merlim- robert de boron
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Depois que Brás ficou pronto, Merlim contou-lhe fielmente todas as provas de
amor que Jesus Cristo havia dado a José de Arimatéia. Contou-lhe em seguida a
estória de Alan e de seus companheiros, como havia partido da casa de seu pai e
como Pedro havia partido e como José se desfez do Santo Graal e como morreu.
Explicou como os diabos, diante desses acontecimentos, reuniram-se em conselho,
porque haviam percebido que tinham perdido seu antigo poder sobre os homens.
Considerando o prejuízo que os profetas lhes haviam causado, decidiram
unanimemente gerar um homem...
2
Robert de Boron
Merlim
Romance do século XIII
Traduzido do francês antigo,
Com apresentação e glossário, por Heitor Megale
Imago
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Copyright © Imago Editora, 1993
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Boron, Robert de Merlim / Robert de Boron, traduzido do francês antigo, com apresentação e glossário de Heitor Megale – Rio de Janeiro: Imago Ed., 1993. 208 p. (Coleção Lazuli) Tradução da edição de 1980 de Alexandre Micha de: Merlim Apêndice Bibliografia ISBN 85-312-0274-4
1. Ficção francesa antiga. I. Megale, Heitor, 1940- II. Título. III. Série. CDD – 843 CDU – 840-3
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Sumário Apresentação ................................................................................................................... 5 Glossário ....................................................................................................................... 14 Merlim ......................................................................................................................... 16 Bibliografia ................................................................................................................. 264
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Apresentação
Um menino de dezoito meses, ao ver sua mãe lamentar-se dizendo que
em má hora Deus havia permitido o nascimento e a geração do filho em seu corpo,
para sua morte e seu suplício, olha para ela, ri e diz: "Querida mãe, não temas nada,
não morrerás pelo pecado de que nasci."
Na iminência de sua mãe ser levada à fogueira, esse menino enfrenta
irritado o juiz e fala: "Sei quem é meu pai melhor do que vós, o vosso; e vossa mãe
sabe melhor quem vos gerou do que a minha, a mim."
Esse menino é Merlim, filho de uma donzela com um incubo. Depois de
desmascarar a mãe do juiz, começa a fazer reverter o quadro de condenação que se
configurava em relação a sua mãe, e explica "mais por amizade do que pelo medo
do poder do juiz", que, de fato, é filho de um demônio que seduziu sua mãe.
Demônios desta espécie que seduzem mulher chamam-se íncubos e vivem no ar. E
Deus permitiu — continua ele explicando a quantos se encontram no tribunal —, que
esse demônio me desse o conhecimento das coisas feitas e ditas e acontecidas. Por
isso é que eu sei a vida que a mãe do juiz levou. E Nosso Senhor, para recompensar
a virtude de minha mãe, seu sincero arrependimento, pela penitência que lhe impôs
o ermitão, e pela obediência aos mandamentos da nossa santa Igreja, deu-me a
graça de conhecer, em parte, o futuro.
Ainda menino, dá mais provas de conhecimento do passado, como na
cena em que os emissários do rei o levam à corte. Um dia, passam por uma vila,
onde se enterrava uma criança. Homens e mulheres acompanham o corpo com
grandes manifestações de dor. Ao ver essa dor e os padres e os clérigos que
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cantavam e levavam o corpo com pressa a enterrar, Merlim começa a rir e pára. A
quem lhe pergunta por que ria, responde que era pela maravilha que presenciava:
"...na frente vai o clérigo que canta; pois ele é que deveria lamentar-se no lugar do
homem. O menino que está morto e pelo qual o homem chora é filho do clérigo que
canta." E prova disso depois, o testemunho da mãe da criança.
O riso de Merlim percorre a narrativa, prenunciando sempre o controle do
uso da magia da personagem.
Merlim controla também a própria narrativa. Confia a Brás a missão de
meter em escrito toda a matéria que lhe passar e profetiza que nunca a estória de
uma vida será ouvida com tanto agrado, como a de Artur e a dos homens de seu
tempo. E quando Brás tiver acabado o livro e contado as vidas deles a todos, seu
mérito será igual ao daqueles que vivem na companhia do santo vaso que se chama
Graal, e seu livro será chamado Livro do Graal, e as pessoas terão grande prazer
em escutá-lo, porque muito pouca coisa dele, de palavras ou ações contadas,
deixará de ter proveito, ou será letra morta.
Merlim, essa personagem de uma origem misteriosa principiada num
concílio dos demônios, atua na Inglaterra, num tempo em que o cristianismo apenas
lá chegara e a ilha não havia tido ainda nenhum rei cristão.
As mais antigas informações acerca de Merlim nem sempre coincidem.
Os poemas galeses de Mirdim, sem dúvida, forma literária de folclore mais antigo,
apresentam a personagem com traços que caracterizam a figura do mago como um
herói, um chefe guerreiro ou um bardo chamado Mirdim. Tocado pela loucura ao
cabo de uma batalha, refugia-se na floresta de Caledônia, onde passa a viver como
selvagem ocupando-se em profetizar acerca da vida política de seu povo em conflito
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com povos rivais1. Triads, versos da antiga literatura galesa que cantam importantes
assuntos da tradição do povo gales, numa estrutura de grupos de três, traz Merlim
embarcando numa nave de cristal com seus nove bardos sábios — e nunca mais se
soube dele2. Outra lenda de Gales apresenta Merlim num palácio de cristal na ilha
de Bardsey, cercado dos treze tesouros da Grã-Bretanha. De acordo com essa
lenda, o mago estaria fadado a permanecer nesse palácio, num sonho encantado,
até o dia em que Artur voltasse da Ilha de Avalon, que é o lugar para onde o rei
havia seguido com Morgana e as fadas, depois da última batalha contra seu filho
incestuoso Morderete3. A estória mais repetida nos romances da época, no entanto,
dá outro destino a Merlim, sob os encantamentos de Viviane, num palácio
encantado, na floresta de Broceliande4.
Não apenas os destinos de Merlim são diferentes, como também variadas
são as versões de sua origem. Numa tradição considerada galesa, mas que pode
remontar a uma língua comum anterior à distinção entre o galés, o cornualhês e o
bretão, situa-se a lenda de Myrddin Willt, o Merlim Silvestre, o Merlim da floresta de
Caledônia. Em Monmouth, encontramos Merlim Ambrósio, o mago do rei Aurélio
Ambrósio, que teria vivido cerca de um século adiante daquele. Talvez fosse mais
acertado considerar esses dois um só, tal a variedade de figuras que Merlim
1 A. O. H. Harman, "The Welsh Myrddin Poems" in Roger Dhernian Loomis (org.), Arthurían Literature in the Middle Ages. A Collaborative History (Oxford: Clarcnclon Press, 1959), p. 20-30. 2 Rachel Bromwich. Trioedd Ynis Prydein (Cardiff: University of Wales Press, 1961). 3 É o que ocorre em A morte de rei Artur, no Ciclo do Pseudo Map ou Vulgata da matéria da Bretanha, bem como na Demanda do Santo Graal, na Post-Vulgata. Da primeira destas obras, há tradução brasileira recente, A Morte do Rei Artur (São Paulo: Martins Fontes, 1992) e da outra, há edição em português contemporâneo: Demanda do Santo Graal (São Paulo: T. A. Queiroz Editor, Editor, 1ª reimpr., 1989). Na obra tardia de Malory, The Whole Book of King Arthur and His Noble Knights of lhe Round Table, titulo alterado pelo editor Ccazton para Le Morte D’Arthur, também está presente a cena. 4 É o que se pode constatar Agravain, ed. H. Oskar Sommer, The Vulgate Version of the Arthurian Romances, vol. V: Le Livre de Lancelot del Lac, parte 3; no Galehaut, na mesma edição de Sommer, vol. III, Le livre de Lancelot del Lac, parte l e vol. IV, parte 2; ainda na mesma edição de Sommer, vol. VII, Le Livre d'Artus; em La Suite du Merlin, na edição de Gaston Paris: Mertin roman en prose du XIII. siecle, publiê d'apres lê ms. Huth; e na Vulgate Merlin Continuation, novamente na edição de Sommer, vol. II: L'Estoire de Merlin.
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assume, como se verá, por exemplo, ao longo deste livro. O que é comum às lendas
bretãs que estariam entre as fontes deste livro é que Merlim é um mago com
poderes sobrenaturais exercendo a função de profeta e protetor dos bretões.
Quando a personagem chega à Historia Regum Britanniae, de Geoffrey of
Monmouth, seus traços, provenientes porventura de variadas fontes, não sofrem
alterações tão relevantes. Nessa obra, em sua primeira aparição, encontramo-lo já
moço, na corte de Vortigerne, sendo agredido por outro jovem que o desafia por
ignorar quem é seu pai5.
Geoffrey of Monmouth declara ter traduzido as Profecias de Merlim do
original galés para o latim, a pedido de Alexandre, bispo de Lincoln6. Entre outras
obras em latim que trazem essas profecias com as possíveis diferenças, ou
simplesmente fazem referência a elas, está a Historia Ecclesiastica, de Ordericus
Vitalis7.
Historia regum Britanniae, de Geoffrey of Monmouth inspirou Wace of
Jersey em seu Roman de Brut, obra que, para alguns estudiosos, é considerada
como aquela Historia posta em versos. Essa obra normanda é, sem dúvida, o elo de
ligação entre as fontes primitivas e o grande desenvolvimento que atingirá a
chamada matéria da Bretanha. Robert de Boron deve muito ao Brut de Wace, tendo
5 Geoffrey of Monmouth, Historia Regum Britanniae, ed. de Jacob Hammer (Cambridge: The Mediaeval Academy of America, 1951). 6 Na obra referida na nota anterior, nos Livros II e VII. 7 Orderici Vitalis Angligenae coenobii Uticensis monachi, Historiae Ecclesiasticae libri tredecim, ed. Auguste Le Prevost (Paris: 1852), apud Michael J. Curley, "A New Edition of John of Cornwall's Prophetia Merlini" in Sepeculum, LVII, fasc. 2, 1982, p. 217-249.
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utilizado até mesmo a grande inovação de Wace: o estabelecimento da távola
redonda por Artur8.
As circunstâncias do nascimento do mago são as mesmas em Geoffrey e
em Wace. Geoffrey conta ter lido nos filósofos e cm numerosas histórias que muitos
homens foram concebidos da mesma forma que Merlim. Como Apuléio sustenta a
respeito do deus de Sócrates, habitam entre a lua e a terra certos espíritos que
chamamos íncubos. Eles participam ao mesmo tempo da natureza humana e da
angélica e, quando lhes agrada, assumem figura humana para seduzir mulheres. Má
de ter sido assim que este menino nasceu. Wace, em seus versos, não é muito
diferente. O que se nota é que à natureza humana acrescenta-se a diabólica, que
aliás não é senão a angélica decaída9.
Em Robert de Boron, há um projeto de maiores proporções, com um
programa definido. Atendo-nos inicialmente apenas ao Merlim, convém observar que
o estatuto e a função da personagem passa por uma grande transformação, na
medida em que o autor a situa dentro da história da humanidade, num momento
crucial posterior à redenção. Percebendo o grande risco de uma perda total, os
demônios resolvem, em concilio, dar sua réplica decidindo criar o avesso de Cristo
por meios que violam as leis ordinárias da criação: o diabo fecunda um corpo
feminino, assim como o Espírito Santo fizera com a Virgem. O esperado fruto
diabólico teria a missão de desviar o povo de Deus do caminho traçado por Cristo e
conquistá-lo para os domínios infernais.
8 Wace of Jersey, Le Roman de Brut, edição de Yvor Arnold (Paris: SATF, 1938): "Pur les nobles baruns qu'il out, / Dunt chescuns mieldre estre quidout, / Chescuns se teneit al meillur, / Ne nuls n'en saveit le peiur, / Fist Artur Ia Roünde Table / Dunt Bretun dient mainte fable." (versos 9747-9752). 9 Cf. entre outras passagens bíblicas: Luc. X, 18 e Apoc. XII, 7 - 10.
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Mas os demônios fracassam. As razões desse fracasso, o próprio Merlim
as expõe a seu fiel amigo Brás: "Eles (os demônios), por sua vez, não foram sábios
quando decidiram que um deles engravidaria minha mãe, como de fato engravidou:
o vaso que me recebeu era muito puro para pertencer a eles, e a virtude de minha
mãe prejudicou-lhes muito o plano. Se me tivessem feito em minha avó, não teria
tido o poder de conhecer a Deus e acabaria pertencendo a eles, pois ela levou má
vida e por causa dela aconteceram todas as catástrofes que se abateram sobre meu
avô e sobre minha mãe..."
Em conseqüência, pois, da virtude de sua mãe, este filho de um incubo
confirma as esperanças de salvação para toda a humanidade. Esta é a primeira
grande renovação que Robert de Boron opera na tradição da personagem de
Merlim.
A segunda, estreitamente vinculada a essa, foi acoplar Merlim e o Graal
de modo tão íntimo que o próprio Merlim tornou-se autor da estória, na medida em
que é ele quem passa os fatos a serem registrados para seu fiel escriba e confidente
Brás. Dessa forma, cumpre Merlim a função de preparar os reis e o povo da
Inglaterra para a vinda do cavaleiro que há de "dar cima" às aventuras do reino de
Logres10: o cavaleiro digno de ocupar o lugar vazio da mesa do Graal — a mesa de
José de Arimatéia —, símbolo daquele lugar deixado vazio por Judas na mesa da
ceia de Cristo com seus discípulos, a primeira das mesas. Esse cavaleiro, flor da
cavalaria, preencherá a vaga na terceira mesa, a távola redonda fundada pelo rei
Artur.
10 Dar cima é uma expressão corrente nos textos arturianos medievais ibéricos, com o significado de levar a cabo, levar a bom termo, acabar, terminar com êxito.
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Em conseqüência dessas duas grandes inovações, a trama recebe as
adaptações necessárias. Na infância, Merlim vai confirmando seu dom de profecia,
ao longo de episódios que arrancam a admiração dos circunstantes. Com o episódio
da torre de Vortigerne, ele conquista a fama de sábio e desmascara os conselheiros
do rei que o queriam morto e seu sangue misturado na massa da reconstrução da
torre. Essa sabedoria só cresce com a prudência demonstrada no modo como
persegue o usurpador, vence os invasores e elimina um dos filhos de Constâncio
para evitar lutas fratricidas. Merlim ganha a estima e a admiração de todos, sabe
estimular os dois irmãos, provoca Uter na relação com sua amiga e finalmente,
utilizando-se do dom de transformar-se e de transformar os outros, favorece os
amores de Uter por Igerne, provocando assim o nascimento de Artur.
Essa é a grande cena da origem de Artur. Se em Geoffrey of Monmouth e
em Wace, ela pode ter chocado, porque Uter e Igerne casam-se logo e Artur cresce
ao lado de seus pais, herdando pacificamente o reino, em Robert de Boron há
atenuantes altamente implicadas em seu projeto. Uter casa-se com Igerne, mas
Artur torna-se o menino sem pai, abandonado por sua mãe, portanto sem direito ao
trono ou ignorando a possibilidade de herdá-lo. Parece um tropeço, mas na verdade
é um grande recurso para garantir ao futuro rei dupla legitimidade. Com a espada
tirada da bigorna e com a longa espera da confirmação de seu direito ali
conquistado, patenteia-se a legitimidade divina: revelado no Natal, é sagrado rei em
Pentecostes. Mais tarde, ainda por meio de Merlim e de seu pai nutrício Antor,
sobrevém a confirmação da legitimidade terrena: era filho de Uter.
Percebe-se assim como é construído este Merlim de Robert de Boron e
como obedece a um propósito novo dentro de um projeto que costuma ser apontado
como projeto de cristianização da matéria da Bretanha — mas cristianização mais
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acabada ainda está por vir. Aqui, porém, não é o momento nem o lugar de tratar
dela. A obra é outra.
Este Merlim é tradução do francês antigo do Merlin do século XIII, a
personificação do romance em verso de Robert Boron. E muito polêmica a questão
da autoria da prosificação. Sabe-se que, pelo menos em sua segunda versão, não é
do próprio Robert de Boron, motivo pelo qual ela é sempre nomeada como Pseudo-
Boron.
O texto de que nos servimos foi a edição de Alexandre Micha (Paris e
Genebra: Droz, 1980), tendo tomado o cuidado de oferecer ao leitor as variantes do
final, segundo o manuscrito de Módena e o Didot, a que não teríamos acesso, se
não fosse a edição de Micha. Como se percebe nos três finais da narrativa, existe
sempre uma ligação com o Perceval, do ms. Didot, o que confirma a descrição de
uma trilogia de obras de Robert Boron: Joseph d'Arimathie, Merlin e Perceval. A
matéria narrada termina com a coroação do rei Artur.
Na tradução, tomamos o cuidado de aportuguesar os nomes próprios, em
concordância com a tradição das traduções dos textos arturianos para o galaico-
português realizada no século XIII. Só intervimos minimamente, como por exemplo
no caso de Vertigier, passado a Vortigerne, com apoio na forma latina registrada na
Historia Regum Britaniae: Vortigernus, mesmo porque os breves fragmentos do
Merlim galaico-português não trazem esse nome. Deixamos aqui consignados
nossos agradecimentos a Antônio Furtado, professor da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, pesquisador arturianista de escol, pela solicitude com
que leu nosso trabalho e nos apresentou sugestões; a Sílvio Almeida de Toledo
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Neto, cujas pesquisas iniciais são altamente promissoras, e aos pós-graduandos que
nos acompanham de perto.
São Paulo, 3 de janeiro de 1993
Heitor Megale
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Glossário
Candelária — a festa da Purificação de Nossa Senhora, celebrada a 2 de fevereiro.
O nome está ligado ao uso de velas acesas na procissão da solenidade.
Circuncisão — a festa da circuncisão de Jesus, celebrada em primeiro de janeiro.
Observe-se que o texto permite perceber a importância das festividades litúrgicas,
para as quais eram marcados sucessivamente compromissos do reino: Natal,
Circuncisão, Candelária, Páscoa, Trindade, Pentecostes.
Clerezia — ciência, instrução, conhecimento; é usada a expressão mestria de
clerezia.
Graal — Robert de Boron associa Graal a graça e, aproximando as duas palavras
(n°. 48) estabelece um jogo de sonoridade na relação entre o objeto e seus efeitos.
No seu José de Arímatéia, o Graal explica-se pelo verbo agradar (agréer). Não há
referência a uma refeição; a fome parece saciada pela graça que o graal prodigaliza.
Não há também interesse em trabalhar a etimologia da palavra.
Cuersil — termo saxão de convite à bebida, ao se fazer um brinde; equivale à
expressão: à sua saúde.
Justa — combate individual, estando os contendores armados, a cavalo, e
começam a luta com a lança.
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Mestria — saber grande, de mestre (Morais, 1813); domínio do conhecimento, na
expressão mestria de clerezia.
Rico-homem — na hierarquia feudal, indivíduo das famílias mais poderosas,
imediatamente superior aos infanções, que constituíam o grau supremo da cavalaria,
e inferior aos títulos nobiliárquicos (Magne, Glossário da D.S.G.).
Século — mundo, vida profana, por oposição à vida monástica, clerical ou religiosa.
Senescal — provedor, vedor ou mordomo-mor da casa real.
Torneio —jogo público em que os cavaleiros mostravam sua destreza em combates
coletivos.
Vésperas — hora canônica equivalente a 18 horas. As demais: prima, 6 horas;
terça ou tércia, 9 horas; sexta, 12 horas, noa, 15 horas; completas, 21 horas;
matinas, 24 horas e laudes, 3 horas
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Merlim
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O inimigo ficou muito irado quando Nosso Senhor desceu ao inferno e
libertou de lá Adão e Eva e quantos mais lhe agradou. Quando os demônios viram
isso, ficaram muito maravilhados, reuniram-se em conselho e disseram entre si: — Quem é este homem que nos levou de vencida? Por que, com toda
nossa força, nada há que possamos fazer para impedir que continue fazendo o que
bem lhe apraz? Nunca podíamos imaginar que algum homem nascido de mulher
pudesse escapar de nossas garras. E eis que esse nos destrói! Como pode ter
nascido sem ter parte nos pecados deste mundo, diferentemente de todos os outros
homens?
Respondeu então um dos demônios:
— Fomos vencidos pelo que julgávamos que mais nos valeria. Lembrai-
vos do que diziam os profetas que anunciavam que o Filho de Deus viria à terra para
apagar o pecado de Adão e Eva e de seus descendentes. Nós nos apoderamos
daqueles que proclamavam que esse homem viria à terra e os livraria das penas do
inferno. E eis que aconteceu o que não cansavam de anunciar. Esse homem nos
arrebatou aquilo de que nos havíamos apoderado e não podemos nada contra ele.
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Ele nos arrebatou todos aqueles que já tínhamos sob nosso domínio e que ninguém
nos podia mais retirar. Como foi que isso aconteceu? Como não os teremos mais?
— Não sabeis então, prosseguiu outro demônio, que ele faz com que se
lavem com água, em seu nome, para que essa água lave o delito de pai e mãe, justo
aquele pecado pelo qual os teríamos sob nosso domínio, como sempre os tivemos?
Doravante perdemos a todos, por causa dessa água, e não temos nenhum poder
sobre eles, a menos que venham a nós por seus próprios pecados. Desse modo
nosso poder ficou rebaixado e bloqueado. E ainda há mais: ele anunciou que vai
ordenar e deixar ministros seus na terra para salvá-los, ainda que venham a
participar de nossas obras, bastando que as reneguem, que se arrependam e façam
quanto lhes for ordenado. Assim os perdemos, se forem moderados. Um benefício
inteiramente espiritual propiciou aquele que veio à terra para salvar a humanidade e
quis nascer de uma mulher, sem que o soubéssemos, sem pecado de homem e de
mulher. E se o víssemos e o tentássemos de todos os modos a nosso alcance, não
encontraríamos nele nenhuma de nossas obras, tal é sua determinação de salvar os
homens. Tanto amou os homens, que quis morrer para salvá-los e tirá-los de nosso
jugo. Deveríamos então agora buscar um meio de reconquistar os homens, antes
que possam se arrepender e antes que digam a quem lhes deu o perdão que esse
homem os redimiu com sua morte. Então disseram todos juntos:
— Perdemos tudo, visto que ele pode perdoar os pecados até o último
instante da vida do homem; e, se o encontra em suas obras, estará salvo; e ainda
que esteja em nossas obras até o fim, se se arrepende e cumpre o que mandam
seus ministros, nós o teremos perdido. Assim perdemos a todos, se não os
retivermos. Mas quem nos prejudicou mais e nos estorvou e propiciou a vinda dele à
terra?
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Então prosseguiram dizendo entre si:
— Quem mais nos prejudicou foram aqueles que anunciaram sua vinda.
Por meio desses é que nos advieram os maiores prejuízos. Quanto mais
anunciavam sua vinda, mais nós os atormentávamos. Parece mesmo que ele se
apressou em vir ajudá-los e socorrê-los dos tormentos que lhes causávamos. De
que modo conseguiríamos alguém que falasse aos homens e dissesse quais são os
nossos objetivos, qual o nosso poder e a nossa maneira de agir, e que tenha, como
nós, poder de saber o que acontece, o que se diz e o que se faz? Se contássemos
com um homem com esse poder, que soubesse essas cousas, e pudesse viver com
os outros homens na terra, ele poderia nos ajudar muito a enganá-los, assim como
os profetas que estavam do nosso lado e prediziam o que nunca imaginávamos que
pudesse acontecer. Este homem falaria as cousas ditas e feitas num passado
distante ou próximo e ganharia a confiança de muita gente. Então disseram todos
juntos:
— Excelentes resultados conseguiria quem tal homem pudesse criar.
Todos acreditariam nele.
Disse um deles:
— Não tenho o poder de conceber nem de fecundar uma mulher, mas se
tivesse, faria com gosto, porque tenho uma mulher que faz e diz tudo o que eu
quero.
Disse um outro:
— Mas há entre nós quem pode assumir a figura humana e fecundar uma
mulher, e convém que a engravide o mais discretamente que puder.
Assim disseram e decidiram que gerariam um homem que enganaria os
outros. São loucos demais, porque imaginam que Nosso Senhor, que tudo sabe,
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ignore suas obras. O diabo então decidiu fazer um homem que tivesse a sua
memória e a sua inteligência para enganar Jesus Cristo. Deste modo podeis saber o
quanto é louco o diabo, e muito devemos temer, porque tão louca cousa nos
engana.
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2
Tendo concordado todos com tal decisão, os demônios encerraram o
conselho. Aquele que, como dissera, tinha uma mulher em seu poder, não demorou
a dirigir-se para onde ela estava. E tendo chegado a ela, encontrou-a muito
disponível c ela entregou-lhe o que tinha, até seu senhor e sua própria pessoa. Ela
era mulher de um rico-homem que tinha muitos bens e numeroso rebanho. Esse
homem tinha dessa mulher submissa ao diabo um filho e três filhas. O diabo não
esqueceu nada, dirigiu-se ao campo como quem desejava ardentemente enganar o
marido dela. Um dia conversou com a mulher e perguntou-lhe como poderia enganar
seu marido. Ela respondeu que não poderia enganá-lo de modo algum, sem que ele
se enfurecesse. "E podes facilmente irritá-lo, porque ficará irado, se tomares minhas
coisas."
Então voltou o diabo ao rebanho do rico-homem e matou grande parte do
gado. Quando os pastores viram os animais morrerem no meio do campo,
maravilharam-se muito e disseram que iriam contar a seu senhor. Foram e contaram
a seu senhor a maravilha que provocava a morte de seu gado. Ao ouvir, irou-se e
maravilhou-se muito o senhor de corno os animais morriam. E perguntou aos
pastores:
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— Sabeis o que têm estes animais que morrem assim?
Eles responderam que não sabiam. E assim passou aquele dia. O diabo,
tendo sabido que o senhor irou-se por tão pouco, imaginou que, se lhe fixasse maior
prejuízo, o enfureceria mais, e assim o teria mais a sua vontade. Voltou então ao
rebanho e a dois belos cavalos que ele tinha, e os matou numa noite. Quando o
senhor soube que suas coisas iam tão mal, irritou-se muito e disse uma palavra
louca, porque na sua grande fúria disse que dava ao diabo o que tivesse sobrado.
Ao saber que lhe havia sido dado tal dom, o diabo ficou muito alegre e
resolveu causar ainda maiores prejuízos, matando desta vez todos os animais. No
auge de sua fúria e de seu desespero, o senhor fugiu de toda companhia. Quando o
diabo soube que ele se isolara de toda gente, concluiu que realizaria tudo o que
queria, porque podia estar lá quando quisesse. Chegou-se então ao filho dele, um
belo rapaz, e o estrangulou, enquanto dormia. De manhã, encontraram o rapaz,
morto. O pai, ao ser informado de que havia perdido seu filho, entregou-se ao
desespero e renegou sua fé. Ao saber que ele havia perdido a fé e não a recobraria
mais, o diabo, muito feliz, voltou à mulher, por meio da qual havia conseguido seus
objetivos. Fez com que ela subisse sobre o cofre de madeira do celeiro, e passou
uma corda das pranchas do celeiro em seu pescoço, em seguida afastou o cofre, e
assim enforcou-a. Ela foi então encontrada morta. O senhor, informado de que havia
perdido a mulher além da perda do filho, ficou de tal maneira abatido, que caiu
doente e morreu. Assim procede o diabo com aqueles que pode enganar e submeter
a sua vontade.
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3
Quando soube do acontecido, o diabo ficou muito satisfeito e começou a
imaginar como iria seduzir as três filhas sobreviventes. Entendeu muito bem que
nada conseguiria se não fizesse o que elas queriam. Ora, havia na cidade um jovem
que lhe e ir. muito dedicado. O diabo levou-o então a elas. Ele começou a cortejar
uma das três e conseguiu fazer e falar tão bem que a seduziu para seu grande
prazer. Mas o diabo não se preocupa em esconder seu êxito, ao contrário, gosta de
torná-lo conhecido para prejudicar mais suas vítimas. Esforçou-se então para que
toda gente soubesse do acontecido. Naquele tempo era costume que a mulher
surpreendida no pecado, salvo o caso de entregar-se abertamente a qualquer
homem, fosse condenada à morte. O diabo, que nada mais deseja do que prejudicar
suas vítimas, tornou público então tudo o que havia passado. Quando os juízes a
viram, tiveram muita pena dela, em consideração ao senhor de quem era filha.
Disseram eles: — Grande maravilha podeis ver que se passou com o senhor de quem
esta jovem foi filha, porque não há muito tempo ele era um dos mais notáveis desta
cidade.
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Depois que falaram isso, disseram que convinha que a justiça fosse feita.
Concordaram que a enterrariam viva, à noite, para poupar seus amigos. Assim foi
feito. Eis como o diabo procede com quem se entrega a sua vontade.
Ora, havia na região um ermitão que era muito bom confessor e ouviu
falar dessa maravilha. Veio encontrar as irmãs sobreviventes, a mais velha e a
caçula. Reconfortou-as e perguntou-lhes:
— Como tal desventura aconteceu a vosso pai, a vossa mãe e a vosso
irmão?
Elas responderam:
— Nada sabemos a respeito, senão que imaginamos que Deus nos odeia,
visto que permite que soframos assim.
E o ermitão disse:
— Estais enganadas. Deus não odeia ninguém, a Ele pesa que o
pecador odeie a si mesmo. Sabei que tudo o que aconteceu foi por obra do diabo. E
de vossa irmã que teve morte tão vil, sabeis se procedia daquele modo?
Responderam elas:
— Senhor, Deus nos odeia; nada mais sabemos a respeito.
— Guardai-vos das más obras, porque as más obras conduzem o
pecador e a pecadora a mau fim. E quem a Deus entrega-se não pratica más obras
nem tem mau fim.
Assim as exortava o ermitão, esperando que o ouvissem. A mais velha
ouviu atentamente e o que ele lhes disse agradou-lhe muito. O ermitão instruiu-a
pois na fé, falou-lhe do poder de Jesus Cristo e ensinou-a a crer e a amar. E ela
esforçou-se muito para guardar os ensinamentos e pô-los em prática.
Acrescentou o ermitão:
25
— Se confiardes no que vos direi, grandes benefícios vos advirão e sereis
minha amiga e minha filha em Deus; e em qualquer dificuldade que estiverdes, por
maior que seja a necessidade, se agirdes segundo os meus conselhos, poderei vos
assistir com a ajuda de Nosso Senhor. Não receeis então nada, porque Nosso
Senhor vos socorrerá, se permanecerdes com ele e vierdes freqüentemente me ver,
porque não me instalarei longe daqui.
Dessa maneira aconselhou o ermitão as duas donzelas e apontou-lhes o
bom caminho. A mais velha recebeu muito bem o ermitão e apreciou seus conselhos
e as boas palavras que dizia.
26
4
Quando o diabo soube disso, pesou-lhe muito e teve grande receio de
perdê-las. Imaginou então como poderia enganá-las por meio de um homem, no
caso de não conseguir por meio de uma mulher. Ele conhecia uma que muitas vezes
já havia cumprido sua vontade e feito suas obras. Tomou então essa mulher e
mandou-a à casa das duas irmãs. Ela chamou à parte a mais jovem — à mais velha
não ousava falar, tanto sua conduta era cheia de humildade —, e estando a sós com
ela, perguntou-lhe:
— Que vida leva agora vossa irmã? Imaginais que ela esteja feliz e
satisfeita?
E ela respondeu:
— Ela anda muito pensativa e está tão preocupada com as desventuras
que nos aconteceram, que não externa alegria nem para mim nem para outrem. E
um ermitão que lhe falou de Deus modificou de tal maneira sua conduta, que ela não
faz, senão o que ele quer.
Então disse-lhe a mulher:
— Que pena! Vosso belo corpo não terá nunca prazer, enquanto estiver
em companhia dela. Por Deus, bela amiga, se soubésseis os prazeres que as outras
27
mulheres têm, desprezaríeis tudo o que tendes, "reinos tal prazer quando estamos
em companhia de quem amamos que, ainda que tivéssemos de nos contentar
apenas com um pedaço de pão, ficamos tão felizes como não poderíeis estar com
todas as riquezas do inundo. Por Deus! Que prazeres pode experimentar uma
mulher que não conhece o prazer do homem? Minha bela amiga, digo-vos que não
tereis nem sabereis o que e o prazer do homem. E explico por quê. Vossa irmã é
mais velha que vós; se puder, conhecerá antes que vós os prazeres da carne; não
permitirá que passeis na frente dela. E depois que tiver conhecido, não cuidará mais
de vós. E vós tereis perdido, para vossa desventura, todo o prazer de vosso belo
corpo.
— Mas como ousarei fazer o que dizeis? Minha irmã morreu disso!
Ela respondeu:
— Vossa irmã o fez loucamente e seguiu maus conselhos. Vós, se
confiardes em mim, não sereis vítima das circunstâncias, nem de acusação.
— Não sei como me atrevo a continuar falando disso, por causa de minha
irmã. Ide embora agora. Quando vos vir novamente, então podereis voltar a falar a
respeito.
Tendo ouvido essa resposta, o diabo ficou muito alegre e soube que a
teria a sua vontade. Então afastou a mulher que possuía. Depois que a mulher foi,
estando a sós, a donzela rememorou tudo o que lhe havia sido dito. E o diabo,
quando a viu tão inclinada a sua vontade, que não parava de pensar naquilo,
excitou-a o mais que pôde, tanto que, à noite, ela olhava o próprio corpo e dizia: "De
fato, tem razão a mulher que me diz o que estou perdendo." Assim que raiou o dia,
mandou chamá-la e disse-lhe:
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— Tínheis razão em dizer que minha irmã não se preocupa comigo. Ela
respondeu:
— Eu sabia. Ainda menos cuidará, se encontrar o próprio prazer. Nós não
temos outra razão de viver, senão a de ter o prazer do homem.
Então disse ela:
— Eu o terei de muito boa vontade, desde que não precise temer a
condenação à morte.
— Haveriam de matá-la, se o fizésseis tão loucamente como vossa irmã.
Mas eu vos ensinarei como fazer.
— Dizei-me como, e eu confiarei em vosso ensinamento.
Ao que ela respondeu:
— Vós vos entregareis a todos os homens e fugireis para longe daqui
dizendo que não podeis mais suportar vossa irmã. Deste modo fareis de vosso corpo
o que bem quiserdes; não encontrareis na Justiça quem vos retruque e estareis livre
de qualquer perigo. E depois que tiverdes levado essa vida, encontrareis facilmente
um homem prudente que se sentirá muito feliz de vos ter, por causa de vossa
grande fortuna. Dessa forma, podereis conhecer todos os prazeres do mundo.
Então fugiu abandonando a casa de sua irmã e entregou seu corpo aos
homens, pelo conselho dessa mulher.
29
5
Depois que enganou a outra irmã, o diabo ficou muito alegre. A mais
velha, ao ver que sua irmã havia ido embora, procurou o ermitão, aquele que a
mantinha fiel em sua crença, muito revoltada e externando grande dor pelo fato de
ter desse modo perdido sua irmã. E o ermitão, vendo-a fazer tal lamento, teve muita
pena e disse-lhe: — Faze o sinal da cruz e recomenda-te a Deus, porque te vejo muito
transtornada.
Ela respondeu:
— E com razão, pois perdi minha irmã.
E contou-lhe como acontecera e o que pôde saber que ela havia se
entregado a todos os homens. Quando o ermitão ouviu isto, ficou muito atordoado e
disse:
— O diabo ainda está ao vosso redor e não terá sossego, enquanto não
tiver seduzido as três, se Deus não vos guarda.
Então perguntou ela:
— Senhor, por Deus, como poderei guardar-me? Não há nada que
tanto receie, como sucumbir a sua sedução.
30
Respondeu o ermitão:
— Se confiares em mim, ele nunca te seduzirá. Respondeu ela:
— Confiarei em tudo que me disserdes. E ele disse:
— Crês no Pai, no Filho e no Espírito Santo? Crês que essas três
pessoas fazem um só Deus? Crês que Nosso Senhor veio à terra para salvar todos
os pecadores que acreditarem no poder do batismo e dos outros sacramentos da
Santa Madre Igreja e obedecerem aos ministros que ele deixou na terra para ensinar
a acreditar no seu nome?
E ela respondeu:
— Em tudo o que dissestes e ouvi eu creio; assim verdadeiramente me
guarde ele que o diabo não possa me seduzir.
Disse-lhe o ermitão:
— Se acreditas no que eu disse, o demônio não te poderá enganar. Mas
acima de tudo peço-te que não te entregues à cólera, porque o diabo insinua-se
mais quando um homem ou uma mulher estão em grande cólera. Por isso guarda-te
de todas as más obras e desventuras que sobrevierem. Vem a mim e conta-me o
que te torna culpada diante de Nosso Senhor, de todos os santos e de todas as
santas e de todas as criaturas que crêem em Deus e o servem e o amam, e de mim,
em honra de Deus. Todas as vezes que deitares e te levantares persigna-te em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, em nome desta cruz que fez de seu
Santo Corpo e no nome daquela em que sofreu a morte para salvar os pecadores
das penas do inferno e do poder do diabo. Se assim fizeres como te ordeno, nada
receies do inimigo. Cuida que haja sempre claridade onde dormires, porque o diabo
odeia sobretudo a luz e não vem facilmente onde ela brilha.
31
Isto ensinou o ermitão à donzela que tinha muito pavor de que o diabo a
enganasse.
Então voltou a donzela à casa, firme na fé e muito humilde diante de Deus
e da gente pobre de sua região. As pessoas honestas vinham vê-la e diziam-lhe
freqüentemente:
— Amiga, muito deveis temer do que aconteceu a vossos pais, a vosso
irmão e a vossas duas irmãs. Tende ânimo forte, porque sois mulher rica e tendes
boa herança e muito feliz será o homem que vos esposar. Mas ela respondia:
— Nosso Senhor me mantenha no estado que ele sabe que me convém.
Assim ficou a donzela por muito tempo, dois anos ou mais, que o diabo
não pôde seduzi-Ia e nem soube de má obra que ela fizesse. Pensou muito o diabo
e entendeu que não poderia seduzi-la, porque não via como induzi-la a alguma de
suas más obras; até que percebeu que não conseguiria enganá-la, senão fazendo-a
esquecer o que o ermitão lhe havia ensinado, e isto não seria possível, se não a
enfurecesse, porque ela não tinha nenhuma tendência para as obras do seu agrado.
32
6
Apoderou-se o diabo da irmã dela, e levou-a, um sábado à noite, à casa
da mais velha, para ver se a punha em estado de cólera, e assim seduzi-la. A má
irmã chegou à casa paterna muito tarde da noite com um bando de maus rapazes
que ela fez entrar. Quando a irmã os viu, ficou muito irada e disse-lhes:
— Minha irmã, enquanto levais esta vida não deveríeis vir aqui, porque
fareis com que me censurem, sem que eu dê motivo.
Quando ouviu que ela seria censurada por sua culpa, ficou muito
enfurecida e disse, como quem tinha o diabo no corpo, que a odiava, que sua
conduta era pior, que ela era amante do ermitão e que, se as pessoas ficassem
sabendo, ela seria queimada viva. A mais velha, sentindo-se assim acusada de tal
diabrura, enfureceu-se e ordenou que sua irmã se retirasse da casa, mas a outra
retrucou que a casa era do pai delas duas e que não sairia. Compreendendo que ela
não sairia, tomou-a pelos ombros e quis empurrá-la para fora, mas a outra reagiu e
os rapazes que estavam com ela agarraram a mais velha e bateram nela muito
cruelmente. Quando conseguiu escapar, porque estavam cansados de bater, entrou
no quarto e trancou a porta. Ela não tinha senão uma serva e um servo, sobre os
quais eles descarregaram sua fúria. Uma vez só no quarto, deitou-se no leito
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inteiramente vestida e chorou copiosamente, cheia de raiva de sua irmã que a havia
maltratado dessa maneira. E assim dormiu. O diabo, quando a viu só e enfurecida,
na escuridão, onde não se enxergava absolutamente nada, ficou muito alegre.
Então lembrou-se a mais velha da dor de seu pai e de sua mãe, de seu
irmão e de sua irmã, essa com quem havia brigado. Chorou, ao lembrar-se de todas
essas coisas, muito sentidamente e nessa dor adormeceu.
O diabo, quando percebeu que ela havia esquecido tudo o que o ermitão
lhe havia recomendado, devido à grande raiva que tomou conta dela, alegrou-se e
disse:
— Agora ela está bem transtornada e fora da proteção de seu mestre.
Podemos bem entregá-la a nosso homem.
Aquele demônio que tinha poder de, assumindo figura humana, dormir
com mulher estava pronto. Veio, dormiu com ela e ela concebeu. Depois de ter
concebido, acordou, lembrou-se do ermitão, persignou-se e disse:
— Santa Maria! O que me aconteceu? Não sou mais como era quando
me deitei! Gloriosa Mãe de Deus, filha e mãe de Jesus Cristo, rogai, em vossa
bondade, ao Pai e caro Filho, que guarde minha alma e a defenda contra o inimigo.
Então levantou-se e começou a procurar aquele que a havia assim
tratado, imaginando poder encontrá-lo. Foi à porta e encontrou-a fechada, como a
havia deixado ela mesma. Vendo que eslava bem fechada a porta do quarto,
procurou por todo o quarto e nada encontrou. Então entendeu que havia sido
enganada pelo inimigo. Lamentou-se muito e pediu a Nosso Senhor que não a
deixasse ser desonrada nesse mundo. Passou a noite e veio o dia. Tão logo raiou o
dia, o diabo levou de volta a mulher, porque ela havia feito muito bem tudo aquilo por
que viera. Depois que ela c os rapazes foram embora, a mais velha saiu do quarto
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chorando e, muito irada, chamou seu servo ordenando-lhe que procurasse duas
mulheres. Assim que chegaram, ela se pôs a caminho cio seu confessor.
35
7
Foi muito depressa e chegou; quando ele a viu, disse-lhe:
— Estás em dificuldade, porque te vejo muito aflita! E ela respondeu:
— Devo estar mesmo muito aflita, porque o que me aconteceu ontem
nunca aconteceu com ninguém, a não ser comigo. Venho pois aconselhar-me
convosco, porque me dissestes que todo pecador, seja qual for a enormidade de seu
pecado, será perdoado se confessar e arrepender-se sinceramente e fizer o que seu
confessor ordenar. Ora, senhor, eu pequei, confesso, e fui seduzida pelo diabo.
Então contou como sua irmã viera à casa, e como enfureceu-se, e como
os rapazes bateram nela, e como refugiara-se em seu quarto cheia de raiva, mas
teve todo o cuidado de fechar bem a porta.
— Como estava com muita raiva, esqueci-me de persignar-me, bem como
esqueci-me de vossas recomendações. E do modo como deitei inteiramente vestida,
adormeci. Ao acordar, tomei conta de que estava desonrada e deflorada. Revirei
meu quarto e assegurei-me de que a porta estava fechada como eu a fechara; não
achei ninguém e nem pude saber quem me fizera aquilo. Senhor, tudo passou como
vos digo: fui enganada pelo diabo. Suplico, em nome de Deus, que me ajudeis a
salvar a minha alma, ainda que meu corpo deva ser entregue ao suplício.
36
O ermitão ouviu com muita atenção tudo o que ela disse, mostrou-se
muito maravilhado e não acreditou em nada do que ela contara, porque, disse ele,
nunca ouvira contar semelhante maravilha. E disse a ela:
— Estás possuída pelo diabo, e ele ainda está em ti. Como ouvirei tua
confissão e te darei penitência, se sei verdadeiramente que estás mentindo? Jamais
uma mulher foi deflorada sem saber de quem ou ao menos sem ver quem a
deflorava e queres me fazer acreditar que essa maravilha aconteceu?
— Senhor, que Deus me salve e me preserve dos suplícios, tão
verdadeiramente como vos digo a verdade.
E o ermitão:
— Se é tão verdade como dizes, verás pelas próprias obras. No entanto,
cometeste um grande pecado não cumprindo o que eu havia determinado; porque
desobedeceste, imponho a penitência de, pelo resto da vida, toda sexta-feira, não
comeres senão uma vez. E quanto ao que me dizes da luxúria, no que nada
acredito, convém que te dê uma penitência, se te comprometeres a cumpri-la.
Ela respondeu:
— Não me ordenareis nada, por mais difícil que seja, que eu não faça.
O ermitão:
— Deus te ouça! Asseguras então que vens aconselhar-te na Santa
Igreja, sob a proteção de Jesus Cristo que nos redimiu com tão alto preço como o de
sua morte — em verdadeira confissão e com firme arrependimento e bons
propósitos de coração — e tudo o que disseste pela boca garantes cumprir em teu
coração e em teu corpo, na medida de tuas forças? E ela respondeu:
— Senhor, assim como dissestes, eu me comprometo, de boa vontade, se
Deus o quer.
37
O ermitão:
— Confio em Deus que se o que dizes é verdade, ele te protegerá.
— Senhor, que Deus me salve do mal, tanto quanto é verdade o que digo.
— Prometes cumprir a penitência que te imporei e fugir de todo o pecado?
— Sim, prometo.
— Renuncia então a toda luxúria e eu te proíbo, até o fim de teus dias, de
sucumbires a qualquer pecado da carne, exceto cm sonho, porque o homem nada
pode contra os sonhos. Tens firme propósito de te guardares de todo pecado da
carne?
— Sim, se me garantes que eu não seja condenada por esse, nenhum
outro me acontecerá.
— Desse eu serei tua garantia perante Deus, por seu mandamento, pois
nos pôs na terra como seu ministro.
Ela aceitou a penitência que ele impôs, com muito boa vontade e
chorando, como quem se arrepende de todo o coração. O ermitão fez sobre ela o
sinal da cruz, deu-lhe a absolvição e confirmou-a no amor de Jesus Cristo. No
entanto, continuou a perguntai-lhe se o que havia dito era verdade, e concluiu que
ela, de fato, havia sido enganada pelo inimigo. Fez então com que tomasse água
benta, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, lançou também a água sobre
ela, e disse:
— Cuida de não esqueceres minhas ordens, e volta todas as vezes que
tiveres necessidade.
Abençoou-a então e recomendou-a a Deus, e passou a considerar como
penitência todas as boas ações que ela fizesse.
38
8
Então voltou para casa e levou vida exemplar e muito simples. E quando
o diabo viu que a havia perdido e que não sabia o que ela dizia ou fazia, como se ria
nunca tivesse existido, ficou muito irritado.
A jovem viveu assim até o momento em que não pôde esconder o fruto
que carregava no corpo. Ela criou barriga e engordou, de modo que as outras
mulheres perceberam e vieram falar-lhe:
— Por Deus, senhora, o que é isso? Engordastes muito.
Ela respondeu:
— É verdade.
— Estais grávida?
— Sim, como vedes.
— E de quem?
— Tanto quanto peço a Deus que me dê uma boa hora, eu não sei.
— Dormistes com tantos homens que não sabeis quem é o pai?
— Que Deus me impeça para sempre de deitar com algum homem, se
conscientemente mantive relações que me tornaram grávida!
As mulheres que ouviram isso persignaram-se e disseram:
39
— Amiga, isso não poderia acontecer, nem nunca aconteceu convosco
nem com ninguém mais. Sem dúvida amais em segredo alguém que não quereis
acusar. Mas certamente esta é a vossa grande desgraça, porque, assim que os
juízes souberem, devereis morrer.
Ao ouvir isso, ficou muito espantada e disse:
— Deus salve a minha alma, tanto é verdade que nunca vi nem conheci
quem me deixou neste estado.
As mulheres riram e a tomaram por louca e consideraram grande
desventura que ela perdesse desse modo sua herança, tão bela terra e tão bom
feudo. A jovem inteiramente transtornada procurou seu confessor e contou-lhe o que
haviam dito as mulheres. O ermitão percebeu que ela estava grávida, maravilhou-se
muito e perguntou-lhe:
— Cumpriste rigorosamente a penitência que te impus?
— Sim, senhor, sem faltar nada.
— E verdadeiramente não te aconteceu esta maravilha mais de uma vez?
— Não, senhor, nunca me aconteceu nem antes, nem depois.
O ermitão ouviu, maravilhou-se muito, anotou por escrito cuidadosamente
a noite e a hora, como disse ela e concluiu:
— Fica tranqüila! Quando esta criança que carregas nascer, saberei de
fato se me mentiste. E confio em Deus que, se o que me contas te é verdade, ele te
salvará da morte. Certamente pássaras muito maus momentos, porque os juízes,
quando o souberem, mandarão tomar teus bens e tua terra e falarão cm executar-te.
Quando te mandarem prender, faze-me saber e, se puder, irei em teu socorro. E, se
és tal como dizes, Deus não te recusará ajuda. Volta então cm paz para tua casa,
confia em Deus e fica segura de que vida boa ajuda muito a ter bom fim.
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9
Então voltou para casa e ficou em paz em sua vida simples até que os
juízes chegaram a sua terra e souberam da novidade. Mandaram buscá-la a sua
presença. Quando ela foi presa, mandou buscar o ermitão, aquele que sempre a
havia aconselhado. Quando ele soube, veio o mais depressa que pôde. E ao chegar,
já encontrou os juízes. Ao vê-lo, citaram-no e contaram-lhe a declaração da mulher
que dizia não saber quem a havia engravidado e perguntaram-lhe:
— Cuidais que uma mulher possa engravidar e ter filho sem conhecer
homem?
O ermitão respondeu:
— Não vos direi tudo o que sei, mas posso pelo menos vos declarar, se
meu conselho quereis ouvir, que não fareis justiça condenando esta mulher,
enquanto estiver grávida, porque não é razoável nem justo que uma criança seja
executada, nada tendo a ver com o pecado da mãe. Se a condenardes à morte,
podereis dizer que executastes quem tinha pecado e também quem não tinha
pecado.
Então disseram os juízes:
— Seguiremos vosso conselho. O ermitão:
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— Já que assim decidistes, fazei guardar esta mulher numa torre, em tal
lugar que nada possa fazer de repreensível. Deixai com ela duas mulheres que a
ajudarão, quando a hora chegar, a fazer o parto. Cuidai que de lá não possam sair, e
dai a elas tudo o de que precisarem. Mantendo-a desse modo sob vigilância até o
nascimento da criança. Aconselho ainda que deixe a criança alimentar-se até o dia
em que possa pedir o de que tenha necessidade. Se até então nada tiver acontecido
de diferente, fareis com esta mulher o que quiserdes. Se confiais em meu conselho,
fazei assim; se quiserdes agir de outro modo, nada poderei fazer.
Os juízes responderam:
— Parece-nos que tendes razão.
Então fizeram corno o ermitão disse. Colocaram-na em uma torre alta.
Mandaram murar todas as portas embaixo e puseram em sua companhia duas
mulheres, as mais prudentes que puderam encontrar. Deixaram aberta uma janela
no alto para fazer chegar tudo o de que precisassem, por uma corda. O ermitão,
quando soube que tudo havia sido feito, falou com ela, pela janela, e disse:
— Quando tiveres a criança, faze batizá-la o mais depressa que puderes
e, quando vierem tirar-te daqui para levar à fogueira, manda chamar-me.
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Assim ficou a mulher muito tempo na torre. Os juízes cuidaram bem que
ela tivesse na torre tudo o de que precisava. E assim ficou lá e teve a criança, como
a Deus aprouve. Desde o nascimento, a criança teve o poder e a inteligência do
diabo, pelo qual havia sido concebido. Mas o diabo o havia feito loucamente, porque
sabia muito bem que Nosso Senhor havia redimido com sua morte e perdoado os
pecados de todos aqueles que se arrependem sinceramente. Ora, o diabo havia
seduzido aquela mulher por astucia, por ardil e estando ela dormindo. E tão logo
sentiu-se enganada, implorou a piedade de quem era preciso e submeteu-se aos
mandamentos de Deus e da Santa Igreja e fez tudo o que lhe ordenaram. E porque
Deus não quis que o diabo perdesse o conhecimento do que devia acontecer e quis
que ele tivesse o que desejava, por isso o criou. Ele o criou para que tivesse a arte
de saber as coisas que existiam, as coisas ditas e feitas e acontecidas, e tudo isso
ele soube. E Nosso Senhor que tudo sabe e conhece, pelo arrependimento da mãe,
pela confissão e pelo bom propósito que tinha em seu coração, pela boa vontade
que a conduzira até o ponto em que estava e pela força do batismo, pelo qual o filho
havia sido levado até a fonte batismal, quis Nosso Senhor que o pecado de sua mãe
não o pudesse prejudicar. Deu-lhe então o poder e a inteligência de saber as coisas
43
que deviam acontecer. Por essas razões teve o menino o conhecimento das coisas
feitas, ditas e acontecidas, porque ele o teve do inimigo. E além de saber as coisas
que estão por acontecer, quis Nosso Senhor que soubesse, em relação às outras
coisas, o que sabia de sua parte. Volte-se para a parte que quiser, ele terá do diabo
seu direito e de Nosso Senhor, o seu, porque o diabo não lhe deu senão o corpo, e
Nosso Senhor pôs nesse corpo o espírito para ver, ouvir e compreender cada coisa
segundo o ajudar a memória. E a ele, deu-lhe ainda mais que a qualquer outra
pessoa, porque para grandes coisas foi feito. Então saberá muito bem a que
dedicar-se. E assim ele nasceu. Quando as mulheres o tomaram em seus braços,
assustaram-se porque ele era mais peludo que todas as crianças que haviam visto.
Levaram-no à mãe que persignou-se ao vê-lo e disse:
— Este menino me enche de medo. E as outras mulheres disseram:
— A nós também, a tal ponto que com dificuldade o conseguimos segurar.
— Fazei com que o levem fora da torre — disse a mãe —, e mandai
batizá-lo.
— Como quereis que se chame?
— O nome de meu pai.
Colocaram-no em um cesto, desceram-no pela corda ordenando que
fosse batizado com o nome de seu avô materno; aquele homem bom chamava-se
Merlim. Desse modo foi o menino batizado com o nome de Merlim, da parte de seu
avô, e foi recambiado à mãe para o amamentar, porque nenhuma outra mulher
ousava fazê-lo. Sua mãe o amamentou até que tivesse nove meses. As mulheres
que estavam com sua mãe repetiam muitas vêzes que se maravilhavam muito por
esse menino ser assim tão peludo e parecer mais velho; não tendo senão nove
meses, era como se tivesse dois anos ou mais.
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Então aconteceu, muito tempo depois, que o menino chegou aos dezoito
meses, e as duas mulheres disseram à mãe:
— Senhora, queríamos sair daqui e voltar a nossas famílias e amigos, em
nossas casas, porque há muito tempo que estamos aqui.
Ela respondeu:
— Assim que tiverdes saído daqui, sei que virão condenar-me.
— Certamente, senhora, mas não podemos ficar aqui eternamente.
Ela chorou e implorou por Deus que ficassem mais um pouco. Dirigiram-
se à janela e a mãe, com o menino nos braços, sentou-se, chorou muito e disse:
— Filho, por tua causa serei morta, sem o ter merecido; morrerei porque
não há quem saiba a verdade e não há quem acredite em mim, por isso morrerei.
Como se lamentasse dessa forma por sua morte, dizendo que em má
hora Deus havia permitido seu nascimento e geração em seu corpo para sua morte
e seu suplício, falando essas coisas e mostrando a Nosso Senhor seus sofrimentos,
o menino olhou para ela, riu e disse:
— Querida mãe, não temas nada, não morrerás pelo pecado de que
nasci.
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Ouvindo-o assim falar, enfraqueceu seu coração e teve pavor e soltou o
menino dos braços; ele caiu ao chão e machucou-se. As mulheres que estavam à
janela voltaram-se para ela e imaginaram que ela quisesse matá-lo.
— O que quereis fazer? Quereis matar vosso filho?
Ela respondeu inteiramente transtornada:
- Não! Jamais pensei nisso. O que aconteceu foi uma grande maravilha:
ele falou comigo! Então faltaram-me o ânimo e os braços, por isso caiu.
- E o que disse ele?
- Que não morrerei por causa dele.
- Ele ainda vai falar mais?
Tomaram-no então em seus braços e ficaram atentas para ver se falaria
de novo, mas ele não mostrou intenção de falar mais nada. Passado um bom tempo,
disse a mãe às mulheres:
— Ameaçai-me e dizei que serei queimada por meu filho, então vereis se
ele vai querer falar.
As mulheres então disseram:
— Muito grande desgraça vos atingirá porque sereis queimada por causa
de vosso filho. Melhor seria que ele não tivesse nascido.
Ele então respondeu:
- Estais mentindo. Foi minha mãe que vos mandou dizeer isso.
Apavoradas por ouvi-lo dizer isto, gritaram:
- Não é um menino, mas é o diabo que sabe o que dissemos.
E começaram a falar novamente e a questioná-lo, mas ele respondeu
tranqüilamente:
46
- Deixai-me em paz, porque sois loucas e pecadoras mais do que minha
mãe.
Ouvindo isto, ficaram muito maravilhadas e disseram:
— Esta maravilha não pode ficar apenas entre nós. Vamos contá-la a toda
gente.
Então foram à janela, chamaram as pessoas e contaram o que o menino
havia dito e falaram que não queriam mais ficar lá. Que fossem contar aos juízes.
Quando os juízes souberam dessa maravilha, concluíram que era coisa
muito maravilhosa e que havia razões para executar a mãe. Mandaram fazer as
cartas de convocação para executá-la no prazo de quarenta dias. Quando a
intimação foi entregue e a mãe soube que o dia de seu suplício estava marcado,
mandou imediatamente avisar seu confessor.
47
12
O tempo passou e não faltava senão uma semana para que ela fosse
levada à fogueira. Quando pensou nisso, ficou muito aterrorizada. O menino que
andava pela torre, ao ver sua mãe chorando, começou a rir e a externar grande
alegria. Então as mulheres disseram:
— Pensa bem agora que na semana que entra tua mãe será queimada
por tua causa. Maldita seja a hora, em que nasceste, se Deus não intervém, porque
ela sofrerá o suplício.
E ele respondeu e disse:
— Elas mentem, querida mãe, enquanto eu viver, ninguém ousará te fazer
queimar, nem submeter a julgamento de morte, senão Deus.
Ouvindo isto, a mãe e as mulheres ficaram muito felizes e disseram:
— Um menino que tais palavras diz ainda será muito cheio de sabedoria.
As coisas ficaram assim ate o dia marcado para o suplício. As mulheres
foram postas fora da torre e a mãe saiu com o filho nos braços. Os juízes chegaram
e conversaram com as duas mulheres, à parte, e perguntaram se era verdade que o
menino falava aquelas coisas. E elas contaram tudo o que haviam ouvido. Ao tomar
conhecimento, maravilharam-se muito e disseram que o menino precisaria saber
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muito para livrar a mãe da morte. Tomaram então seus lugares, e o ermitão que
aconselhava a mãe chegou.
- Senhora — disse um dos juízes —, tendes uma última vontade a fazer?
Preparai-vos, porque estais prestes a ser executada.
- Senhor — disse ela —, se permitis, gostaria de falar com este ermitão.
O juiz deu-lhe permissão; ela dirigiu-se a uma câmara e seu filho ficou
fora. Muita gente então começou a perguntar o que se passava, sem obter resposta.
A mãe falava com seu confessor muito piedosamente chorando. Depois que falou
tudo o que queria, o ermitão perguntou-lhe
— É verdade que seu filho fala corno estão contando?
— Sim, senhor — respondeu ela, e repetiu o que dele havia ouvido.
— Alguma maravilha está para acontecer então — concluiu ele.
Saiu o ermitão da câmara e foi para onde os juízes estavam. Saiu depois
a infeliz vestida apenas com a túnica e encontrou seu filho fora da câmara. Tomou-o
em seus braços e dirigiu-se para diante dos juízes. Eles perguntaram-lhe:
— Senhora, quem é o pai deste menino? Não ouseis ocultar.
Ela respondeu:
— Senhores, sei bem que estou condenada à fogueira, mas Deus não
tenha piedade de mim, se algum dia conheci o pai deste menino ou se alguma vez
tive intimidades com um homem de que ficasse grávida.
— Não acreditamos que isso possa ser verdade, mas perguntaremos às
outras mulheres se é possível que uma mulher se engravide sem o concurso de um
homem, porque nunca ouvimos falar tal maravilha. Então retiraram-se e foram
perguntar a diversas mulheres a respeito do que se dizia da mãe de Merlim:
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— Senhoras, já vos aconteceu ou alguma de vós já ouviu contar ter
alguma mulher concebido ou posto no mundo um filho, sem ter tido relações carnais
com um homem?
Elas responderam:
— É impossível. Nunca ouvimos falar tal coisa, senão da mãe de Jesus
Cristo.
Os juízes voltaram então e relataram para a mãe de Merlim o que as
outras mulheres haviam dito.
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13
E concluíram que nada mais havia a fazer, senão aplicar a justiça. Falou
um dos juízes, o mais poderoso, com quem todos os outros concordavam:
— Ouvi dizer que este menino fala e que ele diz que sua mãe não
receberá morte por ele. Se deseja vir em seu socorro, o que está esperando para
falar?
Ao ouvir isto, soltou-se o menino dos braços da mãe e pôs-se de pé.
Dirigiu-se então à frente dos juízes e disse:
— Senhores, peço-vos, se o souberdes, que me digais por que quereis
lançar minha mãe à fogueira.
Um deles respondeu:
— Sei muito bem por que è te direi: porque ela te teve em maldade do
próprio corpo e porque nega-se a acusar quem no seu corpo te gerou. E nós
seguimos uma lei antiga, segundo a qual devemos fazer justiça com uma mulher
nessas circunstâncias, por isso a queremos fazer com tua mãe.
O menino replicou:
— Senhores, não é desta vez que minha mãe será levada à morte. Se
fosse para se levar à morte todos aqueles e todas aquelas que têm tido relações
51
carnais com parceiro alem do próprio, seria preciso lançar à fogueira dois terços dos
homens e das mulheres aqui presentes. Conheço bem todos os seus segredos e, se
quisesse, poderia revelá-los. Aqui há muitos que fizeram pior do que minha mãe,
porque o fizeram sabendo e conhecendo o parceiro, ela, que o fez sem saber, não é
culpada do que a acusam. Isso o sabeis vós muito bem. E se ela o fosse, aqui está o
ermitão que se responsabilizou seu erro. Se duvidais de mim, perguntai a ele.
Os juízes chamaram o ermitão e relataram a ele palavra por palavra o que
o menino havia dito e perguntaram-lhe se era verdade. O ermitão respondeu:
- Senhores, tudo o que ele vos disse a respeito do pecado de sua mãe é
verdade. Ela me contou que, do modo como aconteceu, ela não tinha receio — nem
de Deus nem do mundo — de que a condenassem. E ela mesma vos contou como
foi enganada e como esta maravilha de ter ficado grávida do menino lhe aconteceu
dormindo, sem nenhum outro delito, e que ela não sabe quem a engravidou. Assim
confessou e arrependeu-se, mas que tivesse acontecido desse modo, eu nunca
acreditei, no entanto, o fato de eu não acreditar não pode nem deve em nada
prejudicá-la, pois sua consciência é verdadeira.
Então o menino tomou a palavra e disse:
— Vós sabeis a noite e hora e hora em que fui gerado e vos é fácil saber
o dia e a hora em que nasci. De modo que podeis verificar, em grande parte, o que
minha mãe diz.
— Seguramente — disse o ermitão —, é verdade o que dizes. Não sei de
onde vem tua sabedoria que é superior a de todos nós juntos.
Chamaram então as duas mulheres que haviam vivido com a mãe de
Merlim na torre, e elas fizeram um relato, diante dos juízes, da duração da gravidez
da mãe, da concepção do menino e do parto. Elas compararam suas informações
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com as anotações do ermitão e concluíram que haviam chegado ao mesmo
resultado.
— Apesar disso — disse um dos juízes ao menino — ela não estará quite,
se não nos disser quem te gerou e quem é teu pai.
O menino irritou-se e disse:
— Sei quem é meu pai melhor do que vós, o vosso; e vossa mãe sabe
melhor quem vos gerou do que a minha, a mim.
A que o juiz replicou encolerizado:
— Se tens alguma acusação contra minha mãe, eu a chamarei ajuízo.
— Posso muito bem dizer que, se a condenásseis à morte, a pena seria
mais merecida do que pela minha mãe. Se pois eu a obrigo a que vos dê ela mesma
a prova, livrai a minha mãe, porque não é culpada do que a acusam, e ela disse a
verdade quando contou como fui gerado.
— Merlim — respondeu o juiz muito irritado —, se é assim, tua mãe
escapará da fogueira, no entanto, fica sabendo que, se não podes fornecer prova do
erro de minha mãe, então a tua não fica livre e tu serás queimado juntamente com
ela.
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Os juízes fixaram então um recesso de quinze dias. O juiz mandou buscar
a própria mãe e manteve cuidadosamente vigiados Merlim e sua mãe. Prosseguiram
os interrogatórios do menino a respeito de sua mãe, mas durante este prazo não
conseguiram dele nem uma palavra. No dia marcado, a mãe do juiz chegou; então
mandaram buscar na prisão Merlim e sua mãe e conduziram todos à presença do
povo.
- Merlim — disse o juiz —, eis aqui minha mãe contra quem deves
formular a acusação.
- Não sois nem de longe tão sábio como imaginais disse o menino.
Conduzi vossa mãe, à parte, a uma casa e convocai para vos ajudar os amigos mais
fiéis; e eu i invocarei os que ajudarão minha mãe: Deus todo-poderoso e seu
confessor.
Todos quantos ouviram tais palavras da boca do menino ficaram
abismados e não sabiam o que dizer, mas o juiz entendeu claramente que ele era
sábio e estava em direito.
— Senhores — perguntou o menino aos outros juízes —, se eu provar,
em bom juízo, o direito de minha mãe contra este homem, vós a absolvereis?
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— Sim — responderam —, se ela escapar deste, não encontrará mais
quem a acuse de nada.
Retiraram-se então o juiz e Merlim a uma câmara. O juiz levou dois outros
homens dentre seus amigos, os mais sábios que pôde encontrar; e Merlim, o
confessor de sua mãe. Estando assim reunidos, disse o juiz a Merlim:
— Agora podes dizer a minha mãe tudo o que queres para desculpar a
tua.
— Não quero — replicou Merlim — dizer contra vossa mãe algo para que
minha mãe fique livre, se vossa mãe nada tiver feito de errado, pois não quero
defender minha mãe injustamente, mas quero ver triunfar o direito de Deus e o dela.
Minha mãe, vós o sabeis muito bem, não mereceu nenhum castigo como o que lhe
quereis impor e, se acreditais em mim, vós a absolvereis e então renunciarei ao
interrogatório da vossa.
— Não escaparás assim — disse o juiz —, é preciso que fales mais.
— Vós nos havíeis assegurado a mim e a minha mãe que eu poderia
defendê-la.
— É verdade, e estamos aqui reunidos para ouvir o que dirás sobre minha
mãe.
— Prendestes minha mãe e a quereis lançar à fogueira, porque eu nasci
e ela não sabe dizer quem me concebeu, mas, se eu quisesse, saberia melhor
nomear meu pai do que vós, o vosso.
— Querida mãe — disse o juiz —, não sou o filho de vosso legítimo
esposo?
— Por Deus, meu filho, de quem serieis filho senão de meu bom senhor
que morreu? — respondeu a mãe do juiz.
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— Senhora — interveio Merlim —, precisareis dizer a verdade, no caso de
vosso filho não nos livrar a mim e a minha mãe; mas se ele o fizer, sem mais nada
perguntar, eu me calarei.
— Não farei nada disso — interveio o juiz.
— Teríeis pelo menos a vantagem de encontrar vosso pai vivo, pelo
testemunho de vossa mãe — disse Merlim ao juiz.
Ao ouvir tais palavras, todos os que estavam presentes a este julgamento
persignaram-se, tão maravilhados ficaram.
— Senhora — disse Merlim à mãe do juiz —, será necessário que digais a
vosso filho a verdade sobre vosso pai.
— E já não a disse, demônio!
— Sabeis muito bem que ele não é filho daquele que cuida ser.
— E de quem é então? — replicou ela, apavorada.
— Sabeis, em verdade, que é filho de vosso confessor! E eis aqui a prova:
a primeira vez que dormistes com ele, dissestes-lhe que tínheis muito medo de que
vos fizesse um filho. Ele vos respondeu que isto não aconteceria e que ele poria por
escrito a anotação de cada vez que dormisse convosco. Ele temia, portanto, que a
enganásseis com outro homem, e naquela época tínheis discórdia com vosso
marido. Agora, dizei se é verdade o que acabei de falar, senão, prosseguirei.
- O que ele disse é verdade? — perguntou encolerizado o juiz a sua mãe.
- Filho querido — disse a mãe muito confusa — , acreditais neste
inimigo?
Senhora — continuou Merlim — , se não reconheceis a verdade, direi
ainda outra coisa que sabemos muito bem ser verdadeira.
Corno a mulher continuasse muda, ele prosseguiu:
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- Quando percebestes vossa gravidez, pedistes a vosso confessor que
vos reconciliasse com vosso marido, antes que ele notasse vosso estado. Vosso
confessor o enganou tão bem que vos reconciliou, e então dormistes .com vosso
marido. Em seguida, fizestes com que ele acreditasse que vosso filho era dele, como
o pensa ainda hoje grande parte das pessoas; vosso próprio filho aqui presente está
firmemente persuadido disso. Quanto ao mais, continuastes vossa manobra e ainda
hoje a sustentais,. Na noite anterior a vossa vinda para cá, ainda dormistes com
vosso confessor e, de manhã, ele vos acompanhou bom pedaço do caminho
e, ao despedir-se, disse rindo no vosso ouvido: "Amiga, cuidai bem de fazer e dizer
tudo o que meu filho quiser." Porque ele sabia muito que o filho era seu, por causa
das anotações que fizera.
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Quando a mãe do juiz ouviu o que Merlim dizia — e ela sabia muito bem
que era tudo verdade — , caiu sentada, com enorme assombro, e compreendeu que
lhe convinha confessar tudo.
— Minha mãe — disse-lhe o juiz — , seja quem for o meu pai, eu sou
vosso filho e vos tratarei como tal. Dizei, eu vos peço, se esse menino diz a verdade.
— Meu filho, em nome de Deus, piedade! Não posso mais te esconder:
aconteceu tudo como ele disse.
— Este menino dizia então a verdade, quando afirmava que conhecia
melhor seu pai do que eu, o meu! Não é pois justo que eu puna sua mãe, quando
não puno a minha. Merlim — dirigiu-se diretamente ao menino —, eu te pergunto,
em nome de Deus e para que eu possa te desculpar e a tua mãe diante do povo,
quem é teu pai?
— Vou dizer, mais por amizade do que pelo medo do vosso poder. Quero
que saibais e acrediteis que sou filho de um demônio que seduziu minha mãe. Sabei
também que demônios desta espécie chamam-se íncubos e vivem no ar. E Deus
permitiu que esse demônio me desse o conhecimento das coisas feitas e ditas e
acontecidas. Por isso é que eu sei a vida que vossa mãe levou. E Nosso Senhor,
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para recompensar a virtude de minha mãe, seu sincero arrependimento, pela
penitência que lhe impôs o ermitão, e pela obediência aos mandamentos da nossa
santa Igreja, deu-me a graça de conhecer, em parte, o futuro. E com o que vos direi,
hei de prová-lo. Então chamou o juiz à parte e disse-lhe: — Vossa mãe vai contar
àquele que vos gerou tudo o que eu disse. E quando ele souber, terá tal pavor e tal
remorso, que não suportará. Então empreenderá uma fuga por medo de vós; e o
diabo, cujas obras sempre praticou, o fará chegar à margem de um rio, e nas águas
deste rio se afogará. Poderei então provar para vós que conheço o futuro.
— Merlim — disse o juiz —, se assim for, nunca deixarei de acreditar no
que disseres.
Encerrada essa conversa, voltaram para diante do povo.
- Este menino — disse o juiz, dirigindo-se a todos — salvou sua mãe da
fogueira. E todos quantos o virem saibam que nunca terão visto nem verão jamais
alguém tão sábio.
O povo respondeu:
- Deus seja louvado! Ela está salva!
Desse modo foi a mãe de Merlim salva da morte e a do juiz, culpada.
Merlim permaneceu com os juízes. E aquele juiz mandou que dois homens
acompanhassem sua mãe para saber se era verdade o que o menino havia dito. A
mãe do juiz, assim que chegou à casa, foi contar ao ermitão tudo como se passara.
Ao ouvir, ele ficou tão espantado, que não respondeu palavra. Concluiu que, assim
que os juízes chegassem, o matariam. Pensando assim, fugiu para fora da cidade e
chegou a um rio, disse então que mais lhe valia matar-se do que receber morte vil ou
ser entregue ao suplício pelos juízes. Foi assim que o diabo, cujas obras ele sempre
havia feito, o induziu a lançar-se ao rio e afogar-se nas águas, sob os olhares dos
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dois homens que haviam sido enviados juntamente com a mulher e o haviam
seguido. Eis por que a estória aconselha que nenhum homem fuja da companhia
dos outros, porque mais facilmente o diabo apodera-se de quem está isolado. As
testemunhas da morte do ermitão — ele havia se afogado dois dias após a chegada
deles — voltaram aos juízes e contaram o que haviam assistido. Quando o juiz
soube que o ermitão havia se afogado, tomou-o por grande maravilha e foi repeti-lo
a Merlim. Merlim riu e disse ao juiz:
— Agora podeis saber que eu dizia a verdade. Peco-vos que, assim como
o contastes para mim, também o conteis a Brás. Brás era o ermitão que confessava
sua mãe. E o juiz contou-lhe a maravilha que havia acontecido ao outro ermitão.
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16
Depois, Merlim saiu com sua mãe e Brás numa direção e os juízes,
noutra. Brás era um clérigo cheio de sabedoria e de discernimento. Havia ficado de
tal modo impressionado com as sábias palavras de Merlim — que no entanto não
tinha senão dois anos e meio de idade —, que se perguntava onde poderia o menino
ter haurido tamanha sabedoria. De diversas maneiras tentou sondá-lo, até que
Merlim lhe disse:
— Brás, não tente experimentar-me, quanto mais esforçar-se nisso, mais
surpresas terá. Faça porém o que lhe pedir e tenha confiança no que eu disser,
assim lhe ensinarei a merecer o amor de Jesus Cristo e a ter alegria constante.
Brás respondeu:
— Merlim, já ouvi contares e, da minha parte, acredito que foste gerado
pelo diabo, por isso receio que me enganes.
Disse-lhe então Merlim:
— É costume dos maus ver por toda a parte os próprios vícios e enxergar
muito mais o mal do que o bem. O senhor me ouviu dizer que fui gerado pelo diabo,
mas também me ouviu dizer que Nosso Senhor me havia dado a faculdade de
conhecer o futuro. Se fosse sábio, o senhor deveria procurar saber qual caminho eu
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deveria seguir. Saiba que Nosso Senhor conferiu-me este poder, porque os diabos
queriam perder-me, eu, no entanto, não perdi seu engenho e sua arte, antes tenho
deles aquilo que devo ter, mas não o utilizo em proveito deles. Eles, por sua vez,
não foram sábios quando decidiram que um deles engravidaria minha mãe, como de
fato engravidou: o vaso que me recebeu era muito puro para pertencer a eles, e a
virtude de minha mãe prejudicou-lhes muito o plano. Se me tivessem feito e
concebido em minha avó, não teria tido o poder de conhecer a Deus e acabaria
pertencendo a eles, pois ela levou má vida e por causa dela aconteceram todas as
catástrofes que se abateram sobre meu avô e sobre minha mãe, como a última que
lhe contei. Mas agora acredite que vou ensinar-lhe a respeito da fé e da crença em
Jesus Cristo, e direi coisas que ninguém saberia dizer-lhe, a não ser o próprio Deus.
faça disso um livro e assim muitas serão as pessoas que se tornarão melhores e se
afastarão do pecado, ouvindo sua leitura, então terá feito uma esmola e uma boa
ação.
Brás respondeu:
— De muito boa vontade farei o livro, mas te conjuro, em nome do Pai, do
Filho e do Espírito Santo, tão verdadeiramente quanto sei e creio nestas três
pessoas como um só Deus, em nome da boa senhora que carregou o corpo de
Deus, de todos os santos apóstolos, de todos os anjos e de todos os arcanjos, de
todos os santos e santas, de todos os prelados da santa Igreja, de todos os homens,
de todas as mulheres, de todas as criaturas que servem e amam a Deus, e peço que
me ensines a não me enganar e nada fazer que não seja do agrado de Nosso
Senhor Jesus Cristo.
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— Que todos aqueles que acaba de nomear me prejudiquem junto a Deus
— respondeu Merlim — se eu fizer com que o senhor aja contra a vontade de Jesus
Cristo, meu salvador.
— Dize-me então tudo o que queres, porque, desde já, farei o que
julgares que é bom e deva fazer.
— Vá buscar bastante pergaminho e tinta, porque tenho muitas coisas a
ditar que o senhor deverá escrever no livro e não imaginaria que qualquer outra
pessoa pudesse dizer.
Depois que Brás ficou pronto, Merlim contou-lhe fielmente todas as provas
de amor que Jesus Cristo havia dado a José de Arimatéia. Contou-lhe em seguida a
estória de Alan e de seus companheiros, como havia partido da casa de seu pai e
como Pedro havia partido e como José se desfez do Santo Graal e como morreu.
Explicou como os diabos, diante destes acontecimentos, reuniram-se em conselho,
porque haviam percebido que tinham perdido seu antigo poder sobre os homens.
Considerando o prejuízo que os profetas lhes haviam causado, decidiram
unanimemente gerar um homem.
— O resto — acrescentou Merlim — o senhor ouviu de minha mãe e de
outros, quanto esforço e quanta astúcia despenderam, mas não foram capazes de
me conservar do lado deles.
Desse modo Merlim expôs toda a estória a Brás que a meteu por escrito.
Maravilhou-se muito com as revelações de Merlim, e dizia que todas essas
maravilhas pareciam-lhe boas e belas e as ouvia com muito agrado.
Enquanto trabalhava, Merlim disse-lhe:
— Esta obra que o senhor está escrevendo lhe causará muitos
sofrimentos e a mim ainda maiores.
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— Como assim?
— Serei procurado desde o Ocidente e todos os que vierem a minha
procura terão jurado a seus senhores matar-me e levar-lhes meu sangue. No
entanto, logo que me virem e me ouvirem, perderão a vontade de cumprir seus
juramentos. E quando eu for com eles, o senhor se dirigirá para onde habitam os
que guardam o Graal, lá o escutarão sempre e conservarão de bom grado o livro em
que tanto tem trabalhado. Entretanto este livro não estará revestido de autoridade,
porque o senhor não tem autoridade, visto que não pode ser um apóstolo. Os
apóstolos não meteram em escrito senão o que viram e ouviram de Nosso Senhor,
ao passo que o senhor, o que faz é meter no livro o que viu e ouviu por meio de
mim. E assim como eu sou obscuro para as pessoas a quem não quero esclarecer,
assim seu livro será cheio de segredos e poucos os haverá que os desvendarão.
Quando eu for com os que vierem me buscar, o senhor levará o livro. Então, os
livros de José e de Bron e o seu, quando o senhor o tiver terminado, serão reunidos.
E será boa coisa, prova do meu e do seu trabalho. Aqueles a quem agradar serão
reconhecidos e rezarão a Nosso Senhor por nós. E quando os dois livros forem
reunidos, formarão um belo livro e os dois serão a mesma coisa, só não estarão lá
as palavras secretas trocadas entre Jesus Cristo e José, que não posso e nem devo
contar.
Assim diz Roberto de Boron que este conto relata e assim ditou Merlim
que não pôde saber o Conto do Graal.
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No tempo de que vos falei e ainda vos estou falando, a Inglaterra apenas
havia recebido o cristianismo, e não tinha tido ainda nenhum rei cristão. Dos reis
anteriores nada vos falarei, a não ser o que tiver relação com o meu conto. Houve
um rei na Inglaterra chamado Constâncio. Seu reinado durou muito tempo. Ele tinha
três filhos: o mais velho chamava-se Moines, o segundo Pendragão e o terceiro Uter.
Constâncio em sua terra tinha um homem que se chamava Vortigerne, homem cheio
de sabedoria, muito hábil e bom cavaleiro, no seu tempo. Constâncio morreu, e seus
súditos perguntavam-se a quem escolheriam para sucedê-lo. A maioria concordou
que fizessem rei a Moines, porque era o mais velho. O próprio Moines concordou e
então o fizeram rei. Quando Moines tornou-se rei, houve uma guerra e Vortigerne
tornou-se senescal. Os saxões, com efeito, declararam guerra ao rei e às
populações que reconheciam as leis de Roma e atacaram repetidamente os cristãos.
O senescal, no entanto, governava como bem entendia, visto que o rei era apenas
um menino e não tinha a sabedoria nem a bravura necessárias para sua função.
Vortigerne, por sua vez, detinha grande parte do reino sob seu domínio e gozava de
muita simpatia entre as pessoas que, como ele sabia, reconheciam sua força.
Quando ele avaliou que o tinham por prudente e sábio, orgulhou-se muito e — visto
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que se considerava insubstituível — renunciou a continuar comandando a guerra e a
ocupar-se de negócios do rei. Então afastou-se dessas atividades. Quando os
saxões souberam disso, reuniram-se e vieram com grande força atacar os cristãos.
Moines foi então procurar Vortigerne.
— Amigo, peco-vos que me ajudeis a defender este reino. A sorte de
todos os seus habitantes, bem como a minha, está em vossas mãos.
— Senhor, que outros encarreguem-se disso doravante, porque em vosso
reino há pessoas que me odeiam por vos ter servido. Então quero que agora essas
pessoas se ocupem da guerra, porque eu não me ocuparei nunca mais.
Quando o rei e os seus viram que Vortigerne não mudava de opinião,
partiram para combater os saxões. Mas estes venceram, e, de volta, os homens de
Moines confessaram a derrota e disseram que tudo teria sido diferente, se
Vortigerne tivesse ido com eles. E assim ficou. O rei menino não sabia governar nem
ganhar a simpatia das pessoas de que precisava, e muitos começaram a odiá-lo.
Chegou o dia em que o rei Moines foi considerado mau e seus súditos se recusaram
a suportá-lo mais tempo. Então foram procurar Vortigerne.
— Senhor, estamos sem rei e sem chefe, porque nosso rei não vale nada.
Por Deus, pedimos que sejais nosso rei e nos governeis, porque ninguém melhor do
que vós deve reinar nesta terra.
— Senhores, se o rei tivesse morrido e me pedísseis para sucedê-lo, de
bom grado aceitaria, mas enquanto Moines for vivo, é impossível.
Cada um que ouviu essa resposta de Vortigerne interpretou-a a seu
modo. Despediram-se de Vortigerne, voltaram para suas terras e reuniram seus
amigos para examinar a situação e contaram a conversa que haviam tido com ele.
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— O melhor que temos a fazer — concluíam eles — é matar Moines.
Depois que o matarmos, Vortigerne será rei. Então saberá que chegou ao trono,
graças a nós que matamos Moines por ele, e fará tudo o que quisermos; assim o
teremos em nossas mãos.
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Procuraram então entre si quem mataria o rei e escolheram doze. Os
doze dirigiram-se a Moines munidos de facas e espadas com que o matariam, mas
seus cúmplices também estavam na cidade para ajudá-los, se fosse o caso. Então
entraram os doze onde Moines estava, lançaram-se sobre ele e o mataram a golpes
de faca e de espada. Tudo se passou muito rápido — Moines era muito jovem, um
menino — e diante de uma indiferença quase geral. Os conjurados voltaram então a
Vortigerne e disseram-lhe:
— Será rei, porque matamos o rei Moines. Ao ouvir esta nova, Vortigerne
encolerizou-se.
— Senhores — disse ele —, fizestes muito mal assassinando vosso
senhor e aconselho-vos a fugir. Os senhores desta terra vos matarão, se puderem
apoderar-se de vós; de minha parte, estou muito descontente por vos ver aqui.
Os conjurados retiraram-se.
Depois, as pessoas do reino reuniram-se para deliberar sobre a escolha
do novo rei. Vortigerne, como vos disse, tinha sabido ganhar a confiança e a
amizade das pessoas do reino. Então escolheram-no de comum acordo. Estavam
presentes a esse conselho dois homens que tinham a guarda dos dois outros filhos
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de Constando, os dois irmãos de Moines, Pendragão e Uter. Ao verem que
Vortigerne seria rei, ficaram convencidos de que ele havia feito matar Moines.
— Tão logo Vortigerne chegue ao trono, mandará matar estes dois
meninos que guardamos. Nós que admiramos e amamos muito seu pai que nos
cumulou de benefícios e a ele devemos tudo o que temos, seríamos muito maus, se
agora os abandonássemos a sua sorte. Não há a menor dúvida, assim que
Vortigerne for rei, ele os fará matar, antes que tenham atingido a idade de reivindicar
o trono que lhes pertence, o que ele sabe muito bem.
Decidiram então os dois preceptores fugir com os meninos para um reino
estranho, em direção ao Oriente, porque de lá haviam vindo seus ancestrais. Assim
os guardariam, de modo que Vortigerne não os pudesse matar. E quando fossem
maiores, poderiam reivindicar sua herança. Salvando assim da morte os filhos,
estariam retribuindo ao pai o que lhes havia feito. Levaram então os meninos. A
respeito deles não pode mais falar o conto, antes que chegue lá. Mas já pode provar
este conto que ninguém perde aquilo que fez para pessoas honestas.
Vortigerne, assim conta a estória, foi feito rei. Quando foi sagrado e feito
senhor cio país, vieram a ele os que. mataram Moines. Quando Vortigerne os viu,
fingiu que nunca os havia visto, mas eles o repreenderam e disseram que era rei
porque eles haviam matado Moines. Ao ouvir a confissão do crime, Vortigerne
mandou imediatamente prendê-los.
- Vós mesmos vos condenastes à morte — disse-lhes —, porque não
tínheis nenhum direito de matar Moines e faríeis o mesmo comigo, se pudésseis,
mas saberei bem defender-me.
- Senhor — responderam eles apavorados —, acreditamos agir no vosso
interesse e imaginamos que nos amaríeis mais.
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— Pois vos mostrarei como se deve amar pessoas da vossa espécie!
Mandou logo prender os doze, amarrá-los a doze cavalos e esquartejá-
los, de modo que praticamente nada sobrou deles. Depois que assim morreram,
numerosos parentes de cada um deles vieram a Vortigerne e disseram:
— Vortigerne, vós nos desonrastes lançando nossos parentes e amigos a
suplício tão infame. Doravante não vos serviremos!
Muito irritado com suas ameaças, Vortigerne respondeu que, se eles
acrescentassem uma palavra, os faria passar pelo mesmo suplício que seus
parentes. Mas eles zombaram de sua ameaça e responderam abertamente que não
o temiam mais.
— Rei — disseram —, podeis nos ameaçar quanto quiserdes. Enquanto
restar um de nós, nunca há de cessar a guerra que vos faremos. A partir de agora,
nós vos desafiamos. Não sois senhor nosso e não sois senhor legítimo deste reino.
Então foram aos seus parentes e amigos — era grande a linhagem de
cada um deles — e contaram o que Vortigerne lhes havia dito e como haviam
respondido. Todos quantos os ouviram ficaram muito furiosos e concluíram que já
haviam sofrido muito e que o rei devia morrer. Assim nasceram as hostilidades entre
Vortigerne e aqueles, cujos parentes ele havia mandado matar.
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Vortigerne teve a terra muito tempo e freqüentemente combateu contra os
saxões, até que os expulsou da terra. Depois tornou-se tirano tal, que seu povo não
pôde mais suportá-lo e revoltou-se contra ele. Temendo ser expulso do reino,
Vortigerne enviou mensageiros aos saxões fazendo-lhes propostas de paz. Os
saxões receberam com alegria essas propostas. Ora, entre eles, havia alguém mais
valente, Anguis. Anguis havia servido muito tempo Vortigerne e, de certa feita,
graças a ele, o rei havia vencido rebeldes. Terminada a guerra, Anguis havia
confidenciado ao rei seus temores e dissera a Vortigerne que seus súditos o
odiavam. Muito fez Anguis e afastou coisas que vos não devo dizer, apenas vos digo
que fez tantas coisas boas para Vortigerne que conseguiu que ele se casasse com
uma de suas filhas. E saibam todos aqueles que este conto ouvirem que foi ela
quem, pela primeira vez, na Inglaterra disse: "Guersil!" Não devo demorar-me a falar
de Anguis nem de outros assuntos, mas saibam que os cristãos ficaram muito irados
quando viram que Vortigerne casou-se com sua filha. Falavam que Vortigerne havia
renegado sua fé, ao esposar uma mulher que não era cristã. Vortigerne soube então
que não era tão amado de seu povo; soube também que os filhos de Constando
tinham ido para o estrangeiro, mas voltariam, logo que pudessem, com a firme
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intenção de lhe causar a ruína. Decidiu então construir uma torre tão alta e tão sólida
que fosse inexpugnável. Mandou trazer pedra e tudo o mais para levantá-la. Depois
de vinte dias ou três semanas de trabalho, a torre desmoronou. Sua construção foi
reiniciada, mas outra vez desabou e assim por três vezes. Quando ele viu que sua
torre não se mantinha, disse que nunca mais teria algum contentamento, enquanto
não soubesse por que sua torre desabava. Reuniu então todos os sábios do reino e
relatou-lhes o fenômeno maravilhoso dessa torre que caía e pediu-lhes conselho
para remediar o mal. Depois de examinar os escombros da torre, os sábios disseram
a Vortigerne:
- Senhor, apenas os clérigos poderiam descobrir o que se passa aqui;
quanto a nós, não vemos nada que possa explicar. Os clérigos conhecem mais a
fundo os homens e sabem astrologia; apenas eles poderiam esclarecer . Podemos,
de boa vontade, falar com eles e pedir que vos aconselhem. Falai com eles como
rei, de modo que vos atendam.
E o rei respondeu:
- Não me pedirão nada que, se souberem me explicar, não lhes dê.
73
20
Reuniu então todos os clérigos de seu reino, contou-lhes o que se
passara e pediu-lhes conselho. Os clérigos, por sua vez, mostraram-se
maravilhados. Então o rei chamou à parte os mais sábios dentre eles e perguntou-
lhes se sabiam algo daquela arte. Dois deles tomaram a dianteira e disseram:
— Senhor, não sabemos nada de astrologia, mas há entre nós quem
poderia saber.
— Ide buscar vossos companheiros e vinde juntos falar comigo.
Os clérigos consultaram-se à parte, para saber se algum deles praticava
astrologia. Apresentaram-se dois que se acreditavam conhecedores para esclarecer
o assunto.
- Mas há outros aqui também capazes — acrescentaram esses.
— Chamai-os então — disseram os demais.
Tanto se organizaram, que se apresentaram sete. Cada um deles se
imaginava mais sábio que o outro.
Conduziram-nos então à presença do rei que lhes perguntou se poderiam
explicar por que a torre desabava.
— Sim — responderam eles —, é pelo impulso de um ser humano.
74
— Se conseguirdes resolver, eu vos darei o que pedirdes — disse o rei.
Então retirou-se o rei, enquanto os sete clérigos puseram-se a procurar
por que a torre caía e como poderia ela manter-se. Eram muito conhecedores de
astronomia e examinaram bem a questão. No entanto, quanto mais refletiam, menos
explicação encontravam; ou melhor, não encontravam, senão uma resposta, mas
sem ligação — parecia-lhes — com a construção da torre; e essa resposta os
aterrorizava. O rei, em sua pressa, os convocou e disse-lhes:
— Senhores, por que demorais tanto em responder-me?
— Senhor, o caso é penoso e convém que nos deis um prazo de nove
dias.
— O prazo concordo em vos conceder, mas ao cabo dele, tereis que me
dar a solução.
— Sem dúvida, senhor.
E retiraram-se para deliberar.
— Senhores — diziam entre si —, o que pensais a respeito?
— Não entendemos mais nada — diziam. E escondiam uns dos outros o
que sabiam.
Finalmente, o mais sábio deles tomou a palavra:
— Senhores, eis o que é preciso fazer: cada um de vós, um por um, virá
me dizer em segredo o que descobriu e eu não revelarei o que me disserem
individualmente, senão com o acordo de todos.
Esta proposição ganhou unanimidade. Ele recebeu então, à parte, um
depois do outro colhendo seu depoimento. Ora, cada um, individualmente, disse-lhe
a mesma coisa. Quanto à torre nada sabiam, mas viam outra maravilha: uma criança
de sete anos concebida por uma mulher, mas que não tinha por pai um ser humano.
75
Os seis clérigos repeliram a mesma coisa. Depois que ouviu os seis, o sétimo os
reuniu a todos c disse-lhes:
— Senhores, dissestes todos a mesma coisa e todos escondestes a
mesma coisa.
— Repeti então o que dissemos e revelai o que escondemos.
— Dissestes que não sabeis o que fazer para manter a torre de pé, mas
vistes um menino de sete anos concebido por uma mulher e que não tem por pai um
ser humano. E não falastes mais nada, eu porém vos digo que todos vistes que
deveríeis morrer por causa desse menino. Eu também vi tudo como vós. Eis pois o
que me escondestes e é a respeito disso que devemos refletir, visto que estamos
diante de nossa morte. Senhores, se confiardes em mim — e sabeis agora que vos
digo a verdade — haveremos de saber como preservar nossas vidas.
— Bem louco seria quem não cuidasse disso. Eis o que faremos: um
acordo de dizermos todos a mesma coisa. Que a torre não pode manter-se de pé e
não se sustentará nunca, se não se misturar na massa das fundações o sangue
desse menino nascido sem pai. Se se conseguir o sangue e se ele for misturado na
massa, a torre se sustentará e ficará para sempre intacta. Que cada um diga a
mesma coisa ao rei, sem que ele perceba que combinamos. Desse modo,
poderemos escapar da morte e nos livrar desse menino que, como vimos, deverá
causar a nossa perda. Teremos que impedir também que o rei veja o menino. Será
preciso que aqueles que forem procurá-lo o matem, assim que o encontrarem, e
tragam seu sangue para o rei — os sete clérigos fecharam o acordo e voltaram ao
rei.
— Senhor — disseram —, não vos daremos a resposta juntamente, mas
um depois do outro. Assim sabereis quem fala com mais sabedoria.
76
Fingiram então que nada sabiam um do outro e foram, um de cada vez,
falar ao rei e a cinco conselheiros que, muito maravilhados com suas revelações,
concluíram finalmente que tudo aquilo podia muito bem ser verdade, se fosse
possível existir um menino sem pai. O rei, maravilhado com a sabedoria dos
clérigos, disse-lhes:
— Cada um de vós me disse separadamente a mesma coisa.
— E o que, senhor? Repeti-o claramente.
Repetiu então o rei, palavra por palavra, o que lhe haviam dito.
— Senhor, se não dissemos a verdade, fazei de nós o que quiserdes.
— Mas será possível? Como um homem pode não ter pai?
— Nunca ouvimos falar de outro caso, mas esse é assim e o menino anda
pelos sete anos.
O rei então disse que os faria guardar cuidadosamente e mandaria
procurar o menino.
— Senhor, de acordo, mas com a condição de que não o vereis nem o
ouvireis. Ordenai que o matem e tragam seu sangue. Essa é a condição de vossa
torre sustentar-se, no caso de dever sustentar-se.
O rei mandou manter os clérigos numa fortaleza e dar-lhes tudo o de que
precisassem; depois escolheu doze mensageiros e os enviou dois a dois por todas
as partes do reino, não sem antes fazê-los jurar sobre as santas relíquias que aquele
que encontrasse o menino o mataria e traria o seu sangue. E que não voltassem,
enquanto não o tivessem encontrado.
77
21
Desse modo ordenou o rei Vortigerne a captura do menino e os
mensageiros partiram dois a dois procuraram o menino por muitas e muitas regiões.
Tanto procuraram que quatro deles o encontraram e decidiam ficar lá por algum
tempo. Ora, um dia eles atravessaram um campo, à entrada da cidade, onde muitos
meninos jogavam a pela. Merlim, que sabia todas as coisas, estava entre eles e,
quando viu chegarem os que o procuravam, aproximou-se de um dos meninos mais
ricos da cidade, que sabia que seria desagradável com ele, levantou seu bastão e o
feriu na perna. O menino começou a chorar e a injuriar Merlim chamando-o de filho
sem pai. Tão logo os mensageiros do rei ouviram isso, dirigiram-se os quatro ao
menino e perguntaram-lhe quem lhe havia batido.
O menino respondeu:
— O filho de uma mãe que nunca soube quem gerou seu filho, e nunca
teve pai.
Merlim, que tudo acompanhava, dirigiu-se aos mensageiros rindo e disse-
lhes:
— Senhores, eu sou quem buscais, aquele a quem jurastes matar e cujo
sangue jurastes levar ao rei Vortigerne
78
Os mensageiros ficaram maravilhados e estupefatos.
— Quem te disse isso? — perguntaram-lhe.
— Eu o sei desde que vós jurastes.
— Tu nos acompanharás, se te ordenarmos?
— Senhores, eu teria medo de que tentásseis matar-me.
Ele sabia muito bem que eles não tinham coragem para tanto, mas falava
assim para melhor testá-los.
— Se me derdes a garantia — prosseguiu — de que não me fareis
nenhum mal, eu vos acompanharei e direi ao rei por que a torre não pode manter-se
de pé, aquela torre para a qual quereis o meu sangue.
— Este menino nos diz maravilhas — disseram —, e cometeríamos um
grande erro matando-o. Mais vale que perjuremos.
— Senhores — disse Merlim —, vinde comigo à casa de minha mãe,
porque eu não poderia mesmo acompanhar-vos sem a permissão de minha mãe e
do ermitão que mora na casa onde minha mãe está.
— Iremos onde quiseres.
Merlim conduziu então os mensageiros a um mosteiro de religiosas, onde
havia feito entrar sua mãe.
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22
Quando chegaram à casa, Merlim ordenou que recebessem muito bem
os mensageiros. Assim que esses mensageiros puseram o pé no chão, Merlim os
conduziu a Brás.
— Brás — disse —, aqui estão aqueles que, como lhe havia predito,
deveriam procurar-me para matar-me.
Depois, virando-se aos mensageiros, acrescentou:
— Senhores, peço-vos que conteis a este homem toda a verdade acerca
do que vos perguntar e estai seguros de que, se mentirdes, eu saberei.
— Não mentiremos nada, mas conta-lhe tu mesmo toda a estória tu que
sabes falar melhor do que nós, e veremos se mentes.
— Escute — disse Merlim a Brás — o que estes homens vão contar-lhe.
Então disse a eles:
— Senhores, pertenceis a um homem que se chama Vortigerne. Esse rei
mandou construir uma torre que não se sustenta e, cada vez que é reconstruída, cai
sem parar. O rei muito furioso mandou reunir os clérigos para ver se poderiam
explicar-lhe a razão disso. Eles afirmaram que não saberiam como fazê-la sustentar-
se. Depois consultaram os astros, mas não puderam saber por que ela caía. Em
80
compensação, souberam que eu tinha nascido e concluíram que poderia prejudicá-
los. Então combinaram matar-me, dizendo ao rei que sua torre se manteria de pé, se
se encontrasse o sangue do menino nascido sem pai. Vortigerne ficou muito
maravilhado com o que disseram, mas acreditou que era verdade. Então ordenou o
rei a seus mensageiros que me procurassem, mas proibiu que me levassem a sua
presença. Que me matassem logo que me tivessem encontrado e levassem o meu
sangue para misturar na massa. Com essa condição, a torre se sustentaria de pé,
afirmaram. Vortigerne escolheu então doze mensageiros e fez com que jurassem
que me matariam, tão logo me encontrassem, e levariam meu sangue. Os
mensageiros partiram dois a dois. Estes quatro que aqui estão me encontraram e eu
me revelei a eles, brigando com um menino para que me chamasse de menino sem
pai. E fiz isso para que me encontrassem, como de fato me encontraram. Agora,
Brás, pergunta a eles se o que eu disse é verdade.
À pergunta de Brás, os mensageiros disseram que, em verdade, tudo se
passara como Merlim havia acabado de contar.
— Se este menino viver, será um sábio — disse Brás persignando-se — e
muito grande desgraça seria, se o tivésseis matado.
— Senhor — disseram eles —, preferiríamos ser perjuros e ver nossos
bens tomados pelo rei! Ele mesmo que tudo sabe saberá que não tínhamos a menor
intenção de matá-lo.
— Acredito — disse Brás —, mas quero perguntar-lhe isso e outra coisa
na vossa frente, e vos maravilhareis com o que ele disser.
Chamou então Merlim que havia se afastado para os deixar à vontade e
disse-lhe:
81
— Tudo o que contas te eles confirmaram e é verdade, agora pergunto de
outra coisa que eles disseram: se tinham vontade de matar-te.
Merlim riu e disse:
— Sei bem, graças a Deus, que agora não têm vontade.
Então disseram eles:
— É verdade. Vireis então conosco?
— Sim, se jurardes que me conduzireis ao rei e que não permitireis que
sofra qualquer prejuízo até que esteja com ele e lhe fale. Só assim, depois de lhe ter
falado, saberei que nada terei a temer.
82
23
Assim juraram eles, e Brás tomou a palavra e disse:
— Merlim, agora vejo que queres me deixar. Dize-me o que devo fazer
nesta empreitada.
— Eu lhe darei a razão verdadeira do que me pergunta. Nosso Senhor,
por direito e razão, deu-me tanto conhecimento e tal memória, que aquele que
imaginava ter-me criado para si, perdeu-me, enquanto Nosso Senhor escolheu-me
para realizar um trabalho seu, que não poderia ser feito, senão por mim, porque
ninguém sabe as coisas que eu sei. Por isso sei que me convém ir à terra desses
que vieram me buscar. E farei tantas coisas e falarei tanto, que me tornarei o ser
mais ouvido nesta terra, depois de Deus. E o senhor partirá para levar a cabo esta
obra que começou, mas agora não virá comigo, antes irá procurar uma terra que tem
por nome Nortumberlândia, uma terra cheia de muitas e grandes florestas e tão
estranha às pessoas da própria região, que há partes onde ninguém nunca esteve.
E lá viverá. Eu irei algumas vezes encontrá-lo e lhe ensinarei o que for necessário
para fazer o que deve realizar. E terá muito trabalho, mas a recompensa será boa.
Sabe qual? Eu lhe direi: em vida, o cumprimento dos desejos e, depois da morte, a
alegria perdurável. E enquanto o mundo durar, sua obra será conhecida e ouvida
83
com agrado. E sabe de onde lhe advirá tal graça? Virá da mesma graça que Nosso
Senhor deu a José, aquele José a quem ele foi entregue ainda na cruz. E depois
que tiver trabalhado bem por ele, por seus antepassados e por seus sucessores, e
tiver feito tantas boas obras que mereça tornar-se seu companheiro, eu lhe ensinarei
onde estão eles, e verá o glorioso pagamento que José recebeu pelo corpo de Jesus
Cristo que lhe foi dado. Quero enfim que saiba, com mais segurança ainda, que
Deus me deu conhecimento e memória tais que farei, em lodo o reino para onde
vou, com que os homens bons e as boas mulheres trabalhem para a vinda daquele
que deve nascer desta linhagem que Deus tanto ama. Mas quero que saiba ainda
que esse trabalho não acontecerá senão no tempo do quarto rei, o rei desses
tempos de grandes sofrimentos e que se chamará Artur. O senhor irá lá onde lhe
disse. Eu irei freqüentemente vê-lo e lhe contarei todas as coisas que quero ver
metidas no seu livro. E saiba que seu livro será muito amado e tido em grande
estima por muita gente, ainda por quem nunca o tenha visto. E depois que o tiver
terminado, o senhor o levará lá, onde vivem aqueles que receberam a gloriosa
recompensa de que lhe falei. Entre eles, não haverá homem bom ou boa mulher,
cujo nome o senhor deixe de consignar, em seu livro, nem alguma ação importante
que tenham feito. Saiba igualmente que nunca a estória de uma vida será ouvida
com tanto agrado, como a de Artur e a dos homens de seu tempo. E quando tiver
acabado o livro e contado as vidas deles a todos, seu mérito será igual ao daqueles
que vivem na companhia do santo vaso que se chama Graal, e seu livro, porque fala
e falará deles e de mim, será para todo o sempre, depois de sua morte, chamado o
Livro do Graal, e as pessoas terão grande prazer em escutá-lo, porque muito pouca
coisa dele, de palavras ou ações contadas, deixará de ter proveito ou será letra
morta.
84
Isso falou Merlim a seu mestre Brás e desse modo ensinou-lhe o que
devia fazer. E chamou-o mestre, porque havia sido o mestre e guia de sua mãe. E o
homem bom, depois de ter ouvido isso, disse:
— Nada me ordenarás que esteja a meu alcance, que eu não faça.
Merlim, tendo ouvido estas palavras, voltou a seus mensageiros:
— Senhores, acompanhai-me, e ouvireis minhas recomendações e
minhas despedidas de minha mãe.
Levou-os onde estava sua mãe e disse-lhe:
— Mãe, estes homens vieram de região estranha e longínqua procurar-
me, e quero ir com vossa permissão, porque agora me convém fazer, por Jesus
Cristo, o serviço para o qual ele me deu poderes; e este serviço não posso fazer,
senão indo para onde querem levar-me. Brás, vosso mestre, também partirá. É
preciso pois separar-vos de nós dois.
— Caro filho — disse a mãe —, eu te recomendo a Deus, porque não me
atrevo a te reter. Mas se fosse do teu agrado, quereria muito que Brás ficasse.
— Não é possível.
Assim despediu-se Merlim de sua mãe e foi com os mensageiros. E Brás
partiu em outra direção para Nortumberlândia, que é para onde Merlim o havia
mandado.
85
24
A Merlim cavalgou com seus mensageiros e cavalgaram tanto, que
passaram por uma cidade, e naquela cidade havia um mercado. À saída da cidade,
viram um aldeão que havia comprado uma grande peça de couro para reparar seus
sapatos que estavam estragados, porque queria ir em peregrinação. Quando se
aproximaram mais do aldeão, Merlim riu. Os mensageiros que o levavam
perguntaram-lhe por que rira, e ele respondeu:
— Por causa do aldeão que estais vendo. Perguntai-lhe o que pretende
fazer com este couro, e ele vos dirá que quer consertar os sapatos. E vós o
seguireis, e eu vos digo que ele morrerá antes de chegar em casa.
Ao ouvirem isso tomaram-no por grande maravilha e disseram:
— Vamos experimentar para ver se é verdade. Então chegaram ao aldeão
e perguntaram-lhe o que pretendia fazer aos sapatos com o couro que levava, e ele
respondeu-lhe que ia consertá-los para ir em peregrinação. Tendo ouvido que ele
respondera a mesma coisa que Merlim dissera, maravilharam-se e disseram a uma
voz:
86
— Mas esse homem parece estar em perfeita saúde. Dois de nós irão
com ele, e dois seguirão o caminho e esperarão os outros dois onde ficarão para
passar a noite, porque nos convém muito bem saber que maravilha é essa.
Dois deles acompanharam o aldeão e não andaram mais de uma légua,
que o viram cair morto no meio da estrada, com os sapatos embaixo do braço.
Depois de assegurarem-se de que ele estava morto, voltaram a seus companheiros
e contaram a maravilha que haviam visto. Estes, tendo ouvido a estória, disseram:
— Muito loucos são os clérigos que nos mandaram matar homem tão
sábio.
E os outros disseram que prefeririam ser condenados ao suplício a matá-
lo. Tudo isso disseram entre si, persuadidos de que Merlim não saberia, mas quando
se viram diante de Merlim, ele agradeceu muito o que haviam dito.
— O que dissemos que estais nos agradecendo?
E ele repetiu as palavras que sabia que haviam dito. E eles maravilharam-
se e disseram:
— Não podemos falar nada que ele não saiba!
87
25
Continuaram cavalgando por muitas jornadas, até que chegaram ao reino
de Vortigerne. Um dia, passaram por unia vila, onde se enterrava uma criança.
Homens e mulheres acompanhavam o corpo com grandes manifestações de dor. Ao
ver essa dor e os padres e os clérigos que cantavam e levavam o corpo com pressa
a enterrar, Merlim começou a rir e parou. E aqueles que o levavam perguntaram-lhe
porque ria, e ele respondeu:
— Pela grande maravilha que vejo.
Pediram-lhe que dissesse que maravilha era, e ele disse:
— Estais vendo aquele homem que faz tal lamento?
— Sim, muito bem.
— E na frente, aquele clérigo que canta? Pois ele é que deveria lamentar-
se no lugar do homem. Quero que saibais que o menino que está morto e pelo qual
o homem chora é filho do clérigo que canta. O homem que não tem parentesco
nenhum com o morto chora e aquele de quem ele é filho canta. No meu modo de
ver, isso é uma grande maravilha!
Então perguntaram-lhe os mensageiros:
— Como o podemos saber?
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— Ide procurar a mãe, perguntai-lhe por que seu marido chora; ela vos
dirá que é por seu filho que está morto. "Senhora — direis então —, sabemos tanto
como vós de quem ele é filho: daquele clérigo que tanto cantou, e ele mesmo o sabe
muito bem, pois ele mesmo vos indicou o tempo em que foi gerado."
Os mensageiros, tendo ouvido o que Merlim dissera, apressaram-se em
encontrar a mulher e repetiram-lhe as palavras de Merlim. Quando a mulher os
ouviu, ficou muito maravilhada e disse:
— Senhores, em nome de Deus, piedade! Bem vejo que nada vos posso
esconder, antes vos revelarei a verdade, porque me pareceis homens muito
prudentes. Tudo o que dizeis é verdade, mas, em nome de Deus, não digais nada a
meu marido. Ele me mataria, se soubesse.
Tendo ouvido tal maravilha, voltaram aos dois companheiros e repetiram
a estória, e declararam entre si que nunca haviam visto no mundo melhor adivinho.
89
26
Então cavalgaram tanto, que chegaram a uma jornada de onde estava
Vortigerne.
— Merlim — disseram os mensageiros —, aconselha-nos, se te apraz,
sobre o que devemos dizer ao senhor nosso. Podemos muito bem anunciar-lhe que
te encontramos, mas tememos que se irrite por não te termos matado
Ao ouvir essas palavras, Merlim soube bem que queriam sua ajuda, e
disse-lhes:
— Fazei como vos ensinarei e não sereis censurados. Ide a Vortigerne e
dizei-lhe que me encontrastes e contai-lhe todas as provas que vos dei de meu
talento de adivinho. Dizei-lhe também que eu lhe explicarei por que sua torre não se
mantém de pé, com a condição de que condene os clérigos ao suplício que queriam
reservar para mim. Em seguida, fazei sem medo o que ele ordenar.
À noite, os mensageiros dirigiram-se a Vortigerne, que ficou muito feliz ao
vê-los e perguntou-lhes:
— Como cumpristes minha ordem?
— Do melhor modo que pudemos.
90
Então, chamaram o rei à parte e contaram tudo como havia se passado,
como haviam encontrado Merlim, acrescentando que não teriam chegado a ele, se
ele espontaneamente não tivesse se dirigido a eles.
— De que Merlim estais falando? — disse o rei — Não deveríeis ter
encontrado o menino sem pai e trazer-me seu sangue?
— Senhor, esse menino sem pai é exatamente o Merlim de quem
falamos. E sabei que é o melhor adivinho e o mais sábio que se possa encontrar
neste mundo, salvo Deus. Ele mesmo nos disse que nos havíeis feito jurar matá-lo.
Disse que os clérigos não sabem por que a torre desaba, mas ele vos mostrará a
causa e vos fará vê-la com os próprios olhos. Ele nos disse muitas outras coisas
mais extraordinárias ainda e nos enviou a vós para saber se quereis falar-lhe. Mas
se quiserdes ainda, nós o mataremos lá onde está, pois ficaram com ele dois de
nossos companheiros para guardá-lo.
Disse o rei:
— Se ousais garantir com vossas vidas que ele me mostrará por que a
torre desaba, não quero que seja morto.
— Nós vos garantimos.
—Ide buscá-lo, que quero muito falar com ele.
Então partiram os mensageiros, e o próprio rei cavalgou atrás deles.
Quando Merlim viu os mensageiros, riu e disse:
— Vós me garantistes com vossas vidas.
— É verdade, preferimos arriscar nossas vidas a te matar. Tivemos que
escolher.
— Saberei vos proteger por essa escolha. Então cavalgaram ao encontro
do rei.
91
27
Quando Merlim chegou perto de Vortigerne, saudou-o e disse-lhe:
— Vortigerne, vinde à parte falar-me em segredo.
E ele mesmo afastou-se também um pouco e chamou os mensageiros
que o haviam escoltado e, estando iodos reunidos, disse:
— Senhor, mandastes procurar-me por causa da torre que não pode
manter-se de pé e ordenastes aos mensageiros que me matassem, ao encontrar-
me. Isso por Conselho dos clérigos que diziam que a torre se manteria com o meu
sangue, mas eles mentiram; se tivessem dito que ela se manteria pela minha
ciência, então teriam dito a verdade. Se me jurardes que fareis a eles o que queriam
que fizésseis a mim, eu mostrarei por que ela cai e vos ensinarei como se há de
manter firme.
— Se me mostras aquilo em que te engajas, farei com os clérigos o que
quiseres.
— Se eu mentir, por pouco que seja, retirai para sempre vossa confiança
de mim. Façamos então virem os clérigos e eu lhes perguntarei por que a torre cai e
vereis que não saberão dar a razão.
92
Então o rei conduziu Merlim até o lugar onde a torre caiu e convocou os
clérigos que foram à frente. Lá chegando, Merlim ordenou que um dos mensageiros
lhes perguntasse por que a torre desabava.
— Não sabemos por quê, mas ensinamos como poderia manter-se firme.
— Vós me dissestes maravilhas — respondeu o rei —, porque me
mandastes procurar um homem nascido sem pai. Ora, não imagino como seria
possível encontrar tal criança!
— Senhores clérigos — interveio Merlim — , vós tomais o rei por louco ao
fazê-lo procurar um homem nascido sem pai, quando, na verdade, o que temíeis era
morrer por causa dessa criança! Eis a razão pela qual fizestes o rei acreditar que
sua torre se manteria, se ele matasse o menino e misturasse seu sangue na massa.
Imaginastes que desse modo poderíeis vos livrar daquele que deve causar a vossa
morte.
Quando ouviram que aquele menino havia dito tal maravilha, que
imaginavam ignorada por todos, ficaram completamente apavorados e
compreenderam que não poderiam escapar da morte.
E Merlim disse ao rei:
— Senhor, agora podeis saber que estes clérigos não querem matar-me
por vossa torre, mas pelo medo do que leram em sua sorte, que deviam morrer por
mim. Interrogai-os vós mesmo, porque não serão tão ousados que mintam em minha
presença.
E o rei perguntou-lhes:
— Diz ele a verdade?
— Senhor, livre-nos Deus de nossos pecados, como ele diz a verdade,
mas não atinamos como sabe tais maravilhas. Nós vos suplicamos, como ao senhor
93
nosso, que nos deixeis viver o necessário para ver se ele diz a verdade: se a torre
não se manterá por ele.
Disse Merlim:
— Não tenhais medo de morrer, enquanto não virdes por que a torre cai.
E eles lhe agradeceram.
94
28
Então disse Merlim a Vortigerne:
— Quereis saber por que a vossa obra cai, não pode manter-se e quem a
derruba? Eu vos mostrarei e direi tudo muito claramente. Sabeis o que há embaixo
desta terra? Um grande lençol de água e abaixo dele dois dragões cegos. Um ruivo
e outro branco sobre os quais pesam duas enormes pedras. Eles são muito grandes
e muito fortes e cada um sabe bem da existência do outro. Ora, quando aumenta o
peso da água e da terra sobre eles, à medida que a torre se eleva, eles mexem e
dispensam tal força que agitam o lençol d'água de cima deles e fazem cair as pedras
que pesam sobre eles. E assim a torre desaba por causa desses dois dragões. Fazei
examinar o solo embaixo e, se não achardes o que vos disse, fazei-me puxar por
cavalos; mas se achardes, fiquem quites minhas garantias e os clérigos sejam
culpados que nada sabiam do que vos disse.
O rei respondeu:
— Se for verdade o que me dizes, és o homem mais sábio do mundo.
Agora ensina-me como fazer para retirar a terra.
95
— Com cavalos e carroças puxadas por homens que a levarão muito
longe.
Em seguida, o rei pôs os homens ao trabalho. O empreendimento
pareceu insensato às pessoas da terra, mas ninguém ousava dizer algo contra, por
causa de Vortigerne. Merlim mandou que os clérigos fossem vigiados. De tal modo
trabalharam para retirar a terra e por tanto tempo, que encontraram a água e a
deixaram exposta. Fizeram então o rei saber que haviam encontrado a água. O rei
veio muito alegre e trouxe Merlim para ver a maravilha. E quando olhou e viu que a
água era muito profunda e enorme, chamou dois de seus conselheiros e disse-lhes:
— Este homem sabe muitas coisas, ele sabia da existência desta água
embaixo desta terra. E diz ainda que embaixo desta água há dois dragões. Custe o
que custar, farei tudo o que ele disse até encontrar os dois dragões.
Chamando Merlim para perto de si, prosseguiu:
— Merlim, falaste a verdade da água, acontecerá o mesmo com os
dragões?
— Sabereis quando os encontrarem.
— Como poderemos tirar esta água?
— Faremos com que corra em canais bem profundos, longe daqui, nos
campos.
Então foi dada a ordem de cavar canais bem profundos e a água
escorreu. E Merlim disse a Vortigerne:
— Assim que os dois dragões que embaixo desta água estão perceberem
que estão perto um do outro, eles combaterão e matarão um ao outro. Ordena então
que venham aqui todos os homens bons da terra para ver a batalha, porque a
batalha dos dois dragões será cheia de ensinamentos.
96
O rei disse que faria de muito bom grado convocar os notáveis do reino,
tanto clérigos como leigos. E quando chegaram e se reuniram, Vortigerne relatou-
lhes as maravilhas que Merlim havia dito e anunciou-lhes a batalha dos dois
dragões. Então diziam entre si os que isto ouviram:
— Será muito bom ver isto.
E perguntaram se Merlim havia dito qual dos dois ganharia. A que o rei
respondeu que não havia dito ainda.
97
29
Depois que a água correu toda, viram as duas pedras que estavam no
fundo da água. Quando Merlim as viu, disse:
— Estais vendo estas duas pedras? E o rei respondeu:
- Sim.
— Sob estas duas pedras estão os dois dragões.
— E como fazer para que saiam de lá?
- Muito simples. Eles não mexerão antes de sentir a proximidade um do
outro. Assim que perceberem que estão perto um do outro, combaterão até que um
morra.
— Poderias dizer-me qual dos dois?
— O combate e seu desfecho estão cheios de significados. Eu ensinarei o
que posso revelar-vos, mas em conselho, na presença de dois dos vossos amigos.
Então Vortigerne chamou quatro dos homens de seu reino em que mais
confiava e repetiu-lhes as palavras de Merlim. Eles o aconselharam a perguntar-lhe
em segredo qual dos dois seria o vencido e que lhe dissesse antes que batalha
acontecesse.
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— Tendes razão — disse Vortigerne —, porque depois da batalha ele
poderia contar o que quisesse.
Então chamaram Merlim e Vortigerne pediu-lhe que dissesse qual dos
dois dragões seria o vencido.
— Estes quatro homens são membros do vosso conselho? — perguntou
Merlim.
— Sim — disse o rei —, mais do que quaisquer outros.
— Então posso perfeitamente dizer-vos em presença deles o que me
perguntais. Quero que saibais que o branco matará o ruivo. Seu triunfo será difícil,
mas cheio de significado. Quem o vir saberá; não vos posso dizer mais nada até que
acabe a batalha.
O povo reuniu-se e foi ver a estória. As pedras foram tiradas e apareceu o
dragão branco. Quando as pessoas viram que era tão grande, tão violento e
hediondo, tiveram tal pavor, que recuaram. Depois dirigiram-se para o outro e o
viram sair. Ficaram ainda mais espantadas do que antes, porque era muito mais
violento, muito mais forte e muito mais hediondo e provocava maior pavor; tanto que
Vortigerne foi de opinião que este deveria vencer o outro.
E Merlim disse ao rei:
— Vortigerne, estão quites as minhas promessas?
- Sim.
Entrementes, os dois dragões chegaram tão perto um do outro que se
cheiraram. Imediatamente lançaram-se um sobre o outro aos golpes e às dentadas.
Nunca se ouviu falar de dois animais que se combatessem com tanta ferocidade
toda a noite e no dia seguinte até meio-dia. E todas as pessoas que viam cuidavam
que o ruivo mataria o branco, mas de repente jorrou fogo das narinas do branco e
99
assim ardeu o ruivo. Depois que ele morreu, o branco afastou-se e deitou e não
viveu depois senão três dias. E quantos viram tal maravilha diziam que nunca
maravilha tal haviam visto.
Então disse Merlim a Vortigerne:
— Agora podeis fazer tão alta quanto quiseres a torre, que não desabará
mais.
Vortigerne convocou então os operários e mandou construir a torre mais
alta e mais sólida possível. Repetidas vezes perguntou ele a Merlim o que
significavam os dois dragões e como o branco havia podido finalmente derrotar o
ruivo que durante todo o tempo levava a melhor.
— O que há nisso de ensinamento diz respeito tanto às coisas passadas
com às que hão de vir. Se me derdes a garantia de que, revelando a verdade, não
me fareis mal algum e nem permitireis que me façam, explicarei o que aquilo
significa e o farei diante dos membros mais respeitáveis de vosso conselho.
Depois que Vortigerne prometeu que dava-lhe todas as garantias que
queria, Merlim acrescentou:
— Ide reunir vosso conselho e mandai virem os clérigos que leram sua
sorte sobre a torre e quiseram matar-me.
Isso fez imediatamente Vortigerne e, quando todos se reuniram, tanto os
conselheiros como os clérigos, Merlim disse a estes:
— Senhores, cometestes grande loucura imaginando que poderíeis
trabalhar com astrologia, não sendo virtuosos e justos como deveríeis. Exatamente
porque sois cheios de vícios, fracassastes em vosso empreendimento. Vossa ciência
não vos permitiu ler nos astros o que Vortigerne vos pedia, porque não éreis dignos.
Mas vos foi mais fácil ler que eu havia nascido. Aquele que vos revelou minha
100
existência e pretendeu que devíeis morrer por minha causa, o fez pela raiva de me
haver perdido. Ele gostaria muito que tivésseis conseguido matar-me! Mas eu tenho
um senhor tão poderoso, que saberá muito bem preservar-me, se esta for sua
vontade, das intrigas do diabo, cujas imposturas tornarei claras, e nada farei para
vos matar, se me prometerdes o que vos pedirei.
Muito aliviados ao tomarem conhecimento de que escapariam da morte,
os clérigos responderam a Merlim:
— Merlim, faremos o que pedires, se pudermos, porque sabemos bem
que és o homem mais sábio do mundo.
— Eis então o que me prometestes: renunciar à prática de vossa arte,
confessar que a ela vos dedicastes e submeter-vos a uma penitência tal, que vossas
almas não sejam condenadas. Se vos comprometerdes agir desse modo, eu vos
deixarei partir.
Os clérigos agradeceram e prometeram fazer tudo o que ele lhes havia
pedido.
101
30
Foi assim que Merlim poupou os clérigos, e quantos viram como ele havia
se comportado ficaram muito agradecidos.
Vortigerne e seu conselho aproximaram-se de Merlim.
— Merlim — disse o rei —, deves contar o significado dos dois dragões.
De fato, até agora, tudo o que disseste verificou-se e eu te considero o mais sábio
dos homens do mundo. Peço-te então que me digas o que significam os dois
monstros.
— Vortigerne, o ruivo sois vós; e o branco, o filho de Constando.
Tal resposta encheu Vortigerne de vergonha.
— Vortigerne — prosseguiu Merlim, que percebera a perturbação do rei
—, se quiserdes, eu paro por aqui; não insistais, peço-vos.
— Merlim, todos os homens que estão presentes aqui fazem parte do
meu conselho. Desejo pois que prossigas até o fim, que me digas, sem disfarce, o
significado dos dois dragões.
— O dragão ruivo sois vós e digo-vos por quê. Como sabeis, os filhos de
Constando ficaram sem pai e eram muito pequenos por ocasião da morte de seu
irmão. Como sabeis igualmente, se vos houvésseis comportado como deveríeis, os
102
teríeis ajudado, aconselhado e defendido contra todo o mundo, mas sabeis também
que vos prevalecestes da riqueza e da terra de seus homens para conseguir a
amizade das pessoas neste reino. Quando percebestes que tínheis chegado a este
ponto, vos afastastes, sabendo que logo teriam necessidade de vós. Mais tarde,
quando vieram vos procurar para dizer que o rei Moines não poderia cumprir seu
papel de rei, respondestes perfidamente que não poderíeis ser rei, enquanto ele
vivesse. Foi aí que a vossa palavra vos traiu. Aqueles a quem vos confiastes
compreenderam que lhes pedias que matassem Moines. Foi o que fizeram. Em
seguida, os dois meninos que ficaram tiveram medo e fugiram para o exílio. Vós vos
tornastes rei a ainda estais de posse da terra deles. E quando os que mataram
Moines apresentaram-se diante de vós, fizestes matá-los para dar a entender que
aquele assassinato não vos afetava. Mas isto não enganou ninguém, porque vos
apoderastes de sua terra e a mantendes ainda. E esta torre, a mandastes fazer para
vos proteger de vossos inimigos, mas a torre não vos pode proteger, pois vós
mesmo não vos protegereis.
Vortigerne, que bem ouvira o que Merlim havia dito e sabia muito bem que
era tudo verdade, disse:
— Sei muito bem que és o homem mais sábio do mundo. Peço-te que me
aconselhes contra estas coisas e me digas de que morte cuidas que morrerei.
— Se não vos disser de que morte morrereis, também não direi o que
significam os dois dragões.
E ele suplicou que dissesse sem ocultar o que quer que fosse, porque de
bom grado o queria saber.
— O dragão ruivo que era muito grande e violento sois vós com vossas
más intenções. A força dele significa o vosso poder. O outro, o branco, representa os
103
dois jovens herdeiros que fugiram por vossa causa. O longo combate representa o
reino de que fostes tanto tempo senhor. Que o dragão branco enfim tenha queimado
o ruivo significa que os dois meninos vos farão queimar. E não penseis que, graças
à torre, podereis escapar de vosso destino.
— Mas, Merlim — perguntou Vortigerne cheio de angústia e de pavor —,
onde estão esses dois meninos?
— Estão no mar. Embarcaram com muita gente em suas naves e estão a
caminho para vingarem-se de vós. Dizem e com justiça que matastes seu irmão e
eles, por sua vez, vos matarão. Sabei que chegarão, de hoje a três meses, ao porto
de Vincestre.
Vortigerne ficou muito angustiado com estas novas e com saber que essa
gente vinha. Então perguntou a Merlim:
— Pode ser diferente?
— De modo algum. Nada pode impedir que morras queimado pelos filhos
de Constando, do mesmo modo como vistes o dragão branco queimar o ruivo.
Foi assim que Merlim contou a Vortigerne o significado dos dois dragões.
104
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Vortigerne soube que os filhos de Constando vinham com muita gente.
Então convocou seus homens para a data que Merlim havia anunciado, ordenando
que fossem em direção ao mar, e assim os conduziu a Vincestre, onde eles
deveriam chegar. E quando estavam todos reunidos, ninguém sabia por quê, salvo
aqueles que haviam estado no conselho com Merlim.
Merlim não estava ali, porque tão logo disse ao rei por que sua torre caía
e contou o significado dos dragões, despediu-se e partiu dizendo que havia feito
muito bem aquilo pelo que viera. Dirigiu-se a Nortumberlândia para encontrar-se com
Brás e contou-lhe as coisas e Brás as meteu em seu livro e, por seu livro, as
sabemos nós ainda hoje. Lá esteve Merlim tanto tempo, que os filhos de Constando
mandaram procurá-lo.
Vortigerne porem estava no porto com todos os seus e esperava o dia
marcado por Merlim. Efetivamente, ao cabo de três meses, os habitantes de
Vincestre viram aproximar-se, vindos do mar, numerosos navios carregados de
tropas dos filhos de Constando. Logo Vortigerne deu ordem a seus homens de
armarem-se e defenderem o porto. Mas quando os filhos de Constando
aproximaram-se da praia, os que estavam na terra viram as bandeiras reais de
105
Constando e maravilharam-se. Assim que o primeiro navio encostou, perguntaram
logo a seus ocupantes de quem eram as naus e que estória era essa. Eles
responderam:
— De Pendragão e de seu irmão Uter, os dois filhos de Constando que
voltaram para tomar posse de seu reino que Vortigerne, o traidor, ocupa há muito
tempo. E mandou matar o irmão deles, por isso estão vindo vingar sua morte.
Quando os homens da praia souberam que estavam diante dos filhos de
seu senhor legítimo e viram que traziam tão grande efetivo que a batalha poderia
virar em seu prejuízo, foram dizê-lo a Vortigerne.
Logo o rei compreendeu que a maior parte de seus homens o
abandonaria e já havia escolhido o lado de Pendragão, ficou com medo e ordenou
às tropas que não poderiam traí-lo que pusessem a fortaleza em estado de defesa.
E fizeram o melhor que puderam. E as naus chegaram. À medida que aportavam,
saíam delas os cavaleiros armados e toda a outra gente, dirigindo-se para a
fortaleza. E as pessoas que viram os filhos de seu senhor aproximarem-se
receberam-nos como seu senhor. Os que estavam com Vortigerne ficaram na
fortaleza e a defenderam, mas os atacantes davam golpes muito violentos.
Pendragão pôs fogo na fortaleza e nesse fogo ardeu Vortigerne.
Desse modo retomaram os filhos a terra e fizeram saber a toda a região e
a todo o reino que estavam de volta. Com essa nova, tiveram todos muita alegria e
vieram todos a seu encontro e os receberam como seus senhores. Assim retomaram
os dois irmãos a herança e fizeram rei Pendragão. Ele foi muito bom e leal.
Os saxões que Vortigerne havia atraído para o reino haviam se
apoderado da maior parte das fortalezas, de onde atacavam sem trégua o novo rei e
os cristãos. A guerra prosseguia com altos e baixos para os dois lados, até que
106
Pendragão veio cercar a fortaleza de Anguis. O cerco durava mais de um ano,
quando Pendragão fez um conselho para decidir qual o melhor modo de tomar a
fortaleza. Ora, havia lá homens que haviam participado do conselho em que Merlim
havia desvendado para Vortigerne o significado dos dragões, a estória dos filhos de
Constâncio e a morte do usurpador. Fizeram chamar Pendragão e Uter, seu irmão, à
parte, e contaram a eles as maravilhas que anunciara Merlim, assegurando ao rei
que ele era o mais sábio de todos os adivinhos e que, se ele quisesse, poderia dizer
como a fortaleza seria tomada.
Depois que Pendragão ouviu, maravilhou-se e disse:
— Onde poderia encontrar tão bom adivinho?
— Isso não sabemos, mas temos certeza de que falamos com ele e de
que ele está em alguma parte deste reino. E se ele quiser vir aqui, virá.
E Pendragão disse:
— Se ele está neste reino, eu o encontrarei facilmente.
Então convocou mensageiros e os enviou por toda a parte do reino.
107
32
Merlim, que soube que o rei o mandara procurar com muita pressa,
depois que falou com Brás, dirigiu-se para uma cidade, onde sabia que estavam os
mensageiros que o procuravam. Veio sob a aparência de um lenhador, com um
machado ao ombro, as pernas enfiadas em grandes botas de couro, vestido de uma
túnica muito rasgada, cabelos desgrenhados e uma barba hirsuta, mais parecendo
um selvagem. Assim chegou a uma casa onde estavam os mensageiros. Quando o
viram, examinaram-no maravilhados e disseram um ao outro:
— Este mal parece um homem. Ele avançou e disse-lhes:
— Senhores, não estais cumprindo a contento a tarefa que vos deu vosso
senhor de procurar um adivinho que tem por nome Merlim.
Ao ouvirem isso, um disse ao outro:
— Que diabo terá dito isso a este vilão que se intromete no que fazemos?
— Se eu estivesse a procurá-lo como vós, já o teria achado.
Então cercaram-no todos e perguntaram-lhe se sabia dele e o havia visto.
— Ver, eu o vi e conheço sua aparência; ele sabe que o procurais, mas
não o encontrareis nunca, se ele não quiser. E isso me ordenou ele que vos
108
dissesse, que por nada vos esforceis por encontrá-lo, porque se o encontrardes, não
irá nunca convosco. E dizei àqueles que falaram a vosso senhor que o bom adivinho
está neste reino, e que eles falaram a verdade. E quando encontrardes vosso
senhor, dizei-lhe que não tomará aquela fortaleza que mantém cercada, enquanto
Anguis não morrer. E sabei que aqueles que vos disseram que procurásseis Merlim
eram cinco em todo o exército e não haverá senão três quando voltardes. A esses
três e a vosso senhor dizei que, se vierem a esta região e entrarem nesta floresta,
encontrarão Merlim, mas se eles mesmos não vierem, não haverá quem o encontre.
Foi assim que todos entenderam a mensagem que ele disse. E virou-se e,
ao virar-se, desapareceu e o perderam. Então persignaram e disseram:
— Falamos com o diabo. O que fazemos com o que nos disse?
E depois que entraram em acordo, acrescentaram:
— Vamos voltar para junto de nosso mestre e daqueles que nos
confiaram esta missão e relatar a eles essa maravilha. Vamos conferir também se os
dois conselheiros morreram.
Cavalgaram até onde se encontrava o rei. E quando o rei os viu,
perguntou-lhes:
— Encontrastes aquele que fostes procurar?
—Senhor, vamos vos explicar o que nos aconteceu, mas reuni
primeiramente vosso conselho e convocai aqueles que vos informaram a respeito do
adivinho.
E o rei os mandou chamar e, quando chegaram, reuniram-se num lugar à
parte e os mensageiros relataram a maravilhosa aventura e todas as coisas que o
lenhador Ihes havia dito e que dois daqueles cinco conselheiros de Vortigerne
estariam mortos. Então perguntaram deles e souberam que, de fato, tinham morrido.
109
E depois que ouviram como Merlim os havia ensinado a buscar, maravilharam-se
todos muito de que homem tão feio, tão velho e tão hediondo como aquele de quem
falavam pudesse ser Merlim; mas não sabiam que Merlim podia assumir outra
aparência diferente da sua, mas ao mesmo tempo estavam certos de que ninguém
podia dizer aquelas coisas, senão ele mesmo. Então disseram ao rei:
— Cuidamos bem que tenha sido o próprio Merlim quem falou a vossos
mensageiros, porque ninguém, senão ele, poderia saber da morte daqueles dois. E
ninguém poderia predizer a morte de Anguis, senão Merlim.
Então perguntaram aos mensageiros:
— Em que cidade encontrastes esse homem de quem nos falastes?
— Em Nortumberlândia. E foi ele que veio à nossa hospedagem.
Concordaram então todos que era Merlim e disseram que queriam que o
próprio rei fosse procurá-lo. E o rei disse que confiava o trono a seu irmão Uter e iria
a Nortumberlândia procurar naquela floresta aquele de quem falavam.
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O rei pôs-se a caminho e chegou a Nortumberlândia e perguntou se
alguém sabia novas do lenhador, mas não achou quem soubesse. Então decidiu
procurá-lo na floresta. Depois de percorrê-la em todos os sentidos, um de seus
companheiros viu um rebanho de animais guardado por um homem muito feio e
muito disforme. E perguntou ao homem quem era. O homem respondeu que era de
Nortumberlândia e estava a serviço de seu senhor.
— Tens alguma notícia de Merlim?
— Não, mas vi ontem um homem que me disse que o rei viria procurá-lo
hoje nesta floresta. Ele veio? Sabes algo a respeito?
— É verdade que o rei o procura. Saberias ensinar como encontrá-lo?
— Isto direi apenas ao rei; a ti nada mais direi.
— Posso levá-lo ao rei.
— Meus animais ficariam mal guardados, e eu não preciso dele. Que ele
venha a mim, então direi como encontrar aquele que ele procura.
— Vou buscá-lo.
O homem deixou o pastor e foi à procura do rei e contou-lhe o que se
passara. O rei disse-lhe:
111
— Leva-me até ele.
Então levou-o lá onde havia encontrado o homem, e disse:
— Vês aqui o rei que trouxe comigo. Fala com ele como prometeste.
— Senhor — disse ao rei o pastor —, sei bem que procurais Merlim, mas
não podereis encontrá-lo, se ele não quiser. Ide então a uma de vossas cidades e
ele irá vos encontrar, assim que souber que o esperais.
— E como saberei que isto é verdade?
— Se não acreditais em mim, não leveis em conta o que digo, porque e
loucura dar fé a mau conselho.
— É mau o conselho que me dás?
— Não! Isto vós o estais dizendo. Sabei que o conselho que vos dou vale
mais do que podeis imaginar.
— Acreditarei nele.
O rei foi à cidade mais próxima da floresta, o mais depressa que pôde. E
depois que estava lá, chegou um dia a sua hospedagem um homem muito bem
vestido, muito bem calçado e de boa aparência e disse a um cavaleiro:
— Leva-me perante o rei.
E o cavaleiro levou-o. Quando chegou diante do rei, disse:
— Senhor, Merlim envia-me a vós e quer que saibais que foi a ele que
vistes guardando um rebanho na floresta e que foi ele que vos disse que viria vos
falar. E ele disse a verdade. Mas por enquanto não tendes necessidade dele, se
tivésseis, ele viria de bom grado.
— Eu sempre preciso dele — replicou o rei — , e não há ninguém no
mundo que eu queira tanto conhecer.
112
— Pois que dizeis isto, ele vos manda por minha boca a boa nova de que
Anguis está morto, e Uter, vosso irmão, o matou.
Ao ouvir isso, o rei maravilhou-se muito e disse:
— Quero muito que seja verdade o que me dizes.
— Nada mais mandou-me dizer-vos, mas sois louco em duvidar de suas
palavras, antes de procurar verificar se é fato.
— Tens razão.
Escolheu o rei dois mensageiros, deu-lhes as melhores montarias de que
dispunha e ordenou-lhes que fossem o mais depressa possível saber se era verdade
a notícia da morte de Anguis. Os mensageiros apressaram-se e, depois que
cavalgaram uma noite e um dia, encontraram os homens de Uter que vinham trazer
ao rei a notícia da morte de Anguis. Ao se encontrarem, trocaram as informações e
voltaram ao rei. E o homem que tinha vindo, da parte de Merlim, falar ao rei
Pendragão partiu. Os mensageiros contaram privadamente ao rei como Uter havia
matado Anguis. E o rei proibiu-lhes de revelar essa nova e ficou por lá e muito se
maravilhava de como Merlim sabia da morte de Anguis.
113
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Permaneceu Pendragão na cidade, esperando a volta do adivinho e
imaginando perguntar-lhe, assim que ele aparecesse, em que circunstâncias Anguis
havia sido morto, o que pouca gente sabia até então. Ora, um dia, estando o rei de
volta do mosteiro, um homem belo, bem vestido e de aparência muito respeitável
aproximou-se dele, saudou-o e disse-lhe:
— Senhor, o que esperais nesta cidade?
— Espero que Merlim venha falar comigo.
— Senhor, não sois ainda muito sábio para reconhecê-lo, quando vos
fala. Mandai chamar aqueles conselheiros que o conhecem e perguntai-lhes se eu
posso ser esse Merlim.
O rei maravilhou-se muito, mandou chamar os conselheiros e disse-lhes:
— Senhores, estamos aqui à espera de Merlim, mas, que eu saiba,
ninguém aqui o conhece. Dizei-me se vós serieis capazes de identificá-lo.
— Sem dúvida, senhor, se o virmos o reconheceremos.
— Senhor — interveio o homem que estava diante do rei —, como pode
reconhecer outrem aquele que não conhece a si mesmo?
114
— Não estamos dizendo que o conhecemos em seus segredos —
disseram os três —, mas conhecemos bem sua aparência e, se o virmos, o
reconheceremos.
— Não conhece bem uma pessoa quem não reconhece sua aparência. E
isto vos provarei.
Então chamou o rei a uma câmara a sós e disse-lhe:
— Senhor, quero muito bem estar do vosso lado e de Uter, vosso irmão, e
sabei que sou Merlim, a quem viestes procurar. Mas estas pessoas que imaginam
conhecer-me não sabem nada de mim, como vou provar. Fazei-os entrar; assim que
me virem, dirão que me encontrastes. E se eu quisesse, nunca saberiam identificar-
me.
Ouvindo isto, o rei ficou muito alegre e disse:
— Farei tudo o que quiserdes.
Voltou à sala e chamou aqueles que imaginavam conhecer Merlim. E
quando vieram, Merlim já havia assumido a aparência que tinha quando o haviam
visto.
E ao vê-lo, disseram ao rei:
— Senhor, este e Merlim.
Ao ouvir isso, o rei riu e disse:
— Olhai bem se o conheceis.
— Sabemos com certeza que é Merlim. Então disse Merlim:
— Estão falando a verdade. Agora dizei-me o que quereis.
— Queria pedir-vos, se fosse possível, que pudesse merecer vossa
amizade e que mantivéssemos contatos contínuos, porque pessoas dignas de fé
disseram-me quanto sois sábio e bom conselheiro.
115
— Senhor, todos os conselhos que me pedirdes eu vos darei, se puder.
— Quero saber também, se for do vosso agrado, se já conversamos
desde que vim procurar-vos por esta região.
— Senhor, eu sou aquele que encontrastes guardando um gado.
Quando ouviram isso, o rei e aqueles que com ele estavam maravilharam-
se muito e o rei disse aos conselheiros:
— Conheceis muito mal Merlim, porque não o reconhecestes quando
apresentou-se diante de vós.
— Senhor, nós nunca o vimos fazer tal coisa, mas estamos convencidos
de que ele é capaz de fazer e de dizer o que nenhum ser humano poderia.
116
35
Então perguntou o rei a Merlim:
— Como soubeste da morte de Anguis?
— Senhor, soube, quando já estáveis aqui, que Anguis queria matar
vosso irmão e fui preveni-lo. Graças a Deus, ele confiou em mim e tomou cuidado.
Contei-lhe a ousadia do inimigo e sua determinação. De fato, Anguis contava vir só,
à noite, para matá-lo. Nesse último ponto, vosso irmão não acreditou. Entretanto,
passou toda a noite só, acordado e armado, porque nada disse a ninguém, e
esperou a chegada de Anguis. Anguis penetrou na tenda e procurou vosso irmão
onde imaginava encontrá-lo, mas em vão. E quando ia sair, vosso irmão lançou-se
sobre ele e o matou. O combate não durou muito, porque Anguis estava desarmado,
ele não tinha vindo, senão para matar vosso irmão durante o sono e fugir, em
seguida.
— Merlim — disse Pendragão maravilhado —, sob que aparência falastes
com meu irmão? Estou admirado de que ele tenha acreditado no que dissestes.
— Eu tinha assumido a aparência de um velho de cabelos brancos. Falei-
lhe em segredo, e disse que ele podia esperar a morte naquela noite, se não
tomasse cuidado.
117
— E dissestes quem éreis?
— Ele ainda não sabe quem lhe falou e não saberá até que lhe conteis.
Foi por isso que vos fiz saber pelo mensageiro que não tomaríeis a fortaleza, antes
da morte de Anguis.
— Caro amigo, vireis comigo? Tenho grande necessidade de vosso
conselho e de vossa ajuda.
— Senhor, quanto mais estiver convosco, mais vossos homens terão
ciúmes da confiança que me testemunhareis! Mas se achardes que minha presença
vos pode ser útil e se fordes prudente, tereis confiança em mim, apesar deles. Assim
vos ajudarei a levar a bom cabo a vossa missão e a vencer os obstáculos.
— Merlim, tanto já dissestes e tanto já fizestes em meu benefício e
sobretudo salvastes meu irmão da morte, como dissestes, que não devo jamais
duvidar de vós.
— Senhor, ireis encontrar vosso irmão e perguntareis a ele quem lhe
disse o que eu acabei de vos contar e, se ele vos souber dizer quem foi, retirai para
sempre vossa confiança de mim. Sabei além disso que, quando quiser que me
reconheçais, irei a vosso irmão sob a aparência que tinha quando lhe predisse a
morte de Anguis.
— Por Deus — disse o rei —, dizei-me desde já quando falareis com meu
irmão.
— Sabereis facilmente, mas tomai cuidado, se tendes apego à vida, de o
não dizer a ninguém, porque se vos pegar traindo esse segredo, nunca mais terei
confiança em vós e vós perderíeis mais do que eu.
— Se eu vos mentir uma vez que seja, retirai-me toda vossa confiança,
porque vos porei à prova de diversas maneiras.
118
— Quero que me experimenteis de todas as formas e quero bem que
saibais que falarei a vosso irmão no décimo primeiro dia depois que tiverdes falado
com ele.
119
36
Foi assim que Merlim aproximou-se de Pendragão. Despediu-se dele e foi
encontrar seu mestre Brás e contar-lhe tudo o que havia se passado. Brás meteu
tudo por escrito e por ele temos conhecimento ainda hoje da estória. Pendragão
voltou a Uter, seu irmão. Quando Uter o reencontrou externou muita alegria em seu
rosto. Logo que se saudaram, Pendragão puxou seu irmão à parte e contou-lhe a
morte de Anguis da forma como Merlim lhe havia contado e perguntou se de fato
havia sido daquela forma. E Uter respondeu:
— Foi assim, mas Deus me ajude, contaste-me algo que imaginava que
ninguém, salvo Deus soubesse e um homem bom muito velho que me havia dito
tudo isto em segredo. Não imaginava que mais alguém pudesse saber.
Uter sorriu e perguntou:
— Senhor, por Deus, quem te contou tudo isso? Dize-me porque estou
maravilhado por saberes.
— Podes muito bem saber e ouvir o que eu sei, antes peço que me digas,
se o souberes, quem é o ancião que te salvou da morte? Sem ele, segundo fui
informado, Anguis teria te matado.
120
— Senhor, pela fé que te devo, por seres meu senhor e meu irmão, não
sei quem é, mas parece-me homem muito bom e muito sábio, por isso pus nele
minha confiança. Entretanto, de tudo o que me disse, nada era crível, porque Anguis
revelou extremo atrevimento tentando matar-me em nosso campo e em minha
tenda.
— Senhor — retomou Pendragão —, reconhecerias novamente esse
velho, se o visses?
— Muito bem, acredito.
— Está certo de que virá ver-te, de hoje a onze dias. Peço-te, pelo amor
que me tens, que no décimo primeiro dia fiques todo o tempo perto de mim, de modo
que eu veja todas as pessoas que vierem falar contigo.
E ele jurou que não se afastaria dele, até que visse e reconhecesse o
velho, no caso de ele aparecer.
121
37
Deste modo estiveram juntos naquele dia os dois irmãos. Merlim, por seu
lado, que havia combinado tudo aquilo para conhecê-los e tornar-se amigo deles,
relatou a Brás o que os dois irmãos haviam dito a seu respeito e como o rei queria
colocá-lo à prova. E Brás perguntou-lhe:
— O que fareis a respeito?
— Eles são jovens e belos e eu não conseguiria de outro modo atrair sua
simpatia, senão fazendo muitas de suas vontades, propiciando-lhes divertimentos e
alegrias. Conheço uma mulher que Uter ama. Levarei a ele uma carta da parte dela,
que vós escrevereis. E isto será para que ele acredite no que lhe direi em
confidencia. E eu conheço todas as palavras secretas; ele se maravilhará muito
quando lhe falar e desse modo passará aquele décimo primeiro dia em que ambos
me verão e não me reconhecerão. No dia seguinte, procurarei os dois juntos e direi
quem sou e ficarão muito felizes de me ver.
Tal como Merlim disse, ele o fez. Tomou a forma de um servo da dama e
dirigiu-se a um lugar onde Uter o visse diante de seu irmão e disse:
— Senhor, minha dama vos saúda e vos envia esta carta.
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E ele a tomou com grande alegria, imaginando verdadeiramente que a
dama a enviava, e a fez ler. E a carta dizia que confiasse no que o portador
dissesse. E Merlim disse a Uter tudo o que podia causar-lhe melhor entretenimento.
Assim ficou ao lado do rei até a noite. E Uter ficou o dia todo muito alegre e muito
feliz. Ainda antes da hora de vésperas, Pendragão maravilhou-se de não ter visto
Merlim que lhe havia prometido vir falar a Uter. Os dois irmãos esperaram até depois
de vésperas. Mais tarde, retiraram-se à parte para conversar. E Merlim afastou-se e
retomou a aparência que tinha quando falara com Uter pela primeira vez. Depois foi
a sua hospedagem e pediu a um cavaleiro que chamasse Uter. Disseram-lhe que ele
estava com o rei. Então mandou procurá-lo um mensageiro que foi dizer a Uter, na
presença do rei, que um ancião o chamava à sua hospedagem.
— Acho que é Merlim! — disse Pendragão, pedindo a seu irmão que
viesse buscá-lo, no caso de ser o homem que lhe havia salvo a vida.
Uter prometeu que viria e dirigiu-se à hospedagem. Ele reencontrou seu
salvador que logo o reconheceu com grande alegria. Falaram de muitas coisas e
Uter disse a Merlim:
— Senhor, salvastes a minha vida, mas maravilhou-me muito que o rei
pudesse me repetir tudo o que dissestes e tudo o que eu fiz depois de vossa partida.
E ele contou-me que deveríeis vir hoje e insistiu muito que o informasse de vossa
vinda. Ainda agora, pediu-me que viesse ver se éreis de fato Merlim. Mas eu me
pergunto como terá sabido do que me dissestes.
— Só pode ter sido porque lhe contaram. Ide chamá-lo e perguntai-lhe,
em minha presença, quem o informou.
Uter foi então chamar o rei, recomendando porém aos homens que
guardavam a hospedagem que não deixassem entrar ninguém. Mas Merlim assumiu
123
novamente a aparência do jovem que havia trazido a carta, e Uter e Pendragão,
quando chegaram para encontrar Merlim, viram-se diante do mensageiro.
— Senhor — disse Uter ao rei —, o que vejo é maravilha, pois deixei aqui
o homem de quem vos falei e eis que encontro este servo! Ficai aqui. Eu vou
perguntar aos sentinelas se viram sair aquele homem ou entrar este jovem.
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38
Uter saiu, enquanto Pendragão ficou dando risada.
— Vistes alguém entrar aqui, enquanto fui chamar meu irmão? —
perguntou Uter aos guardas.
— Não, senhor, ninguém.
— Senhor — disse Uter, de volta, ao rei —, não compreendo mais nada!
E tu — perguntou ele ao jovem —, acabas de chegar?
— Eu já estava aqui quando falavas com o velho.
— Por Deus! — disse Uter ao rei, persignando-se — Estou sendo vítima
de algum encantamento! Nunca semelhante aventura pode ter acontecido com um
ser humano!
O rei pôs-se a rir a estas palavras, porque sabia que Merlim estava na
origem de tudo o que se passava.
— Caro irmão — replicou —, não vos imaginava capaz de mentir.
— Mas eu estou desconcertado e não sei o que dizer.
— Quem é este jovem?
— É aquele que vos trouxe a carta.
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— É verdade — disse o servo.
— Imaginas que possa ser ele o homem pelo qual foste me chamar?
— Não, senhor. Não pode ser.
— Então vamos lá fora. Se ele quiser que o encontremos, logo o
encontraremos.
Saíram. Depois de algum tempo lá fora, disse o rei a um dos cavaleiros:
— Vai ver quem está lá dentro.
Ele foi e viu um velho sentado na cama. Voltou e contou ao rei o que vira.
E quando Uter o ouviu, ficou muito maravilhado e disse:
— Por Deus, senhor! Agora vejo quem imaginava que ninguém pudesse
ver. Aqui está aquele que me salvou a vida.
— Que ele seja bem-vindo! — exclamou Pendragão muito feliz.
Em seguida, dirigindo-se a Merlim, perguntou-lhe:
— Senhor, posso contar a meu irmão quem sois?
— É bom que ele saiba — respondeu Merlim. Então disse o rei que bem
conhecia as manobras de Merlim:
— Caro irmão, onde está o moço que vos trouxe a carta?
— Senhor, ele estava aqui, agora — disse Uter —, o que quereis com
ele?
O rei e Merlim começaram a rir. E Merlim chamou o rei à parte e revelou-
lhe o que havia dito a Uter acerca de sua amiga. Depois pediu-lhe que repetisse
suas palavras ao irmão. O rei sorrindo chamou Uter e disse-lhe:
— Caro irmão, perdeste teu mensageiro?
— Por que, senhor, falais novamente deste servo?
— Por causa das boas novas que vos trouxe de vossa amiga.
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— O que sabeis a respeito?
— Se consentires, direi o que sei diante deste ancião.
— Consinto — disse Uter, imaginando que ninguém, salvo o mensageiro,
o soubesse.
Ora, o rei repetiu palavra por palavra, tudo o que lhe havia sido dito.
Depois que ouviu, muito maravilhado, disse:
— Senhor, por Deus, se vos apraz, dizei-me como sabeis essas
maravilhas que dissestes agora?
— Direi, se este homem bom autorizar.
— O que tem ele a ver com isso?
— Não posso falar, se ele não autorizar.
Então maravilhou-se muito Uter. Olhou o homem bom e disse:
— Senhor, peço-vos permissão para meu irmão contar como soube deste
segredo.
— Quero bem que vos diga.
— Caro irmão, não sabes quem é este homem? Sabei que é o homem
mais sábio do mundo, o mais respeitável. E sabei também que tem tal poder como
vos direi: nenhum outro servo vos veio procurar hoje, senão ele mesmo; ele mesmo
inventou a carta que vos dirigiu aquelas íntimas palavras de vossa amiga.
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Ao ouvir isto, Uter ficou muito admirado e disse:
— Senhor, como poderia acreditar? Se fosse verdade, seria a maior
maravilha do mundo!
— Podes acreditar, pois é a coisa mais certa do mundo.
— Não acreditaria, se não o soubesse por vós. Então o rei puxou Merlim
de lado e pediu-lhe que desse alguma demonstração, se lhe agradasse.
— Farei, com muito gosto. Retirai-vos um pouco, que me mostrarei sob a
aparência do servo.
Tão logo saíram, veio ele atrás e chamou Uter dizendo-lhe que queria
voltar para sua dama e que ele pedisse o que quisesse. O rei chamou o irmão à
parte e disse-lhe:
— Quem imaginas ser este servo? Acreditas que é a mesma pessoa que
te falava há pouco?
— Estou estupefato e não sei o que dizer.
— Pois fica sabendo que é o mesmo que te preveniu que Anguis queria
matar-te e agora fala contigo aí dentro; é o mesmo que eu fui procurar em
Nortumberlândia tem o poder de conhecer as coisas que foram ditas e que
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aconteceram e, em grande parte, as que estão por acontecer. Por isso queria muito
pedir-lhe, se lhe agradasse, que se tornasse nosso amigo e nosso conselheiro em
todos os negócios.
Então, ambos pediram-lhe, por Deus, que permanecesse com eles e
depositariam nele toda a confiança.
— Senhores — respondeu Merlim —, estais ambos convencidos de que
conheço os segredos que quero conhecer. Quanto a vós — dirigiu-se ao rei —,
imagino ter-vos dito a verdade de tudo o que me perguntastes.
— De falo, não encontrei a menor mentira.
— Uter, não era verdade o que te disse de tua amiga? No entanto, não
imaginavas que alguém pudesse saber.
— De tal modo me convencestes, que jamais, em toda a minha vida,
desmerecereis minha confiança. E agora que sei que sois um homem cheio de
experiência e de sabedoria, gostaria que permanecêsseis ao lado de meu irmão,
— Ficaria, de bom grado, mas quero confiar-vos confidencialmente um
segredo. E preciso que saibais que, de tempos em tempos, me convém, por força da
natureza, estar afastado dos homens. Mas estai seguros de que, mesmo longe de
vós, onde quer que eu esteja, sois a minha primeira preocupação. Nunca acontecerá
que eu saiba de alguma dificuldade vossa, que não venha Imediatamente vos
aconselhar em tudo. Peço-vos, pois que minha companhia desejais, que não
desanimeis em minha ausência e que externeis em público, cada vez que eu volte a
vos ver, grande alegria. Os homens bons apreciarão muito isto, e os maus, aqueles
que não vos amam, me odiarão, mas não ousarão demonstrar, se agirdes dessa
maneira. Sabei, por fim, que, exceto para vós e privadamente, não modificarei mais
minha aparência. É sob a aparência já conhecida que vou apresentar-me, logo
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mais, em vossa casa. Assim, os que já me viram alguma vez irão logo anunciar aos
outros que cheguei. E assim que souberdes, manifestareis grande alegria, e dirão
todos que sou muito bom mago. Em seguida, sem hesitação, me proporeis as
questões que vossos conselheiros tiverem sugerido e eu vos darei o conselho que
pedirdes. Assim ficou assentado entre Merlim, Pendragão e Uter, e afastou-se deles
para assumir a aparência que as pessoas do reino conheciam. Em seguida, foi até
aqueles que eram do conselho de Vortigerne. Ao vê-lo, ficaram muito alegres e
foram contar ao rei que Merlim tinha chegado. O rei ficou muito satisfeito e saiu a
seu encontro. E aqueles que o acompanhavam diziam:
— Merlim, o rei vem ao vosso encontro!
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Foi muito grande a alegria do rei ao receber Merlim e conduziu-o a sua
hospedagem. Logo que entraram, os conselheiros chamaram-no à parte e
disseram-lhe:
— Senhor, tendes diante de vós Merlim, o mais sábio mago do mundo.
Pedi-lhe que vos diga como apoderar-vos do castelo de Anguis e como acabará a
guerra contra os saxões. Sabei que, se ele quiser, pode vos dizer.
O rei disse que perguntaria, de bom grado. E eles se retiraram para deixar
o rei receber condignamente o mago. No terceiro dia, reuniu-se o conselho. Então
perguntou o rei a Merlim o que os outros haviam sugerido:
— Merlim, ouvi dizer que sois muito sábio e muito bom mago. Peço-vos,
para que eu sempre esteja próximo de vós, que me digais como apoderar-me do
castelo de Anguis e se conseguirei ou não expulsar os saxões do reino.
— Senhor, agora podereis saber se sou sábio. Sabei que os saxões,
desde que souberam da morte de Anguis, não pensam mais em abandonar este
reino. Vossos mensageiros virão dizer-vos isso amanhã. Então os devolvereis a
vossos inimigos levando propostas de paz. Os saxões responderão que vos deixam
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o reino que pertenceu a vosso pai e vós os conduzireis a salvo fora da terra e lhes
dareis navios para que partam.
— Falastes bem — replicou o rei —, e mandarei levar-lhes propostas de
paz antes, por outros meios, para ver o que hão de responder.
Então o rei enviou Urfino, um seu conselheiro, por orientação de Merlim. E
a mensagem seguiu para o castelo. Quando os do castelo viram chegar o
mensageiro foram a seu encontro e perguntaram:
— O que deseja o cavaleiro?
— Tréguas! O rei pede tréguas por três meses.
— Vamos nos aconselhar — responderam os saxões.
Então retiraram-se para deliberar. "A morte de Anguis nos pôs numa
situação muito difícil — concordaram todos —, por outro lado, não temos víveres
suficientes para ficar aqui até o prazo da trégua. Peçamos então ao rei que levante o
cerco e nos conceda a fortaleza como feudo. Do nosso lado, faremos homenagem e
daremos cada ano como tributo dez cavaleiros armados, dez donzelas, cinco
falcões, cem Iebréus, cem cavalos de batalha e cem palafréns." Esse foi o resultado
de sua deliberação que foi dado ao mensageiro que voltou e relatou tudo ao rei, a
Merlim e aos conselheiros. O rei perguntou a Merlim o que fazer. E Merlim
respondeu:
— Não vos engajareis nisso, sob meu conselho, porque grandes males
advirão ainda ao reino e à terra. Entretanto, ordenai imediatamente que, sem mais
esperar, evacuem a fortaleza. Eles sairão, porque não têm mais víveres. Dizei-lhes
porém que, em caso de recusa, nenhuma trégua lhes será concedida, mas lhes
dareis navios para que possam partir. Se não aceitarem, matai quantos prenderdes,
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mas asseguro-vos que ficarão muito felizes de saírem vivos, parque, no momento,
estão convencidos de que vão morrer.
Do modo como Merlim disse, mandou o rei fazer na manhã seguinte.
Enviou seus mensageiros com essas propostas. Logo que os saxões perceberam
que poderiam ser salvos, sua alegria foi imensa. Não sabiam o que fazer, desde que
perderam Anguis. Todo o reino foi informado da decisão do rei que fez conduzir os
saxões sob escolta até o porto e deu-lhes navios para partir. Foi assim que Merlim
adivinhou o estado de espírito dos saxões e informou a Pendragão. E Pendragão,
sob seu conselho, os expulsou do reino. Desse modo, Merlim tornou-se senhor do
conselho do rei.
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41
E assim foi durante muito tempo, até que um dia, depois de discutir um
grave problema com o rei, um dos barões suspeitou dele e veio dizer ao rei:
— Senhor, maravilha-me que tenhais tanta confiança neste homem. Sabei
que sua ciência é de origem diabólica. Se permitísseis, eu o submeteria à prova de
modo que vísseis tudo muito claro.
— Consinto, com a condição de não ferires seu corpo.
— Senhor, não tocarei seu corpo, nem direi o que quer que seja que o
magoe.
Assim o rei consentiu. Depois que despediu-se do rei, ficou muito
satisfeito. Aos olhos do mundo, era um homem sábio e engenhoso, cheio de felonia
e perfídia; era rico e bem amparado. Um dia Merlim foi à corte. Ele o recebeu com
muita alegria e conduziu-o até o rei. Depois chamou-o à parte. Nesta reunião havia
vinte e cinco homens.
— Senhor — disse ele ao rei —, eis aqui um dos homens mais sábios do
mundo. Soube que ele havia predito a Vortigerne de que modo morreria: queimado
no incêndio que fizestes. E de fato foi assim. Por isso, suplico a vós e a todos os que
aqui estão, pois sabeis todos que estou doente, que lhe peçam que diga de que
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modo morrerei, se o souber; porque sei bem que, se ele quiser, pode muito bem
dizer.
E eles todos perguntaram a Merlim. Então Merlim respondeu que ouvira
todas as palavras que ele dissera e sabia muito bem da inveja e da maldade que o
guiavam, e disse o que sabia que era bem verdade:
— Senhor, pedistes que vos dissesse de vossa morte. Pois bem, eu vos
direi: sabei que no dia que morrerdes, caireis de um cavalo e quebrareis o pescoço.
Deste modo terminareis vossos dias.
O homem, ao ouvir isto, disse ao rei:
— Senhor, ouvistes bem a resposta! Que Deus me proteja!
Depois, chamando o rei à parte, acrescentou:
— Senhor, guardai bem o que ele disse, porque vou submetê-lo a uma
outra prova.
Então partiu para sua terra, disfarçou-se em roupas diferentes e, o mais
depressa que pôde, voltou à cidade em que o rei estava, e fingiu-se de doente.
Pediu ao rei que o levasse onde estava Merlim, sem que ele o soubesse. O rei disse
que concordava e que Merlim não o saberia. Então foi a Merlim e disse:
— Vamos ver um doente e levemos conosco quem quiserdes.
— Senhor — replicou Merlim rindo —, nenhum rei pode deslocar-se sem
uma escolta de pelo menos vinte homens.
O rei escolheu quem ele queria para acompanhá-los e todos dirigiram-se
para junto do doente. Assim que chegaram, a mulher do doente, instruída por ele,
jogou-se aos pés do rei e disse:
— Senhor, em nome de Deus, fazei com que vosso mago diga se meu
senhor que aqui está em tal langor nunca vai sarar.
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O rei, com um ar de compaixão, virou-se para Merlim e disse:
— Poderíeis saber algo do que esta mulher me pede acerca da morte
de seu senhor, se algum dia há de sarar?
— Senhor, quero que saibais que este doente que aqui está não pode
morrer desse mal nem neste leito.
O doente esforçou-se muito, fingindo dificuldade para falar, e disse:
— Senhor, por Deus, de que morte morrerei, quando escapar desta?
— No dia em que morreres, serás encontrado pendurado.
Em seguida, saiu mostrando-se irritado. Deixou o rei na casa e fez isso
para que o homem pudesse falar com o rei.
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42
Depois que Merlim saiu e o homem teve certeza de que havia saído, disse
ao rei:
— Senhor, vedes claramente que esse homem é um louco e um
mentiroso, porque profetizou para mim duas mortes incompatíveis, mas ainda o
submeterei a uma terceira prova diante de vós. Irei amanhã a uma abadia, fingirei de
doente e vos mandarei chamar pelo abade que vos dirá que eu sou um de seus
monges. Ele vos dirá que está muito angustiado com medo de que eu morra, então
pedirá, por Deus, que leveis lá vosso mago. Confesso que não o experimentarei
senão mais essa vez. O rei jurou que iria e levaria Merlim e despediu-se. O homem
foi para a abadia, fez tudo como havia combinado com o rei e pediu ao abade que
fosse buscá-lo. O rei foi e levou Merlim. Cavalgaram e chegaram à abadia bem
cedo, antes que a missa fosse cantada; então o rei assistiu à missa. Depois da
missa, o abade dirigiu-se ao rei com uma grande companhia de monges e pediu, por
Deus, que fosse ver um dos monges que estava doente e levasse seu mago para
saber se o encantamento que ele fizesse valeria alguma coisa. O rei perguntou a
Merlim se iria e ele disse:
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— De bom grado, mas queria antes falar com Uter, vosso irmão, diante de
vós.
Então chamou-os à parte diante de um altar e disse:
— Senhor, mais vos vejo de perto, mais louco vos encontro! Imaginais
que eu não saiba de que morte morrerá esse louco que me põe à prova?
Francamente! Sei e vo-lo direi e ainda vos maravilhareis mais com o que vou dizer
desta vez do que com o que disse das duas primeiras.
O rei respondeu:
— Mas como pode o mesmo homem ter duas mortes tão diferentes?
— Senhor, se ele não morrer como eu predisse, não acrediteis em mais
nada do que vos digo, porque sei muito bem a morte dele e a vossa, e sei também
que, depois que virdes cumprir-se a dele, me perguntareis pela vossa. Seja como
for, digo a Uter que o verei rei, antes que me separe de sua companhia.
Então foram aonde o abade os conduziu, e uma vez lá ele disse ao rei:
— Senhor, por Deus, fazei vosso mago dizer se algum dia este monge vai
sarar.
Merlim mostrou que estava com raiva e disse:
— Ele pode levantar-se que não tem nada. Está perdendo tempo me
colocando à prova, porque morrerá das duas maneiras que já lhe predisse, e direi
hoje uma terceira mais diversa que as duas primeiras, para que bem saiba que no
dia de sua morte quebrará o pescoço, ficará pendurado e se afogará. E viverá até
que morra e verá que há de morrer dessas três mortes. Seguramente pode
experimentar-me, porque disse-lhe toda a verdade e não se finja mais, porque
conheço muito bem seu ânimo e tudo o que seu coração malvado pensa.
Então o falso doente levantou-se de seu leito e disse ao rei:
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— Senhor, agora podeis ver claramente a sua loucura, porque ele não
sabe o que diz. Como poderia estar dizendo a verdade, se pretende que no dia da
minha morte eu quebre o pescoço, eu me pendure e me afogue? E tudo isso ao
mesmo tempo? Sei perfeitamente que isso não pode acontecer comigo nem com
ninguém. Considerai então se é sensato pôr a confiança num homem destes e
conferir-lhe plenos poderes sobre seus conselheiros!
— No entanto, manterei toda minha confiança nele, até que saiba como
morrestes.
Ficou o homem muito irado ao saber que Merlim não seria posto fora do
Conselho antes que ele mesmo morresse. As coisas ficaram neste pé. Todo o
mundo soube o que Merlim havia predito acerca da morte desse homem e todos
esperaram com muita curiosidade para saber se aconteceria como havia sido
predito.
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43
Um dia, muito tempo depois, esse mesmo homem cavalgava com
numerosa escolta, e chegou a um rio. Sobre esse rio havia uma ponte de madeira e,
do outro lado dessa ponte, uma bela cidade. Ele eslava no meio da ponte, quando
seu cavalo tropeçou e caiu sobre os joelhos. O homem foi lançado ao chão e, na
queda, quebrou o pescoço. Tombou na água, mas uma das estacas da ponte, que
estava em mau estado, prendeu suas roupas e o corpo ficou pendendo, as partes
inferiores no alto e a cabeça e os ombros inteiramente na água. As pessoas da
escolta saíram imediatamente pedindo socorro. Os habitantes da cidade acorreram,
uns pela ponte, outros em barcos. Quando se retirou o corpo da água, as pessoas
que o seguravam diziam:
— Este homem está com o pescoço quebrado!
— É fato — responderam os que o examinaram. Quando os que o
acompanhavam ouviram, disseram:
— Verdadeiramente Merlim havia dito que este homem quebraria o
pescoço, ficaria pendurado e se afogaria em sua morte. E muito louco quem não
acredita nesse Merlim, porque parece-nos que suas palavras são sempre
verdadeiras.
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Fizeram ao corpo o que deviam e Merlim que soube do fato foi a Uter, a
quem amava muito, e contou-lhe a morte do homem como havia acontecido e
recomendou que contasse ao rei. E Uter dirigiu-se ao rei e contou-lhe como havia
acontecido. O rei ouviu, maravilhou-se muito e perguntou:
— Quem te contou foi Merlim?
- Foi.
E o rei pediu-lhe que perguntasse quando havia acontecido. E Uter foi
perguntar ao mago.
— Ontem — respondeu Merlim —, e virão informar o rei dentro de seis
dias. E eu já vou indo, porque não quero estar aqui quando chegarem os
mensageiros, pois me farão muitas perguntas a que não poderia responder. Não
falarei mais diante do povo nem da corte, senão por palavras encobertas, porque
assim não compreenderão minhas predições, senão quando se realizarem.
Tais palavras disse Merlim a Uter que foi repeti-las ao rei. E o rei, que
cuidava que Merlim tivesse ficado raivoso, perguntou:
— Para onde foi ele?
— Senhor, não sei, mas ele disse que não queria estar aqui, quando a
notícia chegasse.
Assim ficou o rei.
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44
Merlim havia ido a Nortumberlândia encontrar seu mestre Brás para
contar todas essas coisas e outras para fornecer matéria para o livro. Esteve lá até o
sexto dia, quando chegaram à corte de Pendragão as pessoas que haviam assistido
à morte daquele senhor. Ao chegarem, contaram ao rei a maravilha que tinham
visto. O rei e todos os que ouviram disseram que Merlim era o mais sábio homem
vivo. E cada um dizia que doravante não mais o ouviria profetizar algo que devesse
acontecer, que não metesse por escrito. Assim começou o livro das profecias de
Merlim, em que se podem ler todas as profecias que Merlim fez sobre os reis da
Inglaterra e sobre todas as coisas que falou depois. Mas esse livro não conta quem
é Merlim nem de onde ele vem, porque só estão escritas as coisas que ele falava.
O tempo passou. E Merlim era, de fato, senhor de Pendragão e de Uter. E
quando soube que haviam dito aquilo a seu respeito e que deviam pôr por escrito
suas palavras, contou a Brás, e Brás perguntou-lhe:
— Farão outro livro igual ao meu?
— Não, não meterão por escrito senão o que puderem saber, depois que
tiver acontecido.
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E Merlim voltou à corte de Pendragão e de Uter, onde lhe contaram a
respeito da decisão, como se ele não soubesse de nada. Merlim então começou a
pronunciar palavras obscuras que fazem parte de seu livro de profecias e cujo
sentido não aparece, senão depois dos .acontecimentos. Depois dirigiu-se a
Pendragão e a Uter e disse-lhes muito emocionadamente que os amava muito e
queria bem trabalhar por eles, em benefício de seu povo e de sua glória. Quando o
viram assim humilhar-se, maravilharam-se muito e pediram-lhe que dissesse com
firmeza o que quer que fosse e não lhes escondesse nada de seus negócios.
— Não vos esconderei nada do que vos eleva dizer.
E disse que tinha uma maravilha para revelar, a qual apreciariam muito.
— Lembrai-vos dos saxões que expulsastes de vosso reino depois da
morte de Anguis? Ora, Anguis pertencia a uma família muito nobre. Quando seus
pais souberam o que lhe aconteceu e como os saxões tinham sido expulsos,
reuniram-se e juraram vingar sua morte, pensando tambem em apoderar-se de
vossa terra.
— Merlim, mas eles têm tanta gente para nos enfrentar?
— Para um combatente vosso, eles têm dois. E vos destruirão, se não
agirdes com muita sabedoria, e conquistarão vosso reino.
— Faremos tudo conforme aconselhardes, sem mudar absolutamente
nada. Quando imaginais que devem vir?
- No décimo primeiro dia de julho, mas ninguém em vosso reino deverá
saber, senão vós. Peço-vos que guardeis segredo e façais assim: convocai todos os
homens, todos os cavaleiros, pobres e ricos, dai-lhes o melhor acolhimento possível,
dai-lhes de vossos bens e pedi-lhes que tenham os melhores cavalos, por vós, e
belas armas e consegui o amor deles o mais que puderdes, porque há grande
143
sabedoria em conquistar o coração dos homens. Mantende-os assim perto de vós e
convocai-os, por fim, à corte e às armas, pedi-lhes que fiquem convosco na última
semana de junho, na entrada dos campos de Salaber. Lá reuni todas as vossas
forças, à margem do rio, de modo que possam chegar e descer.
— Como? — disse o rei — Deixaremos que o inimigo entre em nossas
terras?
— Sim, se confiardes em mim. Permitireis mesmo que se afastem o mais
possível da costa. Eles não saberão que tendes as forças reunidas. E quando
tiverem avançado pelo interior, enviareis as tropas do lado dos navios deles, para
mostrai-lhes que quereis impedir-lhes a fuga. Quando perceberem isto, ficarão
horrorizados. Um de vós dois irá com as tropas persegui-los até o cansaço, de modo
que se sintam obrigados a acampar longe do rio. A água lhes faltará, e os mais
valentes temerão pela vida. Vós os mantereis assim dois dias e, ao terceiro,
combatereis. Se agirdes assim, asseguro-vos que vossas tropas vencerão.
— Por Deus, Merlim! — exclamaram os irmãos — Dizei-nos ainda, se for
do vosso agrado, se morreremos nessa batalha.
— Senhores, aqui embaixo há um começo e um fim e ninguém deve
temer a morte, mas aceitá-la como eleve, porque todo ser que vive deve, de fato,
saber que vai morrer e vós deveis saber que assim acontecerá convosco e nada,
nem o poder, nem a riqueza podem evitar a sorte comum.
— Merlim — interveio Pendragão —, dissestes uma vez que sabíeis da
minha morte tão bem quanto daquele homem que vos pôs à prova. Por isso peço-
vos que me digais a verdade da minha.
- Quero que vós ambos façais trazerem aqui todos os relicários que
tendes e quero que cada um de vós jureis sobre os santos que fareis o que vos
144
disser, em vosso benefício e no de vossa honra. E quando for assim, eu vos direi
com mais segurança o que souber daquilo que acontecerá.
145
45
Os dois fizeram tudo como Merlim ordenou. Depois que pronunciaram o
juramento, disseram:
— Cumprimos quanto nos ordenastes, agora vos pedimos, se vos agrada,
que nos digais por que nos mandastes fazer.
— Perguntastes sobre vossa morte e sobre essa batata. Eu vos direi
tanto, que não devais mais nada perguntar-me. Sabeis o que um de vós jurou ao
outro? Jurastes que nessa batalha sereis sábios e leais convosco mesmos e para
com Deus, porque ninguém pode ser sábio para si mesmo, se não o é em relação a
Deus. Eu vos ensinarei como ser leal e justo. Confessai nesta ocasião, mais do que
em qualquer outra, pois sabeis que vos deveis afrontar com inimigos. E se estais
com a disposição de que vos falo, estai seguros de vencer, porque vossos
adversários não crêem na Trindade, nem na paixão de Cristo. E vós defendeis vossa
herança pela lei e pela religião. Ora, aquele que morrer defendendo esses direitos,
segundo a virtude de Jesus Cristo e os mandamentos de nossa santa Igreja, não
deve nunca temer a morte. Quero que saibais que, desde que a cristandade chegou
a esta terra, não houve nenhuma batalha, nem haverá tão importante como essa. E
cada um de vós jurou ao outro que tudo fará em seu benefício e pela sua honra.
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Enfim, quero que saibais, sem precisar muito mais, que um de vós há de morrer
nessa batalha. E no próprio lugar do combate, o sobrevivente fará construir, sob meu
conselho, a mais bela e a maior sepultura. Eu me comprometo em trazer tal ajuda,
que a obra subsistirá, enquanto o mundo existir. Disse-vos que um dos dois há de
morrer. Tende coragem de vos conduzir como convém.
E chegou o dia fixado para a reunião dos súditos. Os irmãos haviam feito
tudo o que Merlim havia ordenado: na festa de Pentecostes, mantiveram sua corte à
margem do rio e o povo afluiu. Distribuíram abundantemente suas riquezas, fazendo
o melhor acolhimento a todos. Fizeram saber que na última semana de junho
estivessem todos nos campos de Salaber, à margem do Tâmisa, para defender o
reino. Depois, na primeira semana de julho, soube-se que a frota dos saxões havia
chegado. Uter, inteiramente convencido de que Merlim havia dito a verdade,
ordenou aos prelados da santa Igreja que recebessem em confissão todos os
homens e os exortassem a perdoar mutuamente suas ofensas. E isso foi ordenado e
feito por todo o exército.
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46
Quando os saxões chegaram e desembarcaram, ficaram acampados oito
dias e no nono dia cavalgaram. O rei Pendragão, que tinha espiões no exército
deles, logo soube da notícia. Então cavalgou e foi contar a Merlim. Merlim disse que
era verdade. O rei pediu conselho sobre o que fazer. E Merlim disse:
— Enviai amanhã ao encontro deles Uter com numerosa tropa. Quando
ele tiver certeza de que estão longe do mar e do rio, bloqueai essas duas direções e
os obrigai a acampar. Então retirai-vos e, de manhã, quando recomeçarem a
avançar, atacai-os e cercai-os de tão perto, que não tenham como prosseguir. Não
haverá ninguém, por mais ousado que seja, que não queira senão voltar. Continuai
assim dois dias. No terceiro dia, vereis a insígnia pela qual deveis estar seguro da
vitória. Vós a mostrareis a toda a gente, porque será um dia belo e muito claro e
vereis um dragão vermelho a correr no ar entre o réu e a terra. Depois que tiverdes
visto essa insígnia, podereis combater sem receio, porque vossa gente terá a vitória.
Apenas Pendragão e Uter ouviram esse conselho e ficaram muito alegres.
— Agora vou embora — disse Merlim —, mas estai certos do que vos
disse, e cuidai ambos de serem prudentes.
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Despediram-se os três e Uter voltou aos seus para avançar entre os
saxões e o mar. Depois que se afastou do rei, Merlim veio a ele e disse-lhe:
— Podes jogar toda a tua valentia, porque não morrerás nesta batalha.
Ao ouvir isso, Uter alegrou-se e ficou muito satisfeito.
Merlim voltou a Nortumberlândia para junto de Brás para contar esses
fatos. Do modo como Merlim havia dito, fizeram os dois irmãos. Uter e seus
combatentes espalharam-se entre os navios e as tendas c obrigaram, naquela noite,
os inimigos a acamparem em pleno descampado, sem água. Durante dois dias, Uter
soube muito bem mantê-los assim sem poderem cavalgar. No terceiro dia, chegou
Pendragão com sua tropa à frente. Como vissem os saxões no meio do campo, com
as batalhas ordenadas como se fosse para combater Uter, o rei mandou ordenarem-
se as suas batalhas, e logo foi feito, porque cada um sabia muito bem com quem se
alinhar. Então aproximaram-se uns dos outros. E quando os saxões viram-se
encalacrados, perceberam que não podiam voltar sem combater. Então apareceu no
ar o monstro de que falou Merlim, um dragão vermelho a correr no ar lançando fogo
pelas ventas e pela boca; era o aviso para todos que o vissem. Quando os saxões o
viram, ficaram assustados e tiveram grande pavor. E Uter e Pendragão, ao vê-lo,
disseram aos seus: "Corramos sobre eles, porque estão confundidos e já vimos a
insígnia de que Mrrlim falou." Os que estavam na frente de Pendragão correram
sobre eles com a rapidez que os cavalos puderam. Quando Uter viu que o pessoal
do rei estava no meio do adversário, também correu contra eles e atacou talvez com
mais violência ainda. Assim começou a grande batalha nos campos de Salaber. Não
me cabe dizer quem fez bem, quem fez mal, mas posso vos dizer que Pendragão
morreu e muitos outros barões morreram. O livro conta que Uter venceu a batalha,
mas houve muitas mortes entre os seus, tanto de ricos, como de pobres. Dos
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saxões, ninguém escapou, ou morreram combatendo, ou foram afogados. Assim
terminou a batalha de Salaber. Sobreviveu Uter a Pendragão, como senhor do reino.
Ordenou que todos os corpos dos cristãos fossem enterrados num mesmo lugar e
que cada um levasse os cadáveres de seus amigos. Mandou trazer o corpo de seu
irmão e dos seus homens e, sobre o túmulo de cada um, mandou gravar o nome e
seus feitos. Para seu irmão mandou fazer um túmulo mais alto que os outros e disse
que não mandaria gravar nada nele, porque muito louco seria aquele que, vendo o
túmulo, não reconhecesse que era de seu senhor. Isso fez Uter e tornou-se chefe
guerreiro de toda a terra, antes de ser rei. Dirigiu-se a Londres e reuniu todos os
prelados da santa Igreja.
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Quando todos os altos homens e todos os prelados estavam reunidos,
fez-se coroar e sagrar e, a partir de então usou a coroa e foi rei da terra depois de
seu irmão. Quinze dias depois de sua coroação, Merlim veio à corte e Uter o
recebeu com muita alegria.
— Quero — disse Merlim — que digais a vosso povo tudo aquilo que eu
havia predito e tudo o que eu havia pedido que fizésseis: a invasão dos saxões, o
acordo que fizestes comigo, os juramentos que vós e vosso irmão Pendragão
mutuamente trocastes.
Uter contou então ao povo como haviam trabalhado seu irmão e ele, sob
o conselho de Merlim, mas não falou do dragão, cujo verdadeiro significado ele e
todos os outros ignoravam. Esse significado Merlim revelou em seguida:
— O dragão representava a morte de Pendragão e a glorificação do rei
Uter, e foi nome dado a seu irmão para honrá-lo. Antes chamava-se Aurelius
Ambrosius, mas os habitantes do país de Borges deram-lhe esse nome porque
levava uma insígnia de dragão cada vez que ia a uma batalha, por isso deram-lhe
esse nome que depois nunca perdeu. E vós o tereis como sobrenome, pelo
significado da batalha e pela revelação do dragão. Doravante vos chamareis
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Uterpendragão, em lembrança daquele que pendia no ar. Mandai fazer dois dragões
de ouro, um colocareis na igreja de Carlion e o outro levareis à batalha. Deste modo
fez-se o rei chamar-se Uterpendragão, por conselho de Merlim. Conheceram todos
ainda a lealdade de Merlim e quanto bem havia feito aos dois irmãos.
Uterpendragão reinava, havia já muito tempo, quando um dia Merlim veio
dizer-lhe:
— Não fareis mais nada a Pendragão, vosso irmão, que jaz em Salaber?
— O que queres que eu faça? Farei o que quiseres ou aconselhares.
— Jurastes que faríeis e eu prometi ajudar-vos a fazer algo que durasse
enquanto a cristandade existir. Hoje, comprometo-me a fazer uma obra que dure
enquanto o mundo existir. Cumpri vosso juramento, que eu mantenho minha
promessa.
— E o que poderia eu fazer?
— Decidamos fazer algo inédito, de que falarão para sempre.
— Concordo.
— Mandai procurar enormes pedras na Irlanda e enviai navios para trazê-
las. Por maiores que sejam, saberei erigi-las, e estarei lá para mostrar as que quero
que tragam.
Uter disse que, de bom grado, o faria. Então mandou uma numerosa frota.
Lá, Merlim mostrou aos homens umas pedras gigantescas e disse-lhes:
— Estas são as pedras que levareis.
Ao verem as pedras, tomaram Merlim por louco, dizendo que ninguém no
mundo as moveria e que se recusavam a embarcá-las. E Merlim respondeu que, se
não o fizessem, por nada teriam vindo. Então voltaram, contaram ao rei a aventura e
disseram que ninguém no mundo conseguiria fazer o que Merlim havia mandado.
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— Esperai que Merlim volte — disse o rei. Quando ele voltou, o rei
contou-lhe o que os homens haviam dito.
— Eles me abandonaram, mas conseguirei cumprir minha promessa —
disse o mago.
Então Merlim fez virem as pedras da Irlanda, por mágica, para o cemitério
de Salaber e, quando chegaram, Uterpendragão foi vê-las e levou muita gente para
ver a maravilha das pedras. E todos declararam que nunca haviam visto pedras tão
gigantescas e se perguntavam quem no mundo poderia mover uma só delas e como
teria sido possível trazê-las. E Merlim disse aos homens que as pusessem em pé,
porque ficariam mais bonitas do que deitadas.
— Ninguém, senão Deus ou vós apenas, poderia fazer isso.
— Retirai-vos então, que vou quitar a promessa que, fiz, a Pendragão,
quando lhe disse que faria por ele o que nenhum ser humano poderia fazer.
Foi assim que Merlim levantou as pedras que ainda estão no cemitério de
Salaber e lá estarão, enquanto a cristandade durar, de tal modo dura aquela obra.
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Merlim serviu Uterpendragão e o amou por muito tempo. Como o serviu
muito tempo e sabia que confiaria nele em qualquer situação, chamou-o à parte e
disse:
— Senhor, é preciso que vos revele o mais importante de meus segredos,
porque vejo que vosso reino está em tal paz, que ninguém seria melhor senhor do
que vós. E porque vos amo muito e por esta coisa que vos quero dizer, bem como
porque vos salvei de Anguis, quando vos queria matar, cuido que deveis amar-me e
confiar em mim.
— Não há nada no mundo que me queiras dizer, em que não confie e que
não faça, se puder.
— Senhor, se o fizerdes, o proveito será vosso, porque vos ensinarei a
fazer tal coisa que nunca vos prejudicará, e nem saberíeis nem poderíeis fazer o que
quer que fosse, senão para conseguir o amor de Nosso Senhor.
— Fala, sem receio, porque nada dirás que, se puder, não faça.
Então disse Merlim:
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— Será muito estranha coisa o que direi e peço-vos que guardeis segredo
e não digais nada ao povo nem aos cavaleiros, para que todo o proveito, toda honra
e o agrado de Nosso Senhor estejam convosco.
E o rei jurou a Merlim que nada diria.
— Senhor — retomou Merlim —, sabeis e confiais que conheço as coisas
feitas e ditas no passado. Esse poder, tenho-o de minha natureza diabólica, mas
Nosso Senhor, com todo seu poder, deu-me igualmente o conhecimento, em parte,
do futuro. Foi por isso que os diabos me perderam, que nunca fiz nada conforme
seus desejos. Assim, sabeis agora de onde me vem o poder das coisas que sei e
digo. E vos direi agora o que Nosso Senhor quer que saibais. E quando o
souberdes, cuidai de trabalhar segundo a vontade dele. Senhor, deveis saber e crer
que Nosso Senhor veio à terra para salvar os homens e que sentou-se à ceia,
quando disse aos apóstolos que um deles o trairia. E foi verdade o que ele disse que
o traidor fazia parte de sua companhia. Depois aconteceu que Nosso Senhor sofreu
a morte e um cavaleiro pediu seu corpo e o tirou do patíbulo e ele lhe foi entregue
como recompensa a esse soldado. Muito amou Nosso Senhor esse soldado a quem
foi entregue. Mas ele passou por muitas penas e por muito medo com o que os
judeus lhe fizeram mais tarde. Muito tempo depois que Nosso Senhor ressuscitou,
esse soldado foi, depois da vingança da morte de Jesus Cristo, para uma região
deserta, com grande parte de sua linhagem e muitas outras pessoas. Sobreveio
então uma grande fome e as pessoas se queixaram a esse cavaleiro que era seu
mestre. Ele então pediu a Nosso Senhor que revelasse por que passavam tantas
dificuldades. E Nosso Senhor ordenou que fizesse uma mesa, no modelo daquela
mesa da ceia, e colocasse sobre ela o vaso que ele tinha, coberto inteiramente com
um pano branco, exceto do seu lado. Esse vaso, Jesus Cristo o preparou e por ele
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separou os bons dos maus. Nesta mesa estavam todos desejosos de tomar assento.
Havia sempre um lugar vazio, em lembrança do lugar em que Judas sentou na ceia,
quando ouviu o que Nosso Senhor lhe disse. E ele renunciou à companhia de Nosso
Senhor e seu lugar ficou vazio até que Nosso Senhor e os apóstolos elegeram outro
para ocupar seu lugar, para inteirar a conta dos doze. Essas duas mesas estão,
pois, em perfeita concordância e desse modo Nosso Senhor, na segunda mesa,
cumula os homens com sua graça. Essa é a razão pela qual as pessoas chamam
Graal a este vaso que vêem e do qual recebem essa graça.
E, se quiserdes seguir meu conselho, instituireis a terceira mesa, em
nome da Trindade, cujas três pessoas estarão representadas nessas três mesas.
Garanto-vos que, se o fizerdes, grandes benefícios e grandes honras vos advirão à
alma e ao corpo e acontecerão em vosso tempo muitas coisas de que vos
maravilhareis muito. E, se a quiserdes fazer, eu vos ajudarei. Se a fizerdes, será
uma coisa muito falada pelo povo. Nosso Senhor reservou muitas graças àqueles
que dela souberem falar condignamente. E eu vos digo que esse vaso e as pessoas
que o guardam vieram, por vontade de Jesus Cristo, para o Ocidente, a estas
paragens. E eles mesmos não sabem em que lugar está o vaso, mas o procuram, e
Nosso Senhor, que tudo leva a bom termo, os conduz. E vós, se confiardes em mim,
fareis em relação a estas coisas o que vos disse e, se o fizerdes, experimentareis
imensa alegria.
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Isso que Uterpendragão ouviu Merlim falar agradou-o e maravilhou-o.
— Não quero — disse o rei — que Nosso Senhor perca nada por mim, por
isso quero que ele saiba que me ponho inteiramente a tua disposição e nada haverá
que mandes que eu não faça, se estiver em meu alcance.
Assim entregou-se o rei a Merlim, que ficou muito satisfeito.
— Senhor — disse Merlim —, verificai então onde vos agrada fazê-la.
— Quero que seja feita onde determinarei e souberes que agrade mais a
Nosso Senhor.
— Nós a faremos em Carduel, em Gales. Reuni lá o povo todo do reino,
os cavaleiros e as damas. Preparai-vos para distribuir com abundância vossos
benefícios e oferecer-lhes uma bela festa. Irei à frente e mandarei fazer a mesa.
Confiai-me homens que façam o que eu mandar. E quando lá chegardes e vosso
povo se reunir, escolherei, entre aqueles que lá estiverem, quem deverá tomar
assento à mesa.
Do modo corno pediu Merlim o rei fez. E mandou dizer por todo o reino
que estaria em Carduel no dia de Pentecostes e que todos os cavaleiros e todas as
damas lá estivessem. Isso fez o rei divulgar para que todos o soubessem e Merlim
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foi adiante para fazer o que convinha em relação à mesa. Assim ficou até a semana
antes de Pentecostes em que o rei veio a Carduel e veio também muita gente e
vieram cavaleiros e damas. Então disse o rei a Merlim:
— Que pessoas escolhereis para tomar assento a esta mesa?
— Amanhã vereis o que nunca imaginastes, porque escolherei cinqüenta
dos melhores homens de vossa terra e, depois que tiverem tomado assento, não
quererão mais voltar a sua região ou a sua terra e nem quererão partir daqui.
— Isso verei com muito gosto.
E Merlim fez o que havia dito. No dia de Pentecostes, escolheu cinqüenta
cavaleiros e pediu-lhes e fez com que o rei pedisse que se assentassem à mesa e
comessem o alimento. Eles concordaram e o fizeram com gosto. Merlim, que estava
cheio de muita magia, andou entre eles e chamou o rei c mostrou o lugar vazio e
muitos outros o viram, mas não sabiam o que significava, nem por que estava vazio.
Depois disse ao rei que se assentasse, mas o rei disse que não se sentaria
enquanto não estivessem todos servidos. Então os fez servir de tudo o que
quisessem e, depois que estavam servidos, foi sentar-se. Assim passaram-se oito
dias. Naquela festa, o rei fez muito ricos e belos presentes e deu muitas e belas jóias
às damas e às donzelas. E quando chegou a hora de partir, vieram os homens bons
e o próprio rei perguntar aos que haviam tomado assento na távola redonda o que
pretendiam fazer.
— Senhor — responderam —, não temos nenhuma intenção de partir.
Queremos, ao contrário, sentar nessa mesa todos os dias, à hora de terça.
Mandaremos vir nossas mulheres e nossos filhos a esta cidade e viveremos como
agradar a Nosso Senhor. Tal é nosso desejo agora.
— Senhores — perguntou-lhes o rei —, pensais todos assim?
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— Senhor — responderam —, verdadeiramente, sim. Muito nos
maravilhamos com o fato de que nós, muitos dos quais nunca nos tínhamos visto e
poucos dentre nós se conheciam, pensemos do mesmo modo. Agora nos amamos
tanto ou mais do que um filho deve amar o pai e nunca nos separaremos, senão
com a morte.
O rei e quantos ouviram isso tomaram tudo por grande maravilha. Muito
feliz ficou o rei e ordenou que fossem todos considerados, amados e honrados na
cidade, como gente de sua corte. Assim estabeleceu em seu tempo Uterpendragão
essa mesa. Depois que todos partiram, procurou Merlim e disse-lhe:
— Vejo agora que dizias a verdade. Agora creio que Nosso Senhor quer
essa mesa. Mas continuo maravilhado com o lugar vazio e gostaria que me
dissesses, se o sabes, quem o ocupará.
— Só posso dizer-vos que o assento não será ocupado em vosso tempo.
Quem vai gerar aquele que vai preencher o lugar ainda não tomou mulher e não
sabe que deve gerá-lo. Antes de tomar aquele assento, deverá sentar-se no lugar
vazio, à mesa do Graal, o que ainda não viram cumprir-se as pessoas que guardam
o vaso. Isso não acontecerá em vosso tempo, mas no reinado de vosso sucessor.
Peço-vos que realizeis sempre as assembléias e as cortes nesta cidade de; Carduel,
que a freqüenteis e que, três vezes por ano, convoqueis nela as cortes, por ocasião
das festas anuais.
— De muito bom grado o farei.
— Agora tenho que ir. E não me vereis por um longo tempo.
— Para onde irás? Não estarás presente a todas as festas nesta cidade?
— Não, não poderei estar, porque quero que as pessoas que virem as
coisas acontecerem não digam que fui eu que as fiz acontecerem.
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Assim despediu-se Merlim de Uterpendragão e foi para Nortumberlândia
encontrar-se com Brás. Contou-lhe o que se passara, como foi criada a távola
redonda e muitas outras coisas que ouvireis em seu livro. Merlim ficou mais de um
ano sem vir à corte. Aqueles que não o amavam e nem ao rei, mas fingiam amar,
foram ao rei, certa vez, na reunião da corte do Natal e perguntaram-lhe a respeito do
lugar que eslava vazio, por que não se assentava nele alguém para que a mesa
ficasse completa. E o rei respondeu:
— Merlim disse-me a respeito deste lugar uma grande maravilha:
ninguém o ocupará em meu tempo e ainda não nasceu aquele que deve ocupá-lo.
Eles riram disfarçadamente e, como eram fingidos, disseram:
— Acreditais, senhor, que depois de nós haverá melhores cavaleiros e
que não há em vosso reino outros tão bons como nós?
— Não sei, Merlim disse-me apenas isso.
— Ora, não vaieis nada se não tentardes.
— Não tentarei, porque recearia ofender Merlim e irritá-lo.
— Não sugerimos que tenteis agora; dizeis porem que Merlim sabe tudo o
que se diz e se faz. Se ele sabe, então sabe muito bem quando falamos dele e de
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sua obra; e, se ele sabe, virá, se estiver vivo, e não deixará este lugar vazio com a
grande mentira que vos falou. E se não vier até Pentecostes, não impedireis que
tentemos, porque o tentaremos mesmo e há em nossa linhagem muitos homens
bons que, com gosto, tomariam o assento. Vereis do que são capazes.
— Não cuido — disse o rei — que isso magoasse Merlim; não há nada
que ele quisesse tanto ver.
— Se Merlim está vivo e se ele sabe, virá assim que o tentemos. Mas
esperai, quando chegar Pentecostes, se ele não vier, então tentaremos.
E o rei concordou. E eles ficaram muito satisfeitos porque acharam que
haviam chegado a um bom resultado. E assim ficou até Pentecostes; o rei fez saber
desde o Natal, por toda a terra, que aparecessem todos na festa de Pentecostes. E
Merlim, que tudo isso relatou a Brás e contou-lhe as más intenções que tinham
aqueles que estavam metidos nesse empreendimento, disse que não iria, que sabia
muito bem que aquele assento devia ser testado e que era melhor que o fosse pelos
mal intencionados e pelos fingidos do que pelos bons; e, se lá fosse, diriam que
havia ido para atrapalhar o teste, e aqueles que fossem testar não acreditariam
como convém que acreditem. Por isso disse Merlim que não iria. Então deixou
passar o tempo e esperou até quinze dias depois de Pentecostes. Na festa de
Pentecostes, o rei veio a Carduel com muita gente. Aqueles que vinham para
experimentar o assento espalharam a notícia de que Merlim estava morto, que um
camponês o havia matado num bosque confundindo-o com um selvagem. Tanto
falaram e mandaram falar, que o próprio rei acreditou, e acreditou ainda mais porque
havia muito tempo que ele não aparecia e não imaginava que ele esperasse que se
testasse o assento. Assim estava o rei na véspera de Pentecostes e perguntou
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àqueles que deviam testar o lugar se se assentariam. E respondeu aquele que se
considerava melhor que o rei e disse:
— Quero que saibais e todos os que aqui estão presentes que não
deixarei ninguém sentar-se, senão eu.
Era de muito alta linhagem, rico e senhor de muitas terras. Havia lá muita
gente esperando para vê-lo sentado: cavaleiros, clérigos, monges e artesãos da
cidade. Ele os havia feito vir porque imaginava que Merlim iria e, se fosse,
concordaria em ver o teste de qualquer pessoa que quisesse das três ordens que
Deus estabeleceu na terra. Mas já que ele não tinha vindo, só ele experimentaria.
Então dirigiu-se à mesa, onde estavam sentados os cinqüenta, e disse:
— Venho sentar-me convosco para completar vossa companhia.
Os cavaleiros não falaram nada, contiveram-se muito simplesmente e
ficaram esperando pelo que ele quisesse fazer. O rei estava lá e muita gente com
ele. O cavaleiro avançou, olhou para o assento vazio, passou entre os dois
cavaleiros e sentou-se. Assim que pôs as coxas sobre o assento, afundou-se como
faz uma massa de chumbo jogada dentro d'água. Assim afundou-se à vista de todos
e ninguém soube o que aconteceu com ele. Quando o rei e todos os que lá estavam
viram, ficaram muito espantados e ninguém sabia o que dizer. E ele era de muito
alta linhagem. Como o viram perder-se desse modo, cada um quis ir ver o assento e
o rei recomendou que os cavaleiros se levantassem para procurar onde poderia ter
ido. Levantaram-se todos, e a dor foi tão grande na corte e a corte ficou muito triste
com essa maravilha. Mais do que Iodos ficou o rei muito abatido e considerou que
agira muito erradamente e disse, perante todos, que havia dito que ninguém deveria
sentar-se naquele lugar e aquele cavaleiro não quis acreditar.
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Assim desculpou-se o rei e, quando chegou o décimo quinto dia, Merlim
chegou. Quando o rei soube que Merlim havia chegado, ficou muito alegre e veio a
seu encontro. Merlim, logo que viu o rei, disse-lhe que havia feito mal em deixar
experimentar o assento. E o rei respondeu:
— Sinto muito, mas ele me enganou.
— Isso acontece com muita gente que pensa enganar os outros;
enganam-se a si mesmas. Agora podeis ter certeza pelo que vos dizia e vos
convenceu, ele acabou morrendo.
— É bem verdade o que dizeis.
- Agora ficai prevenido não permitindo experiências no assento, porque
vos garanto que não advirão senão maldade e desonra, porque o assento da távola
redonda não tem significado pequeno, mas muito alto e muito digno e fará muitos
benefícios àqueles que vierem a este reino depois de vós.
O rei pediu-lhe, se lhe agradasse, que dissesse o que poderia ter
acontecido àquele cavaleiro que sentou-se, porque tinha o fato por grande
maravilha. E Merlim respondeu:
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- Não vos adianta nada procurar saber e, se o soubésseis, de nada vos
valeria, mas cuidai de amar e de honrar aqueles que têm assento na távola redonda
e de conservar o que começastes o mais honradamente que puderdes e todas as
cortes e todas as grandes alegrias vinde comemorar nesta cidade, em honra da
mesa. Sabei, pelo que ora vistes, que ela é de tão alta dignidade que não a podeis
devidamente honrar. Vou-me embora e tratai de fazer tudo como vos ensinei.
— Farei, de bom grado, tudo como ensinastes e acabei de ouvir.
Assim despediram-se o rei e Merlim. Merlim foi embora e o rei ficou e
ordenou que fizessem na cidade grandes hospedagens e belas casas, porque lá
faria suas cortes e grandes assembléias. Partiu então o rei e fez saber que todas as
festas anuais como Natal, Páscoa, Pentecostes e Todos os Santos seriam
comemoradas em Carduel e que todos os do reino que quisessem festejar viessem
reunir-se com o rei, assim que ele os convocasse. Passou muito tempo e o rei
mantinha as festas costumeiras em Carduel.
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Um dia o rei teve vontade de reunir todos os barões e pediu-lhes que
trouxessem todos suas mulheres e convocassem os cavaleiros de suas terras e os
trouxessem também. Assim os fez o rei reunirem-se no Natal e convocou a todos por
carta. Do modo como o rei ordenou e convocou em suas cartas, assim o fizeram.
Sabei que havia muitos cavaleiros, muitas damas e donzelas. Não posso dizer nem
devo perder tempo enumerando todos os que foram à corte, mas nomearei aqueles
e aquelas de quem o conto falará depois. Quero pois que saibais que o duque de
Tintagel estava lá e levou sua mulher Igerne. Uterpendragão, quando viu Igerne,
ficou perdidamente apaixonado, mas não deixou transparecer.
Quando muito a olhava com mais agrado do que as demais mulheres. Ela
percebeu e deu-se conta de que o rei a olhava com agrado. Tendo percebido,
esquivou-se e evitou passar diante do rei, pois era mulher muito virtuosa, muito bela
e muito leal a seu senhor. E o rei, porque a amava e por não querer que o
soubessem, distribuiu presentes para todas as damas, reservando para Igerne
aqueles que imaginava mais agradarem. Tendo visto que todas as damas
receberam presentes, Igerne não ousou recusar os seus, antes os aceitou e soube
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em seu coração que ele não havia presenteado a todas, senão para que ela
recebesse os seus, mas fez que não havia percebido nada.
Desse modo reuniu Uterpendragão aquela corte e de não tinha mulher.
Ficou tão cheio de amor por Igerne, que não sabia o que fazer. Terminou a corte e,
antes que partissem, pediu o rei a todos os barões que estivessem de volta na festa
de Pentecostes com as mulheres, como dessa vez. E todos prometeram vir. E assim
ficou. Quando o duque de Tintagel partiu da corte, o rei acompanhou-o
demoradamente e o honrou muito. Depois, no momento de se separarem, o rei disse
baixo para Igerne que ele queria que ela soubesse que levava seu coração, mas ela
fez que não entendeu e assim se despediram. O rei ficou em Carduel, honrou os
cavaleiros da távola redonda que haviam permanecido na sua corte, dizendo que
sua presença o confortava muito, mas na verdade seu coração e seu pensamento
estavam com Igerne. E assim esperou até Pentecostes.
Na festa de Pentecostes, reuniram-se todos os barões e todas as
mulheres. O rei ficou muito feliz ao saber que Igerne tinha vindo. Mostrou-se muito
alegre e deu grandes presentes aos cavaleiros e às damas. Quando sentou-se para
comer, fez com que o duque e Igerne se sentassem a sua frente. Cumulou-a tão
generosamente de presentes e de favores, que Igerne não pôde fingir por mais
tempo ignorar seu amor. Ficou muito angustiada e pesou-lhe muito ter demonstrado,
mas era preciso.
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Foi assim que Igerne soube, naquela festa de Pentecostes, que o rei a
amava. Muito grande foi a alegria de todos e o rei honrou e agradou muito os
barões. Depois que a festa acabou, cada um voltou para sua região. Ao se
despedirem do rei, ele pedia-lhes que voltassem, quando os convocasse
novamente. Desse modo encerrou-se a corte e o rei sofreu seu mal de amor por
Igerne durante um ano. A dois de seus mais próximos queixou-se e contou o quanto
sofria pelo amor de Igerne, e eles disseram:
— O que quereis que façamos? Não nos mandareis fazer nada que não
façamos por vós.
— Aconselhai-me sobre como permanecer mais tempo em companhia de
Igerne, sem levantar suspeitas.
Eles disseram que, se ele se dirigisse à terra do duque, seria censurado,
porque as pessoas perceberiam alguma coisa.
— O que aconselhais então?
— O melhor conselho que vemos é que façamos uma grande corte em
Carduel e que façais saber a todos os que lá forem que deverão lá ficar durante
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quinze dias; que se preparem então para tanto e compareçam com suas mulheres.
Então podereis ficar muito tempo com Igerne e ter a alegria de vossos amores.
O rei convocou então seus vassalos. Todos foram a Carduel, com suas
mulheres, como o rei havia pedido. Naquele Pentecostes, o rei resolveu usar coroa,
colocou-a então e deu a seus barões muitos e belos presentes e também aos outros
cavaleiros e às damas e a todos aqueles e aquelas com quem cuidava que seriam
bem empregados. O rei estava muito alegre e muito bonito naquela festa e falou a
um de seus conselheiros em quem mais confiava. Esse conselheiro chamava-se
Urfino. Pediu-lhe o rei conselho sobre o que poderia fazer, pois o amor de Igerne o
matava, não conseguia dormir nem descansar, pensava sempre em morrer, quando
não a podia ver; quando a via, a dor aliviava-se um pouco e disse que não poderia
viver muito mais, sem o conforto de seu amor, e era melhor morrer.
Urfino respondeu:
— Senhor, estais muito mal por imaginar que, por causa do amor de uma
mulher, preferis morrer. Eu que sou um pobre homem, se a amasse tanto como vós,
não pensaria na morte. Nunca ouvi falar de uma mulher que, se fosse bem cortejada
por quem pudesse lhe fazer as vontades, bem como dar-lhe jóias e honrar todos os
seus e fazer e dizer o que a cada um agradasse, nunca ouvi dizer de mulher que
diante disso se recusasse. E vós vos atormentais! Que ânimo fraco vos abate?
— Urfino, o que dizes é muito sensato. Sabes o que convém fazer em tais
circunstâncias. Peço-te então que me ajudeis como puderes. Pega em minha
câmara tudo o que quiseres, faze com meus bens o que for preciso e fala a Igerne o
melhor que puderes do meu interesse.
— Podeis confiar. Farei tudo o que estiver ao meu alcance.
Terminando a conversa com o rei, ainda disse-lhe
168
Urfino:
— O amor não respeita a razão contra o que quer fazer. Cuidai de estar
em boas relações com o duque, fazei-lhe companhia o mais que puderdes e a todos
aqueles que souberdes que ele ama, então mais vos amará; fazei-o sempre sentar-
se a vossa mesa e fazei de tudo para agradá-lo. Eu cuidarei de falar com Igerne.
— Isso saberei muito bem fazer. E assim começaram a agir.
169
54
Durante os oito dias da festa, o rei demonstrou muita alegria e sempre
manteve o duque em sua companhia e disse e fez tudo o que imaginou que ele
quisesse e presenteou muito a ele e a seus companheiros. Urfino falou com Igerne e
disse e fez tudo o que imaginou que pudesse agradá-la e deu-lhe muitos presentes.
Mas ela recusava e não queria receber nada, até que um dia chamou-o à parte e
disse-lhe:
— Por que queres dar-me estas jóias e estes presentes?
— Por vossa prudência e porque sois muito bela e por vossa simplicidade,
mas não posso dar-vos nada, porque todos os bens terrenos do reino de Logres são
vossos, bem como os corações dos homens estão a vossa disposição.
— Como?
— Tendes o coração daquele a quem tudo pertence e esse coração é
vosso e ele vos obedece, por isso estão todos os corações a vossa disposição.
— De que coração falas?
— Do coração do rei.
Ela levantou a mão, persignou-se e disse:
170
— Por Deus! Como é traidor o rei que finge amar o meu senhor e quer
desonrar-me! Urfino, guarda essas palavras que me dizes, porque quero que saibas
que o direi ao duque meu senhor e, quando ele souber, devereis morrer, isso não te
escondo.
— Seria uma honra morrer por meu senhor, mas nunca uma dama se
recusou, como o fazeis, de ser amiga do rei que mais vos ama do que todas as
coisas que possam viver ou morrer. E vós o desprezais. Senhora, por Deus, tende
piedade do rei, de vós mesma e de vosso senhor, porque é verdade que, se não
tiverdes consideração, vereis grande desgraça acontecer, nem vós nem o duque
podeis ir contra a vontade do rei.
Igerne, chorando, respondeu e disse:
— Com a ajuda de Deus, eu me negarei sempre e nunca mais irei onde
ele estiver.
171
55
Dito isso, Urfino e Igerne se separaram. Urfino foi contar ao rei o que ela
havia dito e o rei reconheceu que assim deveria responder uma dama virtuosa.
— Não deixes, no entanto — acrescentou a Urfino —, de insistir, porque
nunca uma dama deixou de ser vencida.
No décimo primeiro dia depois de Pentecostes, quando o rei sentou-se
para comer, sentou-se com ele à mesa o duque. Urfino ajoelhou-se diante do rei e
disse:
— Oferecei esta taça a Igerne e dizei ao duque que permita que ela a
receba.
— Está bem — disse o rei.
Urfino levantou-se, o rei levantou a taça muito feliz e disse ao duque:
— Vede esta bela taça, pedi a Igerne, vossa esposa, que ela a receba e
beba por meu amor e a entregarei cheia de vinho para um de vossos cavaleiros.
E o duque aceitou, como quem nada de errado percebia e disse:
— Senhor, muito obrigado, ela a aceitará com satisfação.
O duque chamou um cavaleiro seu, com quem se dava muito bem, e
disse-lhe:
172
— Bretel, toma esta taça, Ieva-a a tua dama e dize-lhe que eu ordeno que
beba por amor do rei.
Bretel pegou a taça, foi ao lugar em que Igerne comia, ajoelhou-se diante
dela e disse:
— Senhora, o rei vos envia esta taça e vosso senhor ordena que a
recebais e bebais por amor dele.
Ao ouvir isto, ela ficou muito envergonhada e corou e não ousou recusar
pela ordem do duque. Tomou a taça e bebeu e devolveu-a ao mesmo cavaleiro para
levá-la ao rei.
Bretel disse então:
— Senhora, meu senhor pede que fiqueis com a taça; o próprio rei o quer.
Quando ela ouviu isso, entendeu que lhe conviria conservá-la.
Bretel voltou ao rei, agradeceu-lhe da parte de Igerne, embora ela nada
tivesse dito. O rei ficou muito satisfeito por ela ter ficado com a taça. Urfino passou
perto de Igerne para verificar a sua reação. Achou-a muito pensativa e, depois que a
mesa foi tirada, ela chamou Urfino e disse-lhe:
— Por alta traição teu senhor enviou-me uma taça, mas fica sabendo que
ele não ganhará nada com isso, antes farei com que se envergonhe e, antes que
amanheça, contarei a meu senhor a traição com que tu e o rei me perseguis.
Urfino respondeu:
— Não sereis louca, porque nunca uma dama disse tais palavras a seu
senhor que ele acreditasse. Pensai bem nisso.
— Ao diabo quem confiar nisso!
Então partiu Urfino, e o rei, depois de comer e de ter lavado as mãos,
estava muito alegre e tomou o duque pela mão e disse-lhe:
173
— Vamos ver as damas.
O duque concordou e foram à câmara em que Igerne e as outras damas
haviam comido. Veio então o rei com os outros cavaleiros para ver as damas, mas
Igerne percebeu claramente que o rei não tinha vindo senão por ela.
174
56
Ela suportou isso todo o dia até à noite. E à noite foi para sua
hospedagem. Quando o duque chegou, encontrou-a chorando e lamentando-se
muito em sua câmara. Ao vê-la nesse estado, o duque maravilhou-se muito, tomou-a
nos braços como quem muito a amava e perguntou-lhe o que tinha. E ela disse que
queria estar morta. O duque maravilhou-se muito e perguntou-lhe por quê. Ela
respondeu:
— Não vos esconderei nada, porque não há nada que tanto ame como
vós. O rei disse que me ama e que todas essas cortes que faz, a que convoca todas
as damas, ele as faz e manda virem as damas só por mim e para vos dar a
oportunidade de me trazeres junto. Desde a festa anterior, eu sei; evitei-o e recusei
todos os seus presentes. Nunca nada recebi e hoje vós me fizestes receber a taça e
a enviastes por Bretel, para que eu bebesse por amor dele. Por isso queria estar
morta, porque não consigo impedir Urfino, seu conselheiro, de me falar. Assim quero
que saibais, pois que vos digo isto, que tal situação não pode durar sem trazer
grande desgraça e peço-vos, como meu senhor, que me leveis a Tinlagel, porque
não quero mais ficar nesta cidade.
175
Quando o duque, que muito amava sua mulher, ouviu isso e
compreendeu o que se passava, ficou tão irado como ninguém podia ficar. Mandou
convocar os seus cavaleiros na cidade. Quando chegaram, viram bem que seu
senhor estava furioso. E ele lhes disse:
— Preparai-vos para cavalgar às escondidas, que ninguém o saiba,
porque quero ir embora e não me pergunteis agora por quê.
— Às ordens, senhor.
— Pegai vossas armas e vossos cavalos, deixai as bagagens que vos
seguirão amanhã, porque não quero que o rei saiba e quero esconder a saída de
quem for possível.
Do modo como o duque ordenou fizeram. E o duque tinha mandado trazer
seu cavalo e o palafrém de Igerne, montou o mais depressa que pôde e foi para sua
terra e levou sua mulher.
176
57
De manhã, depois que já tinham partido, houve um grande rebuliço na
cidade entre os que ficaram. O rei soube de manhã que o duque tinha ido. Teve
grande dor e ficou muito triste porque ele levou Igerne. Convocou todos os seus
barões e todo o seu conselho e revelou a ofensa e o desprezo que o duque lhe
havia feito. E muitos falaram que estavam maravilhados e que ele havia feito grande
loucura que não sabiam como reparar. Isso diziam aqueles que não sabiam a razão
pela qual o duque havia partido. O rei então pediu que o aconselhassem como
poderia fazer para reparar a ofensa e eles disseram:
— Reparareis como vos aprouver.
O rei contou-lhes o que já haviam presenciado, que os havia mais
honrado que aos outros barões. Eles disseram que era verdade e que muito se
maravilhavam com esse ultraje. E o rei disse:
— Se concordais, ordenarei que reparem essa ofensa, que assim como
partiram, voltem à corte para se justificarem.
O conselho todo concordou. Dois homens foram levar a mensagem.
Cavalgaram tanto, que chegaram a Tintagel, onde encontraram o duque. E quando o
encontraram, deram-lhe a mensagem que haviam recebido. Quando o duque os
177
ouviu dizer que lhe convinha voltar atrás como tinha vindo, soube bem que lhe
convinha também levar Igerne, então respondeu aos mensageiros e disse:
— Não irei de volta à corte, porque o rei tanto fez e disse a mim e aos
meus, que já não lhe tenho confiança e nem me conto em sua corte nem sob sua
mercê e outra coisa não tenho a dizer, mas daquilo que digo tomo a Deus por
garantia. Ele sabe muito bem que tanto me fez quanto pôde, quando era meu
senhor, que não lhe posso mais ter confiança.
178
58
Então partiram os mensageiros que não podiam mais esperar. Depois que
os mensageiros partiram de Tintagel, o duque convocou seus homens e seu
conselho, contou-lhes por que tinha ido a Carduel, o mal e a desonra com que o rei
o perseguia e a deslealdade que pretendia com sua mulher. Tendo ouvido,
maravilharam-se muito e disseram que, se a Deus aprouvesse, isso não seria
tolerado e que quem tal perfídia fazia a seu vassalo devia ser castigado.
Então disse o duque:
— Peco-vos, por Deus e por vossa honra e pelo que me deveis, que me
ajudeis, em caso de guerra, a defender minha terra.
E eles responderam que o fariam, bem como todos os outros que
pudessem fazê-lo, empenhando a própria vida. Assim aconselhou-se o duque com
seus homens.
Os mensageiros chegaram a Carduel e encontraram o rei e seus barões.
Contaram ao rei e a seu conselho o que o duque havia dito.
Então disseram todos que estavam muito maravilhados com a loucura do
duque, porque antes o tinham como homem prudente. O rei pediu-lhes e exigiu
como a seus homens que vingassem a humilhação c a vergonha imposta a sua
179
corte. Todos responderam que não se opunham, mas pediram, por sua lealdade,
que lhe dessem um prazo de quarenta dias. Assim fé/, o rei c pediu que em quarenta
dias estivessem todos reunidos para a guerra. E disseram que o fariam com
satisfação. Depois disso, o rei enviou seus mensageiros para desafiar o duque em
quarenta dias. Ele respondeu que se defenderia como pudesse, no caso de ser
atacado. Tendo partido os mensageiros, o duque convocou seus homens, contou-
lhes o desafio que recebera e pediu-lhes que o ajudassem, porque precisava muito
deles. Responderam que de bom grado o ajudariam. No conselho, o duque disse
que tinha apenas dois castelos que podiam oferecer resistência ao rei, que esses
dois ele não tomaria, enquanto ele vivesse. Revelou que deixaria Igerne em
Tintagel, onde ficariam dez cavaleiros, porque sabia bem que o castelo não tinha
dificuldades contra ataques de quem quer que fosse e esses dez cavaleiros e os
homens da cidade guardariam bem a entrada. Assim como ordenou foi feito, e ele
com toda sua gente foi a seu outro castelo que era mais fraco para reforçá-lo,
porque de outra maneira não poderia defendê-lo.
180
59
Deste modo preparou-se o duque para defender-se. E os mensageiros
que o desafiaram, depois que voltaram à corte, contaram ao rei que o duque
preparava-se para defender-se. Muito irritado com essas novas, o rei mandou cartas
a seus vassalos por todo o reino para que se reunissem na fronteira das terras do
duque num campo às margens de um grande rio. Estando reunidos, contou-lhes a
desonra e a humilhação que o duque havia feito e o desafio de sua corte que ele
havia enfrentado. Os barões disseram que ele estava certo e que o amavam. Desse
modo entrou o rei na terra do duque, tomou seus castelos, suas cidades e sua terra.
Ouviu dizer que o duque estava num castelo seu c sua mulher cm outro. Então falou
o rei a seu conselho e perguntou que castelo iria atacar. Os barões aconselharam
que fosse ao duque onde quer que estivesse, porque lendo o duque, teria terra.
Todos eram unânimes e o rei concordou. Quando cavalgaram para onde o duque
estava, o rei falou a Urfino:
— Então não verei Igerne? Urfino respondeu:
— É preciso conformar-se com o que não se pode ter. Deveis vos
esforçar muito para ter o duque, porque, se o tiverdes, estareis encaminhado para
vosso outro assunto. Aqueles que vos aconselharam a ir onde o duque está, muito
181
bom conselho vos deram, porque não seria bom que fósseis onde está Igerne, pois
estaríeis revelando o caso.
Assim atacou o rei o duque em seu castelo. O ataque foi muito forte e o
duque defendeu-se muito bem.
182
60
Muito tempo ficou o rei cercando o castelo, sem conseguir tomá-lo; estava
muito angustiado e acabrunhado pelo amor de Igerne, mas tanto que um dia, em
sua tenda, começou a chorar. Quando os seus o viram chorar, saíram e deixaram-no
só. Urfino, ao saber disso, veio; ao ver o rei chorar, pesou-lhe muito e perguntou-lhe
por que chorava.
— Deves saber muito bem por quê. Sabes que morro de amor por Igerne.
E vejo que vou morrer, porque não bebo, não como, nem durmo e não tenho o
descanso de que preciso, por isso sei que vou morrer e não vejo como possa ter
remédio e tenho pena de mim mesmo.
— Estais com ânimo muito abatido e fraco para imaginar que morrereis
por amor de uma mulher. Eu vos darei um bom conselho. Mandai procurar Merlim,
pedi-lhe que venha aqui. Podeis ter certeza de que vos dirá o que deveis fazer,
desde que fizésseis tudo o que ele pedisse e não o contrariásseis.
— Não há nada que eu pudesse fazer que não tenha feito. Merlim está
sabendo do meu sofrimento. Tenho receio de tê-lo magoado por ter permitido que
experimentassem o assento da távola redonda, pois há muito tempo que não volta
aqui. Pode acontecer também que ele reprove meu amor por uma mulher de um
183
vassalo meu. Não agüento mais, nem posso desligar dela o meu coração. E lembro-
me muito bem de que ele recomendou que nunca o mandasse procurar.
— Estou certo de que, se ele está de boa saúde e vos ama ainda como
antigamente, tão logo saiba de vossa dor, não demorará nada para que tenhais
novas dele.
Desse modo Urfino confortou o rei. E acrescentou que, se ele se
esforçasse para manter boa aparência e se alegrasse e reunisse seus homens e
passasse o tempo com eles, esqueceria grande parte de sua mágoa. E o rei
respondeu que faria, de boa vontade, o que ele tinha dito, mas a mágoa e o amor
ele não podia esquecer. Assim reconfortou-se o rei por algum tempo e recomeçou o
ataque ao castelo, mas não pôde tomá-lo.
184
61
Um dia aconteceu que Urfino cavalgava pelo campo e encontrou um
homem que ele não conhecia e esse homem lhe disse:
— Senhor Urfino, gostaria muito de falar contigo em segredo.
— E eu contigo também.
Saíram então do campo, ele a pé e Urfino a cavalo. Urfino apeou e
perguntou-lhe quem era.
— Sou um homem muito velho, isto podes muito bem ver; quando era
jovem era considerado muito prudente, mas agora dizem, por muitas coisas que
digo, que ando caduco. Em todo caso, quero dizer-te, confidencialmente, que ainda
há pouco estive em Tintagel. Lá conheci um homem do conselho do duque que me
disse que Uterpendragão, teu rei, ama Igerne, a mulher do duque, e por isso veio o
rei destruir a terra dele. Se teu rei e tu confiardes em mim, eu conheço um homem
que te faria falar com Igerne e que aconselharia o rei em seus amores.
Quando Urfino ouviu esse velho assim falar, maravilhou-se muito
imaginando onde poderia ele ter aprendido o que dizia. Rogou-lhe insistentemente
que, se pudesse, lhe apresentasse logo aquele que poderia aconselhar o rei em
seus amores.
185
— Queria primeiro saber — replicou o velho — que recompensa o rei me
daria.
— Depois que tiver contado ao rei, vos encontrarei aqui?
— Haverás de encontrar-me ou ao meu mensageiro amanhã, no caminho
daqui ao campo.
Recomendou-o a Deus e partiu dizendo que não demorasse e não
falhasse, porque lhe diria coisas de que muito se alegraria.
Urfino partiu também e foi o mais depressa que pôde encontrar-se com o
rei e contou-lhe o que lhe disse aquele homem. O rei, depois que o ouviu, riu e ficou
muito alegre e perguntou a Urfino:
— Conheces o homem que te falou?
— Vi muito bem que era um velho e muito fraco.
— Quando deve ele te falar novamente?
— De manhã. E pediu-me que soubesse dizer-lhe que recompensa lhe
dareis.
— Tu me levarás a falar com ele.
E Urfino disse que iria com gosto e acrescentou:
— Assim falareis com ele sem minha companhia e lhe oferecereis o que
quiser receber.
E assim ficou até a manhã seguinte, mas o rei nunca esteve tão alegre, havia
muito tempo.
186
62
De manhã, depois da missa, na hora mesma que Urfino quis, cavalgou o
rei pelo campo na direção em que Urfino o guiava. Depois que saíram do campo,
viram um paralítico que parecia não enxergar nada. Quando o rei passou diante
dele, gritou:
— Rei, que Deus encha vosso coração daquilo que mais o quereis ver
cheio! Dai-me alguma coisa de que vos seja agradecido.
O rei olhou, chamou Urfino e disse-lhe rindo:
— Urfino, farias para mim o que te pedisse, por meu amor e para cumprir
minha vontade?
— Não há nada que tanto deseje, como fazer por vós o que ninguém
pode fazer.
— Ouviste o que este paralítico me pediu prometendo a coisa do mundo
que eu mais desejo? Vai então, fica com ele e dizer-lhe que te entreguei a ele,
porque não há nada no mundo que eu tanto preze como tu.
Urfino foi sentar-se ao lado do paralítico. Quando o paralítico viu Urfino,
disse-lhe:
— O que vieste procurar?
187
— O rei entregou-me a ti para que seja teu. Ao ouvir isso, ele riu e disse:
— Urfino, o rei sabe o que se passa e me conhece melhor do que tu.
Quero que saibas que o velho que viste ontem enviou-me aqui, mas não te direi
nada do que ele me disse. Volta ao rei e dize-lhe que vejo bem que ele cometeria
um grande erro para ter o que deseja, mas tudo se resolverá a seu favor, porque
logo me reconheceu.
E Urfino disse:
— Não ousarei perguntar nada a teu respeito.
— Perguntai ao rei e ele vo-lo dirá.
Urfino montou e voltou ao rei. Quando o rei o viu, chamou-o à parte e
disse-lhe:
— Como estás aqui? Não havia mandado que fósseis encontrar o
paralítico?
— Ele vos manda dizer que sabeis quem ele é, o que de modo algum quis
dizer-me.
Então voltaram os dois juntos o mais depressa que puderam e, quando
chegaram onde Urfino havia deixado o paralítico, não encontraram ninguém. Então
disse o rei a Urfino:
— Aquele homem que falou contigo ontem tinha a aparência de um velho,
mas é o mesmo que viste hoje como paralítico.
— Será mesmo verdade? Como poderia um homem se transfigurar?
Quem poderia ser?
— Fica sabendo que é, de fato, Merlim que brinca assim conosco. E
quando quiser, nos fará saber que é ele.
188
63
Permaneceram lá cavalgando pelo campo. Merlim foi para a tenda do rei,
sob sua verdadeira aparência, como era conhecido e perguntou onde eslava o rei.
Quando o mensageiro encontrou o rei, disse-lhe que Merlim o procurava. Ele ficou
tão alegre, que não soube o que responder; voltou o mais depressa que pôde e
disse a Urfino:
— Agora vais ver o que te anunciei. Merlim chegou. Eu sabia muito bem
que era inútil procurá-lo.
— Se alguma vez respeitastes a vontade dele, agora e o momento de
fazer melhor ainda, porque ninguém, melhor do que ele, vos poderá ajudar a
conseguir o amor de Igerne.
— Tens razão, não há nada que ele me ordene que eu não faça.
Foram até a tenda e o rei encontrou Merlim. Ao vê-lo, ficou muito alegre e
disse-lhe que era bem-vindo. Abraçou-o docemente e disse-lhe:
— De que me queixarei a vós que conheceis tanto como eu meu
sofrimento? Nunca alguém demorou tanto para chegar como vós! Peço-vos, por
Deus, que me ajudeis a conseguir o que meu coração deseja.
189
— A respeito do que falais, não vos direi nada sem Urfino.
Então o rei mandou chamar Urfino e retiraram-se à parte para conversar.
Então disse o rei a Merlim:
— Eu disse a Urfino o que mandastes, porque sois, de fato, o homem que
ele viu e sois também o paralítico.
Urfino olhou para ele com curiosidade e perguntou:
— Pode isto que o rei disse ser verdade?
— Sim — respondeu Merlim —, sem falha, sou eu; assim que soube que
ele te enviou, sei que ele se havia apercebido.
Então disse Urfino ao rei:
— Senhor, deveis falar a Merlim de vosso caso e não apenas vos
lamentar quando estais só.
— Não sei o que dizer-lhe nem o que pedir-lhe, porque ele sabe muito
bem que meu coração e meu ânimo não lhe poderiam mentir, que ele não o
soubesse, mas, por Deus e por meu amor, peço-lhe que, se for do seu agrado, me
ajude a ter o amor de Igerne e ele nada dirá que queira que se faça que não seja
feito.
— Se vos comprometeis desse modo a dar-me o que vos pedir,
procurarei conseguir que tenhais seu amor e vos farei dormir em sua câmara com
ela inteiramente nu.
Ao ouvir isto, Urfino riu e disse:
— Agora quero ver o que vale o coração de um homem.
— Certamente — disse o rei —, não sabereis pedir-me nada que não vos
dê.
— Como posso ter certeza disso? — perguntou Merlim.
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— Do modo como quiserdes.
— Jurai-me sobre as santas relíquias e mandai Urfino jurar que o que vos
pedir, no dia seguinte ao que vos tiver feito dormir com ela e ter tido com ela todo o
vosso prazer, vós me dareis, sem nada subtrair.
E o rei respondeu que sim e de muito boa vontade. E Merlim perguntou a
Urfino se ele juraria e ele respondeu que cumprisse sua parte depois que tivessem
jurado. Merlim, ao ouvir isso, riu e disse:
— Depois que os juramentos tiverem sido feitos, eu vos direi o que
acontecerá.
Então o rei mandou trazerem as mais caras relíquias e jurou sobre um
livro o que havia prometido e do modo como havia entendido que, em boa fé, lhe
daria o que lhe fosse pedido depois do juramento. E Urfino jurou em seguida, que
Deus e os santos ajudassem o rei a manter o que havia jurado e prometido.
Desse modo foram feitos os juramentos e Merlim os tomou.
191
64
Então disse o rei a Merlim:
— Agora peço-vos que vos ocupeis do meu caso, como daquele que mais
desejoso está de cumprir sua vontade.
— Senhor, para ir junto de Igerne, será preciso trocar vossa aparência,
porque ela é muito virtuosa e fiel a Deus e a seu senhor. Vereis como será possível
satisfazer vossos desejos: vou dar-vos a aparência do duque, de modo que ninguém
vos reconhecerá. Há dois cavaleiros muito íntimos do duque e de sua mulher, um
chama-se Bretel e o outro Jordão. Darei a Urfino a aparência de Jordão e eu tomarei
a de Bretel e assim iremos convosco a Tintagel. Eu vos farei abrir as portas e vos
farei entrar entre mim e Urfino; mas convirá que saiais de lá muito cedo, porque,
quando lá dentro estivermos, teremos muito estranhas notícias. Voltai agora a
vossas tropas e a vossos barões e proibi a quem quer que seja de aproximar-se do
castelo, enquanto não tivermos voltado e cuidai de não dizer a qualquer outra
pessoa onde quereis ir.
O rei respondeu que faria tudo conforme o combinado e garantiu que os
seus cumpririam fielmente suas ordens.
192
— Estou pronto e vos darei as aparências novas a caminho.
O rei apressou-se o mais que pôde para fazer o que Merlim havia
ordenado e voltou dizendo:
— A minha parte está feita, cuidai da vossa. E Merlim disse:
— E só montar.
Então prepararam-se para viajar à noite.
193
65
Naquela noite, cavalgaram tanto que chegaram a Tintagel. Então disse
Merlim:
— Ficai aqui, enquanto Urfino e eu vamos ali. Depois voltou ao rei
trazendo uma erva e disse:
— Esfregai essa erva em vossa face e em vossas mãos. O rei pegou e
esfregou-a e depois que esfregou viu que estava inteiramente igual ao duque. Então
perguntou-lhe Merlim:
— Senhor, lembrai-vos de alguma vez ter visto Jordão?
— Sim, eu o conheço bem.
Merlim voltou então a Urfino, transformou-o na aparência de Jordão e o
trouxe pelo freio para perto do rei. Quando Urfino viu o rei, persignou-se e disse:
— Senhor, como é possível tal semelhança entre um homem e outro?
E o rei perguntou a Urfino:
— O que te parece de mim?
— Não o conheço por ninguém, senão pelo duque.
194
E o rei disse que ele também estava inteiramente igual a Jordão. Assim
estando, olharam para Merlim e pareceu-lhes que era verdadeiramente Bretel.
Ficaram conversando até que escurecesse. Depois que anoiteceu, foram à porta de
Tintagel. Merlim, que maravilhosamente se parecia com Bretel, chamou os porteiros.
Eles vieram, e ele disse-lhes:
— Abri! O duque está aqui.
Abriram e viram claramente Bretel, o duque e Jordão e os deixaram
entrar. Uma vez lá dentro, Bretel proibiu que dissessem na cidade que o duque
havia chegado. À duquesa logo alguém foi dizê-lo. Cavalgaram até o paço e
apearam. Merlim chamou o rei à parte e aconselhou-o a comportar-se lá dentro
muito bem como senhor. Então foram os três até à câmara em que Igerne dormia, e
ela estava deitada. O mais depressa que puderam, fizeram seu senhor desarmar-se
e deitar-se. Então saíram e ficaram à porta até de manhã. Dessa maneira dormiu
Uterpendragão com Igerne e naquela noite gerou o bom rei que depois teve nome
Artur. A dama fez o prazer de Uterpendragão pensando estar com seu senhor.
Assim ficaram juntos até de manhã.
195
66
De manhã, ao raiar o dia, chegaram novas à cidade de que o duque
estava morto e seu castelo tomado, e a notícia chegava muito secretamente. E
assim que aqueles que dormiam à porta o ouviram, levantaram-se e foram onde o rei
dormia e disseram:
— Levantai-vos e retomai vosso castelo, porque os vossos vos
consideram morto.
Ele levantou-se e disse:
— Não é nenhuma maravilha que pensem assim, porque quando saí do
castelo ninguém soube.
Então despediu-se de Igerne e beijou-a diante daqueles que lá estavam.
Depois saíram os três do castelo o mais depressa que puderam, sem serem
reconhecidos. Lá fora, ficaram muito alegres. E Merlim disse ao rei:
— Cumpri a minha parte. Fazei vós o mesmo.
— Tendes minha palavra. Vós me propiciastes a maior alegria e
prestastes o mais belo serviço que jamais alguém fez a outrem e o que vos convier o
tereis muito bem.
196
— Eu vos peço e quero que me assegureis: sabei que gerastes um filho
em Igerne e o destes para mim, porque não deveis tê-lo. Vós o dareis então para
mim com todos os poderes que tendes sobre ele. Anotareis por escrito a noite e a
hora em que o gerastes e assim sabereis que vos disse a verdade.
— Eu o jurei. Farei pois como dizeis. E eu vo-lo devo muito bem.
Cavalgaram até um rio, no qual Merlim fez todos se lavarem. Depois que
se lavaram, perderam a aparência. Então o rei cavalgou o mais depressa que pôde
em direção às suas fileiras e, assim que chegou, seus homens o rodearam. E ele
perguntou-lhes como havia acontecido a morte do duque. Eles contaram que na
noite em que ele partira, estava tudo muito calmo. E que o duque, ao perceber sua
ausência, fez armar todos os seus e os fez sair por aquela porta e saíram todos, uns
a pé e outros a cavalo, e invadiram o campo. Correram sobre nossas fileiras e
causaram muito prejuízo, enquanto não havia muitos armados, mas logo levantou-se
um alarido e nos armamos e fomos em cima deles devolvendo-os porta adentro. O
duque deu meia-volta e combateu com muita bravura, mas seu cavalo morreu e ele,
caído e perdido, foi morto pelos nossos que estavam a pé e não o conheciam.
Batemos então os outros porta adentro, que não podiam defender-se, depois de
terem perdido o duque. Desse modo tornamos a cidade. O rei respondeu-lhes que
muito lhe pesava a morte do duque. Assim morreu o duque de Tintagel e assim
perdeu seu castelo.
197
67
O rei falou a seus barões e demonstrou que lhe pesava muito a desgraça
do duque. Então pediu conselho sobre como poderia remediar o acontecido, sem
provocar censura, porque ele não odiava o duque de morte e muito lhe pesava sua
morte e estava disposto a remediar, no que estivesse em seu poder. Então falou
Urfino que era muito íntimo do rei e disse:
— Já que está feito, convém remediar o mal o mais depressa possível.
Chamou um bom número de barões à parte e perguntou-lhes:
— Senhores, que compensação imaginais que o rei deve fazer pela morte
do duque a sua mulher e a seus amigos? O rei vos reuniu em conselho e deveis
aconselhá-lo o melhor que puderdes, porque é vosso senhor.
— De muito bom grado o aconselharemos e vos perguntamos, por serdes
o mais próximo dele, que nos digais que proposta lhe devemos fazer.
— Imaginais porventura que, por estar mais próximo dele, não lhe dou os
mesmos conselhos em público? Estaríeis me tomando por um traidor? Se ele
confiasse na minha proposta de paz, eu lhe sugeriria algo que vós não ousaríeis
imaginar.
— Pedimos que nos digais, porque sois prudente, leal e bom conselheiro,
198
— Direi qual a minha sugestão e vós, se a achardes boa, levai-a ao rei.
Aconselharei ao rei que envie mensageiros por toda a parte onde há amigos do
duque convocando-os a Tintagel. O rei irá a Tintagel e ordenará que a duquesa e os
seus venham até ele e então lamentará muito a morte do duque e proporá tal
remédio que, se houver quem o rejeite, sobre eles recairá a censura e o rei será
considerado leal e prudente. E vós todos de seu conselho procurai o que o rei
poderia oferecer e fazer. Ele deve buscar a paz, e quer fazê-la.
— Concordamos com esse conselho — disseram os homens bons — e
não haverá outro.
Então foram à presença do rei, expuseram o conselho que Urfino lhes
havia dado, mas não contaram que era de Urfino, porque este lhes havia pedido e
exigido. O rei ouviu sua exposição e respondeu:
— Aprovo inteiramente esse conselho e quero que seja assim como
falastes.
199
68
Desse modo enviou o rei mensageiros a todos os parentes do duque
dizendo que, em boa paz, fossem a Tintagel, porque ele queria reparar todas as
coisas de que podiam se queixar dele. Então cavalgou o rei para Tintagel e Merlim
veio a ele e disse-lhe:
— Sabeis quem fez essa proposta que estais levando adiante?
— Sei apenas que ela me foi feita pelos barões.
— Todos eles juntos não seriam capazes de chegar a tal proposta, mas
Urfino, que é muito sábio e que vos é fiel, buscou em seu coração a mais bela e a
mais honrada solução que há para a paz e imagina que ninguém sabe, senão ele;
no entanto, o único a saber sou eu e agora sabeis vós também.
Então pediu o rei a Merlim que lhe contasse o que Urfino havia decidido.
Merlim contou então ao rei tudo o que Urfino havia imaginado.
Ao ouvi-lo, o rei ficou muito alegre em seu coração e disse:
— E vós, Merlim, o que dizeis a respeito?
— Não há tão boa, nem tão leal, nem tão comovente proposta. Por ela
satisfareis a vontade do vosso coração naquilo que ele mais deseja. E agora quero
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ir-me, mas antes quero falar convosco na presença de Urfino. E depois que eu tiver
ido, podereis perguntar a Urfino o que ele imaginou para conseguir essa paz.
O rei disse que o faria, então Urfino foi chamado e, quando chegou à
presença de ambos, Merlim disse ao rei:
— Senhor, vós me prometestes entregar-me o filho que gerastes, porque
não o podeis reconhecer como filho. E metestes por escrito a noite e a hora em que
foi gerado e sabeis que o gerastes por mim e por minha arte: assim seria meu o
pecado, se não o ajudasse. A mãe dele poderia passar muita vergonha por seu
nascimento, e uma mulher não sabe como reagir, quando não pode dissimular.
Quero também que Urfino meta em escrito a noite e a hora em que o menino foi
gerado. Não me vereis mais antes da noite em que há de nascer. Peço-vos, como a
meu senhor, que confieis no que vos dirá Urfino, porque ele vos ama e não vos
aconselhará nada que não seja senão em vosso proveito e em vossa honra. Eu não
falarei mais convosco nos próximos seis meses, mas falarei com Urfino e o que vos
ordenar por ele, confiai e mandai fazer, se quiserdes conservar minha amizade e a
dele e salvar vossa honra.
Então Urfino anotou a data da concepção do menino. E Merlim puxou o
rei de lado e disse-lhe:
— Senhor, casareis com Igerne; cuidai que ela nunca saiba que já
dormistes com ela e a engravidastes. Ela estará mais presa à vossa vontade, se lhe
perguntardes da gravidez e de quem ficou grávida, ela não vos saberá dizer quem é
o pai e por isso se envergonhará muito diante de vós. Assim me ajudareis a obter o
menino mais facilmente.
201
69
Depois disso, despediu-se Merlim do rei e de Urfino. O rei cavalgou para
Tintagel e Merlim foi encontrar-se com Brás, a quem contou todas estas coisas e ele
as meteu por escrito e por ele as sabemos nós ainda hoje. O rei, assim que chegou
a Tintagel, convocou seus homens em conselho e perguntou-lhes o que conviria
fazer.
— Senhor — disseram eles —, aconselhamos concluir a paz com a
duquesa, seus parentes e com os parentes do duque.
O rei então mandou irem junto à duquesa e dizer-lhe que ela não poderia
defender-se e, se quisesse a paz, ele a faria de muito boa vontade. Enquanto os
mensageiros foram à duquesa, o rei chamou à parte Urfino e perguntou-lhe o que
achava dessa paz, dando-lhe a entender que sabia perfeitamente que ela vinha de
seu coração. E Urfino respondeu:
— Senhor, já que sabeis que fui eu que a imaginei, cabe a vós saber se
vos agrada.
— Agrada-me e quereria que se realizasse do modo como idealizaste em
teu coração.
E Urfino disse:
202
— Então não vos preocupeis, que a conseguirei facilmente.
O rei rogou-lhe muito que se empenhasse.
Os mensageiros do rei encontraram a duquesa, seus parentes e amigos e
os parentes do duque e explicaram que o duque havia morrido por falha própria.
Acrescentaram que pesava muito ao rei e que ele queria fazer a paz com a dama e
todos os amigos do duque. Percebendo que não podiam mesmo defender-se do rei,
os homens bons aconselharam à duquesa e a seus parentes que fizessem a paz
com o rei. Os parentes da duquesa e os do duque retiraram-se a uma câmara para
discutir. De volta, disseram à duquesa:
— Senhora, estes homens bons dizem a verdade afirmando que o duque
morreu por falha própria e dizem também a verdade que não vos podeis defender do
rei. Mas perguntai-lhes que paz o rei deseja fazer convosco e conosco e então
podereis avaliar se o que ele vos oferece pode ser recusado. De dois males, deve-se
escolher o menor, tal e nosso parecer.
— Nunca — disse a dama — afastei-me do conselho de meu bom senhor,
e não me afastarei do vosso, porque não conheço ninguém em quem deva confiar,
senão vós.
Voltaram então à presença dos mensageiros do rei e o mais sábio deles
tomou a palavra:
— Senhores, minha dama convocou seu conselho e expôs que confia em
vós, em grande parte, e quereria saber, se vos for possível, qual o tipo de reparação
que o rei pretende fazer pela morte de seu senhor que era tão amigo dele.
— Senhor — responderam os mensageiros —, não sabemos exatamente
a vontade do rei, mas isto vos podemos dizer: reunirá seu conselho e o que seus
barões decidirem que deva fazer, ele o fará.
203
— Então saberão muito bem reparar, se for verdade o que dizeis, porque
são homens bons e, se Deus quiser, aconselharão ao rei uma reparação a sua
altura.
Fixaram então o prazo de quinze dias para a dama e os seus irem à
presença do rei para ouvir e saber o que o rei pretendia dizer-lhes e, se o que ele
quisesse não agradasse à dama c aos seus, que fossem reconduzidos a Tintagel.
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Assim ficou marcado o dia e os mensageiros vieram e contaram ao rei
como encontraram a dama e os seus e que conselho havia ela recebido. O rei
garantiu que, de muito bom grado, facilitaria sua vinda e os ouviria, se lhe pedissem
razão. Os quinze dias, o rei passou falando com Urfino de muitas coisas. No dia
marcado, de acordo com o conselho dos barões, mandou salvos-condutos à
duquesa e, depois que ela chegou, reuniu todos os seus barões e seu conselho e
mandou perguntar à dama e ao conselho dela, sob que condições queriam a paz.
— Senhor — responderam eles —, a dama não veio aqui para pedir, mas
para ouvir o que se lhe oferecerá pela morte de seu senhor.
Foram até o rei e falaram isso.
O rei, tendo ouvido, considerou muito sábias as palavras. Chamou à parte
seu conselho e pediu sua opinião.
— Senhor — disseram —, ninguém, senão Deus, pode saber o que vosso
coração quer, nem a paz, que quereis, nem o que lhes pretendeis oferecer.
— Logo vos direi o que tenho no pensamento e no coração. Sois todos
homens meus e de meu conselho, ponho-me em vossas mãos. Cuidai de como
deveis fazer a vosso senhor, porque não aconselhareis nada que eu não faça.
205
— Se vós não sabeis encontrar solução, senhor, nós não saberíamos
assumir tão grande responsabilidade, sem estar muito seguros de vossas intenções.
— Parece — interveio Urfino — que considerais o rei um louco e que não
confiais no que vos diz.
— Pode ser — disseram —, mas pedimos ao rei que ordene que venhas a
nosso conselho e que a opinião que formarmos a leves a ele e que tu mesmo nos
aconselhes do melhor modo que puderes.
Quando o rei ouviu que convocavam Urfino, ficou muito alegre e disse:
— Urfino, eu te criei e fiz de ti um homem poderoso e sei muito em que és
prudente. Vai com eles, aconselha-os, por minha ordem, do melhor modo que
puderes.
— Senhor — respondeu Urfino —, eu o farei, pois que o ordenais, mas
quero que fiqueis sabendo que nenhum rei nem príncipe pode ser amado demais
por seus vassalos e, se forem homens de valor, não se humilhe nunca diante deles
para ganhar seus corações.
206
71
Então foi Urfino ao conselho dos barões e, depois que começaram a
reunião, perguntaram-lhe o que aconselhava a respeito.
— Ouvistes que o rei coloca a questão em vossas mãos. Vamos saber se
a dama e os seus fazem o mesmo.
Acharam que era muito sábio e foram à dama e a seu conselho e
explicaram que o rei confiava a eles o assunto c queriam saber se eles fariam o
mesmo.
— Ela precisa aconselhar-se muito bem a respeito e o fará.
E disseram que o rei não poderia fazer melhor do que confiar o assunto a
seus barões. A dama, os seus conselheiros e os parentes do morto aceitaram
também confiar o caso a eles, que tomaram então o encargo de decidir. Reuniram-
se e consultaram-se mutuamente. Depois que todos haviam emitido opinião,
perguntaram a Urfino o que ele propunha.
— Direi — falou Urfino — a minha opinião a respeito do assunto e o que
disser aqui sou capaz de repetir por toda a parte. Sabeis que o duque morreu por
culpa do rei e por sua força e, por errado que estivesse em relação ao rei, não havia
feito nada por que devesse morrer. Não é verdade? E sabeis que sua mulher ficou
207
responsável pelos filhos e sabeis que o rei devastou e destruiu sua terra. Sabeis
também que ela é a melhor dama deste reino e a mais bela e a mais prudente.
Sabeis por fim que os parentes do duque perderam muito com sua morte. É pois
justo que o rei lhes dê parte do que perderam, de acordo com sua posição, de modo
que possa merecer seu amor. Por outro lado, sabeis que o rei está sem mulher. Por
isso declaro que ele não pode reparar o prejuízo que causou à dama, senão
esposando-a. Sou de opinião de que ele deveria fazer isso tanto para reparar o mal
que lhe causou como para conquistar o amor de todos os que neste reino souberem
de sua atitude reparadora. Depois, que ele case a filha mais velha com o rei Lote de
Orcânia, aqui presente, e faça com que o tenham por homem prudente e leal.
Ouvistes agora a minha opinião — concluiu Urfino —, se quiserdes, podeis expor
outra.
E eles responderam juntos:
— Emitiste o mais ousado conselho que ninguém se atreveria a imaginar
nem ousará contestar. Se o levares ao rei do modo como aqui o disseste e ele
concordar, nós, de bom grado, concordaremos.
— Isso não basta — disse Urfino. — É preciso que confirmeis esse
acordo. Vedes aqui o rei de Orcânia, de que depende em grande parte a paz. Que
ele diga o que lhe parece.
— No que me diz respeito — falou o rei de Orcânia —, não quero ser
obstáculo à paz.
Tendo ouvido isso, o conselho concordou plenamente e foram todos
juntos à tenda onde estava o rei. A dama foi convocada, bem como todos os do seu
conselho. E estando todos reunidos, sentaram-se e Urfino, de pé, expôs seu parecer
como antes. Depois perguntou aos barões:
208
— Estais todos de acordo?
Eles responderam que sim. Então Urfino dirigiu-se ao rei e disse:
— Senhor, o que dizeis? Aceitais as condições dos barões?
— Sim — respondeu o rei —, se a dama e seus amigos aceitarem e se o
rei Lote concordar em tomar a filha do duque como esposa.
Então falou o rei Lote:
— Senhor, não me pedireis nada por vossa honra e por vossa paz, que
eu, de muito bom grado, não faça.
Então Urfino, na presença de todos, dirigiu-se àquele que falava pela
dama e perguntou-lhe:
— Concordais com esta paz?
E ele, olhando para a dama e para os seus conselheiros que estavam
emocionados até as lágrimas de alegria e de piedade, respondeu como um sábio,
mas chorando ele também, que nunca havia visto um senhor fazer tão honrada
proposta. Em seguida, perguntou à dama e aos parentes do duque se estavam de
acordo. A dama ficou em silêncio, mas seus parentes e os do duque responderam:
— Não há quem tema Deus que não deva concordar e nós concordamos
inteiramente, porque sabemos que o rei é tão prudente e leal, que nos pautaremos
por essas palavras.
Assim foi jurado de uma parte e de outra.
209
72
Uterpendragão esposou Igerne, e o rei Lote de Orcânia, a filha dela. As
bodas do rei e de Igerne aconteceram no trigésimo dia depois que ele havia dormido
com ela em seus aposentos.
Da filha que ela deu a Lote nasceram Morderete e Galvão, Guerrees,
Agravaim e Gaeriete. O rei Neutro de Garlote esposou a outra filha que era bastarda
e que tinha nome Morgana. Seguindo o conselho de todos os amigos, o rei a fez
receber instrução num mosteiro de mulheres e ela aprendeu tanto e tão bem, que
dominou as artes e adquiriu a maravilha de uma arte chamada astronomia, de que
se utilizou sempre e, por causa da mestria de clerezia que demonstrava, foi
chamada Morgana, a fada. O rei cuidou também da educação das outras crianças e
amou muito os parentes do duque.
Desse modo teve o rei Igerne. O tempo passou até que sua gravidez
começou a aparecer. Uma noite, quando o rei dormia com ela, pôs a mão sobre a
barriga dela e perguntou-lhe de quem estava grávida, porque não poderia estar
grávida dele, pois, desde que a havia esposado, nunca havia dormido com ela, sem
deixar anotado; não poderia estar grávida do duque, porque muito tempo antes da
210
morte dele, ela já não o via. Ao ouvir que o rei a acusava, Igerne teve pavor e
vergonha e disse, em lágrimas:
— Senhor, a respeito do que sabeis, não vos posso obrigar a ouvir
mentira, nem qualquer outra coisa vos direi. Mas, por Deus, senhor, tende piedade
de mim, porque vos contarei maravilhas e verdades, se me assegurardes que não
me abandonareis.
— Falai tudo, sem receio, que não vos deixarei por qualquer coisa que
venhais a dizer.
Ela, ao ouvir isso, ficou muito aliviada e disse:
— Senhor, eu vos contarei maravilhas.
E contou como um homem havia dormido com ela, com toda a
semelhança de seu senhor e havia levado dois homens com a aparência dos dois
que seu senhor mais amava. E assim entrou em seus aposentos diante de todos e
dormiu com ela. E ela pensou que era seu senhor. Aquele homem gerou o filho de
que estava grávida. E ela bem sabia que ele havia sido gerado naquela noite em
que seu senhor tinha morrido, porque ele ainda eslava dormindo com ela, quando
chegaram as notícias da morte de seu senhor.
— Eu eslava convencida — disse ela — de que era meu senhor, e as
pessoas não sabiam que ele tinha vindo até mim.
— Senhora — disse o rei —, cuidai que nenhum homem e nenhuma
mulher jamais saibam disso que deveis esconder, porque serieis desonrada, se
viessem a sabê-lo. E quero que saibais que este filho que nascer não é de direito
nem meu nem vosso e que nem vós nem eu nada temos a fazer. Então, assim que
nascer, peço-vos que o confieis a quem eu indicar e nunca mais teremos notícia
dele.
211
— Senhor, de mim e de ludo o que me diz respeito podeis fazer vossa
vontade, porque vos pertenço.
212
73
O rei foi repetir a Urfino sua conversa com a rainha.
— Senhor — disse Urfino —, sabeis agora como Igerne é virtuosa e
franca, porque de tamanha desventura não vos ousou mentir. E agistes muito bem
em relação ao interesse de Merlim, porque de outro modo não conseguiria o menino.
E assim passou o tempo ale o sexto mês, ocasião em que Merlim tinha
ficado de voltar. Veio e conversou com Urfino reservadamente perguntando-lhe o
que queria saber e Urfino respondeu-lhe a verdade de tudo o que sabia. Depois que
os dois conversaram, Merlim pediu a Urfino que chamasse o rei. Estando juntos o
rei, Merlim e Urfino, o rei contou a Merlim como havia procedido com a rainha e
como Urfino havia conseguido a paz com o acordo de que ele tomasse Igerne por
mulher.
— Urfino — disse Merlim ao rei — está quite do pecado que cometeu
favorecendo vossos amores com a rainha, mas eu não me livrei ainda do pecado
que tenho da senhora e da gravidez que tem dentro de si, que não sabe de quem é.
— Sois tão sábio — respondeu o rei —, que logo vos sabereis quitar.
— Convém que me ajudeis!
213
O rei disse que o ajudaria de todo modo que estivesse a seu alcance e,
quanto ao menino, ele sabia muito bem como agir para que ele o tivesse.
— Senhor — disse Merlim —, mora nesta região um dos homens mais
prudentes e mais leais de vosso reino e ele tem por esposa a mulher mais prudente,
a mais leal e a mais provida de qualidades que existe no reino. Ela deu à luz um filho
e seu marido não tem recursos. Quero que mandeis chamar esse homem e lhe
façais dar o de que precisa, de modo que ele e sua mulher jurem sobre as santas
relíquias que criarão um menino que lhes será futuramente confiado e que será
amamentado pela mulher. Ela confiará seu filho a uma ama de leite e
amamentará o menino que lhe for entregue, como se fosse o próprio filho.
— Do modo como dizeis, hei de fazer.
214
74
Despediu-se Merlim do rei e foi até Brás, seu mestre. Urfino foi buscar o
homem bom. Assim que ele chegou, o rei manifestou grande contentamento. Ele
maravilhou-se muito com a alegria do rei. E o rei disse-lhe:
— Amigo, convém que vos conte a maravilhosa aventura que me
aconteceu. Sois meu homem natural. Peco-vos então, em nome da fé que me
deveis, que me ajudeis num problema que vos exporei e de que guardareis o maior
segredo possível.
— Senhor, farei o que me disserdes, na medida de minhas forças, e, se
não puder, pelo menos saberei calar-me.
— Aconteceu-me um sonho maravilhoso, enquanto dormia. Vinha a mim
um homem bom e dizia-me que vós sois o mais sábio de meu reino e o mais leal
para comigo. E contava-me que ganhastes um filho de vossa mulher. Então dizia-me
que vos pedisse que vossa mulher não amamentasse vosso filho, mas o fizesse ser
amamentado por outra mulher, de modo que vossa mulher, por amor a mim,
amamentasse um menino que vos será entregue.
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— Senhor, é muito grande coisa o que quereis: que afaste meu filho de
minha mulher e o faça ser amamentado por outra! Vou ver com minha mulher, mas
peço-vos que me digais, se for de vosso agrado, quem é a criança que me será
entregue?
— Deus me ajude, não sei.
— Nada há que mandeis que eu não faça.
Então deu-lhe o rei tal soma de dinheiro que ele ficou inteiramente
confuso e logo partiu. De volta a sua mulher, contou-lhe o que o rei lhe dissera e ela
achou muito estranho.
— Como poderia fazer isso de deixar meu filho para amamentar outro?
— disse ela.
— Não há nada que não devamos fazer por nosso rei. Ele tanto nos deu
e tanto nos faz e promete fazer, que a nós convém satisfazer seu prazer e sua
vontade. E quero que me jureis fazê-lo.
— Eu e o menino vos pertencemos. Fazei pois de mim e dele vossa
vontade, como vos agradar, porque em nada devo opor-me a vós.
O homem ficou muito feliz ao ouvir que sua mulher faria o que ele
quisesse. Pediu-lhe então que procurasse uma mulher que amamentasse o filho,
antes que lhe trouxessem o outro menino.
216
75
Desse modo o homem bom desmamou seu filho de sua mulher. E a
rainha estava muito perto de dar à luz. Na véspera do nascimento, Merlim veio
reservadamente à corte e falou com Urfino à parte e disse-lhe:
— Ufiino, estou muito satisfeito com o rei que soube falar muito
habilmente com Antor a respeito do que lhe havia pedido. Dize-lhe que se dirija
agora à rainha e lhe diga que amanhã, depois de meia-noite, ela dará à luz seu filho
e ordene-lhe que o entregue ao primeiro homem que ela verá à porta de seus
aposentos.
Urfino, ao ouvir isso, perguntou-lhe:
— Não conversareis com o rei?
— Não. Dessa vez, não.
Então dirigiu-se Urfino ao rei e contou-lhe o que Merlim lhe havia
ordenado. O rei ficou muito satisfeito e perguntou-lhe:
— Ele não virá ver-me antes de partir?
— Não, mas fazei o que vos ordena. Então o rei dirigiu-se à rainha e
disse-lhe:
217
— Senhora, peço-vos que confieis no que vos direi.
— Senhor — respondeu ela —, confiarei em tudo o que disserdes e agirei
de acordo.
— Senhora, amanhã, depois da meia-noite, dareis à luz, com a ajuda de
Deus, ao menino que tendes em vosso seio. Peço-vos e ordeno que, assim que ele
nascer, o façais entregar, por uma de vossas amas, ao primeiro homem que ela verá
à porta da câmara. Também proibireis a todas as mulheres que vos assistirem de
contar o nascimento deste menino, porque, se viessem a sabê-lo, seria para vós e
para mim muito desonroso. As pessoas diriam que não poderia ser meu filho e não
me parece mesmo que pudesse sê-lo.
— Senhor, de fato, como já vos disse, não sei quem o fez em mim e
cumprirei tudo o que me ordenardes, porque estou muito envergonhada com a
desventura que me aconteceu. Mas estou igualmente maravilhada com o fato de
saberdes a data do nascimento.
— Peço-vos que façais como vos ordeno.
— Senhor, de muito bom grado o farei, se Deus quiser.
Assim terminou a conversa do rei e da rainha. E ela esperou até que
aprouve a Deus que, no dia seguinte, por volta da hora de vésperas, começou a
sentir as primeiras dores do parto.
218
76
Os trabalhos de parto duraram até a hora que o rei previu e o menino
nasceu entre a meia-noite e a aurora. Assim que ele nasceu, Igerne chamou uma de
suas amas em quem muito confiava e disse-lhe:
— Minha ama, toma este menino e leva-o à entrada da câmara, lá
encontrareis um homem que o pedirá, entrega-o a ele, mas observa bem quem é o
homem.
Ela fez o que a rainha ordenou. Pegou o menino, envolveu-o nos mais
ricos panos que tinha e levou-o até à porta da câmara. Quando a abriu, viu um
homem que parecia muito velho e fraco. E ela disse-lhe:
— O que estás aqui esperando?
— Espero o que tu trazes.
— Quem és, para que o diga à dama a quem entreguei seu filho?
— A qualquer pergunta que faças nada responderei, mas faze o que ela
te ordenou.
Então ela entregou-lhe o menino e ele o tomou e desapareceu, sem que
ela pudesse saber para onde. Então voltou à rainha e disse-lhe:
219
— Entreguei o menino a um homem muito velho, mas não sei quem é
ele.
A rainha chorou como mãe mergulhada em imensa dor. E o homem que
havia recebido o menino dirigiu-se o mais depressa que pôde à casa de Antor.
Encontrou-o de manhã dirigindo-se à missa. Sob a aparência de um velho homem
bom, chamou-o e disse-lhe:
— Antor, desejo falar contigo.
Antor observou-o e maravilhou-se de como parecia homem bom e disse-
lhe:
— Senhor, também eu desejo falar contigo.
— Trago-te um menino e peço-te que o faças amamentar como se fosse
teu próprio filho e sabe que, se o fizeres, tanto bem te advirá a ti e aos teus
descendentes, que se alguém te dissesse agora, não acreditariam.
— E este o menino a quem o rei pediu-me que fizesse minha mulher
amamentar no lugar de meu filho?
— Sim, é este, sem falha, e o rei e todos os homens bons e todas as
mulheres deveriam pedir-te o mesmo, como o faço eu agora. Quanto ao meu pedido,
sabe que vale tanto como o de um senhor poderoso.
Antor tomou nos braços o menino que lhe pareceu muito bonito e
perguntou se ja estava balizado. O velho respondeu que não e que ele o fizesse
batizar.
— Que nome queres que ele tenha?
— Se queres batizá-lo de acordo comigo e sob meu conselho, põe-lhe o
nome de Artur. E eu vou embora, porque nada mais tenho a fazer aqui. Quanto a
isso, cuida que muito grandes benefícios te advirão e, em pouco tempo, tu e tua
220
mulher não sabereis mais dizer a quem mais amais, se a este menino ou a vosso
filho.
— Senhor — perguntou-lhe ainda Antor —, quem direi que o trouxe a
mimec quem es tu?
— Por enquanto nada mais saberás a meu respeito.
Assim despediram-se um do outro e Antor fez balizar o menino e deu-lhe
o nome de Artur. Depois levou-o a sua mulher e disse-lhe:
— Aqui está o menino, que tanto pedi que aceitasses.
— Seja bem-vindo! — disse, tomando-o nos braços e perguntou se ja
estava batizado e ele respondeu-lhe que sim e que tinha por nome Artur. Então
amamentou-o e entregou o próprio filho a uma ama de leite.
221
77
E Uterpendragão reinou por muito tempo. Depois aconteceu que foi
acometido de uma grave doença de gota nas mãos e nos pés. Houve muitas
revoltas por seu reino em diversos lugares e tanto o contrariavam que ele convocou
seus barões. E os barões aconselharam que, se pudesse, vingasse. Então disse-
lhes Uterpendragão que, por Deus e por ele, fossem todos juntos, como devem fazer
homens bons por seu senhor. Eles responderam que iriam de bom grado. Foram e
encontraram os inimigos do rei e os seus que já detinham boa parte da terra. Os
guerreiros do rei, como combatentes sem chefe, combateram loucamente e foram
derrotados e o rei perdeu muitos de seus homens. Assim que a notícia da derrota
espalhou-se, o rei soube e ficou muito irado. Chegaram os sobreviventes da batalha.
E os vencedores eram muito mais numerosos e os saxões, que estavam na terra em
condição inferior, aliaram-se a eles e assim conquistaram muita gente. Merlim, que
sabia de tudo isso, veio ao rei que estava muito fraco, por causa de sua doença, e
muito envelhecido. Ele, quando soube que Merlim vinha, ficou muito alegre. E
Merlim, ao chegar, disse-lhe:
— Estais com medo.
222
— E com razão, porque aqueles de quem não imaginava nada dever
recear destruíram o meu reino e os meus homens estão mortos e derrotados.
223
78
E Merlim respondeu-lhe:
— Agora podeis saber como nada vale tanto, como ter um bom mestre.
— Por Deus, Merlim, aconselhai-me sobre o que deverei fazer.
— Eu vos direi umas coisas muito reservadas e quero que confieis em
mim. Reuni todos os vossos guerreiros e toda a vossa gente e, quando estiverem
todos reunidos, fazei com que vos coloquem numa maca e ide combater vossos
inimigos e os vencereis. Depois que os tiverdes vencido, estará provado que uma
terra não vale grande coisa sem o seu senhor. Depois, dividi, por Deus, por vossa
honra e pela vossa alma, todo vosso tesouro e vossa grande riqueza, porque quero
que saibais que, depois de ter feito isso, não vivereis mais por muito tempo. E quero
que saibais que aqueles que têm muita riqueza e morrem com ela, ao partirem, não
podem elas fazer bem a sua alma, porque esses bens não lhes pertencem, antes
pertencem àquele que nenhum bem os deixa fazer, e sabei que é o diabo. E mais
valeria ao rico que nunca tivesse tido nada ou repartisse convenientemente os bens
terrenos, porque as riquezas e as vaidades que se tem neste mundo não são senão
prejuízo para a alma, se se não as reparte, como se deve. E vós que estais perto de
vosso fim, que acabar vos convém, sabei que deveis deixar tudo e distribuir de tal
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maneira que não percais a alegria do outro mundo, porque a deste não vale nada e
vos direi por quê numa só palavra: neste mundo terreno não há alegria que dure e a
que se compra no outro mundo não pode falhar, nem envelhecer, nem deteriorar e
qualquer coisa que se tenha nesta vida mortal deve-se entregar a Nosso Senhor
para se ter como provar da outra. Então, convém, se se quer agir prudentemente,
que, daquilo que Deus deu nesta vida mortal, se utilize para conquistar e conseguir a
vida perdurável. E vós, que tanto tivestes neste mundo, o que fizestes por Nosso
Senhor que tantas graças vos deu? Eu vos amei muito e muito vos amo, mas sabei
que ninguém pode e deve vos amar melhor do que vós mesmo, assim como
ninguém pode vos odiar mais do que vós mesmo. Digo-vos claramente que, depois
de terdes ganho esta vitória nesta batalha, não vivereis muito e quero que saibais
que tudo o que um homem tenha feito de bem em sua vida toda não vale mais do
que uma boa morte, porque, se tivésseis feito todo o bem do mundo, e viésseis a ter
um mau fim, correríeis o risco de pôr tudo a perder e, se tivésseis feito muito mal,
mas conseguísseis uma boa morte, ganharíeis o perdão. Quero também que saibais
que nada levareis deste século, salvo a honra, e como nenhuma honra pode
prescindir de esmola, nenhuma esmola é dada sem honra. Eu vos revelei o quanto
vos amo e vos desvendei vosso destino: sabeis que Igerne, vossa mulher, está
morta e não a podeis mais ter. Desse modo, depois de vossa morte, a terra ficará
sem herdeiro, eis por que vos deveis aplicar em agir corretamente. Eu partirei, que
não tenho mais o que fazer convosco, mas a Urfino pedi que confie em mim, quando
for necessário.
Uterpendragão tomou a palavra e disse:
— Terrível coisa dissestes afirmando que vencerei meus inimigos na
maça. Como poderei agradecer convenientemente a Nosso Senhor tal bondade?
225
Merlim respondeu:
— Só com uma boa morte. Eu vou indo e peço que vos lembreis depois
da batalha daquilo que vos disse.
E o rei falou e perguntou novas daquele menino que ele havia levado. E
Merlim respondeu:
— A respeito dele não tendes nada a perguntar, mas quero muito que
saibais que o menino está belo, grande e muito bem alimentado.
E o rei perguntou-lhe:
— E eu vos verei ainda?
— Sim, ainda uma vez.
226
79
Desse modo despediram-se Merlim e o rei. O rei reuniu os seus homens e
disse que iria contra seus inimigos. E foi e fez-se carregar numa maca, e os
encontrou e foi contra eles e os combateu. E os guerreiros do rei, pelo conforto de
saber que contavam com seu senhor, derrotaram os inimigos e mataram a muitos. O
rei teve a vitória desta batalha e destruiu seus inimigos e recolocou seu reino todo
em paz. Lembrou-se do que Merlim lhe havia dito e voltou para Logres. De volta,
mandou buscar seus bens e seus tesouros e mandou homens e mulheres de
confiança reunir os pobres de seu reino e deu-lhes muito grandes esmolas e o
restante distribuiu de acordo com o conselho e a vontade dos ministros da santa
Igreja e de seus confessores. Assim fez e distribuiu seus bens, de modo que
nenhum bem lhe sobrou, de que se lembrasse, que não tivesse distribuído por amor
de Deus e pelo conselho de Merlim. Humilhou-se muito perante Deus e tão
docemente em relação a seus ministros, que toda a gente ficou tocada de piedade.
Por muito tempo o assistiram doente e, logo que sua doença piorou, reuniu-se o
povo em Logres, com muita pena de que pudesse vir a morrer, mas via-se que a
morte era inevitável. Estava tão doente e tão fraco, que perdeu a voz e não pôde
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falar durante três dias. Então Merlim, que tudo sabia, veio à cidade. Assim que
chegou, os homens bons da terra levaram-no diante do rei e disseram-lhe:
— Merlim, o rei que tanto amais está morto. Merlim respondeu:
— Não estais falando a verdade. Ninguém que tenha um bom fim como
ele morre; mas ele de fato não está morto.
— Está, pois há três dias que não fala.
— Falará, se Deus quiser, e vinde ver que vou fazê-lo falar.
— Isso seria uma grande maravilha!
— Então vinde.
E foram até onde o rei jazia e mandaram abrir todas as janelas. E o rei
olhou para Merlim, mas pareceu que não o reconheceu. Merlim falou aos barões que
ali estavam e aos prelados da santa Igreja que agora queria ouvir a última palavra
que o rei diria. E eles perguntaram:
— Como imaginais fazê-lo falar?
— Vós o vereis.
Então foi do outro lado da cabeceira e confidenciou-lhe muito baixo ao
ouvido:
— Agistes muito bem no fim, se vossa consciência é tal como a
aparência, e digo-vos que vosso filho Artur assumirá o reino depois de vós e, pela
virtude de Jesus Cristo, será o realizador da távola que fundastes.
Quando ele ouviu isto, virou-se para ele e disse:
— Por Deus, pedi-lhe que rogue a Jesus Cristo por mim.
E Merlim disse aos presentes:
— Agora ouvistes o que imagináveis não ser possível. Sabei que esta foi
sua última palavra. Não falará mais.
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Então levantou-se Merlim e todos os que essa maravilha viram, mas não
houve ninguém que pudesse saber o que teria dito a Merlim. Desse modo finou o rei
naquela noite e os barões e os bispos e arcebispos prestaram-lhe grande honra e o
mais belo serviço que puderam. Assim morreu Uterpendragão e o reino ficou sem
herdeiro.
229
80
No dia seguinte ao enterro do rei, reuniram-se os barões e todos os
ministros da santa Igreja no paço real e discutiram em conselho como o reino seria
governado, mas não conseguiram chegar a nenhum acordo. Então decidiram, por
unanimidade, que se aconselhariam com Merlim que era muito sábio e de bom
conselho, como nunca haviam ouvido falar de quem quer que fosse. Estando todos
de acordo, mandaram procurá-lo e, quando ele chegou, disseram-lhe:
— Merlim, sabemos bem que sois muito sábio, que sempre amastes o rei
desta terra. Vedes claramente que a terra ficou sem herdeiro e sabeis que terra sem
senhor não resiste por muito tempo. Por isso vos pedimos e rogamos, diante de
Deus, que nos ajudeis a eleger um homem tal que possa governar para a honra da
santa Igreja e para a salvação de seu povo.
— Não sou eu — disse Merlim — quem tão alto conselho deva dar de
eleger rei ou governo. Mas, se concordardes com meu parecer, eu o direi; se não
concordardes, nada falarei.
— Para o bem, para o proveito e para a salvação do reino, Deus nos
ajude, haveremos de concordar.
230
— Amo muito este reino e todas as pessoas que aqui estão. E, se vos
dissesse que fizésseis de um de vós rei, confiareis em mim e com razão. Mas muito
bela aventura vos adveio, se a quiserdes conhecer e confiar nela. O rei morreu no
quinto dia da festa de São Martinho, e daqui para o Natal não demora nada. Se
quereis confiar em meu conselho, eu o darei bom e leal, segundo as leis de Deus e
as leis deste mundo.
— Confiaremos! — disseram todos.
— Sabeis que está chegando a testa em que o rei dos reis, o senhor de
todas as coisas e o dispenseiro de todos os bens nasceu. Eu me comprometo
convosco, desde que consigais o acordo das pessoas deste reino — e cada um
deles tem bem necessidade de um mestre —, que Ele, que na sua bondade e na
sua humildade, dignou-se fazer homem nessa festa de Natal, e nascer no mundo,
Ele, o rei do universo, escolha para nós um rei que lhe agrade e que faça como Ele
deseja. Que nos dê naquele dia um sinal claro de sua vontade, de modo que o povo
saiba bem que o novo rei será eleito por Deus e não pelos homens. Eu vos afirmo
que, se conseguirdes o acordo, vereis o sinal.
Eles responderam:
— Merlim, este é o melhor conselho e o mais leal que ninguém, salvo
Deus, poderia dar.
Então perguntaram-se uns aos outros: "Estais de acordo com este
conselho?" E respondiam: "Não há na terra quem tema a Deus que não deva
concordar." Os barões da terra pediram todos juntos aos arcebispos e aos bispos
que junto ao povo fizessem orações e ordenassem aos padres que conseguissem
que o povo cumprisse os mandamentos da santa Igreja e obedecessem às
manifestações divinas.
231
81
Desse modo puseram-se todos de acordo com o conselho de Merlim.
Merlim despediu-se deles e eles pediram que, se fosse do seu agrado, voltasse no
Natal para ver naquela festa se o que ele havia dito de fato aconteceria. E ele
respondeu:
— Não estarei aqui e não me vereis, senão depois da eleição.
E Merlim partiu ao encontro de Brás e contou-lhe essas coisas e o que ele
sabia que estava para acontecer e, porque ele o disse a Brás, nós hoje sabemos o
que sabemos.
Os homens bons do reino e os ministros da santa Igreja fizeram saber por
toda a terra que todos os homens bons do reino deveriam ir a Logres pelo Natal para
ver a eleição. Foi tudo feito e sabido e esperaram então o Natal. E Antor que criou o
menino, tão bem o havia alimentado, que já estava grande com dezesseis anos. Ele
o havia tão lealmente cuidado que não tinha sido amamentado senão com o leite de
sua mulher, enquanto o filho havia sido amamentado com ama de leite. Antor não
sabia agora de quem gostava mais, se do filho verdadeiro, se desse menino a quem
ele nunca havia chamado senão de filho, tanto que o jovem imaginava que, de fato,
era ele seu pai. Na festa de Todos os Santos, antes do Natal, Antor armou cavaleiro
232
seu filho Quéia e no Natal foi a Logres, assim como os senhores da terra, e levou os
dois com ele. Na véspera do Natal, reuniram-se todos os altos homens do reino e
todos os barões c todos aqueles que algum poder tinham no reino e fizeram muito
bem e mandaram fazer tudo o que Merlim lhes havia ordenado. Desde que haviam
chegado mantiveram-se muito simples e muito honestos e esperavam a véspera da
festa.
233
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Na véspera da festa, como deviam fazer, foram à missa da meia-noite e
fizeram suas orações e suas preces a Nosso Senhor para que lhes desse um
homem, cujo reinado tosse favorável à conservação da cristandade. Depois foram à
primeira missa da aurora. Terminada esta, alguns saíram, mas outros ficaram na
igreja. Assim esperaram a missa do dia. Muitos homens diziam que eram loucos
aqueles que imaginavam e confiavam que Nosso Senhor fosse cuidar da eleição do
rei. Estando estes a falar assim, tocou o sino para a missa do dia e todos voltaram à
igreja. Quando todos estavam reunidos, um dos mais santos prelados da Igreja que
se dispunha a cantar a missa, antes de começar, falou ao povo:
— Senhores, estais aqui reunidos e deveis estar para três benefícios e
eu vos direi quais são: a salvação de vossas almas, a honra de vossas vidas e para
esperar o milagre que Nosso Senhor fará, se for do seu agrado, para nos dar um rei
e chefe para manter, guardar e defender a santa Igreja e defender este reino e todo
o seu povo. Estamos felizes e atentos para eleger um de vós, mas não temos tanta
sabedoria para saber qual de vós seria o melhor. Como não sabemos eleger,
pedimos ao rei Deus, Jesus Cristo nosso salvador, que faça uma revelação neste
234
dia, tão verdadeiramente como ele nasceu neste dia. Reze cada um como melhor
souber o Pai Nosso.
Todos fizeram como o prelado aconselhou e ele foi cantar a missa.
Cantou-a até o Evangelho e, quando chegou o Ofertório, alguns estavam reunidos
diante da igreja que dava para uma grande praça.
235
83
O dia estava claro. Perceberam então, diante da igreja, bem na frente do
pórtico, um bloco de pedra quadrado que ninguém soube dizer de que pedra era,
mas diziam que era mármore. No meio estava metida uma bigorna de ferro que linha
bem um meio pé de altura e nesta bigorna estava enfiada uma espada. Quando os
que iam saindo da igreja viram aquilo, ficaram muito maravilhados e voltaram a
contar o que haviam visto. Assim que o celebrante, que era o arcebispo de Logres,
soube da notícia, pegou água benta e todos os relicários que havia na igreja e
dirigiu-se para a pedra acompanhado por todos os outros clérigos. Observaram e
viram a espada, invocaram Nosso Senhor, como acharam que deviam fazê-lo e, não
sabendo mais o que fazer, aspergiram com água benta. Então abaixou-se o
arcebispo e viu o letreiro gravado em letras de ouro no aço. Leu e dizia que aquele a
quem viesse a pertencer a espada — e seria quem a tirasse dali — haveria de ser o
rei da terra, pela escolha de Jesus Cristo. Depois que leu o letreiro de um lado e de
outro, contou ao povo. Então escolheram dez homens, cinco clérigos e cinco leigos,
para montarem guarda da pedra com a espada. Todos diziam que Jesus Cristo lhes
havia dado um sinal muito claro e voltaram à igreja para a missa do dia e para
236
agradecer a Nosso Senhor e cantaram um Te Deum laudamus. Chegando ao
altar, o arcebispo virou-se para o povo e disse:
— Senhores, agora podeis saber, ver e compreender que entre nós há
alguém bom, porque, por nossas orações, Nosso Senhor fez sua revelação. E eu
vos peço, exijo e ordeno que, pelas virtudes que Nosso Senhor estabeleceu nesta
terra e não pela riqueza ou pela vaidade terrena, ninguém ouse ir contra a eleição,
porque Nosso Senhor, que tanto benefício já nos propiciou, mostrará ainda sua
vontade e seu prazer.
Então cantou a missa. Depois reuniram-se todos diante da pedra e
perguntavam-se uns aos outros quem tentaria primeiro tirar a espada. Mas logo
concordaram que ninguém tentaria, salvo se aconselhado pelos ministros da santa
Igreja.
237
84
Mas houve muita discordância em relação a essa opinião, porque os altos
senhores ricos e poderosos queriam todos tentar primeiro. Houve pois muitas
discussões que não devem ser aqui relatadas. O arcebispo falou bem alto para que
todos o ouvissem:
— Não sois tão sábios, nem tão nobres, nem tão prudentes como eu
desejaria. Quero muito que saibam todos que Nosso Senhor que tudo vê e conhece
já tem seu eleito, mas não sabemos quem é. Posso dizer-vos que riqueza, vaidade,
orgulho não contam, mas apenas verdadeiramente a vontade de Nosso Senhor. E
eu confio que, se aquele que esta espada deve tirar ainda está para nascer, ela não
será tirada antes que ele nasça e ele mesmo venha tirá-la.
Concordaram todos que aquilo que ele falara era verdade. E os ricos-
homens leigos e os barões da terra reuniram-se em conselho e voltaram atrás,
disseram que se acomodariam à vontade do arcebispo e o declararam na presença
de todos. O arcebispo, ouvindo isto, ficou muito alegre, chorou de emoção e disse:
— Toda esta humildade que aqui manifestais veio ao vosso coração da
parte de Deus e quero que saibais que me conformarei em tudo à vontade de Jesus
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Cristo e em benefício da cristandade, se Deus quiser, e por isso não serei
censurado.
Essa discussão se desenvolvia antes da missa solene e o arcebispo deu
um prazo até que a missa solene fosse cantada. Nessa missa, ele chamou a
atenção dos fiéis e mostrou o belo milagre que Nosso Senhor havia leito. E disse:
— Quando Nosso Senhor instituiu a justiça neste mundo, ele a
manifestou, com efeito, pela espada, com que investiu a cavalaria, quando foram
criadas as três ordens. E isto foi feito para que ela defendesse a santa Igreja e
impusesse a justiça. Ora, hoje Nosso Senhor recorreu novamente à espada para
esta eleição. Sabei bem que ele já tem tudo pesado e já decidiu a quem vai entregar
este poder de justiça. Que os altos senhores não se precipitem então em submeter-
se à prova. A espada não pode e não deve ser tirada sob o signo da grandeza ou do
orgulho. Mas que os pobres não se irritem, se os ricos e poderosos tentarem
primeiro, porque esta ordem é razoável e legítima. Os mais altos senhores do mundo
devem então tentar primeiro.
Todos concordaram, sem mágoa, com que o arcebispo fizesse
experimentar aqueles que ele quisesse. Juraram que obedeceriam e teriam por
senhor aquele a quem Deus desse tal graça.
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85
Então voltaram à pedra e o arcebispo escolheu duzentos e cinqüenta dos
mais altos homens para que tentassem. Depois autorizou que os outros também
tentassem. E todos os que quiseram experimentar experimentaram, um depois do
outro, mas não houve um que conseguisse mover a espada ou tirá-la. Então
puseram os dez homens a guardá-la e foi-lhes dito que deixassem experimentar
quantos o quisessem, mas que prestassem bem atenção para ver quem a tiraria.
Assim ficou lá a espada até a Circuncisão. No dia da Circuncisão foram todos os
barões à missa e o arcebispo fez um sermão e os instruiu o melhor que pôde. E
disse-lhes:
— Eu havia dito que todos poderiam vir, mesmo de muito longe, tentar
tirar a espada. Agora podeis acreditar que verdadeiramente só a tirará quem Nosso
Senhor tiver escolhido.
E eles disseram que não se afastariam da cidade, enquanto não vissem
aquele a quem Nosso Senhor queria dar aquela graça. Assim foi cantada a missa e
depois cada um foi comer em sua hospedagem. Depois que comeram, como
costumavam fazer naquele tempo, foram fazer um torneio fora da cidade, num
campo. A maior parte do povo os acompanhou para assistir ao espetáculo; também
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foram os dez que guardavam a espada da pedra. Depois que os cavaleiros tinham
feito o torneio por muito tempo, passaram os escudos a seus escudeiros que
assumiram seus lugares. E o torneio derivou logo numa batalha campal a que todos
acorreram, tanto armados, como desarmados. Antor havia feito seu filho Quéia
cavaleiro na festa de Todos os Santos. Quéia, ao ver que a confusão estava
começada, chamou seu irmão e disse-lhe:
— Vai buscar uma espada em nossa hospedagem. E ele foi depressa e
com muita boa vontade. Esporeou o cavalo e dirigiu-se à hospedagem. Procurou a
espada de seu irmão ou uma outra, mas não pôde encontrar, porque a dona
da hospedagem as havia guardado em sua câmara e ela havia ido ver o torneio
como toda a gente. Ao ver que não podia levar nenhuma, chorou e ficou muito
magoado. Ao voltar, passou diante da igreja, na praça, onde estava a pedra e viu a
espada que ele nunca havia tentado tirar. E pensou que, se pudesse, a levaria para
seu irmão. Aproximou-se então a cavalo. Pegou-a pelo punho, puxou-a e escondeu-
a em baixo do pano de sua cota. Seu irmão que o esperava fora do torneio, ao vê-lo
chegar, correu para ele e perguntou-lhe de sua espada. Ele respondeu que não a
havia encontrado, mas trazia uma outra. Tirou-a então debaixo do pano e mostrou-a.
O irmão perguntou-lhe onde a havia pego e ele disse que era a espada da pedra.
Quéia pegou-a, escondeu debaixo de sua túnica e foi procurar seu pai até encontrar.
241
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Quando o encontrou, disse-lhe:
— Senhor, eu serei o rei, aqui está a espada da pedra.
Ao ouvir isso, o pai maravilhou-se e perguntou-lhe como a havia
conseguido e ele disse que havia tirado da pedra. Antor ouviu e não acreditou e
disse que ele estava mentindo. Voltaram os dois para a igreja acompanhados de
Artur. Quando chegaram à pedra de que a espada havia sido tirada, Antor disse:
— Quéia, não mente. Dize-me como conseguiste esta espada, porque,
se mentires, saberei que não te amarei nunca mais.
Ele respondeu como quem estava tomado de imensa vergonha:
— Pai, não mentirei nunca para vós. Foi Artur, meu irmão, que a levou
para mim, quando lhe pedi que viesse buscar a minha, mas não sei como a
conseguiu.
— Dá-me esta espada aqui — disse Antor —, porque não tens nenhum
direito a ela.
E ele entregou-a e quando o pai a pegou, viu que chegava Artur que os
havia seguido. Então chamou-o:
242
— Filho, dize-me como conseguiste esta espada. E ele contou. O pai foi
muito sábio e disse-lhe:
— Pega esta espada e coloca-a lá onde a tiraste.
Ele pegou e colocou-a novamente na bigorna e ela ficou como estava
antes. Antor então ordenou a Quéia que tentasse tirá-la. Ele tentou, mas não
conseguiu. Antor então dirigiu-se à igreja, chamou os dois filhos e disse a Quéia:
— Filho, eu sabia que não tiraríeis a espada.
Em seguida, apertou Artur entre seus braços e disse:
— Filho, se eu conseguisse que viesses a ser rei, que proveito teria?
— Senhor, não posso ter este nem nenhum outro bem de que não
venhais a ser senhor, como meu pai.
— Filho, teu pai sei que sou, mas só de nutrição, não sei quem te gerou.
Artur, ao ouvir que aquele que ele imaginava ser seu pai não o era, ficou
muito magoado e disse:
— Senhor Deus, que outro bem posso ter, já que não tenho pai?
Antor então disse:
— Senhor, não é que não tens pai. Seria impossível. É claro que tens,
mas eu não sei quem é. Mas se Nosso Senhor te deu esta graça, e eu te ajudar a
consegui-la, dize-me, que benefício terei?
— Senhor, aquilo que quiserdes.
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Então contou-lhe Antor tudo de bom que lhe havia feito, corno o havia
alimentado, como havia feito seu filho ser amamentado por ama de leite, para que
sua mulher o amamentasse e concluiu:
— Por estas razões deveis a mim e a meu filho gratidão, porque nunca
alguém foi tão cuidadosamente criado como cuidei eu de ti. Se vieres a ganhar essa
graça e eu puder ajudar-te a consegui-la, peço-te que faças alguma coisa por mim e
por meu filho. Artur respondeu:
— Senhor, peço-vos que me considereis ainda vosso filho; de outro
modo, não saberia onde ir. E se podeis ajudar-me a conseguir essa graça e tal é a
vontade de Deus, não sabereis pedir-me algo que eu não faça.
— Não te pedirei terra, mas tão-somente que, quando fores rei, faças de
Quéia, leu irmão, o senescal de teu reino, sem nomear nunca outro para este cargo,
enquanto ele viver, sejam quais forem os erros que possa cometer. Deveras aceitar
que ele seja cruel, pérfido e difícil de trato, porque todos estes defeitos vieram da
ama de leite que o amamentou e foi por ter sido necessário alimentar-te que ele
perdeu sua verdadeira natureza. Por isso peco-te que o suportes e lhe dês o que te
peço.
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— Senhor — disse Artur —, aceito de bom grado. Então levou-os ao altar
e Artur jurou cumprir sua promessa. Depois do juramento, saíram da igreja. A
batalha havia terminado e os senhores voltavam para as vésperas. Antor chamou
seus amigos e os de sua linhagem e disse ao arcebispo:
— Senhor, aqui está um filho meu que ainda não é cavaleiro. Peço-vos
que o faça tentar tirar a espada. Peço-vos, por favor, que chameis alguns destes
senhores para presenciarem.
O arcebispo fez isso. Então reuniram-se todos em torno da pedra.
Estando assim reunidos, Antor pediu a Artur que tirasse a espada e a entregasse ao
arcebispo. E ele o fez. Quando o arcebispo a segurou, entoou Te Deum laudamus. E
levaram-no à igreja. Os barões ficaram muito magoados com o fato e diziam que um
jovem não poderia ser senhor deles. O arcebispo, ao saber disso, irritou-se e disse:
— Nosso Senhor sabe melhor do que vós a origem de qualquer um de
nós.
Antor, todos os da sua linhagem e grande parte das pessoas que estavam
na igreja eram do lado de Artur, mas os barões da terra eram contra. Então o
arcebispo muito ousadamente disse:
— Senhores, ainda que todos quisessem se opor a esta eleição e Nosso
Senhor fosse o único a querê-la, ela aconteceria. Vou dar-vos uma prova de minha
confiança em Nosso Senhor. Artur, vai à pedra e põe de volta a espada onde a
tiraste.
Ele foi e pôs a espada, na presença de todos. Então disse o arcebispo:
— Nunca houve mais bela eleição! Agora, nobres senhores, ide tentar
tirar a espada.
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Eles foram tentar, um depois do outro, e não houve um que a pudesse
tirar.
— Muito louco é quem quer ir contra as obras de Jesus Cristo.
— Senhor — disseram —, não nos opomos à vontade de Deus, mas
estamos surpresos de ver um jovem tornar-se senhor nosso.
— Quem o escolheu o conhece melhor que nós.
Os barões pediram ao arcebispo que deixasse a espada lá até a festa da
Candelária, porque assim poderiam ainda tentar aqueles que não o haviam feito. O
arcebispo, para satisfazê-los, concordou.
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Assim ficou lá a espada até a candelária. Então reuniram-se todos; e
quantos quiseram experimentar tirar a espada experimentaram. E depois que todos
os que quiseram experimentar haviam experimentado, disse o arcebispo:
— Saibam agora todos que veremos a vontade de Jesus Cristo. Artur —
dirigiu-se então a ele —, vai tirá-la. Se a Nosso Senhor aprouver que sejas o chefe
deste povo, traze para mim essa espada.
Ele foi, tirou-a e entregou-a ao arcebispo. Os presentes choraram de
alegria e de emoção e perguntaram:
— Há ainda alguém que pretenda ser contra esta eleição?
Os ricos-homens responderam:
— Senhor, pedimos ainda que deixeis a espada até a Páscoa. Se então
ninguém a tiver conseguido tirar, obedeceremos, por tua palavra, a este jovem. E se
quiserdes fazer diferente, cada um de nós se vê no direito de fazer o que melhor lhe
parecer.
— Havereis todos de obedecer a ele, de boa vontade e de bom coração,
se marcarmos a Páscoa para sagrá-lo rei?
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Responderam todos que sim e de muito boa vontade; e que ele fizesse do
reino e da terra segundo sua vontade e seu prazer. Então disse o arcebispo:
— Artur, põe novamente a espada na bigorna. Se tal é a vontade de
Deus, conseguirás facilmente o que ele te prometeu.
Ele foi, repôs a espada em seu lugar. Depois que a colocou, fizeram-na
cobrir e ela ficou lá como estava antes. E até a Páscoa continuaram experimentando
tirá-la, mas nunca houve quem o conseguisse. E o arcebispo que havia tomado o
menino sob sua guarda disse:
— Senhor, sabes firmemente que serás rei deste povo. Pensa e cuida em
teu coração de seres prudente. Pensa desde já em colher aqueles que serão teus
conselheiros íntimos e te ajudarão a governar. Distribui os cargos e os ofícios de tua
corte como seja fosses rei, porque sem falha o serás, se Deus quiser. E Artur
respondeu:
— Senhor, todo o poder que Deus quer me conferir, eu o deposito sob a
guarda da santa Igreja e o submeto a vossos conselhos. Escolhei pois vós aqueles
que podem melhor ajudar-me a seguir a vontade de Nosso Senhor e a defender a
cristandade e chamai para perto de mim Antor, meu senhor, eu vos peço.
O arcebispo chamou Antor e contou-lhe as boas palavras que Artur lhe
havia dito. Escolheram então os conselheiros que quiseram e o arcebispo fez Quéia
senescal da terra. Quanto aos outros ofícios e aos outros cargos, esperaram até a
Páscoa.
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Quando chegou a Páscoa, reuniram-se novamente todos os barões de
Logres e, estando todos reunidos na véspera da festa, o arcebispo convocou-os em
seu palácio para deliberar e explicou-lhes que a vontade de Jesus Cristo era que
aquele menino se tornasse rei. Contou-lhes também as qualidades que nele havia
descoberto, desde que o conhecera.
— Senhor — disseram os barões —, não podemos mais ir contra a
vontade de Nosso Senhor, mas o que nos parece muito grande maravilha é que um
menino de origem tão humilde seja nosso rei.
— Não serieis bons cristãos, se insistísseis em vos opor — disse o
arcebispo.
— Senhor, não faremos nada contra, mas atendei ainda alguma de
nossas vontades. Vistes e conhecestes a sabedoria desse menino em diversas
coisas. Nós porém não o conhecemos e não tivemos oportunidade de testá-lo e
sabemos muito pouco a seu respeito. Pedimos então que, antes de coroá-lo, nos
deixasse ver que tipo de homem será. Se tivermos oportunidade de observá-lo,
certamente haverá alguém entre nós que seja capaz de julgar o que ele poderá vir a
ser.
249
— Quereis então adiar a coroação?
— Senhor, não queremos adiar a eleição, mas queremos que seja
amanhã. E, se houver a eleição, queremos que ele e vós adieis a coroação para
Pentecostes. Estaremos desde logo com ele e o acataremos como senhor e
submeteremos nossas forças a ele. Que sua coroação seja na festa de Pentecostes,
isso vos pedimos que ele aceite.
— Não há de ser por isso — disse o arcebispo — que perderemos vossa
amizade.
Foi assim que terminou a discussão. No dia seguinte, depois da missa,
conduziram Artur à eleição. Ele tirou novamente a espada. Então pegaram-no em
seus braços e o levantaram e o reconheceram por seu senhor. Pediram-lhe que
recolocasse a espada e falasse com eles. Ele disse que de boa vontade o faria, bem
como as outras coisas que pedissem. Recolocou a espada e eles o conduziram à
igreja para falar-lhe e para experimentá-lo. Disseram-lhe então:
— Senhor, vimos claramente e sabemos que Nosso Senhor quer que
sejais nosso rei; nós também o queremos. Nós vos reconhecemos como senhor e
vos prestaremos a homenagem por nossas terras. Pedimos porem que adieis vossa
coroação até Pentecostes, sem por isso renunciar a vosso poder sobre este reino e
sobre nós mesmos. Queremos que respondais a respeito dessa questão sem ouvir
qualquer conselho.
E Artur respondeu-lhes:
— Senhores, vós estais me pedindo que receba vossa homenagem e vos
reconduza à posse de vossos feudos. Ora, não posso nem devo fazê-lo, porque não
quero dispor de vossas terras ou de qualquer outra de quem quer que seja, nem
quero governar, antes que esteja eu mesmo de posse das minhas. Não posso ser o
250
senhor deste reino, como me propondes, antes de ter sido sagrado, coroado e
investido da dignidade real. Mas aceito, de boa vontade, adiar a sagração até a data
que propondes, porque não quero ser sagrado, senão por Deus e por vós.
Então disseram os barões entre si:
— Se este menino viver, será muito sábio e muito prudente, porque nos
respondeu muito bem.
E a Artur disseram:
— Senhor, parece-nos melhor que sejais sagrado e coroado na festa de
Pentecostes.
E ele disse que concordava com o que queriam.
251
90
Marcaram o prazo até Pentecostes e até lá obedeceram a Artur, em
confiança ao arcebispo. Fizeram trazer belos presentes, jóias e tudo o que
imaginavam que pudesse experimentá-lo para ver se era sensível a este tipo de
aproximação. Ele perguntava aos íntimos a qualidade de cada pessoa e, de acordo
com a resposta, dispunha dos bens. Ao receber os bens, distribuía-os do modo
como o livro nos conta: aos bons cavaleiros dava os cavalos; às pessoas felizes e de
boa vida que estavam enamoradas dava as jóias; aos avarentos dava dinheiro, ouro
e prata e aos prudentes e sábios e generosos assegurava sua companhia,
mandando trazerem para eles o que mais os agradasse e lhes dava. Desse modo
distribuía os presentes que lhe davam aqueles que queriam testá-lo para ver como
era. Quando viram que assim se comportava, não houve quem não reconhecesse
que seria muito digno e que não viam nele nada errado, porque tão logo recebia um
presente imediatamente o empregava bem distribuindo a cada um segundo o que
era a pessoa. Desse modo testaram Artur e nunca encontraram o menor erro e
esperaram até que chegasse Pentecostes.
252
91
Reuniram-se então todos os barões em Logres. E quantos ainda
quiseram tentar a prova da espada tentaram-na, e ninguém conseguiu nada. O
arcebispo estava com a coroa pronta para a sagração. Véspera de Pentecostes,
antes da hora de vésperas, por comum conselho e com anuência de todos os
barões, o arcebispo armou Artur cavaleiro e aquela noite fez Artur a vigília na
catedral até o dia seguinte. Ao clarear o dia, os barões foram convocados e
reuniram-se na catedral e o arcebispo falou a eles e disse-lhes:
— Aqui está o homem que Nosso Senhor escolheu por tal eleição como
vindes acompanhando desde o Natal até hoje. Aqui estão as vestimentas reais e a
coroa trazidas à unanimidade do conselho e com vosso acordo. Quero de vossa
boca ouvir: se houver alguém que seja contra esta eleição, que o diga.
Eles responderam todos em voz alta:
— Nós estamos de acordo e queremos, em nome de Deus, que ele seja
sagrado rei e, se porventura tiver ele algum ressentimento contra algum de nós por
ter sido contra sua eleição e sagração até hoje, queremos que ele perdoe
publicamente.
253
Imediatamente caíram de joelhos e todos juntos imploraram perdão. Artur
chorou de emoção, ajoelhou-se e disse o mais alto que pôde:
— Perdôo-vos lealmente e peço ao Senhor que tal honra me deu que vos
perdoe igualmente.
Então levantaram-se e os mais altos homens tomaram Artur nos braços,
levaram-no onde estavam as vestimentas reais e vestiram-no. Uma vez vestido, o
arcebispo, já pronto para a missa cantada, disse:
— Artur, ide buscar a espada da justiça com que deveis defender a santa
Igreja e salvar a cristandade por todos os meios que estiverem a vosso alcance.
Então formou-se uma procissão até a pedra. Lá o arcebispo pediu a Artur
que, se quisesse jurar e prometer, diante de Deus e da santa Igreja, de todos os
santos e de todas as santas, salvar e manter a santa Igreja, assegurar a paz para
todos os homens pobres e todas a mulheres pobres; manter-se leal à terra;
aconselhar os desencaminhados; fazer o bem a todos os infelizes e garantir todos os
direitos, a lealdade e a justiça, que fosse à frente e trouxesse a espada com que
Nosso Senhor o havia eleito. Artur chorou com muita emoção e disse:
— Assim como Deus é senhor de todas as coisas, que ele me dê força e
poder para manter o que dissestes e eu ouvi, tão verdadeiramente corno a boa
vontade que tenho.
Pôs-se de joelhos, pegou a espada com ambas as mãos e tirou-a da
bigorna como se não estivesse presa a nada. Segurou a espada em suas mãos,
levou-a até o altar, onde a depôs. Em seguida, foi sagrado rei, ungiram-no e fizeram
todas as coisas que devem ser feitas a um rei. Depois que foi sagrado rei, foi
cantada a missa e saíram da igreja e, ao saírem, não souberam o que teria
acontecido com a pedra. Assim foi Artur eleito e sagrado rei do reino de Logres e foi
254
feito senhor da terra e do reino. E eu Robert de Boron que este livro escrevi, por
ensinamento do Livro do Graal, não devo mais falar de Artur, enquanto não tiver
falado de Alan, o filho de Bron e não tiver revelado por que razões e por que causas
começaram as aventuras na Bretanha. Assim como o livro conta, convém que eu
revele quem foi ele, que vida levou e que herdeiros dele saíram e o que fizeram eles.
E depois, quando for a época e tiver falado dele, voltarei a falar de Artur, de seus
feitos, de sua vida, de sua eleição e de sua sagração.
255
Apêndice
Possível fim do Merlim, segundo o manuscrito de
Módena11
... e manteve a terra e o reino de Logres por muito tempo em paz. Depois
que Artur foi feito rei e a missa foi cantada, foi para seu palácio com todos os barões
que o tinham visto tirar a espada da pedra. Depois desta eleição, chegou Merlim à
corte. E quando os barões o viram — aqueles que o conheciam — ficaram muito
alegres. Merlim dirigiu-se a eles e disse-lhes:
— Senhores, ouvi o que vos direi. Quero que saibais que Artur que hoje
recebestes como rei é filho de Uterpendragão, vosso legítimo senhor, e da rainha
Igerne. Quando ele nasceu, o rei ordenou que me fosse entregue. Assim que o
recebi, levei-o a Antor, porque sabia que era um homem sábio. E ele o criou com
muita boa vontade, pelos benefícios que lhe disse que receberia. E assim como lhe
disse, ele de fato recebeu, visto que seu filho Quéia é hoje senescal.
Interveio o rei e disse:
— De fato é meu senescal e, enquanto eu viver, não deixará de sê-lo.
Com esta palavra, foi muito grande a alegria e os barões ficaram alegres,
ate Galvão que era filho da irmã do rei e do rei Lote.
Em seguida, o rei ordenou que as mesas fossem postas. Assim foi feito e
sentaram-se todos para comer, foram ricamente servidos e tiveram tudo que
11 Estas passagens foram traduzidas da edição crítica do Merlim por Alexandre Micha (Cenève: Librairie Droz, 1980).
256
quiseram pedir. Depois que comeram, os servos retiraram as mesas, os barões
levantaram-se e foram ao rei — aqueles que conheciam Merlim e haviam servido a
Uterpendragão — e disseram:
— Senhor, honrai muito a Merlim, porque foi o bom mago de vosso pai e
sempre amou vossa linhagem, predisse a morte de Vortigerne e mandou fazer a
távola redonda. Cuidai que ele seja muito honrado, porque não lhe perguntareis
nada que ele não vos responda.
E Artur respondeu-lhes:
— Assim será.
Então chamou Merlim, sentou-se perto dele e demonstrou muito grande
alegria por sua vinda. E Merlim disse-lhe:
— Senhor, gostaria de falar-vos muito à vontade e reservadamente, em
companhia apenas de dois barões em quem mais confiais.
— Merlim — disse o rei —, farei qualquer coisa que me aconselhardes,
desde que não seja contra a vontade de Nosso Senhor.
Então chamou Quéia, o senescal, a quem durante muito tempo havia
considerado seu irmão e Galvão, o filho do rei da Orcânia, que era seu sobrinho.
Estando os quatro reunidos reservadamente, disse Merlim:
— Artur, sois rei, graças a Deus, e Uterpendragão, vosso pai, foi homem
muito sábio; ele fez a mesa redonda em seu tempo. Ela foi feita em lembrança
daquela em que Nosso Senhor sentou-se na quinta-feira e disse que Judas o trairia
e foi feita em semelhança daquela mesa que José fez para o Graal, quando ele
separou os bons dos maus. Quero que saibais que houve dois reis na Bretanha
antes de vós que foram rei da França e imperador de Roma e quero que saibais que
na Bretanha haverá ainda um terceiro rei que será rei e imperador e conquistará os
257
romanos. E eu vos digo, pelo poder que tenho de saber as coisas que estão por
acontecer, porque esse poder recebi de Nosso Senhor, duzentos anos antes que
nascêsseis, já fostes profetizado e a vossa sorte estava lançada. Mas vos convém,
para que sejais sábio e valente, que a mesa redonda seja restabelecida por vós. Isto
bem vos asseguro que imperador não sereis, enquanto a távola redonda não estiver
elevada em dignidade, como vos direi. Aconteceu outrora que o Graal foi entregue a
José, quando ele estava na prisão. Nosso Senhor mesmo o levou. Este José, depois
que saiu da prisão, foi para um deserto com muita gente da Judéia em sua
companhia. Enquanto se mantinham fiéis, recebiam a graça de Nosso Senhor;
quando não, ela lhes faltava. Perguntaram alguns a José se era pelo pecado deles
ou pelo seu que a graça lhes faltava. Ao ouvir isso, José ficou muito magoado, foi
para junto do vaso e pediu a Nosso Senhor que lhe desse uma demonstração do
que poderia estar acontecendo. Então ouviu a voz do Espírito Santo que lhe disse
que fizesse a mesa e ele a fez. Em seguida, colocou sobre ela o vaso e mandou que
se assentassem. Então sentaram-se aqueles que estavam isentos de pecado e os
que tinham pecado saíram, porque não puderam ficar lá. Havia um lugar vazio
naquela mesa, porque a José parecia que ninguém deveria sentar-se no lugar em
que Nosso Senhor havia sentado. Mas um falso discípulo chamado Moisés, que
muitas vezes ensaiara e tentara de diversas maneiras sentar-se, veio a José e
suplicou-lhe, por Deus, que o deixasse preencher o lugar que estava vazio, porque
ele dizia que sentia tanto a graça de Nosso Senhor, que era digno de sentar-se no
lugar vazio. E José disse-lhe:
— Moisés, se não fosses tal como pareces, eu aconselharia que não te
metesses a experimentar.
258
Mas o discípulo respondeu que Deus lhe daria a vitória de preencher o
lugar, porque ele era bom. Então disse José que, se ele era tão bom, que fosse
sentar-se. E Moisés sentou e afundou-se no abismo.
Ora — continuou dizendo Merlim ao rei — , sabei que Nosso Senhor fez a
primeira mesa e José, a segunda e eu, no tempo de Uterpendragão, vosso pai, fiz a
terceira, que muito será exaltada e de que se falará por todo o mundo, pela boa
cavalaria que em vosso tempo haverá. Sabei que o Graal foi entregue a José que,
depois de sua morte, deixou-o para seu cunhado Bron. Bron teve doze filhos. Um
deles chamou-se Alan, o gordo, e ele confiou ao rei Pescador a guarda de seus
irmãos. Este Alan veio com os seus da terra da Judéia, como Nosso Senhor o
ordenou, para estas ilhas do Ocidente e chegaram então a esta região. E o rei
Pescador está nestas ilhas da Irlanda, num dos mais belos lugares do mundo. Sabei
que ele tem a mais grave deficiência que alguém já tenha tido e sofre de uma
doença. Mas isto vos posso claramente dizer que, por velhice e por qualquer doença
que tenha, não pode morrer, enquanto não vier o cavaleiro da távola redonda que
mais fizer de armas e de cavalaria, em torneios e em aventuras e que será o mais
louvado de todo o mundo. E ele, quando chegar, será exaltado e poderá vir à corte
do rico rei Pescador e, quando perguntar para que serviu o Graal e para que serve,
logo será curado. Então dirá as sagradas palavras de Nosso Senhor e passará da
vida à morte. Aquele cavaleiro terá a guarda do sangue de Cristo. Terminarão os
encantamentos da terra da Bretanha e a profecia será cumprida. Sabei que, se
fizerdes do modo como vos ensinei, grandes benefícios vos poderão advir. Convém
agora que eu vá, que não posso mais estar no século, porque não me despedi de
meu salvador.
259
O rei disse que, ainda que ele não pudesse permanecer junto com ele, o
amaria muito. E Merlim disse que, de fato, não poderia demorar-se. Então partiu e foi
para Nortumberlândia para encontrar-se com Brás, que havia sido confessor de sua
mãe e estava metendo por escrito todas as suas obras, aquelas que Merlim contava-
lhe. E Artur ficou com seus barões e pensou muito em tudo que Merlim havia dito.
Sabei que nunca um rei teve tão grande corte e nem lhe foi feita tão grande festa
como a que fizeram para Artur. Nunca também um rei fez-se tanto amar por seus
barões como ele. Ele era mesmo o mais belo homem e o melhor cavaleiro que se
conhecia. Era um rei muito valente e oferecia belos presentes. Era tão famoso, que
não se falava senão dele por todo o mundo, de modo que todos os cavaleiros
vinham a sua corte para vê-lo e para privar dele. Ninguém era armado cavaleiro,
sem antes passar um ano na companhia de Artur e sem receber o penhor de suas
armas, de modo que todo o mundo falasse dele.
* * *
[A frase que segue no manuscrito marca o início do Perceval: "Chegaram então as
notícias de que Alan, o gordo, vivia e pensava em seu coração..."]
260
Possível fim do Merlim segundo o manuscrito Didot
(Fol. 93d) ... e manteve a terra e o reino por muito tempo em paz. Depois
que ele foi coroado e lhe fizeram tudo aquilo a que tinha direito, conduziram-no ao
palácio; Quéia, o senescal, foi junto e foram os outros barões e grande parte
daqueles que lá estavam para ver se ele tiraria novamente a espada. Depois que foi
feita a eleição, como já sabeis, veio Merlim à corte. E quando os barões que haviam
servido a Uterpendragão o viram, ficaram muito alegres e fizeram muita festa para
ele. E Merlim veio à frente de todos e disse:
— Senhores, é de direito que vos faça sabedores de quem é este a quem
fizestes rei pela eleição de Nosso Senhor. Sabei que é filho do rei Uterpendragão,
nosso legítimo senhor. Na mesma noite em que nasceu ele me foi entregue. E eu
encarreguei Antor de criá-lo, porque sabia que era um homem prudente e leal. E
Antor o criou, de muito bom grado, pelos grandes benefícios que lhe disse que
receberia. E assim como lhe disse aconteceu, porque Artur fez o filho de Antor
senescal de sua terra.
E Artur disse:
— É de fato meu senescal e será enquanto eu viver e o teremos por
senescal e senhor de tudo o que tenho.
Essas palavras provocaram muita emoção e grande foi a alegria de todos
os barões da região; mesmo Galvão, que era filho do rei Lote, ficou muito alegre.
Depois disso, o rei mandou servir as mesas e assim foi feito e sentaram-
se todos para comer e cada um teve aquilo que pediu. Depois de comer, levantaram-
se, chamaram o rei e o levaram à parte e disseram-lhe:
261
— Senhor, aqui está Merlim que foi o bom mago de vosso pai que o
amou muito. E Merlim fez a távola redonda em seu tempo e foi ele quem predisse a
morte a Uterpendragão. Agora cuidai que seja muito honrado. Artur respondeu:
— Senhores, assim será.
Então o rei aproximou-se de Merlim, sentou-se ao lado dele e fez muita
festa por sua vinda. Depois de comer, chamou-o e conversou muito à vontade com
ele e muito o honrou à ceia. E Merlim disse-lhe:
— Senhor, gostaria muito de conversar convosco à parte, em companhia
de dois de vossos barões em quem mais confiais.
— Merlim — disse o rei —, com muito gosto e quando quiserdes.
O rei chamou Quéia, o senescal, e Galvão, seu sobrinho. Estando os
quatro juntos, disse Merlim:
— Artur, sois rei, graças a Deus; e Uterpendragão, vosso pai, foi muito
sábio e fez a távola redonda em seu tempo, em lembrança da távola que José fez
para o Graal, quando separou os bons dos maus. Ora, sabei que há dois reis na
Bretanha que foram reis de França e conquistaram Roma e fizeram-se coroar. E
cem anos antes que fósseis coroado rei, profetizaram os profetas vossa vinda. Sabei
que a rainha Sibila profetizou e disse que serieis o terceiro homem que seria rei;
depois o disse Salomão e eu sou o terceiro que o digo. Visto pois que a sorte está
lançada, sede sábio e valente, de modo que a távola redonda seja exaltada por vós.
Sabei que não sereis imperador, enquanto a távola redonda não for exaltada por
vós, como deveis dignificá-la. Aconteceu outrora que o Graal foi entregue a José.
Nosso Senhor mesmo o entregou a ele na prisão. E José, por ordem de Nosso
Senhor, foi a um deserto e levou grande parte de seu povo da terra da Judéia que
obedeceram à sua ordem e ao serviço de Nosso Senhor. Enquanto se conduziam
262
bem, tinham a graça de Nosso Senhor, mas quando faziam algo diferente, ela lhes
faltava. E o cavaleiro que era seu mestre ficou muito magoado e rogou a Nosso
Senhor que lhe desse uma demonstração do que o povo pedia. E Nosso Senhor
ordenou que ele fizesse uma távola no lugar daquela em que se assentavam. E do
modo como Nosso Senhor lhe ordenou ele fez, e sentou-se nela grande parte de
seu povo. Houve mais pessoas que não puderam sentar-se do que pessoas
sentadas e ficou um lugar vazio em lembrança daquele em que Judas se sentara,
quando Nosso Senhor disse que ele o trairia. E Moisés, um falso discípulo que
desejava o lugar, tentou por diversas maneiras sentar-se nele. Veio até José e
pediu-lhe que o deixasse preencher o lugar e disse que sentia tanto a graça de
Nosso Senhor, que era digno de sentar-se no lugar vazio. E José disse-lhe que
confiasse nele e não se sentasse nunca naquele lugar, mas ele disse que, se de fato
ele era bom, que o deixasse sentar-se. E José disse-lhe:
— Sentareis.
Então foi Moisés ao assento e sentou-se. E assim que se assentou,
afundou-se no abismo, do qual não sairá até o tempo do Anticristo. Nosso Senhor
fez a primeira mesa, José fez a segunda e eu, no tempo de Uterpendragão, vosso
pai, fiz a terceira, que será ainda muito exaltada e será falada pela cavalaria que
nela haverá. Sabei que o Graal que foi entregue a José está nesta região e sob a
guarda do rico rei Pescador, a quem José, ao morrer, entregou-o por ordem de
Nosso Senhor. E esse rei Pescador sofre de uma grande enfermidade, porque é um
homem velho e cheio de doenças, e não terá mais saúde enquanto não vier um
cavaleiro à mesa redonda, que será o melhor diante de Deus e da santa Igreja e
tanto fará em armas que será o mais louvado do mundo. Quando ele vier à casa do
rei Pescador, e quando perguntar para que serve o Graal, logo será o rei curado de
263
sua doença e terminarão os encantamentos da Bretanha e a profecia será cumprida.
Sabei que, se fizerdes isto, muitos e grandes benefícios vos advirão. E agora
convém que eu vá, porque não posso ficar muito tempo no convívio de todos.
Mas Artur disse que teria muita satisfação, se ele quisesse ficar.
— Isso não poderia fazer — disse Merlim —, mas ainda voltarei a vos ver.
Desse modo despediu-se do rei e foi para Nortumberlândia encontrar-se
com Brás, seu mestre, e contou-lhe as coisas. Depois que Merlim contou, Brás as
meteu em escrito e, por seu escrito, as sabemos ainda hoje. Artur ficou com seus
barões e pensou muito no que Merlim lhe havia dito. E sabei que nunca um rei teve
tão grande corte como Artur e nunca se fez amar tanto por seus barões como ele.
Ele era um homem belo e era o melhor cavaleiro de sua corte. E porque era tão
valente e de tão agradável companhia e porque falava muito bem e dava muitos e
belos presentes, não houve ninguém no mundo mais famoso do que Artur, de modo
que toda a cavalaria vinha à corte para vê-lo e privar com ele. E ninguém era
investido da cavalaria, se não tivesse ficado na companhia do rico rei Artur, porque
era de tão elevado prestígio e de grandeza tal, que era famoso em todo o mundo.
[A frase que segue no manuscrito pertence certamente a Perceval e
constitui talvez seu início: "Naquele tempo, o filho de Alan, o gordo, de quem já
ouvistes falar anteriormente, era pequeno..."]
264
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268
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