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1 Penitenciária Regional de Presidente Venceslau Endereço: Avenida Antônio Marques da Silva, s/n. Presidente Venceslau, SP. Classificação: Aparato Repressivo. Identificação numérica: 020-01.020 A Penitenciária Regional de Presidente Venceslau, inaugurada no dia 05 de dezembro de 1961, fica localizada a 610 km da cidade de São Paulo e foi projetada para ser uma penitenciária de segurança máxima. Sua arquitetura está baseada no modelo americano do Prison Design Briefing System (PDBS) que procura ressaltar as áreas de integração entre detentos, valorizando os espaços de lazer e trabalho 1 . Sua proposta é a reabilitação e ressocialização do detento. A penitenciária foi construída na área do antigo Quartel de Presidente Venceslau. A construção do quartel foi concluída em 1927 e veio substituir o primeiro alojamento do 2º Regimento de Cavalaria da Força Pública do Estado de São Paulo (que era um “racho de madeira” destinado a ser o cinema da cidade). O 2º Regimento atuou na região até 1930, quando foi transferido para a capital 2 . O antigo quartel ficou sem atividades até 1958, quando a edificação começou a ser reestruturada para se tornar a Penitenciária Regional de Presidente Venceslau, que a partir de 2004 passou a ser denominada Penitenciária I “Zwinglio Ferreira” 3 . 1 Para mais informações sobre o Prison Design Briefing Systen conferir o trabalho de Raquel Paslar. Estudo das instituições penitenciárias paulistas com ênfase na privatização do ativo imobiliário e na análise crítica da qualidade deste investimento. Monografia (MBA em Gerenciamento de Empresas e Empreendimentos na Construção Civil, com ênfase em Real Estate). Escola Politécnica, USP, São Paulo, 2009; e Oscar de Vianna.Vaz. A Pedra e a Lei. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Escola de Arquitetura, UFMG, Belo Horizonte, 2005. 2 Informação disponível em Benedito de Godoy Moroni. Presidente Epitácio 100 anos da Fundação da Cidade. Presidente Epitácio: Do Autor, 2011, p.92. 3 Decreto Estadual nº 33.749, de 13 de outubro de 1958, que dispõe sobre a desapropriação de imóvel necessário à instalação da Penitenciária Regional local. Decreto Estadual nº 49.049, de Memorial da Resistência de São Paulo PROGRAMA LUGARES DA MEMÓRIA

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Penitenciária Regional de Presidente Venceslau

Endereço: Avenida Antônio Marques da Silva, s/n.

Presidente Venceslau, SP.

Classificação: Aparato Repressivo.

Identificação numérica: 020-01.020

A Penitenciária Regional de Presidente Venceslau, inaugurada no dia 05 de

dezembro de 1961, fica localizada a 610 km da cidade de São Paulo e foi projetada

para ser uma penitenciária de segurança máxima. Sua arquitetura está baseada no

modelo americano do Prison Design Briefing System (PDBS) que procura ressaltar as

áreas de integração entre detentos, valorizando os espaços de lazer e trabalho1. Sua

proposta é a reabilitação e ressocialização do detento.

A penitenciária foi construída na área do antigo Quartel de Presidente

Venceslau. A construção do quartel foi concluída em 1927 e veio substituir o primeiro

alojamento do 2º Regimento de Cavalaria da Força Pública do Estado de São Paulo

(que era um “racho de madeira” destinado a ser o cinema da cidade). O 2º Regimento

atuou na região até 1930, quando foi transferido para a capital2. O antigo quartel ficou

sem atividades até 1958, quando a edificação começou a ser reestruturada para se

tornar a Penitenciária Regional de Presidente Venceslau, que a partir de 2004 passou

a ser denominada Penitenciária I “Zwinglio Ferreira”3.

1 Para mais informações sobre o Prison Design Briefing Systen conferir o trabalho de Raquel Paslar. Estudo das instituições penitenciárias paulistas com ênfase na privatização do ativo imobiliário e na análise crítica da qualidade deste investimento. Monografia (MBA em Gerenciamento de Empresas e Empreendimentos na Construção Civil, com ênfase em Real Estate). Escola Politécnica, USP, São Paulo, 2009; e Oscar de Vianna.Vaz. A Pedra e a Lei. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Escola de Arquitetura, UFMG, Belo Horizonte, 2005. 2 Informação disponível em Benedito de Godoy Moroni. Presidente Epitácio 100 anos da Fundação da Cidade. Presidente Epitácio: Do Autor, 2011, p.92. 3 Decreto Estadual nº 33.749, de 13 de outubro de 1958, que dispõe sobre a desapropriação de imóvel necessário à instalação da Penitenciária Regional local. Decreto Estadual nº 49.049, de

Memorial da Resistência de São Paulo

PROGRAMA

LUGARES DA MEMÓRIA

2

O espaço carcerário, quando foi inaugurado, contava com uma série de

inovações, sendo, por exemplo, a única penitenciária da América do Sul, naquela

época, a possuir um chuveiro em cada uma das 400 celas, contando ainda com

oficinas de trabalho, padaria, lavanderia, câmaras frigoríficas, poços artesanais,

incineradores de lixo, consultórios médico e odontológico, farmácia e enfermaria. Na

penitenciária havia 280 funcionários e mais 130 guardas para a segurança4.

Sobre as estruturas internas da Penitenciária, destacamos aqui algumas

lembranças de Inocêncio Erbella, prefeito da cidade por três mandatos (1960/1964,

1969/1972 e 1977/1983):

Assim se construiu nesta Presidente Venceslau, com mão de obra dos presos, grande parte da Avenida que liga a Penitenciária à cidade; que se instalou dentro dela a fábrica de tubos e lajotas que permitiram a pavimentação de tantas ruas da cidade; que o hospital da Penitenciária oferecia excelente estrutura e lá prestavam serviços os mais eminentes médicos da comunidade; que congressos internacionais sobre sistemas penitenciários e leis de execuções penais, ali foram realizados; que pessoas da cidade assistiam filmes no cinema da Penitenciária; que enfeites de Natal da cidade, ali eram confeccionados; que livros eram encadernados; que times de futebol de salão da cidade disputavam torneios desportivos no recinto do presídio; que a banda da penitenciária se exibia nos festejos do município; que o majestoso cruzeiro que se levanta manso e esplendoroso no adro da Igreja Santo Antônio de Lisboa [...] foi construído na Penitenciária5.

A partir das memórias de Erbella se percebe que a Penitenciária era

considerada de excelência estrutural, e possuía uma estreita relação com a vida da

cidade, sobretudo no que diz respeito à produção de materiais.

A cidade de Presidente Venceslau foi escolhida para a construção da

Penitenciária Regional com o objetivo de que os detentos do oeste do estado de São

Paulo não precisassem se deslocar para a capital (distante mais de 600 km) para

cumprir suas penas. A proposta, associada ao objetivo de ser uma casa de

reabilitação, era que os detentos não fossem privados do convívio com suas famílias.

Assim, a lotação prevista para 400 homens buscaria atender as necessidades de

19 de outubro de 2004, que dispõe sobre denominação de penitenciária. Disponível em < http://www.al.sp.gov.br/>. Acesso em 07/04/2015. 4 Reportagem do jornalista Hermilo G Pacheco. Moderna penitenciária para a recuperação do condenado. Folha de São Paulo, São Paulo, p.5, 2 de maio de 1961. 5 Declaração de Inocêncio Erbella. “Venceslau e os presídios”. Integração Regional News, Presidente Venceslau, 07 de dezembro de 2012.

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Presidente Venceslau e das cidades vizinhas como Presidente Prudente, Assis, Santo

Anastácio, Rancharia, Martinópolis, Santa Cruz do Rio Pardo e outras6.

Entretanto, durante a ditadura civil-militar, essa penitenciária, contrariando a

proposta de permitir o convívio familiar dos presos, foi utilizada para o isolamento de

sete presos políticos que foram transferidos do Presídio Tiradentes, na cidade de São

Paulo. A transferência foi realizada em represália à greve de fome iniciada

concomitantemente em distintos presídios da cidade de São Paulo.

O INÍCIO DA GREVE DE FOME

No Presídio Tiradentes, entre os anos 1969 e 1973 chegaram a conviver

centenas de presos políticos oriundos de diversas organizações de esquerda. “Como

quase ninguém era libertado da prisão, chegamos a ter quase 400 presos políticos no

Presídio Tiradentes em meados de 1970”7. Como consequência, e associada à

necessidade de interromper a comunicação estabelecida entre eles dentro do

Tiradentes, em setembro de 1970 o governo decidiu, através do juiz-auditor da II

Auditoria Militar, Nelson Machado Guimarães, transferir 30 presos políticos para a

Casa de Detenção do Carandiru (onde permaneceram entre os presos comuns no

Pavilhão 8) e seis dominicanos para os quartéis da Polícia Militar. Ao longo do ano

seguinte, os presos denunciaram esta decisão das autoridades de separá-los,

enviando-os em pequenos grupos para outras penitenciárias; e com a ajuda de seus

familiares e advogados denunciavam também as precárias condições dos presídios,

as torturas sofridas pelos presos comuns e os assassinatos do “Esquadrão da Morte”8.

Apesar da lotação do Presídio Tiradentes, para os presos políticos era

importante permanecerem juntos, pois divididos em pequenos grupos se tornava mais

fácil de alguns serem assassinados durante as possíveis transferências, que eram

6 Reportagem do jornalista Hermilo G Pacheco. Moderna penitenciária para a recuperação do condenado. Folha de São Paulo, São Paulo, p.5, 2 de maio de 1961. 7 Declaração de Maurice Politi na obra de sua autoria Resistência atrás das grades. Rio de Janeiro: Garamond, 2012, p.22. O autor também transcreve partes do documento confidencial e reservado, datado de 13 de junho de 1972, que ele encontrou no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, no qual juízes de São Paulo escrevem ao STF informando sobre a política carcerária que está sendo adotada em relação aos presos políticos. 8 Nome dado à organização clandestina, formada por policiais civis e militares, que agia como grupo de extermínio. Segundo o testemunho de presos políticos, alguns presos comuns eram retirados das dependências do Presídio Tiradentes durante a madrugada e apareciam mortos na manhã seguinte em algum lugar da cidade, geralmente na periferia. O delegado Sérgio Paranhos Fleury foi o mais famoso comandante do Esquadrão, tendo sido inclusive chefe do Deops. Fleury participou da ação que resultou na morte de Carlos Marighela, perseguiu vários militantes de esquerda e, junto com o Esquadrão, é responsável pela morte de vários presos comuns. A organização começou a ser combatida ainda nos anos 1970 e perdeu forças após a morte de Fleury (em 1979, aos 46 anos) e do policial Mariel Mariscot. Para mais informações, conferir o livro de Hélio Bicudo, Meu depoimento sobre o Esquadrão da Morte. São Paulo: Martins Fontes, 2002 e também o livro de Percival de Souza, Autópsia do medo. São Paulo, Globo, 2000.

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utilizadas como estratégia da repressão para conter atos de resistência política

realizados mesmo dentro da cadeia, assim como observa Maurice Politi:

A partir de 1972, começamos a perceber um plano sistemático para separar os presos políticos. A estratégia era separar aqueles que a Justiça Militar considerava “recuperáveis” daqueles que, nas palavras do juiz-auditor Nelson Machado Guimarães [da II Auditoria Militar], “não tinham jeito e seguiam com suas loucuras mesmo presos”9

Lutando, portanto, pela reunificação de todos os presos políticos de São Paulo

em um mesmo cárcere, os militantes recolhidos no Presídio Tiradentes, juntamente

com cinco presos transferidos no dia 11 de maio de 1972 para a Penitenciária do

Estado, articularam uma greve de fome e informaram que só aceitariam a mediação e

a palavra do então arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns. A reivindicação

dos presos era o direito à vida e o retorno de todos os transferidos para o Presídio

Tiradentes.

A greve de fome se dividiu em duas fases: a primeira durou seis dias, entre 12

e 17 de maio de 1972, e a segunda, de 09 de junho a 11 de julho de 1972. Somando

os dois períodos foram 39 dias no quais os presos políticos beberam apenas água e

tomaram soro. Durante a primeira fase foi negociada com o dr. Werner Rodrigues,

diretor do Departamento de Institutos Penais do Estado (DIPE), que os militantes

seriam reunidos novamente no Tiradentes, cessando, portanto, a abstinência. Mas

como nos dias seguintes as transferências continuaram acontecendo, foi reorganizada

a greve que teve início após o traslado de sete presos políticos que se encontravam

na Casa de Detenção do Carandiru. Os sete foram informados no dia 07 de junho de

1972 que fariam “uma viagem para um destino desconhecido”10.

A PENITENCIÁRIA DO OESTE PAULISTA Na madrugada do dia 8 de junho de 1972 começava a transferência dos

seguintes presos: os freis dominicanos Fernando de Brito, Ivo do Amaral Lesbaupin e

Carlos Alberto Libânio Christo (Frei Beto), os camponeses Mário Bugliani e Manoel

Porfírio de Souza, o advogado Wanderley Caixe e o estudante Maurice Politi11. Dos

sete, apenas Mário Bugliani não foi transferido, pois, devido à primeira greve de fome,

encontrava-se muito debilitado e em tratamento.

Maurice Politi avalia em sua obra o porquê da escolha desses setes presos.

Durante sua pesquisa para a produção do livro, encontrou no Arquivo Nacional do Rio

9 Maurice Politi em Resistência atrás das grades. Rio de Janeiro: Garamond, 2012, p.26. 10 Maurice Politi, op. cit., p.37. 11 Carta Mensal do Deops, documento “confidencial” encontrado no Arquivo Público Mineiro. Data do documento: junho de 1972, p. 8.

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de Janeiro um documento que indica os prováveis motivos da transferência: Frei

Fernando foi o primeiro a assinar uma carta reivindicatória (um abaixo-assinado) dos

presos políticos durante o início da primeira fase da greve de fome, interpretada pelas

autoridades como rebelião. Diante da carta, o juiz Nelson Machado Guimarães da II

Auditoria Militar entendeu que o Frei e, portanto, seus outros dois companheiros

dominicanos estariam liderando o movimento, sendo necessário afastá-los dos demais

presos políticos. No entanto, transferir apenas os três evidenciaria a perseguição aos

freis (e, consequentemente, contra a ala esquerdista da Igreja). Sendo assim foram

escolhidos mais quatros presos que já tinham sido condenados em primeira instância

e que não teriam mais nenhum outro inquérito a responder, podendo ser afastados da

capital. Mas como já mencionado, o estado precário da saúde de Mário Bugliani o

impediu de ser trasladado, sendo transferidos os outros seis.

As transferências dos presos políticos eram situações oportunas para as

autoridades militares executarem os oponentes e forjar justificativas de morte ou até

mesmo desaparecer com os corpos12. Diante dessa possibilidade, o sentimento dos

militantes após o anúncio da “viagem para um destino desconhecido” foi o medo.

Começava também nesse momento a tortura psicológica.

Naquele momento, as batidas do coração aceleravam, as imagens dos sádicos, torturadores e dos suplícios passavam como um filme pelo pensamento e cada um se armava com “a ideologia, a cara e a coragem” para enfrentar as mais horrendas humilhações pelas quais pode passar um ser humano13.

Acordados às 4h30 da manhã do dia 08 de junho de 1972 e levados apenas às

7h30 para o pátio, os seis presos são instruídos e advertidos pelo juiz Nelson

Machado Guimarães, responsável pelo pedido de transferência. Maurice Politi narra

sobre esse processo de transferência em seu diário de prisão – o diário foi uma forma

de registrar tudo o que vinha ocorrendo com eles como segurança para o caso de

“sumirem” (uma vez que se encontravam isolados e sem que ninguém soubesse o

paradeiro deles):

Depois de ouvir sua “preleção”, fomos algemados dois a dois. Havia naquele pátio cerca de 20 homens armados até os dentes: metralhadoras, fuzis, revólveres, bombas. [...]. Entramos na parte

12 O livro-relatório Direito à Memória e à Verdade é uma publicação de 2007 da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR). Analisando o livro, que organiza e apresenta a história de militantes mortos e desaparecidos durante a ditadura civil-militar, observamos que algumas daquelas mortes ocorreram durante as transferências do preso político. Publicação disponível em: <

http://cemdp.sdh.gov.br/modules/news/index.php?storytopic=3&storynum=10>. Acesso em 24/04/2015. 13 Maurice Politi, op. cit., p.36.

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traseira de dois camburões, fechados totalmente. No primeiro, fomos eu e o Mané, junto com o que eles chamavam a “bagagem” dos seis – umas poucas roupas que trazíamos conosco desde o Tiradentes e alguns livros. No outro camburão foram os outros quatro companheiros, Beto algemado com Wanderley e Ivo com Fernando. Em cada camburão, além do motorista, cinco homens sentados nos dois bancos da frente: dois investigadores e três soldados da PM. Um terceiro carro, da “chefia”, com o delegado-geral encarregado da operação e mais quatro homens civis e policiais militares, dava cobertura. Ali, naquele caixote fechado, nada víamos. Depois de duas horas de viagem a primeira parada. Descemos escoltados para ir ao banheiro. [...]. Durante esta parada, fomos informados que voltaríamos ao lugar de origem. [...]. Ficamos uma hora parados, na porta da Detenção [Casa de Detenção do Carandiru], sem sair do camburão, aguentando o calor e tentando adivinhar o que ocorria através da pequena fresta que ficava na traseira o veículo. [...]. Às 11 horas, quase sete horas depois de nos terem acordado, reiniciamos a viagem. [...]. Sem nenhuma liberdade para nos movimentarmos e com as algemas a apertar-nos os pulsos, iniciávamos um dos dias mais terríveis já enfrentados. [...] Finalmente, às 9 da noite chegamos ao nosso destino. Descobrimos, então, que estávamos em Presidente Venceslau. [...]. Estávamos praticamente confinados aqui, já que a esta distância de São Paulo ficaríamos totalmente isolados14.

Após a chegada à Penitenciária, cada um deles recebeu um uniforme (camisa,

calça e calção cinza), uma toalha branca, dois lençóis, dois cobertores, uma colcha,

dois pratos, uma caneca e uma colher. Eles foram encaminhados para as celas após

tirarem as fotografias de registro de entrada na prisão.

Fomos finalmente encaminhados cada um para a “sua” cela no setor de enfermaria, que ficava num corredor totalmente branco que nos chamou a atenção. [...]. Na cela, um pouco maior que a da Detenção, apenas uma cama (com um colchão rasgado e velho), duas pedras de cimento, que funcionavam como mesa e banco, uma torneira e um “boi” [nome dado pelos presos comuns à privada]. Uma janela bastante grande dá para um jardim [...]15.

No dia seguinte, 09 de junho de 1972, os seis presos iniciam a segunda fase

da greve de fome que durou 33 dias e chegou a repercutir até na mídia internacional.

A reivindicação deles continuava a mesma: o direito à vida e a transferência de todos

os presos políticos para um único cárcere. Como avalia Maurice Politi, durante o

14 Maurice Politi, op. cit., p.40-43. 15 Maurice Politi, op. cit., p.44.

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lançamento de seu livro-diário16, a greve não atingiu os seus objetivos iniciais, mas

serviu como forma de resistência a outra possível divisão do grupo, isolando-os mais

ainda, ou até mesmo à possibilidade de serem mortos e desaparecidos.

Quanto à possibilidade de desaparecem, também Wanderley Caixe destaca

outros meios de se precaverem e informa que ali na Penitenciária de Presidente

Venceslau ele e os outros cinco foram apadrinhados, cada um por um bispo católico.

O padrinho de Wanderley foi Dom José Maria Pires, e que ele, assim como os demais,

trocava correspondências quinzenalmente com seus padrinhos.

Conheci D. José Maria Pires na Penitenciária de Presidente Venceslau, juntamente com Dom Thomas Balduíno e Dom Waldir Calheiros que vieram em visita aos seis presos políticos [...]. Nós havíamos sido removidos do convívio com outros presos políticos de São Paulo, pois achavam que éramos instigadores de greve de fome em protesto contra o governo da ditadura militar. Havia ainda o risco de nos fazerem “desaparecer”. Os presos políticos leigos. Cada Bispo assumiu a padrinhagem de um de nós. Ficávamos em correspondência uma vez a cada quinze dias. O meu padrinho foi Dom José Maria Pires. Aí fomos nos conhecendo mais e nos correspondíamos mesmo depois que eu havia saído da prisão17.

A Penitenciária de Presidente Venceslau foi construída para abrigar os

detentos da região, e aqueles seis prisioneiros políticos eram uma “novidade” tanto

para a administração da instituição, como para os demais presos. Como destaca Frei

Beto, os seis presos políticos em Venceslau foram encarcerados junto com presos

comuns, colocados sob o mesmo regime, no mesmo pavilhão, com o mesmo

uniforme. Não havia nenhuma diferença. Ele destaca ainda, que por ser um presídio

de segurança máxima, os detentos eram de alta periculosidade.

Quando nós fomos pra Venceslau nós tínhamos muito medo de sermos mortos. Isso seria muito fácil, bastava um guarda chegar pra um preso daquele, um dos mais perversos, e cantar a pedra de uma possível liberdade ou mesmo recompensa lá dentro “- Olha, dá uma estiletada nesses terroristas”. A gente tinha muito medo de sermos até violentados por esses presos e qual não foi a nossa surpresa ao constatar que eles tinham mais medo da gente do que a gente deles. Isso por causa da fama de terrorista. [...]. E foi muito interessante a convivência. Nós fomos protegidos pela fama de terroristas e, ao

16 Conversa do autor Maurice Politi com o público no Memorial da Resistência de São Paulo durante o lançamento do seu livro Resistência atrás das grades. Registro sem data. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=zbkqut3D_AA>. 17 Wanderley Caixe em entrevista com Marcos José de Oliveira Lima Filho. Uma investigação acerca da validade da Teoria Dialética do Direito a partir da verificação de sua utilização pelos advogados populares. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas). Centro de Ciências Jurídicas, UFPB, João Pessoa, 2012.

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mesmo tempo, ganhamos a confiança deles porque nós passamos a defender os direitos deles18.

Sobre o convívio dentro da Penitenciária, Frei Beto afirma que juntos, presos

políticos e presos comuns, realizaram uma série de atividades, como oficinas de

criação artística, grupo de estudos bíblicos e grupo de teatro - que chegou, inclusive, a

apresentar espetáculos para o público da cidade19. Já sobre a relação com a

administração da penitenciária, ele informa que

[...] para o diretor da penitenciária era desesperadora a nossa presença ali. Mas ele não podia fazer nada porque era uma imposição dos militares. Mas ele falava “Eu rezo todo dia pra ver vocês longe daqui”, mas teve que nos suportar lá por 16 meses20.

Sobre esse ponto, Maurice Politi também destaca a posição do diretor Zwinglio

Ferreira sobre a situação dos seis presos. Ao voltar à Venceslau para conversar com

profissionais da penitenciária depois de 36 anos, ele informa que teve a confirmação

do sr. Bonini – chefe da segurança da Penitenciária naqueles anos – e do dr. José

Hamilton – psiquiatra da instituição durante a greve de fome – que a ida dos presos

políticos tinha sido, do ponto de vista administrativo, totalmente “irregular”. “Chegamos

lá sem nenhuma documentação, que normalmente acompanhava cada preso

encaminhado à Penitenciária, e sem nenhuma instrução a respeito de quem éramos, o

que tinham de “fazer conosco””21. Dr. Zwinglio, durante a primeira conversa que teve

com eles, informou que “ele também só fora avisado sobre a nossa chegada na noite

anterior e nada sabia a respeito dessa transferência”22. Assim, podemos entender que

a preocupação e a prioridade das autoridades militares e do juiz-auditor da II Auditoria

Militar era, naquele momento, afastar aqueles presos da cidade de São Paulo.

A história da Penitenciária Regional de Presidente Venceslau, hoje

denominada Penitenciária I “Zwinglio Ferreira”, é um importante lugar de memória

sobre a história da ditadura civil-militar brasileira. A Penitenciária é uma evidência de

que não só nas capitais dos estados houve pessoas submetidas ao medo e/ou

violações de direitos, mas que também os atos de resistência contra o regime se

18 Frei Beto e Frei Fernando conversam com o público de “Sempre um Papo” durante o lançando o livro Diário de Fernando: Nos cárceres da ditadura militar brasileira. Belo Horizonte, 17 de junho de 2009. Disponível em < http://www.sempreumpapo.com.br/audiovideo/player.php?id=190>. 18 Maurice Politi, op. cit, p.43 19 Artigo de Frei Beto. Estações do Inferno. Correio da Cidadania, ano 4, nº 151, 17 a 24 de julho de 1999. Disponível em < http://www.correiocidadania.com.br/antigo/ed151/opiniao.htm>. 20 Frei Beto e Frei Fernando no programa “Sempre um Papo” durante lançamento do livro Diário de Fernando: Nos cárceres da ditadura militar brasileira. 21 Maurice Politi, op. cit, p.43. 22 idem.

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espalharam pelo interior do Brasil. A greve de fome realizada em 1972 na cidade de

Presidente Venceslau, que durou 33 dias, é uma dessas histórias.

Mas é importante lembramos também que, hoje em dia, as penitenciárias do

país continuam sendo palco de muitas violações. Para a Comissão Nacional da

Verdade, o Brasil deve aplicar a Lei de Execução Penal23, de 1984, e a Convenção

Americana sobre Direitos Humanos, ratificada pelo país em 1992, como forma de

combater a tortura, os abusos e a superlotação nos presídios. As duas leis, embora

aprovadas, nunca foram aplicadas em sua totalidade.

Segundo dados do Ministério da Justiça, publicados em reportagem da Carta

Capital do dia 10 de dezembro de 2014, há hoje no Brasil mais de 500 mil pessoas

presas, alocadas em presídios superlotados onde, em média, 17 presos ocupam o

lugar reservado para apenas dez. Diante disso, os presídios são locais onde a

violação múltipla dos direitos humanos ocorre sistematicamente24.

ATUALMENTE E/OU ACONTECIMENTOS RECENTES: No dia 16 de setembro de 1986 houve uma violenta intervenção policial na

Penitenciária Regional de Presidente Venceslau após uma rebelião dos detentos e

uma tentativa de fuga. Mesmo quando a situação já estava sob o controle da polícia,

14 presos foram mortos, sendo que a maior parte foi vítima de espancamento por

canos de ferro ou pedaços de pau após a ação da Polícia Militar e funcionários do

presídio25.

Já em 2008, o juiz da Vara de Execuções Penais de Tupã, Gerdinaldo

Quichaba Costa, denunciou que existe em São Paulo um regime de pena cruel, que

fere as principais resoluções internacionais de proteção dos direitos humanos e que

vai contra a legislação penal e a Constituição Federal. Esse regime, que vigora há

décadas nas penitenciárias do Estado de São Paulo, deixa o preso incomunicável e

funciona em celas especiais, chamadas de disciplinares, instaladas em praticamente

todas as unidades penitenciárias paulistas.

Para a punição da falta grave, chamada de castigo pelos agentes

penitenciários, são usadas celas especiais nos presídios, mas a normalidade com que

23 A Lei de Execução Penal (LEP) prevê a obrigação do Estado em proporcionar ao indivíduo que delinquiu sua reintegração à sociedade livre. Esta Lei é considerada um dos melhores instrumentos legislativos mundiais em relação à garantia dos direitos individuais dos detentos. 24 Reportagem de Marcelo Pellegrini. CNV alerta para a violação de direitos em presídios: Comissão da Verdade recomenda medidas que aceleram julgamentos, limitam as prisões provisórias e fiscalizam o sistema penitenciário. Carta Capital, versão digital. 10/12/2014. Disponível em < http://www.cartacapital.com.br/sociedade/CNV-alerta-para-a-violacao-de-direitos-em-presidios-1029.html>. Acesso em 09/04/2015. 25 Artigo de Fernando Salla, doutor em Sociologia pela USP e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP). De Montoro a Lembo: as políticas penitenciárias em São Paulo. Revista Brasileira de Segurança Pública, ano 1, edição 1, 2007, p. 72-90.

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a punição é adotada fez com que o governo de São Paulo criasse uma unidade

especial disciplinar, chamada de "unidade de castigo", que é a Penitenciária I “Zwinglio

Ferreira” de Presidente Venceslau.

Para Venceslau são encaminhados os detentos que têm castigo a ser cumprido

e não encontram celas disciplinares vazias em suas unidades por conta da

superlotação. Nessas celas (solitárias), algumas sem ou com pouca iluminação, eles

ficam enclausurados por até 30 dias, impossibilitados de receber visitas e de sair para

banho de sol, além de ter um espaço exíguo para locomoção (no máximo de 6 m²). As

portas são de metal maciço, com uma pequena portinhola; o único contato do preso é

com o agente penitenciário que fica do lado de fora e que, em alguns casos, controla o

uso da torneira e do sanitário. A medida, segundo o juiz, também é aplicada nos casos

em que uma pessoa chega pela primeira vez para cumprir pena num presídio e é

obrigada a ficar, por até 15 dias, numa solitária, a título de observação e segurança,

antes do convívio com os demais detentos. "Neste caso, o detento também tem sua

dignidade ofendida e seus direitos humanos desrespeitados", afirma o juiz26.

ENTREVISTAS RELACIONADAS AO TEMA O Memorial da Resistência possui um programa especialmente dedicado a registrar,

por meio de entrevistas, os testemunhos de ex-presos e perseguidos políticos,

familiares de mortos e desaparecidos e de outros cidadãos que

trabalharam/frequentaram o antigo Deops/SP. O Programa Coleta Regular de

Testemunhos tem a finalidade de formar um acervo, cujo objetivo principal é ampliar o

conhecimento sobre o Deops/SP e outros lugares de memória do Estado de São

Paulo, divulgando, desta forma, o tema da resistência e repressão política no período

da ditadura civil-militar.

- Produzidas pelo Programa Coleta Regular de Testemunhos do Memorial da

Resistência

FREIRE, Alípio Raimundo Viana; SEIXAS, Ivan Akselrud de; POLITI, Maurice.

Entrevista sobre militância, resistência e repressão durante a ditadura civil-

militar. Memorial da Resistência de São Paulo, entrevista concedida a Kátia Neves,

Cristina Bruno e Marcelo Araújo, em 11/09/2008.

26 A reportagem completa está disponível aqui: <http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI3315324-EI5030,00-Juiz+denuncia+regime+de+excecao+nas+prisoes+de+SP.html>. Acesso em 09/04/2015.

11

OLIVEIRA, Raimundo Moreira de Oliveira. Entrevista sobre militância, resistência e

repressão durante a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São Paulo,

entrevista concedida a Karina Alves Teixeira e Ana Paula Brito em 24/09/2014.

ROIG, Vicente Eduardo Gomes. Entrevista sobre militância, resistência e

repressão durante a ditadura civil-militar. Memorial da Resistência de São Paulo,

entrevista concedida a Karina Alves Teixeira e Paula Salles em 15/04/2014.

Outras entrevistas Sempre um Papo. Frei Betto lançando o livro “Diário de Fernando – Nos cárceres

da ditadura militar brasileira”. Entrevista de Frei Fernando de Brito e Frei Carlos

Alberto Libânio Christo (Frei Beto). Belo Horizonte, 17 de junho de 2009. Disponível

em < http://www.sempreumpapo.com.br/audiovideo/player.php?id=190>. Acesso em

07/04/2015.

Café com Q. Dayane Machado entrevista Maurice Politi. Presidente Prudente. s/d.

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-ZYnjdzQ_48>. Acesso em

09/04/2015.

DHPAZ Paraná. Depoimentos para a História - A Resistência à Ditadura Militar no

Paraná - Maurice Politi. Curitiba, 2013. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=r7rw40XWWww>. Acesso em 09/04/2015.

REMISSIVAS: Presídio Tiradentes; Casa de Detenção de São Paulo – Carandiru;

Convento Santo Alberto Magno - Convento dos Dominicano; Livraria Duas Cidades.

12

PLANTAS E MAPAS

Imagem 01: Localização da Penitenciária I “Zwinglio Ferreira” em Presidente Venceslau. Fonte: Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo.

Imagem 02: Imagem aérea da Penitenciária I “Zwinglio Ferreira” de Presidente Venceslau. Fonte: Google Earth.

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REFERÊNCIAS

BETO, Frei. Estações do Inferno. Correio da Cidadania, ano 4, nº 151, 17 a 24 de

julho de 1999. Disponível em <

http://www.correiocidadania.com.br/antigo/ed151/opiniao.htm>. Acesso em

09/04/2015.

CAIXE, Wanderley. Entrevista com Marcos José de Oliveira Lima Filho. Uma

investigação acerca da validade da Teoria Dialética do Direito a partir da

verificação de sua utilização pelos advogados populares. Dissertação (Mestrado

em Ciências Jurídicas). Centro de Ciências Jurídicas, UFPB, João Pessoa, 2012.

ERBELLA, Inocêncio. Venceslau e os presídios. Integração Regional News.

Presidente Venceslau, 07 de dezembro de 2012. Disponível em <

http://jornalintegracaopv.blogspot.com.br/2010_12_07_archive.html>. Acesso em

07/04/2015.

MORONI. Benedito de Godoy. Presidente Epitácio 100 anos da Fundação da

Cidade. Presidente Epitácio: Do Autor, 2011. Disponível em <

http://pt.calameo.com/read/0026539030d311c598db1>. Acesso em 06/04/2015.

PACHECO, Hermilo G. Moderna penitenciária para a recuperação do condenado.

Folha de São Paulo, São Paulo, 2 de maio de 1961. p.5.

POLITI, Maurice. Resistência atrás das grades. Rio de Janeiro: Garamond, 2012.

TERRA. Juiz denuncia regime de exceção nas prisões de São Paulo. 09 de novembro

de 2008. Reportagem especial para o Portal Terra. Acesso em 08/04/2015.

Disponível em < http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI3315324-EI5030,00-

Juiz+denuncia+regime+de+excecao+nas+prisoes+de+SP.html>. Acesso em

06/04/2015.

COMO CITAR ESTE DOCUMENTO: Programa Lugares da Memória. Penitenciária

Regional de Presidente Venceslau. Memorial da Resistência de São Paulo, São

Paulo, 2015.