mia couto_leitura(s)_10.º f - 2012

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ESCOLA ARTÍSTICA ANTÓNIO ARROIO Contos ─ Mia Couto Leituras ─ 10.ºF Prof.ª Eli Maio de 2012

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Leitura(s) de conto(s) de Mia Couto. _ Disciplina de Português _ Prof.ª eli Escola Artística António Arroio - Maio 2012

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Page 1: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

ESCOLA ARTÍSTICA ANTÓNIO ARROIO

Contos ─ Mia Couto

Leituras ─ 10.ºF

Prof.ª Eli

Maio de 2012

Page 2: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

COUTO, Mia, 1997, Estórias Abensonhadas, Lisboa: Caminho

COUTO, Mia, 2001, Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos, Lisboa:

Caminho

COUTO, Mia, 2004, O Fio das Missangas, Lisboa: Caminho

COUTO, Mia, 1987, Vozes Anoitecidas, Lisboa: Caminho

(cfr. p. 23 do Manual do 10.º ano)

Page 3: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

“O calcanhar de Virigílio”, Estórias Abensonhadas

Afonso Sousa – n.º1

Page 4: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

O CALCANHAR DE VIRIGÍLIO

Hortência vai de mágoas e panos. A manhã cresceu no pino do sol

e a mulher segue o caixão de seu marido. No enterro se conta ela e

escassas tias. Ninguém chora. Parece o falecido não era parente de

vivente. Hortência caminha sob a chuva, intransitiva em meio do trânsito.

Sempre ela tivera medo das viaturas, seus modos de donos, ditando leis.

Ela que nem de casa era dona. Porém, no presente desfile, ela já perdera

receios como se os pés e alcatrão tivessem trocado intimidades.

[…]

pág. 51

“No cemitério, a viúva não chora, triste que está. Lágrima liga bem é nos que

ainda guardam esperança”

pág. 53

Page 5: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

Afonso Sousa. 2012

Page 6: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

Afonso Sousa. 2012

Page 7: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

“O Perfume”, Estórias Abensonhadas

Ana Catarina Sentieiro Teixeira – n.º2

Page 8: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

O PERFUME

─ Hoje vamos ao baile!

Justino assim se anunciou, estendendo em suas mãos um

embrulho cor de presente. Glória, sua esposa, nem soube receber. Foi ele

quem desatou os nós e fez despontar do papel colorido um vestido não

menos colorido. A mulher, subvivente, somava tanta espera que já

esquecera o que esperava. Justino guardava ferrovias, seu tempo se

amalgava, fumo dos fumos, ponteiro encravado em seu coração. Entre

marido e mulher o tempo metera a colher, rançoso roubador de espantos.

Sobrara o pasto dos cansaços, desnamoros, ramerrames. O amor, afinal,

que utilidade tem?

[…]

pág.43

Com surpresa, ele viu a inédita lágrima, cintilando na face que ela ocultava. A

lágrima é água e só a água lava tristeza. Justino sentiu o tropeço no peito,

cinza virando brasa em seu coração. E fechou a noite, a porta decepando

aquela breve desordem. Glória colheu a lágrima com dobra do próprio vestido.

pág.46

Page 9: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

Fotografia: Ana Catarina Teixeira

Page 10: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

Ana Catarina Teixeira, 2012

grafite

Page 11: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

“Na terceira pessoa”, Na Berma de Nenhuma Estrada e outros

contos

Catarina Prata – n.º3

Page 12: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

Na terceira pessoa

Dona Salima tratava o marido na terceira pessoa. O homem

chegava, a masculinas horas da noite, e ela se levantava, olhos foscos a

espreitar o corredor. Quando o marido se apresentava, ela lhe

sussurrava:

─ Ele já chegou!

[…]

pág. 165

“As palpébras limpamos olhos de poeiras. Que palpébras limpam as poeiras do

coração?”

Pág. 165

“O homem, cúmplice, aceitava ser nomeado como um terceiro, se convertia

assim, em “ausente e outro”. Se achegava à mulher para escutar as terríveis

ameaças contra ele próprio.”

Pág. 165

“Salima, a par e laço, amolecia sua fúria enquanto confessava as raivas que

sentia pelo desatinado respetivo.”

pág. 166

“O sorriso na esquina de sua boca confirmava: não é homem verdadeiro quem

não sabe usar a lágrima de mulher como um trapo em que enxugamos nossas

inconfessadas sujeiras.”

pág. 166

Page 13: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

“Os gatos voadores”, Na Berma de Nenhuma Estrada e outros

contos

Ana Natália Prazeres – n.º 4

Page 14: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

Os gatos voadores

Havia e vivia um agentamento num certo prédio, tudo em alegres

conformidades. A todos faltava o pão mas nenhum ralhava e todos

tinham razão. Uns e outros bem avizinhados, conversas ganhando

intimidade de paredes e ouvidos. Naquele edifício todas as paredes eram

paredes-meias. As brigas eram sempre sem caso, apenas um tropeço na

confraternidade. A pessoa discute com o mundo para se apaziguar com a

vida.

[…]

pág. 145

“[...] diante da janela lhe passara uma gatazana, cheia de sete vidas e

bem miaudível. Desbichanara-se defronte da janela, rumo aos céus”

pág. 145

“[...] um gato trespassara o espaço, em gatafunhos de voo.”

pág. 147

“[...] quais felpudinhos cometas num ecrã de cinema.”

pág. 147

“E as visões se repetiram, noite após noite: gatos riscando o céu em

meteóricas desaparições, quais felpudinhos cometas num ecrã de

cinema. Aquilo era o quê: um cat-man? O terror se confirmou entre os

moradores. As versões se misturavam e engrandeciam. Já não eram

apenas gatos mas monstros que tracejavam os céus. Uns começaram a

mudar de casa. Assombros não podem coabitar com a humanidade. Só

quando esta última se garante como senhoria e recebe a certeira renda

do medo alheio. “

pág. 147

Page 15: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

Fotografia: internet

Page 16: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

Fotografia: Ana Natália Prazeres

Page 17: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

“O Adivinhador das Mortes”, Estórias Abensonhadas

Beatriz Teixeira Lira – n.º 5

Page 18: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

O ADIVINHADOR DAS MORTES

No bairrinho de Muitetecate havia um poderoso espiriteiro que

adivinhava, com acerto de álgebra, a data das individuais mortes. Não

usava os convencionais métodos: pedrinhas, conchas e ossinhos. Não.

Ele tinha duas pequenas cruzes de marfim que encostava sobre os olhos

dos consultados. O adivinho cerrava os seus próprios olhos: se

concentrava, todo dentro das pálpebras, até abraçar com seu escuro o

escuro do outro. Nesse tocar de penumbras se escrevia o exacto da data

dos falecimentos.

[…]

pág. 167

“Saboreamos o cristal do riso, a polpa samaruda do amor, a doce sombra da

amizade, trincamos a eternidade em breves dentadas não é para depois

sermos nada, nenhum, ninguém.”

pág. 167

“– Vou morrer daqui a nada?

– Não, não vai morrer.”

– Não vou morrer? Como não vou?

– Esse o problema.

– Se me explique, homem!

– É que você, Adabo Salanje, você já morreu.”

pág.169

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Beatriz Lira, 2012

sanguíneas, lápis de cor amarelo e azul, caneta de ponta fina preta

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fotografia - editada

Page 21: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

“Os olhos dos mortos”, No Fio das Missangas

Catarina Telo Afonso – n.º 6

Page 22: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

Os olhos dos mortos

Estou tão feliz que nem rio. Deito-me com desleixo, bastando-me:

eu e eu. O regressar de meu marido mediu, até hoje, todas as minhas

esperas. O perdoar a meu homem foi medida do desespero. Durante

tempos, só tive piedade de mim. Hoje não, eu me desmesuro, pronta a

crianceiras e desatinos. Minha alegria, assim tanta, só pode estar errada.

[…]

pág. 71

Page 23: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

“O assalto”, Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos

Clara Morais – n.º 7

Page 24: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

O assalto

Uns desses dias fui assaltado. Foi num virar de esquina, num

desses becos onde o escuro se aferrolha com chave preta. Nem decifrei o

vulto: só vi, em rebrilho fugaz, a arma em sua mão. Já eu pensava fora do

pensamento: eis-me! A pistola foi-me justaposta no peito, a mostrar-me

que a morte é um cão que obedece antes mesmo de se lhe ter assobiado.

[...]

pág. 129

"O medo é uma faca que corta com o cabo e não com a lâmina. A gente

empunha a faca e, quanto maior a força de pulso, mais nos cortamos".

pág. 129

"Temos medo do que não entendemos. Isso todos sabemos. Mas, no caso, o

meu medo era pior: eu temia por entender".

pág. 130

"O homem recorria ao assalto de arma de fogo para roubar instantes, uma

frestinha de atenção".

pág. 131

Page 25: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

Clara Morais, 2012

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Page 27: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

“A menina de futuro torcido”, Vozes Anoitecidas

Daniela Martins – n.º 8

Page 28: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

A menina de futuro torcido

Joseldo Bastante, mecânico da pequena vila, punha nos ouvidos a

solução da sua vida. Viajante que passava, carro que parava, ele

aproximava e capturava as conversas. Foi assim que chegou de ouvir um

destino para sua filha mais velha, Filomeninha.

[…]

pág. 143

Quando você for rica hás-de dormir até de colchão. Aqui em casa todos vamos

deitar bem, cada qual no colchão dele. Vai ver que só acordamos na parte da

tarde, depois dos morcegos despegarem.

pág. 147

À noite amarrava a filha ao bidão para que as costas dela ficassem noivas da

curva do recipiente

pág. 146

O acontecimento nunca é indígena. […] O mundo tem sítios onde pára e

descansa a sua rotação milenar. Aquele era um desses lugares.

pág. 147

Quando a retiravam das cordas, a menina estava toda torcida para trás, o

sangue articulado, ossos desencontrados. Queixava-se de dores e sofria de

tonturas.

pág. 146

Page 29: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

Filomeninha amarrotava a olhos vistos.

pág. 146

Na garagem os seus ouvidos eram antenas à procura de notícias do

contratador.

pág. 147

"O que mais dói na miséria é a ignorância que ela tem de si mesma. Confrontados com

a ausência de tudo, os homens abstêm-se do sonho, desarmando-se do desejo de

serem outros.

Existe no nada essa ilusão de plenitude que faz parar a vida e anoitecer as vozes. Estas

estrias desadormeceram em mim sempre a partir de qualquer coisa acontecida de

verdade mas que me foi contada como se tivesse ocorrido na outra margem do mundo.

Na travessia dessa fronteira de sombra escutei vozes que vazaram o sol. Outras foram

asas no meu voo de escrever. A umas e a outras dedico este desejo de contar e de

inventar."

In “Texto de abertura”, pág. 19

Page 30: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

Daniela Martins, 2012

Page 31: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

“O arroto de Dona Elisa”, Na Berma de Nenhuma Estrada e

outros contos

Diogo Assis – n.º 9

Page 32: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

“Por um instante acreditava no final total, o apocalipse”.

“Mamã Elisa está incomodada”.

“Dona Elisa, afinal, não era caso de ciências. Nem geologia nem

humanologia a entenderiam. Seu único fenómeno era amor, a

ausenciada de paixão.”

“Em vez do esperado e proclamado arroto veio um fiozinho de voz, um

piar de passarinho. Esse sopro foi a sua última exibição”

Page 33: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

Diogo Assis, D. Elisa, fiozinho de voz, piar de passarinho, 2012

Aguarela, lápis, caneta preta e pincel.

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“A fogueira”, Vozes Anoitecidas

Eduardo Carvalho – n.º 10

Page 36: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

A fogueira

A velha estava sentada na esteira, parada na espera do homem

saído no mato. As pernas sofriam o cansaço de duas vezes: dos

caminhos idosos e dos caminhos caminhados.

[…]

pág. 21

“─ como és tão bom, marido! Tive sorte no homem da minha vida.”

pág. 24

“─ Se tu morres como é que eu, sozinho, doente e sem as forças, vou-

lhe enterrar?”

pág. 24

“─ Estou a medir o seu tamanho. Afinal és mais alta do que eu

pensava.”

pág. 25

“─ Vai, mulher. Eu vou ficar a covar teu cemitério.”

pág. 25

“Neste deserto solitário a morte é um simples deslizar, um recolher de

asas.”

pág. 27

“Quando a lua começou a ascender as árvores do mato, ela inclinou-se

e adormeceu.”

pág. 28

Page 37: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

O velho adormeceu, a mulher sentou-se à porta. Na sombra do seu

descanso viu o sol vazar, lento rei das luzes. Pensou no dia e riu-se dos

contrários: ela, cujo nascimento faltara nas datas, tinha já o seu fim

marcado. Quando a lua começou a acender as árvores do mato ela

inclinou-se e adormeceu. Sonhou dali para muito longe: vieram os filhos,

os mortos e os vivos, a machamba encheu-se de produtos, os olhos a

escorregarem no verde. O velho estava no centro, gravatado, contando

as histórias, mentira quase todas. Estavam ali os todos, os filhos e os

netos. Estava ali a vida a continuar-se, grávida de promessas. Naquela

roda feliz, todos acreditavam na verdade dos velhos, todos tinham

sempre razão, nenhuma mãe abria a sua carne para a morte. Os ruídos

da manhã foram-na de si, ela negando abandonar aquele sonho. Pediu

à noite que ficasse chamando para fora para demorar o sonho, pediu

com tanta devoção como pedira à vida que não lhe roubasse os filhos.”

pág. 28

Imagem: da internet

Page 38: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

Eduardo Carvalho, 2012

Page 39: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

“A infinita fiadeira”, O Fio das Missangas

Francisco Lacerda – n.º 11

Page 40: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

A infinita fiadeira

( A aranha ateia

Diz ao aranho na teia:

O nosso amor

Está por um fio!)

A aranha, aquela aranha, era tão única: não parava de fazer teias!

Fazia-as de todos os tamanhos e formas. Havia, contudo, um senão: ela

fazia-as, mas não lhes dava utilidade. O bicho repaginava o mundo.

Contudo, sempre inacabava as suas obras. Ao fio e ao cabo, ela já

amealhava uma porção de teias que só ganhavam senso no rebrilho das

manhãs.

[…]

pág. 75

A aranha ateia diz ao aranho na teia: o nosso amor está por um fio!

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Imagem: internet

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Page 43: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

“O último aviso do corvo falador”, Vozes Anoitecidas

Gabriel Pessoa – n.º 12

Page 44: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

O último aviso do corvo falador

Foi ali, no meio da praça, cheio da gente bichando na cantina. Zuzé

Paraza, pintor reformado, tossiu sacudindo a magreza do seu todo corpo.

Então, assim contam os que viram, ele vomitou um corvo vivo. O pássaro

saiu inteiro das entranhas dele. Estivera tanto tempo lá dentro que já

sabia falar. Embrulhado nos cuspes, ao princípio não parecia. A gente

rodou à volta do Zuzé, espreitando o pássaro caído da sua tosse. O bicho

sacudiu os ranhos, levantou o bico e, para espanto geral, disse as

palavras. Sem boa pronúncia, mas com convicção. Os presentes

perguntaram:

- Está falar, o gajo?

[…]

pág. 33

“Um homem pode parir nos pulmões?”

pág. 34

“No dia seguinte, Zuzé confirmou esta última versão. O corvo vinha lá

da fronteira da vida, ninhara nos seus interiores e escolhera o

momento público da sua aparição.”

pág. 34

Page 45: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

Imagem: internet

Page 46: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

Gabriel Pessoa, 2012

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“O Moço não mental”, Na berma de Nenhuma Estrada e outros

contos

Joana Fatela – n.º 13

Page 48: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

O moço não mental

A mãe olhou o relógio na parede da cozinha.

─ Por que esse miúdo não regressa, sozinho como os outros?

[…]

pág. 43

“compaixonasse”

pág.43

“alumbração”

pág.44

“risonhável”

pág.45

“ A mãe se sentou, caneta em riste, disfarçando, uma vez mais, a letra

torta do menino. Ela se cansara de recobrir o atraso do moço. Outras

tinham filhos. Ela tinha uma doença. Incurável, definitiva. Mesmo que ele

se extinguisse, na fronteira do suspiro, mesmo assim ela continuaria

exercendo sua maternidade. É-se mãe ainda que deixando de ser. Toda

a mãe é vitalícia”

pág.45

Page 49: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

Joana Fatela

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Page 51: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

“A avó, a cidade e o semáforo”, O fio das Missangas

Laura Ramos – n.º 14

Page 52: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

A avó, a cidade e o semáforo

Quando ouviu dizer que eu ia à cidade, Vovó Ndzima emitiu as

maiores suspeitas:

─ E vai ficar em casa de quem?

[…]

pág. 127

“Cozinhar é o mais privado e arriscado acto. No alimento se coloca

ternura ou ódio. Na panela se verte tempero ou veneno.”

pág. 128

“« [...] agora, neto, durmo aqui perto do semáforo. Faz-me bem aquelas

luzinhas, amarelas, vermelhas. Quando fecho os olhos até parece que

escuto a fogueira, crepitando em nosso velho quintal [...]»”

pág. 131

“O silêncio me atropelou, um riso parvo pincelando-me o rosto.”

pág. 130

“Ri, sem palavra. Mas, para ela, não havia riso, nem motivo. Cozinhar é

o mais privado e arriscado acto. No alimento se coloca ternura ou ódio.

Na panela se verte tempero ou veneno. Quem assegurava a pureza da

peneira e do pilão? Como podia eu deixar essa tarefa, tão íntima, ficar

em mão anónima? Nem pensar, nunca tal se viu, sujeitar-se a um

cozinhador de que nem o rosto se conhece.”

pág. 128

Page 53: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

Laura Ramos, 2012

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Page 55: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

“O bebedor do tempo”, Estórias Abensonhadas

Leonor Vaz – n.º 15

Page 56: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

O BEBEDOR DO TEMPO

Naquela tarde eu me sentei na esplanada, cobrando sossego para

minha alma privada. Em pausa de viagem, aguardava meu regresso à

capital. Naquela transitória vila, fazia muito Norte e o calor apertava. A

gente se desmoçava só de tocar a atmosfera. Eu, em verdade, me

asfixiava. Por isso, escolhi assento fora, na esperança de um fresco. O

bar se chamava A Brisa do Inferno e merecia o título. Ali fiquei, me

entretendo a ver passar as moças, dessas mais ligeiras que as libelinhas

que fazem amor no ar. Até que vi um homem escuro, barulhando,

algumas mesas adiante. Sem aparência de razão, o tipo esbracejava no

ar, convocando suores e atenções. Perguntei o que ele fazia mas me

ordenaram respeitoso silêncio:

[…]

pág. 151

Panicaram

pág. 155

Contemplinactivo

pág. 156

“O que estou bebendo não é cerveja. Estou bebendo é o tempo, para ver se ela

não demora tanto…”

pág. 154

Page 57: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

Fotografia: Leonor Vaz

Page 58: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

Liquefação

do

tempo

Page 59: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

“Na Berma de Nenhuma Estrada”, Na Berma de Nenhuma

Estrada e outros contos

Mª Catarina Azevedo ─ n.º18

Page 60: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

Porque dentro de mim há qualquer coisa de falecida, a secreta desistência de

mim-nunca ninguém me vai carregar.

As vezes que eu já viajei, rumei para os desmundos.

Quando somos loucos a vida nunca nos faz mal.

Não quero alegria de morcego que sai para o mundo quando já tudo anoiteceu.

Quero sair quando ainda tenho mocidades para viver, peito encostado na alma.

Tenho inveja da chuva: Tomba e logo muda de nome. Termina a chuvinha e

começa a água, acaba o corpo e começa a substância.

Page 61: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

Imagem: M.ª Catarina Azevedo

Page 62: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012
Page 63: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

“O menino que escrevia versos”, O Fio das Missangas

Mariana Andrade – n.º 20

Page 64: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

O menino que escrevia versos

De que vale ter voz

se só quando não falo é que me entendem?

De que vale acordar

se o que vivo é menos do que o que sonhei?

(Versos do menino que fazia versos)

─ Ele escreve versos!

Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico

levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo

de montanha.

─ Há antecedentes na família?

[…]

pág. 133

“Ele escreve versos!”

.pág.133

“ […] o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, […]”

Pág. 134

“ O filho fora confeccionado nesses namoros de unha suja, restos de

combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor.”

págs.133-134

Page 65: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

, “─ O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte eléctrica.”

pág. 134

” Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo,

lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por

sobressalentes, não importava.”

pág. 136

“Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes

ele se senta num recanto do quarto onde está internado o menino. Quem

passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a

verso, o seu próprio coração.

E o médico, abreviando silêncios:

- Não pare, meu filho. Continue lendo…”

pág.136

Fotografia: Mariana Andrade

Page 66: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

Fotografia: Mariana Andrade

Page 67: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

“A outra”, Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos

Marta Manso – n.º 20

Page 68: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

A outra

Ninguém, mas ninguém, pensava que Laura admitiria uma coisa

assim: viver junto com o marido e mais a outra. Ela, que era orgulhosa,

ciosa e ciente, como é que albergava e alimentava agora a própria amante

de seu marido, o Amaral? Afinal, ninguém conhece ninguém. Cada qual é

a capa de um outro livro.

[…]

pág. 67

“quando Amaral esfriou, moroso no gesto, vago na palavra, Laura ainda

pensou ser esse o desbotar do matrimónio”

pp. 67-68

“ela usava as narinas não do nariz mas da alma: farejava o improvável

querendo encontrar o impossível”

pág. 68

“─ O homem, você entende, Laura, o homem necessita de viver muitas vidas.

─ E a mulher não ?

─ A mulher gera vidas dentro de si. Essa é a diferença.”

pág. 68

“mais grave que a ausência seria ele ter-se dedicado a uma individa qualquer”

pág. 68

Page 69: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

Marta Manso, machado, 2012

aguarela

Page 70: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012
Page 71: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

“O adivinhador das mortes”, Estórias Abensonhadas

Mikeias Costa – n.º 22

Page 72: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

O ADIVINHADOR DAS MORTES

No bairrinho de Muitetecate havia um poderoso espiriteiro que

adivinhava, com acerto de álgebra, a data das individuais mortes. Não

usava os convencionais métodos: pedrinhas, conchas e ossinhos. Não.

Ele tinha duas pequenas cruzes de marfim que encostava sobre os olhos

dos consultados. O adivinho cerrava os seus próprios olhos: se

concentrava, todo dentro das pálpebras, até abraçar com seu escuro o

escuro do outro. Nesse tocar de penumbras se escrevia o exacto da data

dos falecimentos.

[…]

pág. 167

“Sonhara que estava na casa dos mortos e lhe perguntavam:

─ Você, Salange, ainda está morto?”

pág. 165

“ -Desconsigo, sua cabeça está muito barulhosa . aquiete lá o pensamento”

pág. 165

“ – É que você, Adabo Salanje, você já morreu”

pág. 169

“ E os dois pelo caminhinho não deixava nenhuma pegada fossem pisando não

a areia mas o céu “

pág. 171

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Mikeias Costa, 2012

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Mikeias Costa, 2012

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“O abraço da serpente”, Estórias Abensonhadas

Patrícia Nobre – n.º 23

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O ABRAÇO DA SERPENTE

A notícia da Rádio falava na imprecisa morte de Acubar Aboobacar,

encontrado em jeito de total falecimento no vasto cadeirão de sua sala. E

assim: pelo aspecto do malogrado suspeita-se que a causa da morte

tenha sido mordedura de cobra. Contudo, não foram encontrados nem o

animal nem sinais dos dentes no corpo do falecido. A esposa disse à

Rádio que Aboobacar vinha denotando um comportamento estranho e lhe

dirigia frequentes ameaças. Suspeitava, sem fundamento, de infidelidade

conjugal.

[…]

Pág. 105

Acubar Aboobacar nem cabia nos universos. A vasta admiração dele

sobrava, descomposta, de todos seus nervos.”

pág. 106

Olhando aquela figura, o menino sentiu saudade do pai que ele tinha

sido antes da guerra.

Perguntar é vergonha, duvidar é fraqueza

pág. 106

[…] boina vinagrando-lhe no colo].

pág. 107

Parecia que outro ser, monstriforme, roubava o desenho do seu velho.

pág.108

[…] retirou a boina azul do colo do marido. Depois, amarfanhou-a

disfarçadamente em sua bolsa. Dizem

pág. 108

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“A guerra dos palhaços”, Estórias Abensonhadas

Rita Diniz – n.º 26

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A guerra dos palhaços

Uma vez dois palhaços se puseram a discutir. As pessoas paravam,

divertidas, a vê-los.─ É o quê?, perguntavam ─ Ora, são apenas dois

palhaços discutindo.

Quem os podia levar a sério? Ridículos, os dois cómicos

ripostavam. Os argumentos eram simples disparates, o tema era uma

ninharice. E passou-se um inteiro dia. Na manhã seguinte, os dois

permaneciam, excessivos e excedendo-se. Parecia que, entre eles, se

azedava a mandioca. Na via pública, no entanto, os presentes se

alegravam com a mascarada. Os bobos foram agravando os insultos, em

afiadas e afinadas maldades. Acreditando tratar-se de um espectáculo, os

transeuntes deixavam moedinhas no passeio.

No terceiro dia, porém, os palhaços chegavam a vias de facto. As

chapadas se desajeitavam, os pontapés zumbiam mais no ar que nos

corpos. A miudagem se divertia, imitando os golpes dos saltimbancos. E

riam-se dos disparatados, os corpos em si mesmos se tropeçando. E os

meninos queriam retribuir a gostosa bondade dos palhaços.

pág. 135

“Na via pública, no entanto, os presentes se alegravam com a mascarada.”

pág. 135

Entrava-se na segunda semana e os bairros em redor ouviram dizer que […] a

coisa escaramuçara toda a praça.”

pág. 136

“esparramorto”

Pág. 136

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“escaramuçara”

pág. 136

“Nessa manhã, os cómicos se sentaram cada um em seu canto e se livraram

das vestes ridículas. Olharam-se, cansados. Depois, se levantaram e se

abraçaram, rindo-se a bandeiras despregadas. De braço dado, recolheram as

moedas nas bermas do passeio. Juntos atravessaram a cidade destruída,

cuidando não pisar os cadáveres. E foram à busca de uma outra cidade.”

pág. 137

Rita Diniz. 2012

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“Prostituição auditiva”, Na Berma de Nenhuma Estrada e outros

contos

Filipe Rosado – n.º 26

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Prostituição auditiva

O português gostava era de ouvir as pronúncias dela. Pagava notas

só para a ficar escutando a noite inteira. Mariana não tinha que fazer mais

nada: só divagar, devagar, sem sexo nem nexo. O tuga, militar até aos

botões, só queria que a prostituta falasse.

[…]

pág. 71

“Canoa se inventou antes do rio?”

pág. 73

“Uma furtiva tristeza, véspera de lagrima?”

pág. 73

“Ela sobrancelhou uma surpresa”

pág. 74

Horas depois, ele se apressava a sair. Pagava os variáveis honorários. Ela

amarfanhava os dinheiros no soutien. Já sabia o seguinte: antes de sair o

branco lhe pedia para cheirar as notas, tomava-as como se fossem delicadas

flores e nelas aspirava fundamente o cheiro do suor dela. Depois, tocava as

notas e dizia:

- Eu transpiro para as ter, tu tem-las transpiradas.

pág. 72

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Filipe Rosado. 2012

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Page 85: Mia Couto_leitura(s)_10.º F - 2012

COUTO, Mia, 1997, Estórias Abensonhadas, Lisboa: Caminho

COUTO, Mia, 2001, Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos, Lisboa:

Caminho

COUTO, Mia, 2004, O Fio das Missangas, Lisboa: Caminho

COUTO, Mia, 1987, Vozes Anoitecidas, Lisboa: Caminho

(cfr. p. 23 do Manual do 10.º ano)

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ESCOLA ARTÍSTICA ANTÓNIO ARROIO

Contos ─ Mia Couto

Leituras ─ 10.ºF

Prof.ª Eli

Maio de 2012