memÓrias, tramas e espaÇos: a histÓria de brasÍlia...
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VIVIANE GOMES DE CEBALLOS
MEMÓRIAS, TRAMAS E ESPAÇOS: A HISTÓRIA DE BRASÍLIA
CONSTRUÍDA PELA FALA DOS MORADORES DE SOBRADINHO-DF
Campinas
2014
iii
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
VIVIANE GOMES DE CEBALLOS
Memórias, Tramas e Espaços: A História de Brasília
construída pela fala dos moradores de Sobradinho-DF
Orientadora: Profa. Dra. Maria Stella Martins Bresciani
Tese de Doutorado apresentada ao Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas, para
obtenção do Título de Doutora em História,
na área de concentração História Social.
Este exemplar corresponde à versão final da tese defendida
pela aluna Viviane Gomes de Ceballos, e orientada pela profa.
Dra. Maria Stella Martins Bresciani e aprovada no dia
___/___/_____.
______________________________
Campinas
2014
iv
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/338
Ceballos, Viviane Gomes de, 1975-
C321m CebMemórias, tramas e espaços : a história de Brasília construída pela fala dos
moradores de Sobradinho - DF / Viviane Gomes de Ceballos. – Campinas, SP :
[s.n.], 2014.
ebOrientador: Maria Stella Martins Bresciani.
Ce Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas.
1. Memória. 2. Urbanização - Brasília (DF). 3. Brasília (DF) - Depoimento. 4.
Brasília (DF) - História. 5. Sobradinho (DF) - História. I. Bresciani, Maria Stella
Martins,1939-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas. III. Título.
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: Memories, plots and spaces : Brasilia's history by the memories of
Sobradinho's inhabitants Palavras-chave em inglês:
Memories
Urbanization - Brasilia (DF)
Brasilia (DF) - Affidavits
Brasilia (DF) - History
Sobradinho (DF) - History
Área de concentração: Política, Memória e Cidade
Titulação: Doutora em História
Banca examinadora:
Maria Stella Martins Bresciani [Orientador]
Izabel Andrade Marson
Josianne Francia Cerasoli
Jacy Alves Seixas
Amilcar Torrão Filho
Data de defesa: 27-11-2014
Programa de Pós-Graduação: História
v
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
A Comissão Julgadora dos trabalhos de defesa de Tese de
Doutorado, em sessão pública realizada no dia ___ de _________ de
2014, considerou a candidata VIVIANE GOMES DE CEBALLOS aprovada.
Este exemplar corresponde à versão final da Tese defendida
e aprovada pela Comissão Julgadora.
Profa. Dra. Maria Stella Martins Bresciani ______________________
Profa. Dra. Izabel Andrade Marson ______________________
Profa. Dra. Josianne Francia Cerasoli ______________________
Profa. Dra. Jacy Alves Seixas ______________________
Prof. Dr. Amilcar Torrão Filho ______________________
vii
RESUMO
Considerada por muitos como “A Petrópolis Brasiliente” por seu clima ameno e
serrano, Sobradinho, cidade satélite de Brasília, ganha as páginas desse trabalho
como cenário onde se desenrolam diversas e peculiares histórias. Personagens
como Nelson Tieman, Teodoro Freire, Maria Aparecida e outros, aparecem aqui
como colaboradores na construção de uma imagem de Brasília que extrapola as
fronteiras físicas e simbólicas do seu plano piloto. O objetivo deste trabalho é
esgarçar o tecido construído pela historiografia para a cidade e possibilitar que
outras imagens ganhem visibilidade, que outras cidades, outros fios constitutivos de
seu desenho, possam aparecer e dar contornos outros para essa história. Entender
o processo de ocupação urbana do Distrito Federal e como a opção pela divisão em
Regiões Administrativas constituem uma peculiaridade deste espaço e como ela
interfere na elaboração de uma imagem para Brasília. A cidade pode ser entendida
apenas como o espaço que constitui seu plano piloto? As cidades satélites são
consideradas bairros de Brasília? Como entender a relação entre o Plano Piloto
(Brasília) e esses núcleos satélites? Sobradinho aparece em sua relação com o
Plano Piloto (Brasília), mas não desaparece nessa relação. Imprime nela suas
marcas e toma pra si o lugar de produção e de cristalização de uma memória que
lhe é própria – de seu crescimento e consolidação urbanos e da memória dos seus
moradores.
ix
ABSTRACT
Considered to many as “Petrópolis Brasiliense” because of its pleasant weather,
Sobradinho, one of Brasilia’s satellite cities, appears at the pages of this work as a
scenario where many peculiar stories are uncovered. Characters as Nelson Tieman,
Teodoro Freire, Maria Aparecida and others, appear here as contributors to the
creation of an image of Brasilia that overcomes its physical and symbolic frontiers of
its Project. The purpose of this work is to expand the image constructed by the city’s
historiography so is possible that other cities, other constructive lines can show and
outline the stories differently. Understand the process of urban occupation of the
Distrito Federal, and how the choice of its political division in Administrative Regions
interferes in Brasilia’s image. Can the city be considered only as the space that
consists in its Project? Are the satellite cities considered as neighborhoods of
Brasilia? How can we understand the relationship in between the Project(Brasilia)
and these satellite cities? Sobradinho appears in its relation with the Project
(Brasilia), but doesn’t disappear in that relation. Prints on it its marks and takes the
place of production and crystallization of a memory of its own – its growth and urban
consolidation and the memory of its inhabitants.
xi
SUMÁRIO
PALAVRAS INICIAIS: A BRASÍLIA QUE EU (RE)INVENTEI ........................................... 1
BRASÍLIA REVISITADA, CINQUENTA ANOS E CIDADES-SATÉLITES: UMA BREVE
DISCUSSÃO ................................................................................................................... 11
CIDADES-SATÉLITES DE BRASÍLIA: DISCIPLINA OU DESVIRTUAÇÃO? ....................................... 30
A “PETRÓPOLIS BRASILIENSE”, UMA CONTRADIÇÃO PARA OS PLANOS DE
LÚCIO COSTA? .............................................................................................................. 39
“A CIDADE É UMA SÓ”: BRASÍLIA E AS CIDADES SATÉLITES .................................................... 51
“HISTÓRIAS QUE SÓ EXISTEM QUANDO SÃO LEMBRADAS”: PERSONAGENS E
TRAJETÓRIAS DE MORADORES DE SOBRADINHO (DF) .......................................... 79
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 113
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 117
xiii
Àqueles que dão sentido à minha vida:
Berenice, minha amada mãe;
Rodrigo, marido, amigo, companheiro de todas
as horas;
Morgana, Bárbara e Júlia, experiência de amor
incondicional;
Verusca e Valéria, irmãs queridas.
A vocês dedico essas páginas.
xv
AGRADECIMENTOS
Agradecer é um exercício de reconhecimento de que nosso trabalho,
nossa vida e nossa história não é só nossa. Este trabalho não teria sido possível
sem o apoio, a amizade e a incansável orientação da professora Maria Stella
Martins Bresciani. A você, Stella, o meu agradecimento e a certeza de que essa
trajetória de parceria e de troca que já duram mais de uma década não se encerra
aqui. Agradeço aos professores do programa, Izabel Marson, Iara Schiavinatto,
Edgar De Decca, Cristina Meneghello, que nas aulas, reuniões de linha, discussões
e críticas contribuíram para a elaboração deste trabalho. À professora Nacny
Aléssio Magalhães (in memorian) pela leitura atenta, pelas indicações preciosas e
pela alegria de fazer das narrativas memorialísticas uma porta de entrada na cidade
de Brasília.
Minha trajetória de pesquisa não tem sentido sem a presença de algumas
pessoas que tornaram essa experiência algo partilhado e deixaram aqui também
suas marcas. A primeira a quem eu gostaria de agradecer é a Côca, Maria do
Socorro Rangel, minha professora, amiga, irmã, que me ajudou na formulação do
projeto e que representa para mim um modelo de profissional e de ser humano.
Obrigada por sempre ter acreditado em mim. Josianne, que aos poucos tornou-se
parte da minha história em Campinas e que se tornou ao longo desses anos uma
amiga e importante interlocutora deste trabalho. Obrigada pelo apoio e por acreditar
que era possível. Outros amigos fizeram parte dessa trajetória, cada um a seu
modo, Ana Rita, Erika, Regina, Amilcar, Rodrigo, Jefferson, Flávio, Juliana,
obrigada. Camila e Rafael, meus filhos tortos, obrigada. Aos amigos que Cajazeiras
me presenteou, Edivania, Isamarc, Ana Elisabete, Paccelli (in memorian), Fabíola,
Jefferson, Álisson, Adriano Macaco, há um pouco de vocês aqui também. Aos
importantes reencontros com amigos queridos que me ajudaram na elaboração
desse trabalho, Elaine, Tyrone, Gabriel, Adriano Gualberto, Romina, Guilherme,
Duda, Marsel, André (Chapoca), Brasília só tem sentido com vocês, obrigada.
xvi
Não posso deixar de agradecer a Sônia, pela documentação
disponibilizada, pelos debates e discussões sobre o tema. Aos funcionários da
Secretaria da Pós, Júnior e Camila, que sempre foram atenciosos e pacientes
comigo. A Cidinha, que sempre me ajudou muito e sempre com o sorriso no rosto.
Senhor Wilson Sidou Pimentel, chefe do Setor de Microfilmagem da Câmara dos
Deputados, pela atenção e pela disponibilidade em me auxiliar durante a pesquisa.
A Marcos Bezerra Costa, da Câmara Legislativa do DF. A Francisco Francineudo
Oliveira e Brício Ramos, incansáveis na permissão ao acesso à documentação da
Administração Regional de Sobradinho. Ao senhor Alexandre de Jesus Silva Yañez,
Administrador Regional de Sobradinho. A Augusto Areal pela cessão de algumas
fotografias aéreas de Sobradinho, obrigada pela disponibilidade e pela confiança.
Um agradecimento especial aos colaboradores deste trabalho, senhor Teodoro
Freire (in memorian), Maria Aparecida, Natália, Dirce, Isaura, Maria José, que com
suas falas e memórias me ajudaram a “reconstruir” Brasília.
À minha família, minha mãe e minhas irmãs, minha trajetória de vida é
mais bela por ter vocês comigo. A Rodrigo, meu cúmplice, meu amor, pela
paciência, pelo incentivo e pelo companheirismo. Mais uma etapa vencida. Às
minhas filhas, Morgana, Bárbara e Júlia que entenderam que as ausências, os
momentos de impaciência eram por uma boa causa. Amo vocês.
Aos professores que aceitaram participar da banca examinadora deste
trabalho, Jacy Seixas, Izabel Marson, Josianne Cerasoli e Amilcar Torrão, obrigada.
Não é todo mundo que tem o privilégio de ter leitores como vocês.
xvii
“Talvez a melhor forma de pensar uma
cidade, prospectivamente, seja projetando-
a no horizonte dos sonhos coletivos de
sua população presente. Sua invenção
nasce da interação profunda entre
planejadores, que procuram antecipar o
futuro e o cotidiano rico de idéias e
necessidades dos seus habitantes.” (PDL-
Sobradinho, DF)
xix
LISTA DE FIGURAS
Figura 01 – Núcleo Bandeirante, década de 1960.
Figura 02 – Comércio no Núcleo Bandeirante, década de 1960.
Figura 03 – Distrito Federal – Regiões Administrativas, 1996.
Figura 04 – Jardim ao longo do Eixo Monumental com caminhos trilhados por
pedestres
Figura 05 – Mapa da Distribuição Territorial do Distrito Federal – 1989.
Figura 06 – Mapa da Distribuição Territorial do Distrito Federal – 1994.
Figura 07 – Mapa da Distribuição Territorial do Distrito Federal – 2004.
Figura 08 – Mapa da Distribuição Territorial do Distrito Federal – 2012.
Figura 09 – Planta da cidade de Sobradinho – DF
Figura 10 – Unidade de Vizinhança (Superquadra)
Figura 11 – Quadra 07 de Sobradinho – DF (planta e imagem aérea)
Figura 12 – Vista da faixa verde do conjunto C da quadra 07 – Sobradinho – DF
Figura 13 – Planta de Sobradinho com destaque para as áreas comerciais
Figura 14 – Croqui da Reforma da Rua 05 – PDL – Sobradinho
Figura 15 – Mapa da cidade de Sobradinho – DF
Figura 16 – Planta da Quadra 08 – Sobradinho - DF
xxi
LISTA DE TABELAS
Tabela 01 – População de Brasília, Distrito Federal e Brasil
Tabela 02 – População do Distrito Federal
Tabela 03 – Regiões Metropolitanas Brasileiras – população
Tabela 04 – Habitantes por Região Administrativa do DF
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LISTA DE SIGLAS
AMB – Área Metropolitana de Brasília
ArqPDF – Arquivo Público do Distrito Federal
BsB - Brasília
CAESB – Companhia de Saneamento Ambiental do DF
CEB – Companhia Energética de Brasília
CODEPLAN – Companhia de Desenvolvimento do Planalto Central
DF – Distrito Federal
DTA – Departamento de Terras e Agricultura
DTC – Departamento de Terras e Colonização – Novacap
DVO – Departamento de Viação e Obras
GDF – Governo do Distrito Federal
NOVACAP – Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil
RA – Região Administrativa
SAB – Sociedade de Abastecimento de Brasília
SBD – Sobradinho
SEPLAN – Secretaria de Estado de Planejamento do DF
SHIS – Sociedade de Habitações de Interesse Social do DF
SODESO – Sociedade Desportiva Sobradinhense
TERRACAP – Companhia Imobiliária de Brasília
UnB – Universidade de Brasília
1
PALAVRAS INICIAIS: A BRASÍLIA QUE EU
(RE)INVENTEI
Fim de ano eu vou embora de Brasília, que é pra eu ver o mar, mas diz pra mãe lá pro final de fevereiro é que eu vou voltar. (Presente de um beija-flor, Natiruts, 1997)
rasília, a cidade planejada por Lúcio Costa para ser símbolo de
modernidade e de bem-estar, salta aos olhos de seus visitantes
quase como uma “flor de estufa”: linda de longe, mas sem
cheiro. Suas cidades satélites parecem dar a esta cidade cores
e nuances diferentes, que a tornam a cidade plural, vastamente discutida por
políticos, cineastas, jornalistas, geógrafos, arquitetos, urbanistas, antropólogos,
sociólogos, críticos de arte, historiadores e cientistas políticos, entretanto, assim
como afirma Marta Sinoti, a “Brasília, cidade de seus moradores, ainda não é muito
conhecida. Poucos são os trabalhos que abordam os significados da cidade na
perspectiva de seus moradores.” (2005, p.16) O desafio parece tornar-se ainda
maior quando tentamos encontrar textos e pesquisas que discutam as cidades
satélites de Brasília. Pensar as cidades satélites é adentrar um debate infindável
sobre o processo de consolidação de Brasília e de readequação de seus espaços.
PAVIANI (2012, p. 08) afirma, em entrevista, que as cidades satélites, da forma
como foram criadas, configurariam uma desvirtuação do plano inicial de manter
Brasília “fechada”, conforme o plano original. No entanto, “o polinucleamento se deu
pela segregação da população que morava em acampamentos provisórios, em
‘grandes invasões’ (favelas), estas próximas ao Plano Piloto e foram
desconstituídas sem muito critério.” Assim, nascem as cidades satélites como um
processo de improvisação, não condizente com o processo de consolidação de uma
cidade planejada. Pelo menos não como pensavam seus “artistas oficiais”.
Sobradinho, cidade satélite de Brasília, foi projetada em consonância
com seu plano urbanístico com, o objetivo de fixar a população excedente do Plano
B
2
Piloto, “de acordo com o crescimento natural ou emergencial do Distrito Federal”.
(VASCONCELOS, 1988, p. 175). A ausência de trabalhos acadêmicos sobre essa
cidade satélite configura um grande desafio para a realização deste trabalho.
A relação e o interesse de falar sobre Brasília e, especificamente, sobre
Sobradinho nascem de uma relação pessoal com essas duas cidades. Falar de
Brasília é reissignificar uma experiência que já não faz mais parte do meu cotidiano.
A relação com minha cidade natal é um misto de saudade e de identificação. As
pessoas não reconhecem mais em mim o “não sotaque” do brasiliense, quando
estou em Brasília, me dizem que falo como paraibana, e quando volto à Paraíba,
me perguntam se sou mineira. Engraçado, pareço pertencer a um não lugar, ou não
pertencer a lugar algum. Um mosaico de experiências e de caracterizações acaba
forjando minha nova identidade, meu novo lugar. Ser brasiliense deixa de ser uma
referência e passa a ter quase um caráter idílico, algo que está tão distante de quem
sou hoje, e que ao mesmo tempo me define.
Depois de inaugurada, em 21 de abril de 1960, divulgam-se uma série de
reportagens exaltando a grandiosidade e os benefícios de Brasília, ao mesmo
tempo em que outras apresentam as inúmeras fragilidades da nova capital
brasileira. Já em agosto de 1960, o articulista Edmundo Galvão definia o antes e o
depois de Brasília:
antes de Brasília era o êxodo para o desemprego e as favelas dos centros populosos, o interior em abandono cada vez maior; agora, despertas as qualidades positivas da raça pelo dinamismo do Presidente pioneiro, volvem os brasileiros à hinterlândia e nela ao entusiasmo que cria, ao trabalho que redime, às iniciativas que enriquecem”. (GALVÃO, 1960, p. 06)
É interessante perceber como no Correio Braziliense, uma série de
reportagens vão recolocando esses estigmas – de cidade monumental, igualitária,
racional, funcional – e dando a eles contornos claros, ao mesmo tempo em que
encontramos reportagens que denunciam o “rompimento da utopia” proposta por
Lúcio Costa, apresentando os problemas da cidade: falta de habitação, de escolas,
3
o surgimento de favelas, feiras, e outras práticas que enfeiam o plano piloto e vão
de encontro à proposta inicial da cidade.
Alguns articulistas do jornal usam estratégias claras para criar uma
imagem extremamente positiva para Brasília. Estratégia que compõe um quadro de
reportagens que visam reafirmar a necessidade, a irreversibilidade e a
monumentalidade de Brasília.1 Um articulista chega a afirmar que a cidade tem
problemas sim – “detalhes, no que tange à funcionalidade, que precisam ser
corrigidos” – mas que em nada ofuscam a grandiosidade e a monumentalidade da
cidade construída. Diante de uma visão tão otimista e recorrente sobre a
positividade de Brasília, parece até mesmo estranho quando, ao ler o jornal Correio
Braziliense, percebemos que esses “detalhes” aos quais o jornalista se refere na
reportagem supracitada, são bem mais numerosos do que se poderia pensar a
princípio.
Arrisco-me a apontar alguns temas frequentes quando da publicação de
artigos sobre os problemas que assolam os moradores da capital federal: (1)
1 Como esse artigo, muitos outros primaram por essa exacerbação do caráter positivo da cidade, dentre elas: “A despedida de Brasília”, Correio Braziliense, 20 de dezembro de 1960; “Brasília: acontecimento culminante do ano de 60”, Correio Braziliense, 01 de Janeiro de 1961; “75 dias de administração no 1o aniversário de Brasília”, Correio Braziliense, 21 de abril de 1961; “Primeiro Aniversário”, Correio Braziliense, 21 de abril de 1961; “Brasília agradece”, Correio Braziliense, 28 de maio de 1961; “Brasília se fixou como capital da República, paralelamente à condição de cidade humana”, Correio Braziliense, 19 de abril de 1962; “Brasília é garantia de saúde e de longevidade para os moradores”, Correio Braziliense, 13 de maio de 1962; “Uma capital”, Correio Braziliense, 25 de maio de 1962; “Aniversário de Brasília”, Correio Braziliense, 15 de março de 1963; “Exame de Brasília”, Correio Braziliense, 31 de março de 1963; “Duas entrevistas e um tema: Brasília – Nem que eu vivesse mil anos”, Correio Braziliense, 31 de março de 1963; BARRET, Thomas. “Os dias antigos de Brasília”, Correio Braziliense, 05 de abril de 1963; “Aniversário de Brasília”, Correio Braziliense, 10 de abril de 1963; “Brasília avança”, Correio Braziliense, 23 de abril de 1963; “Público leitor de Brasília já dispõe de 21 bibliotecas para seus estudos”, Correio Braziliense, 20 de outubro de 1963; VASCONCELOS, Adirson. “Brasil reencontra-se em Brasília (II) – Uma cidade de pioneiros bandeirantes e ‘cortesões”, Correio Braziliense, 11 de março de 1965; VASCONCELOS, Adirson. “Brasília”, Correio Braziliense, 16 de setembro de 1967; “As alegres noites de Brasília”, Correio Braziliense, 19 de dezembro de 1968; SIMÕES, Carlos. “A cidade dos meus sonhos (II) – Brasil jovem apóia e crê em Brasília”, Correio Braziliense, 4 de abril de 1970; “Editorial – Brasília, patrimônio a preservar”, Correio Braziliense, 12 de abril de 1970; NATAL, José. “Brasília: uma sociedade para o futuro”, Correio Braziliense, 17 de abril de 1970; SIMÕES, Carlos. “A cidade dos meus sonhos (X) – Brasília já nasceu religiosa”, Correio Braziliense, 18 de abril de 197; “Em Brasília se trabalha bem”, Correio Braziliense, 21 de abril de 1970; “Tudo é realização nos dez anos da cidade”, Correio Braziliense, 21 de abril de 1970; “Editorial – a cidade é uma só”, Correio Braziliense, 15 de julho de 1970.
4
serviços (telefonia, ruas esburacadas, transporte, etc.); (2) desemprego; (3)
habitação; (4) violência; e, por fim, (5) o surgimento de favelas no perímetro urbano
do plano piloto. Ainda em 1960, vários são os artigos que denunciam problemas na
cidade recém-inaugurada.
Entretanto, todos os problemas parecem menores quando se fala na
necessidade de erradicar as favelas que existiam no plano piloto. O problema das
chamadas “invasões” torna-se questão recorrente entre aqueles que fazem a cidade
e que falam sobre ela. O Correio Brasiliense – criado para ser o porta-voz do dia a
dia da cidade – não fica de fora desse debate, e traz à tona uma série de questões
pertinentes. Erradicar favelas é “limpar” o plano piloto de tudo aquilo que se
contraponha ao projeto de monumentalidade que se tentava imprimir à cidade.
Por exemplo: em uma série de cinco reportagens publicadas em sessão
intitulada “A Cabana e o Palácio”, José Hélder de Souza discute a situação da Vila
Planalto.2 A primeira dessas reportagens, publicada em março de 1963, apresenta
o problema a partir da referência de uma cientista inglesa sobre a vila, a qual
afirmava ser impossível existir, junto a um conjunto de “palácios de arquitetura
ousada e renovadora”, pessoas vivendo em “um amontoado disforme de barracos”,
em condições de baixíssimo padrão de vida. A Vila Planalto é vista, por essa
cientista, como uma favela que enfeia o plano piloto e que contrasta com sua
exuberância arquitetônica. (SOUZA, 1963)
A política de erradicação de favelas/invasões empreendidas pelo
Governo do Distrito Federal, priorizou a criação de cidades satélites para abrigar
essa população. Textos como os de Gustavo Lins Ribeiro, Neio Campos, Aldo
Paviani3, discutem e documentam essas experiências. Falar da criação
2 A Vila Planalto “tomou emprestado esse nome de uma companhia americana então responsável
pelas estruturas metálicas dos ministérios e pela barragem do Paranoá, era um conjunto de acampamentos de várias empresas de construção, aí localizados pela sua proximidade com a Praça dos Três Poderes”. RIBEIRO, Gustavo Lins. “Arqueologia de uma cidade: Brasília e suas cidades satélites”. Espaço & Debates, no 5, ano 2, abril, 1982, p. 116. O arqueólogo Gustavo Ribeiro afirma que além da construtora Planalto, empresas como Ecisa, Rabelo, Pacheco Fernandes Dantas, Nacional e Pederneiras, abrigavam na Vila Planalto os seus operários.
3 RIBEIRO, Gustavo Lins. “Acampamento de grande projeto: uma forma de imobilização da força de trabalho pela moradia”; CAMPOS, Neio. “A segregação planejada” e PAVIANI, Aldo. “A construção
5
“descontrolada” de cidades satélites é, de certa forma, perceber a insuficiência de
um plano diretor. Por melhor estruturado que esteja, um projeto urbanístico não
consegue dar conta da pluralidade de personagens, trajetórias, escolhas,
direcionamentos que seu plano assumem no momento de ser posto em prática.
Mesmo numa cidade em que a proposta pressupunha um uso racional do espaço e
que essa estrutura garantiria uma convivência harmônica e um caráter mais social,
como era o caso de Brasília, a experiência traça caminhos outros, delimita outros
limites e impõe outros desenhos.
É interessante perceber como vários textos que buscam falar sobre a
experiência “desconcertante e decepcionante” de Brasília no que concerne ao seu
caráter social, partem da discussão das cidades satélites como exemplo para essa
experiência de marginalização da população pobre, dos operários. Como pensar,
então, essas cidades, criadas para abrigar a população mais pobre da cidade? Essa
cidade que, em seu plano diretor, previa a convivência de ricos e pobres e a
supressão das diferenças sociais? Como pensar, como afirmou o arquiteto Luiz
Alberto Gouvêa, essa segregação planejada?
Este trabalho, portanto, busca ler a cidade a partir das falas dos
moradores de um desses núcleos satélites. Perceber a cidade em sua
complexidade, na pluralidade de seus usos e valores, ou como nos ensina Argan,
se, por uma hipótese absurda, pudéssemos levantar e traduzir graficamente o sentido da cidade resultante da experiência inconsciente de cada habitante e depois sobrepuséssemos por transparência todos esses gráficos, obteríamos uma imagem muito semelhante à de uma pintura de Jackson Pollock, por volta de 1950: uma espécie de mapa imenso, formado de linhas e pontos coloridos, um emaranhado inextricável de sinais, de traçados aparentemente arbitrários, de filamentos tortuosos, embaraçados, que mil vezes se cruzam, se interrompem, recomeçam e, depois de estranhas voltas, retornam ao ponto de onde partiram. (ARGAN, 1993, p. 231)
injusta do espaço urbano” In: PAVIANI, Aldo (org.) A Conquista da Cidade: movimentos populares em Brasília. 2. ed. Brasília, Editora da UnB, 1998. Não podemos deixar de registrar também a contribuição de outra coletânea organizada por Aldo Paviani para o entendimento dessa questão: PAVIANI, Aldo. Brasília, moradia e exclusão. Brasília, Editora da UnB, 1996.
6
Mesmo sabendo da impossibilidade de resgatar essa infinidade de usos
que cada um dos passantes faz da cidade, a proposta deste trabalho é empreender
uma bricolagem dos diversos e distintos textos que esses personagens criam e,
dessa maneira, atribuem forma à cidade. A busca por esse acesso a outra dimensão
da cidade, implica um deslocamento do lugar ocupado pelo pesquisador, este agora
prima pela exploração das margens, visando perceber como os consumidores
marginais de Brasília fabricam textos, poesias, ações sub-reptícias que compõem a
cidade, que arranham sua disciplina. Mas esse deslocamento só é possível porque
o historiador não pode mais ser considerado, como afirma Certeau,
o homem capaz de construir um império. Não visa mais o paraíso de uma história global. Circula em torno das racionalizações adquiridas. Trabalha nas margens. Deste ponto de vista se transforma num vagabundo. Numa sociedade devotada à generalização, dotada de poderosos meios centralizadores, ele se dirige para as marcas das grandes regiões exploradas. ‘Faz um desvio’ para a feitiçaria, a loucura, a festa, a literatura popular, o mundo esquecido dos camponeses, a Ocitânia, etc., todas elas zonas silenciosas. (CERTEAU, 1982, p. 87)
Perambular pelas margens é acreditar numa antidisciplina (ou seria uma
adisciplina?) produzida pelos consumidores ordinários que com suas “artes de
fazer” fabricam outros textos para a cidade, e é essa crença que torna possível
pensar a proposta desse desvio. Todavia, mesmo dentro desse universo fluido,
plástico e plural, é preciso que o historiador procure as regularidades, pois esses
consumidores ordinários produzem fissuras, criam erosões, aproveitam-se de
restos para construírem outras brasílias e imprimirem nela suas marcas.
Esse trabalho ao apropriar-se dessas marcas, dessas erosões
produzidas pelos passantes, joga com os limites para produzir sua própria
bricolagem e escrever um outro texto, uma outra poesia para a cidade. Mas é
preciso que fique claro que esse exercício de apropriação não tem a pretensão de
dar voz aos consumidores, nem de falar por eles, mas de construir uma historicidade
a partir de uma colcha de retalhos, unindo os fragmentos dos textos produzidos
7
pelos passantes da cidade, para a fabricação de um outro texto, o seu texto, o texto
histórico.
Neste percurso, minha inserção na cidade dar-se-á pelo diálogo com a
memória de moradores da cidade satélite Sobradinho. Falas de alguns personagens
que serão estimulados a lembrar. Lembrar-se de um tempo que foi sacralizado por
outras formas de discurso, por discursos que falam por eles, torna-os não só
moradores de cidades-satélites, mas consumidores satélites. Essa temporalidade
se apresenta, para mim, com sendo instigante e desafiadora. Como afirmou
Nietzsche “lembrar é também um exercício de esquecimento”; interpretar falas,
gestos, expressões faciais, lágrimas, sorrisos e silêncios não é fácil, mas fascina.
A escolha de trabalhar com Sobradinho, que encontra-se situado a 22
km do plano-piloto, se justifica pelo fato de ela ter sido criada com o intuito de ser
uma cidade com características rurais – o que contrastava com o projeto de Brasília:
símbolo da arquitetura e do urbanismo modernos. Paradoxalmente, essa cidade
teve o seu espaço urbano planejado e pensado por Lúcio Costa e um grupo de
arquitetos e engenheiros de sua confiança. Criada em maio de 1960, mas só
oficializada em 1973, Sobradinho é considerada um importante lugar de produção
cultural de Brasília. Nessa cidade estão localizados o Pólo de Cinema e Vídeo do
Distrito Federal - “Grande Otelo” – e vários ateliês de artistas plásticos, além de
algumas propriedades que exploram o turismo rural.
As imagens e falas sobre essa cidade aparecem aqui como suporte para
o encaminhamento das discussões a que nos propomos ao longo do trabalho. O
primeiro capítulo, intitulado “Brasília revisitada, cinquenta anos e cidades satélites:
uma breve discussão” apresenta um debate sobre o conceito de cidade e o
desenvolvimento de trabalhos promovendo diálogos entre história e a urbanidade,
bem como uma discussão mais pontual sobre as chamadas cidades-satélites de
Brasília e o seu significado no plano piloto proposto por Lúcio Costa. A ideia é
trabalhar nesse capítulo os diferentes discursos que constroem a relação entre
Brasília (plano piloto) e suas cidades satélites. Hoje em dia há uma explosão de
criação de novos espaços para abrigar o inchaço populacional na cidade. Pretendo,
8
no entanto, discutir as primeiras cidades satélites, até porque o enfoque central seria
não discutir cada uma delas em separado, mas a concepção mais geral do “papel”
atribuído a essas cidades para aqueles que fazem a administração da cidade.
No capítulo intitulado “A “Petrópolis brasiliense”, uma contradição para
os planos de Lúcio Costa?” a ideia foi discutir a história de Sobradinho e perceber
que imagem é construída para essa cidade satélite que fora concebida como um
espaço de “contraposição” ao que aparecia como diretriz do plano piloto, ou como
seu complemento. A inserção de Sobradinho no Distrito Federal, seus indicadores
socioeconômicos e como essa cidade vai ganhando corpo e importância na Região
Administrativa V. No subcapítulo “A cidade é uma só: Brasília e as cidades satélites”,
o Distrito Federal ganha espaço e dentro dele Sobradinho se destaca em sua
relação com o plano piloto, com Brasília. Como trabalhar com identidades plurais,
que só são entendidas se atreladas umas às outras?
O terceiro capítulo “Histórias que só existem quando são lembradas”:
personagens e trajetórias de moradores de Sobradinho (DF)” compreende a
apresentação do debate em torno dos trabalhos com memória e a história oral.
Autores como Benjamim, Proust, Nora, Halbwachs, Bergson, Bosi, Jacy Seixas,
Nancy Aléssio Magalhães, Antônio Montenegro, Alessandro Portelli, Janaina
Amado, dentre outros, tornam-se referências obrigatórias nesse debate. Pensar a
inserção do historiador na cidade através das falas e das lembranças dos diferentes
passantes que a compõem. Que símbolos são acionados quando as lembranças
emergem ao falarem de Brasília? Suas cidades satélites são realmente vistas como
espaços apartados do núcleo central (plano piloto), ou são como bairros desta
mesma cidade? Há entre os brasilienses uma memória que institui a tão propagada
segregação entre o plano e as satélites, ou ela é uma construção historiográfica?
No processo de tombamento da cidade que imagens são acionadas e que signos
de memória são considerados marcos representativos de sua história?
Convido o leitor a partilhar comigo a experiência de perambular por esses
espaços, construir conjuntamente imagens plurais para as experiências igualmente
plurais que emergirão nessas páginas dando contornos à Brasília, à Sobradinho, ao
9
Distrito Federal como um todo. São textos, imagens, falas, perspectivas que
montam um caleidoscópio de possibilidades de leitura do urbano e que, sempre que
acionado, cria imagens e perspectivas outras, sempre marcadas pelo olhar e pelas
escolhas daquele que lê, que se dedica a formular uma impressão sobre aquelas
cidades.
Sobradinho aparece em sua relação com o Plano Piloto (Brasília), mas
não desaparece nessa relação. Imprime nela suas marcas e toma pra si o lugar de
produção e de cristalização de uma memória que lhe é própria, de seu crescimento
e consolidação urbanos e da memória dos seus moradores. Tomo como minhas, as
palavras de Nancy Aléssio Magalhães e Marta Litwinczik Sinoti, ao afirmarem que
“os relatos dessas experiências revelam, acima de tudo, como estes sujeitos se
reconhecem como construtores de espaços que, por si só, não existiriam na história
do DF ou de qualquer outra cidade”. (MAGALHÃES; SINOTI, 2001, p. 10) Deixemo-
nos envolver por essas narrativas construtoras de espaços tão plurais quanto suas
próprias trajetórias.
11
BRASÍLIA REVISITADA, CINQUENTA ANOS E
CIDADES-SATÉLITES: UMA BREVE DISCUSSÃO
“uma flor naquela terra agreste e solitária (...) uma imagem do Brasil do futuro.” (SANTOS, 2010, p.73)
com essa fala que Milton Santos apresenta a imagem
construída pelos idealizadores de Brasília4. Em texto publicado
em 1964, e republicado na revista Risco quando da
comemoração do cinquentenário de Brasília, Santos apresenta Brasília como uma
“cidade sem passado”, uma cidade que nasceu para ser centro administrativo do
país e que deveria cumprir essa função. É interessante pensar como, para Santos,
Brasília vai se constituindo cada vez mais como uma “Capital voluntariamente
construída e cada vez menos um canteiro de obras” (SANTOS, 2010, p. 73), muito
embora tenha sido consagrada, por seus idealizadores e pela historiografia sobre a
cidade5, como tendo sido fruto da vontade criadora e da coragem de um só homem:
Juscelino Kubitschek.
A construção da cidade e a simbiose existente entre ela e JK6 parecem
corroborar para Santos a ideia de que a vontade criadora do então Presidente da
4 Os idealizadores de Brasília são aqueles que estiveram diretamente envolvidos na sua concepção
e efetivação, a saber: Juscelino Kubitschek, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. 5 Sobre essa discussão, ver: LUZ, Clemente. Invenção da cidade: (Brasília). 2 ed. Rio de Janeiro,
Record; Brasília, INL, 1982; VAITSMAN, Maurício. Quanto custou Brasília. Rio de Janeiro, Ed. Posto de Serviço, 1968. (Col. Livro-Verdade); ORICO, Osvaldo. Brasil: capital Brasília. Rio de Janeiro, Serviço Gráfico do IBGE, 1958; ALMEIDA, T. F. de. Brasília, a cidade histórica da América. Rio de Janeiro, Depto. de Imprensa Nacional, 1960; COSTA, Lúcio. Registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das Artes, 1997; GICOVATE, Moisés. Brasília: uma realização em marcha. São Paulo, Melhoramentos, 1959; GOROVITZ, Matheus. Brasília uma questão de escala. São Paulo, Perspectiva, 1985; MIRANDA, Antônio. Brasília, capital da utopia: visão e revisão. Brasília, Thesaurus, 1985; SILVA, Ernesto. História de Brasília. Brasília, Coordenada / INL, 1971; SILVEIRA, Peixoto da. A nova capital – porque, para onde e como mudar a capital federal. Rio de Janeiro, Pongetti, 1957; FERRAZ, Olimpio. Brasília. São Paulo, Editora Fulgor, 1961.
6 A construção dessa simbiose aparece discutida em minha dissertação de mestrado: CEBALLOS, Viviane G. de. “E a história se fez cidade...”: a construção histórica e historiográfica de Brasília. 2005. 200f. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, 2005.
É
12
República e sua política desenvolvimentista, aliadas ao subdesenvolvimento do
país, poderiam justificar a aproximação de Brasília com as demais cidades latino-
americanas. Embora tenha sido construída para ser exemplo de uma cidade sem
“vícios” e que surgiu e cresceria de forma planejada, Brasília ganha características
próprias dos desequilíbrios regionais brasileiros, tais como crescimento
desordenado, desemprego, favelização, etc.7 Para Santos, uma das características
mais marcantes desse processo decorreu da população migrante – os “candangos”:
A essa população de trabalhadores deve Brasília muitas das suas condições atuais; e as próprias características dessa população estão estreitamente ligadas ao subdesenvolvimento nacional. (SANTOS, 2010, p. 75)
São pessoas que se instalaram na cidade para construí-la, ou mesmo
para consolidá-la. Pessoas que optaram por viver na cidade mesmo quando esta já
não absorvia toda a mão de obra migrante. Santos aponta, já em 1964, que a cidade
não comportava mais toda a massa migrante, em virtude da diminuição no ritmo das
obras, e dessa forma, essa população se deslocava para as cidades do seu entorno.
Não há trabalho suficiente, não há moradia, não há transporte, enfim, não há, em
Brasília, estrutura para receber e abrigar toda a população que foge das dificuldades
vividas em suas regiões de origem.8
Apesar da dificuldade para a construção e implantação, Santos afirma
que Brasília se tornou irreversível e constitui uma “antecipação do futuro do país”.
Atribui a essa dimensão futurística à sua originalidade. Para ele, não há qualquer
contradição quando os candangos indagam se a cidade não está em busca de uma
alma, de algo que a identifique e a caracterize, pois, sua modernidade e o fato de
7 Sobre a ocupação desordenada nos espaços de Brasília e como este processo influenciou na
consolidação da cidade na atualidade, ver: PAVIANI, Aldo (org.). A conquista da cidade. Movimentos populares em Brasília. 2 ed. Brasília: EDUnB, 1998; PAVIANI, A.; FERREIRA, I. C. B.; BARRETO, F.F.P. (org.). Brasília. Dimensões da violência urbana. Brasília: EDUnB, 2005; REIS, Calos Madson. Brasília: espaço, patrimônio e gestão urbana. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Brasília (UnB), Brasília, 2001.
8 Sobre o processo migratório para Brasília ver: SILVA, Rubens de Morais. Memórias e identidades num vai-e-vem de migrações. Bonfinópolis de Minas (MG) – Brasília (DF) (1970-2000). Dissertação (Mestrado em História Cultural). Universidade de Brasília – UnB. Brasília, 2007;
13
ter sido construída em um país subdesenvolvido, parecem constituir a sua
identidade.
É interessante refletirmos sobre a publicação de um texto como este
escrito em 1964, na edição da Revista Risco, que, de acordo com seu editorial,
presta uma pequena homenagem ao aniversário da cidade e aos seus formuladores, mas sobretudo, presta homenagem a investigação sobre a realidade que Brasília solicita, para que a imaginação, ao mesmo tempo seja livre e, sobretudo, fértil em dados, pesquisas e reflexão crítica, base para superação de ingênuas alegorias futuristas, espaciais e sociais. (Revista Risco, 2010, p. 02)
A necessidade de trazer à tona as discussões apresentadas por
Santos(2010) no período de consolidação da cidade nos parece sintomática na
medida em que retoma pontos de definição e de críticas à Brasília, os quais
configuram-se como recorrentes quando se fala sobre ela ou a toma como objeto
de pesquisa. O seu aniversário de 50 anos ensejou uma enxurrada de publicações
com o propósito de discutir, classificar, definir, criticar a cidade. Quase um exercício
de reconstrução de Brasília nas falas de seus pesquisadores e memorialistas, nos
“rios de tinta que fluirão em livros, revistas, ensaios, entrevistas, programas na tv,
sites, filmes” mencionados por Roberto Segre (SEGRE, 2010).
Outras leituras sobre a cidade se forjaram nesse “rio de tinta”. Brasília
deixa de ser considerada, por alguns, quase como uma “flor de estufa” pensada
para além dos usos e significações que lhes são próprios.
Brasília é o Núcleo Bandeirante, Taguatinga, Gama, Ceilândia, Cruzeiro, Sobradinho, Planaltina, Brazilândia, Samambaia, Vale do Amanhecer, com todas as suas contradições sociais e espaciais, com suas injustiças, com a sua feiúra, com a sua corrupção. Agora, no 2010, Brasília não é mais um símbolo abstrato, mas a representação real do Brasil. (SEGRE, 2010)
Brasília parece assumir para si as características próprias das cidades
brasileiras, com seus vícios, problemas, belezas e positividades. Raúl Pastrana
(2010) em diálogo claro com o texto “Registro de uma vivência” de Lúcio Costa,
14
chama atenção para a necessidade de “salvar Brasília”. Esta operação de
“salvamento” da cidade passaria pelo respeito ao planejamento original, e ainda
pelo combate à crescente exploração descontrolada de seu território – um processo
que ocorre “globalmente em Brasilia y en su conurbación desde hace ya varios
decenios”. (PASTRANA, 2010) Há, para o autor, a necessidade de criação de um
“Plano Global de Planificación Territorial” com marcante defesa do plano elaborado
por Lúcio Costa. A elaboração deste Plano garantiria respaldo para intervenções,
tanto no Plano Piloto, quanto nas cidades satélites, visando racionalizar a ocupação
territorial na cidade. No entanto, Pastrana(idem) alerta que a cidade “por su
definición, no estará terminada nunca porque la ciudad ES construcción
permanente, porque la ciudad es proceso” (PASTRANA, 2010). Desta forma, não
há como desconsiderar o movimento de transformação inerente a qualquer
conturbação.
* * *
Mas... o que é a cidade? Como o historiador pode problematizar esse
espaço e as atribuições e imagens construídas para ele? As cidades são, para
Bresciani (2007), uma experiência visual. Ruas, prédios, praças, vazios, igrejas,
prédios públicos, tudo isso dá materialidade à cidade. Mas, é também,
Um lugar saturado de significações acumuladas através do tempo, uma produção social sempre referida a alguma de suas formas de inserção topográfica ou particularidades arquitetônicas. (BRESCIANI, 2007, p. 237)
Partindo dessa reflexão, os traçados de suas ruas constituem a memória
que nos possibilita conhecer um pouco da sua história. A cidade ganha os contornos
próprios de sua materialidade e se apresenta ao habitante, ao visitante, ou mesmo
ao pesquisador, como passível de ser apreendida e (re)construída a partir das
possibilidades de transformação deste mesmo espaço. Há uma constante busca de
referenciais que direcionam e “educam” o nosso olhar para o entendimento do
urbano. Quando o olhar se depara com bairros urbanizados ou higienizados, vai em
15
busca da identificação de “ícones representativos” da história do lugar. Ícones que
apresentam também o processo de modificação, o “progresso” vivenciado por
aquela cidade em determinado momento.
A intervenção nos traçados das cidades constitui uma forma de
sistematização das políticas sanitaristas, a cidade parece ganhar forma de um
grande palco onde se forja e se vivencia um modelo de civilidade com códigos e
ícones que sintetizam projeções para aquele espaço. Este caráter de
monumentalidade parece quase um requisito quando se fala de Brasília, por
exemplo. Sir William Holford afirmava, já em 1957, que “na capital, o essencial não
é ser feliz, é viver num monumento.” (XAVIER, 1962: 279) Mesmo tendo esse
caráter de monumentalização dos espaços e seus usos, o urbanismo, a
transformação do espaço físico citadino não pode prescindir o vínculo dessas
transformações visuais com os significados que a elas são atribuídos.
Urbanizar e conferir um aspecto mais moderno, regular o presente e prever as demandas futuras. Tal foi a intenção dos vários planos de intervenção nas cidades. Traçados de ruas, abertura de novos bairros, zoneamento, adoção de técnicas construtivas atualizadas, estilos adequados para expressar visualmente a modernidade. (BRESCIANI, 2007: 255)
O urbanismo é entendido como um processo que visa interpretar,
estabelecer, reorganizar, controlar, dentre outros, a conformação da cidade.
Estabelece-se quase como um processo de programação, de projeção de uma série
de dados em ações que se julgam eficazes para responder às demandas de um
determinado tempo e de determinado espaço. Argan (1993) discute o papel que é
atribuído, por exemplo, ao urbanista. É aquele que projeta as ações
transformadoras, mas não as coloca em prática. Então, como poderia o urbanista
atender, em seu planejamento, às demandas que se colocarão no futuro? Que
direito tem este urbanista de impor ao futuro exigências e demandas próprias de
seu tempo? Interessante perceber como Argan (idem) nos coloca um desafio que
extrapola o entendimento dessas questões, afirmando que se entendemos o
urbanista como quem projeta para o futuro, podemos estender sua ação também
16
para o passado, ou seja, ele é quem define o que deve ser conservado. Nessa
perspectiva, ao urbanista é reservado um lugar de extrema importância: a ele é dado
o direito de definir as demandas futuras de uma sociedade; definir o que merece ser
conservado e, de certa forma, monumentalizado como ícone representativo da
cidade.
O problema para Argan (1993) é a posição defendida por Marcílio Ficino
quando este afirma que
o valor de uma cidade é o que lhe é atribuído por toda a comunidade e se, em alguns casos, este é atribuído apenas por uma elite de estudiosos, é claro que agem no interesse de toda a comunidade, porquanto sabem que o que hoje é ciência de poucos, será amanhã cultura de todos. (ARGAN, 1993: 228)
Argan (idem) vai além e diz que o significado atribuído à cidade ou aos
seus espaços mais restritos, está relacionado à forma como eu [habitante da cidade]
a experimento, como eu lhe atribuo valor, a partir das trajetórias dos diferentes
“consumidores” da cidade, suas experiências individuais, os caminhos por eles
percorridos. Os traçados por eles estabelecidos dão os contornos da cidade,
definem o valor e os significados atribuídos ao urbano e aos símbolos de
modernidade, ou de memória nele encontrados. De acordo com Argan (1993), “O
valor de uma cidade não é dado por uma sociedade em abstrato, ele é construído,
formado por cada um de seus componentes.” (p.234). A busca de racionalização do
espaço das cidades diminui - senão exclui - a possibilidade da surpresa, do
imprevisível. Os habitantes da cidade não utilizam sempre os mesmos caminhos,
buscam alternativas mais rápidas para chegarem aos seus destinos. Os usos das
cidades são infinitos e de uma pluralidade inalcançável para o pesquisador, ou
mesmo para aqueles que buscam intervir neste espaço e normatizar os seus usos.
Assim, ao historiador do urbano fica o desafio de “ler” a cidade, que é,
acolhendo a proposta de Ferrara (1988): fazer uma análise da relação dos espaços
físicos e das atribuições de sentido dadas a ele. A cidade constitui, assim, um
17
conjunto de signos mudos e adquirem significados atribuídos por seus usuários ou
por seu leitor. Desta forma, devemos refletir sobre nosso papel de historiadores do
urbano, ao atribuirmos significados aos espaços citadinos estudados. As leituras
que empreendemos fazem parte do próprio processo de constituição das cidades.
Neste sentido, escrever a história é aprender a lidar com as várias linguagens
encontradas nestas, sem perder de vista que o nosso “discurso é o produto de um
sonho, de um sonho que no entanto não é livre” (DUBY, 1989: 41), mas controlado
pelos vestígios e pelo nosso compromisso com as fontes e com o que elas nos
permitem afirmar. A subjetividade do historiador parece atrelada a uma dose de
percepção – da capacidade de obter informações sobre os “signos mudos” – que
compõem o espaço.
Para Ferrara, é “na desordem, no caos do não-verbal, [que] o leitor é
lançado a um papel de produtor, precisa co-criar, cooperar na criação da
mensagem.” (FERRARA, 1988: 31) Ou seja, a memória do habitante, a relação por
ele estabelecida com a cidade é fundamental para dar inteligibilidade aos signos
que a compõem. O papel atribuído, portanto, ao leitor da cidade que propõe
intervenções nela, é o de lhe conferir racionalidade, um princípio de ordem, ou seja,
uma ordenação dos espaços e dos significados a eles atribuídos. Quando há uma
não adaptação do usuário a essa racionalização proposta, tem lugar o que Ferrara
(idem) chama de “poluição espacial”, a saber, espaços criados, símbolos de
modernidade e de progresso que não ganham usos e tampouco significados por
seus usuários. A cidade perde sua principal característica: a de ser “mensagem à
procura de significado que se atualiza em uso” (FERRARA, 1988, p. 40). Esta
passagem me faz recordar uma fala de uma turista ocasional de Brasília. Esta
senhora, professora universitária, ao visitar Brasília, disse: “parece um cartão postal
e não uma cidade. É algo para se ver e se admirar, não para se viver.”9 A cidade,
9 Durante uma de minhas viagens de pesquisa, estava na biblioteca da UnB e ouvi uma conversa
entre duas mulheres. Não me aproximei para perguntar o nome da professora e até explorar mais sua visão sobre a cidade por achar muito invasivo, mas acho que a fala expressa bem a discussão que aqui se apresenta. Depois conversando com um funcionário da Universidade soube se tratar de uma professora em visita a instituição.
18
assim, só se concretiza no usos que se fazem dela. Brasília parece ser o espaço
que define as formas da cidade, as relações humanas que se darão nela. O espaço
em Brasília é. É como se ela tivesse sido pensada para ser contemplada em sua
beleza. Desta forma, as cidades satélites serviriam como estratégia de manutenção
deste cartão postal? As pessoas que vivem em Brasília ou que visitam a cidade
devem ter o seu olhar educado para reconhecer em suas formas a beleza defendida
por seus idealizadores.
* * *
Com a fundação de sua nova capital, o Brasil esperava apagar de uma só vez as mazelas do passado, isto é, os resíduos de uma herança colonial, superar o subdesenvolvimento e inaugurar uma era nova e mais justa para o seu povo. (GESEHEN, 1994, p. 07)
O crescimento das cidades brasileiras está atrelado, em sua maioria, a
uma explosão demográfica, um não planejamento dos usos e da ocupação dos
espaços urbanos. Em Brasília, por muito tempo, se apostou que seria diferente.
Símbolo de um ideário urbanístico do século XX10, Brasília representa uma ideia de
garantir a partir da setorização dos usos da cidade, uma melhor qualidade de vida
para seus habitantes. Separa-se então, as áreas comerciais, das culturais e,
sobretudo, veículos e pedestres. O plano previa para cada uma das superquadras
um comércio local destinado a atender a população (açougue, padaria, mercado,
cabelereiro, etc.), no entanto, o resultado foi diferente: efetivou em algumas quadras
um comércio especializado (elétrica, farmácias, moda...), atraindo assim pessoas
10 Sobre essa discussão ver: HOLSTON, James. A capital modernista: uma crítica de Brasília e sua
utopia. (trad. Marcelo Coelho). São Paulo, Companhia das Letras, 1993; CARPINTERO, Antônio Carlos. Brasília: prática e teoria urbana no Brasil. Tese de Doutorado, FAU-USP, 1988; COSTA, Lúcio. Registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das Artes, 1997; FISHMAN, Robert. Urban Utopias in the Twentieth Century. 6 ed. Londres, MIT Press, 1997; GUNN, Philip e CORRÊA, Telma de Barros. “O Urbanismo: a medicina e a biologia nas palavras e imagens da cidade” In: BRESCIANI, M. S. M.(org.) Palavras da Cidade. Porto Alegre, Ed. Universidade UFRGS, 2001; Instituto dos Arquitetos do Brasil. Arquitetura Brasileira após Brasília – depoimentos. Rio de Janeiro, IAB, 1978; VESENTINI, J. W. A capital da Geopolítica. 4 ed. São Paulo, Ática, 1996.
19
de outras quadras para o comércio local. Brasília, a partir desses e de outros
aspectos, encerrou em si contradições e problemas que contribuíram para uma
reformulação do pensamento urbanístico. De acordo com Fernando Serapião
desde os anos de 1960, os urbanistas não rezam mais a cartilha que gerou Brasília: a separação de usos é considerada um erro, a cidade tradicional e a rua foram revalorizadas e o carro virou vilão da sociedade”. (SERAPIÃO, 2010)
Dado o fato de ser uma cidade planejada, símbolo de um ideário de
modernidade e de racionalização dos espaços, construída “onde há alguns anos
não havia mais do que o deserto e a solidão” (COSTA,1970), Brasília estaria, de
certa forma, imune à formação dos “vícios” típicos das grandes cidades, como por
exemplo, o processo de “favelização” dos centros urbanos. No entanto, este
processo ocorre em paralelo ao processo de construção mesma da cidade. Esta
expectativa de construção e consolidação de uma cidade sem vícios e que a
isentaria dos problemas característicos das cidades brasileiras não se efetiva. Nas
palavras de Segre,
Seria ingênuo pensar que Brasília ficaria incontaminada e distante da pobreza, da violência e da corrupção que existiu sempre em Rio de Janeiro, São Paulo ou Belo Horizonte. (SEGRE, 2010)
Ou seja, por mais expectativa que fosse gerada, não havia a possibilidade de
criação de uma cidade “imune” aos problemas nacionais.
No Brasil do início do século XX, as cidades são palco da intervenção de
técnicos dedicados às inúmeras tentativas de controle e de adequação dos espaços
às concepções de modernidade e de salubridade tão caras aos urbanistas. Um olhar
marcado pela recusa às experiências de vida em meio à desordem, à insalubridade,
à miséria, ao caos, à falta de higiene física e moral que caracterizavam a vida
citadina. Viver na cidade implicava, portanto, uma nova ordenação espacial, política,
social, religiosa; era um reelaborar do imaginário daquele que migrava; era um
processo de desterritorialização. Consistia, sobretudo, em adaptar-se a um novo
20
conjunto de códigos e de imagens, outrora desconhecido. Àqueles que saem do
campo e são acostumados a lidar com códigos e hierarquias sociais pretensamente
rígidas, resta o choque em meio a fluidez e a efemeridade características das
cidades grandes.
É neste espaço cosmopolita que os extremos sociais ganham
visibilidade. Maria Elaine Kohlsdorf (1985) afirma haver, já no início do século
XX, uma crítica ao urbanismo, dado a cidade teimar em extrapolar as
categorias estabelecidas por aqueles em busca de entendê-la e normatizá-
la. A cidade “tornou-se uma entidade observada à luz de raciocínios que se
voltam a definir problemas na mesma, e a propor soluções para eles,
compondo um movimento de controle dos processos urbanos.”
(KOHLSDORF, 1985, p. 33)
Assim, o urbanismo se consolida cada vez mais próximo do poder
público instituído e dá à sua disciplina os contornos pretendidos. Kohlsdorf
(idem) afirma ser menos na sociologia ou na economia, e mais na geografia
onde aparecerá de forma mais eficiente as contribuições para as
transformações nas concepções de espaço urbano, um simples cenário para
as ações humanas, ou, como afirma Milton Santos, um fato histórico e social:
um conceito básico é que o espaço constitui uma realidade objetiva, um produto social em permanente processo de transformação. O espaço impõe sua própria realidade, por isso a sociedade não pode operar fora dele. Consequentemente, para estudar o espaço, cumpre apreender sua relação com a sociedade, pois é esta que dita a compreensão dos efeitos dos processos (tempo e mudança) e especifica as noções de forma, função e estrutura, elementos fundamentais para a nossa compreensão da produção de espaço. (SANTOS, 1985, p.4)
Os diálogos com a sociologia, a antropologia, a história, a geografia
e outros campos do conhecimento dedicados a estudar e a definir a cidade
como um espaço marcado pela multiplicidade, parecem influenciar mais as
21
leituras acerca da cidade do que as ações empreendidas como forma de
controlar o espaço e as ações a serem realizadas nele.
Assim, há que se considerar, salientando-se a história em
associação com as forças de organização do espaço, essa outra perspectiva
de uma cidade que se projeta, que se “disciplina” em tal relação. Ou seja, um
espaço que é definido pelas demandas próprias de seu tempo e que
respondem a uma disciplina característica dele, ainda uma cidade sobre a
qual se projetam valores e para a qual se projeta um futuro marcado pela
urbanização dos grandes centros e do disciplinamento dos seus usos. Este
processo de violenta urbanização que tomou conta dos países considerados
“civilizados” transformou não só os espaços físicos das cidades, mas a vida
das pessoas que nela viviam, disciplinou seus corpos, limitou seus passos,
normatizou seus hábitos. As cidades que sofreram intervenção técnica
proposta por um ideário de modernidade e de salubridade, parecem ser
reservadas aos cidadãos que aceitem e assumam a disciplina espacial
proposta.
Este processo de transformação espacial, social e cultural, no
entanto, não ocorre sem tensões e conflitos. As reformas urbanísticas
pressupunham a criação de novas subjetividades, novas práticas sociais no
desenvolvimento das cidades e no processo de controle dos corpos que nelas
viviam. A vida nas grandes cidades, argumenta Simmel (1976), pressupõe
outra concepção de tempo, outra disposição para as relações e para os
interesses individuais. Aos indivíduos está reservado um processo de
negociação constante consigo e com os outros habitantes, não mais um
homem imerso em uma coletividade, mas o indivíduo, como um elemento em
si mesmo indiferente, intercambiável. Apenas a realização objetiva,
mensurável, é de interesse. Assim, o homem metropolitano negocia com seus
fornecedores e clientes, seus empregados domésticos e, frequentemente, até
22
com pessoas com quem é obrigado a ter intercâmbio social. (SIMMEL, 1976,
p.13)
As relações se dão num constante negociar, numa constante
tentativa de controle da subjetividade pela racionalidade e implica na criação
de outros modelos de sociabilidade para a “sociedade civilizada”. A
derrubada dos muros das cidades antigas cria a ideia de um inimigo não mais
extramuros, mas imerso na própria cidade. A metrópole exige aprendizado
para lidar com os novos desafios inerentes à vida urbana. É esse conjunto de
novos desafios que os modelos intervencionistas buscam colmatar.
Entretanto, os modelos de intervenção e de controle criados se mostraram
insuficientes para possibilitar as transformações almejadas. Na cidade
emergiram várias instituições e códigos de sociabilidade propostos para ser
instrumentos capazes de segregar esses homens, marginalizando-os do
modo de vida ordenado e exemplar instituído como legítimo.
O ideal da modernidade, o processo de crescente urbanização, as
massas populacionais ocupando cada recanto das cidades apontaram, entre
tantos outros aspectos, para a grande transformação de um mundo que há
séculos vinha desenvolvendo-se com a defesa do crescente domínio da
razão, um processo de busca de controle e de racionalização dos espaços,
dos hábitos e das individualidades para a formação da nação e da civilização.
Nas palavras de Bolle (1994):
O século XIX não soube corresponder às novas possibilidades técnicas com uma nova ordem social. Assim se impuseram as mediações falaciosas entre o velho e o novo, que eram o termo de suas fantasmagorias. O mundo dominado por essas fantasmagorias é – com uma palavra-chave encontrada por Baudelaire – a Modernidade. (BOLLE, 1994, p.24)
23
Mesmo sem reduzir as discrepâncias entre o progresso da técnica
e a não-criação de um mundo melhor, o século XX é marcado pela
interdisciplinaridade, pela emergência de um urbanismo que vê a cidade
como campo de atuação de técnicos, médicos sanitaristas, engenheiros civis
e arquitetos, por exemplo. Nesse processo de urbanização das cidades
emerge uma infinidade de projetos de intervenção no espaço urbano; projetos
com a intenção de “urbanizar e conferir um aspecto moderno, [de] regular o
presente e prever as demandas futuras”. (BRESCIANI, 1998: 255) O traçado
das ruas, novos bairros, técnicas construtivas atualizadas foram
considerados aspectos fundamentais para expressar visualmente a
“modernidade” presente nas cidades.
Pensar a cidade e refletir sobre suas transformações é um desafio
possibilitado por uma concepção diferenciada de análise do urbano. Ao
deixar de lado as análises descritivas, que entendiam a cidade como uma
realidade isolada da região ou do rural, passa-se a entender ser o espaço,
corroborando Sá (1991), como:
um produto social em permanente processo de transformação. O espaço impõe sua própria realidade, por isso estudar o espaço, cumpre apreender sua relação com a sociedade, pois é esta que dita a compreensão dos efeitos dos processos (tempo e mudança) e especifica as noções de forma, função e estrutura, elementos fundamentais para a nossa compreensão da produção de espaço. (SÁ, 1991, p. 24)
É recorrente, entre historiadores, geógrafos e arquitetos, afirmar
que o urbanismo no Brasil sofreu uma forte e significativa influência do
urbanismo progressista francês e de suas metas: a racionalidade, a
24
modernidade e a eficácia.11 Trata-se de uma aproximação que considera o
urbano apenas como espaço físico, sem levar em consideração as questões
sociais. Dessa posição analítica decorre a certeza da inexistência no Brasil
de um distanciamento crítico ao urbanismo de outros países e de estar
vinculado às características do progressismo francês, como explicita Sá
(1991):
na medida em que o fato urbano é definido como um fenômeno unicamente físico, que em seu campo disciplinar atuam quase somente arquitetos e engenheiros civis, e que as proposições resultantes tratam o espaço urbano como um grande edifício... o urbanismo brasileiro não é crítico, é especializado, e não questiona a cidade como processo social... não existe, assumida e explícita, uma atitude de análise dos aspectos das cidades brasileiras e este fato transparece nas propostas de novas capitais como Belo Horizonte e Goiânia. (SÁ, 1991, p. 28)
Nessa mesma linha de argumentação de pensar o urbanismo
brasileiro como vinculado a uma escola estrangeira, por seu caráter “acrítico”,
se filia James Holston (1993) a respeito da construção de Brasília. Em “A
Cidade Modernista” Holston defende a influência de Le Corbusier e de todo
o urbanismo francês, vinculado ao Congresso Internacional de Arquitetura
Moderna (CIAM), na elaboração do projeto de Brasília. Um projeto de cidade
racionalmente elaborada e definida de forma a que seus espaços,
autossuficientes, conseguissem criar uma imagem de cidade ordenada,
limpa, em resposta aos padrões de modernidade e urbanização instituídos
como modelo a ser seguido.
11 HOLSTON, J. A Cidade Modernista. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; HOLSTON, James.
A capital modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia. (trad. Marcelo Coelho). São Paulo, Companhia das Letras, 1993; LAUANDE, Francisco. O projeto para o plano-piloto e o pensamento de Lúcio Costa. Arquitextos, São Paulo, 08.087, Vitruvius, ago 2007. http://www.vitruvius.com.br/ervistas/read/arquitextos/08.087/223. Acessado em 08/02/2013. Depoimento de Flavio Marinho Rêgo em Instituto dos Arquitetos do Brasil. Arquitetura Brasileira após Brasília – depoimentos. Rio de Janeiro, IAB, 1978.
25
Brasília é um pouco, ou talvez, sobretudo, fruto de um debate e de uma
elaboração de si a partir das palavras que a nomeiam, dos personagens que a criam
e edificam nela marcas profundas de uma leitura do espaço enquanto definidor de
seus textos. Christian Topalov e Jean-Charles Depaule, ao empreenderem
pesquisa sobre a cidade e suas palavras, apresentaram inquietações relativas à
possibilidade de nos inserirmos na cidade à escuta de outras vozes, alheias à
“linguagem administrativa”12 em sua insistência em normatizar, classificar e ordenar
o espaço urbano e as vivências dos citadinos. A permissão de adentrar a cidade por
sua sétima porta, como propõe Bresciani (1991)13, parece fruto de um investimento
na percepção apontada por Topalov e Depaule (2001), de que a linguagem define
e constrói o espaço numa relação entre memória e território, entre as
experimentações cotidianas e o espaço em que se desenrolam:
A cidade é constituída de territórios cujos limites são mais ou menos claros, mais ou menos permeáveis ou estanques, estáveis ou plásticos, onde as identidades religiosas, culturais e sociais expressam-se, revelam-se, mostram-se, traem-se ou se dissimulam, e interagem. (DEPAULE; TOPALOV, 2001, p.19)
Assim, esta mesma cidade ganha plasticidade, fluidez e suas fronteiras
parecem se dissipar em nome de significações que as experiências trazem à tona,
num conjunto de micro-histórias reunidas na pluralidade constituinte do urbano.
Pesquisas de autores como Certeau e Bourdieu permitem, segundo Topalov (2001),
12 Os autores apresentam duas possibilidades de linguagem que nos “guia” nos estudos sobre as
cidades: “uma [a administrativa] que privilegia as posições relativas dos objetos uns em relação aos outros e em que o sujeito não intervém de modo central; outro que, ao contrário, implica, para o locutor, uma negociação do sentido das palavras em função das situações em que as pronuncia.” (DEPAULE; TOPALOV, 2001: 21)
13 Bresciani nos ensina que há diferentes formas de entender e de se inserir na cidade como pesquisador do urbano. Faz uma analogia com as cidades antigas e suas sete portas de acesso e nos remete a possibilidade de entender a relação subjetiva das pessoas com a cidade, suas memórias, suas trajetórias, suas idiossincrasias... tudo isso a partir de uma cidade problematizada, ou seja, “atravessada pela questão da técnica e pela questão social, quando se pretendeu resolver os problemas da sujeira, da peste, das sublevações possíveis, imaginárias ou verdadeiras.” Ou ainda, eu arriscaria, quando se pensou sobre suas periferias, quando as favelas, bairros, neighborhoods ganham visibilidade e passam a intervir no espaço urbano “disciplinado”. Ver: BRESCIANI, Maria Stella Martins. As sete portas da cidade. In: Espaço & Debates. Nº 34, NERU, 1991, p. 10.
26
o entendimento de que as representações são constitutivas daquilo que chamamos
de realidade, desta forma, deixam de ser vistas como repetições objetivas, como
pressupunha o discurso científico, como ideologias interessadas, ou ainda,
manifestações culturais arbitrárias de um mundo exterior que existe
“objetivamente”. A proposta lançada visa “tomar as classificações dos atores, em
toda sua variedade, como um aspecto da própria “realidade” (DEPAULE;
TOPALOV, 2001, p. 25) e, assim, construir uma tessitura para o urbano que explore
sua plasticidade, sua multiplicidade de falas e sentidos. Há que ir além das imagens
construídas pelos registros escritos e deixar entrever outras falas, outros textos que
permitam ao historiador do urbano conhecer a cidade enquanto pluralidade.
No entanto, explorar esses textos, essas trajetórias exige certa astúcia
para não atribuir aos registros a rigidez dos discursos que buscam controlar e
normatizar o urbano e tampouco a fluidez de inúmeras subjetividades sem
aparentemente, ter relação entre si. A nós historiadores (e pesquisadores em geral)
cabem a árdua tarefa de, ao mesmo tempo, deixar-nos penetrar por essas
tessituras, e por outro, não nos deixar levar por elas e acabar retirando delas aquilo
que lhe confere plasticidade.
Há entre os historiadores, arquitetos, urbanistas, geógrafos, enfim, entre
aqueles que se dedicam a estudar Brasília, uma espécie de fixação na “áurea” de
positividade própria do momento de sua construção14. Como afirma Frederico
Flósculo, houve uma espécie de supervalorização do “big bang” brasiliense.
Interessante pensarmos o quanto essas imagens atribuídas à cidade não excluíam
manifestações de indignação e de contraposição a essa quase “aura” de
positividade de Brasília. Cito, como exemplo de contraposição, palavras de Clarice
Lispector: “Brasília é artificial. Tão artificial como deveria ter sido o mundo quando
14 Comigo não poderia ter sido diferente. Quando realizei minha pesquisa de mestrado sobre Brasília
eu acreditava que essa imagem de positividade, essa aura que parecia circundar a cidade estava dada. Somente no decorrer da pesquisa percebi o quanto plural e plástica era essa cidade que, assim como tantas outras, se molda ao sabor dos usos e desusos que seus habitantes fazem dela. Ver: CEBALLOS, Viviane G. de. “E a história se fez cidade...”: a construção histórica e historiográfica de Brasília. Dissertação de Mestrado, Campinas, SP, 2005.
27
foi criado.” (1984, p. 34) Ou ainda: “Vou agora escrever uma coisa da maior
importância: Brasília é o fracasso do mais espetacular sucesso do mundo. Brasília
é uma estrela espatifada. Estou abismada. É linda e nua.” (Idem, p. 39), segue:
“Brasília fica em lugar nenhum. A atmosfera é de indignação e você sabe porquê.
Brasília: antes de nascer, já nasceu, a prematura, a nascitura, o feto, eu enfim. Ai
que safadeza.” (Idem, 1984, p.42)
Não se constituiu ainda uma noção clara de Brasília e da forma pela qual
ela deve ser administrada e ordenada. As cidades-satélites deviam ser
consideradas bairros de Brasília e ter políticas públicas e um modo de gestão menos
destrutivo para a cidade. Para Barreto (2004),
nenhuma dessas expansões urbanas [bairros] tem um traço sequer das qualidades ambientais urbanas da cidade, naquilo que seu plano piloto tem de melhor, como cidade-jardim, ou como cidade (algo frustradamente) cosmopolita.
Muito embora nesses bairros habite cerca de 4/5 de toda a população do
Distrito Federal. Esta indefinição leva a práticas extremamente contraditórias e
destrutivas para a cidade, além de impedirem que esses bairros recebam a estrutura
e o conjunto de obras necessárias para o seu bom funcionamento. A não definição,
diz Barreto(idem), do que se considera como Brasília constitui talvez o seu maior do
paradoxo:
Os demais bairros não teriam as qualidades urbanísticas dessa área especial, e o fato de o conjunto urbano do Distrito Federal não ser visto assim, como um TODO, cria situações paradoxais para essa concepção: não defende o investimento em equipamentos urbanos de importância “capital” nesses bairros, mas defende a concentração dos símbolos de um fabricado cosmopolitismo no Plano Piloto; não se importa com a favelização do Distrito Federal, mas não quer que o Plano Piloto seja “invadido por forasteiros”; não aceita que a população participe da gestão urbana mas sonha que a defesa do Plano Piloto se torne uma bandeira popular, e por aí vai. (BARRETO, 2004)
28
O autor afirma ainda não se poder pensar ser essa a única leitura
possível dessa experiência na cidade, mas nos leva a refletir sobre os
desdobramentos de uma série de ações pós-abertura política que levou Brasília a
assumir essa face de “monstro” urbano apresentada nos anos 2000, bem distante
do ideário de “capital da esperança” tão reiterado durante os anos 50 e 60 do século
XX. Pode se pensar ser o resultado do assistencialismo e as obras faraônicas do
então governador do Distrito Federal Joaquim Roriz, as constantes práticas de
grilagem de terras públicas, ou mesmo, a ideia de que para governar Brasília é
preciso criar novidades, não importando o impacto delas ou mesmo o custo para a
cidade e seus habitantes. É como se fosse tarefa do governo manter um constante
espetáculo de reinvenção da cidade, de recrudescimento de um ideário positivo
impossível de ser encontrado na cidade consolidada. Barreto (2010) afirma que “aos
50 anos, Brasília precisa desesperadamente de mais versões de sua história, que
auxiliem a decifrar sua origem e a rota dos 50 anos que já percorreu”. Mostra neste
texto, a necessidade de versões críticas da história da cidade aptas a dar
visibilidade à sucessão de governos que desconsideraram a proposta ordenadora
de ocupação dos espaços proposta por Lúcio Costa. Ao partilhar essa ideia
apresentada por Barreto (idem), Aldo Paviani (2004) afirma que:
a cidade utópica cedeu espaço à apropriação desigual do território, com os ricos ocupando o plano piloto e adjacências e os pobres, as cidades satélites ou mesmo as muitas “invasões” que permeiam o tecido urbano. (PAVIANI, 2004)
Uma desigualdade que para muitos se encontra já prevista no plano
piloto escrito por Lúcio Costa e nos projetos de Oscar Niemeyer. Brasília reafirmaria
com veemência as diferenças de classe, por oferecer às classes mais altas uma
das melhores qualidades de vida no país, em nítida contraposição às oferecidas às
classes mais baixas. Um cenário de contrastes absurdos se espraia por todo o plano
piloto e seu entorno. (ANDRÉS, 2010). A argumentação utilizada por seus
idealizadores, os quais afirmam terem as cidades-satélites sido pensadas para
serem construídas apenas após o plano piloto atingir 500 mil habitantes. Contudo,
29
pouco foi feito no intuito de evitar a construção e a explosão dessas cidades no
entorno de Brasília, desde o momento de sua construção. Mesmo depois da cidade
construída e consolidada, não se vê muito empenho em garantir aos seus
“consumidores” condições para aproveitar a cidade tanto quanto aqueles que
possuem carro e podem usufruir dela. Andrés(idem) afirma:
vê-se novos museus e bibliotecas projetados por Oscar Niemeyer Filho, edifícios envidraçados gigantescos sendo construídos, mas nenhuma perspectiva de adequar os passeios para pedestres, construir travessias seguras e confortáveis nas grandes avenidas, e, menos ainda, de implantar um transporte público abrangente, rápido e de qualidade. (ANDRÉS, 2010)
Talvez precisemos pensar na disparidade existente entre a proposta do
urbanista e seus desdobramentos quando posta em prática e, assim, trazer também
para nossa reflexão, a fluidez desses consumos/apropriações praticados no espaço
de uma cidade, seja ela planejada ou não, num exercício que pressupõe o não
“olhar a cidade de cima” mas aceita-la em sua complexidade que a faz pulsar
(CERTEAU, 1994). Romper a ideia de uma cidade conceito e fazer aparecer a
cidade de baixo, a cidade escrita como texto por aqueles que são impossibilitados
de lê-lo, pois encontram-se envoltos nessa escritura como em um “corpo-a-corpo
amoroso”. Ou seja, perceber a pluralidade das vivências, e em como o traço exclui
a trajetória, como a configuração que se apresenta hoje como característica da
cidade não permite por si só o entendimento de sua inerente complexidade. A
cidade toma forma a partir de um processo, de trajetórias e textos. Desconsiderar
essas tessituras é desconsiderar as táticas e os consumos que seus habitantes
fazem dela; os sulcos que marcam suas ruas e as falas que entrecortam seus
prédios e fazem emergir tantas cidades quantas são os textos daqueles que nela
habitam.
30
CIDADES-SATÉLITES DE BRASÍLIA: DISCIPLINA OU DESVIRTUAÇÃO?
Deve-se impedir a enquistação de favelas, tanto na periferia urbana, quanto na rural. Cabe à Companhia Urbanizadora da Nova Capital, promover, dentro do esquema proposto, acomodações decentes e econômicas para a totalidade da população. (Lúcio Costa)
A fala do arquiteto Lúcio Costa aponta a visão quase idílica que se
pretendeu criar para a cidade e para seus núcleos satélites. Estes deveriam ser
quase como extensões do plano piloto, garantindo a seus moradores as mesmas
condições de vida daquele centro. No entanto, extrapolaram as fronteiras a eles
delimitadas na prancheta de seu principal “artista oficial”, uma vez que no plano da
construção de Brasília, não se previu a fixação dos milhares de trabalhadores
migrantes envolvidos em sua edificação. Essa inversão ocorreu, segundo
Costa(1974), pois
a população a que nos referimos, aqui ficou, e surgiu o problema de onde localiza-la. A NOVACAP, Israel Pinheiro e todos resolveram agir assim, porque, em volta de cada canteiro de obras havia favelas que envolviam as famílias dos operários. Daí a criação de núcleos periféricos, para transferir as populações, dando terreno para que se instalassem de uma forma ou de outra. (COSTA, 1974, p. 26)
A ideia inicial, contudo, pressupunha a formação desses núcleos só após
o plano piloto ter atingido sua capacidade máxima de 500 a 700 mil habitantes, fato
que explicitamos anteriormente. Só então seriam planejadas as Cidades-Satélites,
e estas deveriam se expandir “ordenadamente, racionalmente projetadas,
arquitetonicamente definidas.” (COSTA. 1974, p. 26) As falas de Costa, já com a
cidade em pleno desenvolvimento, parecem marcadas por certo rancor, certa
decepção pelo descontrole com o crescimento da cidade. Entretanto, parece-me
bastante ousada a ideia de se poder controlar não só a construção de um espaço,
mas também os seus usos. Jane Jacobs(1997) questiona:
Quem poderia antecipar ou precaver-se diante de tal sucessão de desejos e projetos? Somente um homem sem imaginação poderia
31
pensar que pode; somente um homem arrogante poderia desejar. (...) a maior parte das diversidades das cidades é a criação de um número incrível de pessoas diferentes e de diferentes organizações privadas, com diferentes ideais e propósitos, planejando e inventando para além da estrutura formal da ação pública. (JACOBS, 1997 apud FISHMAN, 1997, p. 269)
Em Brasília, o processo de edificação da cidade já partilha essa
premissa: grande número de pessoas envolvidas. Goianos, paraibanos,
pernambucanos, paulistas, mineiros, enfim, uma pluralidade já inerente nos
primeiros dias da cidade. Dessa forma, as ideias de um único urbanista e sua
equipe, iriam dar conta dessa pluralidade? Como supor que os usos pensados para
a cidade planejada seriam seguidos cegamente por todos os personagens da
história dessa cidade? As “práticas do espaço”, segundo Michel de Certeau (1996),
remetem a um conjunto de
operações (maneiras de fazer), a uma outra espacialidade (uma experiência antropológica, poética e mítica do espaço) e a uma mobilidade opaca e cega da cidade habitada. Uma cidade transumante, ou metafórica, insinua-se assim no texto claro da cidade planejada e visível.” [grifos do autor](CERTEAU, 1996, p. 172.)
Longe da percepção da cidade enquanto totalidade, enquanto
homogeneidade, o que se apresenta são as estratégias de viver, as maneiras de
fazer a trajetória do habitante da cidade (como consumidor e não como voyer) na
elaboração de imagens, de significados que, muitas vezes, parece se confundir com
a própria cidade. Uma pluralidade que tenta ser controlada por aqueles que
planejam os espaços e impedem as tessituras individuais de textos dos
consumidores da cidade.
Brasília – símbolo de uma modernidade expressa pela utopia de que a
intervenção no espaço modifica os usos que dele se faz – deixa em sua tessitura o
rompimento da sua marca de “cidade-conceito” para possibilitar entrever o pulular
32
de seus tantos caminhantes. A nós, historiadores do urbano, fica o desafio lançado
por Certeau (1996) de
Analisar as práticas microbianas, singulares e plurais, que um sistema urbanístico deveria administrar ou suprimir e que sobrevivem a seu perecimento; seguir o pulular desses procedimentos que, muito longe de ser controlados ou eliminados pela administração panóptica, se reforçaram em uma proliferação ilegitimada, desenvolvidos e insinuados nas redes da vigilância, combinados segundo táticas ilegíveis mas estáveis a tal ponto que constituem regulações cotidianas e criatividades sub-reptícias que se ocultam somente graças aos dispositivos e aos discursos, hoje atravancados, da organização observadora. (CERTEAU, 1996, p. 175)
Portanto, o traço intenciona excluir a trajetória, impede, ou tenta impedir,
a pluralidade de apropriações e significações. É preciso conhecer o que torna
possível uma configuração apresentada hoje como pronta, ou seja, é preciso
conhecer a sua própria trajetória, o seu processo original. Podemos, na contramão,
pensar: constituem as cidades satélites de Brasília sua antidisciplina ou elas serem
(re)significações das trajetórias fundidas no processo de construção desta cidade?
São um “mal necessário”? São uma desvirtuação do plano? Ou constituem
maneiras de fazer a cidade?
Em artigo publicado no portal Vitruvius, o geógrafo Aldo Paviani (2004),
autor de diversos estudos sobre a Brasília, nos instiga a refletir, sobretudo, a que
espaço nos referimos quando falamos daquela cidade? Ao plano piloto? Às cidades
do Distrito Federal? Devemos pensar, lembra Paviani, Brasília não restrita ao plano
piloto, “este é apenas o centro da cidade. Esse centro e as antigas cidades-satélites
formam o aglomerado urbano de Brasília.” (PAVIANI, 2004). Assim, perde o sentido
falar da cidade sem considerar sua natureza polinucleada, sem entendê-la a partir
da complexidade inerente a um espaço tão plural e com especificidades
características de cada um desses núcleos. Para o geógrafo baiano Neio
Campos(1998), havia na capital federal um processo por ele denominado de
“segregação planejada”, isto é, desde o plano piloto o processo de setorização e de
33
segregação da cidade já apareciam definidos. Não deveria haver surpresas quanto
às estratégias utilizadas pelo governo, uma vez que,
já se presencia uma seletivização espacial, pois o Plano-Piloto, desde o início, caracterizava-se como o espaço urbano destinado ao funcionalismo público federal e à pequena burguesia, enquanto as cidades-satélites eram formadas a partir da pressão exercida pela população migrante dos trabalhadores menos qualificados (ligados sobretudo à construção civil), que possuíam como perspectiva de moradia apenas as proximidades dos canteiros das obras, seja nos seus alojamentos ou nas denominadas “invasões”. (CAMPOS, 1998, p. 100)
Este é um debate extremamente frutífero para os que se dedicam a
estudar Brasília. Não vejo, contudo, no plano piloto elaborado por Lúcio Costa, essa
segregação posta de forma tão clara e bem definida como afirma Campos. Há,
inclusive, uma preocupação de Costa em apresentar uma proposta que, segundo
ele, conseguiria tornar possível a convivência dos mais diversos grupos da cidade
num mesmo espaço. Luiz Alberto Gouvêia(1998), arquiteto mineiro, partilha da ideia
de ser
clara a intenção de se construir o Plano-Piloto para abrigar os funcionários mais graduados do governo, e as cidades-satélites, de padrão inferior, para servir de moradia para o restante da população, ficando patente desde o início a política discriminatória, apesar dos discursos em contrário”. (GOUVÊIA: 1998, 82)
As cidades satélites seriam, assim, vistas como esse espaço periférico
destinado a abrigar a massa trabalhadora da cidade. Para muitos, uma desvirtuação
do que fora planejado para a cidade tida como referência de planejamento e
intervenção urbana no Brasil; para outros, parte constituinte dela. Uma série de
reportagens do Correio Brasiliense, traz o tema do aparecimento de favelas no
34
plano piloto e a necessidade de erradicação das mesmas, principalmente através
da construção de cidades-satélites para abrigar essas pessoas15.
As campanhas de erradicação de favelas ganha força na cidade já no
início da década de 1960 e permanecem até a década de 1970, quando uma série
de ações da Prefeitura do Distrito Federal (PDF) é anunciada no Correio Braziliense.
Em julho de 1970, o Caderno 02 deste jornal informa que “todos os setores
governamentais participam da grande batalha contra as ‘invasões’, as quais serão
distribuídas em áreas escolhidas, no Gama, em Taguatinga, em Sobradinho e em
Planaltina.”16 Estratégias que buscam retirar do plano piloto aqueles para quem a
cidade não fora pensada: os candangos17. Chamá-los de invasores recrudesce um
ideário de violência e de usurpação do direito de propriedade do outro. Esses
“invasores”, num primeiro momento, estão concentrados na chamada Cidade Livre18
15 DINIZ, Hindemburgo Pereira. “Vícios em Brasília”. Correio Braziliense, 03 de junho de 1960;
MARROQUIM, Murilo. “Cresce com a cidade o problema social”. Correio Braziliense, 14 de junho de 1960; DINIZ, Hindemburgo Pereira. “Problemas de Brasília (I)”. Correio Braziliense, 05 de setembro de 1962; DINIZ, Hindemburgo Pereira. “Problemas de Brasília (II)”. Correio Braziliense, 07 de setembro de 1962; DINIZ, Hindemburgo Pereira. “Problemas de Brasília (III)”. Correio Braziliense, 09 de setembro de 1962; DINIZ, Hindemburgo Pereira. “Problemas de Brasília (IV)”. Correio Braziliense, 12 de setembro de 1962; DINIZ, Hindemburgo Pereira. “Problemas de Brasília (V)”. Correio Braziliense, 16 de setembro de 1962; “Prates fala sobre problemas do DF”. Correio Braziliense, 17 de janeiro de 1970; “Prates promete atacar problemas das favelas”. Correio Braziliense, 20 de janeiro de 1970; “Prates quer acabar com favelas”. Correio Braziliense, 20 de janeiro de 1970; “Plano quer erradicar invasões”. Correio Braziliense, 25 de janeiro de 1970; “Como a favela chegou a Brasília”. Correio Braziliense, 18 de julho de 1970; “Uma nova favela em plena cidade”. Correio Braziliense, 26 de julho de 1970.
16 “Caderno 2 – Chamada”, Correio Brasiliense, 24 de julho de 1970. 17 Em seu livro de memórias, Manuel Mendes afirma que “o termo ‘candango’ tinha sentido pejorativo
e era empregado para designar os operários. Só na inauguração da Capital, quando foi usado como elogio pelo presidente Juscelino, para identificar aqueles que construíram a cidade, o termo passou a ser sinônimo de pioneiro e um gentilício para identificar as pessoas que nascem ou vivem em Brasília”. (MENDES: 1997, 20).
18 Durante o período de construção de Brasília construiu-se uma cidade para dar apoio e abrigo aos trabalhadores da construção civil. Uma cidade onde os serviços básicos (moradia, banco, comércio, etc) pudessem ser oferecidos. Assim nasce o Núcleo Bandeirante, chamado de Cidade Livre pelo seu caráter provisório. As construções deveriam ser de madeira, e a idéia era que este núcleo fosse destruído quando da inauguração de Brasília.
Ver mais detalhes sobre essa discussão na minha dissertação de mestrado: CEBALLOS, Viviane G. de. “E a história se fez cidade...”: a construção histórica e historiográfica de Brasília. 2005. 200f. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, 2005
35
e nos acampamentos das construtoras responsáveis pelas obras de edificação da
cidade. Em março de 1961, o articulista do CB afirma:
uma coisa pudemos observar, visitando o Gama e o “Gaminha”: ali há condições para a residência dos “invasores” da Cidade Livre. Quanto aos que já se haviam fixado, anteriormente, no Núcleo Bandeirante, nos primórdios da construção de Brasília, este é outro problema: tem o direito – ao menos pelos serviços que prestaram a Capital nascente – de solicitar outras atenções, a altura do seu trabalho, do seu esforço, de sua dedicação.19
Os trabalhadores que foram “realocados” para estas cidades parecem
encontrar nos versos do pioneiro Varela a representação desse processo:
Brasília não caiu prontinha lá do céu isto aqui foi sacrifício muitas tarefas cruéis tangido pelo caboclo coragem mesmo a granel. Hoje o candango é esquecido e vive sem proteção perderam a mocidade nesta grande construção vivem nas Cidades Satélites porém sem satisfação. (VARELA: 1981. Apud PAVIANI: 1998, 127)
O sentimento de “abandono” daqueles que ajudaram o então presidente
Juscelino Kubitschek a construir a cidade símbolo do tão sonhado amadurecimento
do Brasil, expresso acima, aparece nos inúmeros depoimentos dos tantos
candangos obrigados a morar na periferia de Brasília. As condições de vida nas
cidades satélites são expostas em constantes reportagens, tais como:
Outro aspecto da vida de Brasília meredor (sic) de destaque é a urbanização de seus núcleos satélites atacada também em ritmo
19 “Notícias da Cidade Livre – Transferência do Núcleo”. Correio Braziliense, 22 de março de 1961.
36
acelerado, a fim de que suas populações tenham o mesmo conforto do Plano Pilôto”20
Conforto que não se efetiva, pois a maior parte das reportagens sobre as
cidades satélites as apresentam como desprovidas de quaisquer condições de
habitabilidade, ou seja, sem abastecimento de água, energia, ausência de
saneamento, de serviços hospitalares e de comércio para atender às necessidades
da população. Vê-se exemplo disso já em 1961, quando da querela sobre a fixação
ou não da Cidade Livre (Núcleo Bandeirante), o Senador Guido Mondim (PRP-RS)
chega a afirmar: “às cidades satélites falta tudo. Água, luz e telefones são
desconhecidos por suas populações. Os meios de transporte são os mais precários
possíveis, além de carros para operários que trabalham no plano piloto.”21
Acrescentou o sr. Guido Mondim que Brasília já nasceu sob o estigma de
graves problemas sociais, para os quais é preciso atentar. Portanto, observa o
orador, “não é possível pensar-se em exibir para os estrangeiros apenas uma
arquitetura e um urbanismo singulares”, ao dirigir um apelo às autoridades, e
especialmente ao prefeito Paulo de Tarso, para não permitirem o agravamento de
tais problemas. O estigma de foco de problemas sociais reitera-se ao longo dos
anos em diferentes notícias sobre as cidades satélites, o que nos remete que talvez
a condição de dependência dessas cidades já implicasse numa relação
estigmatizada. Em agosto de 1962, o articulista do jornal afirma ser impossível não
se levar em consideração
o que existe nas cidades satélites. Melhor: o que não existe. Faltam escolas, não há assistência médica, os transportes para algumas delas são precários, a luz é insuficiente, só em pequenos setores é que se encontra água encanada. Nem há um serviço de esgotos – antes pelo contrário, há focos imensos (no Núcleo Bandeirante, de um modo especial), mantendo sob o risco permanente uma epidemia os que vivem no Distrito Federal.22
20 “75 dias de administração no 1º aniversário de Brasília”. Correio Braziliense, 21 de abril de 1961. 21 “Senado Federal – Cidades Satélites fazem surgir problemas sociais”. Correio Braziliense, 03 de
maio de 1961. 22 “A realidade de Brasília”. Correio Braziliense, 24 de agosto de 1962.
37
São imagens fortes construídas para definir o “outro” da cidade
planejada, apresentada nas Figuras 01 e 02:
Figura 01 – Núcleo Bandeirante, década de 1960
Figura 02 – Comércio no Núcleo Bandeirante, década de 1960
Fonte: Thomas Farkas – Acervo Instituto Moreira Sales
Fonte: Thomas Farkas – Acervo Instituto Moreira Sales
38
As fotografias mostradas acima reiteram a imagem de favela atribuída às
cidades satélites, neste caso, o Núcleo Bandeirante. O tom de denúncia de uma
situação de privação parece, muitas vezes, atrelado a um processo mesmo de
negação daquilo que constitui a cidade, mas cujo desejo é de se descartar. Assim
parece ser com relação às cidades satélites de Brasília. Um espaço constituído em
íntima relação com Brasília, e a compõe enquanto cidade símbolo já que,
teoricamente, abrigaria os seus “indesejáveis”, os seus “invasores”. Quase como se
quisessem maquiar a cidade para receber turistas e vender uma imagem de
harmonia e de progresso tão caras a seus defensores. Brasília – e suas cidades
satélites – parece fazer ruir a atmosfera de otimismo e esperança que mobilizara
tantas pessoas em defesa de sua construção. O sonho, a utopia dá lugar a uma
realidade dura, onde, nas palavras do repórter Avelino Chagas, as cidades satélites
acolhem nada menos de 3 mil meliantes e 2 mil desocupados em situação mais calamitosa que os do Plano piloto. Isso porque as condições naquelas cidades são mais degradantes ainda, devido ao grande número de famílias que são retiradas do perímetro da cidade e jogadas em terrenos baldios, sem nenhuma condição para sobreviver. E como sempre acontece, quem sofre as maiores consequências são as crianças, que, por sua vez, não tem culpa de vir ao mundo em circunstâncias assim calamitosas.23
Com título que parece expressar sua revolta, “Brasília, 62: luxo e beleza
encobrem desespero de milhares”, o repórter tenta expressar a contradição explícita
entre a cidade capital da esperança e o seu entorno, onde milhares de pessoas são
“jogadas” para viver sem terem asseguradas as mínimas condições de
habitabilidade.
23 CHAGAS, Avelino. “Brasília, 62: luxo e beleza encobrem desespero de milhares”, Correio
Braziliense, 05 de dezembro de 1962.
39
A “PETRÓPOLIS BRASILIENSE”, UMA CONTRADIÇÃO
PARA OS PLANOS DE LÚCIO COSTA?
Muitos chamam-na de ‘a Petrópolis brasiliense’, pela salubridade do seu
clima. Ou, a ‘cidade serrana’. Para se viver, Sobradinho é uma cidade
aprazível, própria ao trabalho e à especulação intelectual.
(VASCONCELOS, 1988)
cidade satélite de Sobradinho tem o início de sua ocupação
territorial datada de 1959, quando da necessidade de
transferência dos trabalhadores da Vila Amauri, que seria
inundada para a construção do lago Paranoá. No entanto, somente em 1964 foi
sancionada a lei de criação da Região Administrativa-V (RA-V) – que regulamenta
a cidade satélite de Sobradinho e a Região Administrativa na qual está inserida24.
Esta RA foi criada para abrigar esses trabalhadores e alguns migrantes dos estados
do Goiás, Bahia, e outros da região nordeste do país. A princípio, surge sob o desejo
de se implantar uma cidade tipicamente rural, Sobradinho parecia contrastar com o
projeto de Brasília apresentado por Lúcio Costa: símbolo da arquitetura e do
urbanismo modernos. Segue Mapa 01 da localidade da cidade-satélite apresentada:
24 “A lei nº 4545, de 10 de dezembro de 1964, modificou novamente a estrutura básica da
Administração do Distrito Federal, e criou nove Secretarias, as Administrações Regionais – com órgãos da administração descentralizada – e, ainda, as oito Regiões Administrativas, cuja numeração sequencial e denominação só foram regulamentadas em 1965, através do Decreto “N” nº 456, de 21 de outubro de 1965 ‘para fins de administração de serviços de natureza local’ o sistema de Administração Regional, bem como estabeleceu a numeração sequencial das seguintes Regiões Administrativas: Brasília - RAI, Gama - RAII, Taguatinga - RAIII, Brazlândia – RAIV, Sobradinho – RAV, Planaltina – RAVI, Paranoá – RAVII e Jardim – RAVIII.” COSTA, 2011, P. 27.
A
41
Por sua pretensa característica rural, as obras nesta cidade eram
controladas pelo Departamento de Terras e Agricultura (DTA) da Novacap, uma
exceção nas obras em Brasília, visto que todas eram controladas pelo
Departamento de Urbanismo e Arquitetura (DUA) ou pelo Departamento de Viação
e Obras (DVO). Havia naquele espaço grande potencialidade para as atividades
agrícolas, e parecia ser esse o norte das ações naquela cidade. O senhor Nelson
Tiemann, pioneiro de Sobradinho, deixa claro em sua fala as intenções de
construção de uma cidade-dormitório onde prevaleceriam as atividades agrícolas:
(...) a princípio era, seria uma cidade dormitório como todas demais eram para ser. Nós teríamos aqui, uma cidade agrícola, mas a finalidade foi sendo desvirtuada politicamente, financeiramente e por interesses políticos e não-político também. (sic.) (TIEMANN, 1995, p. 14)
Mesmo com essa potencialidade e parecendo encontrar respaldo nas
ações de seus “artistas oficiais”25, o planejamento da cidade foi entregue a um
urbanista, o sr. Paulo Hungria Machado, e assistido diretamente por Lúcio Costa26.
Para Sobradinho foram transferidos os moradores do acampamento denominado
Bananal e da Vila Amauri, que com o início das obras da barragem do Paranoá, já
que a região onde ficava a Vila foi toda inundada pela barragem. O dia 03 de março
de 1960 marca a transferência das primeiras famílias para Sobradinho. Adirson
Vasconcelos (1988) afirma que o primeiro agrupamento humano se formou na
25 O termo “artistas oficiais” é utilizado aqui em referência às pessoas envolvidas no processo de
discussão, construção e implementação das ações de construção da cidade de Sobradinho. Este termo me foi apresentado por Osvaldo Orico e utilizado em minha dissertação de mestrado. Ver: CEBALLOS, Viviane G. de. “E a história se fez cidade...”: a construção histórica e historiográfica de Brasília. 2005. 200f. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, 2005, p. 11 (Nota 02).
26 Em minhas pesquisas não consegui encontrar nenhum plano de atuação na cidade de Sobradinho sob responsabilidade do senhor Paulo Hungria Machado. Tanto funcionários quanto pesquisadores me informaram desconhecer que haja um projeto oficial de construção e de atuação em Sobradinho. Em vários momentos da pesquisa estive em contato com a Administração Regional de Sobradinho, com o Arquivo Público do Estado e mesmo com setores da NOVACAP e não consegui ter acesso a esse projeto. Encontrei, contudo, o Plano Diretor Local da cidade, produzido em 1994 e revisado em 1995, que me auxiliará a discutir as propostas e os desenhos traçados na e para a cidade.
42
quadra 04 e suas adjacências, uma média de 30 famílias eram transferidas
diariamente, até que toda a Vila Amauri tivesse sido erradicada, em junho-julho de
1960, sua população era de cerca de 1.000 pessoas27. O senhor Nelson Tiemann
(1995), contudo, afirma que
não foram famílias de operários que deram início mesmo a vida em Sobradinho, foram os comerciantes que vieram e se estabeleceram aqui para atender o pessoal da Novacap, das empreiteiras também. E quando Sobradinho começou a sair do papel para se tornar realidade, a cidade que hoje é, construímos os alojamentos. Já começamos a receber algumas famílias da Vila Amaury, da Vila dos Sarrafos, da Vila dos Afogados, do Tamboril, para depois então alicerçar o pessoal. Mas o pessoal chegava aqui não tinha luz, não tinha transporte, não tinha comércio.
A memória do senhor Nelson Tiemann parece representar uma angústia
e uma imagem que reverberava em Brasília quando se mencionava a precariedade
da consolidação da capital e das cidades satélites que a circundam. A política de
erradicação de favelas ganhou força nesse momento e, para tanto, a alternativa que
parecia mais viável era a de construção de novas cidades satélites para abrigar
essa população. No entanto, havia um planejamento em torno da ocupação desses
solos e critérios que deveriam ser atendidos para a aquisição de lotes, de acordo
com Costa (2011)
para os terrenos de moradia podiam candidatar-se à compra apenas pessoas com algum emprego fixo no DF. Quanto aos lotes comerciais, poderiam adquiri-los quem tivesse capital suficiente para implantação de comércio. (COSTA, 2011, p. 97)
27 De acordo com a tese de Graciete Costa, a Cidade Satélite de Sobradinho cresceu em decorrência
da forte migração para Brasília e da transferência dos moradores do acampamento Bananal e da Vila Amauri – segundo a autora há indícios de que a fixação das pessoas na Vila às margens de onde seria construído o Lago Paranoá deu-se para facilitar sua posterior remoção. (COSTA, 2011, p. 97)
43
Uma regulamentação que foi ganhando outros desdobramentos, como
mencionou o senhor Nelson Tieman na fala citada acima, mostra que interesses
políticos desvirtuaram o princípio que deveria nortear a construção daquela cidade,
impedindo que lá se repetisse a situação de precariedade que caracterizava a
experiência em outras cidades satélites. No Correio Braziliense, no início da década
de 1960, várias reportagens remetem a essa discussão, construindo uma imagem
de fragilidade de Brasília e de suas cidades satélites. Alguns aspectos parecem se
sobressair quando essa discussão aparece: abastecimento precário, assistência
médico-hospitalar deficiente, insuficiência de escolas e de edificações residenciais,
desemprego, etc.
A predominância dos interesses políticos na administração e distribuição
de lotes em Sobradinho, já era uma preocupação de alguns colunistas do Correio
ao referirem-se ao processo de consolidação de Brasília. Hindemburgo Diniz
afirmava que o abastecimento da cidade é precário, pois
A principal fonte de suprimento interno deveria ser o famoso cinturão verde em torno da cidade que, infelizmente, até agora, continua improdutivo em virtude do descritério verificado na distribuição das granjas, quase todas, por razões políticas, destinadas a pessoas sem preocupação de produzir.28
Há, para este colunista, uma espécie de círculo vicioso, já que a
população precisa de mais hospitais, mais médicos e enfermeiras, que não podem
ser contratados por não haver residências para alojá-los. Brasília precisava que as
obras que garantiriam sua consolidação fossem terminadas para que os problemas
vivenciados em seu cotidiano pudessem ser minorados.
Havia, entre os “artistas oficiais” de Brasília e aqueles que se dedicaram
a pensar a cidade e seus desdobramentos uma expectativa que parecia ganhar
forma no processo de construção da cidade. Brasília marcaria um novo tempo, uma
28 DINIZ, Hindemburgo Pereira. “Problemas de Brasília (II)”. Correio Braziliense, 07 de setembro de
1962.
44
nova concepção de cidade e de vivência nela. Em 1962, Yvone Jean, colunista do
Correio Braziliense, menciona a proposta de Sir. William Holford para Brasília e para
as cidades satélites:
Serão cidades cheias de vigor e vitalidade e para certos propósitos em certas ocasiões, os seus habitantes virão a centro administrativo... imagino que, com o tempo, esses núcleos satélites se tornarão centros de distribuição e mercado para o território que fica atras e em volta deles. São também úteis como centros de trabalho.29
Uma expectativa que não encontra respaldo nas imagens
veiculadas sobre as cidades satélites, núcleos que, longe de serem espaços
aprazíveis, são marcados pela vida precária sem estrutura básica para seus
habitantes. Sobradinho, por exemplo, parece, para Flávio Paiva, estar sendo
transformada “num cemitério de desempregados e, por essa razão, existe
muita gente morrendo de fome e grande número de casas comerciais, ali
instaladas, cerrando suas portas”.30 As famílias são transferidas para a cidade
e não encontram lá condições para se instalar, pois “o parque residencial ali
plantado, não atende às condições atuais dos serviços públicos, desde que
não pode contar com a água, luz e esgoto.”31 Essas imagens recrudescem
paulatinamente no conjunto de reportagens publicadas pelo Correio
Braziliense. Tomo o exemplo de Wilson Aguiar quando, em 1963, menciona
os “colonos” de Sobradinho e os considera
o espelho do que é Brasília, muito distante do sonho do Dr. Israel, das palavras entusiastas do Dr. Bernardo Sayão, da discrição realista do dr. Oscar Niemeyer. Encontrei misérias; encontrei revolta; encontrei decepção. Um punhado de homens cheio de
29 JEAN, Yvone. “Esquina de Brasília – Cidades satélites”. Correio Braziliense, 07 de abril de 1962. 30 PAIVA, Flávio. “Sobradinho: autoridades criam uma cidade de fome e miséria”. Correio Braziliense,
15 de maio de 1962. 31 “Cidades Satélites – Sobradinho”. Correio Braziliense. 14 de fevereiro de 1963.
45
vontade de trabalhar, que sabe trabalhar, que quer produzir, que aspira realizar o sonho do dr. Israel, está largado à sua própria sorte. Mas do que isso, em vez de receber a ajuda dos responsáveis pelo abastecimento dos diversos órgãos do governo criados e mantidos para isso, são por eles desprezado. (sic.)32.
A fala de Aguiar parece confirmar a distância existente entre aquilo
que se planeja (cinturão verde, cidades satélites planejadas, cidade racional)
e o que se efetiva em sua implantação.
Brasília parece corresponder à noção de cidade polinucleada
(enquanto cidade orgânica) apresentada por Anhaia Melo no Curso de
Urbanismo ministrado em 1957. A noção de que a cidade deve ser pensada
e estruturada a partir de escalões e de zoneamentos necessários ao seu
pleno funcionamento, “na cidade orgânica há planejamento, há distribuição
dos escalões, há limitação de tamanho, há ordem.” (MELO, 1961, p. 74) A
tentativa de imprimir um ritmo controlado à construção e à ocupação da
cidade, no caso de Brasília, parece partícipe dessa concepção de
planejamento urbano como o defendido por Anhaia Melo. Nesse sentido, a
construção das cidades satélites, a meu ver, não pode ser vista como uma
contradição à Brasília, ou ao que ela representava, mas como parte do
processo de consolidação desta cidade e como um dos aspectos de
adequação ao projeto no momento de sua implantação.
Sobradinho, assim, parecia corresponder ao ideário construído
para Brasília de planejamento e de crescimento ordenado. A cidade, mesmo
apresentando alguns problemas como os mencionados acima, a partir de
32 AGUIAR, Wilson. “O que êles fazem – eles precisam de nós”. Correio Braziliense, 17 de novembro
de 1962. Mais detalhes, ver: “A realidade de Brasília”. Correio Braziliense, 24 de agosto de 1962;”Cidades satélites – Sobradinho”. Correio Braziliense, 15 de fevereiro de 1962; “Cidades satélites – Sobradinho – falta luz”. Correio Braziliense, 27 de janeiro de 1962; LUZ, Pedro. “Entre esperanças, Sobradinho comemoriou 3 anos de existência”. Correio Braziliense, 06 de fevereiro de 1963; “Cidades satélites – é alarmante o índice de desemprego em Sobradinho. Apelo às autoridades”. Correio Braziliense, 07 de março de 1963.
46
Tiemann (1995), “cresceu assustadoramente, mas não desordenadamente,
porque a cidade foi uma das primeiras cidades de Brasília, cidade-satélite
projetada, com água, luz, telefone, tudo.” (TIEMANN, 1995). Contudo, a
execução deste planejamento dá-se de forma gradativa e não parece atender
a todos os moradores daquela cidade. Em setembro de 1961, os moradores
de Sobradinho lançam um manifesto com algumas reivindicações de
melhorias para a cidade. À época, o subprefeito, o sr. Newton Jacinto de
Almeida33, segundo o documento, “raramente aparece na Subprefeitura e,
quando aparece dá um rápido expediente de 30 a 40 minutos, para logo
desaparecer, tomando rumo ignorado”34. A principal reivindicação desse
manifesto era para que o seu próximo subprefeito fosse escolhido nas urnas.
A indicação de nomes deveria ser feita a partir de uma consulta a população
da cidade, e que, preferencialmente, fosse uma pessoa residente naquela
cidade. Além dessa, outras reivindicações compõem o documento: (1)
liberação das plantas de construções definitivas – plantas disponibilizadas
pelo administrador e que tivessem um caráter popular, ao alcance de todos
os moradores de Sobradinho; (2) fornecimento de contratos dos lotes de
Sobradinho – já que o Departamento Imobiliário não está conseguindo suprir
a demanda; (3) melhoria dos transportes públicos – afirmam os moradores
que o transporte público é quase nulo na cidade, já que as empresas
33 Sobradinho teve os seguintes subprefeitos até 1970: HENRIQUE TEIXEIRA TAMM (Professor) de
setembro de 1959 a 11/11/1960; ABIGAIL ROMERO (Policial) de 11/11/1960 a 08/02/1961; ERNANE COSTA A. JAGUARIBE (Engenheiro Civil) de 08/02/1961 a 20/04/1961; NEWTON JACINTO DE ALMEIDA (Engenheiro Civil) de 20/04/1961 a 08/11/1961; CAMILO SEVERINO DE ALMEIDA (Engenheiro Civil) de 08/11/1961 a 04/07/1962; ARMANDO JOSE BOCKMAMM (Engenheiro Civil) de 04/07/1962 a 03/07/1963; JOEL DE OLIVEIRA PAES (Arquiteto) de 03/07/1963 a 01/12/1967; MANOEL CARNEIRO DE ALBUQUERQUE (Engenheiro) de 01/12/1967 a 06/12/1967; MAURO RENAN BITENCOURT (Juiz) de 06/12/1967 a 30/01/1970; e PEDRO RODRIGUES DE SOUSA (Professor) de 30/01/1970 a 18/06/1974. Dados retirados do site oficial da cidade: http://www.sobradinho.df.gov.br/GaleriaAdministradores.
34 “Sobradinho lança manifesto: ‘Queremos prefeito eleito’”. Correio Braziliense, 16 de setembro de 1961.
47
particulares que fazem o transporte entre Sobradinho e o Plano Piloto estão
quase sem veículos para servir essas pessoas; (4) ligação de energia elétrica
nas moradias – os moradores reclamam que o serviço de energia foi levado
à cidade, no entanto, só atende às necessidades da olaria de um deputado
com sede em Sobradinho; (5) emprego – a oferta de emprego para os
moradores daquele núcleo com a retomada das obras públicas da Novacap,
da Prefeitura e outras.
Mesmo com a elaboração desse manifesto, os moradores de
Sobradinho, ao que parece, não conseguiram que essas melhorias fossem
realizadas. Por exemplo, a reportagem publicada no Correio Braziliense
afirma que o abastecimento de energia elétrica não fora ainda regularizado
porque o departamento encarregado dessa questão não possuía o material
necessário para a conclusão dos trabalhos.
Ainda, há poucos dias, os trabalhos ficaram interrompidos, longo período, por falta de 20 parafusos que custam, no máximo, cinco cruzeiros cada um, assim, unicamente por falta de material necessário para o prosseguimento dos trabalhos, o serviço de ligação de luz e força para Sobradinho levará o dobro do tempo para ser concluído e sairá por um preço três vezes mais caro.35
Além do marasmo nas obras pelos motivos mais variados, inclusive
pela falta de parafusos, como denuncia a reportagem citada, os moradores
de Sobradinho têm que conviver com os atrasos nos salários daqueles que
estão vinculados à Subprefeitura. Afirma-se, no artigo que o atraso se devia
a uma “má vontade do pessoal da Prefeitura do Distrito Federal e da
Novacap”36 em efetuar esses pagamentos.
35 “CIDADES SATÉLITES – Sobradinho – Falta luz”. Correio Braziliense, 27 de janeiro de 1962. 36 “CIDADES SATÉLITES – Sobradinho”. Correio Braziliense, 15 de fevereiro de 1962.
48
As imagens de Sobradinho em 1962 no Correio são quase sempre
negativas. Em artigo escrito por Flávio Paiva, a situação descrita é
desoladora: a cidade tem um crescente número de desempregados, e várias
casas comerciais estariam fechando suas portas. A transferência de famílias
das invasões do Plano Piloto para Sobradinho sem qualquer planejamento
por parte das autoridades é apresentada como a principal causa dessa
situação de miséria na cidade, Paiva chega a afirmar que, nas quadras 17 e
18 de Sobradinho as pessoas vivem “sem o menor conforto, como se fossem
bichos ou parias da sociedade”37, uma situação que define como
desesperadora. Embora tenha feito referência direta às quadras 17 e 18 como
sendo as que apresentam maiores problemas, para Paiva, a situação era
grave em toda a cidade satélite. Era chamada “operação invasão!” –pela
Secretaria do Interior e Segurança (ligada à Prefeitura do Distrito Federal -
PDF), entretanto, as transferências de famílias das invasões do Plano Piloto
– é conhecida pelos moradores de Sobradinho como “operação miséria”.
Nesta cidade satélite existem funcionários da PDF responsáveis por montar
os barracos trazidos das invasões, e conclui a reportagem dizendo que
a meia hora do centro da capital da República centenas de famílias vivem nas piores condições humanas possível. Esgoto, água, luz e transporte são artigos de luxo para aqueles pobres ‘parias’ criados pela desumanidade dos administradores.38
Estranhamente, o jornal passa um certo período sem dar maiores
destaques às cidades satélites.39 Quase um ano depois, um outro quadro se
37 PAIVA, Flávio. “Sobradinho: autoridades criam uma cidade de fome e misérias”. Correio Braziliense,
15 de maio de 1962. 38 PAIVA, Flávio. “Sobradinho: autoridades criam uma cidade de fome e misérias”. Correio Braziliense,
15 de maio de 1962. 39 Não tenho como afirmar as motivações da ausência de reportagens sobre as Cidades Satélites
neste período. Minha intenção é desenvolver um outro trabalho de pesquisa em que eu possa pensar essas questões a partir da análise de outras fontes documentais que me possibilitem uma inserção
49
apresenta na reportagem de Pedro Luz quando a comemoração do 3o
aniversário da cidade motiva as esperanças dos sobradinhenses:
colhendo opiniões e detalhes, chegamos a firmar a convicção de que Sobradinho dentro de pouco tempo, conseguirá dinamizar-se e se projetará como núcleo residencial que melhores condições oferecerá, pela vontade indômita dos seus habitantes que não poupam esforços neste sentido”.40
No entanto, essa euforia se mostra efêmera, posto que, na semana
seguinte, o jornalista Pedro Luz publica outras informações sobre
Sobradinho. O início da reportagem traz ainda elogios à cidade no que tange
à organização de seus moradores e à qualidade da água que a abastece. O
inquietante é que logo em seguida ele afirma, por exemplo, que as casas
construídas pela Sociedade de Habitações Econômicas de Brasília (SHEB)
“não atendem às condições atuais dos serviços públicos, desde que não
podem contar com a água, luz e esgoto”,41 e que não se pode desconsiderar
o crescente desemprego que assola cerca de 600 famílias residentes naquela
cidade satélite.
É somente em 1970 que outra imagem vai se delineando para
Sobradinho. O jornalista Pedro Juca apresenta números que possibilitariam
pensar em outro cenário, que não aquele desolador, de pobreza e miséria
apresentado anos antes por Flávio Paiva. Com uma população de 29.500
habitantes (25.000 na área urbana e 4.500 na zona rural), Sobradinho
comemora seu 10o aniversário como a cidade satélite mais completa do
Distrito Federal: com maior número de prédios de alvenaria em relação ao
maior nesses outros espaços urbanos adjacentes à Brasília, e aí sim, conseguir entender as dinâmicas de sua relação com a capital.
40 LUZ, Pedro. “Entre esperanças, Sobradinho comemorou 3 anos de existência”. Correio Braziliense, 06 de fevereiro de 1963.
41 “CIDADES SATÉLITES – Sobradinho”. Correio Braziliense, 14 de fevereiro de 1963.
50
número de habitantes e de lotes; a que tem maior cobertura na rede de água
e esgotos; e que tem 98% de ligações elétricas.42 Isso, contudo, não impede
ver que a cidade ainda se ressente de algumas melhorias – estação
rodoviária, um mercado produtor, asfalto, telefones, iluminação pública –,
mostrando a estrutura da cidade e algumas das reivindicações de seus
moradores por melhores condições de vida, Pedro Juca afirma que
Sobradinho é isto. Uma cidade agradável, bom clima, boa de se morar, enfim, uma cidade comunitária. No dizer do Governador Hélio Prates: ‘um parque aprazível, movimentado, um jardim cercado de sugestivas paisagens e de amplos horizontes’. E, apenas, 22 dias mais nova do que Brasília.43
Nessa cidade há, segundo Vasconcelos, alguns atrativos turísticos
(cachoeira de Sobradinho, a “pedra encantada” na Fercal, o camping ABC; dentre
outros), alguns clubes recreativos (Sodeso, Bancrevea e o Sesi), estão também
localizadas naquela cidade satélite as duas fábricas de cimento do DF (Tocantins e
Ciplan), responsáveis pela geração de grande número de empregos e de renda para
a população local. Há também casas de espetáculos como o Cine Alvorada e o
Galpão João de Barro. Mas além desse galpão, há outros auditórios na cidade
propícios para as apresentações teatrais, como o da Administração Regional, do
Hospital, do Centro Educacional 02, e nos Colégios La Salle e Arco-Íris. Estão
também localizados em Sobradinho, o Pólo de Cinema e Vídeo do DF “Grande
Otelo”, e vários ateliês de artistas plásticos brasilienses. Isso parece dar a cidade
um ar de centro cultural.
* * *
42 JUCA, Pedro. “Sobradinho – 10 anos, uma cidade completa”. Correio Braziliense, 13 de maio de
1970. 43 JUCA, Pedro. “Sobradinho – 10 anos, uma cidade completa”. Correio Braziliense, 13 de maio de
1970.
51
“A CIDADE É UMA SÓ”44: BRASÍLIA E AS CIDADES SATÉLITES
Numa cidade em que se usa muitíssimo o automóvel, por quaisquer padrões, isso tem de ser tomado em consideração, pois é sobre quatro rodas que a grande maioria da população do Plano Piloto, em seus movimentos diários usa e percebe a cidade. (HOLANDA, 2002, p. 321)
A tentativa de imprimir à Brasília um ideário de ordenação e de
controle dos usos dos espaços criou na cidade uma atmosfera de ausência
de liberdades. Algumas imagens, no entanto, transparecem as apropriações
e elaborações dos espaços a partir dos usos e das trajetórias dos seus
habitantes. Imagens como as dos jardins do Eixo Monumental, no qual os
caminhos traçados são refeitos pelos pedestres. As linhas racionalizadas
ganham traços paralelos e transversais que as acompanham e as
entrecruzam na tentativa dos habitantes de apropriarem-se desse espaço.
Sua vivência, suas trajetórias e escolhas sulcam a terra vermelha e delineiam
outras possibilidades de caminhos e traçados para ela. A cidade pensada
para o automóvel ganha contornos próprios dados pelos pedestres que nela
se aventuram e que vencem seus longos espaços em seu cotidiano.
44 Título de documentário sobre a história de Ceilândia – cidade satélite de Brasília criada em 1971
como parte da Campanha de Erradicação de Favelas no plano piloto. A CIDADE É UMA SÓ. Direção: Adirley Queirós, Produção: Adirley Queirós e André Carvalheira. Brasília: MinC/Empresa Brasil de Comunicação, 2011.
52
Figura 04 – Jardim ao longo do Eixo Monumental com caminhos trilhados por pedestres
Por muito tempo investiu-se na imagem de Brasília como uma cidade
para todos. Uma cidade que deveria ter como característica “a de reunir em cada
um dêstes espaços de vizinhança, as diferentes classes sociais, que seriam assim
integradas em todo o conjunto urbano e não estratificadas em bairros ‘ricos’ e
53
bairros ‘pobres’” (sic.)45. No entanto, aos poucos, essa imagem da cidade começou
a ser reformulada quando a vivência de seus habitantes e os impasses vividos por
estes começam a ser repensados. O próprio Lúcio Costa em agosto de 1974,
quando participou do I Seminário de Estudos dos Problemas Urbanos de Brasília,
afirmava que a cidade em seu processo de implantação sofreu alterações
significativas que fizeram com que seu planejamento fosse, de certa forma,
desvirtuado.46 A convivência entre “pobres” e “ricos” – tão cara às falas de defesa
da construção de Brasília – claramente vai se desvirtuando com a construção das
cidades satélites e a expulsão do plano piloto daqueles personagens que parecem
não se adequar ao ideário proposto para aquela cidade.47
Na perspectiva de Costa (1974), as cidades satélites, da forma como
foram criadas, são uma espécie de desvirtuação do plano proposto, enquadrando-
se como parte de um crescimento anômalo de Brasília:
O plano estabelecido era que Brasília se mantivesse dentro dos limites para os quais foi planejada, de 500 a 700 mil habitantes. Ao aproximar-se destes limites, então, é que seriam planejadas as Cidades-Satélites, para que estas se expandissem ordenadamente, racionalmente projetadas, arquitetonicamente definidas. Este era o Plano proposto. Mas ocorreu a inversão, porque a população a que nos referimos, aqui ficou, e surgiu o problema de onde localizá-la. A NOVACAP, Israel Pinheiro e todos resolveram agir assim, porque em volta de cada canteiro de obras havia favelas que envolviam as famílias dos operários. Daí a criação dos núcleos periféricos, para transferir as populações, dando terreno para que se instalassem de uma forma ou de outra. (...) Assim, as Cidades-Satélites se anteciparam à cidade inconclusa, cidade ainda arquipélago, como
45 COSTA, Lúcio. O urbanista defende a sua capital. Edição Comemorativa do 10º aniversário da Nova
Capital. Revista Acrópole. Nº 375/376, julho/agosto de 1970. 46 As discussões apresentadas na década de 1970 por Lúcio Costa sobre o que chamou de
“desvirtuação” da cidade são constantemente retomadas por pesquisadores na tentativa de explicar seu crescimento que parece não estar de acordo com o planejado. Por exemplo o livro organizado por Marcílio Mendes Ferreira e Matheus Gorovitz que reproduzem os textos “O urbanista defende sua cidade”; “Considerações em torno do Plano Piloto de Brasília”; “A realidade maior que o sonho na Brasília de 25 anos depois” e “Brasília revisitada 1985/87”. (FERREIRA; GOROVITZ, 2009)
47 Sobre essa discussão, ver terceiro capítulo da minha dissertação de mestrado: CEBALLOS, Viviane G. de. “E a história se fez cidade...”: a construção histórica e historiográfica de Brasília. 2005. 200f. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, 2005
54
estava – agora já mais adensada mais ainda não concluída. A cidade ainda está oca. (COSTA, 1974, p. 26.)
Contudo, ainda nos inquieta a ideia de que esses núcleos, essas cidades
satélites, sejam vistos como uma “aberração” ou mesmo como um contraponto à
Brasília. Muito interessante apresenta-se a leitura feita por Frederico de Holanda ao
pensar Brasília como um “espaço de exceção”, voltando sua atenção ao processo
de ocupação dessa cidade por seus habitantes.
Falar de Brasília, portanto, não é falar apenas do Plano Piloto, mas de
todas as cidades que compõem o espaço do Distrito Federal. Há entre os
pesquisadores de Brasília um debate bastante profícuo sobre a delimitação dessa
cidade. Aldo Paviani (2004), por exemplo, afirma que as chamadas cidades-
satélites deveriam ser consideradas como bairros de Brasília, uma vez que não
possuem autonomia deste centro urbano. Outros autores como Holanda (2002),
Campos(1998) e Gouvêa (1998), embora percebam as cidades-satélites como
espaços com certa autonomia, ao referirem-se à Brasília consideram os dados
referentes a todo o Distrito Federal. Este não é um debate que está posto de forma
muito clara na historiografia da cidade, visto que historiadores, geógrafos,
urbanistas, sociólogos pensam esse espaço e reafirmam a dificuldade de separar
Brasília e as cidades que a circundam. Se vamos chamá-las de cidades satélites ou
de bairros parece ser uma questão de menor relevância quando da análise de um
espaço complexo e que implica pensar também as apropriações deste por seus
habitantes. Portanto, ainda há uma indefinição na forma de pensar esse espaço: se
Brasília é o Plano Piloto, ou o conjunto deste com as cidades-satélites que o
circundam. Acredito ser difícil separar os dados referentes a esses espaços, mesmo
que entendamos suas especificidades.
Portanto, falar de Sobradinho pressupõe, a meu ver, entender a relação
desta cidade com Brasília e de seus habitantes com este centro. Da mesma forma,
falar de Sobradinho, ou de qualquer uma das cidades-satélites de Brasília, é falar
desta cidade e da relação que estabelece com o seu entorno. Se nos debruçarmos
55
sobre os dados produzidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), vemos que as referências à Brasília não se restringem à área da RA-1, mas
dizem respeito a todo o espaço do Distrito Federal. Observemos as Tabela 01 e 02:
Tabela 01 – População de Brasília, Distrito Federal e Brasil
ANO BRASÍLIA DISTRITO
FEDERAL
BRASIL
1991 1.601.094 1.601.094 146.825.475
1996 1.806.354 1.806.354 156.032.944
2000 2.051.146 2.051.146 169.799.170
2007 2.455.903 2.455.903 183.987.291
2010 2.570.160 2.570.160 190.755.799 Fonte: IBGE: Censo Demográfico 1991; Contagem Populacional 1996; Censo
Demográfico 2000; Contagem Populacional 2007 e Censo Demográfico 2010.
Tabela 02 – População do Distrito Federal
ANO POPULAÇÃO VARIAÇÃO (%)
1957 (jun.) 12.200 -
1958 (abr.) 28.200 136
1959
(maio)
64.314 123
1960 (set.) 141.742 120
1970 (set.) 537.492 279
1980 (set.) 1.176.478 118
1991 (set.) 1.598.415 35 Fonte: HOLANDA, Frederico de. O espaço de exceção. Brasília: Editora da UnB, 2002, p. 286.
Holanda (2002) ainda apresenta outra tabela em seu texto em que os
dados populacionais apresentados para Brasília coincidem com os dados do Distrito
Federal:
56
Tabela 03 – Regiões metropolitanas brasileiras – população, 1991
REGIÃO METROPOLITANA POPULAÇÃO
São Paulo 15.416.415
Rio de Janeiro 8.632.498
Belo Horizonte 3.431.755
Porto Alegre 3.026.029
Recife 2.871.261
Salvador 2.493.224
Fortaleza 2.303.645
Curitiba 1.998.807
Brasília 1.598.415
Belém 1.332.723 Fonte: HOLANDA, Frederico de. O espaço de exceção. Brasília: Editora da UnB, 2002, p. 287.
Desta forma, o debate em torno da delimitação do espaço urbano de
Brasília parece perder o sentido, uma vez que os dados oficiais desta cidade
correspondem aos dados do Distrito Federal como um todo. A delimitação da área
do Distrito Federal deu-se a partir das pesquisas realizadas pelo chefe da Comissão
Exploradora do Planalto Central do Brasil, Luis Cruls48. A importância de voltarmos
a essa discussão e a percepção desse espaço que extrapola os limites físicos do
Plano Piloto de Brasília dá-se para entendermos a constituição do Distrito Federal
e a importância de cada uma das cidades satélites que lá existem.
De acordo com informações do site do IBGE, o Distrito Federal é um
“estado” da Federação com área de 5.779.999Km2, população estimada para o ano
de 2013 de 2.789.761 habitantes e com apenas um município - Brasília49. Desta
forma, como podemos pensar em Brasília restrita aos contornos do Plano Piloto,
48 Mais detalhes sobre a Comissão, seu papel e suas conclusões, ver: CRULS, Luis. Relatório Cruls
(relatório da Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil). 7 ed. Fac-similar. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003; ver também minha dissertação de mestrado: CEBALLOS, 2005.
49 Disponível em: http://www.ibge.gov.br/estadosat/perfil.php?sigla=df#. Acesso em 22 de janeiro de 2014.
57
uma vez que as cidades satélites compõem o espaço urbano desta cidade? A
arquiteta Juliane Albuquerque Abe Sabbag afirma que
O modelo de ocupação polinuclear é adotado em Brasília desde o início de sua construção. O Plano Piloto é compreendido como o núcleo principal, original e central de um planejamento urbano que estimula a criação de outros núcleos, mais afastados da cidade moderna de Lúcio Costa, criando-se, assim, um espaço livre de ocupações muito grande entre uma cidade e outra. No período pós-moderno, mais precisamente na década de 1990, há um incentivo ao adensamento e à ocupação dos vazios inter e intra-urbanos, viabilizando o processo de conurbação, fenômeno típico das metrópoles. (SABBAG, 2012, p. 100)
Não estou muito segura para afirmar que há um processo de conturbação
em Brasília, como pressupõe Sabbag (2012), pois este processo implica que os
centros periféricos que se “unem” espacialmente à metrópole tenham autonomia
administrativa, econômica, política e social.50 Isso não ocorre em Brasília. As
cidades satélites, em sua maioria, dependem economicamente do plano piloto –
uma vez que concentram a maior parte de suas atividades no setor de serviços.51
Criaram-se as Regiões Administrativas como estratégia para descentralizar a
administração do Distrito Federal e facilitar a atuação em cada um desses núcleos.
Em 1964, foram legalmente registradas 7 Regiões Administrativas (RAI – Brasília52;
50 As discussões sobre a noção de conturbação utilizadas nesse texto remetem basicamente às
discussões apresentadas por Juliane Albuquerque Abe SABBAG (2012) em sua dissertação de mestrado.
51 Para dados mais precisos sobre as atividades de cada uma das Regiões Administrativas do DF, ver CODEPLAN, 2012.
52 “Brasília (RA-I) - Foi inaugurada em 21 de abril de 1960, após 1.000 dias de construção. A capital foi tombada pela UNESCO, como Patrimônio Cultural da Humanidade, em 1987. A RA I, no entanto, só foi criada em 1964, pela Lei 4.545 e ratificada pela Lei nº 49/89.” (CODEPLAN, 2012)
58
RAII – Gama53; RAIII – Taguatinga54; RAIV – Brazlândia55; RAV – Sobradinho56;
RAVI – Planaltina57 e RAVII – Paranoá58). A ideia era que essa “descentralização”
administrativa garantisse uma atuação mais efetiva em cada um desses núcleos.
Para cada um deles havia a indicação, por parte do Governador do DF, um
Administrador Regional que responderia pelas ações nesses espaços e auxiliaria
os órgãos como a NOVACAP e o próprio GDF a governar todo o Distrito Federal.
No ano de 1989, foram criadas mais 05 RA’s (RAVIII – Núcleo Bandeirante59;
53 “Gama (RA II) – Com a transferência do Distrito Federal para o Planalto Central, as terras que
pertenciam às fazendas Gama, Ponte Alta, Ipê e Alagado ficaram dentro da área escolhida. Em 1960, começou a se formar o povoamento que daria origem ao Gama. Os dados do Censo Experimental de Brasília realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE em 1959 mostram que residiam na futura área do Gama cerca de 1.000 pessoas.” (CODEPLAN, 2012)
54 “Taguatinga (RA III) – Foi fundada em 5 de junho de 1958, em terras que anteriormente pertenciam à fazenda Taguatinga, em função do superpovoamento da Cidade Livre (Núcleo Bandeirante), que já não tinha condições para abrigar o grande número de trabalhadores que chegavam de toda parte do país para a construção da nova capital. Dessa forma, antecipava o projeto de Lucio Costa que previa uma cidade satélite para 25.000 habitantes, a ser construída apenas dez anos após a inauguração da Capital.”(CODEPLAN, 2012)
55 “Brazlândia (RA IV) – Anterior à construção de Brasília, Brazlândia era um povoado que integrava a área rural do município goiano de Luziânia, do qual foi desmembrado para se inserir na área do quadrilátero onde seria transferida a nova capital.” (CODEPLAN, 2012)
56 “Sobradinho (RA V) – Foi fundada em 13 de maio de 1960 para abrigar a população que vivia nos acampamentos de empreiteiras localizadas na Vila Amauri, no Bananal e nas invasões próximas à Vila Planalto, inundadas pelas águas do Lago Paranoá, e também aos funcionários da NOVACAP e do Banco do Brasil que vieram para a implantação da nova capital.” (CODEPLAN, 2012)
57 “Planaltina (RA VI) – Cidade mais antiga do Distrito Federal, fundada em 1859 e integrada ao DF em 1960, a partir desse momento, considerável contingente populacional oriundo de invasões da Vila Vicentina, Setor Residencial Leste (Vila Buritis I, II e III), Setor Residencial Norte A (Jardim Roriz) foi incorporado à localidade.” (CODEPLAN, 2012)
58 “Paranoá (RA VII) – A Vila Paranoá originou-se do acampamento dos pioneiros que trabalhavam na construção da Barragem do Lago Paranoá em 1957. Após o término da obra os pioneiros permaneceram no local e outros imigrantes ocuparam a área próxima à antiga vila, de forma desordenada.” (CODEPLAN, 2012)
59 “Núcleo Bandeirante (RA VIII) – Constitui um dos principais núcleos de povoamento anteriores à inauguração de Brasília, tendo à época a função comercial no contexto da construção da nova capital federal.” (CODEPLAN, 2012)
59
RAIX - Ceilândia60; RAX - Guará61; RAXI - Cruzeiro62 e RAXII - Samambaia63).
A criação dessas Regiões Administrativas correspondia a um processo de
descentralização da administração de Brasília, uma vez que o crescimento
desta cidade e de seus núcleos satélites pressupunha uma atuação mais
direcionada para o atendimento às especificidades de cada um deles.64 Desta
forma, o mapa a seguir mostra como estava a ocupação territorial no DF no
ano de 1989.
60 “Ceilândia (RA IX) – A cidade surgiu em decorrência da primeira Campanha de Erradicação de
Favelas – CEI, que aconteceu no Distrito Federal, realizado pelo governo local. As remoções para a nova cidade foram iniciadas em 27 de março de 1971, estabelecendo a data de sua fundação a partir da transferência cerca de 80 mil moradores das favelas da Vila do IAPI, Vila Tenório, Vila Esperança, Vila Bernardo Sayão e Morro do Querosene.” (CODEPLAN,2012)
61 “Guará (RA X) – A construção do Guará iniciou-se em 1967 para absorver funcionários públicos e trabalhadores do Setor de Indústria e Abastecimento – SIA, de invasões e núcleos provisórios, com as primeiras casas construídas por meio de mutirão. Seu nome se deve ao córrego Guará, em homenagem ao lobo Guará, espécie do Planalto Central e muito comum na região à época da construção de Brasília.” (CODEPLAN, 2012)
62 “Cruzeiro (RA XI) – A ocupação do Cruzeiro se deu no ano de 1955 nas terras da Fazenda Bananal (área desapropriada para a construção da nova capital) para abrigar funcionários públicos do Rio de Janeiro transferidos para Brasília. Em 1958 começaram as primeiras construções de casas geminadas para receber esses funcionários públicos.” (CODEPLAN, 2012)
63 “Samambaia (RA XII) – O surgimento da Região Administrativa resultou das diretrizes adotadas no Plano Estrutural de Organização Territorial – PEOT, elaborado em 1978, que determinava vetores de ampliação das áreas urbanas em decorrência do rápido crescimento populacional do DF e da consequente demanda habitacional. Em 1981, elaborou-se o estudo preliminar - Projeto Samambaia, implementado oficialmente em 1982.” (CODEPLAN, 2012)
64 As datas apresentadas no Relatório da CODEPLAN para a criação das RA’s corresponde a data de promulgação da Lei de Criação de cada uma delas. No entanto, em sua maioria, as cidades satélites já existiam antes mesmo da sua criação como parte de uma Região Administrativa do Distrito Federal.
60
Figura 05 – Mapa da Distribuição Territorial do Distrito Federal - 198965
Fonte: Levantamentos Aerofotogramétricos de 1958, 1960, 1964, 1975, 1982, 1986, 1991 e 1997 / Diário Oficial do
Distrito Federal - DODF
Brasília conta hoje com 31 Regiões Administrativas (RAXIII – Santa
Maria66; RAXIV – São Sebastião67; RAXV – Recanto das Emas68; RAXVI – Lago
65 Este mapa foi retirado do documento “DF em síntese – informações socioeconômicas” produzido
em 2012 pela CODEPLAN – Companhia de Planejamento do Distrito Federal. 66 “Santa Maria (RA XIII) – Foi criada em 04 de novembro de 1992, por meio da Lei 348/92, e
regulamentada pelo Decreto nº 14.604/93, que a constituiu na XIII RA do Distrito Federal.” (CODEPLAN, 2012)
67 “São Sebastião (RA XIV) – As terras que hoje constituem a Região Administrativa XIV pertenciam, antes da mudança da nova capital, às fazendas Taboquinha, Papuda e Cachoeirinha. Com o início das obras da construção de Brasília, essas fazendas foram desapropriadas e a partir de 1957, nelas se instalaram olarias. Posteriormente, as terras foram arrendadas por meio da Fundação Zoobotânica do DF, com objetivo de atender a demanda da construção civil existente na época.” (CODEPLAN, 2012)
68 “Recanto das Emas (RA XV) – A região administrativa Recanto das Emas foi criada em 28 de julho de 1993 pela lei nº 510/93 e regulamentada pelo Decreto nº 15.046/93, para atender o programa de assentamento do Governo do Distrito Federal e erradicar, principalmente, as invasões localizadas na RA I – Brasília.” (CODEPLAN, 2012)
RA IV
Brazlândia
RA III
Taguatinga
RA II
Gama
RA I
Brasília
RA V
Sobradinho
RA VII
Paranoá
RA VI
Planaltina
RA VIII
Núcleo Bandeirante
RA IX
Ceilândia
RA X
Guará
RA XI
Cruzeiro
RA XII
Samambaia
61
Sul69; RAXVII – Riacho Fundo70; RAXVIII – Lago Norte71; RAXIX - CAndangolândia72;
RAXX – Águas Claras73; RAXXI – Riacho Fundo II74; RAXXII –
Sudoeste/Octogonal75; RAXXIII - Varjão76; RAXXIV – Park Way77; RAXXV – SCIA
(Setor Complementar de Indústria e Abastecimento)78; RAXXVI – Sobradinho II79;
69 “Lago Sul (RA XVI) - O povoamento iniciou-se com a construção de casas para servir de
residências aos diretores da Companhia. Companhia Urbanizadora da Nova Capital – NOVACAP. Fez parte da RA I - Brasília, até ser criada, por meio da Lei nº 643/94 e regulamentada pelo Decreto 15.515/94.” (CODEPLAN, 2012)
70 “Riacho Fundo (RA XVII) – Em 1990, por iniciativa do Governo do Distrito Federal, foi instituído o programa de assentamento habitacional para erradicar as invasões. Como parte desse programa, a granja Riacho Fundo foi loteada, transferindo para lá famílias cadastradas na antiga SHIS (Sociedade de Habitação de Interesse Social, atual SEDHAB), moradores da invasão do Bairro Telebrasília e de outras localidades.” (CODEPLAN, 2012)
71 “Lago Norte (RA XVIII) - Quando foi feita a divisão territorial do Distrito Federal, suas terras pertenciam a RA I - Brasília. A NOVACAP elaborou os projetos de urbanização da área e da Península Norte que posteriormente passaram a ser apenas o Lago Norte. A RA foi criada pela Lei nº 641/94 e regulamentada pelo Decreto nº 15.516/94.” (CODEPLAN, 2012)
72 “Candangolândia (RA XIX) – A localidade surgiu do primeiro acampamento oficial construído em 1956 pela Companhia Urbanizadora da Nova Capital - NOVACAP. Abrigava a sede da Companhia, residências das equipes, posto de saúde, hospital, posto policial, dois restaurantes, e escola para os filhos dos moradores.” (CODEPLAN, 2012)
73 “Àguas Claras (RA XX) – A Região Administrativa conta com uma área total de 31,50 Km2 e está a 20 Km da Região Administrativa Brasília. Engloba três setores: Águas Claras (Vertical), Areal, Setor Habitacional Arniqueiras, compreendendo Veredas da Cruz, Setor Veredas e Veredão. (CODEPLAN, 2012)
74 “Riacho Fundo II (RA XXI) – O Decreto nº 15.441/94 criou o parcelamento do Riacho Fundo II, como parte integrante do Riacho Fundo, com a promulgação da Lei nº 620/93.” (CODEPLAN, 2012)
75 “Sudoeste/Octogonal (RA XXII) - Criada pela Lei de nº. 3.153/2003, em função do desmembramento de área da RA XI - Cruzeiro. As Áreas Octogonais foram inauguradas na década de 1980, enquanto o Setor de Habitações Coletivas Sudoeste - SHCSW surgiu em 1988, como parte integrante do projeto “Brasília Revisitada”, do urbanista Lucio Costa, criado em 10 de julho de 1989. Constituía uma alternativa de moradia para a população de alto e médio poder aquisitivo.” (CODEPLAN, 2012)
76 “Varjão (RA XXIII) – No final da década de 1950 as terras do Varjão pertenciam a Fazenda Brejo ou Torto e estavam localizadas no município de Planaltina. O início do povoamento da Vila Varjão surgiu na década de 1960, com a chegada das primeiras famílias que vieram desenvolver atividades agrícolas. No começo do ano de 1970, segundo informações de antigos moradores, as pessoas que tinham a posse da área dividiram os lotes entre os empregados, embora a terra fosse de propriedade do GDF e administrada pela Companhia Imobiliária de Brasília – TERRACAP.” (CODEPLAN, 2012)
77 “Park Way (RA XXIV) - A criação do loteamento das Mansões Suburbanas Park Way (MSPW) foi incluída no Plano Urbanístico de Brasília, em uma de suas últimas alterações em 1957/58. Com lotes iniciais de 20.000 m², o atual Setor de Mansões Park Way - MSPW foi concebido para ser implantado por partes, sendo registradas inicialmente as áreas destinadas ao uso residencial.” (CODEPLAN, 2012)
78 “SCIA - Estrutural (RA XXV) – No depósito de lixo na margem direita da DF - 095, sentido SIA - Taguatinga surgiram os primeiros barracos de catadores de lixo próximo ao local.” (CODEPLAN, 2012)
79 “Sobradinho II (RA XXVI) – No início da década de 1990 foi criado o Núcleo Habitacional Sobradinho II como parte integrante da Região Administrativa V – Sobradinho, em consequência do
62
RAXXVII – Jardim Botânico80; RAXXVIII – Itapoã81; RAXXIX – SAI (Setor de Indústria
e Abastecimento)82; RAXXX – Vicente Pires83 e RAXXXI - Fercal84). O crescimento
desordenado e explosivo porque passou Brasília no período entre 1964 e 2012 pode
ser visualizado nos mapas que apresentam a distribuição territorial no DF com a
criação das Regiões Administrativas.
Programa de Assentamento de População de Baixa Renda, que tinha como objetivo transferir as famílias que residiam em um mesmo lote e também fixar os moradores das invasões do Ribeirão Sobradinho e Lixão.” (CODEPLAN, 2012)
80 “Jardim Botânico (RA XXVII) – A área residencial do Jardim Botânico se tornou bairro em 1999. Por meio da Lei nº 3.435/2004 o Setor Habitacional foi transformado em Região Administrativa, embora as suas poligonais não tenham ainda sido definidas. A área engloba vários condomínios horizontais situados entre o Lago Sul e São Sebastião.” (CODEPLAN, 2012)
81 “Itapoã (RA XXVIII) – A invasão de Itapoã foi iniciada no final da década de 1990, mas o ano de 2001 foi marcado com a chegada de famílias oriundas de outros estados e da Região Administrativa do Paranoá. A expectativa de regularização estimulou o crescimento do núcleo.” (CODEPLAN, 2012)
82 “SIA (RA XXIX) - Criada, por meio da Lei nº 3.618/2005, contempla os Setores: Indústria e Abastecimento - SIA; de Garagens e Concessionárias de Veículos - SGCV; de Garagens de Transporte Coletivo - SGTC; de Inflamáveis - SI; de Oficinas Sul - SOFS; e de Transporte de Cargas - STRC. Esta é a única RA que até o momento não possui unidades habitacionais.” (CODEPLAN, 2012)
83 “Vicente Pires (RA XXX) – A área de Vicente Pires tornou-se mais povoada a partir de 1989, quando o governador José Aparecido resolveu centralizá-la em um processo de expansão rural através do convênio intermediado pelo GDF e realizado por meio da Fundação Zoobotânica, mediante contrato de uso do solo para a produção agrícola, abrangendo cerca de 360 chacareiros e com prazo estipulado em 30 anos.” (CODEPLAN, 2012)
84 “Fercal (RA XXXI) – A Fercal abriga uma região industrial importante no Distrito Federal. Tem fábricas de cimento e uma grande concentração de usinas de asfalto e mineradoras. Tornou-se Região Administrativa em janeiro de 2012.” (CODEPLAN, 2012)
63
Figura 06 – Mapa da Distribuição Territorial do Distrito Federal – 199485
Fontes: Levantamentos Aerofotogramétricos de 1958, 1960, 1964, 1975, 1982, 1986, 1991 e 1997 / Diário Oficial do Distrito Federal - DODF
85 Este mapa foi retirado do documento “DF em síntese – informações sócioeconômicas” produzido
em 2012 pela CODEPLAN – Companhia de Planejamento do Distrito Federal.
RA IVBrazlândia
RA IIITaguatinga
RA IIGama
RA IBrasília
RA VSobradinho
RA VIIParanoá
RA VIPlanaltina
RA VIIINúcleo
Bandeirante
RA IXCeilândia
RA XGuará
RA XICruzeiro
RA XIISamambaia
RA XIIISanta Maria
RA XIVSão Sebastião
RA XVRecanto das Emas
RA XVILago Sul
RA XVIIRiachoFundo
RA XVIIILago Norte
RA XIXCandangolândia
64
Figura 07 – Mapa da Distribuição Territorial do Distrito Federal – 200486
Fontes: SEPLAN/CODEPLAN – Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios – PDAD
86 Este mapa foi retirado do documento “DF em síntese – informações sócioeconômicas” produzido
em 2012 pela CODEPLAN – Companhia de Planejamento do Distrito Federal.
Sobradinho
Sobradinho II
Varjão
Brazlândia
Brasília
Taguatinga
Guará CandangolândiaCeilândia
Samambaia
Recanto das Emas
GamaSanta Maria
Águas Claras
Riacho Fundo II
Riacho Fundo
Park Way
Lago Sul
São Sebastião
Paranoá
Itapoã
Planaltina
Núcleo Bandeirante
CruzeiroLago NorteSCIA (Estrutural)
Sudoeste/Octogonal
65
Figura 08 – Mapa da Distribuição Territorial do Distrito Federal – 201287
87 Este mapa foi retirado do documento “DF em síntese – informações sócioeconômicas” produzido em 2012 pela CODEPLAN – Companhia
de Planejamento do Distrito Federal.
66
Vemos a partir desses mapas que o crescimento do número de Regiões
Administrativas parece transparecer um crescimento da população nas áreas
circunvizinhas a Brasília. A cidade deixa de ser pensada, em dados quantitativos,
como um todo, e as Regiões Administrativas passariam a contemplar as suas
demandas e especificidades. Dados do mesmo relatório produzido pela
CODEPLAN mostram a população de cada RA do Distrito Federal no ano de 2011:
Tabela 04 – Habitantes por Região Administrativa
Fonte: CODEPLAN – Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios – PDAD - 2011
DISTRITO FEDERAL E REGIÕES ADMINISTRATIVAS TOTAL DE HABITANTES
RA I – Brasília 209.926
RA II – Gama 127.475
RA III - Taguatinga 197.783
RA IV - Brazlândia 49.418
RA V - Sobradinho 59.024
RA VI - Planaltina 161.812
RA VII – Paranoá 42.427
RA VIII - Núcleo Bandeirante 22.569
RA IX – Ceilândia 404.287
RA X – Guará 107.817
RA XI – Cruzeiro 31.230
RA XII - Samambaia 201.871
RA XIII - Santa Maria 119.444
RA XIV - São Sebastião 77.793
RA XV - Recanto das Emas 124.755
RA XVI - Lago Sul 29.677
RA XVII - Riacho Fundo 35.268
RA XVIII - Lago Norte 33.526
RA XIX - Candangolândia 15.953
RA XX - Águas Claras 109.935
RA XXI - Riacho Fundo II 37.051
RA XXII - Sudoeste/Octogonal 51.565
RA XIII – Varjão 9.021
RA XXIV - Park Way 19.648
RA XXV - SCIA (Estrutural) 32.148
RA XXVI - Sobradinho II 94.279
RA XXVII - Jardim Botânico 23.856
RA XXVIII - Itapoã 56.360
RA XXIX – SAI 2.448
RA XXX - Vicente Pires 67.783
Distrito Federal 2.556.149
67
Tais dados mostram que a maioria da população do DF está concentrada
nas cidades satélites. Contudo, isso não implica dizer que haja um sentimento de
pertença dos habitantes das RA’s no sentido de se identificarem com suas
respectivas cidades satélites. Quando indagados sobre o lugar em que moram,
onde nasceram, em sua maioria dirão Brasília, e não o nome da cidade satélite em
que residem. Dados do IBGE não assumem essas RA’s como núcleos autônomos
– e não o são se pensarmos em como está estruturada sua política administrativa
(todas subordinadas a administração central) – a escolha dos Administradores
Regionais, por exemplo, ainda é feita por indicação do Governador do Distrito
Federal. Como então, desconsiderá-las numa análise sobre Brasília, uma vez que
a compõem enquanto malha urbana? Mesmo tendo sido consideradas
“inadequadas” por Lúcio Costa, quando afirmou que
quem trabalha na cidade, deve morar na cidade. É uma aberração e um desperdício, numa cidade planejada, esse deslocamento diário da população obreira. É um erro estimular o desenvolvimento indevido dessas pseudocidades satélites, cujo crescimento deveria ser, pelo contrário, contido em favor do estímulo à atividade rural nas áreas circunvizinhas, ou ser condicionado à instalação de indústrias locais; é nestes termos que a integração se deve processar e nunca em termos de “fusão”. (GRAEFF, 1970, 28)
As cidades satélites e as Regiões Administrativas fazem parte do Distrito
Federal, e quando mencionamos Brasília, não estamos nos referindo ao espaço
físico delimitado pela RAI, mas ao DF como um todo. A necessidade, expressa na
fala de Costa, de estimular atividades agrícolas nas cidades do entorno de Brasília,
encontra ressonância na fala de alguns autores aqui mencionados, como Tiemman
(1995) sobre Sobradinho. No entanto, Sobradinho vai ganhando outros contornos e
outros ares de cidade que passam longe de uma cidade tipicamente rural. Falas de
alguns de seus moradores revelam certa estranheza ao se falar em Sobradinho
como um núcleo rural.
Embora não tenha tido acesso ao projeto de urbanização de Sobradinho,
ao percorrer suas ruas e observar atentamente sua configuração espacial,
68
percebemos que há uma proposta de ordenação dos espaços e de uma quase
racionalidade nesse processo. Arrisco-me a afirmar que há a incorporação do
ideário racionalista de Lúcio Costa proposto para Brasília, no traçado desta cidade.
A planta da cidade (figura 05) expressa o caráter setorizado, presente
também no plano piloto de Brasília. Sobradinho está dividida em setores e há,
claramente, uma ordenação e uma tentativa de racionalização dos usos dos
espaços nessa cidade satélite, uma “das primeiras cidades de Brasília, cidade
satélite projetada, com água, luz, esgoto, telefone, tudo.” (TIEMANN, 1995). O
traçado reto das ruas, a concentração da administração regional em um único
espaço, do comércio em outro, parece dar a esta cidade os ares de uma cidade
planejada e racionalizada, seguindo o ideário tão amplamente divulgado e
sacralizado para Brasília.88
88 James Holston faz uma discussão importante sobre a setorização como característica de Brasília e como esse processo acaba influindo na ocupação territorial e nas políticas de povoamento de algumas das cidades satélites que a circundam. Sobre essa discussão ver especialmente os capítulos 05 “Tipologias de ordem, trabalho e moradia” e 07 “Cidades de rebelião” do livro HOLSTON, James. A cidade modernista. Uma crítica de Brasília e sua utopia. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Há também no Plano Piloto de Brasília uma descrição clara dos setores pensados para aquela cidade. RELATÓRIO do Plano Piloto de Brasília/elaborado pelo ArPDF, CODEPLAN, DEPHA. Brasília: GDF, 1991.
69
Figura 09 – Planta da cidade de Sobradinho - DF89
89 A planta apresentada refere-se à área chamada de Sobradinho Tradicional, que não incorpora as áreas do setor oeste e dos loteamentos criados na antiga área
rural da cidade. Como neste trabalho o instrumento principal de discussão desta cidade é o seu Plano Diretor, elaborado em 1994, e este só contempla discussões para a área de Sobradinho tradicional, focaremos nossa discussão nesta área.
70
De acordo com o relatório da CODEPLAN, o loteamento original de
Sobradinho se dividiu em quatro setores principais:
Residencial Comercial – composto por lotes residenciais, projeções destinadas à habitação coletiva e lotes comerciais, localizados nas laterais das quadras e destinados ao comércio local; Comercial – composto por quadras e setores destinados exclusivamente ao comércio central, ao setor administrativo, ao setor hoteleiro e ao setor comercial e de serviços, distribuídos na quadra 08 e ao longo dos eixos de vias secundárias e na Quadra Central, deixando Sobradinho sem um Centro Urbano bem caracterizado; Industrial – destinado a oficinas em geral e pequenas fábricas e depósitos; Áreas isoladas – destinadas a postos de gasolina, áreas especiais para indústrias, depósitos e, ainda, áreas especiais destinadas a serviços públicos e clubes recreativos. (CODEPLAN, 2012)
As similitudes entre essas duas cidades, ou entre as concepções
pensadas para elas, não se encerram na setorização de seus espaços. As quadras
residenciais de Sobradinho foram pensadas de forma que se aproxima ao planejado
para as superquadras do Plano Piloto.
Figura 10 – Unidade de Vizinhança (Superquadra)
71
Lúcio Costa propõe que as superquadras tenham uma disposição
e uma estrutura que permitam aos seus moradores uma convivência tranquila
e aprazível ao mesmo tempo em que tenham ao seu dispor serviços básicos
que atendam as demandas do dia-a-dia:
Quanto ao problema residencial, ocorreu a solução de criar-se uma sequência contínua de grandes quadras dispostas em ordem dupla ou singela, de ambos os lados da faixa rodoviária, e emolduradas por uma larga cinta densamente arborizada, árvores de porte, prevalecendo em cada quadra determinada espécie vegetal, com chão gramado e uma cortina suplementar intermitente de arbustos e folhagens, a fim de resguardar melhor, qualquer que seja a posição do observador, o conteúdo das quadras visto sempre num segundo plano e como que amortecido na paisagem. Disposição que apresenta a dupla vantagem de garantir a ordenação urbanística mesmo quando varie a densidade, categoria, padrão ou qualidade arquitetônica dos edifícios e de oferecer aos moradores extensas faixas sombreadas para passeio e lazer, independentemente das áreas livres previstas no interior das próprias quadras. (...) O mercadinho, o açougue, as vendas, quitandas, casas de ferragens etc, na primeira metade da faixa correspondente ao acesso de serviço; as barbearias, cabeleireiros, modistas, confeitarias, etc na primeira seção da faixa de acesso privativo dos automóveis e ônibus, onde se encontram igualmente os postos de serviço para venda de gasolina. As lojas dispõem-se em renque com vitrinas e passeio coberto na face fronteira às cintas arborizadas de enquadramento dos quarteirões e privativas dos pedestres, e o estacionamento na face oposta contígua às vias de acesso motorizado, prevendo-se travessas para ligação de uma parte a outra, ficando, assim, as lojas geminadas duas a duas, embora o seu conjunto constitua um corpo só. (RELATÓRIO PLANO PILOTO, ArPDF; CODEPLAN; DEPHA, 1991)
A execução do plano piloto levou em consideração estes aspectos
e as superquadras parecem ter conseguido criar esse espaço de vizinhança,
de convivência e de acesso aos serviços básicos pensados por Costa. Em
Sobradinho, propõe-se algo análogo, uma vez que foi mantido neste núcleo
o sentido de áreas de vizinhança e convivência que se pretendeu com as
superquadras no Plano Piloto.
73
Para as quadras residenciais em Sobradinho fica claro, a partir das
imagens acima, a concepção de área de vizinhança e convivência pensada para a
cidade90. Uma quadra residencial tem em média 05 conjuntos (ruas) com 62 lotes
cada. Entre os conjuntos há uma faixa arborizada que corresponderia à frente das
casas onde é proibido o tráfego de veículos automotores, o que possibilitaria aos
moradores uma convivência mais próxima e um ambiente livre do perigo dos carros,
ou da presença de pessoas estranhas aos moradores daquela rua ou seus
parentes.91 A ideia é criar um espaço de lazer para as famílias, arborizado,
aprazível, uma espécie de extensão de suas residências. Além disso, entre as
quadras seriam erguidos centros comerciais para atender às demandas dos
moradores, que não precisariam se deslocar a quadra comercial para as compras
mais imediatas. No entanto, o que está planejado enquanto uso dos espaços em
Sobradinho, parece não corresponder com o que efetivamente ocorre, uma vez que
“as áreas verdes públicas dos conjuntos residenciais tem uma área
demasiadamente grande sem que nada fique definido quanto ao seu uso, ficando
os mesmos à mercê de ingerências até estranhas aos moradores.” (Plano Diretor
Local-Sobradinho, 1994)
90 Anhaia Melo propunha em curso de urbanismo ministrado na USP em 1957 concepções claras do que seriam as Unidades de Vizinhança e o papel das Superquadras nelas. Sobre isso ver discussão no terceiro capítulo deste trabalho. 91 “As áreas das quadras residenciais de Sobradinho, criadas pelo projeto original da cidade, são compostos por conjuntos de lotes cuja área sempre é maior do que 300m2, alcançando até 525m2, em muitos casos. Estes conjuntos, por sua vez, são contemplados com amplas faixas verdes públicas na frente dos lotes. Esta configuração urbana resulta em uma baixa densidade do projeto (87hab/Há) e, na prática, no mau isso das áreas verdes públicas e na utilização dos lotes para mais de uma residência.” PLANO DIRETOR LOCAL – PDL – Sobradinho, DF. Região Administrativa V do Distrito Federal. Brasília: GDF, 1994.
74
Figura 12 – Vista da faixa verde do conjunto C da quadra 07 – Sobradinho – DF (Foto: Adriano Gualberto)
Há claramente expresso, no Plano Diretor Local de Sobradinho (PDL),
uma preocupação com a ocupação dos vazios urbanos identificados e uma nova
proposta de racionalização do uso dos espaços nessa cidade. Por outro lado,
devemos pensar o processo de apropriação que os moradores fazem desses
“vazios” urbanos. Os traçados propostos são reelaborados e reapropriados pelos
moradores da cidade. Onde acaba a racionalidade e começa a apropriação
subjetiva dos habitantes da cidade? Até que ponto os traçados devem se impor às
pessoas? Quanto de racionalidade há também nesse processo de reapropriação?
As propostas apresentadas no PDL reforçam certa “vocação histórica” da cidade ao
apontarem para a necessidade do incremento das atividades agroindustriais, de
comércio e serviços que garantiriam o aumento na oferta de emprego local.
Há ainda, no PDL, uma proposta de reestruturação da Subzona Central
da cidade de Sobradinho, por haver, naquela cidade, uma clara desvirtuação do que
75
se considera centro de uma cidade, ou seja, “o lugar de concentração de atividades,
de convergência, da animação onde ocorrem altas manifestações do convívio social
dos mais variados grupos.” (PDL, 1994) Essa desvirtuação dá-se em primeiro lugar
pela fragmentação desse centro: a quadra central, a rua 5 e a área comercial da
quadra 08 (ver planta da cidade com os destaques indicando as áreas
mencionadas).
77
Esta fragmentação parece ter sido um dos fatores, de acordo com o PDL,
que contribuiu significativamente para a descaracterização e desvalorização do
centro daquela cidade. Sobradinho, assim, careceria de um centro que desse maior
visibilidade e funcionalidade ao seu centro. Os serviços, a administração, a diversão
devem ser o foco central dessa área. Portanto, o PDL propõe ampla reforma dessa
área e apresenta em alguns croquis essa proposta. O que nos chama mais atenção
– pensando o paralelo que sempre se construiu entre Sobradinho e o Plano Piloto
– é o croqui 05 que apresenta a proposta de reforma para a rua 05.
Figura 14 – Croqui reforma da Rua 5 – PDL Sobradinho
A imagem acima mostra, claramente, uma proposta de urbanização da
rua 05 que resulta numa identificação direta com a esplanada dos ministérios em
Brasília, mesmo isso não aparecendo de forma explícita no texto do PDL.
Ao longo do eixo da Rua 05 propõe-se uma reestruturação volumétrica, no sentido de constituir um conjunto arquitetônico, sem
78
as descontinuidades físicas hoje presentes, vazios estes problemáticos à circulação de pedestres com efeito desintegrador do conjunto. (...) Ainda como estratégia de melhor constituir funcional e visualmente a Rua 05 é obrigatória a construção de marquises e passeios, com uma largura uniforme e constante igual a 3,00m na frente voltada para a Rua 05 e nas respectivas laterais. (PDL, 1994)
Criar um sentido de uniformidade e de racionalização dos usos desse
espaço parece ser uma premissa no PDL de Sobradinho. Seu texto deixa claro que
a intenção é a de imprimir naquela cidade, ares de ordenação e de melhor
aproveitamento de seus espaços e adequação dos sentidos a eles atribuídos pelos
habitantes. Vinte anos depois da proposição apresentada no PDL, a cidade continua
com sua subzona central como era tradicionalmente. Essa reforma não se efetivou
e o controle dos usos dos espaços citadinos continua sob a égide daqueles que
fazem a cidade, seus habitantes. São eles os que ditam os caminhos e traçam
outras possibilidades para seu espaço, uma vez que “a função não outorga o
significado, mas simplesmente a razão de ser” (ARGAN, 1995, p. 230), ou seja, uma
cidade não se molda pelas necessidades funcionais de seus espaços, mas pelos
significados que lhes são atribuídos pelos seus consumidores – os homens que nela
habitam.
79
“HISTÓRIAS QUE SÓ EXISTEM QUANDO SÃO
LEMBRADAS”: PERSONAGENS E TRAJETÓRIAS DE
MORADORES DE SOBRADINHO (DF)
Muitos chamam-na de 'a Petrópolis brasiliense', pela salubridade do seu clima. Ou, a 'cidade serrana'. Para se viver, Sobradinho é uma cidade aprazível, própria ao trabalho e à especulação intelectual. (VASCONCELOS, 1988, p. 179)
iscutir uma cidade a partir da memória de seus moradores,
propõe um deslocamento do olhar lançado a este espaço
tantas vezes desenhado, estudado, vasculhado, o que
ocasiona, por diversas vezes, num deixar entrever as linhas constituintes da trama
de seu tecido. Ver a cidade, estuda-la a partir da memória do indivíduo, é entendê-
la como dependente das relações que este indivíduo estabelece (seja com a família,
o grupo social, a escola, a igreja, etc.), como uma atualização, uma ressignificação
do passado, pois, “a memória é desencadeada de um lugar, e este se situa no
presente” (SEIXAS, 2002, p. 62). A historiadora Jacy Seixas, ao discutir o processo
de rememoração atrelado à vivência individual e social, afirma que aqueles que são
incitados a lembrar dão à sua memória contornos próprios dessa vivência, deste
modo, não se pode pensar, portanto, ser diferente com os moradores de Brasília ou
de suas cidades-satélites. Entender como as pessoas relembram, refazem e
redimensionam essa experiência é mais uma porta de inserção na cidade que me
parece crucial para a elaboração de uma história sobre Sobradinho.
Essa pesquisa nasce do desafio de construir imagens sobre Brasília e
Sobradinho a partir da memória de moradores desta cidade satélite. A princípio, um
universo variado de entrevistas privilegiando pioneiros de sua consolidação e
pessoas que migraram na década de 1970. A trajetória da pesquisa foi também,
D
80
sendo delineada a partir dos percalços e possibilidades a ela inerentes – exemplo
disso é como a lista de possíveis colaboradores, pensados a priori, foi sendo
modificada (e, drasticamente, reduzida) ao longo do trabalho de campo.92 Esse
processo acabou fazendo com que as colaborações para a tese fossem
majoritariamente de mulheres, algo não intencional a princípio, mas que não nos
parece inviabilizar a discussão aqui proposta. Sobradinho ganha assim, a partir de
agora, contornos traçados por essas falas, por essas trajetórias que nos dão acesso
à como cada uma dessas mulheres, cada um desses colaboradores a desenham e
se apropriam dela. Ler a cidade e apropriar-se dela, é perceber as linhas que
constituem sua tessitura.
Sobradinho, cidade satélite localizada a 25km do plano piloto, é descrita
por Adirson Vasconcelos93 na epígrafe acima como a “Petrópolis Brasiliense” em
referência ao clima agradável da cidade. Uma imagem que encontra ressonância
92 A lista de possíveis colaboradores contava com os seguintes nomes: Aristides de Almeida Barreto (dono da loja “Bazar Barreto”, tradicional no comércio da quadra 08 de Sobradiho desde 1962); Maria das Dores Alves Rezende (fundadora do Centro de Ensino Santa Rita de Cássia, creche e escola de ensino fundamental em funcionamento desde o dia 22 de maio de 1964 em Sobradinho); Marilé das Dores Barreto, chegou a Sobradinho em 1960 e fundou em 1987 o Centro Educacional Sete Estrelas; Dr. Avelino Neto Ramos (pediatra que atua e mora e Sobradinho desde a década de 1970); Wilton Sidou Pimentel (funcionário da Câmara dos Deputados – migrou para Brasília em 1970, embora não more em Sobradinho, sempre viveu em cidades satélites); Teodoro Freire (migrou para Brasília em 1961, chegou em Sobradinho em 1962 e se tornou uma referência cultural na cidade por causa das festas do Bumba meu Boi); Maria Sena Pereira Freire – D. Maria José como gosta de ser chamada (esposa do Sr. Teodoro Freire); Marinalva Porto (dona de casa, moradora de Sobradinho desde 1971); Dirce Marley Feijó de Oliveira (dona de casa, moradora de Sobradinho desde 1976; Nelson Manoel Feijó (autônomo, morador de Brasília desde 1969, mudou-se para Sobradinho em 1973; Simião Freire Alencar (autônomo, morador da zona rural de Sobradinho desde 1983; Isaura Borges de Oliveira Alencar (professora, moradora da área de Sobradinho desde 1960, casada com Simião Freire Alencar); Maria Aparecida Rossato Rufini (bancária aposentada, moradora de Sobradinho desde 1975); Teresa Cristina Guimarães Teixeira (bancária aposentada, moradora de sobradinho aproximadamente desde 1972). A expectativa era de que em seus depoimentos cada um desses colaboradores pudessem indicar outros interlocutores e me auxiliarem na construção de outras redes. No entanto, aqueles que eu consegui entrevistar (apenas o senhor Teodoro Freire, sua esposa Maria José, as senhoras, Maria Aparecida Rufini, Dirce Marley, Isaura Alencar e Natália Feitosa) não se sentiram à vontade para indicar outros possíveis interlocutores. Os demais não aparecem nessa pesquisa ou por terem se recusado a colaborar com ela ou por eu não ter conseguido contatá-los durante o trabalho de campo. 93 “Adirson Vasconcelos, autor de dezenas de livros editados sobre o tema Brasília, é pioneiro da primeira hora da epopeia da construção da nova Capital no interior do Brasil. Sua obra histórica e literária tem merecido aplausos da crítica e o interesse do público leitor. Jornalista, historiador, advogado e administrador de empresas, é pesquisador incansável, quando se trata de Brasília.” (Apresentação do autor no site da Editora Thesaurus – editora responsável pela publicação das obras de Vasconcelos. Disponível em http://www.thesaurus.com.br/autor/adirson-vasconcelos. Acesso em 15/09/2009).
81
na fala da senhora Maria Aparecida Rossato Rufini (2009)94 quando diz que "embora
durante o dia faça assim esse calor danado, a noite a gente consegue dormir... aqui
é melhor pra dormir, mais fresquinho..." (sic.) (RUFINI, 2009) O clima de Sobradinho
parecia ser um atrativo a mais para a permanência e o bem-estar de seus
moradores.
Sobradinho foi fundada em 13 de maio de 1960 e planejada para ser uma
cidade tipicamente rural. O senhor Nelson Tiemann (1995)95, pioneiro na construção
e consolidação de Sobradinho, menciona esse projeto: "era uma cidade agrícola,
como os projetos foram sendo, a princípio era, seria uma cidade dormitório como
todas as demais eram pra ser." (TIEMANN, 1995, p.13) A intenção inicial, como bem
explicitado em capítulo anterior, era abrigar as famílias que viviam nas Vilas Amauri
e Bananal, ambas localizadas na região inundada para a construção do Lago
Paranoá, além de famílias da Vila dos Sarrafos, Vila dos Afogados e Tamboril.
(TIEMANN, 1995) Há poucos textos que tratam especificamente da história da
cidade e da trajetória desses pioneiros. Algumas publicações da administração de
Sobradinho trazem reportagens sobre os primórdios da cidade, seus primeiros
habitantes, administradores, enfim, buscam construir uma memória celebrativa e
monumental96 para essa cidade satélite, que em nenhum momento cumpriu a
expectativa de constituir um centro rural.
Mesmo sem acesso ao projeto de construção dessa cidade satélite, uma
rápida análise do seu traçado urbano nos permite dizer que o engenheiro
94 Maria Aparecida Rossato Rufini, nasceu no dia 17 de dezembro de 1951 na cidade de Gavião Peixoto (SP). Mudou-se para Brasília com o marido em outubro de 1975, veio morar diretamente em Sobradinho. RUFINI, Maria Aparecida Rossato. Entrevista. Sobradinho, 07 de outubro de 2009. 95 Nelson Ângelo Tiemann, nasceu no dia 26 de janeiro de 1926 na cidade de Curitiba (PR). Trabalhou no Departamento de Terras e Colonizações da Novacap, e realizava o pagamento dos operários que trabalhavam na construção do acampamento e dos barracões para a construção de Sobradinho. 96 A ideia de construção de uma memória celebrativa e monumental parece estar em consonância com o projeto de elaboração de uma história nacional perpassada pela necessidade de enaltecimento de personagens considerados símbolo de um projeto de nação, de cidade. Os textos produzidos por Adirson Vasconcelos sobre Brasília, por exemplo, partilham dessa proposta de cristalização de imagens, personagens e eventos considerados por este jornalista como representativos da história de Brasília e de suas cidades satélites. Ver como discuto sua importância como um dos construtores da história de Brasília em CEBALLOS, Viviane G. de. “E a história se fez cidade...”: a construção histórica e historiográfica de Brasília. Dissertação de Mestrado, Campinas, SP, 2005.
82
responsável pela construção/urbanização de Sobradinho procurou “seguir à risca”
os padrões urbanísticos modernos defendidos como característicos de Brasília. A
saber: o traçado reto, as ruas largas, as quadras com lotes residenciais e espaço
para prédios comerciais de abastecimento local (de certa forma, obedeceriam à
mesma lógica – em escala reduzida – das superquadras do plano piloto). Em
Sobradinho, as quadras são pensadas não apenas para abrigar as pessoas, mas
correspondem à tentativa de criar um vínculo de convívio entre os moradores dos
conjuntos (ruas) que compõem cada quadra residencial, como exposto abaixo
(Figura 15).97
Figura 15 – mapa da cidade de Sobradinho (DF)
Poderíamos dizer que Sobradinho apresenta elementos da cidade
orgânica, setorizada e composta por Unidades de Vizinhança defendida na primeira
metade do século XX, como uma alternativa para que as cidades se tornassem mais
aprazíveis e funcionais para seu habitante. Acredito que aqui cabe o trecho do
97 O mapa apresentado abaixo, nos foi cedido pela Administração Regional de Sobradinho, e não contempla a área do cinturão verde que circunda a cidade e é composto pelas chácaras que deveriam servir para a produção de hortigranjeiros.
83
Curso de Urbanismo ministrado por Anhaia Melo em 1957 na Escola Politécnica da
USP, em que define os escalões que constituem a cidade orgânica (polinucleada).
A ideia de uma cidade formada por um centro principal e várias Unidades de
Vizinhança parecem dialogar claramente com o projeto elaborado para Brasília e
suas cidades-satélites, dentre elas Sobradinho, por exemplo. Nessa discussão,
Melo afirma serem elementos formadores de uma cidade orgânica:
1) Super-quadras – em vez das ultrapassadas quadras de 100 por 100m, indiferenciadas, fazem-se super-quadras até de 600 por 350m, de aproximadamente 20 hectares, que permitem a convivência pacífica com o automóvel; 2) a unidade de vizinhança, criando a comunidade, a organicidade dos grupos; 3) a cidade jardim – a limitação da cidade por uma faixa verde, de modo que ela possa crescer, como um organismo vivo, até aquele ponto funcional e orgânico que não deve ser ultrapassado. A faixa verde servirá também para possibilitar a definição exata de o que é ambiente urbano e o que é ambiente rural. (MELO, 1961, p. 73)
O que pensar das aproximações dessa concepção de cidade
apresentada por Melo (idem) com o plano piloto de Brasília e a forma como
Sobradinho é constituída? Parece-nos que, mesmo contrariando a historiografia
sobre Brasília que afirma ser o Plano Piloto proposto por Costa algo totalmente
inovador e fruto de um racionalismo exacerbado e um projeto de modernidade
influenciado diretamente pelo urbanismo francês, mais precisamente pela proposta
apresentada por Le Corbusier, torna-se bastante propositivo pensar numa
discussão mais ampla em torno do urbanismo e de um certo racionalismo que
norteava as propostas de intervenção urbana no início do século XX, não só na
França. A reflexão proposta por Matheus Gorovitz (2009), por exemplo, retoma o
debate entre os urbanistas e as diferentes propostas pensadas para as Unidades
de Vizinhança (UV) e o papel das superquadras (SQ) nelas. Gorovitz (2009, p. 30)
apresenta o debate em torno das concepções de UVs e SQs propostas e nos chama
a atenção para que, no caso de Brasília e, portanto, da proposta apresentada por
Lúcio Costa, “a questão da Unidade de Vizinhança é o compromisso entre a
indispensável estrutura de abastecimento, que necessariamente segrega os setores
vitais entre si, e a comunicação, teoricamente possível, entre todas as pessoas.” No
84
entanto, entendemos que a cidade não se constitui apenas pelo traçado de suas
ruas, pelos planos pilotos ou planos diretores que normatizam o seu espaço físico;
a cidade é também texto, apropriação, narrativa de todos os que nela habitam.
O urbano passa a “ganhar corpo” nesses discursos, a partir dessas
trajetórias. A nós, historiadores, fica o desafio de refletir sobre o nosso próprio lugar
de atuação enquanto produtores de conhecimento histórico. O entendimento de que
o passado é uma construção histórica implica o deparar-se com um leque infinito de
possibilidades de abordagens que nos permite pensar, como proposto por Hartog:
“o que é que estou fazendo quando faço história?”. Em um diálogo claro com o
filósofo Michel de Certeau, Hartog nos indica caminhos outros para a discussão e o
entendimento do saber histórico enquanto construção, enquanto operação. Deve-
se, portanto, “admitir que ela [a história] faz parte da ‘realidade’ da qual trata, e que
essa realidade pode ser apropriada ‘enquanto atividade humana’, enquanto prática”.
(CERTEAU, 2008, p. 66) Toda interpretação histórica depende de um sistema de
referências – o que aproxima bastante sua reflexão à de Duby, quando afirma que
as escolhas do historiador e a forma como escreve a história, dependem do lugar
em que está mergulhado o historiador.98 Não é diferente quando pensamos na
elaboração narrativa dos habitantes de uma cidade quando são incitados a falar
sobre sua trajetória e sobre a história desse espaço.
Ler a cidade a partir da narrativa de seus moradores pressupõe ter em
mente que “a narração é uma forma artesanal de comunicação. Ela não visa
transmitir o ‘em si’ do acontecido, ela o tece até atingir uma forma boa. Investe sobre
98 “A história só existe através do discurso. Para que seja boa, é preciso que o discurso seja bom. Logo, a forma, a meu ver é essencial. (...) Escrever de uma certa maneira não é apenas um meio de convencer, um meio de agarrar, de atrair, de cativar. É também, e sobretudo, um meio de implantar, através de artifícios literários, essas fissuras, essas descontinuidades fascinantes que levam o leitor a sonhar, do mesmo modo que o historiador sonha, por seu lado”. (DUBY, 1989, p. 46) Pensar a relação entre o discurso e a produção do conhecimento histórico apresenta-se como ponto central neste trabalho. Fundamental sim atentar para a forma de elaboração do discurso, pois como nos ensina Marc Bloch, “não há menos beleza numa equação exata do que numa frase correta” (BLOCH, 2001, p. 15). É tarefa do historiador, ter certa “finesse de linguagem” para bem traduzir, para bem penetrar os fenômenos humanos. Assim como outras narrativas, a histórica deve obedecer a regras de elaboração, não podendo deixar livre os devaneios do historiador, “a consciência, a solidez dos pontos a que o nosso sonho se agarra, e o rigor, o controle a que o submetemos, em suma, a crítica histórica, é isso que constitui o valor do nosso ofício.”. (DUBY, 1989, p. 48) Estas são discussões que nos remetem ao questionamento do próprio lugar ocupado pelo historiador ao definir um objeto de estudo, um arcabouço teórico, e os procedimentos de análise de suas fontes.
85
o objeto e o transforma” (BOSI, 1994, p. 88). Muito antes de Sobradinho ganhar
ares de urbanidade, quando ainda as ruas eram de terra batida, as casas de
madeira, os conjuntos e as quadras ainda por se constituir, chega a esta cidade um
maranhense que, em busca de trabalho, se instala na região de Sobradinho. Falo
de Teodoro Freire99, “o homem do bumba”, personagem hoje reconhecido como
símbolo da cultura em Sobradinho. Em sua fala, seu Teodoro deixa claro que a
mudança para Brasília aconteceu quase por acaso:
Ai um dia doutor Rodrigo (?) me chamou na casa dele, que era um deputado, ai disse “olha você tem vontade de voltar pro Maranhão?”, “Seu (???), eu tenho, se eu tivesse um emprego lá, eu voltava”. Ele disse “eu to comprando uma usina lá em Cururupu, se tu quiser ir...”, eu disse “se o senhor quiser me levar eu quero.”, ele disse “então eu te arrumo, lá, pra gente ir. Tu vai pra Brasília, ficar uns dias em Brasília, pra depois a gente ir pra lá”. Eu disse “sim senhor”. Ai nós recebemos um convite daquele escritor do Maranhão, Ferreira Goulart pra trazer o Boi pra brincar aqui no primeiro aniversário de Brasília. Ai nós... viemos... Porque eu vim trazer o boi pra brincar no primeiro aniversário de Brasília, no dia 20 de abril de 1961. Nós brincamos lá na rodoviária no lado que dá pra torre de televisão. (FREIRE, 2009)
Brincar o bumba100 foi o que fez com que Seu Teodoro se mudasse para
Brasília. Acompanhado de D. Maria José ele se aventurou a viver num lugar que ela
reconstrói assim:
menina, aqui era uma roça. Contava a dedo as casas de alvenaria que tinha aqui. Era, tinha as rua, além do mais as rua era tudo pissarrada não tinha nada de asfalto não...era assim aquela brita, aquele negocinho na rua assim, socadinha, as ruas certinha como é hoje ainda, depois muitos anos que eles fizeram o trabalho, botaram, não tinha água, não tinha luz. Depois é que eles fizeram a urbanização. Que ai veio a luz, veio água... veio água, veio luz, veio asfalto. A nossa água era uma torneirinha lá no fundo do quintal, desse tamanhozinho assim. E dali eu pegava água, enchia o tambor pra poder lavar roupa. (FREIREa, 2009)
99 Teodoro Freire nasceu em 09 de novembro de 1920 no Maranhão, veio pra Brasília em 1961, e faleceu no dia 15 de janeiro de 2012. 100 "Brincar o boi" significa participar da festa do Bumba meu boi - festejo típico do Maranhão que congrega o sagrado e o profano, quando todos são convidados a participar e a brincar com as representações das relações consideradas como típicas do Brasil colonial.
86
Falas como essas nos remetem ao uso da narrativa oral como
possibilidade de conhecer as tessituras que compõem a trajetória de vida desses
indivíduos e, ainda, a consolidação de uma cidade, ou de uma ideia de
experimentação do urbano e que são recorrentes entre diferentes personagens,
quando incitados a lembrar e a reconstituir suas experiências e a relação com esse
espaço: "Nossa, Sobradinho não tinha quase nada, nada, nada. Muito terreno vazio,
muito, muito barraco, né?", relembra Rufini (RUFINI, 2009); fala repetida também
por Oliveira - "Sobradinho não tinha nada (...) ainda era barraco de madeira na
época" (OLIVEIRA, 2009); e ainda Feitosa expõe sua memória de um começo sobre
uma área vazia "... não tinha construído ainda, estava começando. Era um
povoadozinho." (FEITOSA, 2009). As falas são recorrentes ao mencionar a
precariedade da cidade no final dos anos 60 e na década de 70 do século XX.
Abastecimento de água precário, ruas de terra batida, construções provisórias,
barracos de madeira, ausência de energia elétrica e iluminação pública, são
equipamentos de infraestrutura ausentes, de construções de boa qualidade, porém
por eles considerados como imprescindíveis para a consolidação de uma cidade.
Sobradinho, no momento em que chegaram, parecia não prover seus moradores
desses serviços, nem de moradias adequadas.
Mesmo percebendo algumas coincidências nas falas dos meus
colaboradores, suas trajetórias são únicas e nos permitem conhecer um pouco de
como interpretam e constroem o espaço que os circunda de uma forma bastante
particular. A proposta desta pesquisa sempre foi a de conhecer a cidade de
Sobradinho a partir da memória de alguns de seus moradores, de problematiza-la
enquanto possibilidade documental para a escrita da história, de uma certa história
construída a partir dos depoimentos dos próprios moradores.
Considerar a memória como matéria para a história significa, ainda, ampliar o campo de possibilidade de sua construção, pois a memória evidencia a multiplicidade de sujeitos e grupos sociais que atribuem e constroem significados de tempos, lugares, espaços, logo, a multiplicidade das identidades sociais existentes. (SINOTI, 2005, p. 44)
87
Andar pela cidade, perceber o traçado de suas ruas, estudar os estilos
arquitetônicos de seus prédios ou o seu centro histórico, nos abre a possibilidade
de ver e viver a cidade em perspectivas plurais, mas que deixam ainda obscuras
tantas outras possibilidades de leitura do espaço citadino. Sinoti (2005) afirma que
a relação que o historiador estabelece ao estudar uma cidade é bem distinta
daquela vivenciada por arquitetos e urbanistas. Para estes, a cidade tem volume,
cor e forma, ou seja, "orienta-se por certos parâmetros técnico-legais: memorial
descritivo, planta urbanística, lei de uso e ocupação do solo, plano diretor local(...)",
e determina a esses profissionais o que é e o que não é possível estudar, pensar,
planejar sobre o espaço citadino.
Ao historiador parece haver outras possibilidades de inserção na cidade,
como, por exemplo, entendê-la como um espaço que ganha contornos e formas ao
sabor das falas de pessoas que nela vivem. São suas memórias, suas trajetórias e
as tantas experiências vividas na cidade que produzem as formas características
deste espaço e as leituras que nos são possíveis fazer. A cidade torna-se plástica,
moldável, maleável às falas de seus tantos habitantes, visitantes, urbanistas,
cronistas, enfim, de todos aqueles que com ela vivem ou viveram algum tipo de
relação, seja de identificação ou de estranhamento. Ou seja, não há uma cidade a
ser revelada, uma realidade a ser reconstituída, mas discursos, perspectivas, uma
pluralidade de projetos que constituem esse mesmo espaço.
Pensar essas narrativas ditas e escritas em diversos momentos da vida
dos habitantes de uma cidade consiste em um desafio instigante ao pesquisador do
urbano. A todo instante nos deparamos com a defesa de alguns historiadores de
que a nossa narrativa deve ser marcada pela objetividade e pelo caráter de
cientificidade que, supostamente, lhe é inerente. Parece-me bastante propositivo
pensar na construção da história a partir dessa mescla entre os “desejos” do
historiador e seu compromisso com aquilo que suas fontes lhe permitem dizer.
Reconhecer a impossibilidade de atingir uma verdade “absoluta” é reconhecer a
pluralidade da própria história, mesmo sem perder de vista que essa pluralidade
dependerá dos vestígios, dos indícios que elegemos como significativos para tal
pesquisa.
88
O que pensar, portanto, da relação entre objetividade e subjetividade
para aqueles historiadores que se dedicam a produzir história a partir de narrativas
memorialísticas? Como lidar com os limites latentes a esse tipo de narrativa? A
história oral, a relação entre história e memória, parece lançar ao historiador outros
desafios: de início, o de romper com a ideia primeira da história oral de servir como
instrumento para suprir as lacunas da documentação escrita101; em segundo lugar,
romper com a defesa de que à história oral, caberia a tarefa de “dar voz aos
excluídos”, de ser um discurso militante em defesa de uma ideologia, ou de tirar do
esquecimento aquilo que a história oficial sufocara102. Para Ferreira (1994), a
história oral nos coloca a possibilidade de conhecer os tortuosos meandros dos
processos decisórios – que a documentação escrita não deixa transparecer.
Monique Augras (1997) defende que a subjetividade, tantas vezes
entendida como um ponto negativo, como fonte de esquecimento, de mentira, ou
de fantasia, pode ser encarada como ganho, como parte do processo de
rememoração. Parafraseando Henry Rousso, a qual chama atenção ao fato de que,
no processo mesmo de construção da fonte oral, várias são as subjetividades que
estão em jogo: a de quem dá o depoimento, a de quem o interpreta e ainda, a de
quem pergunta e registra. São pelo menos três subjetividades em três momentos
que se relacionam na produção da fonte oral e de sua análise quando da elaboração
da narrativa histórica. Além do desafio de lidar com essas subjetividades, não
podemos esquecer que nenhum depoimento é rigorosamente fiel aos
acontecimentos. Augras(idem) chama atenção ao fato de que “a partir do momento
em que a pessoa foi convidada a dar o seu depoimento, ela repensa o assunto e,
aos poucos, vai elaborando o seu discurso” (AUGRAS, 1997, p. 28). Ou seja, todo
101 Uma postura marcada pela ação de jornalistas norte-americanos que, na década de 1950 privilegiaram o uso de depoimentos como fontes de pesquisa para contar a história das elites – o testemunho era uma prova, a comprovação de um fato. Ver: FERREIRA, Marieta de Moraes, AMADO, Janaína (Org.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996.
102 É na década de 1970 que a história oral ganha os contornos de uma história militante preocupada com a criação de identidades de grupo buscando a transformação social. Apenas no final dos anos 70 as fontes orais começam a ser utilizadas nas pesquisas históricas, e passou-se a incorporar temas contemporâneos e a valorizar as experiências individuais. Este processo mostra ter havido um deslocamento do interesse nas estruturas para o interesse nas redes, no papel do sujeito na história. FERREIRA, Marieta de Moraes, AMADO, Janaína (Org.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996.
89
relato é fruto de um processo de elaboração de si, de construção de uma imagem
que se quer preservar sobre si mesmo e sobre a sua atuação em determinado
evento histórico. As confusões, as “mentiras”, as omissões evidenciam o jogo das
tensões e constroem um discurso que, em sua incoerência, é o retrato de uma
realidade que se quer construir, de uma imagem de si. Como afirma Robert Frank,
“ce sont précisément ces imperfections et ces défaillances que légitiment la
transformation de la mémoire em objet d’histoire” (FRANK, 1992). Assim, a narrativa
do nosso interlocutor é ao mesmo tempo produto e produtora de redes, e o nosso
objetivo é compreender um sentido, um aspecto desta rede de tensões e
representações que irá, certamente, influenciar no discurso proferido. A
rememoração “toma lugar entre os processos de negociação e renegociação da
própria imagem. Oferece uma oportunidade para dar forma à memória pessoal”
(AUGRAS, 1997, p. 30). O testemunho não nos fornece dados sobre o indivíduo,
mas um discurso que ele elabora sobre si e sobre sua experiência, um discurso
marcado pela complexidade e pela fluidez da construção de identidades e de
sociabilidades.
Aos nossos interlocutores devemos uma atitude de respeito, expressa na
necessidade de inserir cada um no seu lugar de autor, levando em consideração o
seu arcabouço conceitual, o que informa e institui as suas interpretações acerca do
mundo. Estaríamos, assim, diante de “um quadro vivo resultante da recusa em bani-
los de antemão ou de cristalizá-los como paradigmas; uma atitude respeitosa em
relação às posições assumidas, ainda quando delas discordamos.”. (BRESCIANI,
2009, p. 183) Assim, essa postura respeitosa deve ser estendida tanto aos autores
com que dialogamos, quanto, e talvez sobretudo, aos nossos colaboradores, que
se dispuseram a narrar suas experiências e a construir imagens sobre a cidade em
que habitam.
Sobradinho, portanto, vai se delineando nesta pesquisa a partir dos
interlocutores que, a meu ver, dão a essa cidade as marcas de suas próprias
trajetórias, suas falas são como os sulcos que marcam a cidade e se apropriam
dela. Ao me debruçar sobre a documentação de Sobradinho, uma figura se
destacou como símbolo de sua cultura – o senhor Teodoro Freire. Falas como
90
“mestre da cultura popular e o principal idealizador do Bumba-meu-boi no Distrito
Federal...” (Correio Brasiliense, 15 de janeiro de 2012); “ o certo é que a história do
Bumba-meu-boi, termina por se confundir com a vida de mestre Teodoro Freire...”
(Revista João de Barro, maio de 1999); parecem marcar o lugar de destaque deste
senhor que criou o Centro de Tradições Populares em Sobradinho, que era um
espaço de divulgação da tradição do Bumba-meu-boi naquela cidade satélite.
Pensar a relação entre memória e história é deparar-se com uma
complexidade de entendimentos e de procedimentos que norteiam o trabalho do
historiador para quem, assim como Proust, pensa que a
vida é vagabunda, nossa memória é sedentária, ou seja, à descontinuidade das experiências ao longo do tempo, a memória, igualmente descontínua, revela a possibilidade de algo único. A memória, portanto, constrói o real, muito mais do que o resgata (SEIXAS, 2001, p. 39)
É, portanto, entender a memória como presentificação do passado,
(re)elaboração, (re)construção de uma experiência vivida. A memória não traz de
volta o vivido, mas constrói uma elaboração, uma digressão sobre ele. O falar, o
narrar – embora impossibilitado pela vida moderna, como afirma Benjamin –
constrói uma unicidade e uma lógica cadencial para os acontecimentos que não
existia no momento em que a experiência se deu. Esse “algo único” de que nos fala
Jacy Seixas (2001), é essa possibilidade que a memória tem de permitir uma
organização de fatos descontínuos, uma ordenação mesma da vida em torno de
expectativas e de questões presentes: é o dar forma à memória pessoal,
mencionado por Monique Augras.
O rememorar é, então, entendido como um ato político e intencional de
formulação de uma imagem sobre o passado e sobre a experiência vivida, seja ela
entendida na individualidade ou mesmo na coletividade. Um ato que não prescinde
da marca do seu narrador, do seu enunciador. A narrativa traz em si “impressas as
marcas do narrador como os vestígios das mãos do oleiro no vaso da argila.”
(BENJAMIN, 1989, p. 107) Essa impressão remete, inclusive, a uma noção de
tempo que varia de acordo com a situação vivenciada. Para Bergson (1999), a
91
mesma durée pode ser vivenciada de formas distintas – pode parecer interminável
se vazia de significado, ou ainda, parecer um momento fugaz se plena de
intensidade psicológica. (BENJAMIN, 1989)
Aqueles que são incitados a lembrar, dão à sua memória contornos
próprios dessa vivência, uma vez que “lembrar não é reviver, mas re-fazer. É
reflexão, compreensão do agora a partir do outrora; é sentimento, reaparição do
feito e do ido, não sua mera repetição”. (BOSI, 1994, p. 20) Para Halbwachs, por
exemplo, não há a possibilidade de se lembrar de um evento tal como ele ocorreu,
pois a depender dos quadros sociais presentes a que está ligado o indivíduo ou o
grupo, a memória se desestrutura, ou seja, o presente interfere, ou mesmo direciona
o olhar que é lançado ao passado. Pensar na estreita relação entre passado e
presente quando se fala de memória é pensar também em como se constitui a sua
dimensão temporal. Passado e presente estabelecem uma relação de reciprocidade
na medida em que constituem partes integrantes do processo do rememorar. Aquilo
que Bergson (1999) chama de presentificação da durée seria o processo de
apropriação mesmo das lembranças e transformação dessa experiência em
memória voluntária. Por mais coesão que se tente dar a rememoração de um fato,
esse processo implicará sempre em imperfeições, em lacunas que são inerentes a
qualquer tipo de narratividade.
Este caráter lacunar e imperfeito da memória é, para Todorov (2000),
inerente a ela. Não há oposição entre memória e esquecimento – eles são partes
de um mesmo processo. A memória, portanto, é sempre e necessariamente a
constante interação entre a supressão (o esquecimento) e a conservação (a
lembrança) e
como la memoria es uma selección, há sido preciso escoger entre todas las informaciones recibidas, em nombre de ciertos critérios, hayan sido o no conscientes, servirán también, con toda probabilidad, para orientar la utilización que haremos del pasado. (TODOROV, 2000, p. 17)
O que nos leva de volta à discussão dos limites que são impostos ao
historiador no exercício de historiar; dentre eles, a impossibilidade de resgatar o
92
passado. A nós o desafio consiste em construir o passado regido pela memória
(fluida e lacunar) e pelos indícios desse mesmo passado.
No dia que fui conhecer o seu Teodoro, tinha agendando com Guará
(filho) a entrevista com ele. Ao chegar à residência de seu Teodoro, fui recebida por
D. Maria José. Ela me informou que seu Teodoro havia saído para resolver alguns
problemas e que não demoraria. Enquanto aguardava a chegada dele, ela sentou-
se ao meu lado e começou a relatar espontaneamente sua própria trajetória de vida,
atrelada à trajetória do marido e da vida em Sobradinho. Solicitei autorização dela
para que pudesse gravar sua fala, por se mostrar importante para conhecer parte
significativa da história de Sobradinho. Ela prontamente aceitou, e deu início a uma
narrativa marcada pelo orgulho das escolhas do marido e da vida que construíram
juntos desde a chegada à Brasília. Uma vida marcada por vitórias, mas também por
inúmeros percalços.
Como pesquisadora, fiquei maravilhada com aquela possibilidade.
Cheguei com a expectativa de entrevistar “o homem que trouxe o bumba pra brincar
em Brasília” e se tornou símbolo da cultura sobradinhense, e acabei obtendo um
depoimento riquíssimo de sua esposa. Acaso? Sorte? A meu ver, muito mais a
fluidez e a plasticidade do trabalho com a história oral. Nesse sentido, o sentimento
de que o trabalho com narrativas, com a memória, é fundamentalmente dinâmico
ganhou maior significado. Ao historiador oral, como nos ensina Donald Ritchie
(1945), cabe a tarefa de estar atento e aberto às oportunidades que se apresentam,
uma vez que
os testemunhos são fontes ricas demais para serem ignoradas pelos historiadores. Entrevistadores devem estar conscientes das peculiaridades da memória, ser peritos nos métodos de utilização deles, conscientes de suas limitações e abertos aos seus tesouros.103
103 No original: “The memories of direct participants are sources far too rich for historical researches to ignore. Interviewers must be aware of the peculiarities of memory, adept in their methods of dealing with it, conscious of its limitations, and open to its treasures.” RITCHIE, Donald A. Doing oral history. New York: Twayne Publishers, 1945, p. 14.
93
É dessa plasticidade, pluralidade, imperfeição, reconstrução de
experiências que nasce a necessidade de trazer à tona trajetórias plurais e opções
de vida que se confundem com a consolidação de Sobradinho. Seu Teodoro Freire
nasceu no dia 09 de novembro de 1920, em São Luís, Maranhão. Viajou para o Rio
de Janeiro em 1953 em busca de trabalho, quando recebe a proposta de passar
alguns dias em Brasília antes de realizar seu sonho de voltar ao Maranhão. No
entanto, seu projeto sucumbe quando “doutor Rodrigo” não adquire a usina e não
consegue levar Teodoro e D. Maria José de volta às terras maranhenses. Assim,
Teodoro consegue emprego na SAB – Sociedade de Abastecimento de Brasília, e
se instala em Sobradinho. Ele diz: “eu cheguei aqui pra morar no dia 02 de maio de
62. Não tinha luz, não tinha nada, era tudo escuro sem asfalto, era na terra... ai eu
fiquei... vi Sobradinho crescer.” (FREIRE, 2009)
Esta relação marcada, em seu nascedouro, pelo acaso, acaba
contribuindo para o fortalecimento dos laços com a cidade que os acolheu. Quando
indagado sobre o sentimento que nutre por Sobradinho afirma
Eu gosto muito de Sobradinho. Eu tive oportunidade de morar no Plano Piloto mas eu não quis. Não, não, não quero morar no Plano Piloto. Eu não quero morar em nenhuma outra cidade sem ser Sobradinho. Eu gosto muito de Ceilândia, eu gosto muito do Gama, mas pra morar não. Pra morar não. (FREIRE, 2009)
Um sentimento compartilhado por D. Maria José que quando se refere à
Sobradinho diz:
olha, eu vou nesses lugar tudinho por ai, mas eu não acho graça. Eu só acho bacana Sobradinho. Não sei porque. Ainda fiquei assim um pouquinho simpática com Taguatinga, mas depois falei, não, um negócio que parece que não tem entrada nem saída, Sobradinho é todo...arrumadinho. (FREIREa, 2009) [sic.]
Viver em Sobradinho é mais do que simplesmente experimentar uma
cidade. Portelli (1967) afirma que “se considerarmos a memória um processo, e não
um depósito de dados, poderemos constatar que, à semelhança da linguagem, a
memória é social, tornando-se concreta apenas quando mentalizada ou verbalizada
pelas pessoas” (PORTELLI, 1997, p. 16). Portanto, a história de uma cidade não
94
deve prescindir das falas daqueles que a constituem e são constituídos na relação
com ela. Hoje, o lembrar, acaba por recrudescer a ideia de que a trajetória dos
indivíduos se confunde com a consolidação da cidade. Suas ruas, suas quadras,
suas manifestações culturais estão impregnadas dessas trajetórias que fincam nós,
lugares de significado, marcam a história da cidade, ou melhor, a constroem.
O uso da memória como instrumento de elaboração do conhecimento
histórico pressupõe mais do que conceder ao outro (ao colaborador) o direito à
lembrança; é mais do que isso, Todorov (2000) lança o desafio de conceder ao
nosso interlocutor, o direito ao esquecimento. O processo de elaboração de uma
imagem de si no presente, implica que “para comenzar a hablar, hay que poner o
pasado entre parêntesis” (TODOROV, 2000, p. 27), ou seja, repensar ações,
vivências, decisões e dar a elas os contornos que o momento presente lhe exige,
ou lhe permite fazer. Até mesmo considerar a impossibilidade de fazê-lo, o direito
de manter no esquecimento fatos, imagens que não queremos mais relacionar à
nossa vida. Essa complexa dinâmica, própria da memória, se amplia quando o ser
é instigado a lembrar e o indivíduo se vê diante de um processo que vai conceder
ao outro (geralmente um desconhecido) as interpretações sobre sua própria
experiência. Como afirma TODOROV (idem),
para el individuo, la experiencia es forzosamente singular, y, además, la más intensa de todas. Hay cierta arrogancia de la razón, insoportable para el individuo al verse desposeído, en nombre de consideraciones que le son ajenas, de su experiencia y del sentido que le atribuía. (2000, p. 35)
Abrir mão do lugar de construtor de si não é processo fácil, portanto,
implica ao depoente a construção de uma imagem bem consolidada de si e que não
deixe muita margem a interpretações “errôneas” sobre ele ou sua atuação num
determinado momento do passado.
Gosto, particularmente, da ideia dessa complexidade104 de que fala
Todorov e que nos instiga a pensar os meandros da relação que se constrói entre
104 Ver também: YATES (2007); RICOEUR (2007); SEIXAS (2001); NORA (1993); LE GOFF (2003); BERGSON (1999); HALBWACHS (1990); BOSI (1994).
95
a memória e a história. A história se coloca fora dos grupos que viveram aqueles
acontecimentos e cria ligações artificiais entre eles. Há uma multiplicidade de
tempos tantos quantos são os grupos que compõem a sociedade. Mas nenhuma
dessas consciências coletivas de tempo se impõe aos outros grupos. Ou seja, não
há como falar em uma memória universal, como pretende a história, pois, como
afirma Benjamin (1994)
um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois.” (GAGNEBIN, 1994, p. 15)
O trabalho com a memória e com a história oral implica considerar, além
das subjetividades, as inúmeras temporalidades que as compõem: da experiência
vivida, da experiência rememorada, do presente em que rememora, e do presente
do historiador quando se dedica a estudar essa rememoração.
Essas reflexões sobre tempo e memória nos levam de volta à cidade,
objeto deste trabalho e à sua extensão, Sobradinho. Brasília foi edificada
historicamente como marco divisor de águas na história do Brasil, uma cidade
construída para “fazer a diferença”. As discussões em torno da interiorização,
definida pela documentação como o “magno problema”, conferem à Brasília uma
historicidade e um significado que extrapolam, ou melhor, exacerbam as
expectativas em torno de sua edificação. Expectativas essas criadas a partir dos
valores que são atribuídos à cidade e a seus monumentos por aqueles que vivem a
cidade e a constituem. Motivados por um imaginário de possibilidades, muitos
brasileiros migraram para Brasília em busca de melhores condições de vida, em
busca de oportunidades. Muitos migram e vão viver nas cidades satélites de
Brasília, como Sobradinho, por exemplo.
Nas narrativas – depoimentos os contornos de Sobradinho se esboçam,
ganham forma, tornam-se complexos, se entrecruzam, se afastam, compõem uma
96
imagem por vezes contraditória. A sequência de depoimentos começa por
APARECIDA105 em sua trajetória não programada.
Meu nome é Maria Aparecida Rossato Rufini, nasci em 17 de
dezembro de 1951, em Gavião Peixoto, no estado de São Paulo, na
região de Araraquara. Lá eu vivi 23 anos e meio. Eu tinha dois
empregos, sempre trabalhei desde criança. Aos 15 anos eu já tinha
carteira de trabalho assinada. Financeiramente, pra quem morava
numa cidade do interior paulista, numa cidade assim muito boazinha
com toda a infraestrutura, eu estava muito bem. Mas, meu
namorado, que hoje é meu marido, formou-se, prestou um concurso
para professor aqui na Secretaria de Educação (de Brasília) e
passou. Eu nem pensei que ia abandonar dois empregos e vir para
uma cidade que estava começando e que eu não conhecia. Que
aqui não tinha ninguém conhecidos... que minha vida ia mudar
totalmente. Eu não pensei que eu vinha pra começar do zero. Eu
tinha um amor, uma paixão, esse lado assim, aí vim, casamos. Na
ocasião ele trabalhava em Campo Grande (Mato Grosso), primeiro
nós fomos pra lá, mas ficamos apenas três meses e ele foi
chamado. Viemos pra Brasília. Ou melhor pra Sobradinho,
exatamente pra Sobradinho. Ele foi lotado aqui no Centro 03106, e
vim, muito empolgada, apaixonada.
Nós chegamos em outubro de 1975, chovia nessa terra, mas chovia
e eu fui morar na quadra 02 naquelas baixadonas assim [forma
como se refere às casas construídas nos conjuntos de terrenos mais
baixos na quadra] e não tinha infraestrutura não. Não tinha serviço
de águas fluviais, a água da chuva descia a rua em enxurrada,
parecia que ia derrubar a casa de tanta água que descia. E que
saudades do meu povo. Porque eu cortei todas as minhas raízes,
eu nunca tinha saído daquela cidadezinha. Tinha uma vida
estabilizada, conhecia todo mundo na cidade. Quando eu cheguei
aqui, aí caiu a ficha de que eu tinha abandonado tudo. Nós
morávamos num aumento que a senhora tinha feito na casa dela.
Eram três cômodos. Uma cachorrada no quintal que latia o dia
inteirinho, inteirinho. Em 1978 estavam construindo os primeiros
apartamentos na quadra 04 e nós compramos um na planta. Em
1979 nós mudamos para o primeiro bloco que apareceu aqui nessa
105 Maria Aparecida Rossato Rufini. 106 Centro de Ensino Fundamental 03 - Quadra 06 em Sobradinho - DF.
97
região da quadra 04, bloco I. Em 1983, compramos essa casa107 e
não temos intenção de mudar.
Até então, eu não trabalhava fora e não conseguia fazer amizades.
Comecei a conhecer os amigos do Rufino (marido), um grupo
grande de professores vindos de São Paulo caíram todos aqui em
Sobradinho. Então, eles iam pra minha casa, porque todos eram
solteiros ainda. Eles vinham a nossa casa, tomar uma cervejinha,
conversar, depois vieram as namoradas e nosso círculo de
amizades começou a se consolidar. Sobradinho não tinha quase
nada. Muito terreno vazio, muito, muito barraco. Essa igreja que tem
aqui na quadra 04 (Paróquia Bom Jesus dos Migrantes) era um
barraquinho de madeira bem pequenininho. O comércio em
Sobradinho era pequenino, poucas lojinhas na quadra 08108,
chamada de feirinha.
Figura 16 – Planta da Quadra 08 – Sobradinho DF’
107 Aparecida reside com o marido, Rufino, e a filha Beatriz no conjunto E da quadra 06 em Sobradinho. A casa fica no mesmo quarteirão do Centro de Ensino 03 (onde o marido trabalhava) e bem próximo ao Centro Educacional 01 (onde o marido trabalhou até se aposentar). 108 A quadra 08 possui uma área destinada apenas ao comércio. Na cidade, há dois espaços específicos para o comércio, a quadra 08 e a quadra Central. Essas são áreas maiores, pois entre as quadras há uma área destinada ao Comércio Local. (Ver figura 03).
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Em 1977 fiz concurso e fui chamada pra trabalhar na Fundação
Educacional como professora, pois nessa época tinha muitos
concursos em Brasília. Eu descia para o Plano109 de manhã fazia
prova e depois do almoço ficava para fazer prova para outro
concurso. Assim, um ano depois fui chamada e comecei a trabalhar
no Banco do Brasil. Fui trabalhar no atendimento, então conheci
Sobradinho inteiro, e ai minha vida foi ficando mais gostosa. Eu
sempre trabalhei e morei em Sobradinho, nunca no Plano. As
nossas amizades foram se formando e se fortalecendo a partir das
relações que tínhamos aqui mesmo em Sobradinho. As pessoas
que compunham nosso círculo de amizades eram pessoas que
estavam acabando de chegar também, muitos não tinham família e
isso ajudou na criação de vínculos fortes de amizade - chegando a
trocar os filhos entre os amigos.110
Tenho saudades das pessoas com quem convivi em minha cidade
natal, mas não voltaria a morar por lá. Eu tenho mais tempo de
Brasília, de Sobradinho do que de lá. Aqui foi onde eu aprendi muita
coisa e passei muitos apuros também. Era muita novidade. Brasília
era uma coisa muito grande, a Asa Norte praticamente não existia.
Eu vi a Asa Norte quase todinha nascer. Era quase um
matagalzinho assim, como esse começo que liga a Ponte do
Bragueto - não tinha esses apartamentos, nada, nada. A gente ia
muito a Brasília, tudo o que você ia fazer - inscrição para concurso,
prestar concurso, consulta médica, supermercado - tudo a gente
tinha que ir a Brasília. Aqui em Sobradinho só havia aqueles
mercadinhos pequenininhos. Nos finais de semana, quando eu não
estava fazendo concurso, estávamos passeando para conhecer
todos os lugares da cidade. No começo me empolguei muito, achei
tudo muito maravilhoso, depois a gente começa a ver os defeitos,
né? a comparar. O que era mais difícil era o contato humano. Hoje
eu não preciso de nada de Brasília, tudo dá pra resolver em
Sobradinho. Hoje eu me sinto uma cidadã sobradinhense.
Quando nós chegamos aqui diziam que Sobradinho era uma cidade
dormitório, que as pessoas só vinham pra cá pra dormir -
trabalhavam fora e voltavam apenas a noite para casa. Era uma
cidade muito tranquila, a maioria das pessoas se conhecia.
Sobradinho mudou muito, já não é mais tão tranquilo quanto era.
Mas esse não é um problema só de Sobradinho, porque todas as
cidades satélites cresceram e foram adquirindo os problemas que
toda cidade grande tem.
109 Para mencionar a ida à Brasília, os moradores de Sobradinho usam a expressão "descer para o plano". 110 Usa essa expressão "trocar os filhos" para referir-se às relações de compadrio que se formaram na cidade. Menciona o fato de ter 06 compadres e comadres em Sobradinho.
99
A trajetória de Aparecida aproxima-se bastante da vivida por D. Isaura111,
pois as duas vieram de cidades pequenas e interioranas. No entanto, Aparecida
mudou-se para Brasília para acompanhar o marido e construir uma vida, já adulta,
na cidade. Isaura é mineira e veio pra Brasília acompanhando os pais. Nenhuma
das duas mudou-se para a cidade motivadas por um sonho de melhores condições
de vida, mas suas trajetórias se cruzam na medida em que elas constroem em
Sobradinho uma relação de identificação com a cidade e não concebem mais viver
em outro lugar.
Isaura Borges de Oliveira Alencar, nascida em 11 de agosto de 1950 na
cidade de Pirapora, Minas Gerais, na beira do São Francisco, constrói assim a sua
trajetória em Brasília, mais especificamente em Sobradinho:
Nós viemos de Pirapora em 1959, já no final, tipo em novembro,
dezembro... Porque em 1960 a gente já estava morando aqui. Já
assistimos a inauguração de Brasília aqui. Eu já tinha o que? 9 anos
nessa época. E a gente morava aqui na Vila Amauri, que era vizinha
da Vila Planalto, né? que hoje é onde está o lago de Brasília, né?
Ai, meu pai veio antes para trabalhar, nós viemos depois, minha
mãe e os outros irmãos... Meu pai era fotógrafo. Esses fotógrafos
igual que tem, que chama lambe-lambe?112
A água que a gente tinha lá era água de cacimba, né? Tinha umas
cacimbas lá, tinha que manejar aquilo ali... ai minha mãe no
restaurante, meu pai com o cinefoto do lado. A gente morou lá muito
tempo... quatro meses que eu tava morando aqui em Brasília eu tive
que voltar para Minas Gerais porque ainda não tinha escola aqui.
Acho que eu fiquei uns 6 meses na casa da minha tia em Pirapora,
quando eu voltei, minha mãe já estava morando... o lago já tinha
chegado, né? as águas já tinham chegado e o povo que morava ali
na vila Amauri já tinha mudado. Uns tinham ido pra Taguatinga,
outros pro Gama e outros pra... e qual era mais, eu não lembro qual
era mais... e Sobradinho. O meu pai tinha um lote aqui em
111 Isaura Borges de Oliveira Alencar. 112 O papel da imprensa – formal ou informal – era fundamental para a consolidação da cidade e para o registro de seu dia-a-dia. Foi assim com Clemente Luz, que mudou-se para Brasília ainda em 1958 e foi incumbido de escrever crônicas diárias registrando a construção daquela cidade. Clemente Luz foi como redator da Rádio Nacional de Brasília e como correspondente da Agência Meridional e da Agência Nacional. Em 1968 lançou o livro “Invenção da Cidade” reunindo essas crônicas escritas ainda durante a construção da cidade. (LUZ, 1982)
100
Sobradinho. Era mais ou menos onde hoje é a quadra 06. Meu pai
vendeu esse lote e fomos morar no Gama. Nós fomos morar lá num
lugar horrível, na última rua, depois da nossa casa só tinha o mato.
Ai eu fiquei com ódio de meu pai por ele ter feito isso. Ai moramos
no Gama, ai meu Deus eu não me lembro quanto tempo... eu sei
que nós saímos de lá... moramos até 71, 70.
A vida nas cidades satélites de Brasília parecia, para essa mineira, a
materialização do que encontramos nos discursos jornalísticos sobre a cidade. A
série de reportagens do Correio Brasiliense apontando os problemas vivenciados
pelos moradores das cidades satélites encontram ressonância nas falas dessas
senhoras.113
Quando viemos pra Sobradinho, a vida da gente melhorou foi muito.
A Idália já foi trabalhar fora, e eu fiquei dentro de casa pra cuidar
dos outros meninos. A gente morava na quadra 07, depois moramos
no conjunto A da quadra 06. Depois para o conjunto G da quadra
08. Sobradinho era bom naquela época, eu gostava de Sobradinho.
Ia muito pro Sodeso114, baile de carnaval aquele negócio. Mãe
deixava a gente ir, a gente ia muito pro clube. Ai logo eu comecei a
trabalhar no plano piloto.
Nesse período Sobradinho já era uma cidade diferente, com ruas
asfaltadas, a maioria das casas (nessas quadras) era de alvenaria,
via-se um barraco a cada 10 casas de alvenaria. Mas a minha
vontade era vir morar pra essas bandas daqui (referindo-se a onde
hoje está Sobradinho II). Lá da minha janela eu via os morros daqui,
e eu dizia, um dia eu ainda vou morar lá perto daqueles morros. E
não deu certo? Tem 26 anos que a gente mudou pra essa área aqui,
pra essa chácara. Mesmo com todas as dificuldades, falta d’água,
escassez de transporte coletivo eu nunca me arrependi de ter vindo
pra cá não... pelo contrário, eu gostava, gostava não, eu gosto
daqui. Pra falar a verdade, eu nunca gostei assim de morar na
cidade, sabe... eu sempre gostei de mato, sempre fui... por isso que
pra mim não foi muito difícil não, sabe... não foi difícil não, porque
eu gostava desse clima de mato aqui...
113 Ver nas referências deste trabalho as indicações das reportagens sobre as cidades satélites e o seu caráter de negatividade para a cidade. 114 Sociedade Desportiva Sobradinhense – SODESO, fundada em 1º de junho de 1.963, na área quadra 10 área especial nº 06 módulos A/E.
101
Trajetórias que se cruzam e se distanciam vão dando forma a cidade de
Sobradinho. Foi também a necessidade e a vontade de acompanhar o marido que
fez com que Dona Natália115 viesse viver em Brasília. Nascida no dia 01 de
dezembro de 1931 em Balsas, no Maranhão, e no dia no dia 14 de janeiro de 59, a
uma hora da tarde que D. Natália desceu num avião no aeroporto militar de Brasília.
Ela nos conta que naquele tempo era o único que tinha aqui. Ela diz:
Meu marido já estava trabalhando aqui em Brasília, trabalhava
numa firma que chamava CCBR, onde hoje é a península dos
ministros. Ai eu fui, cheguei lá, ele tava lá me esperando, fui pra
casa, ficamos lá esses anos todos até quando... ai ele fez um
concurso pra... acho que ele foi chamado pra trabalhar não sei onde.
Foi isso mesmo, foi chamado pra trabalhar na gráfica do Senado.
Depois o Senado requisitou ele e enquadrou no quadro fixo. Ai ele
trabalhou lá até 79, em 79 ele faleceu, no dia 09 de setembro de
1979.
Quando eu cheguei em Sobradinho não tinha construído ainda,
estava começando. Era um povoadozinho. A Nair (cunhada) era
enfermeira, trabalhava na Benecap, ai... veio trabalhar aqui em
Sobradinho. Ai foi por intermédio dela que nós viemos também, teu
pai quis vir pra cá. Quando eu cheguei morei ali no conjunto D da 8.
Era conjunto D da quadra 8, lote 35. Numa casa que era nossa, não
morávamos de aluguel. A rua era cheia de barraco, de um lado e do
outro. Tinha esse tanto de barraco aqui desse lado, e ai tinha a rua,
e aqui desse outro lado, era outras pessoas. Nos mudamos para o
Cruzeiro em 1969, e em 1974 retornamos a Sobradinho, agora
morando na quadra 02 numa casa alugada até que compramos uma
casa no conjunto B-5 da quadra 02. Lá vivemos por muitos anos. O
único comércio que tinha aqui naquela época era o Núcleo
Bandeirante. E era um comerciozinho assim, só tinha mais o
mercado. Aquele mercado tinha de tudo, mas também era uma...
não tinha quase loja por ali. Era tudo barraco de tábua, era tudo
aquelas casinhas assim de tábua... ai um dia pegou fogo na casa
de um, queimou e morreu uma criancinha queimada... ô meu Deus
mas aquilo pra mim foi um horror.
Quando nos mudamos para Sobradinho, tinha um mercado que a
gente chamava Armazém do Povo, e tinha escola, não tinha ainda
hospital, tinha um posto de saúde. Chamava Sandu. Depois que
fizeram esse hospital escola, que era hospital escola que chamava,
115 Natália Gonçalves Feitosa.
102
que era pros estudantes de medicina. E tem mais tanta coisa ai que
eu não me lembro mais não...
Em sua narrativa, D. Natália faz um movimento de vai-e-vem com o
tempo. Menciona eventos mais antigos (como quando menciona que o único
comércio existente na cidade era do Núcleo Bandeirante) quando se referia a
períodos mais recentes de sua trajetória (década de 1970 quando já vivia em
Sobradinho). Parte de seu relato é marcado por um receio enorme de mencionar
fatores ou de construir uma memória equivocada de sua trajetória. Todo tempo da
entrevista esteve presente conosco o filho de D. Natália, Sebastião Feitosa, foi com
ele que ela conversou o tempo todo. A entrevista desenrolou-se com a ajuda dele,
pois ela, muitas vezes, recusava-se a responder quando indagada por mim, mas
quando o filho fazia a mesma pergunta ela respondia e trazia em sua fala marcas
da experiência vivida na mudança para Brasília e da vida em Sobradinho.
Foi também marcada pela emoção e por “vacilos”, que a senhora Dirce
Marley nos concedeu sua entrevista. Viúva, com uma trajetória de vida marcada por
percalços e por lutas, a primeira indagação dela pra mim foi: “porque a minha vida
tem importância para o seu trabalho?” Peço licença para reproduzir aqui um trecho
de um texto escrito pela historiadora Nancy Aléssio Magalhães e que ajuda a pensar
o porquê para nós, historiadores orais, a polissemia das falas é parte inerente a
nosso trabalho, o porquê é importante não concentrar nossas discussões a partir de
apenas um ponto de vista:
Não cabe substituir uma visão por outra, muito menos valorizar e/ou buscar a que seria, pretensamente, a mais verdadeira. O que se trata é de democratizar um pouco mais a discussão, é de evocar infinitamente outras vozes, outros saberes, outras imagens, outros espaços, outros patrimônios histórico-culturais, outros poderes menos visíveis, outras memórias e outras histórias. Porém, a mera multiplicação e visibilidade destes suportes e pessoas não garante esse esforço, porque rememorar e registrar a história significa lidar com seres de carne e osso, que constroem essas experiências, essas relações entre presente, passado e futuro, e essas memórias e histórias, como seus protagonistas. (MAGALHÃES; SINOTI, 2001, p. 09).
103
E assim se constituem as falas que aparecem reconstituídas aqui neste
trabalho. É assim que a trajetória da D. Dirce e de todos os demais colaboradores
deste texto se entrelaçam e produzem a história de Brasília marcada por suas
experiências em Sobradinho. É assim que ela se constitui enquanto protagonista da
história daquela cidade:
meu nome é Dirce Marley Feijó de Oliveira, eu nasci em 07 de
setembro de 1941, na cidade de Maceió. Conheci meu marido aos
quatorze anos, me casei aos 16 e fui morar no Rio de Janeiro. Ele
trabalhava na Petrobrás na época e nós fomos para o Rio, e como
eu era muito novinha, eu chorava demais, com saudade da minha
família. E terminou ele abandonando o emprego no navio, que ele
trabalhava no navio petroleiro, e fomos pra Maceió, voltamos pra lá.
Chegando lá ele não conseguia arrumar um emprego que me dava
o padrão de vida que eu tinha no Rio, né? Resolvemos vir pra
Brasília. Nós vínhamos pra Brasília na expectativa de melhorar de
vida, arrumar um emprego bom igual ao do Rio, e poder comprar
nossa casa para o sustento dos nossos filhos.
Quando cheguei aqui eu fui pra Taguatinga. Chegando lá eu fui
morar num barraco de madeira com as brechas que via o outro lado,
entendeu? E isso eu fiquei apavorada, né? porque eu nunca tinha
visto barraco de madeira, eu nunca fui rica, mas era considerada
classe média. Ai quando eu cheguei aqui, morava no barraco,
chorava com dois filhinhos e foi quando engravidei do Marcelo. Meu
marido trabalhando de eletricista de casas mesmo, de geral. E de
instalações elétricas de casas, de prédios, né? e nós ficamos
morando em barraco, porque a dificuldade era grande. Você não
conseguia morar numa casa, o aluguel era caro, e na época eu
morava assim, em barraco, às vezes junto com outras famílias no
mesmo lote. Mas meu marido lutando, trabalhando para ver se o
que a gente ia conseguir. E eu em casa com os filhos, porque eu
nunca trabalhei.
Quando foi assim em 76 nós compramos esse terreno (referindo-se
ao terreno da casa em que reside até os dias atuais). Nós
conseguimos comprar um terreno, uma tv a cores, que era o que eu
queria, e daí começou a fase de sorte. Fizemos um barraco, mas
assim, um barraco mais confortável do que os que eu morava de
aluguel. Quando foi em 80 saiu uma casa da SHIS116, nós passamos
116 Sociedade de Habitações de Interesse Social do Distrito Federal – “A fundação de um órgão específico para cuidar da política habitacional no Distrito Federal (DF) deu-se em 1962 com a criação da Sociedade de Habitações de Interesse Social Ltda – SHIS, cuja razão social era Sociedade de Habitações Econômicas de Brasília Ltda – SHEB, tendo sua estrutura reformulada por meio da lei
104
para essa casa em Taguatinga Sul, setor P sul. Mudamos pra lá, e
quando foi um ano e meio depois assassinaram ele. Foi uma tarde,
às três horas da tarde, e eu tive esse desgosto lá, de ter perdido
meu marido. Eu estava com 38 anos e já tinha 05 filhos, o Marcos,
a Márcia, o Marcelo, a Marta e a Luciana. Aí foi quando me mudei
para o terreno aqui em Sobradinho. Na época era só barraco, mas
eu pedia sempre a Deus para que eu conseguisse vencer e cuidar
de meus filhos. A mais nova estava com 9 anos de idade quando o
pai morreu. Eu era uma pessoa assim inexperiente, porque eu não
comprava nada, nunca trabalhei, só tenho mesmo o primeiro ano
primário completo. Nunca trabalhei, então fui enfrentar esse desafio
pra criar meus filhos. Meu filho, com 17 anos para 18, começou a
trabalhar na rede Globo e, o Marcos Feijó, e começou a me ajudar.
Então, nós dois juntos criamos os irmãos dele. Ele me apoiava,
procurávamos comprar aquilo que era necessário pra gente. E um
dia resolvemos começar a construir a nossa casa. O Marco
atualmente é cinegrafista da TV Senado e da TV Câmara. A Márcia
é professora e já tem mestrado. A Marta casou-se, não se formou,
mas casou bem com um engenheiro. A Luciana se formou também
em Geografia e também fez mestrado. O Marcelo também é
formado, trabalhou na Caixa Econômica Seguros. Eu me sinto
praticamente realizada nesse sentido da formação dos meus filhos.
Porque somos pessoas simples, mas consegui chegar numa etapa
assim que eu sempre almejei.
Pra mim foi muito importante vir pra Brasília. Depois que eu vim pra
Brasília, já estava com 20 anos, já era mais madura pra pensar nas
consequências de qualquer erro, que eu fizesse ele estar pra lá e
pra cá. Por isso, quando eu fiquei viúva eu não quis voltar pra
Maceió. Minha família queria que eu voltasse, mas eu pensei, se eu
voltar lá e o meu filho não conseguir um emprego, como o pai não
conseguiu, eu vou ficar como? Eu já tinha minha casa, quer dizer,
eu já tinha minha tranquilidade, que era ter um imóvel para morar,
que era ter um teto, o resto vem com o trabalho, com os esforços.
Gosto de Brasília, amo Brasília, não tenho vontade de voltar pra lá,
Federal de nº 4.545 de 10 de dezembro de 1964. Ainda no ano de 1964 foi firmado o primeiro contrato de financiamento com o BNH – Banco Nacional de Habitação, assim, a Empresa passou a integrar o corpo de agentes Promotores do SFH – Sistema Financeiro de Habitação. A atuação da SHIS se consolidou no triênio de 1970-1973, com o aumento da oferta de habitação no DF com o apoio do Governo do Distrito Federal e do BNH. Ao longo de sua existência, que se deu no período de 1964 a 1994, a SHIS sofreu grandes transformações a fim de acompanhar a evolução econômica e social na área habitacional que o DF enfrentou ao longo de trinta anos. Para tanto, visando vencer o déficit habitacional de oitenta mil moradias, foi criada a autarquia IDHAB - Instituto de Desenvolvimento Habitacional do DF para tratar da política habitacional do Distrito Federal. Em 1994, por meio da lei de nº 804/94, o IDHAB assumiu as atividades da extinta SHIS.” (Informações disponíveis em http://www.sedhab.df.gov.br/sobre-a-secretaria/a-secretaria.html. Acessado em 03 de agosto de 2009.)
105
porque me deu sorte. De qualquer maneira passei dias difíceis, mas
consegui, né? consegui ao menos ter minha casa.
Essas falas, de Teodoro, Maria José, Isaura, Natália, Dirce, Aparecida,
entre outros, aparecem como distintos pincéis que desenham e moldam a cidade
de que falam. Brasília foi edificada historicamente como marco divisor de águas na
história do Brasil. Uma cidade construída para “fazer a diferença”.
Um de meus objetivos neste trabalho, recolhendo esses depoimentos e
reconstituindo essas trajetórias, foi o de estimular as pessoas a lembrarem da
experiência vivida quando da migração para Brasília, a vida em Sobradinho, a
relação que mantinham com o Plano Piloto, bem como de perceber os
deslocamentos que essa memória assume por um processo mesmo de
presentificação dessa experiência na medida em que narram essa vivência passada
e como ela se relaciona com o presente vivido. Ao historiador, cabe lançar mão da
história oral como forma de ter acesso a essas narratividades. No entanto, o
trabalho com a história oral (memória-fonte) pressupõe que ela
peut et doit être traitée par l’historien comme une source ordinaire, à la condition, sans doute, qu’il invente une méthodologie particulièr, adaptée aux objectifs de sa recherche. (FRANK, 1992)
O trabalho com história oral é dinâmico, para cada regra aparece uma
exceção, ou seja, para cada projeto a história oral apresenta possibilidades e limites
com que o historiador terá que lidar.
The memories of direct participants are sources far too rich for historical researches to ignore. Interviewers must be aware of the peculiarities of memory, adept in their methods of dealing with it, conscious of its limitations, and open to its treasures (RITCHIE, 1945, p. 14).
Por outro lado, para o entrevistado, é importante que a sua memória seja
“respeitada”. Na medida em que a narrativa que ele fará dos acontecimentos, ou do
período solicitado pelo pesquisador, terá os contornos e a cronologia próprias de
sua memória, daquilo que tem importância e centralidade para ele. Por isso as falas
106
acima trabalhadas são marcadas por uma imprecisão de datas e um constante
movimento de ir e vir no tempo, próprios da narrativa oral, marcada pela
subjetividade e pela reconstrução da memória do colaborador.
A princípio pode parecer óbvio mencionar o caráter subjetivo da fonte
oral (que a meu ver se estende por toda e qualquer categoria de fonte que
pressuponha a elaboração de uma narrativa), no entanto, é preciso entender essa
subjetividade não apenas relacionada ao conteúdo mesmo da narrativa
memorialista, mas no próprio processo de constituição da memória enquanto fonte
de pesquisa – a entrevista traz a tona um passado filtrado pelo presente daquele
que rememora.
A fonte oral é contemporânea do historiador e não do evento narrado.
Não há somente diversas temporalidades constituindo a fonte oral, mas há também
diversas subjetividades, uma vez que o historiador/oralista participa da produção da
fonte oral, numa relação de intersubjetividade com o seu interlocutor.
L’histoire et la mémoire s’emparent du passé, l’une pour l’analyser, le décortiquer, le démythifier, le rendre intelligible au présent, l’autre au contraire pour le sacraliser, lui donner une cohérence mythique par rapport à ce même présent, afin d’aider l’individu ou le groupe à vivre ou à survivre. Critique, l’histoire a pour but la recherche de la vérité; clinique ou totémique, la fonction de la mémoire est la construction ou la reconstruction d’une identité. (FRANK, 1992)
O ato de narrar, portanto, tem uma intencionalidade clara: construir
imagens de si e do vivido no presente. Não deve haver, portanto, por parte do
historiador, a expectativa de revelação de uma verdade ou da realidade do fato
narrado, a experiência vivida pelo interlocutor, refeita pela sua narrativa, se mostra
em toda a sua complexidade e na impossibilidade de reconstituição do vivido tal
como aconteceu. Dessa forma, de acordo com Meihy (2005)
o que foi lembrado, como foi narrado, em que circunstância foi evocado o fato: tudo isso integra a narrativa, que sempre nasce da memória e se projeta na imaginação, que, por sua vez, depois de articular estratégias narrativas, se materializa na representação verbal que pode ser transformada em fonte escrita.” (MEIHY, 2005, p. 61)
107
Vivemos num tempo em que ainda impera, nas pesquisas acadêmicas,
a ditadura do escrito, a narrativa oral permanece num estatuto de descrédito e de
inferioridade frente ao documento escrito. Devemos, assim, aprender a ouvir as
pessoas com a cumplicidade de quem quer colaborar, deixar que o colaborador
construa a sua narrativa, a sua rememoração do passado (ou mesmo do presente)
dando a ela o molde que julgar mais adequado. Perceber o quão plural são os
signos que nos rodeiam atualmente na vida cotidiana.
Ao colaborador cabe a construção e a tessitura da narrativa da forma que
achar mais adequada para os contornos que quer dar à sua memória.
Diferentemente dos historiadores, o colaborador não tem uma preocupação em
entender ou mesmo explicar os fatos que narra ou as conexões que estabelece
entre eles – essa é uma característica marcante da narrativa para Benjamin. (1989,
p. 203) A riqueza da oralidade, para o historiador, está em identificar esses
contornos e a importância deles para a elaboração da narrativa do colaborador.
Assim, os meus interlocutores ao falarem de Brasília e da relação que estabelecem
com essa cidade me concedem não apenas o conteúdo mesmo de sua narrativa
memorialística, mas os silêncios e as inquietudes que vivenciam no exercício de
lembrar.
Jacy Seixas afirma que o historiador deve assumir um procedimento
diferenciado
para entender as relações tecidas entre memória e história, procedimento que incorpore as descontinuidades e, sobretudo, a importância da função de atualização das experiências passadas inscrita no ato da memória, (SEIXAS, 2001, p. 51)
Sem perder de vista a postura de respeito e de crítica essenciais para a
escrita do texto historiográfico. Assim, pensar a trajetória de moradores da cidade
satélite de Sobradinho implica refletir sobre essas várias temporalidades e
subjetividades que estão envolvidas no processo de historiar. A experiência de hoje
ao lembrar sobre um fato passado, ocorrerá mediante o estímulo de questões
colocadas pelo historiador/entrevistador, de fotografias apresentadas ou mesmo de
108
um passeio pelas ruas da cidade, no entanto, essa será uma memória perpassada
pelos limites que o historiador acaba colocando para o seu colaborador117 no
momento da entrevista. Tenho clareza de que também enquanto pesquisadora devo
lidar com uma série de outros limites que se apresentarão no decorrer da pesquisa,
mas que entendo como inerentes ao processo tanto de produção da fonte oral,
quanto do trabalho de instrumentalização e de produção de um saber historiográfico
a partir dessa mesma fonte.
Para historiadores como Sônia Maria de Freitas (2002), a história oral é
um método de pesquisa que utiliza a entrevista como documento. Para ela, a
história oral é uma fonte “que podemos usar da mesma maneira que usamos uma
notícia de jornal ou uma referência em um arquivo, em uma carta” (FREITAS, 2002,
p. 18). Particularmente, acredito ser uma aproximação bastante complicada uma
vez que, assim como qualquer outro tipo de fonte histórica, trabalhar com história
oral pressupõe o entendimento das especificidades inerentes a esta fonte e aos
usos que podem ser feitos dela. Não há, portanto, como desvincular o uso da
história oral da reflexão sobre a memória, entendida como um processo, e, portanto,
social, “tornando-se concreta apenas quando mentalizada ou verbalizada pelas
pessoas” (PORTELLI, 1997, p. 16). Não há, entre os pesquisadores de História Oral,
uma preocupação em descobrir como as coisas realmente aconteceram, não busca
estabelecer padrões explicativos, mas diante das distintas versões, mostra-las
como partes instituintes de um todo, mesmo que em alguns momentos conciliáveis
e em outros não.
A história oral tende a representar a realidade não tanto como um tabuleiro em que todos os quadrados são iguais, mas como um mosaico, uma colcha de retalhos, em que os pedaços são diferentes, porém, formam um todo coerente depois de reunidos – a menos que as diferenças entre elas sejam tão irreconciliáveis que talvez cheguem a rasgar todo o tecido. (PORTELLI, 1997, p. 16-17)
117 Pesquisadores do NEHO/USP utilizam a nomenclatura de colaborador para referirem-se aos entrevistados, por entenderem que estes não apenas narram as suas experiências individuais, mas contribuem para a elaboração e consolidação de um saber que depende da forma como eles trabalham essa memória.
109
Esta discussão nos remete a fala de Verena Alberti (2005) de que a
principal característica do documento de história oral não consiste no ineditismo de
uma informação, ou no preenchimento de lacunas deixadas pelos documentos
escritos ou iconográficos, mas de uma “postura com relação à história e às
configurações socioculturais, que privilegia a recuperação do vivido conforme
concebido por quem viveu” (ALBERTI, 2005, p. 23). Não se pode, portanto,
desvincular a história oral da biografia ou da memória. Uma memória social
entendida como processo, que só ganha forma quando mentalizada ou verbalizada
pelas pessoas.
A primeira lição que o “historiador oral” deve ter em mente, segundo
Portelli, é o respeito ao indivíduo. Cada entrevista abre um mundo de possibilidades
ao pesquisador, e sua beleza, sua importância está no fato de que cada uma delas
é diferente da outra. Não há, portanto, um grupo ou um indivíduo que possa
contribuir mais que outro, todos podem dar algum tipo de contribuição para a
pesquisa. Assim, ao historiador oral é imprescindível o desenvolvimento da
capacidade de ouvir, estar atento ao outro, seus gestos, sua fala, seus silêncios,
enfim, a entrevista não é algo a ser registrado apenas por intermédio do gravador.
Este aparelho capta apenas a fala e as interferências do espaço na fala do
interlocutor, no entanto, é o olhar do pesquisador que vai permitir que ele identifique
estes outros registros tão caros à análise da memória, e fundamentais para a
construção da narrativa memorialística do seu interlocutor e para a pesquisa em
história oral.
Os textos que ditam as regras para o trabalho com a história oral, muitas
vezes, propõem que o “historiador oral” deve manter-se distante durante a
entrevista, quase invisível para que o entrevistado se sinta mais confortável ao falar.
Portelli (1997) afirma que a nossa objetividade não pode ser confundida com uma
quase indiferença ao interlocutor. Devemos estar abertos a ouvir – a narrativa
extrapola nossas expectativas, é preciso ouvir, sobretudo aquilo que não
esperávamos –, devemos interagir com nosso interlocutor. Devo partilhar minhas
experiências (quando solicitado) para que eu possa receber em contrapartida o
compartilhamento da experiência do outro e aprender com essa experiência. Essa
110
objetividade, tão cara aos historiadores, não consiste em nos ausentarmos da cena
do discurso buscando uma inatingível neutralidade, mas “consiste em assumir a
tarefa da interpretação, que cabe aos intelectuais” (PORTELLI, 1997, p. 26). A nós,
o entendimento de que a narrativa científica é igualmente plural, e que o trabalho
com a história oral pressupõe o jogo entre múltiplas vozes e múltiplas
interpretações: as dos entrevistados, as nossas e as dos leitores.
Assim, este trabalho se propôs a utilizar a história oral temática118 para a
construção de imagens sobre Sobradinho (DF), pela possibilidade que ela oferece
de complementar-se com informações originadas em documentos e/ou de
evidenciar o que ainda não foi efetivamente documentado. O exercício de lembrar
sua trajetória relacionando-a com a da cidade em que vivem, faz de meus
interlocutores tecelões que unirão os fios de sua memória no processo de tessitura
da história de Sobradinho. A partir do momento em que entendo a cidade como uma
pluralidade de experiência e de vivências, e que essa pluralidade é marcada pelas
especificidades de cada um dos seus habitantes, torno a vida dessas pessoas
importantes para a elaboração de uma memória urbana – mais social do que
coletiva – que delineia formas e apreensões desta mesma cidade. Sobradinho e
Brasília, parecem ganhar contornos definidos nessas tantas falas que serão
estudadas e (re)significadas no próximo capítulo desta tese. No entanto, para que
o pesquisador oral tenha acesso a essas falas, deve manter o respeito ao seu
interlocutor e entender que, como afirma Portelli (1997), o trabalho de campo é um
experimento em igualdade baseado na diferença, uma vez que
118 Existem, à princípio, dois gêneros atribuídos à história oral: história de vida – consiste em relatos autobiográficos, reconstituição do vivido feita pelo próprio indivíduo; e história temática – quando as entrevistas são feitas sobre um tema específico. Não é preciso que conte a vida de um indivíduo em sua totalidade, mas apenas pede-se que ele relate fatos e impressões relacionadas ao tema da pesquisa em questão. “Por partir de um assunto específico e preestabelecido, a história oral temática se compromete com o esclarecimento ou opinião do entrevistado sobre algum evento definido” (MEIHY, 2005, p.51) Esta tipologia da história oral é ampliada por Sônia Maria de Freitas no livro “História oral: possibilidades e procedimentos” (2005). Freitas afirma que há ainda um terceiro tipo de história oral, o que ela chama de tradição oral – aquilo que define os códigos de sociabilidade e a própria cultura de uma sociedade. No entanto, pesquisadores como José Carlos Sebe Bom Meihy e Verena Alberti apresentam apenas dois tipos de história oral, a saber, a história de vida e a história oral temática. Ver: MEIHY (2007), ALBERTI (2005), DELGADO (2010), PORTELLI (2010).
111
é preciso que sempre exista uma linha de diferenças que, depois de transposta, torne-se plena de significado, mas é necessário que exista também uma linha, segundo a qual possamos comunicar o desejo de encontrar um terreno e uma linguagem comuns, que possibilitem a troca – aquilo que, como nos lembra Tzvetan Todorov, é nossa natureza humana profundamente arraigada. (PORTELLI: 1997, 19)
Entender assim que por mais proximidade e “cumplicidade” que se
construa na relação entre pesquisador e colaborador, o exercício de lembrar, o
momento da entrevista, a utilização do relato como fonte de pesquisa são próprios
da afirmação do lugar de diferença desses dois personagens. Se tomar como
exemplo o momento em que entrevistei uma de minhas colaboradoras – uma
pessoa com a qual tenho uma relação de proximidade bem consolidada – esse lugar
de diferenciação se coloca com bastante clareza. Mesmo sendo uma pessoa com
quem convivi durante boa parte da minha vida, no momento da entrevista parece
ter se construído uma outra forma de experienciar essa relação – não mais um “papo
descontraído”, não mais uma conversa entre pessoas que se conhecem há um
tempo considerável, agora era a pesquisadora que iria ouvir meu relato, a
construção de uma imagem de mim que irá se perpetuar num texto escrito e com
caráter acadêmico. É curioso que, mesmo tendo lido vários textos sobre o trabalho
com a história oral e ouvido o depoimento de diversos pesquisadores orais, a
experiência de pesquisa extrapola as expectativas e trazem inúmeros outros
desafios ao pesquisador.
113
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A memória é, então, crucial como meio e processo para provocar, (re)construir as articulações entre presente e passado, entre o indivíduo e o social. (grifos da autora) (MAGALHÃES, 2001, p. 95)
islumbrar na memória possibilidades de inserção na cidade,
percorrer os caminhos traçados pelas lembranças que
constituem espaços cada vez mais plurais, marcados por
narrativas igualmente variadas, constituiu-se no grande desafio
deste trabalho. Brasília, Sobradinho, são cidades que aparecem nessas páginas
como espaços marcados pelas trajetórias de seus habitantes, por trajetórias que se
reconstituem por suas falas e pelas reelaborações de suas próprias experiências.
Um exercício por vezes complicado pois
construir a experiência, em um universo incerto, a partir de fragmentos esparsos, destroços, tradições esfaceladas, pistas deixadas pelas histórias que não tiveram oportunidade de acontecer, legados da grande tradição narrativa, então não significa recriar o calor de uma experiência coletiva, a partir de experiências vividas isoladamente. (MAGALHÃES, 2001, p. 96)
Brasília foi construída historicamente como um marco divisor de águas
na história do Brasil. Cidade-símbolo, capital da esperança, cidade moderna e
progressista são algumas das insígnias que marcam a imagem construída para
essa cidade. Imagens elaboradas e consolidadas ao longo do tempo e que marcam
a história de Brasília e de seu entorno. Exemplo disso, nos parece ser o processo
de seu tombamento apenas 30 anos após sua fundação. José Simões Pessôa
(2003) apresenta uma discussão interessante no Seminário DOCOMOMO
afirmando que o tombamento de Brasília significa a criação de “um centro histórico
não-histórico, onde a possibilidade de permanente modificação de sua paisagem
arquitetônica produziria uma atemporalidade espacial que tornaria irreconhecível a
cidade modernista”. Interessante pensar em como essa pretensa “maleabilidade”
neste processo pode significar para uns a manutenção de uma ideia e para outros
a descaracterização dela. A ideia parece ser, para este autor, aquilo que se
V
114
expressa nas palavras de Lúcio Costa ao solicitar o tombamento de seu plano: a
garantia de manutenção das escalas que preconizam o projeto da cidade: a
monumental, a residencial, a gregária e a bucólica.119 Inovação no formato do
tombamento – que preconiza a ideia e não o que foi construído até então – implica,
para este autor, uma reelaboração na forma como entendemos a preservação do
patrimônio moderno brasileiro.
“Capítulo I – Do plano piloto e sua concepção urbanística.
Art. 1o – Para efeito de aplicação da Lei no 3.751, de 13 de abril de 1960, entende-se por Plano Piloto de Brasília e concepção urbana da cidade, conforme definida na planta em escala 1/20.000 e no memorial descritivo e respectivas ilustrações que constituem o projeto de autoria do arquiteto Lúcio Costa, escolhido como vencedor pelo júri internacional do concurso para a construção da nova capital do Brasil. (...)
Art. 2o – A manutenção do Plano Piloto de Brasília deve ser assegurada pela preservação das características essenciais de quatro escalas distintas em que se traduz a concepção urbana da cidade: a escala monumental, a residencial, a gregária e a bucólica”.120
Brasília, patrimônio da humanidade. O processo de tombamento da
cidade possibilita pensarmos numa série de desdobramentos que esse processo
pode significar. O tombamento de Brasília não se refere aos prédios e monumentos
que compõem o seu espaço físico, pelo menos não somente, mas à concepção
119 É preciso entendermos que cada um dos níveis em que a cidade foi tombada preconiza a preservação de alguns elementos. Em sua dissertação de mestrado, Carlos Madson Reis apresenta algumas dessas questões e afirma que: “O conjunto urbanístico de Brasília está regido por um elenco de instrumentos, que definem sua proteção em três níveis: local, federal e mundial. Nível local – Decreto nº 10.829, de 14 de outubro de 1987, que estabelece os critérios de preservação do Conjunto Urbanístico do Plano Piloto de Brasília. Constitui o documento que foi apresentado pelo governo brasileiro a UNESCO, como garantia jurídica da proteção de Brasília, atendendo as exigências legais para sua inclusão na Lista do Patrimônio Mundial. (...) Nível mundial – Resolução da 11º Reunião do Comitê do Patrimônio Mundial da UNESCO de 7 de dezembro de 1987, que determina a inscrição do Conjunto Urbanístico do Plano Piloto de Brasília na listagem dos bens considerados Patrimônio Cultural da Humanidade. Nível federal – Decreto de Tombamento de 14 de março de 1990 que eleva o Conjunto Urbanístico de Brasília à categoria de Patrimônio Histórico Nacional – inscrição nº 532 do Livro de Tombo Histórico.” (REIS, 2001, p. 112) Reis faz uma discussão interessante sobre os impactos de cada uma dessas concepções na sua gestão urbana e na própria constituição de uma ideia de patrimônio atrelada à história da cidade. 120 Lei no 3.751 de 13 de abril de 1960 – Dispõe sobre a organização administrativa do Distrito
Federal. Referências consultadas no site do IPHAN: http://www.iphan.gov.br/bens/mundail/p8-10.htm).
115
urbanística da cidade – que deve ser mantida e respeitada em toda e qualquer
intervenção no seu espaço conforme descrito no documento do IBPC – Instituto
Brasileiro do Patrimônio Cultural: “Qualquer alteração no gabarito dos prédios, no
plano dos eixos, avenidas e lotes, no uso e nas funções dos lotes e nas áreas verdes
dentro do perímetro preservado, deveria, em princípio, ser evitada. Alterações
necessárias deveriam ser profundamente estudadas e cuidadosamente executadas
para garantir a preservação das características essenciais do Plano Piloto e a sua
qualidade de vida”.121 Mas, de que características essenciais estamos falando? Que
tipo de discussões o projeto de tombamento de Brasília suscitou? Até que ponto
esse tombamento não rompe, como chamou atenção James Holston, com o espírito
de invenção que parecia caracterizar a cidade? O que esse processo significou para
os moradores da cidade? Muda a relação que eles estabelecem com os
monumentos ou com o espaço urbano em questão? Qual o sentido político que esse
processo assumiu na medida em que “congelou” a cidade e não se permite que nela
tomem lugar outros projetos inventivos de intervenção no espaço? Se a periferia de
Brasília (aqui entendida como suas cidades satélites) constitui também o seu
perímetro urbano, como colocado em diversos trabalhos que discutem a
espacialidade brasiliense122, porque ficou fora do tombamento? Qual o sentido
atribuído a essa exclusão? Como afirma Andrey Schlee (2010)123,
Brasília é uma realidade bela, racional e concreta, sempre em contraste com os milhões de sonhos daqueles que nela não podem viver. Uma cidade que não desabrochou como flor, mas que foi pensada como um cristal, a partir de uma concepção plástica e ideal. Temos que encarar a cidade de frente, estudá-la, conhece-la melhor. Temos que ter a coragem de propor e projetar as transformações que ainda se fazem necessárias.
121 Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural. Patrimônio Cultural, 1992. Apud: HOLSTON, James.
“O espírito de Brasília: modernidade como experimento e risco”. In: NOBRE, Ana Luisa et alli. (orgs.) Lúcio Costa. Um modo de ser moderno. Rio de Janeiro, Cosac & Naif, 2004, p. 174.
122 Sobre a questão das cidades satélites fazerem parte do espaço urbano de Brasília ver especialmente os artigos que compõem as coletâneas organizadas pelo geógrafo Aldo Paviani citadas na bibliografia. 123 Fala expressa no fórum publicado na revista aU – Arquitetura e Urbanismo, na edição 199 de março de 2010.
116
As pessoas que vivem em Brasília mantém com os signos de
monumentalidade e modernidade, tão caros aos seus artistas oficiais, uma relação
de identificação, ou eles acabam sendo uns dentre tantos outros gigantes que os
observam e que, muitas vezes, as pessoas sequer dão conta de que eles estão ali?
Pensar essas questões me parece uma estratégia interessante de ter
acesso a dimensões outras de composição da cidade de Brasília. Dar visibilidade a
um outro olhar que incide sobre a cidade e tece novos fios, traça novos caminhos
que possibilitam conhecer outros tantos desenhos possíveis para a cidade. Não que
essa pluralidade vá possibilitar que iluminemos a “verdadeira” Brasília, se é que ela
existe, mas possibilitarão pensar essa própria pluralidade enquanto dimensão
constitutiva da cidade
117
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DOCUMENTOS:
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A CIDADE É UMA SÓ. Direção: Adirley Queirós, Produção: Adirley Queirós e André
Carvalheira. Brasília: MinC/Empresa Brasil de Comunicação, 2011.
RELATÓRIO do Plano Piloto de Brasília/elaborado pelo ArPDF, CODEPLAN,
DEPHA. Brasília: GDF, 1991.
PLANO DIRETOR LOCAL – PDL – Sobradinho, DF. Região Administrativa V do
Distrito Federal. Brasília: GDF, 1994.