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III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES
15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I
Salvador -‐ BA
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MICROPOLÍTICAS DA EMOÇÃO: GÊNERO, VIOLÊNCIA E DISCRIÇÃO NAS TRAJETÓRIAS
DE HOMENS HOMOSSEXUAIS1
Ramon Pereira dos Reis2
Resumo: Procuro, neste artigo, articular questões de gênero, violência e discrição presentes nas trajetórias de três homens homossexuais, a uma reflexão sobre a constituição de si, no âmbito familiar e na sociedade. Compreendendo, desta feita, a emoção não apenas como “estado subjetivo da alma”, mas como discurso ou prática discursiva. Ao percorrer determinadas trajetórias de homens homossexuais com processos de subjetivação distintos, verifiquei que maneiras diferenciadas de ver e lidar com a identidade homossexual, com a família e nos espaços públicos compõem o arsenal de possibilidades e de posturas corporais dos entrevistados, nos fazendo pensar sobre “como os indivíduos colocam normas para si mesmos, e como elas se relacionam com o modo como as normas sociais são imaginadas?”
Palavras-chave: Discrição; Gênero; Homens homossexuais; Trajetórias; Violência.
Introdução
A feitura deste artigo se insere em dois momentos de minha trajetória acadêmica, quais
sejam: 1º - recuperação de algumas questões do terceiro capítulo da pesquisa que realizei no
mestrado (Reis, 2012); 2º - composição de trabalho final para a disciplina Antropologia das
Emoções, ministrada pela Profa. Dra. Laura Moutinho. Para tanto, procuro articular questões de
gênero, violência (perscrutada sob um olhar que moraliza sujeitos) e discrição, na trajetória de três
homens homossexuais, relacionando com alguns autores lidos durante o curso citado (Das, 2011;
Epstein, 1969; Fassin, 2008; Fonseca, 2000; Gluckman, 1963, Lutz e White, 1986; Moutinho et alii,
2010; Simões et alii, 2010).
Para a escrita da dissertação, especificamente do terceiro capítulo, a intenção foi cotejar o
material de pesquisa3 a partir da exposição das trajetórias de nove homens homossexuais
entrevistados: suas construções enquanto homossexuais, as relações estabelecidas com a família,
1 Uma primeira versão deste artigo foi apresentada como trabalho final do Curso de Antropologia das Emoções (ofertado pelo Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo), ministrado pela Profa. Dra. Laura Moutinho, a qual agradeço pelas elucidativas contribuições a cerca deste trabalho. Vale lembrar que, todas as palavras ou frases grafadas em itálico se referem às falas dos entrevistados (e, em alguns casos, comentários meus sobre conversas em campo, com amigos e terceiros), e, seus nomes foram desidentificados. 2 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo – PPGAS/USP. E-mail: [email protected] 3 A pesquisa que desenvolvi no mestrado lançou olhar para a constituição de relações, entre homens homossexuais, em dois espaços de sociabilidade homossexual da capital paraense.
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amigos e terceiros. As falas e reflexões despontaram como um dos aspectos mais importantes do
capítulo, fazendo com que o leitor refletisse sobre a constituição do sujeito para si, para a família e
para a sociedade. Vale ressaltar que, para este artigo, por conta da economia do texto, lanço mão, de
maneira breve, de três trajetórias, procurando fazer conexão entre questões recorrentes nas falas.
No que concerne às abordagens no campo da Antropologia das Emoções, posso dizer que foi
uma experiência nova e instigante. Percebi que a construção deste campo de conhecimento possui
caráter interdisciplinar, envolvendo áreas como: antropologia, sociologia, filosofia, história,
psicologia e estudos feministas, desde a década de 1970 (Lutz e White, 1986). Nesse amplo
universo científico, estão presentes algumas querelas, a saber: os interessados no aspecto
transcultural das emoções trazem consigo um interesse etnológico e evolutivo, psicodinâmico e
senso comum naturalista, constituindo uma linguagem universal; Enquanto aqueles interessados
pelo aspecto da construção social e cultural das emoções, evocam um variado número de tradições,
incluindo a etnopsicologia, estrutura social, linguística e desenvolvimentista (idem). Levando em
conta o campo de análise do qual eu faço parte, que é a ciência social (antropologia), o paradigma
dominante tem sido o materialista. Desta maneira, há que se compreender que existe uma distinção
entre emoção, definida como sentimento privado que não costuma estar motivada pelo aspecto
cultural ou articulada socialmente, e sentimentos definidos como símbolos articulados
socialmente e expectativas comportamentais. Nesse sentido, as trajetórias que serão expostas a
seguir se inserem numa discussão que procura questionar o campo do privado,4 propondo uma
problematização do aspecto micro, entendido aqui como uma instância micropolítica que possui
íntima relação com o fator emocional, contudo extrapola suas zonas de conforto diante de situações
que são vivenciadas socialmente (por meio das redes de amizade que se formam) e que grafam no
corpo (performance corporal) a maneira como os sujeitos devem se comportar.
Ao mencionar o caráter micropolítico5 da emoção, estou querendo, de maneira exploratória,
mostrar que não se trata apenas de uma constituição individual, de um indivíduo que se realiza em
si mesmo. Se no início a visualização dessa emoção era referendada como um sentimento do 4 Fassin (2008), de maneira enfática e recorrente, nos mostra que os antropólogos devem se preocupar com a moral (muito mais com uma antropologia da moral que uma moral da antropologia) como campo de estudo, assim como fazem com a política, religião, medicina, etc. Nesse caso, a moral não é considerada como um legítimo objeto de estudo e é olhada com suspeição; de todo modo, não há como negar que tem aumentado o interesse por questões morais na sociedade, bem como na própria disciplina, a antropologia. Penso então que, proposições que levam em conta análises sobre o foro íntimo se fazem necessárias por problematizar a linha tênue entre os aspectos privado e público da intimidade, trazendo-nos reflexões sobre o que pode, ou não, ser falado quanto se trata da intimidade. 5 Leia-se, de maneira mais ampla, como um regime de poder/saber sobre o corpo que não se pretende universal, mas que tem na materialidade do poder o exercício sobre o próprio corpo dos indivíduos (Cf. Foucault, 2007 [1979]).
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íntimo, do privado, algo privatizado; a partir do jogo entre aceitação, discrição e publicização é
possível colocar em questão esse sentimento uno, trazer à tona esse universo particular.6
Nesse movimento de problematização do aspecto emocional, tangenciado pelas questões de
gênero, violência e discrição, dois pontos irão chamar a atenção: um deles diz respeito a noção de
rede (Epstein, 1969), seja por meio da fofoca (Gluckman, 1963) ou das normas, as redes de amizade
que acabam se formando durante o processo de constituição do sujeito propiciam um alicerce de
conduta e funcionam como mola propulsora para a afirmação da identidade homossexual, levando
em conta que trato, no limite, de homens homossexuais de classe média, independente dos níveis
sociais. Outro ponto a ser levado em consideração é o aspecto da encenação:7 encena-se para ser
sujeito desejável, ou não; encena-se para não ser violentado. “Vai-se para além das “estratégias de
sobrevivência”, preferindo considerar os elementos do universo simbólico [...] a fim de sublinhar
questões de alteridade cultural e agenciação humana” (Fonseca, 2000, p. 163).
Gênero, violência e discrição
Valentim (Gay, 23 anos)
Conheci Valentim (branco,8 performance corporal mais masculina, classe social média
baixa,9 ensino superior completo), numa ocasião, que considero, engraçada: estávamos, dois amigos
e eu, num supermercado localizado na Avenida Visconde de Souza Franco (Doca, Belém, Pará) e,
que costuma ser ponto de encontro de jovens que saem das baladas e vem repor as energias. Eu
lembro que conversávamos sobre relacionamentos entre homens homossexuais, sobre o fato de
estar cada vez mais complicado arrumar um parceiro e que sair para baladas não é o melhor lugar
para encontrar alguém. Minutos depois, após algumas conversas e gargalhadas, Valentim se
aproxima e senta à mesa onde estávamos e nos cumprimenta... Meus amigos começaram a trocar
informação com ele, mas eu não dei tanta atenção, até que ele virou pra mim e disse que conhecia
6 Como rentabilidade para este argumento, penso ser interessante recuperar a ideia de etnografia da intimidade trazida à baila por Paiva (2007, p. 85), nas palavras dele: diz respeito a uma circunscrição a margem de luz e de palavra que desenha o território no qual se articulam as parcerias homoeróticas, seus regimes de visibilidade e que possibilidades de enunciação é vista na tarefa de fazer a etnografia do ethos íntimo naquelas ligações afetivo-sexuais. Que tipo de economia de silêncio e palavra coordenam os afetos? Quais as possibilidades de expressão, de rostidade, socialmente disponíveis para esse tipo específico de amor e de estar juntos? Como alojar essas parcerias nos regimes de luz e palavra destinados a codificar nossas experiências de convivência, amor e erotismo? 7 Ver Das (2011); McClintock (2003). 8 Auto-declaração. 9 Auto-declaração.
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meu trabalho, que já sabia o que eu pesquisava, sabia quantos anos eu tinha, achei aquilo estranho e
retruquei de maneira impulsiva: Ah! Encheção de saco uma hora dessa! Na verdade, naquele
momento eu não tive reação; não pensei que poderia, na visão dele, ser um parceiro em potencial,
ou alguém que ele tivesse admiração pelo trabalho, apenas não gostei daquele tipo de abordagem.
Mesmo sabendo que ainda o encontraria em outras situações, não cogitei a possibilidade de
Valentim ser um possível interlocutor.
Com o decorrer da pesquisa de campo e das minhas idas na boate Malícia, continuei
encontrando Valentim, cumprimentávamo-nos e ele sorria e falava: Encheção de saco uma hora
dessa! Eu, inevitavelmente, sorria ao lembrar da noite em que falei tal frase. Após alguns encontros,
na boate referida, aproximei-me dele e expliquei sobre o que me levava a frequentar, assiduamente,
aquele ambiente; eis que resolvi, então, perguntar a ele se concederia ser entrevistado. Ele reagiu
com alegria, aceitando o convite.
Valentim mantinha uma performance corporal mais masculina, fazia questão de deixar claro
que não se relacionava com homens homossexuais mais afeminados; ele era considerado pelos
demais homossexuais como mona ocó (mantinha discrição, não gostava de dar pinta e se sentia
constrangido ao estar próximo de homossexuais mais afeminados). Uma situação de
constrangimento, por exemplo, foi quando nos encontramos na Malícia e eu estava usando uma
bermudinha, quando me viu, perguntou: Porque você tá usando isso? Ambos levamos na
brincadeira, mas eu podia notar, claramente, como ele ficara constrangido.10
O breve relato acima interpela o processo de socialização pelo qual passou Valentim: teve
uma educação cristã, participou de um grupo em uma igreja católica e iniciou sua vida sexual com
meninas, no período em que tinha onze anos, uma espécie de ato despropositado, como ele mesmo
relatou: uma sacanagem. Viveu a infância e a adolescência em uma cidade do interior do Pará. Com
relação a homossexualidade, foi bastante conflitante, havia uma questão que envolvia aceitação,
visibilidade/publicização, medo da descoberta. Ele se recusava a ser associado à identidade de
homossexual. As convenções de gênero nas regiões do interior do Pará parecem ter um peso muito
forte no que concerne à ratificação de uma conduta heterossexual e à negação e o apagamento da
homossexualidade: assumir-se nesse contexto é ser chamado de baitola, viado, bicha, e isso afeta a 10 Sempre deixei claro, no campo, a maneira como gostava de me vestir (com roupas justas, bermudinha, calça skinny) e minha orientação sexual homosexual. Percebi que esses dois fatores me ajudaram a ganhar “confiança” dos interlocutores desta pesquisa, seja por meio da verbalização de questões que não eram colocadas no âmbito familiar de cada um deles ou, então, pelo modo irônico ou sincero com que me abordavam. Sobre ser gay e fazer trabalho de campo, ver Williams (1996).
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construção de si e mancha a reputação da família.11 Permeado por essa atmosfera, Valentim ainda
conseguiu sustentar uma relação dupla com um homem e uma mulher, quando tinha vinte anos. Seu
primeiro contato com outro homem, ou melhor, a primeira conversa sobre homossexualidade
aconteceu em um ambiente religioso, ele conheceu um rapaz que chamou sua atenção para as
questões sobre homossexualidade. No entanto, assuntos que tratassem desse tema, nunca foram
abordados no ambiente familiar.
Nesta primeira trajetória e nas que serão expostas a seguir, é possível visualizar a
constituição da identidade homossexual (dos sujeitos) coadunada com a criação de redes (de
conhecidos ou de amigos) que extrapolam os limites da casa (Epstein, 1969), bem como aponta,
para estes entrevistados, uma maior aceitação de suas homossexualidades para fora de casa, já que a
todo momento o nome da família está em jogo e sua reputação pode ser manchada dada a
descoberta de se ter um filho baitola, viado, bicha, através da fofoca e do escândalo (da
vizinhança), vistos como mantenedores da unidade, moral e dos valores de grupos sociais
(Gluckman, 1963, Fonseca, 2000).
No ambiente acadêmico Valentim procura manter uma postura dita normal. A publicização
de sua identidade homossexual se desacentua quando ele entra em espaços de predominância
heterossexual. Valentim pode ser considerado um parceiro em potencial para este contexto: é
universitário, novo, branco, possui corpo em forma, não tem postura corporal feminina; todas essas
características o fazem estabelecer maiores critérios de seleção de parceiros, lembrando que quanto
maiores as características favoráveis a ser parceiro em potencial, maiores serão os critérios de
seleção de escolhas afetivo-sexuais; os pares se relacionam entre seus pares. Este argumento
corrobora com a ideia de que um relacionamento pode ser medido, de algum modo, pela frequência
da interação, bem como pelo seu conteúdo. No limite, todo relacionamento, para além do caráter
afetivo-sexual, envolve a ideia de troca, e o que ajuda a definí-lo, no caso dos pares, são os tipos de
informações e opiniões que são trocadas (Epstein, 1969). Nesse sentido, quanto maior for a
intensidade da relação entre pares, a constituição destas redes será mais consistente.
Valentim frisou que hoje aceita que o chamem de gay, mas enfatiza que não gosta de ser
referenciado como homossexual, ou heterossexual, para ele isso é apenas uma consequência. O fato
de aceitar ser chamado de gay não surge aleatoriamente, e sim de uma construção, reafirmando que
11 O processo de aceitação da identidade homossexual (coming out) e, em seguida, de publicização, ou não, possui uma relação de complexidade “entre a violência como momento originário e a violência que se infiltra nas relações correntes e se torna uma espécie de atmosfera que não pode ser expelida para ‘fora’” (Das, 2011, p. 15).
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ser gay passa por um processo de construção sociocultural; gay não seria um rótulo e sim uma
identidade (mais ou menos acentuada dependendo do ambiente e da situação). Ser assumido está
relacionado à sua trajetória – de não aceitação, de recusa à identidade gay. Hoje, a percepção de ser
assumido, para ele, é guiada pelo exercício da aceitação de si e não das pessoas: Me assumir não é
assumir para as outras pessoas, mas sim dizer pra mim mesmo quem eu sou, o que eu sou...
Como se dariam então as relações dentro do ambiente familiar, com os amigos, colegas de
trabalho, já que haveria para Valentim, primeiramente, uma aceitação para si, independente de uma
verbalização exterior? Ele conta que tem uma família muito repressora e que praticamente não
conversam sobre homossexualidade, relacionamentos; das vezes que conversou sobre
relacionamentos com o pai foi uma coisa rápida, sem muitos detalhes se seria homem ou mulher.
Quando está em um espaço de sociabilidade homossexual ele comenta: eu fico mais jogado [risos],
não estou nem aí! Todo mundo que está lá é! [gay] ou compreende o que é! A publicização da
identidade gay se desacentua quando ele entra em um espaço de sociabilidade heterossexual:
Procuro ficar na minha, tento não dar aquela pinta que a gente tem natural. No caso de Valentim
haveria uma aura de receio e de cuidado com a imagem: de receio por ser uma pessoa tímida e por
acreditar que aquele (espaço de sociabilidade heterossexual) não seria um lugar em potencial para a
busca por homens homossexuais, e o cuidado com a imagem, vinculado à reputação: é preciso ser
bem visto, não manchar a reputação, se dar o respeito.12
Volto a indagá-lo sobre a sua relação com a família, sobre o fato de ser gay, ele me responde
a partir de uma situação que aconteceu quando ele tinha dezesseis anos. Na época, Valentim não
tinha namorada e foi questionado por uma tia sobre os seus relacionamentos, ao passo que ele teve
que abaixar a cabeça e ficar envergonhado diante dos primos que falaram sobre seus
relacionamentos afetivo-sexuais com garotas. Tudo isso carregado de uma entonação
preconceituosa por parte da família. Em uma das conversas sobre sexualidade, Valentim e sua mãe
(sob efeito alcóolico) discutiram, pelo fato dela ter comentado, indiretamente, sobre um possível
relacionamento do filho com um rapaz, Valentim não hesitou em dizer que seria o que quisesse ser
e que continuaria sendo a mesma pessoa. No outro dia, sem a presença do pai, apenas dos irmãos e 12 Simões et alii (2010, p. 53), em um estudo realizado em espaços de sociabilidade juvenil, reconhecidos como homossexuais e heterossexuais na região do centro histórico da cidade de São Paulo, dando ênfase à Avenida Vieira de Carvalho por ser um espaço onde há constante fluxo de gays, observaram que: [...] os tipos que parecem mais masculinos, mais discretos e menos espalhafatosos tendem a ser os mais desejados. Assim, é possível observar uma contenção dos rapazes de performance mais feminina quando se engajam efetivamente na paquera e no esforço de atrair alguém que lhes tenha despertado interesse ou lhes dirija a atenção.
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da mãe, Valentim tentou continuar a conversa que tivera com a mãe, mas a irmã e a mãe retrucaram
dizendo que achavam nojento duas pessoas do mesmo sexo. Por isso ele ainda não chegou a
conversar, abertamente, sobre o assunto homossexualidade. O maior medo dele é que a família vire
as costas e comece a vê-lo como uma pessoa inferior. Nos espaços públicos Valentim não fala que é
gay: pra falar a verdade as pessoas que eu tenho mais diálogo, são pessoas bem entendidas, que
tem mais ou menos um mundo, pra pessoas que tem um conhecimento maior, pra amizade, então
entendem mais sobre o que é ser homossexual, até por terem amizades, também, homossexuais.
Pergunto diretamente a ele como é o seu posicionamento com relação às questões que dizem
respeito à homossexualidade e à saída do armário, ele responde: eu acho que isso é uma escolha
individual, eu acho que cada um tem uma trajetória de vida e cada um tem uma forma de
manifestar: manifestar seus pensamentos, suas atitudes, suas ideias, da maneira que quer, então,
tipo, se uma pessoa é totalmente afeminada, eu creio que primeiro ela é aquilo porque ela quer, ela
é aquilo porque ela foi criada para ser daquele jeito e ela é aquilo porque os hormônios dela
propiciam que ela seja aquilo, se uma pessoa é mais reservada, eu acho que ela é aquilo porque
ela foi criada para ser daquele jeito, ela quer ser daquele jeito por conta da opressão social e ela é
porque ela gosta, até, mesmo de se relacionar com pessoas que não sejam tão afeminadas. No
início da aceitação da homossexualidade para si havia uma repulsa a grupos de homossexuais, aos
poucos ele foi entendendo que cada um expressa a sua forma de ser como achar que é mais
conveniente; a partir do momento que a gente vai se relacionando, conhecendo os mundos, a gente
vai tendo outra visão sobre as coisas.
Na pesquisa que Saggese (2009) realizou, sobre os modos de subjetivação de homens
homossexuais através do coming out – processo não-sequencial e inacabado, ele percebeu que, para
além de consistir em um esforço de “desaprendizagem”, a “saída do armário” em contextos onde
algum membro da família assimilou este posicionamento de forma positiva e não-preconceituosa
e/ou vexatória, se fez presente um “discurso que enfatiza uma maior “liberdade” de trânsito no
ambiente familiar, bem como uma aproximação afetiva, que parecem contribuir para uma maior
integração da homossexualidade na vida cotidiana e em espaços públicos mais formais” (idem, p.
39).
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Omar (Homossexual, 39 anos)
Circulando por outros espaços de sociabilidade homossexual... Refiro-me ao dia em que
estive na boate Paparazzo e conheci Omar (negro,13 classe média alta,14 superior completo,
performance corporal mais masculina). Uma situação, em especial, me chamava atenção quando
avistei Omar, parado, num canto, nos fundos da boate: um homem mais velho, coroa enxuto,
careca, o que atraía o público jovem que circulava pelo local; eu olhava de longe os vários
homossexuais mais novos que se aproximavam dele. Após um tempo observando aquela cena,
resolvi me aproximar e conversar com ele. Descobri que ele é pernambucano e que está a passeio
em Belém. Ao longo da noite fomos nos conhecendo, sem que eu desse algum indicativo de que se
tratava de uma pesquisa, contudo, no momento que para mim era crucial (a revelação dos meus
verdadeiros objetivos, como pesquisador, naquele espaço), percebi um certo afastamento ou fuga de
uma situação que o atrapalhava na busca por parceiros, afinal uma boate não é lugar pra fazer
pesquisa! Acabei não me limitando a conversar somente com Omar, contudo, não me afastei dele
sem antes trocarmos contatos (telefone e e-mail). Passados alguns dias, conversamos por telefone e,
eu reiterei o convite para fazer parte da pesquisa, bem como apresentei, sucintamente, os objetivos
gerais desta. Ele ouviu atentamente e combinou de nos encontrarmos na Universidade Federal do
Pará (UFPA).
Omar inicia, a entrevista, lembrando o tempo em que tinha dezoito anos, época em que
exercera a função de presidente de grêmio estudantil em um colégio na Bahia. Ele lembra que tinha
vários amigos neste colégio que eram gays, mas era como se ele não conseguisse os visualizar pelas
suas orientações sexuais, é como se a questão da identificação, dos rótulos, estivesse, por um
momento, fora de um exercício de descoberta da sexualidade, fora do movimento de auto-
identificação, nas palavras dele: É gente que faz! É gente do meio! Esta foi uma das grandes
dificuldades que Omar enfrentou, principalmente, porque na época havia estabelecido um
relacionamento heterossexual, gerando uma filha, que tem dezessete anos.
Nesse início de relato fica bastante clara a questão do não-lugar que uma relação
homossexual ocupava na cabeça de Omar, para ele no início não haveria uma
configuração/conceituação do que seria uma relação homem/homem, mulher/mulher. A relação
afetivo-sexual entre homens só veio acontecer quando Omar havia completado dezenove anos: E aí,
13 Auto-declaração. 14 Auto-declaração.
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com dezenove anos... Um anos depois, eu peguei e fui passar o carnaval em Recife, que eu sou
pernambucano de nascença... Moro em Salvador há vinte anos, mas sou pernambucano... E, então,
nesse carnaval, em Recife, eu tive o primeiro contato com outro homem, mas assim... O cara veio,
deu em cima de mim, eu fiquei sem ação... Era mais velho... Eu só sei que, finalmente, aconteceu
sem... Como se fosse uma coisa, literalmente natural, mas que deixaria de ser natural depois,
quando você ia refletir o que havia acontecido, porque havia acontecido, ia entrar todos os
porquês da vida... Então, depois desse primeiro contato eu voltei pra Salvador porque eu tava de
férias e, quando eu voltei pra Salvador eu não podia mais me esbarrar ou olhar pra um rapaz, que
eu já tinha um sentimento, uma atração, vontade de ficar, enfim, e isso foi aflorando logo após o
primeiro contato...
Após esse primeiro contato sexual com outro homem, a percepção sobre quem é quem no
universo gay ficara mais aguçada. Ainda assim, Omar afirmou que não teve nenhum problema, o
seu grande problema foi dispensar as meninas, o fato de não saber lidar com as garotas para
dispensar. Após ter se aceitado enquanto homossexual, ele não queria ter uma vida dupla, com
mentiras e ocultamentos da realidade, ele não precisaria mais dizer que era heterossexual sendo
homossexual: eu preferi ter essa duplicidade, e aí quando eu falava pras garotas, elas se
assustavam, era complicado... Então era mais complicado, pra mim, lidar com as meninas, que
ainda continuavam dando em cima de mim, tinha toda aquela questão, de eu me relacionar ou
dialogar com os rapazes ou com os próprios gays da cidade, do bairro, enfim...
Novamente o discurso da aceitação de si é recorrente: eu acho que ser assumido é viver a
sua sexualidade – sem medo, sem tabus, sem estigmas – é viver com liberdade, sem medo de ser
feliz, mas, principalmente, entendendo o que é viver essa sexualidade e o que é ser assumido pra si.
Independente das demais coisas citadas por Omar e que compõem a construção da sexualidade do
sujeito, há que se aceitar primeiro, as duas últimas aceitações (para a família e para a sociedade) se
dariam por uma espécie de consequência do meio, “não seria uma obrigação”.
Com relação aos amigos, todos com quem ele se relaciona sabem da sua orientação sexual,
contudo ele ressalta que, deve sempre haver respeito nas relações independente da orientação sexual
das pessoas, isso vai da prática, do comportamento, das limitações em sociedade, você tem que
entender o espaço do outro. Por conta de toda essa aceitação que me foi relatada, Omar é uma
pessoa mais livre para viver sua sexualidade, de acordo com ele, não mascarando a sua
sexualidade e nem tampouco forçando a exposição dela para todos. Tal liberdade evocada diz
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respeito ao fato dele morar sozinho há bastante tempo, desde os vinte e três anos. Aqui é expresso,
por meio da fala de Omar, um jogo simbólico fortemente marcado por um par de opostos que indica
que o fato de se ter maior liberdade de expressar a orientação sexual não significa ter menos
ocultamento desta em situações cotidianas.
No ambiente familiar houve surpresas com relação a aceitação de sua homossexualidade,
por Omar ter percebido que o pai teve um entendimento melhor do que a mãe, sendo que o pai teve
uma criação extremamente machista. Ele teve sérios problemas com relação à mãe, inclusive
chegou a sair de casa por causa dela, só voltando a morar em casa quando o pai convenceu a mãe de
Omar que sua homossexualidade não era uma doença e nem uma aberração. Hoje o pai é falecido e
a cena atual da casa é a seguinte: de uma mãe que procura ler e entender a homossexualidade
através de jornais e revistas, assistindo programas que abordem o tema na TV, o que tem feito com
que mãe e filho possam dialogar mais sobre o referido assunto.15
Segue uma importante fala de Omar como forma de ilustrar o parágrafo acima: hoje minha
mãe não debate tanto a questão porque sabe que é um fato consumado e não tem jeito, mas a
minha avó, a mãe da minha mãe, ainda fica batendo na tecla: ‘Ah! Meu filho, você ainda vai
constituir uma família, você ainda vai ter...’ Pelo fato de eu ter tido uma filha, então isso fica muito
enraizado na cabeça delas... Porque, por exemplo, a sociedade ainda acha que o gay é aquele que
não ‘come’ mulher, que não faz filho, então a sociedade tem falta de informações... Por exemplo,
no geral, o leigo acha que o gay é sempre aquele que quer ser mulher... Então vê o gay como uma
travesti, vê o gay como um homem que se veste de mulher... Então a sociedade, na sua grande
maioria, tirando os que não tem acesso à informação, acha que o gay sempre é o afeminado, então
por isso que nós temos uma massa enorme de homens em práticas homoeróticas, que se relacionam
com homens, mas que pra sociedade eles se passam como heterossexuais por causa de um
comportamento, porque a sociedade liga a feminilização do comportamento do homossexual ao
fato de ser gay.
Omar chama atenção ao dizer que hoje há uma grande dificuldade em perceber a orientação
sexual de determinado indivíduo por conta do comportamento, por exemplo: quando você é um gay
estereotipado, afeminado, afetado, então isso tá: água e vinho, melhor do que água e óleo que não
se mistura; mas assim, quando você é um homossexual que tem um comportamento mais
15 Sobre casos como esse em que mãe e filho procuram dialogar sobre o assunto homossexualidade, através de um exercício, do filho para a mãe, em agregar conhecimento sobre este tema por meio da leitura de jornais, revistas, por exemplo, ver o trabalho de Saggese (2009).
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masculinizado, isso passa despercebido entre os amigos. Ele faz questão de não publicizar a sua
orientação sexual: é o que eu falo sempre, não precisa chegar na festa e ficar se beijando, ficar se
agarrando e ficar mostrando as nossas afetividades, mas também não é proibido, eu acho que não
é necessário, mas também não é proibido. Aparece aqui um limite simbólico de conduta, algo que
pode e não pode quase que simultaneamente e que, para outros homossexuais, é visto como uma
falseamento da realidade, uma afirmação e reafirmação contínua de tensões e conflitos na
constituição de performances corporais.
Compreendo, a priori, o que chamo de falseamento da realidade como uma estética dos
sentidos (Das, 2011), corroborada com um exercício forçoso de compleição corporal para uma
representação de moldura e encaixe dentro de uma lógica violenta e rígida. Diante dos gestos
performáticos que os homens homossexuais, desta pesquisa, exercem em suas trajetórias, tal
estética molda rosto e corpo, circunscrevendo-os em tempos, espaços e contextos distintos,
promovendo a publicização de uma homossexualidade masculinizada, por exemplo. Nesse sentido,
a partir da representação de uma nação masculina/masculinizante/masculinizada o tornar-se sujeito
nada mais é que uma experiência de sujeição (idem).
****
Helano (Homossexual, 25 anos)
Fui apresentado a Helano (moreno,16 classe média baixa,17 superior completo, performance
corporal mais masculina) em ocasiões de festas em casas de amigos. Os espaços, da universidade e
sociais, que frequentávamos só fizeram nos aproximar. Quando comentei sobre a pesquisa que
estava desenvolvendo ele aceitou com entusiasmo, eu percebia que ele sentia a necessidade de falar
mais abertamente sobre questões que envolvessem sua sexualidade. Apesar de não ser um parceiro
em potencial para vários homossexuais, por conta de ser gordo; das vezes em que nos
encontrávamos nas boates, bares, de Belém, ele sempre comentava sobre os caras com quem tinha
ficado, e não eram poucos. Se por um lado a gordura poderia o atrapalhar em alguma situação, por
outro lado o fato de ter um carro, ser universitário e ser ativo, tinham um peso e atrativo maior para
determinados homens homossexuais.
16 Auto-declaração. 17 Auto-declaração.
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Durante a entrevista, ele contou que vive uma vida de reservas, os pais dele até o momento
da entrevista não sabiam da sua orientação sexual. São poucos os amigos que sabem. Ele ainda não
lida muito bem com a verbalização de sua homossexualidade para pessoas que são consideradas
desconhecidas por ele. Este posicionamento reflete uma forte criação sob os dogmas da religião
católica. Como ele comenta: a minha trajetória foi muito independente, a minha descoberta foi
muito... Eu não pude contar com ninguém, quer dizer... Eu não quis contar com ninguém porque eu
não tinha coragem de falar pra ninguém... Eu sei que pra muitas pessoas eu poderia ter contado,
poderia ter sido diferente, mas não foi, foi desse jeito e ponto. Então, aprendi as coisas sozinho:
‘dei a cara à tapa’, e fui descobrindo muitas coisas sozinho, por minha própria conta, por minha
própria conta e risco, né?! E, vez ou outra, conversando com um e outro, mas sempre dizendo: ‘Ah!
Porque é um amigo, porque é um...’ Sempre usando uma terceira pessoa, onde no fundo cada
pergunta que eu fazia, que era referente a uma terceira pessoa, na verdade era pra mim, era eu que
estava querendo saber...
Os primeiros indicativos de que Helano sentia atração por homens foi assistindo filmes
pornô heterossexual. Segundo ele, a parte que mais chamava atenção era quando o pênis estava em
destaque, em primeiro plano; as coisas foram acontecendo sem ele se dar conta. Helano lembra de
uma situação ocorrida na sua família e, que o fez pensar muito bem antes de revelar algo sobre sua
sexualidade. Foi quando sua irmã se assumiu homossexual: o tratamento do pai e da mãe fora
extremamente hostil e ríspido; mas, hoje parece que as relações estão melhores. Helano ainda pensa
e reflete sobre a questão da independência pessoal, para que ele saia do armário será preciso,
primeiramente, ser independente financeiramente e pessoalmente: eu prefiro sentir que é o
momento certo, ou não, enfim... Eu só quero, de fato, que oficialmente saia da minha boca, essa é
minha grande preocupação...
Ser assumido é dar a cara à tapa. A vida assumida não gira em torno de um relacionamento,
mas sim em torno da própria pessoa, a base para que a pessoa possa se assumir, nesse caso, é a
certeza, sem nenhuma relação com rótulos; o que ele chama de rótulos é o gay afeminado,
alegórico, que fala fino, que se traveste, que se rasga na rua. Lidar com essa sexualidade se divide
entre o ambiente social/profissional e o familiar: o meu mundo profissional é um meio muito
machista, então eu opto por manter a minha discrição... Porque eu não quero que as pessoas me
dêem um emprego ou que me tirem determinado emprego por conta da minha sexualidade, eu
quero sim, fazer por merecer estar nesse emprego ou fazer merecer sair deste emprego, mas não
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por conta da minha sexualidade, não por conta de eu acordar ou dormir pensando em homem, eu
quero ser reconhecido pelo meu trabalho, por isso que eu busco hoje, perante os meus amigos,
perante as pessoas com quem eu convivo... Eu sou sim, falo com muito orgulho, eu sou uma pessoa
formada com vinte e cinco anos, a um mês de terminar um mestrado, são poucos, eu sei que são
poucos, se for botar numa tabela, num nível nacional eu vou estar dentro de uma minoria que eu
acho que não chega nem a um por cento do geral, ou seja, uma classe instruída, certo? A principal
justificativa sobre a questão do assumir, ou não, a homossexualidade no trabalho, está ligada a
questão da reputação, com a imagem, com manter uma posição de respeito, ser olhado e ser
respeitado.18
Para os amigos, assumir a homossexualidade se dá de maneira mais flexível, com menos
discrição, pois, de acordo com Helano, há maior confiança nesses grupos. É como eu te falo, eu
não faço questão de ficar contando, existem algumas pessoas sim, que eu faço questão de contar
porque são meus amigos, várias outras pessoas se encaixam como colegas, conhecidos, ou pessoas
que eu, simplesmente, um dia disse oi e tchau! Mas os meus amigos, de fato, que eu me importo, e
que se importam comigo e eu sei disso por já ter prova de convivência, eu sinto necessidade de
contar pra elas, quebrar todo tipo de segredo, nesse sentido, eu venho contando aos poucos, não
são todos, ainda tem alguns que eu me importo e que eu gostaria de contar, que eu quero que
saibam, pra que eu possa conviver à vontade, ficar à vontade, ainda faltam, mas isso não é uma
coisa desesperada, que eu vou logo correr atrás e contar, e tal, pronto, abrir o jogo, mas eu gosto
que as coisas fluam naturalmente.
Essa rede de amigos que se formam durante o processo de socialização extramuros (da casa)
dão conta de um arsenal de possibilidades de agenciamento e negociações em torno de relações
dialógicas que estão para além da reiteração de dicotomias, ou seja, fazer parte de tais redes reforça,
cotidianamente, não somente a constituição do eu, daquilo que os fazem, individualmente, expressar
suas sexualidades, assim como não se sentir violentado pela sexualidade do outro.
Com relação aos colegas de trabalho, parentes, nem todos sabem de sua homossexualidade,
ele faz questão de dizer que tem amigos afeminados, mas que não conseguiria andar num grupo de
travestis; ressalta que é uma questão de imagem e de afinidades, insiste em dizer que é apenas uma
18 Acredito que, “mais do que especificar ou construir sujeitos em certos contextos (mais ou menos desejáveis nos mercados dos afetos e prazeres, das amizades, do trabalho) ou revelar as assimetrias de poder que se constroem a partir da complexa e sutil operação dessas clivagens, vê-se na tessitura do cotidiano disputas acerca da construção do “nós” e do “outro”” (Moutinho et alii, 2010, p. 174).
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questão visual. Possui um discurso cauteloso em relação aos comportamentos de homossexuais com
uma performance mais feminina. Pergunto a ele se procura diferenciar seu comportamento quando
está próximo de homens homossexuais com performance mais feminina, ele responde:
naturalmente eu me destoo, naturalmente, porque eu não ajo dessa maneira, eu, naturalmente não
ajo, seja dentro de uma boate, e não é porque eu to na rua, mesmo quando eu to dentro de um
ambiente gay, onde as pessoas se sentem livres e à vontade, eu não ajo assim, com naturalidade, eu
não fico me rasgando, e tal, realmente quando eu estou com os meus amigos e a gente fica na
brincadeira, aí é outra história, mas naturalmente, não, então, queira ou não, eu acabo, não é me
destacando, eu acabo me destoando do grupo, porque se eu to cercado de pessoas que agem com
muita feminilidade, eu não ajo daquela maneira, naturalmente eu vou estar destoando daquele
grupo.
Correspondente à performance feminina questionada por Helano, o que o deixa mais
constrangido é o julgamento dos outros homens homossexuais, amigos, ou não, porque a partir do
comportamento que as pessoas vão ter junto comigo, virão uma série de julgamentos por fora...
Então, o fato de eu me importar de como as pessoas estão se comportando do meu lado, ao meu
lado no ambiente social aberto, naturalmente, vai me reportar à questão do julgamento, como eu te
falei, eu não quero ser olhado, ser taxado, por conta da roupa que eu visto, ou das pessoas com
quem eu ando, então eu não quero alguém que me olhe e diga assim: ‘Olha aquela bichinha!’ Eu
não quero isso, eu não busco isso, porque o meu comportamento não é esse, e não é uma coisa
forçada, eu, naturalmente... Às vezes, até quando eu tento brincar, frescar, ficar mais feminino, fica
sem graça porque fica na cara que eu não to sendo natural, eu não consigo fazer com naturalidade,
então o que incomoda é isso, ser julgado sem ser conhecido, sem que as pessoas me conheçam por
conta do meu entorno... ‘Ah! Helano, tu tens medo do que as pessoas vão pensar, do que vão te
julgar?’ Sim. Tenho.
As piadinhas, fofocas, comentários jocosos (Gluckman, 1963; Fonseca, 2000) fazem, de
fato, parte da tessitura do cotidiano destes homens homossexuais, pois eles estão envoltos ou
interagem com as brincadeiras, fofocas, cotidianamente, seja por meio da ação de enfrentamento
perante o seguinte comentário: Olha aquela bichinha!, ou entre amigos quando o termo bichinha é
utilizado para estigmatizar, como inferiores, homens homossexuais afeminados, ou para afirmar um
agenciamento identitário. De todo modo, está em jogo uma demanda que expressa autenticidade
conjugada com naturalidade e, que procura ter o direito de poder brincar, frescar, não somente nos
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espaços de sociabilidade homossexual, sem precisar se preocupar com os julgamentos em torno da
pessoa.19
Apontamentos reflexivos
Na análise das trajetórias a questão da descoberta da sexualidade aparece de maneira
veemente, relacionada, especificamente, com questões de assumir e/ou sair do armário. Num
primeiro momento, a família aparece como atuante (seja para aprovar ou reprovar) no que se refere
à relação entre filhos e parceiros homossexuais, porém, na maioria dos casos, há ausência de
diálogos sobre sexualidade com pai e mãe, pois a família não dá aparato de sustentação para estes
filhos homossexuais; tais famílias têm posturas conservadoras e preconceituosas, não aceitando um
filho homossexual, ou não o concebendo como sujeito em potencial para estabelecer relações de
namoro e, tampouco um padrão de família nuclear heterossexual (homem, mulher e filhos -
meninos e meninas -, todos heterossexuais).
Tanto no primeiro envolvimento sexual com homens quanto com mulheres, o aprendizado
da sexualidade se deu de forma individualizada, através de um misto de vários componentes:
experimentação, curiosidade, medo, vontade, desejo. Para os entrevistados, um fator que pode
facilitar uma relação de abertura com a família, no que concerne à abordagem de assuntos sobre
sexualidade é a independência financeira: se sustentar, não depender dos pais, morar sozinho; Falas
como essas abrem possibilidades de discursos de maior verbalização a respeito de suas orientações
sexuais. Ainda assim, independente dos exercícios de saída ou não saída do armário, é perceptível
como está impregnado, nos discursos familiares, uma atmosfera de convenções sociais de gênero,
acionadas a todo instante para explicação de padrões de masculinidade, feminilidade; convenções
que fazem conexão direta a uma criação cristã.
No plano social, nas relações com os amigos e posturas nos espaços públicos, os
entrevistados expuseram os limites que devem haver com relação aos comportamentos: ser discreto
e se dar o respeito, saber se comportar nos determinados ambientes, foram os mais reiterados. Não 19 Como existe uma linha muito tênue em torno da piada, fofoca, humor, como elementos que ora desagregam (por serem preconceituosos, homofóbicos, machistas, sexistas, misóginos, xenófobos) ora agregam (por meio do próprio estigma como ironia situacional) e, que são vistos como fenômenos culturais e mantenedores de certa moral (Gluckman, 1963), pode ser que “(…) A utilização de uma perspectiva metodológica pela via do humor e das piadas, ajude a subverter algo da lógica juridica de muitos modelos teórico-metodológicos que procuram interpretar a experiência das pessoas em termos de leis unívocas (Fonseca, 2000, p. 139). Só para citar, estou lembrando das resignificações em torno do termo queer (nos Estados Unidos) e do termo vadia (no Brasil).
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sei, ao certo, se sair ou não sair do armário facilita ou dificulta o convívio social, alguns mostram,
enfaticamente, que sim, porém mesmo aqueles que já se assumiram continuam impondo limites
corporais, justificando que posturas mais afeminadas seriam um chamariz para atitudes
homofóbicas. Não cabe aqui dizer que tais homens homossexuais devem ser mais masculinos para
impedir que atitudes homofóbicas ocorram, a questão é que há uma relação de constrangimento e
conflito, expressa nas relações entre homossexuais mais femininos e homossexuais mais
masculinos.
O caráter de visibilidade/invisibilidade (Paiva, 2007) é significativo quando analisamos o
posicionamento dos sujeitos, a partir da performance de gênero e da positivação/negativação do
comportamento dada pelo outro/grupo, ou seja, para que possa haver aproximação de um
homossexual de performance de gênero mais masculina com outro de performance de gênero mais
feminina, é preciso que aquele mais feminino camufle/oculte este posicionamento e atue/encene
uma compleição corporal mais masculina para que ambos estejam equiparados e o grupo de amigos
e/ou grupo familiar não “gongue-os”.20 Vale lembrar como a constituição de redes de sociabilidade
de amizade, afetiva ou política que se formam durante a constituição dos sujeitos, e que estão para
além do âmbito familiar, fazem valer um maior encorajamento para lidar com preconceitos e
aspectos silenciáveis, numa atmosfera de “não-ditos” dentro do seio familiar. Os grupos que se
formam através das redes de amizade precisam um da escuta do outro.21
Sendo assim, as falas expostas foram representadas e vivenciadas por meio de uma espécie
de linha sequencial/temporal que vai costurando e amarrando uma descoberta da sexualidade,
perpassada por uma educação cristã que molda o gênero, afeta e violenta as construções identitárias,
terminando por movimentar o indivíduo para um exercício de discrição, levado a cabo pela família
por meio de práticas preconceituosas em torno do rechaço à figura do homossexual e o que ele
representa.
Por fim, tais trajetórias reúnem processos de subjetivação distintos; maneiras diferenciadas
de ver e lidar com a identidade homossexual, com a família e nos espaços públicos compõem o
arsenal de possibilidades e de posturas corporais dos entrevistados, nos fazendo pensar sobre “como 20 “Gongue-os” da derivação de “gongar”, é um termo êmico que significa ridicularizar ou caçoar de alguém (Simões et alii, nota de rodapé 23, 2010, p. 53) 21 Dentro das relações cotidianas não posso deixar de mostrar a existência de um modo específico aos processos de integração semânticos não explícitos, ao que Cabral (2008) chama de protótipo (dispositivo gerador de racionalidade). Este protótipo marca o lugar da comunicação nos espaços e, como o grupo se relaciona, neste processo são empregadas normas explícitas da linguagem verbal, por meio da ironia ou da realidade, bem como no campo da estética e da emoção.
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os indivíduos colocam normas para si mesmos, e como elas se relacionam com o modo como as
normas sociais são imaginadas?”
Referências bibliográficas
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