginrio imagtico coletivo. Parte-se do princpio de que as transies de imagens da presena para imagens da representao so fluidas. Na mesma direo aponta o estudo de Philippe Seringe sobre smbolos na arte, na religio e no cotidiano. Aqui a fronteira da imagem como representao definitivamente ultrapassada. Imagens correspondentes a animais e seus respectivos significados so aqui apresentadas e descritas de modo breve. Do imaginrio fazem parte imagens de animais do campo (touro, boi, vaca; cavalo, burro; bode, carneiro, cabra monts; gato, co, cabra, porco; coelho, lebre, elefante, camelo). Ele abrange ainda pssaros e peixes, incorporando tambm o vegetal (a rvore da vida, palmei-ras, cedros, carvalhos; flores, rosas, lrios, ltus; cereais; frutas, etc.). Ele refere-se ao cosmo e aos elementos (fogo e luz; fumaa, nuvens, vapor; gua; terra; pedras, cavernas e grutas; sol; lua, etc.). Do ima-ginrio fazem parte imagens de construes (palcios, casas, jardins; portes, esculturas), assim como imagens de coisas abstratas (nomes, nmeros, espirais, labirintos). Cada vez mais se torna visvel o car-ter intermedirio das imagens. Elas ilustram o mundo, e com isso situam o homem. Pois nada mais ameaador do que um mundo sem imagens, do que a escurido ou a luz brilhante, posto que ambas destroem as imagens.

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    Na obra de Plato, as imagens tornam-se representaes de algo que no so. Representam algo, expressam algo, remetem a algo. Se-gundo Plato, os pintores e os poetas no produzem as ideias, como Deus, ou os objetos de uso como artesos. Geram antes manifestaes das coisas, sendo que pintura e literatura no esto restritas represen-tao artstica das coisas, mas representao artstica dos fenmenos, como eles aparecem. O objetivo, portanto, no a representao das ideias ou da verdade, mas a representao artstica de fantasmas, de fenmenos tais como aparecem. Por isso, a pintura e a poesia mimti-ca podem a princpio fazer aparecer o visvel. Trata-se aqui, portanto, da mimese geradora de imagens e iluses, na qual a diferena entre modelo e cpia no importante. O objetivo no a semelhana, mas a aparncia do que surge. Em Plato, a arte e a esttica so cons-titudas como campo prprio, no qual o artista ou o poeta o mestre. Segundo Plato, tal mestre no tem a capacidade de produzir o que existe e no se submete reivindicao de verdade que se coloca para a Filosofia e a base da Politeia. Com isso, o campo esttico ganha uma certa independncia em relao aos interesses da Filosofia, no tocante sua busca pela verdade e pelo conhecimento, ao seu esforo em encontrar Belo e Bom. A consequncia sua excluso da Politeia, que no quer aceitar o valor no calculvel de arte e literatura.

    Portanto, o processo de criao artstica objetiva a configurao de uma imagem que est diante dos olhos interiores do pintor ou po-eta. O esboo da criao se dissolve mais e mais na imagem, que surge em um meio diferente do esboo imaginado. Aqui ocorrem mudan-as, omisses, complementaes e coisas do gnero, de modo que s existe uma semelhana limitada. Geralmente, os modelos aos quais se referem as imagens e esboos dos artistas so desconhecidos, j que nunca existiram ou no foram conservados. No centro do processo artstico est a imagem, que contm referncias a modelos e surge de um processo de transformao e inovao.

    Como a relao de modelo e cpia? Esta criada por aquele? Ou como se pode entender tal relao? J na Antiguidade colocava-se a questo sobre a famosa representao de Zeus feita por Fdias, se e quando e onde teria havido um modelo. Porm, como no pode

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    ter havido um modelo para essa representao, essa imagem de Zeus nova. Surgiu no prprio processo artstico, durante o trabalho no material. Quem v a esttua reconhece a imagem, embora no se co-nhea o modelo Zeus, que antes dessa representao tambm no existia. Zuckerkandl culmina suas reflexes na afirmao de que a obra de arte seria uma imagem procura de um modelo, o qual criado para achar um modelo no esprito humano e assim cumprir seu destino de se tornar imagem. Essa imagem no inequvoca; no resposta, mas antes uma pergunta colocada pela obra de arte e que seu observador pode responder de diversos modos. Atravs da estrutura da obra de arte so produzidas imagens, contextos e inter-pretaes que s ento constituem a complexidade da obra de arte. Com isso desloca-se a relao mimtica. A obra de arte no pode mais ser compreendida como imitao de um modelo. A imitao, ou seja, uma relao da representao, ocorre muito antes entre a obra de arte e seu observador.

    O terceiro tipo de imagem definido por simulao tcnica e um novo tipo de imagem. Nos dias de hoje, tudo tende a se tornar imagem: at corpos opacos so transformados, perdem sua opacidade e espao e se tornam transparentes e fugidios. Processos de abstrao desembocam em imagens e sinais imagticos. Por toda a parte se os encontram: nada mais to estranho e avassalador. Imagens fazem desaparecer coisas, realidades.

    Alm de textos, pela primeira vez na Histria da humanidade tambm imagens so armazenadas e transmitidas para outras gera-es, em um volume inimaginvel. Fotos, filmes, vdeos tornam-se ajudas mnemnicas; surgem memrias imagticas. Se textos at ago-ra precisavam da complementao de imagens imaginadas, a ima-ginao hoje limitada pela produo de textos imagticos e sua transmisso. Cada vez menos pessoas so produtoras, cada vez mais pessoas se tornam consumidoras de imagens pr-fabricadas que prati-camente no desafiam a fantasia.

    Imagens so uma forma especfica de abstrao; sua bidimensio-nalidade destri o espao. O carter eletrnico de imagens televisivas possibilita ubiquidade e acelerao. Tais imagens podem ser divulga-

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    das com a velocidade da luz quase simultaneamente em todas as par-tes do mundo. Elas tornam o mundo uma miniatura e possibilitam a experincia especfica do mundo como imagem. Representam uma nova forma da mercadoria e esto submetidas aos princpios econ-micos do mercado. Elas mesmas so ento produzidas e negociadas, quando os objetos a que se referem no se tornaram mercadorias.

    Imagens so misturadas; so trocadas por outras, so remetidas mimeticamente a outras; nelas so tomadas partes de imagens e com-postas de outra maneira; so produzidas imagens fractais que formam novas unidades a cada vez. Movimentam-se, remetem umas s outras. Sua acelerao as equipara: mimese da velocidade. Imagens diversas tornam-se semelhantes devido a sua pura bidimensionalidade, a seu carter eletrnico e miniaturizante, apesar das diferenas de conte-do. Participam de uma reformulao profunda dos mundos imagti-cos atuais. Tem lugar uma promiscuidade das imagens.

    Imagens arrebatam o observador e o mergulham em uma tor-rente na qual ele pode se afogar. Turbilhes de imagens tornam-se uma ameaa; torna-se impossvel delas escapar; elas fascinam e ate-morizam. Dissolvem as coisas e as transportam a um mundo da apa-rncia. Ocorre uma ligao indeterminvel de poder e aflio. O mundo, a poltica e o social so estetizados. Em seu processo mimtico, as imagens procuram modelos para se equiparar a eles; so transformadas em novas imagens fractais sem contexto refe-rencial. Fascinam. Comea um jogo alucinante com simulacros e simulaes: infinita diferenciao das imagens e imploso de suas diferenas, semelhana ilimitada. Elas mesmas so a mensagem (McLuhan), o mundo da aparncia com fascinao e encanta-mento.

    Imagens se propagam com a velocidade da luz; contagiam como vrus. Em processos mimticos, levam produo de imagens sempre novas. Surge um mundo da aparncia e da fascinao que se despren-de da realidade. Como o mundo da arte e a literatura, o mundo da aparncia, ao lado do mundo da poltica, no ocupa mais o seu espao restrito; tem muito antes a tendncia a roubar o contedo de realidade de outros mundos e torn-los tambm mundos da apa-

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    rncia. O resultado a estetizao dos mbitos da vida. So produ-zidas mais e mais imagens que tm como referncia s a si mesmas, s quais no corresponde nenhuma realidade. Como consequncia ltima, tudo se torna um jogo de imagens no qual tudo possvel, de modo que tambm questes ticas adquirem significado secundrio. A tendncia sociedade cultural mostra aqui seu carter ambiva-lente. Se tudo se torna um jogo de imagens, o carter de aleatorie-dade e no-obrigatoriedade inevitvel. Numa relao mimtica, os mundos imagticos assim produzidos agem sobre a vida e levam sua estetizao. A diferenciao entre vida e arte, fantasia e realidade torna-se impossvel. Os dois mbitos se equiparam. A vida passa a ser modelo do mundo da aparncia, e este o modelo da vida. O visual se desenvolve hipertroficamente. Tudo se torna transparente; o espao degenera para uma superfcie imagtica; o tempo condensado como se houvesse apenas a presena das imagens aceleradas. As imagens atraem o desejo, armazenam-no, eliminam os limites das diferenas e as diminuem. Ao mesmo tempo, essas imagens escapam ao desejo; com presena simultnea, remetem ao ausente. As coisas e as pessoas exigem um excesso transposto em imagens. O desejo atira no vazio dos sinais imagticos eletrnicos.

    Imagens tornam-se simulacros. Referem-se a algo, equiparam-se e so produtos de comportamento mimtico. Assim, por exemplo, debates polticos muitas vezes so encenados apenas para a apresenta-o na televiso. O que acontece em termos de controvrsia poltica j est orientado para sua apresentao. As imagens televisivas tornam-se meio de debate poltico; a estetizao da poltica inevitvel. O pbli-co v a simulao de uma controvrsia poltica em cujo decorrer tudo encenado de forma a fazer com que ele acredite que o debate pol-tico autntico. Na verdade, porm, a autenticidade da apresentao simulao. Joga-se com as convices e expectativas do pblico, de modo que ele toma a simulao por autntica. Desde o incio, tudo objetiva sua prpria assimilao pelo mundo da aparncia. Na medi-da em que isso der certo, a controvrsia ter sido bem sucedida. Os efeitos polticos desejados surgem nas telas de televiso apenas como

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    simulao da poltica. A simulao mostra frequentemente maiores efeitos do que os debates polticos reais.

    Simulacros encontram-se procura de modelos, pretensas ima-gens prvias criadas s a posteriori atravs deles mesmos. Simulaes tornam-se sinais imagticos que retroagem sobre o carter das con-trovrsias polticas. Torna-se impossvel definir limites entre verdades e simulacros; a suspenso dos limites levou a novas penetraes e superposies. Processos mimticos fazem circular modelos, cpias. O objetivo das imagens no mais se igualar a modelos, mas a si mesmas. Algo semelhante ocorre em relao s pessoas. O objetivo a extraordinria semelhana dos indivduos consigo mesmos, possvel apenas como resultado de mimese produtiva e tendo como pano de fundo diferenciaes abrangentes no mesmo sujeito. A mimese passa a ser a fora determinante das imagens, de sua reproduo fractal no mundo da aparncia.

    o munDo imagtiCo interior

    O mundo imagtico interior de um sujeito social condicio-nado, por um lado, pelo imaginrio coletivo de sua cultura, e por outro, pela singularidade e inconfundibilidade das imagens origin-rias de sua histria pessoal, e finalmente pela recproca superposio e penetrao de ambos os mundos imagticos. A pesquisa biogrfica pedaggica ganhou nos ltimos anos importantes conhecimentos so-bre o papel e a funo desses mundos imagticos interiores. A seguir, gostaria de distinguir seis tipos de imagens interiores, imagens como reguladoras de comportamento, imagens de orientao, imagens de desejo, imagens de vontade, imagens de memria, imagens mimti-cas, imagens arquetpicas.

    imagenS Como regulaDoraS Do ComPortamento

    Surge aqui a questo: se e quando, e em que medida o ser huma-no est dotado de estruturas comportamentais herdadas. incontes-tvel que o hiato entre estmulo e reao caracterstico do ser huma-

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    no; mas esse fato no significa que o comportamento humano seja influenciado por imagens interiores e modelos de comportamento herdados. Nos ltimos anos, a etologia chegou a importantes conhe-cimentos sobre a eficcia de imagens desencadeadoras em relao com formas de comportamento humano elementares no comer, be-ber, na reproduo e na criao da nova gerao.

    imagenS orientaDoraS

    Socializao e educao transmitem milhares de imagens orien-tadoras, que possibilitam ao jovem se localizar em seu mundo e con-duzir sua vida. Muitas dessas imagens so de faclima compreenso e reproduo, e por isso muito eficazes do ponto de vista social. Essas imagens so pblicas; so compartilhadas por muitas pessoas; elas ligam (as pessoas) em rede; criam-se, atravs da participao em tais redes de imagens, a comunidade, a filiao, a coletividade. Sob a influncia da globalizao, essas redes de imagens ultrapassam as fronteiras das culturas nacionais e criam novas formas de conscincia transnacionais.

    imagenS De DeSejo

    Do ponto de vista estrutural, as imagens de desejo (plenas de instintos) e os fantasmas de desejos se assemelham apesar de mui-tas vezes divergirem em suas expresses concretas. Para a realizao de aes e sonhos humanos, tais imagens so de considervel impor-tncia. Frequentemente, elas tm como objetivo satisfazer desejos, ao mesmo tempo em que contm o conhecimento da impossibilidade de realizar desejos.

    FantaSmaS De vontaDe

    Enquanto fantasmas de desejo esto direcionados para ter e des-frutar, os fantasmas da vontade so projees de energia de ao. No desejo dirigido pela vontade manifesta-se o excedente de estmulo hu-

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    mano. A origem do trabalho e da cultura humanos est na capacidade de desejo dirigido pela vontade.

    imagenS De memria

    Imagens de memria so determinantes para o carter especfico de uma pessoa. So disponveis e configurveis parcialmente; em par-te subtraem-se disponibilidade para a conscincia. Muitas surgem da percepo, outras se originam de situaes imaginrias. Imagens de memria sobrepem-se a novas percepes e as configuram. So o resultado de uma seleo, na qual so importantes a represso e esque-cimento, motivado conscientemente no sentido de perdo. Imagens de memria constituem a histria de uma pessoa. So relacionadas a espaos e tempos de sua vida. Imagens de memria referem-se ao sofrimento e alegria; esto ligadas ao fracasso e ao sucesso. Voltam memria e possibilitam a simultaneidade do que j passou e consti-tuem uma ajuda contra a inexorabilidade do tempo.

    imagenS mimtiCaS

    Plato j chamou a ateno para o fato de que as imagens, en-quanto modelos, desafiam nossa capacidade mimtica. No caso dos modelos, pode tratar-se de pessoas vivas, mas tambm de formaes imaginrias. Segundo Plato, a presso para imitar to forte que (so-bretudo na infncia e adolescncia) no se lhe pode resistir. Por isso, a posio de Plato a seguinte: aproveitamento consciente de todas as imagens dignas de imitao para a educao, e excluso de todas as imagens que comprometem a educao. Diversamente de Aristteles, para quem se trata de capacitar o ser humano, atravs do confronto controlado com o indesejado, de modo a se lhe poder opor resistn-cia. Nas questes do efeito da violncia nos novos meios, ambas as posies reaparecem.

  • 43

    imagenS arquetPiCaS

    C.G. Jung determina seu significado para a vida individual da se-guinte forma: Todas as grandes experincias da vida, todas as maio-res tenses tocam por isso o tesouro dessas imagens e levam-nas a uma apario interior, a qual se torna consciente quando existe tanta autorreflexo e capacidade de assimilao que o indivduo tambm pensa sobre o que vivencia e no apenas faz, isto , sem saber, vive o mito e o smbolo concretamente. No preciso aceitar as explicaes um tanto dbias sobre o surgimento do inconscien-te coletivo e dos arqutipos para reconhecer que cada cultura desenvolveu grandes imagens ideais e de destino que influenciam a ao humana, nos sonhos e nas produes culturais.

    ConCluSeS

    A variedade do mundo imagtico interior expresso da plasti-cidade humana. uma consequncia da fantasia, que rodeia todas as formas de vida humana, seja no tocante percepo ou sensao, seja no tocante ao pensamento ou ao. Tambm a excentricidade hu-mana deve fantasia; a capacidade de se transportar para uma posi-o fora de si mesmo, e a partir dali estabelecer um comportamento face a si mesmo. Muitas vezes, essa ligao consigo mesmo tambm uma ligao que se expressa na relao de imagens com imagens. Nas imagens se manifesta a capacidade imaginativa, e em suas figuraes a diversidade cultural. Tal capacidade imaginativa tornou-se visvel nos diversos tipos de imagens. Magia, representao e simulao manifestam-se em imagens, transformam seu carter e a qualidade da fantasia que nelas se articula. Educao, formao significa tra-balhar as imagens pela via da reflexo. O trabalho reflexivo com as imagens no significa uma reduo da imagem ao seu significado, mas sim dobrar, virar, girar a imagem. Demorar-se na imagem e perceb-la como tal, conscientizar-se de suas figuraes e qualidades de sensaes, e deix-las atuar. Proteger a imagem de interpretaes rpidas, atravs das quais transformada em linguagem e significado,

  • 44

    sendo porm liquidada como imagem. Suportar a insegurana, a ambiguidade, a complexidade, sem produzir obviedade. Meditao da imagem: reproduo imaginria de algo ausente, produo mi-mtica e transformao no fluxo imagtico interior. A educao exige trabalho com as imagens interiores; isso leva tentativa de no ape-nas faz-las falar, como tambm de desenvolv-las em seu contedo imagtico. O trabalho com as imagens leva a uma exposio sua ambivalncia. Para isso necessrio concentrar-se em uma imagem, dar-lhe ateno. Trata-se de, com a ajuda da fantasia, gerar a imagem na viso interior e proteg-la contra outras imagens trazidas pelo flu-xo imagtico interior; trata-se de, com a ajuda da concentrao e da capacidade de pensar, procurar fixar a imagem. O surgimento de uma imagem o primeiro passo; fix-la, trabalhar nela, desenvolv-la na fantasia, so os passos seguintes de um trabalho consciente com imagens. A reproduo ou a gerao de uma imagem na fantasia, o demorar-se com ateno em uma imagem, no um trabalho menor do que a sua interpretao. Em processos educativos, a tarefa o cruzamento desses dois aspectos da anlise das imagens.

  • 3. Imaginrio, literatura e mdia

    Gustavo de Castro8

    Todas as formas miditicas so espaos de produo e recep-o imaginativa. Esses espaos so tambm esferas reflexivas que, quando associadas ao devaneio e ao sonho, ampliam sobretudo a expresso de uma potica que une imagem e ideia.

    As mdias so igualmente campos que podem aprofundar as criaes da imaginao, e essas criaes, quando em confronto com as coisas do mundo, sedimentam um espao no qual conver-ge poesia (mito) e filosofia (pensamento). Acerca da imaginao, partiremos da noo de Lapoujade9:

    A imaginao uma funo psquica complexa, dinmica, estru-tural; cujo trabalho (consistente) produz em sentido amplo imagens, pode realizar-se provocada por motivaes de diversas or-

    8 Professor de Esttica na Faculdade de Comunicao da Universidade de Braslia. Autor de talo Calvino pequena cosmoviso do homem, Bras-lia, Ed. UnB, 2007. [email protected]

    9 Lapoujade, Maria Noel. Filosofia da Imaginacin. Ciudad de Mxico: Si-glo XXI Editores, 1988. p.21

  • 46

    dens: perceptiva, mnmico, racional, instintivo, pulsional, afetivo, etc.; consciente ou inconsciente; subjetivo ou objetivo (entendido aqui como motivaes de ordem externa ao sujeito, sejam naturais ou sociais). A atividade imaginria pode ser voluntria ou invo-luntria, casual ou metdica, normal ou patolgica, individual ou social. A historicidade lhe inerente, enquanto uma estrutura processual pertinente a um indivduo. A imaginao pode operar volcada voltada para ou subordinada a processos eminentemente criativos, pulsionais, intelectuais, etc.; ou em certas ocasies ela a dominante e, por isso, guia os outros processos psquicos que nestes momentos se convertem em subalternos.

    Imaginao e mdia so convergentes na medida em que um depositrio e catalisador do outro, atuando em relaes de simbiose e parasitismo. Um campo rega, alimenta, consome, re-gurgita o outro com seu universo particular. Ambos possuem o aspecto criativo prprio das narrativas, depositrio de beleza e feira ordenada e desordenada; ordem e desordem fractal. O imaginrio e a mdia so duas grandes feiras de Caruaru: se voc no encontra o que procura porque no procurou direito. Ou dito de forma mais sofisticada, consideramos que so duas das principais inteligncias do contemporneo.

    O imaginrio e a mdia contm a multiplicidade que as con-tm. Ambos tomam forma reunindo em si um grande nmero de variveis. Podemos dizer que ambos evocam aquilo que talo Calvino acreditou como sendo o seu principal ensinamento arts-tico: um modo de leitura do mundo, cosmoviso que ele chamou no livro de ensaios Una Pietra Sopra, de atitude de perplexidade sistemtica.10

    Dito de outro modo, mdia e imaginrio nos convoca a uma atitude de leitura do mundo que procura unir a multiplicidade

    10 Calvino, I. Una pietra sopra. Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 1995, p.4. Ou: Assunto Encerrado discursos sobre literatura e sociedade [Una pie-tra sopra] (texto escrito originalmente em 1980)

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    dos pontos de vista a uma descrio possvel, de preferncia eco-nmica, espcie de prxis da narrao, na qual concorrem ima-gem e ideia, exatido e complexidade, silncio e palavra. Aquilo que eu tenho, a nica coisa que poderia ensinar um modo de olhar, de estar em meio ao mundo.11

    A atitude de perplexidade sistemtica requer uma con-templao inquieta, que por sua vez o estado por exceln-cia do senhor Palomar, do livro homnimo. Nas viagens, no convvio em sociedade ou nas suas meditaes, tal atitude de perplexidade somada metodologia da contemplao inquieta torna-se peremptria para a focalizao. Sem ela no podemos caracterizar senhor Palomar, nem Marco Plo, nem Marcovaldo. Muito menos talo Calvino. O olhar mvel e voltil deve consi-derar tanto aquilo que v quanto aquilo que no v, ou que v sonhando, ou que recorda ou ainda o que lhe contado.

    Tal atitude deve considerar todas as metamorfoses do campo da imagem. Nasce com isso uma ideia-imagem: o ima-ginrio mais uma atitude do focalizador de mundo do que algo, digamos, natural. Tal focalizador de mundo pode ser o humano, mas tambm pode ser a cmera, o poema, o quadro ou a cano. Dito de outro modo: preciso se entregar fanta-sia para viver a fantasia.

    Tal atitude implica uma pedagogia da imaginao, ideia que aparece nas Seis propostas para o prximo milnio: a experin-cia visual considerada como a capacidade de criar imagens de olhos fechados. A excessiva projeo de imagens da sociedade mi-ditica contempornea est ameaando essa faculdade humana fundamental que a capacidade de criar e por em foco mltiplas vises, fazer funcionar nosso cinema mental. Calvino considera que tal pedagogia deve inventar seus prprios mtodos. Sejam eles quais forem, devem levar em conta a ideia da imaginao

    11 Carta de 1960 a Franois Wahl, In: Album Calvino. A cura di Luca Bara-nelli e Ernesto Ferrero. Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 2001, p.248

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    como instrumento do saber e como identificao com a alma do mundo.12

    Estas duas direes so eixos na relao entre mdia e ima-ginrio: instrumento de saber; identificao com a alma do mundo. A imaginao como instrumento do saber trabalha com a lgica espontnea da criao de imagens, e a inteno ob-jetiva de uma formulao racional. A mdia uma porta aberta para o universo real-imaginrio, algo indomvel, do qual o ho-mem tem por desafio se aproximar, comeando por aceitar a in-finitude do conhecimento e a necessria articulao dos saberes. Essa porta a da lgica do sensvel.

    No segundo aspecto, Calvino entende que a imaginao uma forma de contato com a alma do mundo, ajusta-se mais a uma teosofia, ou a uma naturphilosophie, do que propriamente ao conhecimento cientfico, visto que ainda h uma dificuldade da cincia em dialogar com o conhecimento imaginrio. Aqui a imaginao faz parte de uma filosofia natural, evocada pelos elementos bachelarianos (terra, gua, ar e fogo). Mas Calvino, quando pensa imaginrio e mdia, est rediscutindo em muitos aspectos a fantasia de Ariosto, as sombras de Caravaggio e a rela-o poesia e matemtica de Da Vinci. Calvino parece no se filiar a nenhuma escola seno prpria fantasia.

    Calvino sabe que a luta religiosa contra a imagem sempre foi a guerra contra o artefato, contra o que se considera artificial. Era a velha noo de que s Deus seria criador. O artificial, portanto, contrariaria o poder criador divino. Desde Plato, a imagem sem-pre incomodou por ser artefato, criao humana, representao artificial gerada pelo homem. A fonte da imagem tecnolgica. Quando h exacerbao tecnolgica, h profuso de imagens. Logo, de artefatos. No entanto, bem antes de Plato, os gregos tambm conheciam a noo de imagem como phantasma ou, se

    12 Calvino refere-se neste caso a um ensaio de Jean Starobinsky publicado no volume La relations critique, Gallimard, 1970.

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    queremos algo mais concreto: os kolossos, a imagem-smbolo: era quando a pedra era dotada de vida. Obviamente: vida mgica. A phantasia estava para o cotidiano egpcio e grego, como a cincia est para os nossos dias. As pedras eram a tecnologia dos antigos.

    Calvino entende que a cincia no pode ser separada em dois polos, numa cincia do mundo exterior e outra do mundo in-terior. Alis, na busca de um conhecimento extra-individual e extra-objetivo e na compreenso de que a imaginao tambm depositria da verdade do universo, que ele escreve Palomar, o seu livro-mtodo. A experincia visual do homem na prtica peda-ggica da imaginao, para Calvino, deveria suscitar-lhe uma sabedoria antiga,13 fundada sob o signo de Mercrio, instvel e oscilante como a prpria imaginao, inclinada a trocas e inter-cmbios entre o micro e o macrocosmo, entre a psicologia e a astrologia, entre o material e o imaterial.

    A visibilidade do senhor Palomar, assim como a conferncia das Seis propostas, procura formular um modo de observao no qual sintonia, focalizao e conscincia estejam ajustadas sua ateno e ao seu esprito inquieto, e que desse ajuste possa redun-dar uma pedagogia da imaginao.

    H muitas dcadas temos as mdias como principal elemen-to propedutico da imaginao, o que ao mesmo tempo um ganho e uma perda de cognio. Ganho porque acrescenta, re-elabora, adensa, amplia o campo imaginativo. E perda porque limita, embota, padroniza, reifica o mesmo campo. Fala-se, por exemplo, nas escolas de comunicao, de uma perda da capaci-dade imaginativa. Em nossas escolas, sabemos que alimentamos pouco nossa intimidade com as sonoridades, assim como pouco explorado o imaginrio ttil, artstico ou literrio. Por outro lado, as escolas de comunicao foram empaladas pelo imaginrio tec-nolgico, o que, como todo imaginrio, uma questo ambgua.

    13 Calvino, I. Seis propostas para o prximo milnio op.cit.p.6

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    Voltemos a Calvino. A visibilidade tambm tema do senhor Palomar no captulo O universo como espelho.14 Neste captulo, so os espaos infinitos do cosmo e os subjetivos da existncia que ele contempla com inquietude. Sua dificuldade em relacionar-se com o prximo leva-o, em primeiro lugar, a procurar melhorar sua relao com o cosmo.

    Para Calvino, o imaginrio possui uma infinidade de pontos e focos aos quais o pensamento pode explorar indefinidamente, que podem ser trabalhados e retrabalhados com novas reflexes, estilizaes ou, simplesmente, deixando-se saltar de imagem em imagem, de pensamento em pensamento. O filme, o poema, o quadro, assim como o conto, pela conciso, o espao ideal para a metfora e a aluso. Como definiu Bachelard, falando do con-to: uma imagem que raciocina15.

    Lembro agora que em um filme de David Lynch, terceiro da trilogia sobre Hollywood, chamado o Imprio dos Sonhos, o dire-tor no vai procurar uma imagem da lgica do ilgico, no vai aderir ao mundo interior dos personagens, mas vai se perguntar se a imagem moderna (ou seja, uma imagem aberta e relativa em alguns aspectos, e fabricada e genrica em outros), permite ainda que as imagens existam como universo autnomo e com-plementar disso que chamamos de realidade.

    O filme nos ajuda a entender que necessrio perceber o imaginrio como um sistema aberto. Campo par excelence de imagens simultaneamente falsas e verdadeiras, da criatividade e de experincias de imagens puras ou no, simulacro da vida, guia pela busca de significados, analogias e alegorias. O imaginrio borra a fronteira entre o que seria sonho, realidade, consciente e inconsciente, muito prximo do que fazem em certos aspectos, o cinema, a TV e a fotografia.

    14 O universo como espelho. In: Calvino, I. Palomar, op.cit.p.104-10715 Bachelard, G. A potica do espao. Col. Os pensadores. So Paulo: Ed.

    Abril, 1979, p.303

  • 51

    No fcil engolir tudo isso. A discusso sobre o que a realidade em literatura e mdia, por exemplo, no pode ser feita sem a discusso da multiplicidade de nveis e esferas. Somente na soma dos nveis de realidade formaramos aquilo que chamamos de real. Aquilo que chamamos de realidade apenas um desses nveis, no necessariamente o mais verdadeiro e autntico. No necessariamente o essencial, diria Heidegger.

    comum a crtica ao imaginrio justamente neste ponto: ele des-ideologiza o real. Alguns acreditam piamente que o ima-ginrio s est dotado de fetiches, crenas, senso comum, mani-pulaes, etc. A ideia de manipulao, diz Maffesoli, pertence ao esquema clssico, fortalecido pelo marxismo, que considera o indivduo indefeso diante da imagem.

    Tal manipulao vale para o cinema de Hollywood, mas tam-bm para a televiso e a publicidade. Nesse modelo, o fundamen-tal seria passar um contedo. Trata-se, diz Maffesoli, do primado da ideologia. A forma seria apenas um suporte.

    Edgar Morin, ao contrrio, em livros como O Cinema e o homem imaginrio, mostrou que existe uma reversibilidade, um vaivm do sentido e uma re-atualizao da magia e do mito pelo imaginrio. O imaginrio e a mdia no so apenas a imposio de algo que vem de cima, um impacto, mas uma relao.

    O criador, mesmo na publicidade, s criador na medida em que consegue sentir ou captar o que circula na sociedade. Ele precisa corresponder a uma atmosfera. Perceber os vrios nveis de realidade e recri-los. O criador d forma ao que existe nos espritos e nos espaos, ao que est a, ao que existe de maneira informal ou disforme.

    A literatura, a publicidade e o cinema lidam, por exemplo, com arqutipos. Isso significa que o criador deve estar em sintonia(-de-sintonizada) com o vivido. O arqutipo s existe por que se enraza na existncia social. Assim, uma viso esquemtica, manipulatria, no d conta do real, embora tenha uma parte de verdade.

    O criador, se tiver genialidade, sua genialidade implicar na capacidade de estar em sintonia com o esprito coletivo. Portan-

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    to, concluir Maffesoli, as tecnologias do imaginrio bebem em fontes imaginrias para alimentar imaginrios.

    Cineastas, publicitrios, escritores e poetas so os verdadeiros tericos do imaginrio. Eles sabem que imaginar melhor do que teorizar sobre a imaginao, porque sabem que as aes ima-ginante e imaginativa vo alm do compreensvel. Sabem que a aura ultrapassa e alimenta a obra.

    Qualquer criador, ou seja, em termos heideggerianos, o po-eta, trata a imaginao e a poesia como mdias ou processos de passagem, esferas ou canais. Como disse o poeta Eugenio Mon-tale16: A imaginao, a poesia e a fantasia so mdias porque transportam o homem para estados supra-reais. So canais que irrigam a realidade, o pensamento e a ideia.

    Toda imagem conduz o homem para outra esfera. Eugnio Montale diz tambm que as obras de arte so mdias: Espero que amanh se compreenda a obra de arte como efetiva comu-nicao. Ele entende que a busca de autonomia (nomos = lei) e de auto-conhecimento (fim, telos), mediante a sensibilidade pen-sante da obra de arte (meio), funcionam, para o homem, como essenciais para a vida. A obra de arte meio de informao-co-municao-entendimento de realidades, mas tambm meio de incomunicao, porque tambm omite, silencia, desinforma, complexifica o enigma do real.

    Como meios de comunicao, as obras de arte so fios de continuidade que unem tempos diversos (passado e presente) a ideias diversas, histrias diversas, sentimentos diversos, focos diversos. Montale sugere a definio de Tommaso Ceva (1649-1736): Arte um sonho feito na presena da razo.

    Costuma-se achar que a natureza da poesia e da arte no dotada de reflexo miditica, ao passo que a grande variedade dos media ainda est longe de praticar um pensamento-poema. Sabemos que grande parte do fazer potico visa interrogar sobre a

    16 MONTALE, E. (De la poesia, 1995 Cap. Hablemos de hermetismo).

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    natureza da prpria atividade do poetar. Para W. Stevens o objeto misterioso da Poesia deve ser o prprio assunto do poema. Para ele o mistrio universal e o esttico/potico se confudem.

    Heidegger diz que o esttico (sobretudo a poesia) a conti-nuao do mistrio. A distino Matria e Forma quase por ex-celncia o esquema conceitual de todas as teorias estticas. A obra de arte uma forma de revelao da verdade: revelao necessria porque, subentendo-se, verdade legtima, profunda, obscurecida pela rotina que deve ser buscada/descoberta pelo artista.

    A trivialidade do dia-a-dia encobre a verdade. A arte nos li-bera da sonolncia e da semi-cegueira. A ecloso do ente da arte no um estado, mas um acontecimento. A beleza um modo de permanncia da verdade enquanto ecloso. Toda a arte es-sencialmente poema, disse Heidegger.

    A poesia no somente o modo mais alto da linguagem co-tidiana. antes um discurso de todos os dias, semelhante s mdias, que um poema escapado e, por esta razo, um poema exaurido na usura, que, devido ao excesso e ao falatrio, j no se faz ouvir, continua Heidegger. A mdia estaria assim mais para o falatrio. A poesia se aproxima por sua vez da fala e do silncio; essencialidades. Enquanto a mdia nos transporta cotidianamen-te para a trivialidade, a arte e a poesia tm a finalidade de nos arrancar da trivialidade absorvente de nossa existncia, e nos co-locar emocionados, deslumbrados, no Ser.

    Tudo isso so ideias heideggerianas. Tudo o que vive tem a natureza da dor. Dichten: ser poeta significa redizer. Dichten , na maior parte do tempo, um ouvir. mais ouvir do que proferir. O poeta escuta, sintoniza, imagina a natureza da dor, mas tam-bm a essncia do pensamento, do tempo e dos homens. A obra de arte no revela a obra de arte em sua inteireza, ela apenas canal, fio de continuidade, narrativa, frgil conexo com alguma realidade. A obra revela (ao passo que esconde) escutas, sintonias e metforas.

    A poesia a essncia do artstico. Seja ele miditico ou no. A obra de arte espiritualiza quem a faz e acaba por espiritualizar os

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    que dela tomam conhecimento. Seja isso transmitido via satlite ou reproduzido em Xerox, ou no.

    reFernCiaS bibliogrFiCaS

    BACHELARD, G. A potica do espao. Col. Os pensadores. So Paulo: Ed. Abril, 1979

    CALVINO. I. Palomar. Trad. Ivo Barroso. So Paulo: Cia das Letras, 1994.

    ___________. Seis propostas para o prximo milnio lies america-nas. Trad. Ivo Barroso. So Paulo: Cia das Letras, 1990.

    ___________. Una pietra sopra. Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 1995

    ___________. Assunto encerrado. Trad. Roberta Barni. So Paulo: Cia das Letras, 2006.

    HEIDEGGER, Martin. Caminhos de floresta. Lisboa: Fundao Ca-louste Gulbenkian, 1998 (ed. or. 1959a).

    ___________. Caminhos de campo. So Paulo: Duas cidades, 1972 (ed. or. 1949).

    ___________. Para qu Poetas? IN: Caminhos de Floresta. Lisboa: Calouste-Gulbelkian, 2000.

    ___________. Hinos de Hlderlin. Lisboa: Instituto Piaget, 1999b (ed.or. 1939).

    ___________. Todos ns...Ningum. So Paulo: Ed. Moraes, 1981.

    ___________. Ensaios e conferncias. Petrpolis, RJ: Vozes, 2001 (ed. or. 1954).

    ___________. A caminho da linguagem. Petrpolis, RJ: Vozes, 2003 (ed. or. 1959).

    LAPOUJADE, Maria Noel. Filosofia da Imaginacin. Ciudad de Mxi-co: Siglo XXI Editores, 1988.

  • 55

    MAFFESOLI, M. Entrevista. O imaginrio uma realidade. Revista Fa-mecos, Porto Alegre, n 15, agosto 2001.

    MONTALE, E. De la poesia, Barcelona: Pr-Textos, 1995.

  • 4. Imaginrio e narrativa

    Selma Regina Nunes Oliveira17

    Parafraseando o dramaturgo Plauto18: homo homini narratus est ou o homem o narrador do homem. Ele narra a si, ao mesmo tempo em que narrado por outrem. De acordo com Roland Barthes19:

    a narrativa est presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa comea com a prpria humani-dade; no h, no h em parte alguma, povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos tm suas narrativas, e frequentemente estas narrativas so apreciadas em comum por ho-

    17 Doutora em Histria. Professora do Departamento de Audiovisual e Pu-blicidade, da Faculdade de Comunicao, da Universidade de Braslia.

    18 Tito Mcio Plauto (230 a.C. - 180 a.C.) foi um dramaturgo romano que viveu durante o perodo republicano. de sua autoria a frase homo homini lupus est o homem o lobo do homem, extrada da pea Asinaria (um dos mais antigos textos do latim) e popularizada pelo ao filsofo Thomas Hobbes.

    19 Introduo Anlise Estrutural da Narrativa in Anlise Estrutural da Nar-rativa, 1971:18.

  • 58

    mens de cultura diferente, e mesmo opostas; a narrativa ridiculariza a boa e a m literatura; internacional, trans-histricas, transcultu-ral, a narrativa est a, como a vida.

    Em suma, o homem existe no somente porque narrador, mas, principalmente, porque personagem, enredo (conflito), lugar (lcus) e tempo (cronolgico ou psicolgico); ele escreve e se inscreve socialmente pela narrativa.

    Ao adotarmos a contemporaneidade stuartiana como cenrio narrativo, entendemos os anos sessenta como marco da moder-nidade tardia e, consequentemente como ruptura do paradigma da identidade nica. Nesse sentido, Stuart Hall20 argumenta que:

    Um tipo diferente de mudana est transformando as sociedades modernas do final do sculo XX. Isso est fragmentando as paisa-gens culturais de classe, gnero, sexualidade, etnia, raa e naciona-lidade que, no passado, nos tinham fornecido slidas localizaes com indivduos sociais. Estas transformaes esto tambm mu-dando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de ns prprios como sujeitos integrados. Essa perda de um sentido de si estvel chamada, algumas vezes, de deslocamento ou des-centrao do sujeito. Esse duplo deslocamento descentrao do indivduo tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos constitui uma crise de identidade.

    A compreenso da identidade como uma celebrao mvel e, como sugere Hall21, lcus no qual o sujeito assume identi-dades diferentes em diferentes momentos e no unificadas ao redor de um eu coerente, permite-nos induzir que as mltiplas identidades desse mesmo sujeito so narrativas produzidas no co-tidiano. Sendo assim, a partir da afirmao de Stuart Hall, vamos traar o esboo da seguinte proposio: o sujeito da contempora-

    20 A Identidade Cultural na Ps-Modernidade, 2005: 9.21 Idem, 2005: 13.

  • 59

    neidade , por fim, o narrador e personagens, criador e criatura, Homini Narratus Habilis.

    Temos ento um sujeito cujas identidades so plasmadas em suas e por suas narrativas perceptuais (afetos e sentidos) e fsicas (materiais). O Homini Narratus Habilis constri suas identida-des medida que narra e narrado. Ele cria textos e imagens de si, possui texturas diversas e engendra suas tessituras assim como as de outros indivduos. Ele produz e produzido por seu imaginrio (imago, imaginis, imagografia22, imagofagia23). Ele constitudo por um ncleo narrativo e constitui a rede narrativa de outros sujeitos (imaginrio potencial/ virtual24), em diferentes esferas fsica, miditica e digital. O indivduo contemporneo sujeito convertido em simblico que se transforma em diablico e vice-versa.

    22 Escrever em imagens composio livre da pesquisadora a partir dos ter-mos imago e grafia. Lat. imgo,nis semelhana, representao, retrato, pelo genit., cp. imago; ver imag-; f.hist. sXIII imagem, sXIII ymagem, sXIII omagem. E graf(o)- + -ia; f.hist. 1858 grapha pospositivo, conexo com -grafia escrita, escrito, ver, em compostos der. dos subst. l relacionados com a noo de pessoa ou coisa que escreve, descreve, convenciona e afins (como aneroidgrafo, gegrafo, dactilgrafo, musicgrafo, estengrafo etc.); em profisses muito modernas, h a tendncia (por influxo do ing.) de dominar -grafista, ver; h uma constelao morfossemntica conexa, em-bora sem alguns elos explicitados (constituindo estes, assim, fonte de pal. virtuais ou potenciais): grafo:-grafia:-grfico.

    23 Comer imagens composio livre da pesquisadora a partir dos termos imago e phagos. pospositivo, do gr. -phagos, de phagin, inf. aor. de esthein comer + o suf. -ia, formador de subst. abstratos, em comp. gregos, j formados analogicamente a partir do Renascimento: acridofagia, afagia, androfagia, antropofagia, autofagia, bacteriofagia, creofagia, disfagia, hipofa-gia, homofagia, necrofagia, opiofagia, polifagia, sialofagia, zoofagia etc.; ver fag(o)-

    24 No sentido empregado por Pierre Levy Cibercultura.

  • 60

    Narrar enquanto narrado uma condio histrica que, de acordo com Ligia Chiappini25, foram-se complicando de tal forma que:

    o NARRADOR foi mesmo progressivamente se ocultando, ou atrs de outros narradores, ou atrs dos fatos narrados, que parecem cada vez mais, com o desenvolvimento do romance, narrarem-se a si prprios; ou, mais recentemente, atrs de uma voz que nos fala, velando e desvelando, ao mesmo tempo, narrador e personagem, numa fuso que, se os apresenta diretamente ao leitor, tambm os distancia, enquanto os dilui. Quem narra, narra o que viu, o que viveu, o que testemunhou, mas tambm o que imaginou, o que sonhou, o que desejou. Por isso, NARRAO e FICO praticamente nascem juntas.26

    Esse sujeito, criador e criatura de mltiplas narrativas, mo-ve-se, molda-se, movido e moldado no imaginrio que, para Bronislaw Baczko27, local e objeto de conflitos sociais. O autor afirma que o controle sobre a produo de smbolos e imagens as-segura a hegemonia de um grupo social sobre os demais grupos. De acordo com Baczko, os bens simblicos de uma sociedade so limitados, por isso vital a construo de um sistema que codifi-que, hierarquize, enfim um dispositivo de controle do imaginrio social, ou seja, um esquema de representao e valorao coletiva das experincias individuais. Segundo o autor, o imaginrio so-cial opera por meio de um sistema simblico que se baseia nas experincias afetivas dos indivduos28, da o seu poder. Sua po-tncia assegurada pela eficincia do processo de interiorizao de valores e conceitos por parte do indivduo e pela fuso entre

    25 Ligia Chiappini Moraes Leite livre-docente em Letras pela Universidade de So Paulo e professora Associada de Teoria da Literatura da USP.

    26 O Foco Narrativo, 2004: 5-6.27 Imaginao Social, 1985: 310.28 Idem: 311.

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    os conceitos de verdade e normatividade. Baczko afirma que o imaginrio social informa acerca da realidade, ao mesmo tempo em que constitui um apelo ao, um apelo a comportar-se de determinada maneira. (...)29.

    Para continuar a traar os contornos do Homini Narratus Habilis acrescentaremos ludicamente nossa perspectiva as cate-gorias desenvolvidas por Michel Maffesoli30 em algumas de suas obras: o apolneo e o dionisaco. Para Maffesoli Apolo representa (...) la dominacin del principio del legos, el de una razn me-cnica y predecible, el de una razn instrumental y,estrictamente, utilitaria (...).31 Em oposio a Apolo est Dionsio que, de acor-do com o