memÓria, tradiÇÃo oral e publicizaÇÃo: manifestaÇÕes ... · nações e promoviam o...

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MEMÓRIA, TRADIÇÃO ORAL E PUBLICIZAÇÃO: MANIFESTAÇÕES CULTURAIS E PATRIMÔNIO IMATERIAL DE CONGADEIROS NO SUL DE MINAS GERAIS Marta Gouveia de Oliveira Rovai Introdução Este artigo tem como finalidade apresentar a pesquisa de pós-doutoramento realizada na Universidade Federal Fluminense (UFF), que tem como objeto de estudo a manifestação cultural e religiosa da Congada ou Congado, em cidades do extremo sul de Minas Gerais. Como professora da Universidade Federal de Alfenas pude constatar a presença de vários grupos ligados à Congada, ao Jongo, à Capoeira, ao Maracatu e à Folia de Reis na região, alguns mais organizados, mas a maioria em processo de enfraquecimento e de desaparecimento. Em Alfenas, o Maracatu de baque virado e o Jongo são manifestações pouco desenvolvidas ou mais recentes, que contam com a participação de jovens universitários e apresentam um caráter singular. A cidade promove um evento, que ainda está em sua segunda edição - o Encontro de Matrizes Africanas - procurando reunir esses e outros grupos de municípios vizinhos, a fim de difundir ritmos e folguedos populares, mais fortes em Machado, Poços de Caldas e Boa Esperança (Congada), e Guaxupé (Folia de Reis). Em um de seus bairros mais pobres e violentos, o Pinheirinho, encontra-se, ainda, uma extensa família ligada à umbanda, que também participa de eventos como esse, muitas vezes promovidos por seus membros, com escassos recursos e falta de apoio público. Nesta comunidade, as mulheres são a maioria, lideram as manifestações e transmitem os elementos religiosos da cultura africana, além de manterem vínculos com os grupos de Congada nos municípios ao redor. As religiões afro-brasileiras - no caso de Alfenas, a umbanda - estão estreitamente relacionadas à Congada na região sul. Suas práticas e saberes justificam alguns dos códigos, da hierarquia e dos rituais próprios da manifestação, a ascensão de

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MEMÓRIA, TRADIÇÃO ORAL E PUBLICIZAÇÃO: MANIFESTAÇÕES

CULTURAIS E PATRIMÔNIO IMATERIAL DE CONGADEIROS NO SUL DE

MINAS GERAIS

Marta Gouveia de Oliveira Rovai

Introdução

Este artigo tem como finalidade apresentar a pesquisa de pós-doutoramento

realizada na Universidade Federal Fluminense (UFF), que tem como objeto de estudo a

manifestação cultural e religiosa da Congada ou Congado, em cidades do extremo sul de

Minas Gerais. Como professora da Universidade Federal de Alfenas pude constatar a

presença de vários grupos ligados à Congada, ao Jongo, à Capoeira, ao Maracatu e à

Folia de Reis na região, alguns mais organizados, mas a maioria em processo de

enfraquecimento e de desaparecimento.

Em Alfenas, o Maracatu de baque virado e o Jongo são manifestações pouco

desenvolvidas ou mais recentes, que contam com a participação de jovens universitários

e apresentam um caráter singular. A cidade promove um evento, que ainda está em sua

segunda edição - o Encontro de Matrizes Africanas - procurando reunir esses e outros

grupos de municípios vizinhos, a fim de difundir ritmos e folguedos populares, mais

fortes em Machado, Poços de Caldas e Boa Esperança (Congada), e Guaxupé (Folia de

Reis). Em um de seus bairros mais pobres e violentos, o Pinheirinho, encontra-se,

ainda, uma extensa família ligada à umbanda, que também participa de eventos como

esse, muitas vezes promovidos por seus membros, com escassos recursos e falta de

apoio público. Nesta comunidade, as mulheres são a maioria, lideram as manifestações

e transmitem os elementos religiosos da cultura africana, além de manterem vínculos

com os grupos de Congada nos municípios ao redor.

As religiões afro-brasileiras - no caso de Alfenas, a umbanda - estão

estreitamente relacionadas à Congada na região sul. Suas práticas e saberes justificam

alguns dos códigos, da hierarquia e dos rituais próprios da manifestação, a ascensão de

muitos de seus “mestres” e a organização de cada terno1, com seus capitães, benzedeiros

e benzedeiras, respeitados por seus conhecimentos e papel de mediadores entre o

sagrado e o profano.

Neste cenário foi possível perceber a desigualdade de forças entre grupos e a

existência de alguns, não tão evidentes e em processo de desaparecimento, em cidades

próximas, como em Serrania e Areado, pois não apenas a falta de apoio, mas o

desinteresse das novas gerações ameaçam a transmissão da tradição. Nesse sentido,

desenvolvi o interesse por fazer um levantamento dessas manifestações, a partir das

festas de São Benedito e de Nossa Senhora do Rosário em cidades como Poços de

Caldas, Alfenas, Boa Esperança, Areado e Machado – esta última como uma das mais

tradicionais e fortes da região – e buscar os grupos menores, compreendendo sua

dinâmica, sua ressonância nas comunidades, suas formas de transmissão, seus

significados para velhas e novas gerações. O fato de apenas algumas cidades

centralizarem as apresentações dos agrupamentos pode revelar dificuldades de

manutenção de certas tradições, ou ainda mostrar como o fortalecimento de algumas

regiões pode colaborar no enfraquecimento de comunidades menores.

Além disso, chamou-me a atenção as relações de gênero, tanto na performance

das apresentações quanto nas formas de tradição e de transmissão cultural, na medida

em que o número de mulheres é grande e, no caso do bairro do Pinheirinho (em

Alfenas), elas parecem exercer papel central na transmissão dos saberes e na

organização de eventos, embora nas atuações das apresentações não tenham grande

evidência. Chama atenção aí, ainda, a forte relação do Congado com a umbanda,

afastando-se da matriz católica de outros agrupamentos.

Assim, o projeto – que está sendo desenvolvido com a colaboração de dez

estudantes dos cursos de Graduação em História, Ciências Sociais e Biologia - pretende

fazer um levantamento dos diferentes grupos na região sul de Minas Gerais, percebendo

as práticas culturais próprias de cada lugar, as relações identitárias, de gênero, étnicas e

1 Segundo Silva (2009) os “ternos do Congado” são coletivos que realizam cortejos em algumas festas

organizadas em homenagem à Nossa Senhora do Rosário, por meio de cantos, danças e da manipulação

de objetos simbólicos, saudando santos não apenas católicos, os chamados Reis Congos e outros grupos

de congado.

geracionais, que envolvem a luta pela permanência de suas tradições. Por meio da

memória coletiva, das narrativas constantemente criadas e reinventadas pelas velhas e

novas gerações, por homens e mulheres, assim como a realização de seus rituais

performáticos e festas, pretendo perceber as representações que as comunidades ligadas

a essas manifestações fazem de si e como constituem sua visão religiosa e de mundo.

O Congado em Minas Gerais

Segundo a Federação dos Congados de Minas Gerais, o estado tem hoje a maior

concentração de congadeiros do Brasil, contando com cerca de 4 mil “guardas”. Porém,

permanece o desconhecimento de seu valor histórico e cultural, além do preconceito,

por parte da maioria da população. Apesar da presença maciça de afrodescendentes nos

cantos e danças, a leitura por parte de alguns setores sociais, é de que a Congada, assim

como o Maracatu e o Jongo, seriam manifestações ligadas às religiões de matrizes

africanas (e por isso “desviantes”) e a setores pobres da população. Por isso, muitas

vezes, são consideradas “expressões menores” da cultura popular.

Em municípios como Alfenas, Machado e Poços de Caldas, em que o número de

estudantes universitários cresce a cada dia2, os grupos tradicionais passam a negociar

espaço público com as autoridades e com as novas gerações – a maioria formada por

estudantes vindos de fora – no sentido de ocupação da cidade (já que a urbanização e a

especulação imobiliária, devido ao crescimento das universidades na região, jogam

essas comunidades cada vez mais para a periferia) e também de valorização das festas e

reconhecimento social, quase numa suposta oposição entre o “arcaico” e o “moderno”3.

Nesse sentido, como afirma Patrícia Costa, “a congada expressa uma forma de

resistência baseada antes, na negociação pela busca de reconhecimento social, do que no

confronto direto” (COSTA, 2006, p.13).

2 O número de universidades federais cresce na região, atraindo estudantes do interior de São Paulo e de

muitas cidades do estado de Minas Gerais, colaborando para o crescimento demográfico de forma

relevante.

3 As constantes festas realizadas pelos estudantes universitários atraem empresas que promovem shows

com cantores da moda (como sertanejos, funkeiros e pagodeiros) e tecnologia considerada “de ponta”,

transformando os eventos em verdadeiros espetáculos, em que se consome muita bebida e dessacraliza-se

qualquer relação humana.

Historicamente, a expressão Congada ou Congado vem do termo congo, que

significa congar, dançar, expressão própria dos festejos do Antigo Reino do Congo, na

África Central, para comemorar nascimentos de príncipes e colheitas bem sucedidas.

Segundo Marina de Mello Souza (2002), uma vez convertidos ao catolicismo, os negros

realizavam festejos em culto à Nossa Senhora do Rosário e também para “(...), a eleição

de reis negros e as celebrações a ela associadas que estiveram presentes em quase todos

os lugares que receberam escravos africanos.” (SOUZA, 2002, p.167).

Dúvidas permanecem quanto à ideia de origem e transposição dessas festas da

África para o Brasil. Para autores como Borges e Souza, os chamados ternos do

Congado ou Congada se originaram das irmandades de escravos e libertos já na colônia,

com variações ligadas às regiões para onde os grupos de escravos eram trazidos, suas

diferentes formações étnicas, misturadas forçosamente pelos senhores que separavam

nações e promoviam o sincretismo entre culturas provenientes de diversos lugares da

África.

O próprio regime escravista, preocupado com a possibilidade de revoltas teria,

então, estimulado diferentes apropriações e recriações por parte dos negros, que

forjaram novas formações culturais frente a dominação:

como essas associações eram meios do grupo instituir formas de

solidariedade, principalmente frente à morte e à doença, algumas

vezes facilitando a obtenção da liberdade dos que eram escravos. (...)

as confrarias funcionavam como sociedades de ajuda mútua, mas

também serviam como canais por meio dos quais era possível

controlar a vida dos africanos e com eles negociar” (SOUZA, 2003,

p.163)

A celebração dos reis e rainhas pelas irmandades religiosas permitia marcar a

resistência e evidenciava as hierarquias e distinções étnicas, assim como a interação dos

negros à vida social e religiosa da colônia, submetida à cultura e à política europeia por

meio de suas celebrações barrocas repletas de pompa. Segundo M. F. Monteiro,

Congadas são também tributárias das celebrações de vassalagem e

fidelidade dedicadas às realezas africanas naquele continente e suas

embaixadas, enquanto eficientes práticas parlamentares performáticas

de envio de mensagens, presentes, solicitações e tratados aos

soberanos de outras nações. Pela festa da congada acontece a

articulação de tradições políticas e religiosas africanas às formas

políticas e religiosas portuguesas, o que possibilitou a bricolagem dos

símbolos que concomitantemente promovem cultos públicos católicos

e reconstroem aspectos da cultura e religiosidade africana no interior

de instituições tipicamente europeias, por meio dos rituais de coroação

de reis e rainhas negras (Monteiro, 2004).

Os desfiles que aconteciam nos festejos eram chamados de congadas, congo,

cucumbis ou reinados de congos, espalhando-se por várias províncias, dentre elas o Rio

de Janeiro, São Paulo, Goiás, Rio Grande do Sul. Em Minas Gerais, a Congada ou

Congado, em especial, nasceu das festas realizadas em homenagem à Nossa Senhora do

Rosário que, segundo a tradição, teria sido responsabilizada por Santa Ifigênia – uma das

responsáveis pela difusão do cristianismo na Etiópia – a cuidar dos escravos. As irmandades

católicas, formadas por libertos e escravos, teriam criado os rituais em louvor aos chamados

“santos pretos”, como São Bendito e São Elesbão, além das santas. Ali realizavam a

coroação da corte negra, negociando com as autoridades o espaço público para os cortejos,

prática que apesar de rarear-se a cada dia, permanece ainda, com festejos realizados entre

agosto e outubro nos municípios ao sul de Minas.

Hoje ainda os “ternos de congado” realizam cortejos nas festas organizadas em

homenagem à Nossa Senhora do Rosário ou São Benedito e nas apresentações em

celebrações locais, ou a convite de seus pares, em cidades vizinhas. Nos festejos,

celebram santos católicos e entidades afro-brasileiras, coroam os reis congos e se

confraternizam com outros congadeiros. Suas características variam quanto às

indumentárias, os ritmos e toques, os instrumentos, os cantos e gingados, mas mantêm

elementos em comum, o que lhes garante a identidade partilhada, lançando mão de

sinais diacríticos e reafirmando as relações entre si, com a comunidade externa e entre a

Igreja e a religiosidade popular.

Nesse processo de organização dos grupos de Congada e de promoção de encontros

entre as demais manifestações afrodescendentes – Jongo, Umbanda, Folia de Reis - ocorrem

inúmeras negociações com as autoridades municipais e escassos financiamentos, além de

tentativas de interação entre o espaço rural e urbano (a maioria dos congadeiros é formada

por trabalhadores rurais), a religiosidade de origem africana (principalmente a umbanda),

ligados à Congada, e a Igreja católica, entre as cidades maiores e as menores que se

convidam, assim como entre os grupos conhecidos e os menos visíveis.

Essas relações são capazes de revelar o constante diálogo, por vezes tenso e

conflituoso, que caracterizam a existência desses grupos e seus rituais, tanto do ponto de

vista interno como externo. As negociações internas implicam em entender o que José

Reginaldo Gonçalves (2005) chamou de ressonância dos símbolos e práticas na

comunidade, ou seja, a identificação coletiva em torno de referências relacionadas a

uma memória coletiva e a uma tradição que vai sendo transmitida entre as gerações e

que, na luta pela permanência, vai sendo repensada e reconstruída contra o tempo

presente, racionalizado, que dessacraliza das relações sociais.

Externamente, realizar o levantamento desses grupos - mais conhecidos e

também aqueles menores e sem evidência - pode permitir a compreensão da polissemia

de significados, assim como de permanências e comunhão cultural, além da percepção

em torno das relações de força e de resistência – étnicas, de gênero, geracional e de

classe - numa região em que há pouco reconhecimento dessas manifestações e em que a

possibilidade do festejo também pode contribuir, no presente, para que os congadeiros

ocupem uma posição de destaque e sejam vistos socialmente.

Esse caráter místico permanece significando e justificando os festejos dos

diferentes grupos de Congado, não apenas em Machado – onde existe há mais de 90

anos - mas nas cidades vizinhas. Para Carlos Rodrigues Brandão (1985), quanto mais

próximo a São Paulo, no entanto, mais pode se observar o apagamento ou a

transformação das tradições da Congada, com a introdução de novos instrumentos,

como o sopro, o saxofone, a clarineta e o trompete, que se misturam aos tradicionais

tambores, pandeiros e caixas que, no passado, davam um tom mais marcado, cadenciado

e harmonioso aos ternos do congo. A introdução, inclusive, de apitos e tambores de

alumínio, próprios de escolas de samba, teriam dado às apresentações um caráter mais

“barulhento”, diferente das marcas ritualísticas, registradas das congadas.

Para ele também as cores utilizadas pelos ternos foram sendo modificadas, como

a diversidade de cores misturadas aos tradicionais branco e azul das roupas. A

gestualidade também estaria sofrendo transformações em cada agremiação, em

diferentes cidades, principalmente pelo desinteresse das novas gerações que pouco

guardam as toadas. Esse último aspecto foi percebido por mim na observação das

performances dos congadeiros em Alfenas, quando jovens pouco se envolveram nas

danças e demonstravam desconhecimento das letras, além de manifestarem pouca

devoção, em gestos mecânicos e quase sem sentido. Para Brandão

existem festas onde as equipes guardam ainda um conheicmento

suficiente de seus cantos e passos da marcha e dança. Mas os gestos

finos da reciprocidade, da deferência e da devoção foram apagados.

Essa poderia ser a diferença entre o que se vê ainda em Oliveira e o

que se encontra em Machado, também em Minas Gerais, mais ao sul

em direção a São Paulo (BRANDÃO, s.d., p. 185/186).

A perda de significado para as novas gerações e para a sociedade voltada ao

consumo, influenciadas por uma temporalidade mais dessacralizada e competitiva, tem

contribuído para que as práticas do Congado sejam valorizadas apenas como folclórica

(no sentido de exótica, de estranha ou curiosidade), ou pelo volume e quantidade de

instrumentos ou apresentações performáticas, atendendo a interesses por espetáculos.

Isso tem preocupado os membros mais velhos, que procuram, incansavelmente, reunir

os diferentes grupos, contra o tempo diluidor do capitalismo e a ideia da constituição de

comunidades estéticas4, como chamou Zigmunt Bauman (2005).

Desta forma, torna-se relevante para os estudos sobre tradição oral, memória e

identidade (ligados efetivamente às preocupações com o patrimônio imaterial5) e para o

debate e o reconhecimento público, evidenciar as relações, as preocupações e as

demandas dessas comunidades culturais e religiosas, que procuram sobreviver e resistir

às transformações em suas vidas cotidianas, marcadas pela pobreza, pela exclusão e

desmerecimento no contexto urbano e de mundialização cultural.

Por meio das celebrações e de seus rituais mais cotidianos, em especial a

umbanda na cidade de Alfenas, os membros das Congadas procuram tornar visíveis as

relações étnicas, culturais, míticas e sociais, expressando suas críticas a um mundo

racionalizado e fragmentado. Procuram defender-se dos problemas que os afligem em

seus bairros, lutam contra a quase invisibilidade social, objetivando tornar suas

4 Comunidades estéticas ou “guarda-roupa” são aquelas cuja existência é efêmera, dada pela necessidade

de se pertencer a um grupo e cuja identidade se constitui por marcas e símbolos relacionados à aparência,

estéticos e vazios de sentido.

5 Patrimônio imaterial ou intangível, segundo definição do IPHAN, diz respeito àquelas práticas e

domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de

expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; e nos lugares

manifestações em denúncia contínua, muitas vezes, da discriminação social. As famílias

ligadas aos ternos são detentoras de saberes e fazeres, sabem as razões de sua existência,

conhecem as sequências ritualísticas, seus segredos, fundamentos, conceitos, gestos,

cantos e palavras sagradas. Importante salientar que nem sempre os “donos” dos ternos

são homens – capitães e presidentes – pois em certos casos, como no bairro Pinheirinho,

em Alfenas, são as mulheres as “mestres”, articuladoras e mediadoras da comunidade.

Maria Dalva Soares (2010), que pesquisou sobre a participação feminina no Congado de

Belo Horizonte, afirma que

Na organização dos festejos e em todas as outras possibilidades de

participação no Reinado, a mulher sempre esteve presente, porém

ocupando espaços diferenciados dos homens. Durante muitos anos, só

era permitido às mulheres participar como rainhas, princesas,

zeladoras, juízas, bandeireiras, responsáveis pelos enfeites e pela

preparação da comida que é servida durante os rituais — posições de

menor visibilidade, espaços menos valorizados na hierarquia do ritual

— mas nunca como caixeiras ou dançantes.

Atualmente, pela capital e pelo interior do estado, constata-se a

presença de mulheres em funções que, até algum tempo atrás, eram

exclusivamente dos homens. Hoje já é possível encontrar mulheres

caixeiras, dançantes e até capitãs comandando os grupos.(SOARES,

2010, p.18)

A transmissão de conhecimentos demarca prestígio e posições no interior dos

grupos de Congado, como na Umbanda, no Jongo e na Folia de Reis. São os “mestres”

que orientam, expõem os preceitos a serem seguidos, em nome de santos e entidades,

que se expressam nos cantos, nas danças, símbolos e na bênção concedida aos

membros, acompanhada pela toada dos congadeiros.

Santos como Nossa Senhora do Rosário, ou as entidades nas religiões afro-

brasileiras significam e representam símbolos, gestualidade e crenças que constituem a

construção de identidade coletiva, contra olhares pejorativos - sejam produzidos por

valores religiosos, étnicos, de força ou meramente mercadológicos. A memória

transmitida entre as gerações e entre os próprios grupos contemporâneos de

congadeiros, nesse sentido, funciona como afirmação identitária e desejo de preservação

de um patrimônio, entendido como posse e recriação coletiva constante.

O trabalho tem sido desenvolvido, acompanhando as festas que acontecem entre

maio e setembro, variando em cada cidade. Ali, o grupo de pesquisadores busca realizar

um levantamento de diferentes grupos de cultura afrodescendente – especialmente a

Congada – nas cidades do sul de Minas Gerais, em direção a São Paulo (Alfenas,

Machado, Areado, Poços de Caldas e Boa Esperança), sobre os quais há pouco registro

e estudo, observando, conhecendo e registrando os mitos, os festejos e a dinâmica de

transmissão da tradição ligada à Congada, nessas cidades, entendendo o trâmite entre o

cristianismo e as religiões de matrizes africanas.

Também são objetivos da pesquisa compreender a organização interna das

comunidades religiosas/culturais, com seus conflitos e relações de gênero, classe e

intergeracionais; observar as relações entre os grupos das diferentes cidades, procurando

entender as relações de sociabilidade e/ou poder entre elas, assim como a

recepção/discriminação das comunidades locais, fortemente ligadas pelo cristianismo;

acompanhar os principais festejos, as permanências e recriações simbólicas de adereços,

instrumentos e simbologias, utilizados na composição coreográfica, cenográfica e

religiosa da festa; perceber como a memória e a oralidade contribuem na transmissão da

tradição oral entre as gerações, identificando as dificuldades de permanência e as

reinvenções; identificar e entender a memória e a tradição enquanto campos de força,

nos quais se estabelece o jogo social de esquecer e lembrar, assim como espaços

simbólicos de construção identitária.

A oralidade e a memória coletiva

É importante pensar a memória coletiva e individual, a tradição e sua

transmissão, como fundamentais para entender as apropriações do passado e seus usos

sociais pelas comunidades no presente. A produção, a permanência e a recriação do

passado, presentificado constantemente pelos membros do Congado e de outras

manifestações afro-brasileiras, devem ser entendidas como formas de gestão e

representação do passado, expresso na cena pública pelas performances musicais e pelos

festejos religiosos.

Segundo Maurice Halbwachs (2006), a memória coletiva é essencial para a

coesão social em meio à sociedade em que a experiência é desvalorizada. A memória é

o sustento da tradição oral, por meio de mecanismos de acumulação, conservação,

reinvenção, atualização e reconhecimento de elementos simbólicos que contribuem para

a elaboração da identidade coletiva.

Nesse sentido, entende-se as Congadas como manifestações e representações

sociais que se constituem a partir do compartilhamento de memória em diferentes

localidades e temporalidades, contra formas de discriminação e exclusão social. Para

Elizabeth Kiddy, que estudou a Congada na cidade de Oliveira, região central de Minas

Gerais, o Congado é uma tradição polissêmica que se mantém viva pela forma como os

rituais religiosos e performáticos se adaptam ao tempo presente, pois “projeta-se nas

acomodações das práticas ritualísticas uma força espiritual, baseada nos ‘preto-véios’ e

ancestrais, expressa na devoção à santa” (KIDDY, 2005, p.45-60). A oralidade e a

habilidade de adaptação realizam o processo de esquecimento e inovação constantes,

necessários à sobrevivência dos grupos culturais.

Carlos Rodrigues Brandão (1985) escreveu sobre a festa do Congado em Catalão

(Goiás) e percebeu as diversas facetas da sociabilidade que os seus membros constituem

como formas de sobrevivência identitária e resistência negra, tendo sua origem nas

irmandades e nas práticas sociais e religiosas dos ternos.

Para Patrícia Costa, que analisou a Congada na Serra do Salitre, oeste de Minas

Gerais (2006), a escravidão e a coroação dos reis congos, celebrados nos rituais atuais

“promovem a reconciliação com esse passado traumático, na medida em que diversos

ternos atualizam durante os festejos a aparição de N. Sra. do Rosário para os cativos,

evento transformador da imagem e do valor do escravo perante os senhores” (COSTA,

2006, p.12).

Sobre as Congadas localizadas mais ao sul de Minas Gerais existem poucos

trabalhos desenvolvidos e não é possível, ainda, afirmar sobre seus significados, sejam

culturais ou políticos, diante de um mundo cada vez mais rápido, dessacralizado e

superficial. É possível encontrar pesquisas em torno das congadas em Belo Horizonte

(SOARES, 2010), Sete Lagoas (GARONE, 2008) e São João Del Rei (SILVA, 2009).

Ao sul do estado, porém, em que os grupos religiosos e culturais parecem ser menos

evidentes e reconhecidos, há dificuldades em encontrar estudos historiográficos ou

mesmo de caráter antropológico.

Cabe destaque ao trabalho de Carlos Rodrigues Brandão (1985) que, de forma

mais genérica, fala das manifestações em Minas Gerais, e à obra de Lilian S.Cézar

(2012) sobre a Congada realizada na cidade de São Sebastião do Paraíso, há cerca de

200 km de Alfenas. Há também um pequeno livro sobre a cidade de Machado, onde há

a realização de folguedos, numa prática das mais antigas e que se realiza todo ano, no

mês de outubro. Esta cidade, junto com Poços de Caldas e São Sebastião do Paraíso,

permanece insistindo nas apresentações de seus grupos, embora haja notícias de que as

dificuldades são cada vez maiores e que as novas gerações tenham apresentado pouco

interesse em sua difusão e prática, enfraquecendo alguns ternos.

Considerações finais

Pretendeu-se, aqui, apresentar a pesquisa que se desenvolve no sul de Minas,

juntamente a alunos da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL), por meio da

observação participante, a história oral dos membros das Congadas e o registro das

Festas do Rosário e São Benedito e as manifestações da Congada, realizadas pelos

grupos no sul de Minas Gerais. Procura-se perceber o registro de suas variações,

nominações e recriações, assim como das permanências entre comunidades de cidades e

famílias diferentes, ou mesmo de congadeiros dentro de uma mesma cidade, ligados a

uma mesma família, como é o caso das mulheres do bairro Pinheirinho, em Alfenas.

A partir do registro de seus festejos – e também de seu cotidiano na comunidade

– será possível perceber a constituição de diferentes ternos, com suas roupagens,

instrumentos, danças, cantos, ritmos, santos e mitos (seu patrimônio material e

imaterial); os diferentes papéis assumidos por homens e mulheres, velhos e jovens, no

processo de manutenção ou reconstituição das práticas religiosas ou de interação social.

A fim de entender a transmissão de saberes e fazeres, torna-se importante

também a realização de entrevistas orais, procurando ouvir as narrativas dos chamados

“mestres” e membros de cada manifestação a ser identificada, sobre as transformações

no tempo e no espaço das práticas coletivas. Por meio de questionário semiestruturados

e também conversas informais, espero abordar a tradição oral, entendida como a

capacidade dos congadeiros de repetir/memorizar/preservar os elementos da cultura

religiosa, aliada à improvisação/recriação/inventividade em sua transmissão às novas

gerações, inseridos no processo de mercantilização da cultura. Parto aqui das mesmas

premissas apresentadas por Verena Alberti sobre tradição oral:

Os objetos transmitidos pela tradição oral não são imutáveis. Canções,

ditos populares, rezas, mitos etc não são, digamos, produtos intactos

disponíveis em prateleira, os quais podemos escolher.

(...) A tradição oral, como as tradições de modo geral, está calcada na

repetição. (ALBERTI, 2005, p.18)

Além das entrevistas e da observação, serão registradas em vídeo e fotografia as

performances dos grupos de Congado. A produção de um filme sobre os participantes

da Congada pode se transformar num processo importante de colaboração e devolução

às comunidades, assim como tem valor fundamental para a constituição de identidade,

para o autorreconhecimento de seus membros. Mais do que isso, as relações entre

conhecimento acadêmico e os saberes comunitários, entre universidade e congadeiros,

deve contribuir para a publicização das culturas populares, para seu empoderamento

quanto à questão não apenas no sentido do registro de seu patrimônio imaterial, mas na

elaboração de políticas públicas que resultem em melhoria de suas vidas.

Acredita-se que a memória coletiva e a oralidade, preservadas pelos velhos

como “reservatórios”, tenham papel fundamental na tentativa de coesão e resistência

desses grupos diante das ameaças de dissolução da identidade cultural e religiosa dessas

comunidades. Como crenças, práticas, símbolos, cantos e danças não são registrados na

forma escrita, a repetição deles no cotidiano e nas trocas geracionais contribuem para a

continuidade e fortalecimento dos grupos. Isso não significa, no entanto, que identificar,

conhecer, reconhecer e registrá-los na forma escrita ou nas mídias tenha o sentido de

congelá-los e perpetuá-los, pois, como afirma José Reginaldo Gonçalves (2005), a

tradição é patrimônio vivo que só pode continuar a existir no jogo da lembrança e do

esquecimento, da conservação e da inovação, a partir do desejo de quem o constrói

cotidianamente, na busca da sobrevivência étnico-cultural.

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