micro-história: narrativa, indivíduo e contexto em foco
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Micro-História: narrativa, indivíduo e contexto em foco.
Natália Barros
Recife, outubro de 2009.
Entre os meses de março e junho de 2009, a disciplina eletiva Micro-história e
usos da biografia foi ministrada na Pós-Graduação em História da Universidade Federal
de Pernambuco pela professora Isabel Guillen. Gerar reflexões metodológicas e teóricas
acerca do indivíduo na História, discutir a noção de contexto (tão cara quanto
problemática para os historiadores) e repensar as transformações no próprio seio da
disciplina História foram alguns dos eixos norteadores do curso. O programa sustentou-
se na leitura de obras fundamentais da produção italiana, inglesa e brasileira da vertente
historiográfica em questão: O queijo e os vermes de Carlo Ginzburg; O retorno de
Martin Guerre de Nalalie Z. Davis; A herança imaterial de Giovanni Levi; Domingos
Sodré: um sacerdote africano de João José Reis e D. Obá II d’África de Eduardo Silva.
Considero a seleção destes livros como um ponto forte da disciplina, que se diferenciou
por estabelecer os critérios de relevância dessas leituras e também das leituras
complementares, dessa forma, levando em conta o exíguo tempo dos doutorandos, bem
como as áreas de interesses de pesquisa do grupo. A dinâmica de seminários,
acompanhados pelas contribuições e críticas da professora, estimulou a participação da
turma e, na maioria dos casos, possibilitou interessantes debates e reflexões. No entanto,
destaco que, a meu ver, o compromisso com as leituras e os debates, para uma turma
composta em sua maior parte de doutorandos, ainda foi insuficiente.
O curso desenvolveu-se a partir das leituras seminais indicadas e considero
muito relevante o fato de, tal como a micro-história nos ensina, não termos nos
prendidos às leituras com um fim em si mesmas e, ao contrário, como mote gerador de
reflexões teórico-metodológicas mais amplas. Uma dessas questões mais amplas, de
interesse não apenas de quem trabalha com temas ou abordagens da micro-história, é a
narrativa historiográfica. Nossas leituras e debates em sala indicaram que dos anos
setenta para cá, no bojo das contribuições trazidas por historiadores como Carlo
Ginzburg e Natalie Davis, perdemos gradativamente a ilusão de construirmos uma
narrativa histórica totalizante, contínua e desprovida de lacunas. O ofício do historiador
(seus procedimentos e usos das fontes de pesquisa e a construção de sua narrativa) é
necessariamente marcado por incompletudes e incertezas. A micro-história, no seu
compromisso de reconstrução analítica das diferenças, lança luz sobre as implicações
na escrita da história dos múltiplos lugares ocupados pelo historiador como leitor das
fontes e produtor de enredos e tramas, como homem do presente e de olhos atentos ao
passado, como sujeito sedento por um passado e possuidor apenas de vestígios. Numa
narrativa onde as lacunas, as dúvidas e incertezas não são colocadas embaixo do tapete
a exigüidade e a dispersão de fontes não são entraves para a produção do conhecimento
histórico. Encarando a documentação como não objetiva, produzida em variados
contextos e portadora de múltiplos interesses, a narrativa historiográfica apresenta-se
como o palco onde a documentação é posta em diálogo, não apenas entre si, mas,
principalmente, com a subjetividade do historiador, por mais problemático que esse
termo possa parecer. Essa questão da narrativa é magistralmente apresentada em O
Queijo e os vermes. Carlo Ginzburg na escrita do livro demonstra seu compromisso
com as fontes (longe de um empiricismo) e igual atenção às estratégias narrativas, ao
lugar do leitor, acompanhando o fazer da pesquisa e os resultados, apresentando as
fragilidades da documentação e o caráter fragmentado da escrita do passado.
Outro debate fundamental do curso refere-se ao lugar do indivíduo nessa
narrativa. Com a abordagem micro-histórica, marcada pelo chamado jogo de escalas,
idéias, crenças, estratégias e posicionamentos de indivíduos comuns são considerados
relevantes, num plano geral. A própria concepção de biografia, vista como linear e
previsível foi radicalmente alterada. O conceito de trajetória, mais complexo e
articulador, ganhou terreno frente às tradicionais histórias de vida. Nos seus primórdios,
e nisso percebemos ainda uma influência do marxismo, os micro-historiadores italianos
procuraram entender o conceito histórico de indivíduo nas chamadas classes
subalternas. Carlo Ginzburg afirma em relação ao seu Menocchio que “um indivíduo
medíocre pode ser pesquisado como se fosse um microcosmo de um estrato social
inteiro num determinado período histórico”. Portanto, o estudo do indivíduo ganha
foros de legitimidade. Não só o estudo da vida pública dos indivíduos, mas também, o
foro íntimo passa a ser pertinente e mesmo visto como um estudo desafiador. Com a
micro-história, as singularidades dos indivíduos passam a ser relevantes e este passa a
ser visto como não subsumido a classes ou grupos. Na micro-história o indivíduo faz
toda a diferença. As intenções e a racionalidade própria dos indivíduos de classes
sociais não privilegiadas passaram a despertar o interesse de historiadores, como
Giovanni Levi, no seu cruzamento de história econômica com história social. Em
oposição à discussão tradicional sobre a formação do Estado Moderno, Levi aborda as
estratégias da vida cotidiana de camponeses. Mostra a partir da história de alguns
indivíduos da aldeia enfocada, que a sociedade camponesa não é imóvel e possui
racionalidade própria.
Aliás, A herança imaterial de Levi é importante para pensarmos não apenas o
lugar do indivíduo na história. Ele proporciona uma pertinente discussão sobre a
concepção de contexto na micro-história. Com a redução de escala, estratégia
metodológica fundamental nessa vertente historiográfica, é possível questionar e rever
contextos convencionais. O contexto agora é encarado como um tecido rugoso,
necessário para informar sobre as ações dos sujeitos. Deixa de ser visto como possível
limitador ou explicador dessas ações. Podemos dizer que o contexto torna-se o terreno
do possível, uma forma de situar o diálogo, as estratégias e ações em um tempo e
espaço. Com a abordagem micro-histórica, o próprio contexto ganha status de
construção e pode ser controlado pelo historiador, como o fez Natalie Z. Davis no seu O
retorno de Martin Guerre.
Com a micro-história e outras vertentes historiográficas mais recentes, como a
história cultural, a História nos últimos trinta anos tornou-se mais próxima da
antropologia e da teoria literária. Inclusive, as fronteiras entre as narrativas
historiográfica e ficcional tornaram-se muito borradas, para angústia dos críticos. A
documentação, base de toda narrativa histórica, deixou de ser encarada como prova e é
vista como possibilidade. A narrativa sisuda do historiador dos anos sessenta perde
espaço a cada dia para as narrativas elaboradas, com enredos e tramas minuciosamente
criados para despertar o interesse do leitor, não só dos especialistas. Sem deixar de lado
os procedimentos do seu ofício, a micro-história ensina que assim como a experiência
humana, a narrativa historiográfica pode ter dúvidas e limites.
Penso que o mérito desse curso foi exatamente refletirmos sobre nossos temas de
pesquisas, mesmo não sendo esse o foco central dos seminários. A pertinência dos
temas, das fontes utilizadas, os recortes temporais foram discutidos de forma enfática e
sistemática, tendo a bibliografia sugerida e a organização dos seminários como fios
condutores. Considerei fundamental destacarmos os aspectos teórico-metodológicos das
obras - demonstrando como a micro-história é multifacetada - e os posicionamentos
institucionais e políticos de seus autores, afastando qualquer rastro de determinismo ou
de possível ingenuidade ao se produzir história.