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Texto a ser publicado, draft 2012 – C.F. Costa/ppgfil./UFRN MEMORIAL AUTOBIOGRAFIA FILOSÓFICA 1

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Texto a ser publicado, draft 2012 – C.F. Costa/ppgfil./UFRN

MEMORIAL AUTOBIOGRAFIA

FILOSÓFICA

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Prefácio “Sobre nós mesmos devemos calar-nos”, escreveu um filósofo chamado Kant. Com efeito, a vida da maioria de nós parece-me insignificante e mesmo ridícula demais para merecer vir a público. E não vejo a minha como exceção. Contudo, esse memorial restringe-se quase que apenas à vida do pensamento, que é o material mais apropriado para uma autobiografia filosófica, e a sua publicação só foi considerada por razões didáticas. Afinal, a compreensão das idéias costuma se tornar mais fácil quando elas são introduzidas na relação que elas têm com o seu aprendizado e desenvolvimento. E os intervalos recreativos próprios do gênero podem prover o leitor de algum descanso. É verdade que, apesar de meus esforços, nem tudo ficou transparentemente fácil. Mas em compensação, a filosofia costuma ficar mais interessante quanto mais difícil ela se torna.

Fevereiro 2012

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CONTEÚDO

1. A descoberta da cultura2. Compreendendo Wittgenstein

3. Duas formas de transgressão dos limites da linguagem4. Fenomenalismo sem idealismo

5. Fatos empíricos6. Revisitando a teoria correspondencial da verdade

7. O paradoxo da experiência privada8. Conhecimento sem o problema de Gettier

9. O cogito às avessas10. O que é a filosofia, afinal? E o que é ciência?

11. Método para desmontar juízos sintéticos a priori12. Ilusões céticas: refutação do ceticismo e prova do mundo externo

13. Projeto para dar cabo do problema humiano da indução14. Um paradoxo de fácil solução

15. Níveis de ação e a teoria dos cérebro triúno16. Livre arbítrio: refinando o compatibilismo

17. A natureza da consciência18. Estados mentais como estados neurofuncionais

19. O que faz uma pessoa ser a mesma pessoa?20. Como os nomes próprios referem?

21. Os fundamentos últimos da moralidade22. O inefável sentido da vida

23. Autocomprensão24. Recriando Deus

25. Perspectivas

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1. A descoberta da culturaVindo de uma família de pessoas educadas, mas pragmáticas, a descoberta da cultura chegou a mim como a superação de um preconceito. Primeiro foi com a música clássica. Quando tinha doze anos e me encontrava vivendo em uma pequena cidade isolada no interior do país, minha professora de música me informou que os maiores compositores clássicos haviam sido Bach, Mozart e Beethoven, o último deles já predisposto a certa “decadência romântica”. Isso me convenceu de que deveria haver alguma coisa por trás daquela estridente combinação de sons chamada 5ª Sinfonia, de modo que a coloquei para tocar mais de uma dezena de vezes, sem que nada acontecesse. Mas o que experimentei nas vezes que seguiram foi impressionante. O inicialmente anódino atropelo de sons começou a articular-se e a tomar vida, revelando-se capaz de me conduzir a um estado de êxtase emocional que eu nunca houvera experimentado antes. Fiz então o mesmo com o terceiro concerto de Brandenburg, de Bach, que no início me soava como um zumbido de abelhas, obtendo o mesmo e inacreditável resultado. A polifonia clássica é constituída de sequências harmônicas de sons que se incluem em outras sequências mais amplas, combinando-se ao mesmo tempo com uma variedade de outras sequências paralelas. Só a apreensão simultânea de toda essa integração de unidades melódicas é que permite a completa compreensão e fruição emocional de uma sinfonia, de uma cantata ou de um concerto barroco. Mas para tal é preciso antes – ao menos no meu caso – adquirir alguma familiaridade com a melodia, sabê-la o suficiente para antever as possíveis combinações de notas que virão a seguir e compará-las com as recém-ouvidas, na apreensão das unidades melódicas que as contêm. Não sei como é para as outras pessoas. Seja como for, a descoberta da música clássica fez-me compreender que pode haver outras dimensões da realidade que valham a pena conhecer, as quais se alçam muito acima do prosaico e para mim geralmente enfadonho mundo cotidiano. A compreensão da grande música marcou a minha primeira experiência importante no universo da cultura. Aos quinze anos, quando já morava só em Porto Alegre e me preparava para o vestibular para medicina, fiz a descoberta de uma maneira menos intuitiva e mais intelectual de explorar os sentimentos, que foi a da literatura clássica. Ela veio orientada pela leitura de Paulo Francis, cuja independência e brilhantismo únicos como crítico literário eu sempre admirei. Li-o em artigos hoje inacessíveis, como “Complexidade e Diversidade” (1958) e “A Modernidade de Shakespeare” (1960), cujo nível

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não ficava a dever ao de um Edmund Wilson.1 Foi através daquele crítico que cheguei a autores clássicos como Emily Brönte, Flaubert, Dostoiévsky, Tolstoy, Joyce, a Shakespeare e ao teatro grego, à poesia de Dante e T. S. Eliot, vindo a descobrir depois, por conta própria, um grande número de outros escritores, de Borges a Fernando Pessoa, de Henry Miller a Céline e Bukowski. Embora tenha ensaiado algumas incursões pessoais no terreno da criação artística, prefiro reservar os resultados para mim mesmo; nunca passei de um pintor amador, de um poeta imaturo e de um músico inábil. Mas na condição de apreciador, penso que a arte nos permite explorar o mundo dos sentimentos, que ela educa e amplia a nossa experiência emocional, auxiliando-nos assim a compreender mais profundamente tudo aquilo que tem a ver com a condição humana. Sem ela só podemos conhecer aquilo que casualmente nos acontece. Com ela todos os dramas do universo também podem ser nossos. Além disso, a grande arte é a única criação permanente do espírito humano, mais do que a filosofia. Sistemas filosóficos podem se tornar arcaicos, perder em atualidade e interesse. Trabalhos artísticos, como uma tragédia de Eurípedes ou uma cantata de Bach têm valor talvez atemporal. Foi também de forma autodidática que comecei a ler filosofia. Durante o curso de medicina a minha maior influência foi Freud. Não o li como um psicólogo, mas como um pensador especulativo a construir uma teoria de caráter filosófico com base em um material empírico ao qual tinha acesso privilegiado.2 Ainda hoje acredito que a teoria da relatividade de Einstein, a metapsicologia de Freud e a filosofia da linguagem de Wittgenstein foram as três mais extraordinárias produções intelectuais do século XX. E acredito que os meus ideais de clareza e sistematicidade em filosofia vieram da leitura de Freud. Afora isso, fui influenciado por críticos da cultura como Marx, Nietzsche e Schopenhauer, além de membros da escola de Frankfurt como Herbert Marcuse. Também li um pouco de Heidegger e dos intelectuais franceses, tendo me sentido particularmente atraído pelo existencialismo boêmio de Sartre. Embora já nessa época tenha feito tentativas de entender os grandes filósofos clássicos como Platão, Aristóteles e Kant, eles permaneciam fora do alcance de minha compreensão e assim haveriam de permanecer por um longo tempo. Movido pelo pragmatismo familiar, não me atrevi a me graduar no que realmente me interessava. Primeiro, tinha dúvidas sobre a minha aptidão. O trabalho com a filosofia depende, como penso, de um misto de intuição imaginativa e de elevada competência intelectual, a dificuldade consistindo em juntar essas duas qualidades concorrentes em uma só cabeça. Depois, mesmo que conseguisse produzir um trabalho filosófico minimamente relevante, que chances teria eu – que percebia na cultura um inevitável ato de violação de nosso entendimento fácil e habitual das coisas – em um país

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sem tradição filosófica, aonde uma discussão inovadora de idéias filosóficas nunca chegou a acontecer?3 Assim, por insegurança e precaução, e sabendo que uma vez graduado em medicina poderia ser aceito em um mestrado de filosofia, acabei terminando a minha graduação com internato no Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro, seguido de alguns anos de plantões em hospitais psiquiátricos, que me ajudaram a financiar estudos sobre coisas que realmente me interessavam.

2. Compreendendo WittgensteinFoi só em 1980, aos 26 anos, depois de duas tentativas frustradas, que fui aceito como aluno no mestrado de filosofia do IFCS (UFRJ). Meu interesse inicial foi em filosofia da cultura, que no Brasil sempre recebeu grande atenção. Ao fazer o mestrado segui primeiro os excelentes cursos de Gerd Bornheim, um professor capaz de expor de maneira clara e eloqüente a filosofia continental de Hegel a Sartre, passando por Heidegger. Meu primeiro projeto de tese foi sobre Nietzsche. Contra uma leitura como a de Michel Foucault, meu objetivo seria demonstrar que por trás da crítica nietzscheana à verdade como mero instrumento do poder havia um compromisso com a verdade dos valores nobres, em suma, com uma espécie de ética da virtude associada a sua doutrina da transmutação dos valores.4

Embora o projeto sobre Nietzsche tenha sido aceito, acabei me desinteressando dele ao descobrir Wittgenstein, um filósofo capaz de unir aforismos oraculares profundamente sugestivos com o rigor da lógica e do pensamento analítico. Ainda hoje creio que o pensamento de Wittgenstein possui uma abrangência e originalidade únicas na filosofia teórica contemporânea, acessíveis ao scholar, mas incapazes de serem capturadas a uma leitura superficial. Escrevi então, junto ao professor Raul Landin, um orientador apaixonado e exigente, uma tese que objetivava reconstruir uma teoria do significado vagamente sugerida nos fragmentos deixados pelo último Wittgenstein, mas que seria fundamento implícito da atividade de terapia conceitual em que a sua filosofia alegadamente consistia. Essa teoria do significado teria a forma, não de uma teoria científica, o que ele abominaria, mas de uma apresentação panorâmica (übersichtliche Darstellung) da gramática do conceito de significado. Para expor as idéias básicas quero começar me reportando à imagem que o último Wittgenstein fez da linguagem em seu Livro Marrom. Como ele lá escreve:

A linguagem do adulto apresenta-se aos nossos olhos como uma massa nebulosa, a linguagem ordinária, circundada de jogos de linguagem particulares, mais ou menos definidos, que são as linguagens técnicas.5

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Ou seja: a linguagem é como uma grande nebulosa, constituída de unidades semânticas que ele chama de jogos de linguagem. Para Wittgenstein o conceito de jogo de linguagem é plástico o suficiente para que essa nebulosa da linguagem possa ser multiplamente divisível em jogos de linguagem que podem se entrecruzar e se incluir entre si em hierarquias de complexidade crescente. Os jogos de linguagem vão desde os segmentos vários da linguagem cotidiana, como informar, perguntar, dar ordens, pedir (que formam o centro da nebulosa) até as linguagens especializadas da ciência, como o jogo da química e o da história (que formam as suas franjas). Um jogo de linguagem pode ser geralmente definido como qualquer sistema lingüístico de regras. Essas regras costumam ser sintáticas, semânticas e (principalmente) pragmáticas, de modo que o jogo de linguagem pode muitas vezes ser analisado em termos do que J.L. Austin e J.R. Searle mais tarde investigaram sistematicamente sob o nome de ‘atos de fala’. A nebulosa da linguagem, por sua vez, só pode crescer e se constituir no interior de uma forma de vida. A expressão ‘forma de vida’ tem o sentido de modo de vida de uma sociedade e, segundo consta, Wittgenstein teria se inspirado na leitura de um artigo do antropólogo Bronislaw Malinovski, o qual sugeriu que para aprender a língua de um povo primitivo precisamos compartilhar da vida em sua sociedade.6 Essa idéia ele ilustrou com um exemplo: quando os pescadores das ilhas Trobriandes usam a expressão ‘remamos em lugar’, isso quer dizer que eles estão próximos de uma aldeia, pois como as águas, mesmo próximas da praia, são profundas, varar a canoa é impossível e eles precisam usar os remos para chegar à aldeia. Somente se conhecermos o contexto em que os nativos vivem poderemos entender o que essa expressão quer dizer. Para Wittgenstein, os jogos constitutivos de nossa linguagem natural nascem espontaneamente de nossa forma de vida. Até mesmo os jogos mais especializados das ciências acabam sendo a ela ligados, pois eles pressupõem os jogos de nossa linguagem natural para serem criados, aprendidos e empregados. Um significado de uma expressão (palavra, frase) consiste para Wittgenstein em seu uso (Gebrauch). Mas a palavra ‘uso’ não é para ser entendida aqui como a mera ocorrência espaço-temporal da expressão, pois nesse caso cada palavra teria um número infinito de significados, um para cada ocorrência. A palavra ‘uso’ precisa ser entendida como modo de uso (Gebrauchsweise) ou modo de aplicação (Verwendungsweise), expressões também usadas por Wittgenstein. A noção de modo de uso ou de aplicação pode ser facilmente interpretada como uma combinação específica de regras determinadoras de usos singulares (considere o caso de um manual de instruções intitulado “MODO DE USO”, que contém uma seqüência de regras de uso). Para Wittgenstein as expressões só ganham significado

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através do seu uso em jogos de linguagem. Aqui pode ser feita uma analogia com o jogo de xadrez: nossos proferimentos são como lances com as peças de um jogo de xadrez, que só ganham significado por seguirem as regras ou as combinações de regras que justificam os movimentos nesse jogo. E os jogos de linguagem, como já notei, são sistemas de regras radicados em uma forma de vida. Conjuguei essas idéias concluindo que os significados ganhos pelas expressões são os seus usos segundo regras (modos de uso) de jogos de linguagem pertencentes a formas de vida. Ou seja:

Um significado de uma expressão = um uso dessa expressão segundo regras de um jogo de linguagem radicado em uma forma de vida.

Para o lingüista essa pode parecer uma teoria do significado demasiado vaga e rudimentar. Mas ela é adequada ao seu propósito, que é o de produzir uma apresentação panorâmica da gramática do conceito de significado que nos permita usá-lo como ferramenta para uma crítica da linguagem. A razão pela qual essa ferramenta é necessária é que para Wittgenstein uma expressão lingüística filosoficamente relevante é capaz de ganhar muito mais nuances de significado do que aparenta, variando essas nuances com o jogo de linguagem no qual ela pode ser empregada. A maior parte da filosofia, por causa disso, é para ele constituída de confusões lingüísticas, castelos de cartas, nós do pensamento que o filósofo produz ao nutrir-se de uma “dieta unilateral” de exemplos, na perseguição de grandes generalizações, que não passam de “falsas imagens” de como as coisas devem ser. Essas confusões lingüísticas constituem-se de equívocos e misturas entre os sentidos diversos que as expressões deveriam ganhar ao serem usadas segundo as regras dos diferentes jogos de linguagem, ou seja, na transgressão das fronteiras entre um jogo e outro. Contra essas tentações, o filósofo wittgensteiniano deve buscar restringir-se a uma terapia semântico-conceitual que dissolva as confusões lingüísticas pela descrição dos usos efetivos das expressões nos jogos de linguagem que lhes são apropriados, realizando assim um mapeamento mais explícito de sua gramática, que pode incluir apresentações panorâmicas. Essa reconstrução da concepção wittgensteiniana de significado permite esclarecer melhor porque e como confusões lingüísticas podem muitas vezes ocorrer na filosofia – sem, é claro, endossar a tese inaceitável de que a filosofia se reduz a elas.7

Para Wittgenstein, a razão subjacente às confusões lingüísticas é que os significados das palavras em nossos jogos de linguagem ordinários são aprendidos de forma não-cognitiva, por adestramento (Abrichtung). Como conseqüência, não temos consciência de suas regras, nem das maneiras

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como elas são aplicadas de modo a dar às expressões significado. Por isso somos propensos, no esforço de alcançar generalizações filosóficas, a confundir as complexas regras de aplicação de palavras que estão no centro de nosso entendimento do mundo (como ‘verdade’, ‘conhecimento’, ‘significado’, ‘bem’, ‘justiça’, ‘beleza’...), fazendo-as transgredir as fronteiras que existem entre os seus usos segundo as regras dos diferentes jogos de linguagem. A terapêutica filosófica propugnada por Wittgenstein é uma espécie de filosofia que visa tornar as confusões filosóficas claras ao contrastá-las com exemplos de usos corretos das expressões na linguagem natural; usos que as trazem, em seu dizer, de suas férias filosóficas de volta para o seu labor cotidiano. Como já fiz notar, para Wittgenstein as confusões filosófico-lingüísticas emergem do fato de que uma mesma expressão pode ser geralmente usada em mais de um jogo de linguagem, ganhando nuances de significado diferentes de acordo com as regras do jogo no qual a usamos. Como não temos consciência dessas sutis diferenças de uso, nossa ânsia de generalização facilmente nos impele a incorrer em ilícitas transgressões das fronteiras entre os modos de uso diversos de uma mesma expressão em um e em outro jogo de linguagem.

3. Duas formas de transgressão dos limites da linguagemComo suplemento (não defendido) de minha tese8, fiz uma investigação das duas maneiras básicas pelas quais as fronteiras entre os jogos de linguagem poderiam ser transpostas. Fiz isso tendo como base o que Freud identificou como sendo os dois mecanismos fundamentais do processo primário: o deslocamento (Verschiebung) e a condensação (Verdichtung)9. Por esses mecanismos cargas afetivas não-conscientes são liberadas na consciência, diminuindo a tensão endopsíquica. Assim, no deslocamento a carga afetiva associada a uma representação R1 reprimida é deslocada para uma representação R2 (parecida ou de algum modo relacionada a R1) que é capaz de se tornar consciente, liberando consigo a carga afetiva. Já na condensação a carga afetiva de um agrupamento de representações {R1, R2... Rn} é concentrada em uma de suas representações, digamos, R2, que emerge na consciência de modo a liberar carga afetiva. Para Freud não só os sintomas neuróticos e sonhos são resultados do processo primário, mas também a arte, a religião e a filosofia. Como conseqüência, é um corolário da teoria freudiana que esses mecanismos devem estar presentes também na atividade filosófica. Ora, minha sugestão foi a de que a filosofia terapêutica de Wittgenstein tem uma explicação de como isso pode acontecer no caso da filosofia. As transgressões das fronteiras da linguagem em filosofia também seguem os mecanismos de deslocamento e condensação. Essas transgressões ocorrem por deslocamento quando usamos uma expressão em um jogo de

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linguagem, preservando o modo de uso, ou seja, segundo as regras que ela tem em outro – esse é o uso equívoco da expressão. Já as transgressões ocorrem por condensação quando misturamos os modos de uso que a mesma expressão tem, tentando fazê-la seguir as regras de dois ou mais jogos de linguagem simultaneamente – esse seria o uso da expressão que poderia ser propriamente chamado de confuso.10 Também poderia haver nesses casos uma correspondente liberação de cargas afetivas a justificar o processo. Exemplos filosóficos em que esses mecanismos ocorrem costumam ser demasiado complexos e contestáveis. Por isso quero considerar casos muito simples. Consideremos primeiro um caso de deslocamento. O filósofo grego Estilpão negava a possibilidade de predicação, pois para ele, sempre que dizemos que alguma coisa é algo, estamos dizendo que ela não é o que é. Por exemplo: se digo que Sócrates é sábio, caio em contradição, pois estou negando que Sócrates é Sócrates... Em resposta a isso podemos identificar o equívoco como resultado do deslocamento do uso do verbo ser no sentido de identidade, que acontece em jogos de linguagem do tipo A, nos quais se pode dizer, por exemplo, que Sócrates é (idêntico a) Sócrates, para o seu uso em jogos de linguagem do tipo B, nos quais esse verbo deveria ter um sentido tipicamente predicativo, por exemplo, nos proferimentos “Sócrates é calvo” e “A rosa é vermelha”. Estilpão usa equivocamente o verbo ‘ser’ no contexto de jogos do tipo B preservando o sentido (ou seja, seguindo regras de uso) que ele tinha no jogo A, como se não houvesse outro. Percebendo que isso é impossível ele reage negando a possibilidade de predicação. Para um exemplo de condensação, considere a sugestão de alguns filósofos de que o verbo ser deve ter um sentido unívoco originário, que tanto é de identidade quanto predicativo quanto mesmo existencial. Como comprovação disso já foi apresentada a frase: “O ser é ser”, com a qual se pretendeu afirmar que aqui o ‘é’ tem uma propriedade única, superior a da mera identidade em frases como “O Sócrates é Sócrates”, pois que subsume também, simultaneamente, tanto a predicação da “seridade” do ser quanto a de sua própria existência. Contra tal sugestão, o filósofo da linguagem corrente notará que é muito mais plausível que a frase “O ser é ser” forme apenas uma incoerente mistura de sentidos, ou seja, uma mera confusão decorrente da condensação de três usos da mesma palavra, advindos de três jogos de linguagem distintos: do tipo A (de identidade: “ser = ser”), do tipo B (predicativo: “Do ser se predica o ser”) e do tipo C (de existência: “O ser existe”), do que resulta no melhor dos casos ambigüidade e no pior confusão e impossibilidade gramatical. Por que é importante esclarecer a concepção de significado na última filosofia de Wittgenstein? Ora, porque ela foi para ele como a doutrina das idéias para Platão: cerne de sua filosofia e patrimônio inafiançável de seu

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pensamento. Afinal, é por ser articulada sobre esse pano de fundo que a elucidação filosófica terapêutica, a crítica da linguagem por ele intentada se torna eficaz. Minha tese de mestrado recebeu summa cum laudae de uma banca examinadora presidida pelo professor Guido Antônio de Almeida, em minha opinião o mais competente avaliador imaginável. A boa tese de mestrado não me ajudou a ser aceito para o doutorado em filosofia no IFCS (que rejeitou mais duas outras tentativas minhas), mas acabou me valendo uma aceitação, da parte do professor Balthazar Barbosa, de ser o meu orientador no doutorado do CLE da Unicamp, o qual creio ter sido por essa época o centro de filosofia de mais alto nível na América do Sul. Permaneci lá durante o primeiro semestre de 1984 e minha lembrança mais marcante foi a do curso do professor Oswaldo Porchat sobre a Lógica da Investigação Científica, de Popper, além do agradável ambiente com os colegas e dos acalorados debates, habilmente conduzidos pelos professores Balthazar Barbosa e Zeljko Loparic.

4. Fenomenalismo sem idealismoTendo recebido uma bolsa de estudos da Capes para um doutorado na Universidade de Konstanz, na Alemanha, abandonei a Unicamp para, no segundo semestre de 1984 ir cursar alemão no Goethe Institut de Freiburg i.B. Este tempo junto a estudantes dos mais diversos países foi dos mais interessantes, mas como os pontos de interesse não eram propriamente intelectuais, prefiro deixá-los à imaginação do leitor. Embora a Universidade de Konstanz tivesse bons professores de filosofia, como Friedrich Kambartel, Jürgen Mittelstrasse e, especialmente, Albrecht Wellmer, além da melhor biblioteca de filosofia que já encontrei, os anos que lá passei não foram, certamente, dos mais produtivos, a não ser em termos de passeios de bicicleta e caminhadas pelas montanhas da Suíça. Eu não tinha base filosófica para acompanhar os seminários de pesquisa para pós-graduandos realizados por Kambartel e Wellmer, e a alternativa que me restou foi seguir uma agenda pessoal, autodidática. A falta de base também limitou o tema de minha dissertação. Decidi fazer de minha tese de doutorado um aprofundamento da tese de mestrado junto ao professor Gottfried Gabriel como co-orientador e ao professor Kambartel como orientador formal. Mesmo assim, foram necessários cinco anos para terminá-la, sob o título de Wittgenstein’s Beitrage zu einer sprachphilosophischen Semantik (a contribuição de Wittgenstein para uma semântica filosófica). Escrita por oposição à interpretação deflacionária de Kambartel, essa tese recebeu como nota um esperado “gut” (bom).11

Pessoalmente, ainda hoje considero essa tese uma reconstrução relevante, embora em certos pontos defectiva, de uma variedade de sugestões semânticas de Wittgenstein, mostrando que muito de sua crítica

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da linguagem fundamentava-se em insights teoréticos que formavam, digamos assim, o indispensável princípio ativo de suas poções terapêuticas.12

Em Konstanz tive como colegas e amigos os hoje professores Fernando Rodrigues e Fernando Fleck, que possuíam um conhecimento de filosofia muito mais sólido do que o meu e com os quais muito aprendi, além do auxílio de Wilson Mendonça, que na época trabalhava naquele departamento como professor convidado. Lembro-me de, após ter lido em um texto de Ernst Tugendhat que o termo singular precisa ter uma regra de identificação do objeto ao qual ele se refere, ter apresentado a um incrédulo Fernando Rodrigues uma idéia epistemológica que acreditava original. O que chamamos de existência de um objeto físico, disse-lhe eu, é a efetiva aplicabilidade da regra de identificação do termo singular que o nomeia. Ou seja: dizer que um objeto existe é dizer que a sua regra de identificação é efetivamente aplicável, nomeadamente, dizer que ela tem a sua aplicabilidade efetiva, ou seja, não virtual, mas real, a qual é direta ou indiretamente garantida por intermédio de atos verificacionais potencialmente interpessoais pelo período em que o objeto puder ser dito existente. Sendo assim, conclui, o objeto físico existente – tal como ele é conhecido por nós – só pode ser essa mesma regra de identificação, melhor dizendo, os próprios critérios constitutivos por ela gerados, considerados sob o ponto de vista de sua garantida aplicabilidade. Fiquei tão impressionado com essa idéia que cheguei mesmo a escrever um texto sobre ela e a entregá-lo ao professor Gabriel, que o considerou demasiado obscuro e, para todos os efeitos, falso. “Se bato com a cabeça nessa estante”, disse-me ele, “não bato com a cabeça em uma regra de identificação, mesmo que a sua aplicabilidade tenha sido garantida”. Meses depois, pesquisando na biblioteca, descobri que a minha idéia não era nem tão original nem tão absurda assim! Afinal, J.S. Mill havia explorado uma intuição não muito distante da minha no século XIX, com a sua tese de que a matéria é a permanente (garantida, comprovada) possibilidade de sensações.13

Embora tenha, ainda em meu tempo em Konstanz, chegado a defender a plausibilidade da tese de Mill em minha avaliação oral (mündliche Prüfung) sob a orientação do professor Wellmer, dei por encerrado o estudo dessa questão por muito tempo até o ano 2002, quando voltei a considerá-la.14 Pude então introduzir o que creio serem algumas correções e refinamentos no fenomenalismo não-idealista proposto por Mill. Não creio que a sua obscura, mas em minha opinião profunda intuição, seja exata. Para tentar precisá-la procurei substituir a noção de sensação pela noção mais neutra de conteúdo sensível (tradicionalmente sense-datum) e deixei de lado a obscura noção de matéria, atendo-me essencialmente ao caso

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típico dos objetos materiais de tamanho médio, como o ponto de partida mais natural. Um objeto físico dado à experiência sensível é-nos dado a cada vez sempre como um diverso complexo aspectual de conteúdos sensíveis visuais, auditivos, táteis... e nada mais. Não podemos experienciá-lo de outra maneira, que não por intermédio de conteúdos de sensações, até mesmo quando indiretamente dados. Os complexos de conteúdos sensíveis concernentes às experiências que temos de um objeto físico são ilimitadamente múltiplos e variáveis. Por isso, para que a identificação seja possível, eles precisam ser unificados por meio de alguma espécie de regra de identificação. É tal regra que deve caucionar, por exemplo, que eu identifique visualmente e tactilmente o meu chapéu de pano. Chamei o conjunto aberto de complexos de perceptos unificáveis através de uma regra de identificação de multicomplexo de conteúdos sensíveis. Identificando-se ao meu chapéu de pano e a qualquer objeto físico deve haver, pois, um multicomplexo de conteúdos sensíveis garantidamente experienciáveis e necessariamente unificáveis por uma regra identificadora. Com base nisso pude redefinir a intuição de Mill de uma forma que me pareceu mais adequada. O que chamamos de a existência de um objeto material (e não a da matéria) nada mais é do que a efetiva e contínua possibilidade de que sejam experienciados complexos de conteúdos sensíveis identificados como elementos de um multicomplexo de conteúdos sensíveis unificáveis através de uma regra de identificação, sendo essa garantia dada por atos verificacionais virtualmente intersubjetivos, diretos ou indiretos. Assim, digo que o meu chapéu de pano existe porque quase diariamente tenho a experiência verificacional de variados complexos de conteúdos sensíveis do tipo o-meu-chapéu-de-pano, o que me convence que o conjunto de complexos de perceptos, ou seja, o multicomplexo de perceptos do tipo o-meu-chapéu-de-pano, é efetivamente e continuamente aberto à experiência em situações específicas. Ora, se a existência de o-meu-chapéu-de-pano é a garantida expe-rienciabilidade, em situações adequadas, de complexos de conteúdos sensíveis pertencentes ao multicomplexo gerado por uma regra de identificação, então o próximo passo será sugerir que aquilo que chamamos de o objeto existente ou real deva ser de algum modo parafraseável em termos de um multicomplexo de conteúdos sensíveis garantidamente possíveis. Como notei, esse multicomplexo só pode ser experienciado por partes, nunca inteiramente. Essas partes seriam os complexos de conteúdos sensíveis que, com base (direta ou indireta) em atos verificacionais, sabemos que garantidamente podem, em circunstâncias adequadas, ser experienciados, o que nos permite inferir a existência efetiva e contínuada dos elementos aspectuais não experienciados do multicomplexo. Meu chapéu de pano real nada mais é, pois, que certo multicomplexo de conteúdos sensíveis cujo acesso experiencial é garantidadamente possível.

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Suponhamos, para demonstrar o alcance dessas considerações, que eu esteja usando o meu chapéu de pano à vista de todos. Cada um dos que o vêem tem experiência de um complexo de conteúdos sensíveis do tipo o-chapéu-de-pano. Esse é um ato verificacional intersubjetivo no qual cada um formou uma regra de identificação capaz de gerar um multicomplexo de sensações garantidamente experienciáveis que sempre é passível de experienciação parcial através de complexos de sensações a ele pertencentes. Imagine agora que eu coloque o meu chapéu de pano no bolso. Eu ainda posso afirmar que ele existe, e todos concordarão. O que nos autoriza essa conclusão? Ora, o fato de que a experiência verificacional nos garantiu que esse multicomplexo de conteúdos sensíveis pode voltar a ser (parcialmente) verificado a qualquer momento por mim e por todos. Mas não é só o chapéu que se apresenta como um multicomplexo garantidamente, continuamente aberto à experiência – um objeto existente. Todos os objetos do lugar onde me encontro se apresentam assim. Também as pessoas que nele se encontram se demonstram como multicomplexos de conteúdos sensíveis, diversamente experienciados por mim e por elas mesmas. E mesmo o meu eu subjetivo, enquanto um eu fenomenal (supostamente o único a ter existência real), não se distingue de outros multicomplexos de conteúdos sensíveis subjetivos garantidamente atualizáveis. O próprio mundo, como uma totalidade multiplamente divisível em “objetos”, poderia ser concebido como um imensurável multicomplexo de multicomplexos... de multicomplexos de conteúdos sensíveis. Quando dizemos que o mundo existe ou que é real, uma coisa que queremos dizer com isso é que nós o consideramos garantidamente ou continuamente experienciável com base em nossas experiências verificacionais passadas, virtualmente intersubjetivas de conteúdos sensíveis, tanto diretas quanto indiretas. Essa tese pode à primeira vista parecer estranha, mas experiências com realidade virtual e filmes como The Real Thing parecem torná-la mais plausível. O que esses casos demonstram é a possibilidade de concebermos todo um mundo idêntico ao nosso como um imenso multicomplexo de multicomplexos... de conteúdos sensíveis garantidamente possíveis. Em filmes como os mencionados é sempre suposta a existência de uma realidade verdadeira, que gera a realidade virtual. Mas é importante notar que mesmo essa realidade não-virtual também pode ser completamente concebida como constituída de multicomplexos de conteúdos sensíveis gantidamente experienciáveis, o que torna gratuita a suposição de que precisa haver um substrato material para além de conteúdos sensíveis efetivamente possíveis (o paradoxo do filme The Real Thing, no final, é que as pessoas acabam não sabendo mais em que mundo se encontram: se no mundo real ou em algum dos muitos mundos virtuais15).

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Ora, considerando-se que (1) não faz sentido pensar que deva existir um mundo verdadeiramente real “por trás”, o qual, por não ser constituído de complexos de conteúdos sensíveis garantidamente experienciáveis, o qual em princípio jamais poderá ser verificado, e considerando-se também que (2) todo o mundo parece poder ser construído como consistindo tão somente de combinações de conteúdos sensíveis efetivamente e continuamente experienciáveis (como o sugerem as experiências com realidade virtual), parece razoável pensarmos que o mundo real deva em princípio poder ser concebido somente em termos de combinações de elementos que podem ser direta ou indiretamente dados à sensação, ou seja, em termos fenomenalistas. A tese fenomenalista que acabo de expor abre-se a um grande número de objeções. A mais séria delas, que não posso deixar de considerar aqui, é a seguinte. Mesmo que um multicomplexo de conteúdos de sensação se torne garantidamente atualizável, ele continua sendo constituído de sensações. Uma sensação que é continuamente experienciável não deixa por isso de ser uma sensação existente no domínio do possível e não do atual. Mas sensações são entidades psicológicas, subjetivas, privadas. Por conseguinte, o multicomplexo continua sendo algo pertencente ao nosso mundo psicológico e não ao mundo físico. Por conseguinte, a aceitação do fenomenalismo acaba por comprometer-nos fatalmente com o idealismo ou com o imaterialismo, que são posições filosóficas de muito difícil aceitação. Para fazer frente a essa objeção uma possibilidade é sugerir que em algumas circunstâncias o conteúdo de sensação possua uma face de Janus, ou seja, que em certos casos ela admita ser tanto psicologicamente quanto fisicamente interpretável. Se ao olhar para um objeto imóvel à distância, eu aperto o canto do globo ocular com o dedo, vejo o objeto se mover para o lado oposto. Isso demonstra sem sombra de dúvida que vejo o objeto através de um “véu de sensações”, que o conteúdo de sensação que tenho do objeto é psicológico e que depende do movimento de meu globo ocular e não do próprio objeto. Mesmo assim, ainda me julgo intuitivamente autorizado a dizer que o conteúdo do que vejo é realmente o próprio objeto, tal como ele é, o qual apenas parece ter-se movido. Posso inclusive explicar porque é assim dizendo que pelo meu dedo ter alterado a posição do meu globo ocular, a perspectiva sob a qual vejo o objeto foi também alterada, fazendo com que tivesse a impressão de que o objeto se moveu, mas que ele está certamente imóvel, posto que não se reduz a sensações psicológicas! Qual a maneira de ver correta? Como notei, uma possibilidade é admitir as duas interpretações como sendo corretas, ganhando o conteúdo sensível um status psicológico ou físico, dependendo da interpretação que dele fazemos. Se fizermos uma interpretação em termos psicológicos, o conteúdo será constituído de perceptos, de

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sensações. Mas se fizermos uma interpretação do mesmo conteúdo sensível em termos fisicalistas, esse conteúdo passa a ser visto como sendo constituído de objetos localizados no mundo externo. A importante questão torna-se agora: o que caracteriza essa interpretação fisicalista do conteúdo sensível efetivamente e continuamente experienciável? Minha sugestão é a de que aquilo que caracteriza a interpretação fisicalista do que é dado como conteúdo sensível é a satisfação do que chamo de critérios de realidade externa, todos eles lembrados na tradição epistemológica de Locke a Berkley e a Hume e a Mill, passando por Kant. Eis os principais critérios de realidade cuja satisfação nos permite interpretar conteúdos sensíveis como constituído de propriedades formando objetos no mundo externo:

(a) A posse de máxima intensidade experiencial pelo conteúdo sensível. (b) O conteúdo sensível é independente da vontade. (c) A localização do conteúdo sensível dentro de um contexto de outros conteúdos (de outros objetos) que seguem as leis físicas. (d) O acesso verificacional intersubjetivo potencial permanente desse conteúdos (a permanente possibilidade de sensações).

Quando o conteúdo sensível efetiva e continuamente experienciável não satisfaz o conjunto desses critérios, ele é naturalmente interpretado como sendo de natureza puramente psicológica. Mas quando ele demonstra satisfazer todos esses critérios, ele se torna duplamente interpretável: ele ainda pode ser interpretado como um conteúdo psicológico, certamente, uma vez que tal conteúdo psicológico certamente nos é dado. Mas ele também pode ser interpretado como pertencente ao mundo externo, pois no sentido mais usual da palavra, eu diria mesmo definicionalmente, tudo o que dele é exigido para ser considerado como pertencente ao mundo externo é a satisfação dos critérios de realidade externa.16 Os objetos constituintes desse conteúdo precisam ser demonstráveis como possuindo máxima intensidade sensorial, independência da vontade, sempre que atualizado na experiência em condições apropriadas e na dependência de leis físicas, sendo tudo isso susceptível de confirmação intersubjetiva etc. (Observe que nesse sentido usual da expressão ‘realidade externa’ nada tem a ver com o da dúvida cética: o mundo ilusório alucinado pela alma enganada pelo gênio maligno continua sendo externo e real no sentido indicado, embora ele não seja realmente externo nem real no sentido usado pelo cético. Voltarei a esse ponto na seção 12). Quando consideramos o que chamei de objetos constituintes dos conteúdos sensíveis que satisfazem os critérios de realidade externa, uma maneira de analisá-los é considerando-os como sendo constituídos de

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‘propriedades singularizadas’ – aquilo que hoje em dia se convencionou chamar de tropos. Meu prezado professor Gabriel não poderia, é verdade, bater com a cabeça na regra de identificação de sua estante, nem em suas sensações psicológicas atuais, mas é bem provável que ele pudesse bater com a cabeça em certo multicomplexo de propriedades singularizadas, cujo critério de existência seja a sua apresentação como conteúdos sensíveis que satisfazem critérios de realidade e que por isso mesmo se demonstram efetivamente, continuamente, garantidamente atualizáveis. Admito que uma defesa satisfatória do fenomenalismo demandaria muito mais do que isso. Não obstante, parece-me um engano pensar que se trata de um projeto irremediavelmente fracassado, de um cavalo morto da filosofia contemporânea, como muitos parecem acreditar.17

5. Fatos empíricosAo voltar para o Brasil em 1990 vim trabalhar como professor recém-doutor na PUC do Rio de Janeiro. Nessa época escrevi um pequeno artigo intitulado “Fatos empíricos”, criticando a idéia defendida por P.F. Strawson de que tais fatos são constructos lingüístico-conceptuais (“correlatos pseudo-materiais”) e não entidades existentes no mundo real.18 Segundo os seus argumentos, os fatos empíricos não estão no mundo, sendo intrinsecamente diferentes dos eventos, que estão no mundo. Por isso os eventos são facilmente localizáveis e datáveis, enquanto os fatos não. O evento da travessia do Rubicão por César deu-se em 47 a.C. Mas o fato de que César atravessou o Rubicão não se deu em tempo algum, como demonstra o uso da cláusula-que após a palavra ‘fato’... Penso ter ajudado a mostrar que os argumentos contra a realidade empírica dos fatos ditos empíricos são todos neutralizáveis. Minha idéia básica foi a de que o conceito de fato não se opõe ao de evento, como se havia pensado, mas o inclui, de modo que palavras como ‘evento’ e ‘estado de coisas’ são hipônimos da palavra ‘fato’. O conceito de fato é um “conceito guarda-chuva”, aplicando-se a associações de entidades tanto formais quanto empíricas, as últimas podendo ser tanto estáticas (definíveis como as que não se alteram internamente enquando duram) quanto dinâmicas (definíveis como as que se alteram internamente enquanto duram). Eis o esquema:

Estáticos (condição, situação, estado de coisas...)

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Empíricos Dinâmicos (evento, ocorrência, processo...) Fato

Não-empíricos

Eis porque posso falar do fato da Mula mancar (uma condição, caracterizada pela atribuição de uma propriedade não-relacional a algo) do fato da vassoura estar no canto (um estado de coisas, caracterizado como relação entre entidades) assim como do fato de César ter atravessado o Rubicão (um evento) e do fato do clima estar se aquecendo (um processo, caracterizado como um evento de maior duração). Essa é a razão da palavra ‘fato’ ser ideal para identificar o fazedor da verdade (o truth-maker) na teoria correspondencial da verdade, pois o fazedor da verdade pode ser tanto uma situação quanto um estado de coisas, tanto um evento quanto um processo. A descrição de eventos, ocorrências e processos tende a excluir a cláusula-que. Não se diz “o evento de que César atravessou o Rubicão”, nem “O processo de que transição para a era da informática está em curso”. Onde a cláusula-que aparece mais tipicamente é após palavras como ‘situação’ e ‘estado de coisas’ como na locução ‘a situação de Sócrates de que ele era visto como corruptor da juventude’ e ‘o estado de coisas de que o livro está sobre a mesa’. Como vimos, situações e estados de coisas são associações estáticas de elementos, também abarcadas pelo conceito de fato. Sugeri então que a cláusula-que serve para marcar fatos estáticos, sendo simplesmente esta a razão pela qual ela está ausente na descrição de fatos dinâmicos. Por sua dupla abrangência a palavra ‘fato’ é mais flexível, admitindo tanto cláusulas-que (como em ‘o fato de que César atravessou o Rubicão’) como a ausência delas (como em ‘o fato da travessia do Rubicão por César’), tanto para estados de coisas (estáticos) quanto para eventos e processos (dinâmicos), e não por se referir a algo que não está no mundo, como supunha Strawson.19

6. Revisitando a teoria correspondencial da verdadeEm 1992 fui admitido por concurso na UFRN, em Natal. Meu objetivo era fazer uma breve aventura pelo Nordeste, que já dura 19 anos. A razão de minha escolha foi a busca de liberdade intelectual, de um ambiente no qual as dissonâncias cognitivas que a cerceiam pudessem ser reduzidas a um mínimo. Nos primeiros anos em Natal procurei aumentar meu conhecimento da tradição filosófica, ministrando cursos introdutórios sobre os grandes filósofos da tradição, como Platão, Aristóteles, Descartes, Spinoza,

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Leibniz, Kant e os empiristas ingleses, além de um pouco de filosofia medieval e do idealismo alemão. Também ministrei alguns cursos introdutórios de lógica. E preparei meu primeiro livro de algum interesse em termos de pesquisa: uma seleção de ensaios intitulada A Linguagem Factual.20 Alguns ensaios já haviam sido publicados antes, a maioria não. Entre os ensaios havia um artigo final sobre a teoria correspondencial da verdade, sobre o qual me estenderei um pouco a seguir. A versão da teoria correspondencial que defendi nesse livro e que tenho defendido desde então consiste em uma elaboração da versão verificacionista da teoria correspondencial proposta por Moritz Schlick em uma esquecida tese de habilitação de 1911.21 Esse filósofo sugeriu a existência de um ato de aferição de correspondência, que no caso mais fundamental nada mais é do que um ato verificacional através do qual se estabelece se o conteúdo de uma hipótese considerada é ou não é idêntico ao conteúdo da observação verificadora dessa hipótese. Se essa identidade existe, há correspondência, e se há correspondência o conteúdo da hipótese é verdadeiro. Já se essa identidade não é encontrada, não há correspondência e o conteúdo da hipótese é falso. Para exemplificar: suponha que você tenha lido ontem na Internet a frase “Irá fazer bom tempo nas praias amanhã”. Hoje você vai à praia e é surpreendido por uma tempestade. Você pensa: “A previsão era falsa”. O que você acabou de fazer? Ora, você comparou o conteúdo da hipótese que constitui a previsão com o conteúdo da observação, notando que a esperada identidade de conteúdo não existe, o que equivale a concluir que a proposição hipotética “Irá fazer bom tempo nas praias amanhã” é falsa. Suponhamos agora que você vai à praia e encontra o céu todo azul. Nesse caso você verifica uma identidade entre o conteúdo da previsão e o conteúdo da observação. Essa identidade é o que chamamos de correspondência, que permite atribuir verdade à previsão. Buscando ser mais precisos, podemos sugerir a existência de três momentos a serem idealmente distinguidos:

(1º) O momento da postulação de uma hipótese “?p”, onde p indica um conteúdo proposicional e “?” é o operador que indica o caráter hipotético do que cai sob o seu escopo.(2º) O momento da observação (ou das observações), “Oq”, onde O é o operador que indica o caráter observacional do que cai sob o seu escopo.(3º) O momento da verificação da correspondência, no qual há uma comparação entre os conteúdos da hipótese considerada no momento (1º) e o conteúdo da observação considerado no momento (2o), ou seja, entre p de ‘?p’ e q de Oq.

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Se uma identidade é verificada, ou seja, se p = q, então podemos concluir “├ p”, ou seja, podemos ajuizar que p é uma proposição verdadeira. Se a identidade é refutada, se p ≠ q, então concluímos “├ ~p”, ou seja, ajuizamos que p é uma proposição falsa. Essa explicação da verdade como correspondência é especialmente clara para as frases singulares observacionalmente verificáveis. Mas parece que é possível generalizá-la. Uma questão que se coloca é a de saber quais são os elementos do conteúdo da observação ou da hipótese. Longe de optar por uma solução metafísica como a de Wittgenstein no Tractatus, segundo a qual o mundo possui apenas uma única divisão em elementos simples, optei (inspirado pelo Wittgenstein das Investigações) em admitir uma divisão múltipla do mundo, na qual os elementos dos conjuntos eventualmente isomórficos são pragmaticamente determinados de acordo com o contexto, ou seja, segundo regras provenientes do jogo de conhecimento, da prática epistêmico-lingüística na qual a hipótese e a observação são feitas. Por isso, quando digo que o gato está sobre o tapete pode bem ser que os elementos participantes do conteúdo pensado sejam as representações (que não precisam ser naturalistas) do gato e do tapete, além da relação de estar sobre. Uma análise ulterior torna-se aqui injustificada. O apelo ao jogo de conhecimento também serve para explicar porque o conteúdo da proposição observacional verificadora não pode ser falso, o que a transformaria numa nova hipótese e nos conduziria a um regresso ao infinito. É que no contexto do jogo de conhecimento no qual se dá a verificação, a proposição observacional possui um conteúdo que é assumido como inquestionavelmente verdadeiro e que pode ser interpretado de forma externalista como o próprio fato dado no mundo. Contudo, isso não quer dizer que no contexto de outro jogo de conhecimento, de outra prática epistêmico-lingüística, este conteúdo não possa ser questionado como possivelmente falso, fazendo então parte de uma hipótese capaz de ser falseada. Finalmente, em um artigo muito posterior intitulado “A verdadeira teoria da verdade”,22 sugeri que a versão da teoria correspondencial recém resumida parece ser generalizável para toda e qualquer proposição, inclusive as das ciências formais, tradicional reduto do coerentismo. Um teorema como “A soma dos ângulos de um triângulo qualquer é 180º” pode ser visto como uma hipótese cujo conteúdo pode ser tornado idêntico ao conteúdo de uma sentença resultante de um procedimento de prova a partir da aplicação dos axiomas e postulados da geometria euclidiana a um triângulo qualquer. A identidade de conteúdo do teorema com o conteúdo daquela sentença resultante do procedimento de prova constitui a verificação do teorema, a sua correspondência com o fato abstrato que a sentença expressa!

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Se for assim e se considerarmos que as matemáticas têm sido vistas como o reduto indevassável das teorias coerentistas da verdade (onde a verdade do teorema resulta de sua coerência com os axiomas e postulados), nosso entendimento da relação correspondencial leva a ao menos um resultado importante, que é a descoberta da subordinação da teoria coerencial à teoria correspondencial: a coerência nada mais é do que um mecanismo interdoxal através do qual a correspondência é demonstrada.

7. O paradoxo da experiência privadaPassei o ano de 1995 em Munique fazendo um primeiro pós-doutorado, sob os auspícios da Capes, junto a um jesuíta de grande cultura filosófica, o professor Friedo Ricken, da Hochschule für Philosophie. O texto de algum interesse que escrevi por essa época foi uma crítica ao argumento da linguagem privada de Wittgenstein, intitulada “O paradoxo da linguagem privada”, que publiquei na revista alemã Prima Philosophia.23

O assim chamado argumento da linguagem privada é uma objeção profunda à possibilidade do aprendizado de qualquer linguagem fenomenalista que nos permita identificar estados mentais fenomenais internos, como a dor e a emoção. A melhor maneira de introduzi-lo é pelo contraste com o aprendizado da identificação de tipos de objetos físicos na linguagem fisicalista. Por exemplo: como aprendemos a identificar referentes da palavra “bola”? Isso acontece através de definições ostensivas, ou seja, quando adultos apontam para bolas e dizem coisas como “Isso é uma bola”, “aquilo é uma bola”... a criança acaba por aprender que objetos físicos redondos são bolas. Mas esse aprendizado só é confirmado quando, ao lhe ser apresentada outra vez uma bola, ela se demonstra capaz de reidentificar, perante os adultos, o objeto como sendo do tipo bola. Nesse caso, com base na concordância dos outros falantes da linguagem quanto à correção da reidentificação, a criança pode saber que aprendeu a regra para identificar objetos do tipo bola. O aprendizado da regra só se confirma por ser respaldado por uma checagem intersubjetiva. Considere agora o que acontece quando tentamos identificar entidades mentais internas de caráter fenomenal. Nesse caso não podemos fazer nenhuma checagem intersubjetiva das reidentificações. Suponha que uma criança deva aprender a identificar um estado interno qualquer, por exemplo, a dor que sente. Os adultos não podem ensiná-la, pois não podem saber quando ela sente dor. Mas digamos que ela seja capaz de inventar uma linguagem privada, apontando interiormente para a dor que sente e identificando-a através de um signo que ela mesma inventou, digamos, ‘D’. Imaginemos agora que da próxima vez que ela sentir dor, ela diga para si mesma ‘D’, apontando para o estado mental interno. Nesse caso, pensa Wittgenstein, ela não poderá saber se está realmente apontando para o mesmo estado mental que apontou da primeira vez, pois não existem outros

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falantes que possam lhe confirmar ou refutar a identificação; não há critérios de correção intersubjetiva, e onde tais critérios não existem, pensa ele, não podemos distinguir a regra da mera impressão de regra.24

Como uma linguagem é um sistema de regras, a generalização desse resultado nos leva à conclusão radical de que não pode existir uma linguagem cujos objetos de referência sejam estados fenomenais, verdadeiramente subjetivos.25 Tudo o que pode existir é uma linguagem acerca de expressões comportamentais de estados internos, estados esses cuja existência o próprio Wittgenstein admite, mas (por não se admitir como behaviorista) trata de situar para além da linguagem constituída por regras, para além do dizível, pois “Um algo sobre o qual nada se pode dizer vale tanto quanto nada”.26 P.F. Strawson, comentando essa posição de Wittgenstein, sugeriu que este última era vítima de um preconceito anti-subjetivista. Quando perguntei a Ernst Tugendhat o que ele pensava do argumento da linguagem privada ele me respondeu que o achava demasiado contra-intuitivo para ser correto – tal como eu pensava. O problema era encontrar uma estratégia para enfraquecê-lo. Para isso procurei demonstrar duas coisas. A primeira (que o próprio Wittgenstein admitiria) é que uma regra só deixa de sê-lo se for logicamente incorrigível. Ela não deixa de ser uma regra apenas por não ter sido de fato, por alguma razão, intersubjetivamente corrigida. Muitas das regras que seguimos nunca foram intersubjetivamente corrigidas. Posso inventar para mim mesmo a regra de nunca mais comer creme de espinafre e ninguém precisará saber disso. Há regras que por razões circunstanciais nunca chegam a ser corrigidas, como as inventadas por um náufrago solitário que morre em sua ilha deserta. Considere, porém, o caso de uma regra logicamente incorrigível. Digamos que involuntariamente eu siga a regra de a cada manhã, ao acordar, me recordar da primeira frase da Divina Comédia, mas que sempre me esqueça que fiz isso logo em seguida. Aqui chegamos próximos do contra-senso e teríamos chegado realmente a ele se fosse logicamente impossível saber se isso realmente acontece. Parece, pois, que regras logicamente incorrigíveis não chegam a ser realmente concebíveis como tais. A segunda coisa a ser demonstrada é que as regras de uma linguagem privada, embora sendo de um tipo que nunca foi de fato intersubjetivamente corrigido, não são – contrariamente ao que Wittgenstein e muitos outros acreditaram – logicamente incorrigíveis. Ele notou que mesmo que os nervos de uma pessoa A pudessem estar ligados aos da pessoa B, de modo que A pudesse sentir a dor da picada de uma vespa na mão de B, apenas a localização da dor seria compartilhada, pois a dor que A sente será a sua própria dor, enquanto a dor que B sente continuará sendo a do próprio B.27 Frege, em um artigo lido por Wittgenstein, notou que se outra pessoa pudesse penetrar em nossas mentes

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para observar uma representação visual, a representação por ela experienciada seria a sua própria e não a nossa.28 Tais considerações nos induzem à tese da incompartilhabilidade lógica do mental, ou seja, à conclusão de que a corrigibilidade intersubjetiva das regras da linguagem fenomenal é logicamente impossível. Creio, no entanto, que essa conclusão seja falsa, e que esta é a falha oculta no fundamento que tacitamente sustenta o argumento da linguagem privada. É muito difícil idealizar uma experiência em pensamento que demonstre que estados fenomenais não são logicamente incompartilháveis. Podemos começar fazendo uma analogia com computadores. Suponha que A e B sejam versões atualizadas de robôs do tipo que Grey Walter chamava de machina speculatrix, que se alimenta de luz e vive a sua procura. Suponha que ao se encontrar com B, o robô A seja capaz de ler os conteúdos informacionais coletados por B em suas explorações. Embora o robô A possa copiar esses dados e então lê-los em si mesmo, de modo que tal conteúdo de experiência se torne parte de si mesmo, não há contradição alguma em pensarmos que ele possa lê-los diretamente em B, compartilhando-os assim com o próprio robô B! Ora, por que achar que nesse aspecto precisamos ser diferentes das máquinas? Talvez seja mesmo possível imaginar que no futuro dois seres humanos conscientes, A* e B*, de algum modo compartilhem a função de partes de seus cérebros, digamos, de que o sistema límbico seja em parte o mesmo, mas que ainda assim permanecem distintas as funções das regiões neocorticais de A* e de B*, e que isso baste para que eles possam atuar como duas pessoas diversas. Nesse caso, parece concebível que um estado mental como o da dor, que supomos ocorrer no sistema límbico, seja compartilhado por A* e por B*, embora a interpretação consciente da dor, que se dá no néocortex, seja diversa. Se entendermos como dor essencialmente o processo ocorrente no sistema límbico, então A* e B* realmente poderão compartilhar de uma mesma dor, demonstrando possível a checagem intersubjetiva de um estado fenomenal interno. As experiências em pensamento consideradas acima sugerem ser possível separarmos logicamente

(a) o sujeito (a consciência) que experiencia o estado mental de (b) o estado mental enquanto tal.

Se essa separação é logicamente possível, então o compartilhamento intersubjetivo de estados mentais fenomenais é logicamente possível, tornando também logicamente possível a checagem intersubjetiva da regra de identificação de estados mentais. Se é assim, o argumento da linguagem privada falha por pressupor como certa a incompartilhabilidade lógica dos estados mentais fenomenais. Ficamos, pois, autorizados a supor que as

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regras da nossa linguagem fenomenalista sejam regras, posto que elas ainda continuam sendo ao menos logicamente passíveis de correção lingüística intersubjetiva, uma correção que tem sido imensamente confirmada por caminhos indutivos os mais diversos, ainda que sempre indiretos, através dos fenômenos físicos associados. Outro resultado de minha estadia em Munique foi um contato maior com a literatura filosófica norte-americana contemporânea, cada vez mais presente na Alemanha. Até então havia me restringido a alguns filósofos de língua alemã, como Frege e Wittgenstein, a alguns clássicos e a uns poucos filósofos analíticos ingleses. O aprendizado da discussão contemporânea anglo-americano-australiana era, na década de 1970 e mesmo na de 1980, restrito aos poucos privilegiados que podiam realizar cursos universitários nesses países e, de preferência, permanecer por lá. A literatura secundária e introdutória era insuficiente ou pouco acessível, tornando-nos fadados à alienação. Desde então tem havido uma crescente democratização dessa situação. Um número cada vez maior de introduções, enciclopédias, coletâneas, invadiu as livrarias internacionais, permitindo que qualquer pessoa minimamente preparada e em condições de adquirir os livros se tornasse capaz de formar uma idéia do que tinha sido recentemente discutido. Isso, aliado às livrarias virtuais como a Amazon e ao material cada vez maior à disposição na internet, incluindo os vídeos de exposições e cursos, configurando mesmo certo retorno à cultura falada, está tornando a discussão filosófica contemporânea em princípio acessível a qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo, diminuindo a defasagem cultural que em países como o Brasil ainda hoje é imensa. A revolução cultural representada pela internet promete ser maior do que a produzida pela invenção da imprensa no século XV. Com efeito, Guttemberg tornou possível que qualquer um pudesse ter acesso a um único livro; mas a internet está tornando possível que qualquer um possa ter acesso a todo e qualquer livro. Trata-se da verdadeira biblioteca de Babel, com efeitos inimagináveis para o progresso cultural da humanidade (caso esta última realmente queira progredir).

8. Conhecimento sem o problema de GettierEm 1996 iniciei um trabalho sobre um problema muito discutido na filosofia norte-americana: o problema de Gettier, que foi desencadeado por um artigo de duas páginas e meia, publicado em 1963 pelo autor do mesmo nome. Esse artigo contém uma objeção tremendamente influente à tradicional definição tripartida de conhecimento como crença verdadeira justificada, que teve sua origem em Platão. Utilizando como símbolos a = pessoa cuja pretensão de conhecimento está sendo avaliada, S = operador de conhecimento, C = operador de crença, E = operador de evidência justificacional razoável (justificação), e

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p = proposição cuja verdade a pretende conhecer, podemos simbolizar a definição tripartida de “a sabe que p” ou aSp como se segue:

aSp = (i) p (condição da verdade de p) & (ii) aCp (condição da crença de a na verdade de p) & (iii) aECp (condição da evidência razoável de a para a sua crença na verdade de p)

Segundo essa fórmula, “a sabe que p” identifica-se com uma conjunção de três condições: a da verdade de p, a da crença de a em p e a de que a tenha uma evidência justificacional razoável para tal crença. O problema de Gettier advém da descoberta de contra-exemplos: casos que obviamente não são de conhecimento, mas que mesmo assim parecem satisfazer a definição tradicional de conhecimento. Assim, imagine que o professor Pedro tenha dito a Ana ontem à noite que viria hoje pela manhã à universidade para presidir uma banca de doutorado. Como Ana sabe que Pedro é uma pessoa altamente confiável, ela pode pretender saber que ele esteve na universidade esta manhã. Acontece que durante a noite a sua família sofreu um grave acidente automobilístico, o que o obrigou a chamar outra pessoa para presidir a banca... No entanto, Pedro realmente esteve na universidade esta manhã, pois precisou vir rapidamente a sua sala para pegar alguns documentos. A pretensão de Ana de saber que Pedro esteve na universidade essa manhã parece satisfazer as condições da definição tripartida: ela é uma crença verdadeira e a justificação que ela apresenta é perfeitamente razoável. Contudo, a crença de Ana é verdadeira por mera coincidência e ninguém diria que ela realmente sabe que Pedro esteve na universidade essa manhã.29

Creio ter uma resposta satisfatória para esse problema. A idéia básica, já conhecida na literatura, é a de que a evidência justificacional não pode ser apenas razoável. Ela precisa ser também adequada no sentido de ser sempre parte daquilo que nós tomamos como tornando a proposição p verdadeira.30 Ora, a evidência justificacional que Ana tem para a sua crença de que Pedro veio à universidade esta manhã com base no fato de ele ter lhe dito que iria presidir uma banca não é adequada porque não é parte daquilo que nós, os avaliadores da pretensão de conhecimento de Ana, consideraríamos como tornando verdadeiro o fato de Pedro ter vindo à universidade esta manhã, como seria se ela dissesse ter cruzado com Pedro no corredor, visto o carro dele estacionado etc. Meu problema foi adequar esse insight à definição tripartida de forma suficientemente detalhada e precisa. A primeira coisa que fiz foi introduzir o símbolo E*. Tal símbolo serve para designar o conjunto de evidências

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que consideramos individualmente suficientes para certificar-nos da verdade ou da falsidade de p. Para dar um exemplo disso, considere as evidências justificacionais que dispomos de que a terra é redonda. Digamos que elas sejam somente E1 = “viagens de circunavegação da terra”, E2 = “o fato de que ao se distanciarem os navios parecem desaparecer no oceano”, E3 = “fotos da terra tiradas por satélites”. Nesse caso, E* para a afirmação de que a terra é redonda é constituído por {E1, E2, E3}, onde cada evidência E é considerada suficiente para tornar a proposição p verdadeira, o mesmo devendo acontecer com E*. (Supondo que o conjunto E* seja consistente, ele precisa ser constituído de membros que, ou são individualmente suficientes para tornar p verdadeiro, ou são individualmente suficientes para tornar p falso.) A relação de “suficiência” pode ser formalizada pela introdução do símbolo ‘~>’ que defino como, na suposição do antecedente ser verdadeiro, a que conduz à verdade do conseqüente com probabilidade 1 (no caso de verificações dedutivas, formais) ou com probabilidade muito próxima de 1 (no caso mais usual de verificações indutivas, empíricas). Com isso é possível reformular a definição tradicional de conhecimento de maneira tal que a relação entre a condição de justificação e a condição de verdade se torne suficientemente explícita. Ei-la:

aSp = (i) (E* & (E* ~> p)) (condição da verdade de p) & (ii) (aCp) (condição da crença na verdade de p) & (iii) (aECp &(E Î E*)) (condição de que a evidência justificacional razoável pertença a E*)

Nessa definição a condição (i), da verdade de p, é desdobrada de modo a expor as evidências que conduzem o sujeito avaliador da pretensão de conhecimento de a a considerar a proposição p verdadeira, posto que é impossível admitir qualquer verdade sem recurso a tais evidências. Com isso, se a condição (i) é satisfeita, ou seja, se admitimos que E* é o caso e que E* ~> p, então p pode ser considerada uma condição verdadeira (com probabilidade igual ou muito próxima de 1). Se, além disso, a condição (iii) é satisfeita, então não só aECp, mas E pertence a E*. Ora, como E* ~> p, pertencendo E a E*, podemos concluir que E ~> p, ou seja, que a evidência sustentada por a contribui para a verdade da proposição p. Para isso é necessário, naturalmente, que a evidência E ou já pertença ao conjunto E* ou que o sujeito avaliador esteja disposto a inclui-la como pertencente ao conjunto E*, ao conjunto daquilo que torna p verdadeiro.

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Aplicando essa definição ao exemplo dado, se Ana tivesse dito a mim (como sujeito avaliador de sua pretensão de conhecimento) que viu Pedro entrar em sua sala hoje pela manhã, ou que viu o seu carro estacionado no parque pela manhã, eu aceitaria essas justificações como pertencentes ao meu conjunto de evidências E*. Mas como tudo o que Ana me diz como evidência para a verdade de p é que Pedro lhe disse que viria presidir uma banca de doutorado, e como eu me recuso a admitir essa evidência como pertencendo a E*, eu concluo que ela não sabe que Pedro esteve na universidade esta manhã. Ao que acabo de dizer é preciso adicionar que o estabelecimento do conjunto E* deve ser sempre temporalmente indexado ao momento da avaliação da pretensão de conhecimento de a pelo sujeito avaliador (“nós”). Essa indexação é necessária porque E* varia de acordo com o conteúdo informacional ao qual o sujeito avaliador tem acesso. (Um exemplo: em 1499 as evidências para a verdade da crença de que Colombo descobriu o caminho marítimo para as Índias poderiam ser consideradas suficientes para que as pessoas a aceitassem como conhecimento, deixando de sê-lo alguns anos mais tarde.) Essa é a chave para responder aos contra-exemplos do tipo Gettier. Como em nenhum deles a justificação E é aceita pelo sujeito avaliador como capaz de pertencer ao conjunto das evidências justificacionais E*, cujos membros são por ele considerados individualmente suficientes para a admissão da verdade de p na ocasião de sua avaliação, nenhum desses contra-exemplos satisfaz a definição tradicional assim reformulada. O artigo o qual essa posição foi mais adequadamente elaborada chama-se “A Perspectival Definition of Knowledge”, tendo sido publicado na revista Ratio em 2010.31 Em meu juízo ele dá o golpe de misericórdia no problema de Gettier.

9. O cogito às avessasOutro problema que me interessou na época foi o do cogito cartesiano. Em 1997, graças a um estágio de três meses na Universidade de Konstanz, pude ler praticamente tudo o que havia de mais relevante sobre o cogito. Escrevi então um artigo junto ao professor Peter Stemmer intitulado “Über den Gewissheitsanspruch im cartesischen Cogito”.32

A reflexão sobre o cogito acabou por me conduzir a um trabalho mais pessoal intitulado “I’m Thinking”, escrito 1999, enquanto eu era visiting scholar em Berkeley. Nesse artigo comecei fazendo uma investigação dos atos de fala (ou pensamento) nos quais alguém é intitulado a dizer “Estou pensando”, visando demonstrar que tais atos (diversamente do que autores como Jakko Hintikka pretenderam) não são autoverificadores, mas em princípio passíveis de erro. Assim, se João diz a Maria que está pensando, Maria está intitulada a lhe perguntar no que ele está pensando. E ela

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certamente não ficará satisfeita se João lhe responder: “Estou pensando simplesmente, sem qualquer coisa na qual possa estar pensando”. Mas se João diz o que está pensando, por exemplo, “Estou pensando que começou a chover lá fora e que não valerá à pena sairmos”, é possível que João esteja errado, por exemplo, se ele estiver sofrendo de demência e acreditar ter tido um pensamento quando teve outro ou não teve nenhum. O que quis salientar com tais exemplos é, primeiro, que quando digo ou penso que estou pensando, há sempre um conteúdo de pensamento p, que é o objeto pensado nesse pensamento (no exemplo: “Estou pensando que... começou a chover lá fora...”). Em outras palavras: o “eu penso”, se não for um mero soletrar de palavras destituído de conteúdo, precisa ser a cognição de algum outro pensamento. Posso até pensar que penso em p, assim como posso crer que creio em p, mas não posso pensar que penso ou crer que creio pura e simplesmente. Mas se isso for aceito, parece então que devemos admitir que o “Estou pensando” é em princípio passível de erro. E a razão disso é que quando alguém pensa que está pensando p, este conteúdo de meu pensamento, ou já deixou de estar presente no centro de sua consciência, ou está presente, mas não se encontra nesse mesmo centro, no qual se encontra o próprio dizer interior “Estou pensando que...”. Ora, cada um desses casos já suscita a possibilidade de erro. Pois o extraordinário gênio maligno já teria condições de entrar em ação, já que para Descartes ele é capaz de nos enganar até mesmo no pensamento de que 2 + 2 = 4. O mesmo não se dá com o juízo “Eu existo”, que é propriamente autoverificador, pois me é impossível negar seriamente minha própria existência (posso negar que eu tenha existido no passado ou que venha a existir no futuro, mas isso já é outra coisa, posto que o “Eu existo” do cogito cartesiano é para ser entendido no sentido de “Eu estou existindo”). Ora, se o juízo “Eu penso” não é tão certo quanto o juízo “Eu existo”, ele não pode servir para garantir esse último, de modo a tornar a inferência “Penso, logo existo” (cogito ergo sum) relevante. Mais relevante seria a inferência inversa: “Existo, logo penso” (sum ergo cogito). Com efeito, se tenho o pensamento de que existo sou intitulado a inferir que tenho um pensamento. Assim sendo, a melhor estratégia é a de sintetizar a descoberta de Descartes como sendo a da infalibilidade do “eu existo”. Harry Frankfurt, o mais brilhante intérprete de Descartes, pode bem estar certo com a sua sugestão de que Descartes acabou por chegar a essa mesma conclusão em seu texto mais elaborado, as Meditações, no qual apresentou o cogito como “eu sou, eu existo” (ego sum, ego existo), prescindindo assim do “eu penso”.33

O artigo “I am Thinking” foi aceito e publicado pela prestigiosa revista inglesa Ratio.34 Isso só aconteceu, estou certo, por duas razões. Primeiro, eu

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o enviei de um bom endereço, a Universidade de Berkeley; segundo, o editor da Ratio, John Cottingham, é um competente especialista em Descartes e se motivou a avaliar pessoalmente o artigo.

10. O que é filosofia, afinal? E o que é ciência?Na segunda metade da década de 1990 parecia-me demasiado óbvio que a produção filosófica de países como Alemanha e França havia se esvaziado consideravelmente, e que o centro irradiador da discussão filosófica havia se deslocado irremediavelmente para os países de língua inglesa. Como resultado, envidei os meus esforços para a realização de um pós-doutorado nos Estados Unidos junto ao professor J.R. Searle, um filósofo que, tanto quanto eu fora influenciado pela filosofia da linguagem ordinária e cujo vigor intelectual e originalidade, adicionado à clareza e brilhantismo expositivos, sempre me foram inspiradores. Foi assim que acabei passando o ano de 1999 como visiting scholar na universidade de Berkeley, vivendo como anacoreta na água-furtada de uma casa cuja virtude era estar situada no alto das Berkeley Hills. Do alto dessas colinas cobertas de pinheiros tinha-se uma esplêndida visão da baía de São Francisco, com a velha prisão de Alcatraz no meio e a ponte Golden Gate ao fundo. De bicicleta eu descia as colinas à alta velocidade em direção ao centro “pop” de Berkeley (para a subida a bicicleta era pendurada atrás de um ônibus), onde comia um Chicken Marsalla ou um Hot Potato, visitava a biblioteca e ia assistir às fabulosas aulas do professor Searle. O principal trabalho escrito por esse tempo foi um pequeno livro intitulado The Philosophical Inquiry: Towards a Global Account.35 Ele é uma síntese de reflexões metafilosóficas publicadas em vários locais, desde a introdução de minha tese de mestrado escrita dezessete anos antes. Não surpreende, portanto, que tenha precisado de apenas três meses para escrevê-lo. Vou tentar resumir alguns argumentos principais. Minha estratégia metodológica consistiu em investigar a natureza da filosofia a partir de fora, através de sua relação com a ciência, a arte e a religião. Minha sugestão foi a de que a filosofia é um pouco como a ópera. A ópera deriva-se da combinação de três formas de arte: a música, a poesia e o enredo teatral. Fora disso ela não tem uma natureza própria. Também a filosofia é uma atividade derivada: a filosofia, tal como tem sido apresentada em sua história, tem sido produto de uma combinação de elementos provenientes das três práticas culturais mais fundamentais: a religião, a arte e a ciência. Do impulso místico-religioso a filosofia retirou a sua pretensão de abrangência e de fundamentação última presente nos grandes sistemas, e com ela a ambição de explicar o universo e o lugar que o homem nele ocupa. A arte procede por metáforas. Das formas do discurso artístico a filosofia derivou o caráter analógico quase inevitável de seus conceitos e formulações. E do desiderato da ciência, que é o de

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alcançar um conhecimento objetivo acerca do mundo, a filosofia retirou a pretensão de alcançar verdades objetivas e consensualmente aceitas. Colocando os elementos estético, místico e científico em cada vértice de um triângulo, nós podemos entender a filosofia como ocupando o interior desse triângulo. Algumas filosofias estariam mais próximas do vértice científico. Esse é o caso de filosofias como as de Russell e Carnap, por exemplo. Esse seria o caso de Austin com a sua teoria dos atos ilocucionários. Existem outras filosofias que no interior do triângulo estão mais próximas do vértice estético. Um exemplo disso é a obra de um poeta-filósofo como Nietzsche. Um pensador como Novalis produziu algo que se encontra entre filosofia e literatura, e Hölderlin já é classificado como poeta, tendo ultrapassado essa fronteira. E há também filósofos que estão mais próximos do extremo místico do triângulo, como Hegel, ou ainda no limite entre filosofia e religião, como seria o caso dos grandes místicos alemães. Há aqueles que se aproximam de um dos lados do triângulo: Kant está mais para o misticismo e a ciência do que para a arte; e Heidegger está muito mais para a arte e o misticismo do que para a ciência. Finalmente, há aquelas filosofias paradigmáticas, como a de Platão e Wittgenstein, que estão próximas do centro do triângulo, possuindo os elementos de abrangência, de metáfora estética e de objetividade epistêmica em proporções mais equilibradas. Há, além disso, verdadeiras tradições filosóficas que se centraram próximas de um vértice do triângulo. A tradição inglesa, a meu ver, sempre se centrou mais próxima do vértice científico. A filosofia francesa do século XX centrou-se próxima ao vértice estético. E a nebulosa tradição alemã sempre teve um pendor para o vértice místico. Não tenho espaço aqui para tentar tornar essas idéias plausíveis, por isso irei me concentrar na relação vigente entre filosofia e ciência, que se torna de grande interesse hoje, em um mundo que, dominado pelo progresso exponencial da ciência, tende a deslocar a inovação filosófica na direção do vértice científico do triângulo. Um esclarecimento sobre a questão da relação entre filosofia e ciência pode ser trazido quando investigamos o nascimento da filosofia grega em substituição às explicações mitológicas e religiosas para as anomalias da natureza. Minha sugestão é que foi a adoção de um uso especulativo do modelo científico de pensamento que foi responsável pelo surgimento da filosofia grega entre os pré-socráticos, no século VI a.C. Há razões para se pensar assim. Por essa época os gregos já importavam desenvolvimentos científicos de outros povos em astronomia, engenharia, física, matemática e geometria. Mas enquanto outros povos, como os egípcios, usavam uma ciência como a geometria somente com objetivos práticos, como o de construir pirâmides, os gregos foram os primeiros a axiomatizá-la, dando-lhe assim um tratamento abstrato. Ora, por terem abstraído a ciência de

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suas aplicações, eles passaram a possuir o que poderíamos chamar de idéia da ciência – uma idéia de como é o procedimento de generalização científica, tanto na ciência empírica quanto nas matemáticas.36 Ora, isso nos sugere que a filosofia grega teria nascido de uma tentativa feita pelos pré-socráticos de aplicar especulativamente o raciocínio científico a campos de conhecimento que antes haviam sido tematizados apenas através da mitologia e da religião. Por exemplo: qual a origem do universo? Quais são as leis últimas que o fundamentam? Qual a sua estrutura elementar? Como explicar as transformações da natureza? Os filósofos pré-socráticos, que em geral eram também cientistas, tematizaram especulativamente cada uma

1 Paulo Francis: Opinião Pessoal (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira 1966).2 Penso assim, mesmo admitindo que a psicanálise freudiana contenha uma visão incompleta e freqüentemente errônea dos fatos.3 Freud pensava que a cultura deve provocar uma revolta natural no ser humano, pelo preço em repressão pulsional que ela demanda. 4 Ver Nietzsche: “Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral” (Col. Os Pensadores XXXVII, São Paulo: Abril Cultural 1974). Ver também Michael Foucault: “Nietzsche, a genealogia e a história”, em Microfísica do Poder (Rio de Janeiro: Graal 1979), organização e tradução de Roberto Machado.5 Wittgenstein: Eine philosophische Betrachtung (Das Braune Buch) (Frankfurt: Suhrkamp 1984), Werkausgabe Band 5, p. 122.6 Bronislaw Malinowski: “O problema do significado em linguagens primitivas”, publicado como suplemento de C.K. Ogden e I.A. Richards: O Significado do Significado (Rio de Janeiro, trad. Zahar 1976).7 Não há mais hoje quem concorde com a tese em alguns momentos insinuada por Wittgenstein, segundo a qual toda a filosofia se reduz a confusões lingüísticas. Apesar disso, preservamos a idéia de que a prática filosófica é usualmente produtora de confusões lingüísticas, e que por isso uma atenção analítica prévia aos sentidos ordinários de nossos conceitos filosóficos é propedeuticamente desejável, se não indispensável.8 Ele só foi defendido mais tarde, nos capítulos IX e X da tese de doutorado.9 As noções de deslocamento e condensação são fundamentais na teoria psicanalítica freudiana. Um exemplo de deslocamento seria aquele em que uma mulher sonha ter dado o seu pente ao seu ex-namorado, representação esta que estaria no lugar da idéia de entregar-se amorosamente a ele. Um exemplo de condensação seria aquele em que ela sonhasse ter encontrado o chapéu de seu ex-namorado esquecido em sua casa, o que estaria no lugar da idéia dele a ter visitado. Ver Sigmund Freud, Traumdeutung (Frankfurt: Suhrkamp 1983) chap. 7.10 A mesma distinção, mas sem relação com a psicanálise, pude encontrar mais tarde indicada no livro de Antony Kenny: Wittgenstein (Cambridge Mass.: Harvard University Press 1973).11 Ao perceber meu desagrado um aluno alemão me confortou dizendo: “Você não deveria se importar, afinal essa é a nota standard para alunos estrangeiros”.12 Um resumo das idéias principais da tese de doutorado encontra-se em C.F. Costa A Linguagem Factual (Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro 1995), sob o título de “Wittgenstein: a gramática do significado”.13 J.S. Mill: Um Exame da Filosofia de Sir William Hamilton (Abril Cultural: São Paulo 1976) cap. XI.

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dessas questões usando como base a idéia que eles tinham da ciência. Esse teria sido, no exemplo mais famoso, o caso dos atomistas gregos como Leucipo e Demócrito, com a hipótese de que os objetos materiais são constituídos pelo que eles chamaram de átomos: elementos invisíveis, fisicamente indivisíveis e de formas infinitamente variadas. O que eles estavam fazendo era investigar especulativamente uma maneira como a realidade poderia ser constituída em sua estrutura última. É importante perceber o que distingue a filosofia, entendida da maneira que acabo de descrever, da ciência: a filosofia é conjectural, especulativa, a

14 Ver capítulo 7 de meu livro Uma Introdução Contemporânea à Filosofia (Martins Fontes: São Paulo 2002).15 Nesse filme quase desconhecido que assisti em Berkeley a medula espinhal das pessoas é ligada a um organismo vivo semelhante a um feto, que faz com que elas percam os sentidos e se vejam acordando em um mundo virtual; mas lá elas se ligam a outros organismos vivos idênticos, entrando então em novos e ainda mais excitantes mundos virtuais e assim por diante.16 Isso vale mesmo para cenários céticos, como no caso do mundo externo ser uma alucinação sistemática produzida por um gênio maligno: ele nem por isso deixa de ser um mundo externo no sentido de opor-se ao meu mundo psicológico.17 Uma das objeções contra o fenomenalismo é que ele não resiste ao argumento wittgensteiniano da linguagem privada. Que tal argumento não é tão forte quanto alguns pretendem é algo que penso ter demonstrado nos artigos “Das Paradox der privaten Erfahrung” (Prima Philosophia, vol. 10, 2, 1997) e especialmente em “A linguagem privada e o heteropsíquico”, in C.F. Costa: Critérios de realidade e outros ensaios (London: College Publications 2011).18 Ver meu artigo “Fatos Empíricos”, in C.F. Costa: A Linguagem Factual (Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro 1995). Os argumentos de P.F. Strawson encontram-se em: “Truth”, in Logic-Linguistic Papers (Oxford: Oxford University Press 1971). Um bom artigo contra a posição de Strawson é “Unfair to Facts” de J.L. Austin, publicado em seus Philosophical Papers (Oxford: Oxford University Press 1979). 19 O exemplo do fato de que Cesar atravessou o Rubicão escolhido por Strawson não é espaço-temporalmente localizável de modo preciso apenas porque é geralmente entendido como uma alusão ao estado de coisas sócio-político instaurado por Cesar ter infringido a lei do senado, segundo a qual os exércitos de César não podiam entrar em território italiano. Mas o fato de que a pia está pingando é espaço-temporal, pode ser apontado e mesmo desfeito pelo concerto da torneira.20 C.F. Costa: A Linguagem Factual.21 Moritz Schlick: “Das Wesen der Wahrheit nach der modernen Logik”, em Philosophische Logik (Frankfurt: Suhrkamp 1986(1911)), p. 71 ss. 22 Em sua versão mais desenvolvida esse artigo foi publicado em Paisagens Conceituais: Ensaios em filosofia analítica (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 2011).23 “Das Paradox der privaten Erfahrung”, Prima Philosophia 10(4), 1997. O mesmo argumento foi desenvolvido em um ensaio de escopo mais amplo intitulado “A linguagem privada e o heteropsíquico”, C.F. Costa: Paisagens Conceituais (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 2011).24 Wittgenstein: Investigações Filosóficas parte I, sec. 258-9.25 Os argumentos de Wittgenstein não são susceptíveis de uma reconstrução única e definitiva. Por isso importei-me em reconstruir o argumento da linguagem privada de

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ciência não. Mas o que é um trabalho conjectural ou especulativo? Trata-se, ao menos, de todo aquele trabalho de investigação cujos resultados não são aptos a serem tornados consensuais. Com efeito, é aqui que reside a diferença fundamental entre a reflexão filosófica e a investigação científica. Em filosofia os resultados nunca são consensuais. Não é possível saber se teorias filosóficas são verdadeiras ou falsas, ao menos não no tempo em que elas foram desenvolvidas. O mesmo não acontece com teorias científicas. Em ciência estamos sempre a espera de resultados consensuais. Considere, por exemplo, um resultado científico como o método da clonagem genética. Logo depois que a ovelha Dolly nasceu levantou-se uma suspeita sobre o fato da clonagem, pois em outros laboratórios não se estava conseguindo reproduzir a experiência. Mas essa dúvida durou apenas alguns meses. Logo foram produzidos vários outros clones e se pôde formar um consenso a respeito. Ninguém, à exceção de teóricos da conspiração, discute a extrema plausibilidade dos resultados da ciência. As previsões e explicações da ciência empírica, assim como as provas das ciências formais, são verdades consensuais porque elas são fundadas em

modo a torná-lo filosoficamente importante, que foi o de fazê-lo produzir coerentemente o resultado mais impactante possível, que seria o da destruição da subjetividade humana, tal como ela costuma ser entendida por todos nós.26 Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen (Investigações Filosóficas) (Frankfurt: Suhrkamp 1984), sec. 328.27 Wittgenstein: Das Blaue Buch (The Blue Book) (Frankfurt: Suhrkamp 1984), p. 89.28 Ver Gottlob Frege, “Über Sinn und Bedeutung”, in Funktion, Begriff, Bedeutung, editado por Günter Patzig (Göttingen: Vanderhoeck & Ruprecht 1980), págs. 43-44 (p. 29 do texto original). L. Wittgenstein: Das Blaue Buch (The Blue Book) (Frankfurt: Suhrkamp 1984), p. 89.29 Retiro esse exemplo (com algumas alterações) do livro de B. Carr e D. J. O’Connor: Introduction to the Theory of Knowledge (Branch Line 1982).30 A idéia foi de quando em quando aventada na literatura sobre o problema pelo menos desde a década de 1970. A sua melhor exposição foi feita por R.J. Fogelin em seu livro Pirrhonian Reflections on Knowledge and Justification (Oxford: Oxford University Press 1994), cap. 1. O que fiz foi dar a essa idéia uma expressão suficientemente elaborada e formal.31 C.F. Costa: “A Perspectival Definition of Knowledge“, Ratio XXIII, 2 Junho 2010, 151-167.32 “Das Paradox der privaten Erfahrung”, Prima Philosophia, 10(4), 1997.33 Ver Harry Frankfurt, Demons, Dreamers and Madmen (Indianapolis: Bobbs-Merril 1970), p. 102 ss. 34 C.F. Costa: “I am Thinking”, Ratio XIV 3, setembro 2001, pp. 222-233.35 C.F. Costa: The Philosophical Inquiry: Towards a Global Account (Langham: UPA 2002). A monografia foi traduzida para o português com o título de A Indagação Filosófica: Por Uma Teoria Global (Natal: Edufrn 2005).36 Por exemplo, através de observação de fatos, indução ou sugestão hipotética de leis explicativas abstratas, no caso das ciências empíricas, e, algo não tão diverso pela comprovação de teoremas com base em axiomas e dados formais nas ciências formais. Tais questões foram sistematizadas pela primeira vez no Organon aristotélico.

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procedimentos metodológicos ou probatórios cujo valor é consensualmente reconhecido, os quais são aplicados a dados consensualmente aceitos. E se surgem campos nos quais não se alcança consenso (como, por exemplo, com respeito à questão da eventual impossibilidade de comprovação experimental da teoria das cordas), o problema de se saber se essas teorias devem ou não ser admitidas como científicas também retorna. A oposição possibilidade/impossibilidade de consenso é, pois, um elemento determinante para a distinção entre ciência e filosofia. Em adição a isso é um fato histórico que muitas questões conjecturais da filosofia acabaram por ceder lugar a questionamentos científicos, originando a idéia da filosofia como marcador de lugar da ciência. Como notou J.L. Austin, a filosofia é o sol seminal, originário e tumultuoso, do qual se desprenderam, uma a uma, as ciências particulares, como planetas frios que a partir de então passaram a evoluir progressivamente em direção a um estágio final distante.37 Isso aconteceu sucessivamente com ciências particulares como a matemática, a física e a química. O exemplo mais famoso é talvez o da substituição do atomismo grego especulativo pelo atomismo contemporâneo da física de partículas e a da teoria dos quatro elementos pela tabela periódica. Outro exemplo ineteressante (entre muitos) foi a sugestão do pré-socrático Anaximandro de que a terra é um cilindro suspenso no vácuo, que por estar a meia distância entre as estrelas, não pende nem em uma nem em outra direção. Com isso, escreveu Popper, ele estava antecipando a idéia de inércia e mesmo a de atração gravitacional, que só seria desenvolvida cientificamente mais de vinte séculos depois por Galileu e Newton.38

Por outro lado, em seus domínios mais centrais – como a metafísica, a epistemologia, a ética – a filosofia tem resistido a ceder lugar à ciência. Surge aqui a pergunta. Será que toda a filosofia, mesmo nesses domínios centrais, não é mais do que a antecipação conjectural, não-consensual, de um possível conhecimento científico-consensual? Muitos filósofos se sentem ameaçados frente a essa possibilidade, pois parece que se especulações tão vastas como as da metafísica e da epistemologia chegarem a ser substituídas pela investigação científica, os produtos dessa substituição só poderão ser descaracterizações positivistas, trivializadoras e redutoras do verdadeiro labor filosófico. A preocupação é em meu juízo legítima, mas o raciocínio incorreto. A causa do erro está na concepção de ciência geralmente pressuposta. A filosofia da ciência predominante no século XX foi gerada sob influência do positivismo lógico, que tendeu a reduzi-la à filosofia de alguma ciência básica paradigmática como a física. Os membros do positivismo lógico

37 J.L. Austin: Philosophical Papers (Oxford: Oxford University Press 1961), p. 232.38 Karl Popper: “Back to the Pre-Socratics”, in Conjectures and Refutations (London: Routledge 1989), p. 138.

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tinham em geral formação em física e matemática. A tendência da filosofia da ciência daí surgida foi em meu juízo desde o início redutora da verdadeira abrangência do termo, por confundir o conceito geral de ciência com os conceitos das ciências particulares mais desenvolvidas. Mesmo filósofos que se diziam anti-positivistas, como Popper, mantiveram essa visão redutora (que o forçou, por exemplo, a rejeitar a legitimidade científica da teoria da evolução, por não ser possível submetê-la ao critério de refutabilidade através de experimentos reproduzíveis39). Ora, critérios como o da refutabilidade através de experimentos reproduzíveis podem ser (relativamente) bons para a física, mas podem não ser bons para toda e qualquer ciência. Considere ciências como a lingüística, a história, a arqueologia... Como aplicar-lhes semelhante critério? Se definirmos a ciência por um critério de refutabilidade experimental e considerarmos a filosofia antecipação da ciência, então domínios filosóficos centrais, como os da metafísica, da epistemologia e da ética, se não forem admitidos como perenemente filosóficos, terão de ser substituídos por alguma forma reducionista de investigação, distorciva e empobrecedora do questionamento originário. Muito diversos são os resultados quando decidimos questionar a natureza da ciência em termos de uma análise do que as pessoas – cientistas e leigos cultos – realmente entendem pela palavra. Quando nos fazemos essa pergunta, a resposta é sempre a mesma: eles entendem por ciência, antes de tudo, um conhecimento sobre o qual investigadores competentes são capazes de alcançar um acordo consensual autêntico. É por isso que a astrofísica é chamada de ciência, mas a astrologia não. Buscando na literatura filosófica não me foi difícil encontrar sociólogos da ciência que defenderam idéias similares, como John Ziman, para quem a ciência é “conhecimento público consensualizável” (consensualizable public knowledge).40 Contudo, não é qualquer consenso que serve. Comunidades de idéias que apoiaram a pseudo-ciência, como a que aprovou a genética marxista de Lysenko e a ciência ariana, ou que perseguiram a verdadeira ciência, como a que provocou a condenação de Galileu, formaram consensos que resistiríamos a chamar de autênticos. Assim, o consenso gerado precisa ser autêntico. Mas o que distingue o consenso autêntico? Minha sugestão é a de que a condição para o consenso autêntico é que ele seja formado dentro do que eu gostaria de chamar de uma comunidade crítica de idéias, que satisfaça condições em parte similares às estabelecidas por Jürgen Habermas para o que ele chamou de situação ideal de fala (ideale Sprachsituation).41 Assim, proponho que uma comunidade crítica de idéias

39 Karl Popper: Conjectures and Refutations, pp. 339-340.40 John Ziman: “What is Science?”, em E.D. Klemke, Robert Hollinger & A.D. Kline, Introductory Readings in the Philosophy of Science (New York 1980), p. 42.

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– aquela capaz de consenso autêntico – deva satisfazer minimamente as condições de:

(i) compromisso com a verdade da parte dos participantes,(ii) que eles sejam maximamente e igualmente competentes,(iii) que sejam igualmente informados,(iv) que tenham iguais oportunidades de participação, e(v) que não sejam submetidos a qualquer pressão senão a da melhor

justificação.

Assim, sociedades de idéias como a dos biólogos soviéticos, dos cientistas do terceiro Reich e dos conselheiros da inquisição católica ficaram aquém do papel de comunidades críticas de idéias, por servirem a funções excusas que as distanciavam por demais do ideal da satisfação de condições como as recém-listadas. Só quando alcançamos esse ideal em suficiente medida é que somos capazes de produzir ciência.

Ora, se adotarmos essa última concepção de ciência, a diferença entre filosofia e ciência se torna clara:

a filosofia é (minimamente) uma investigação não-consensualizável, que se dá sob a suposição (real ou virtual) de uma sociedade crítica de idéias.

Já a investigação científica, embora também ocorrendo em uma comunidade crítica de idéias (real ou virtualmente suposta), é a única que alcança resultados sempre consensualizáveis. Uma complementariedade entre as duas torna-se nesse caso aceitável, posto que não há nada de reducionista ou positivista em esperarmos que os resultados de qualquer questionamento intelectual, mesmo o mais obstrusamente filosófico, possam em princípio dar lugar a formulações e resultados consensuais e nesse sentido científicos. Mesmo em domínios mais abstratos e especulativos isso se torna em princípio concebível, principalmente quando pensamos no múltiplo e variado suporte que nossas diversas teorias e domínios científicos se dão entre si. Curiosamente, a principal objeção que pode ser oposta a essas idéias vem da filosofia analítica da linguagem do século XX, segundo a qual a filosofia tem um método, o da análise conceitual, e um objeto, que é a estrutura de nossos conceitos mais centrais, como os de conhecimento, verdade, justificação, beleza, justiça... Minha resposta a essa objeção consistiu em adotar a idéia de ascensão semântica (semantic accent) proposta por W.V.O. Quine.42 Como esse 41 Jurgen Habermas: “Wahrheitstheorien”, em H. Fahrenbach (ed.), Wirklichkeit und Reflexion (Frankfurt: Suhrkamp 1973).

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filósofo percebeu, podemos transformar toda e qualquer investigação, mesmo as da ciência empírica, em questão de análise conceitual. Podemos dizer, por exemplo, que Watson e Krick, com base no conhecimento dos constituintes do ácido desoxirribonucleico (DNA), após muitas tentativas conseguiram analisar a estrutura básica de suas moléculas como sendo constituida de duplas hélices proteicas ligadas por sequências de nucleotídeos formadoras de códigos genéticos... Isso se consegue por recurso à ascensão semântica, que nada mais é do que o uso de uma metalinguagem semântica43, com a qual falamos de conceitos expressos pelas palavras e, só através deles, indiretamente, dos seus próprios objetos. Fazer isso em biologia é possível, mas seria retórico e inútil. Contudo, em filosofia costuma ser diferente. Nesse terreno, onde tão facilmente nos enganamos quanto ao significado das palavras em argumentos, a ascenção semântica costuma ser um expediente metodológico útil e por vezes mesmo indispensável. Contudo, a prática da ascensão semântica confundiu filósofos analíticos fazendo-os pensar que a filosofia nada pode ter de empírico, que ela é pura análise conceitual. Contudo, quando estudamos questões como a da natureza da consciência, da relação mente-corpo, da estrutura da relação causal, vemos que elas são questões de importe empírico, ainda que muito abrangentes. Apenas que é metodologicamente mais aconselhável começar o estudo de algo como a consciência através de uma investigação dos usos correntes dessa palavra, evoluindo para uma reflexão acerca da estrutura do conceito até chegar a propostas para o seu aperfeiçoamento ou alteração. O erro consiste, pois, em confundir uma mera estratégia metodológica – que é a da ascensão semântica – com o indicador da natureza própria da filosofia. Eis porque a filosofia pode ser também analítico-conceitual sem deixar de ser sobre o mundo.

11. Método para desmontar pretensos juízos sintéticos a prioriDe volta a Natal no ano 2000 fui colocado diante da difícil tarefa de servir de mediador entre os interesses conflitantes dos professores, de modo a criar o Mestrado de Filosofia da UFRN. Foi nesse tempo de desassossego, no qual o meu trabalho com filosofia consistia principalmente em reunir anotações de aula, que preparei um livro de 240 páginas intitulado Uma Introdução Contemporânea à Filosofia, o qual acabou sendo publicado pela editora Martins Fontes em 2002. Embora o livro tenha sido terminado às pressas, acho que se trata de uma clara introdução pessoal à filosofia analítica contemporânea. Uma posição polêmica que foi defendida nesse livro e que considero de algum interesse é a concernente ao problema do conhecimento a priori.

42 W.V-O. Quine: Word and Object (Cambridge Mass.: MIT-Press 1960), p. 270 e ss.43 A alternativa é uma metalinguagem sintática, com a qual falamos somente das palavras e de suas relações gramaticais.

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Como todos sabem, os velhos e ingênuos empiristas de cabeça dura, de Locke ao primeiro Wittgenstein, passando por Hume, acreditavam que só existem proposições analíticas e necessárias, exemplificadoras de conhecimento a priori, de um lado, e proposições sintéticas e contingentes, exemplificadoras de conhecimento a posteriori, do outro.44 Mas hoje sabemos que o quadro é desorientadoramente mais complexo. Afinal, viemos após Kant, que sugeriu a existência de juízos sintéticos a priori, ou seja, de juízos ampliadores do conhecimento e ao mesmo tempo não derivados da experiência, viemos após W.V-O. Quine, que dissolveu a velha distinção entre o analítico e o sintético, e ainda viemos após Saul Kripke, que descobriu a existência de proposições necessárias a posteriori e contingentes a priori... Em oposição a essa opinião herdada, minha convicção é a de que os velhos empiristas de cabeça dura (e com eles também toda uma hoste de imaturos racionalistas pré-kantianos, de Descartes a Leibniz) é que estavam com a razão, e que a maior parte do que veio depois foi um considerável acúmulo de sofisticadas falácias. Não tenho espaço aqui para argumentar a favor de uma posição que muitos terão por demasiado implausível. Quero apenas ilustrá-la aplicando um método muito simples que idealizei para desmontar pretensos juízos sintéticos a priori à seguinte conhecida proposição:

Uma mesma superfície não pode ser vermelha e verde ao mesmo tempo.

Como é sabido, uma proposição analítica é definida como aquela que é verdadeira em virtude dos sentidos de seus componentes, sendo por isso necessariamente verdadeira, além de ter em sua negação uma proposição contraditória ou incoerente. Mas não parece suficientemente claro que a proposição em questão seja algo do gênero. Daí muitos a terem considerado um candidato ideal ao status de juízo sintético a priori. Contudo, ela pode ser evidenciada como ocultamente analítica quando tornada conclusão do seguinte argumento:

1. Duas coisas diferentes não podem ocupar um mesmo lugar ao mesmo tempo.

2. Uma superfície delimita um lugar.45

44 Há certo exagero em se dizer que essa é uma tese empirista, visto que uma posição semelhante foi mantida por filósofos racionalistas pré-kantianos como Descartes, Spinoza e Leibniz. Contudo, a adição kantiana do juízo sintético a priori tende a favorecer o ponto de vista racionalista.45 Assim como usualmente dizemos que um volume delimita um lugar tridimensional, uma superfície delimita um lugar bidimensional como o ocupado por uma cor.

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3. (1,2) Duas coisas diferentes não podem ocupar uma mesma superfície ao mesmo tempo.

4. Cores são coisas que ocupam superfícies.5. (3,4) Duas cores diferentes não podem ocupar a mesma superfície ao

mesmo tempo.6. Vermelho é uma cor.7. Verde é uma cor.8. As cores vermelha e verde são diferentes.9. (5,6,7,8) O vermelho e o verde não podem ocupar a mesma

superfície ao mesmo tempo.

Se tentarmos negar as premissas 1, 2, 4, 6, 7 e 8, cairemos em contradições ou incoerências mais ou menos óbvias, como a de dizer que o vermelho não é uma cor. Logo, as premissas são todas analíticas. Logo, como o argumento é todo ele dedutivo, a conclusão de que o vermelho e o verde não podem ocupar a mesma superfície também precisa ser analítica, mesmo que isso não seja imediatamente reconhecível como tal, ou seja, mesmo que a sua negação não nos pareça obviamente contraditória ou incoerente. Em minha opinião, aliás, não é possível provar que não existem juízos sintéticos a priori, a menos que seja através de um exame caso a caso usando métodos como esse.46

12. Ilusões céticas: refutação do ceticismo e prova do mundo externoOutro argumento esboçado no livro e mais tarde aperfeiçoado em artigos é uma refutação do conhecido argumento cético da ignorância, destinado a provar que não podemos saber que o mundo externo é real.47 O argumento, que está conosco pelo menos desde Descartes, deve fazer uso de alguma hipótese cética – que abreviarei como HC – acerca do mundo externo. Exemplos de HC são:

(1) o mundo externo é apenas um sonho, (2) ele é uma alucinação constante,

46 Escolho essa proposição devido às intermináveis disputas entre os positivistas lógicos sobre o seu pretenso status de juízo sintético a priori. Mesmo hoje há bons filósofos que a entendem como um bom equivalente do juízo sintético a priori; ver, por exemplo, Laurence Bonjour: In Defense of Pure Reason (Cambridge: Cambridge University Press 1998) pp. 100-101.47 A expressão ‘argumento da ignorância’ é usada por Peter Unger em Ignorance: A Case for Scepticism (Oxford: Oxford University Press 1975), cap. 1. Uma coletânea de artigos centrais sobre o ceticismo quanto ao mundo externo é a de K. DeRose & T. Warfield, Scepticism (New York: Oxford University Press 1999). Ver também C.F. Costa: Critérios de Realidade e outros Ensaios (London: College Publications 2010).

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(3) sou apenas uma alma flutuando no vazio, continuamente enganada por um gênio maligno, que me faz crer que tenho um corpo humano, que estou sentado escrevendo etc.(4) sou um cérebro dentro de uma cuba, cujos nervos aferentes e eferentes encontram-se ligados a um supercomputador que produz em mim a contínua experiência de um mundo que na verdade é meramente virtual.48

Pois bem: posso saber que tais HC são falsas? Posso demonstrar que não é possível que eu esteja sonhando um mundo externo? Parece que não. Mas se não podemos saber que as HCs são falsas, então estamos em papos de aranha, pois considerando p a expressão de um conhecimento trivial qualquer (como “Tenho duas mãos”, “Essa mesa existe”, “A torre Eiffel fica em Paris”), o seguinte argumento cético da ignorância (ou do modus tollens) pode ser construído:

AI(1)1. Se sei que p (ex: que tenho duas mãos), então sei que a HC é falsa

(ex: que não estou sonhando).2. Não sei que HC é falsa (ex: não sei que não estou sonhando).3. Logo: não sei que p (ex: não sei que tenho duas mãos). (MT 1,2)

Ou seja: se realmente sei alguma coisa sobre o mundo externo, então preciso saber que a hipótese cética (da qual resulta que ele é mera ilusão) é falsa. Mas como não há critérios para saber que a hipótese cética é falsa (como não posso saber que o mundo externo não é ilusório) então não posso saber mais coisa alguma! Há uma variedade de respostas assaz interessantes a esse argumento, como as de Hilary Putnam, Robert Nozick e Fred Dretske, todas elas prenhes de dificuldades. A resposta que propus parece-me menos interessante e de longe a mais convincente. Ela demanda um procedimento em três etapas. Na primeira entendo o argumento AI(1) como uma versão simplificada de um argumento mais complexo. Antes de introduzi-lo, devo fazer notar que quando digo que sei que p (quando p está no lugar de

48 Hilary Putnam desenvolveu um influente argumento anti-cético contra a possibilidade de sermos cérebros em cubas em seu livro Reason, Truth and History (Cambridge: University Press 1981). Não obstante, esse argumento não precisa ser discutido, primeiro porque ele não se deixa generalizar facilmente para outras HC, como a do sonho. Segundo, porque ele próprio é um argumento problemático, como o demonstram os artigos de Graeme Forbes e T.A. Warfield, em Keith DeRose & Ted A. Warfield, Skepticism: a Conteporary Reader (Oxford: Oxford University Press 1999). Ver também o interessante artigo de A. Brückner, intitulado “Threes, Computer Program Features and Skeptical Hypotheses”, in S. Luper (ed.): The Skeptics: Contemporary Essays (Hampshire: Ashgate 2003).

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qualquer proposição sobre o mundo externo) isso também implica na comunicação de que aquilo que é referido por p é objetivamente real ou existente ou concretamente dado no mundo externo. Assim, dizer que tenho duas mãos é o mesmo que dizer que tenho duas mãos que possuem realidade objetiva. Por conseguinte, quando admito que não sei que não-HC (ex: não sei que não estou sonhando), disso decorre que não sei se o mundo externo é objetivamente real ou existente. Admitido isso, o argumento AI(1) pode ser reapresentado de forma mais explícita como: AI(2)

1. Se sei que realmente p, então sei que há um mundo externo real (mesmo que restrito ao que é referido por p).

2. Se sei que há um mundo externo real, então sei que HC (da qual decorre que o mundo externo nada tem de real) é falsa.

3. Não sei se HC (da qual decorre que o mundo externo nada tem de real) é falsa.

4. (2,3) Portanto, não sei se alguma coisa do mundo externo é real.5. (1,4) Portanto, não sei se realmente p.

Em um exemplo concreto: se sei que tenho duas mãos reais, então sei que o mundo externo (ao menos enquanto restrito às minhas mãos) é real. Então sei que não o estou sonhando. Mas não sei que não o estou sonhando. Logo, não posso saber se o mundo externo é real, nem mesmo se minhas mãos (a ele pertencentes) são reais. Uma vez chegados à versão AI(2), entendida como uma explicitação do argumento A, estamos preparados para o segundo passo argumentativo, que depende de uma análise semântica de três atribuições mais importantes de realidade objetiva ou existência, ou seja, de três modos de uso ou sentidos de predicados como “é objetivamente real”, “existe realmente”, “é real”. Sugiro, pois, que as atribuições de realidade podem minimamente possuir:

(a-1) sentidos inerentes, (a-2) sentidos inerentes generalizados, e (b) sentidos aderentes.

Comecemos explicando o que é o sentido (a-1) de nossas atribuições de realidade, que é o sentido corrente, próprio, originário. Usamos expressões como ‘é real’ nesse sentido para dizer que essa ou aquela coisa (objeto, propriedade, fato, evento, processo...) espaço-temporalmente localizada não é meramente imaginária ou ficcional, mas que ela existe concretamente no mundo real. Para falar de realidade nesse sentido usamos certos critérios de realidade inerente (diversamente apontados por filósofos modernos

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como Berkeley, Locke, Hume, Kant, Frege e Moore), que podem ser resumidos como sendo:

1) Máxima intensidade da experiência sensória, 2) Independência da vontade, 3) Acesso intersubjetivo potencial a essa experiência, 4) Constância no seguimento de leis naturais.

É verdade que alguns objetos imaginários podem satisfazer um ou mais desses critérios, de modo que isoladamente eles não servem para muita coisa. Mas um objeto que satisfaça plenamente a todos esses critérios por tempo suficiente será forçosamente entendido como sendo real num certo sentido, no sentido que chamo de inerente. A continuada satisfação de todos esses critérios, ao menos, é condição suficiente para a atribuição de realidade ou existência externa no sentido inerente da expressão por uma razão que pode ser considerada simplesmente definicional. Um exemplo pode ser esclarecedor. Se o pedaço de giz que estou segurando é percebido com a máxima intensidade visual e tátil, se ele é co-sensorialmente percebido (eu o vejo, sinto, ouço o seu riscar...), se ele não depende de minha vontade (diversamente do pedaço de giz de minha imaginação, que posso transformar em qualquer outra coisa), se ele é possivelmente perceptível com a máxima intensidade também por outros observadores que tenham contato com ele (todos os presentes podem vê-lo), e se ele segue as regularidades usuais (posso escrever com ele, posso quebrá-lo, esfarelá-lo, ele cai quando solto no espaço...), então posso seguramente dizer que há um sentido no qual ele é inevitavelmente real, concreto, externamente dado. Com efeito, os critérios acima definem um sentido para predicados como “é real” e “existe realmente”, isto é, a espécie inerente de atribuição de realidade, pois, como Wittgenstein notou, os critérios de aplicação de uma expressão são elementos determinadores de seu significado, e uma alteração nesses critérios produz uma alteração no significado.49

O sentido (a-2) de nossas atribuições de realidade é o que chamo de sentido inerente generalizado, tratando de extensões de (a-1). Há uma variedade de casos. Os critérios de realidade inerente podem, por exemplo, ser apenas indiretamente satisfeitos, fazendo-nos valer de indução ou abdução. Dessa maneira podemos dizer que os neutrinos são reais com base

49 As observações sobre o conceito de critério encontram-se espalhadas na obra de Wittgenstein, mas os locais mais característicos estão no The Blue Book e nas Investigações Filosóficas. Para uma tentativa de construir uma teoria das regras criteriais e de seu papel semântico, ver G.P. Baker: “Criteria: A New Foundation for Semantics”, in Ludwig Wittgenstein: Critical Assessments, ed. Stuart Shanker (London: Croom Helm 1986), vol. 2, pp. 194-225.

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em experimentos de captação de neutrinos em tanques de água pesada encravados no interior da terra. E podemos dizer que os animais do período Jurássico foram reais com base em achados fósseis. O mais interessante caso de atribuição de realidade em um sentido inerente generalizado é aquele no qual afirmamos a existência ou realidade (inerente) do mundo externo como um todo. Esse sentido explica porque o homem da rua, quando questionado, não tem a menor dúvida em responder que sabe que o mundo externo é real. Pois bem: quando o homem da rua diz que o mundo externo é real, que ele existe, essa afirmação é uma espécie de generalização indutiva a partir de atribuições de realidade feitas no sentido inerente originário. Essa generalização é, em primeiro lugar, uma indução das repetidas experiências passadas da realidade inerente das coisas que atualmente estão fora do alcance de sua experiência (por exemplo, uma cidade em que ele esteve quando criança). A isso é acrescentado o conhecimento da realidade inerente de coisas através do testemunho (através disso ele sabe, por exemplo, que Napoleão existiu). Além disso, a sua experiência passada confirma que o mundo sempre mostrou possuir novas coisas que satisfazem os critérios inerentes de realidade, fazendo-o chegar à conclusão de que ele é aberto: ele tem razões indutivas para a sua expectativa de que irá sempre experienciar coisas novas, que certamente satisfarão os critérios inerentes de realidade. A conclusão indutiva inevitável é a de que existe todo um mundo de coisas (o nosso mundo) que se não são atualmente, são pelo menos potencialmente capazes de satisfazer os critérios de realidade inerente, dadas as circunstâncias adequadas (o que é uma maneira de dizer que nosso mundo os satisfaz). Essa prova do mundo externo pode receber uma versão mais sistemática, que refaz de forma mais rigorosa o raciocínio que todos nós, no processo de nosso desenvolvimento, devemos ter inadvertidamente realizado até adquirirmos a nossa certeza de senso comum de que o nosso mundo externo obviamente existe. Assim, usando a palavra ‘coisa’ no sentido amplo, usando a palavra ‘experiência’ não somente para referir à experiência direta (do giz, das mãos, do monitor de computador), mas também à experiência mais ou menos indireta (da eletricidade no computador, pela iluminação da tela, dos neutrinos atravessando a terra, pelos rastros deixados em tanques de água pesada...), e tendo como base somente o sentido inerente da atribuição de realidade externa, ou seja, os quatro critérios de realidade externa cuja aplicação a justifica, eis o argumento:

1. Muitas coisas que estão sendo presentemente experienciadas satisfazem os critérios de realidade externa (nossos corpos, os

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objetos ao nosso redor... e mesmo coisas indiretamente experienciadas).

2. A maioria das coisas que experienciamos no passado satisfizeram sucessivamente os critérios de realidade externa sempre que foram novamente experienciadas.

3. (Indutivamente de 2) Existem muitas coisas que foram objeto de experiência no passado e que, embora não estejam sendo experienciadas agora, ainda são capazes de satisfazer (ou seja: satisfazem) os critérios de realidade externa.

4. Sempre estivemos experienciando coisas novas ao nosso redor, as quais têm satisfeito os critérios de realidade externa.

5. (Indutivamente de 4) Deve haver portanto coisas não-experienciadas que são capazes de satisfazer (satisfazem) os critérios de realidade externa.

6. Testemunho é uma forma geralmente confiável de conhecimento, ainda que não experienciado.

7. Há muito testemunho de coisas que satisfazem os critérios de realidade externa.

8. (Dedutivamente de 6 e 7) Há muitas coisas não-experienciadas que satisfazem os critérios de realidade externa, sendo isso sabido via testemunho.

9. (Dedutivamente de 1, 3, 5 e 8) Há uma imensidade de coisas, algumas delas sendo (A), coisas presentemente experienciadas, satisfazendo nossos critérios de realidade externa, outras delas sendo (B1) coisas que não estão sendo experienciadas, embora saibamos que satisfazem nossos critérios de realidade externa, pois os satisfizeram no passado, outras delas sendo (B2), coisas não-experienciadas que sabemos satisfazer os critérios de realidade externa via testemunho, e ainda outras delas sendo (B3), coisas ainda desconhecidas, mas que certamente são capazes de satisfazer (satisfazem) nossos critérios de realidade externa, pois sempre estivemos experienciando novas coisas que satisfaziam esses critérios.

10. O que nós queremos dizer com a idéia do nosso mundo externo é o conjunto constituído pela totalidade das coisas, tal que parte dele é (A), parte dele é (B1), parte dele é (B2), e parte dele é (B3).

11. (Dedutivamente de 9 e 10) Nosso mundo externo como um todo satisfaz os critérios de realidade externa.

12. O que satisfaz os critérios de realidade externa é (inerentemente) real.

13. (Dedutivamente de 11 e 12) Nosso mundo externo como um todo é (inerentemente) real, ele existe.

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Esse argumento relativamente simples eu reputo como constituindo a verdadeira prova do mundo externo – aquela cuja ausência foi reclamada por Kant como o escândalo da filosofia e por muitos outros desde então. Embora ele seja uma aproximação, parece-me claro que é por já termos todos de modo geralmente não-consciente realizado raciocínios semelhantes que, enquanto não-filósofos, nos sentimos tão seguros em responder afirmativamente quando nos perguntam se o mundo externo de fato existe. Parece claro que em seus traços essenciais um raciocínio similar tem sido tacitamente realizado pelos seres humanos de todas as épocas. Pois mesmo se pudéssemos perguntar ao homem de Neandertal se o mundo externo existe, se ele é real, podemos supor que ele responderia que sim, referindo-se com isso, sem sabê-lo, à soma de todas as coisas, próximas ou distantes, que ele viu ou de que ouviu falar, e mesmo às coisas desconhecidas de que nunca ouviu falar, mas que com razão acredita satisfazerem os critérios inerentes de realidade externa. Curioso, aliás, não é que a prova simples aqui exposta tenha sido tacitamente conhecida até mesmo pelo homem das cavernas – curioso é que tão pouco se tenha ouvido falar dela desde então. Parte da importância das atribuições inerentes de realidade é que porque, quando generalizadas para o mundo como um todo, elas resgatam aquilo que o homem comum quer dizer ao afirmar coisas que parecem filosoficamente ingênuas como “É óbvio que o mundo existe” ou “Só filósofos e loucos colocariam em dúvida a realidade de nosso mundo exterior”. Tudo o que ele quer dizer é que temos uma ampla base inferencial, essencialmente indutiva, para acreditarmos que o mundo inteiro, como a soma dos seus constituintes presentemente experienciados, já experienciados e ainda não experienciados, é capaz de satisfazer os critérios standard de realidade inerente, sendo exatamente por isso que estamos preparados para afirmar que ele é indubitavelmente real. Até aqui tudo bem. As coisas só se complicam quando passamos ao sentido (b): o sentido aderente das atribuições de realidade. Este sentido é o que está em questão nas HCs, por exemplo, no caso em que me pergunto se estou sonhando, se sou uma alma enganada pelo gênio maligno, se sou um indefeso cérebro na cuba. Fundamental é notar que se a HC for verdadeira o mundo externo será irreal em algum sentido que não será o sentido inerente generalizado, posto que nesse sentido ele pode muito bem continuar a ser real, dado que ele continua satisfazendo todos os critérios de realidade inerente, mesmo nas generalizações indutivas de sua aplicabilidade para as suas partes não presentes. Afinal, mesmo que eu seja um cérebro na cuba (pace Putnam), acreditando que estou usando um pedaço de giz para escrever em um quadro negro, esse giz continua sendo real no sentido de que o complexo de sensações de peso, volume, forma etc. é maximamente intenso, intersubjetivamente experienciável,

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independente da vontade etc. esteja ele presente ou não, o mesmo podendo ser dito do quadro negro e de todo o meu mundo. Contudo, como faz sentido dizer se uma HC for verdadeira esse giz, o quadro negro e todo o mundo no qual me encontro é, de certo modo, irreal, esse só pode ser um caso de desatribuição de realidade em um outro sentido, que chamo de aderente. Examinemos agora as atribuições de realidade no sentido aderente. Elas podem ser feitas tanto com relação a uma porção maior ou menor do mundo (como nos casos de HC), como também com experiências particulares. Assim, em um experimento com realidade artificial posso, com a minha mão dentro de uma luva especial, ter a impressão de tocar em uma xícara holográfica que acredito estar vendo, mas que na verdade não existe, sendo isso experienciável também por outra pessoa que a segure também usando uma luva semelhante. Há aqui máxima intensidade sensorial, co-sensorialidade e intersubjetividade virtual, de modo que a xícara chega a ser, em certa medida, um objeto real no sentido inerente de atribuição de realidade, embora continue sendo um objeto irreal no sentido aderente de atribuição de realidade (falta-lhe ainda realidade inerente porque, por exemplo, se eu fechar com força a minha mão acabo fazendo com que ela penetre na xícara etc. – ela não satisfaz, pois, todas as regularidades esperadas). Há critérios para atribuições de realidade em sentido aderente? Quanto ao experimento com realidade artificial, há critérios para uma desatribuição de realidade que são simplesmente as informações recebidas sobre o experimento que está sendo realizado. Mas como será em casos de HC? Ora, suponhamos que eu seja na verdade um habitante do planeta Ômega, onde as experiências com cérebro na cuba são usuais, e que meu cérebro seja então implantado em um corpo vivo compatível. Uma vez acordado, outros habitantes do planeta Ômega tentam me convencer que em toda minha vida pregressa eu fora submetido ao programa “Professor de filosofia na terra”, e que esse é um procedimento pedagógico usual no planeta Ômega, visando assegurar maior diversidade mental entre seus habitantes. Agora, porém, eu estou no mundo real, o mundo de Ômega ao qual me estou adaptando rapidamente e da maneira até mais agradável do que a princípio imaginava... Ora, parece que também aqui tenho critérios para crer que o mundo no qual havia vivido antes era de fato ficcional. Tais critérios estão nas experiências muito diversas que estou tendo, na coerência das explicações de meus anfitriões, e até em uma visita à incubadora na qual o meu cérebro viveu até há pouco... Essencial, contudo, é notar que os critérios de realidade aqui considerados, os critérios aderentes, são completamente diversos dos critérios de realidade no sentido inerente, o que demonstra que o sentido da palavra ‘realidade’ aqui considerado é também diverso e

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suplementar, não havendo nada que os una, exceto o apelo a uma outra realidade inerente mais fundamental. As diferenças se tornam mais patentes quando variamos os exemplos de HC. Podemos não só imaginar critérios para que alguém saiba que a sua vida passada foi irreal, mas também com respeito a sua vida presente e futura. Suponha que, por razões humanitárias, a pena de morte e a prisão perpétua tenham sido banidas do planeta Ômega. Como alternativa, os irrecuperáveis são sentenciados a terem os seus cérebros retirados de seus crânios e colocados em cubas nas quais viverão uma vida ficcional na qual poderão cometer tantos crimes quanto desejarem, os quais serão igualmente ficcionais, não podendo dessa forma trazer mais nenhum malefício à sociedade. Uma vez sentenciado, porém, o criminoso sabe que passará a viver em um mundo ficcional, e uma vez iniciada a nova vida, ele preservará a consciência algo desagradável de que a sua vida não é no mundo real, de que embora completamente real ela no fundo nada tem de real. Os critérios que o fazem pensar que o seu mundo atual é real são os usuais critérios de realidade inerente, os quais continuam sendo perfeitamente satisfeitos, enquanto que os critérios que o fazem pensar que o seu mundo atual não é real relacionam-se a lembranças como a da pena à qual foi condenado e outras crenças de seu sistema. Seu mundo é inerentemente real e aderentemente irreal. Alguém poderia nesse ponto objetar que tais critérios de realidade aderente são demasiado frágeis. Imagine que eu acorde em outro mundo, que aprendo a ver como o mundo real do planeta Ômega, quando na verdade o meu cérebro foi apenas transportado para outra cuba, onde lhe é implementado um novo programa, qual seja, “Sendo acordando da vida como cérebro na cuba”. Pode até ser que a minha vida até agora tenha sido real e que hoje à noite, enquanto estiver dormindo, eu seja raptado pelos extraterrenos, os quais me retiram o cérebro e o colocam em uma cuba na qual seja implementado o programa “Sendo acordando da vida como cérebro na cuba”. Nesse caso eu estarei sendo duplamente enganado: em crer que agora não sou mais um cérebro na cuba e em crer que eu havia sido antes um cérebro na cuba. A resposta a essa objeção é a de que o conceito aderente de realidade é realmente muito mais frágil que o de realidade inerente, pois se trata de um conceito relativo, só utilizável comparativamente em circunstâncias especiais. Os critérios de realidade aderente, diversamente dos critérios de realidade inerente, permitem conclusões sempre e inevitavelmente relativas às informações que o avaliador presentemente possui sobre circunstâncias nas quais uma realidade inerente ilusória é produzida como subproduto de uma outra realidade, que por contraste é considerada não-ilusória.50 Devido a essa fragilidade, não podemos realmente afirmar que sabemos que uma HC é falsa e que nosso mundo é aderentemente real, a não ser em sentidos

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relativos e nunca absolutos. Se tudo o que o cético quisesse afirmar fosse isso ele teria razão. Estamos agora em condições de descobrir o que há de errado com o argumento da ignorância. Ele é falacioso porque nele nos deslocamos sub-repticiamente de uma justificada recusa a atribuir realidade aderente para uma injustificada recusa a atribuir realidade inerente. Eis como as atribuições/desatribuições de realidade no argumento AI(2) podem ser entendidas em cada linha de uma forma que explicite o tipo de atribuição de realidade mais naturalmente pensado até o equívoco final:

AI(3)1. Se sei que é (inerentemente) real que p, então sei que há um

mundo externo (inerentemente) real (mesmo que entendido como minimamente restrito a p).

2. Se sei que há um mundo externo (aderentemente) real, então sei que HC, da qual decorre que o mundo externo nada tem de (aderentemente) real, é falsa.

3. Não sei se HC, da qual decorre que o mundo externo nada tem de (aderentemente) real, é falsa.

4. (2,3) Portanto, não sei que há um mundo externo (aderentemente) real.

5. (1,4) Portanto, não sei que é (inerentemente) real que p.

Esclarecendo: na premissa 1, quando digo que ao saber que p sei que o mundo externo (ou parte dele) é real, estou fazendo uma atribuição de realidade em um sentido obviamente inerente da palavra. Pois aqui apelo a atribuições ordinárias inerentes de realidade. Mas não é esse o caso das premissas 2 e 3, pois elas estão ligadas ao contexto da HC. Se quisermos dar sentido a elas, isso só será possível se com elas fizermos atribuições aderentes de realidade. Assim, o condicional 2 afirma que se eu souber que o mundo externo é aderentemente real, então tenho bases para saber que HC é falsa, pois se ela fosse verdadeira o mundo externo seria aderentemente irreal. E 3 afirma que não sabendo que HC é falsa, não posso saber que o mundo externo é real, obviamente, no sentido aderente. A primeira conclusão, 4, que aplica o modus tollens a 3 e 2 como premissas, me leva a concluir que não sei que partes do mundo externo são reais no mesmo sentido de realidade das premissas 3 e 2, ou seja, no sentido aderente. Essa é também uma conclusão correta. O Equívoco vem

50 Quando nos perguntamos sobre a relação entre os dois tipos de critério, ou seja, entre os dois sentidos da palavra ‘realidade’, vemos que a desconfirmação da realidade aderente acaba sendo dada pela falta de uma adequada confirmação intersubjetiva (ex: os outros habitantes de Ômega não compartilham das experiências do cérebro na cuba), o que sugere que ela é, no final das contas, respaldada por critérios inerentes.

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no final, na linha 5, quando concluo que não posso saber que p é inerentemente real ao aplicar o modus tollens às linhas 4 e 1, pois em 4 o sentido da atribuição de realidade é aderente, enquanto em 1 o sentido dessa atribuição é inerente. Pelo fato de que não posso saber que o mundo externo é real no sentido aderente, e que através disso posso concluir que não posso saber se partes desse mundo são reais também no sentido aderente, não me torno autorizado a concluir que não posso saber que p é o caso no sentido inerente, por exemplo, que não posso saber que tenho duas mãos inerentemente reais. Em resumo: o cético, confundindo os sentidos aderente e inerente das atribuições de realidade, quer nos fazer concluir que pelo fato de não podermos absolutamente saber que o mundo externo é real no sentido aderente, não podemos saber que esse mundo e as coisas nele incluídas são reais no sentido inerente, como se lhes faltasse a concretude própria das coisas inerentemente reais, como se elas fossem de algum modo subjetivas, dependentes, fantasmagóricas, etéreas, como se elas não pudessem satisfazer os critérios para as atribuições de realidade no sentido inerente. Uma alternativa ainda válida seria interpretar o argumento da ignorância de modo a concluir que não podemos saber que p é real no sentido aderente, ou seja, que não posso saber que a realidade de p (que tenho duas mãos) não é parte de uma realidade ficcional na qual HC seja válida. Isso é correto. Mas certamente não é dessa trivialidade que o cético se alimenta. Ele quer nos convencer que não podemos saber que o mundo do homem comum é real no único sentido no qual ele quer e pode afirmá-lo. E ao pretender isso ele intenta produzir em nós uma ilusão conceitual.

13. Projeto para dar cabo do problema humiano da induçãoEm 2003-4 recebi uma bolsa de pesquisa para um pós-doutorado em Oxford. Há coisas não filosóficas que me apraz dizer sobre a Inglaterra. Achei de incomparável bom gosto a arquitetura aconchegante das Villages, com os seus encantadores jardins; e gostei especialmente da integridade e afabilidade das pessoas em geral. A atmosfera social era cortês e a palavra de ordem capaz de abrir os corações era ‘nice’ (e não ‘Entschuldigung’). Não é sem razão que tenha sido na Inglaterra que Norbert Elias escreveu a sua famosa obra medindo a civilização em termos do desenvolvimento de normas de conduta social capazes de aumentar a coordenação de nossas ações, que por sua vez aumentaria a eficácia do funcionamento de uma sociedade. Quanto à filosofia em Oxford, embora os tempos áureos já se tenham ido, um Departamento com mais de 70 docentes ainda é de certo modo único, pelo leque de alternativas que oferece. Em quatro Terms tive o prazer de assistir cursos com vários professores que conhecera antes apenas em livros, como Newton Smith, Quassim Cassam e John Foster, entre

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outros. Assisti o seminário de pesquisa de Derek Parfit no All Souls, mesmo sem me interessar por ética, movido pela curiosidade de conhecer os métodos de um filósofo cujo trabalho admiro. Assisti também a uma exposição de Timothy Williamson, um filósofo que divagava caminhando de um lado para o outro da sala com os olhos quase fechados por trás dos óculos. Embora o seu trabalho fosse considerado a última novidade de Oxford, minha impressão foi a de uma mistura algo incômoda de clareza lógica com confusão semântica, sem que os resultados fossem tão compensadores assim. Trata-se, metodologicamente, da antítese da filosofia da linguagem ordinária com a qual comecei. O ideal, pensando bem, deve residir no meio-termo, pois a filosofia da linguagem ordinária que recuse às injunções da análise lógica torna-se uma espécie de filologia cega, enquanto uma filosofia da linguagem ideal que se desvincule totalmente das intuições da linguagem ordinária facilmente recai em formalismo vazio. Apesar de tudo, onde mais aprendi foi nos livros altamente selecionados da biblioteca do Departamento. Fui para Oxford tendo como anfitrião o professor Richard Swinburne, que é talvez o mais influente filósofo teísta da religião contemporâneo. Minha escolha do professor Swinburne não se deu, porém, devido ao meu interesse menor pela filosofia da religião, mas pelo fato de ele ter editado The Justification of Induction (1974), que ainda hoje é a mais importante coletânea que possuímos sobre o intratável problema da indução. Esse problema consiste na pretensa demonstração feita por Hume de que é impossível uma justificação racional para a validade de nossas inferências indutivas.51 O longo ensaio que escrevi em Oxford, intitulado “The Metaphysics of Inductive Reasoning”, é uma tentativa impublicável (pela inadequação dos detalhes) de encontrar uma justificação analítico-conceitual para as nossas inferências indutivas. A idéia central, porém, é clara e a meu ver correta. Antes de resumi-la, quero reconstruir rapidamente o argumento de Hume. Segundo este filósofo, as nossas inferências indutivas requerem princípios de uniformidade da natureza que as garantam. Para simplificar, me restringirei ao princípio mais conhecido, que chamo de

PF: o futuro será semelhante ao passado.

Se esse princípio for verdadeiro, ele garantirá as inferências indutivas do passado para o futuro. Considere o seguinte exemplo:

1. O futuro será semelhante ao passado (PF).2. O sol sempre nasceu a cada dia.

51 Hume: An Inquiry Concerning Human Understanding, ed. L.A. Selby-Bigge (Oxford: Oxford University Press 1989), sec. IV.

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3. Portanto: o sol nascerá amanhã.

O problema da indução começa com a constatação de que a primeira premissa, uma formulação do PF, não é uma verdade da razão caracterizada por sua negação ser contraditória, ou seja, não é uma proposição analítica. É perfeitamente imaginável, escreve Hume, que o futuro se torne muito diverso do passado, por exemplo, que árvores floresçam no inverno e que a neve queime como fogo. Mesmo assim podemos ter a convicção de que o futuro será semelhante ao passado com base em nossa experiência de futuros que já passaram, os quais foram semelhantes aos seus próprios passados. Eis a inferência que nos leva a crer em PF:

1. Os futuros já passados sempre foram semelhantes aos seus próprios passados.

2. Portanto: O futuro será semelhante ao passado.

O problema é que essa é uma inferência indutiva. Para justificar a indução recorremos a PF, o princípio de que o futuro será semelhante ao passado, e para justificar PF recorremos outra vez à indução. A intentada justificação da indução demonstra-se assim circular, posto que depende de um princípio que acaba ele próprio por depender da indução para ser firmado. Não há, pois, justificação racional possível para a indução, não havendo, portanto, justificação racional, nem para as expectativas criadas pelas leis da ciência empírica, nem para as nossas expectativas cotidianas, posto que ambas claramente baseiam-se na indução. Só uns poucos filósofos acompanharam Hume nessa conclusão.52 A maioria pensa que algo deve estar errado em algum lugar. Minha estratégia ao abordar o problema consistiu em tentar mostrar que Hume fez uma aplicação distorcida dos princípios da uniformidade, os quais, se bem entendidos, admitem uma interpretação analítico-conceitual. A idéia – que possui um leve sabor kantiano – é a de que faz parte do nosso conceito de mundo (natureza, realidade) que ele seja aberto à indução. Para nós um mundo só pode ser dado se ele for ao menos concebível. Mas não podemos conceber nenhum mundo sem certo grau de regularidade, de uniformidade, e como só podemos experienciar o que podemos conceber, então não podemos experienciar nenhum mundo destituído de regularidade. Como a existência de regularidade (uniformidade) é o que basta para que algum procedimento indutivo seja aplicável, então não há para nós nenhum

52 Só alguns poucos, como Karl Popper, embarcam na canoa humiana, concluindo que a ciência não se baseia na indução. Mas críticos de Popper como Newton-Smith monstraram ser impossível sustentar essa idéia sem em algum ponto implicitamente readmitir a indução. Ver W.H. Newton-Smith: The Rationality of Science (London: Routledge 1984), p. 64.

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mundo concebível nem experienciável que não seja aberto à indução. Assim, enquanto houver um mundo, procedimentos indutivos serão inevitavelmente aplicáveis a ele. Mas não poderia existir um mundo caótico, destituído de qualquer regularidade? Pode parecer que sim, pois ao pensarmos na indução somos facilmente levados a nos concentrar nas regularidades diacrônicas, como o próprio Hume o fez ao tematizar apenas a relação causal. Mas a indução também deve justificar a persistência das regularidades sincrônicas, ou seja, das relações sincrônicas entre elementos que perduram no tempo, como as que existem entre as faces de um cristal. Outro nome para isso é estrutura. Regularidades sincrônicas são estruturas que perduram no tempo. Ora, um mundo sem nenhuma estrutura não é concebível, não sendo então experienciável. Esta sugestão é corroborada pela constatação feita por Keith Campbell, segundo a qual para que possamos experienciar cognitivamente um mundo – uma realidade objetivamente estruturada – precisamos estar continuamente reaplicando conceitos empíricos, os quais, por sua vez, para serem fixados, aprendidos e usados, exigem uma reidentificação dos designata de suas aplicações como sendo idênticos; ora, isso só é possível se houver um certo grau de uniformidade no mundo, suficiente para permitir a reidentificação.53 Se o mundo pudesse perder totalmente a regularidade, então nenhum conceito mais se reaplicaria, a experiência do mundo cessaria e ele deixaria, para nós, de existir. Mas não poderia existir um mundo com alguma estrutura, alguma uniformidade, a qual mesmo assim fosse insuficiente para a aplicação de procedimentos indutivos? Parece que não, pois a indução tem uma natureza auto-ajustável. A exigência de base indutiva, de uma repetida experimentação indutiva, pode ser tornada sempre maior, quanto mais improvável for a uniformidade esperada; por conseguinte, mesmo um sistema com uniformidade mínima, exigindo uma máxima busca indutiva, sempre acabaria possibilitando o sucesso indutivo. Ou seja: basta haver alguma uniformidade para que algum procedimento indutivo nos permita idealmente encontrá-la. Essas constatações estão longe de constituir um argumento suficientemente detalhado. O que elas sugerem é um entremeado de inferências conceituais como as resumidas no seguinte diagrama:

Experiência cognitivo-conceitual

53 Como notou Keith Campbell, qualquer uso de um termo geral envolve concomitância de características em um segmento espácio-temporal. Ver seu artigo “One Form of scepticism about Induction”, in Richard Swinburne (ed.): The Justification of Induction (Oxford: Oxford University Press 1974), p. 146.

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do mundo

Aplicabilidade de Aplicabilidade de Conceitos empíricos procedimentos indutivos

Existência de regularidades no mundo (existência do mundo) Se semelhante quadro de inferências é correto, então, ao contrário do que Hume acreditava, quando adequadamente entendidos os princípios da uniformidade devem revelar-se verdades analítico-conceituais. Quero trazer mais alguma evidência para essa tese fazendo considerações mais específicas sobre PF, o princípio que eu agora gostaria de reformular como

PF1: O futuro deverá ter alguma semelhança com o seu passado.

Como sabemos, uma proposição é analítica quando é uma verdade cuja negação é inconsistente e inconcebível.54 Hume tinha razão em não ver PF como uma proposição analítica (podemos conceber, por exemplo, que a colisão de um asteróide ou uma guerra atômica modifique profundamente o futuro sobre a face da terra). Mas, diversamente de PF, seu substituto PF1 tem boas chances de ser analítico. Se um futuro não tiver nada a ver com o seu passado, não parece que poderíamos sequer reconhecê-lo como sendo o futuro do seu próprio passado, pois ele poderia ser então o futuro de qualquer outro passado. Já vimos que, como exemplo de negação do princípio, Hume considera que podemos conceber que a neve passe a queimar como fogo e que as árvores passem a florescer no inverno... Mas esses exemplos são tão sugestivos quanto ilusórios, pois como uma enorme multidão de outras regularidades permanece, eles estão longe de tornar o futuro tão dessemelhante do passado a ponto de invalidar procedimentos indutivos. A meu ver o caráter ilusório da negação do princípio por Hume evidencia-se no fato de que toda vez que tentamos negar PF1, concebendo uma dessemelhança tão grande entre futuro e passado que invalide os procedimentos indutivos, falhamos em conceber uma natureza, um mundo objetivo minimamente estruturado.

54 Ignoro aqui a crítica de W.V-O. Quine ao conceito de analiticidade, apresentada em seu artigo “Two Dogmas of Empiricism”, Philosophical Review 60, 1951. Essa crítica foi em meu juízo suficientemente refutada por outros autores; ver a respeito Grice e Strawson “In Defense of a Dogma”, Philosophical Review 65, 1956.

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Para tornarmos esse ponto mais claro podemos nos valer de um exemplo. Imagine, em uma tentativa, uma “completa transformação do mundo” como a narrada no livro bíblico do Apocalipse. É difícil imaginar alterações mais drásticas do que as que foram aí descritas. Afinal, trata-se da narração do próprio fim do mundo! Mas é um erro pensar que a destruição de nosso mundo descrita no Apocalipse implicaria em uma negação de PF1, posto que a idéia de uma “completa transformação” não é aqui entendida em um sentido literal. Se examinarmos o texto mais de perto veremos que a grande maioria das coisas com as quais estamos familiarizados – ou seja, as regularidades sincrônicas básicas e mesmo muitas regularidades diacrônicas – continua inalterada após a transformação, embora elas tenham sido bizarramente combinadas, como na passagem bíblica descrevendo os gafanhotos enviados pelo quinto anjo:

O aspecto desses gafanhotos era o de cavalos aparelhados para a guerra. Seus rostos eram os de homem. Seus cabelos como os de mulher, seus dentes como os de leão. Seus tórax pareciam envoltos em ferro. (...) Tinham caudas semelhantes ao escorpião, com ferrões e o poder de afligir os homens por cinco meses.55

Ora, nada há aqui que ponha em questão PF1 nem sequer PF. Pois embora não estejamos familiarizados com esses gafanhotos bíblicos, eles são constituídos por combinações de coisas com as quais estamos muito bem familiarizados (como cabelos, mulheres, homens, dentes, escorpiões, ferrões...), as quais incluem internamente e externamente uma vasta soma de regularidades, de associações estruturais (ex: rostos de pessoas) e seqüenciais (ex: a relação causal entre a ferroada do escorpião e os efeitos do seu veneno nos seres humanos por certo tempo), que permanecem preservadas e indutivamente acessíveis. Com efeito, se não fosse assim o Apocalipse não seria compreensível, pensável, concebível, nem passível de descrição lingüística, e o que é inconcebível e impensável é também impossível de ser experienciado. Vemos aqui que o mundo futuro precisa, ao menos em suas relações proximais com o seu passado, continuar suficientemente semelhante ao seu passado para que possa ser concebível como o futuro desse mesmo passado, ou seja, ele deve continuar suficientemente semelhante ao seu passado para caucionar a aplicação de procedimentos indutivos no reconhecimento de sua continuidade como um mundo, pois um mundo sem abertura indutiva não é concebível. Mas o que dizer de um futuro imensamente posterior ao presente? Ele não poderia ser totalmente diferente do passado? Parece que sim. Parece que se interpretássemos PF1 como podendo considerar um futuro que não incluisse o futuro que vem imediatamente após o presente e as sequências 55 Apocalipse, livro 9.

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de acontecimentos que daí se seguem, PF1 poderia ser falseado. Mas não é nesse sentido que gostaria de entender PF1. Somos aqui levados a outra verdade conceitual constatável na relação considerada por PF1. É que quanto mais nos aproximamos do ponto de junção entre o futuro e o passado, maior deve ser a semelhança entre ambos. Esse último ponto creio ser possível evidenciar previamente com base na análise aristotélica da mudança como pressupondo permanência. A idéia foi aplicada ao problema da indução por Nicholas Maxwell, para quem alguma permanência precisa sempre haver, posto que toda mudança pressupõe alguma espécie de permanência de associações estruturais contra a qual ela é medida.56 A isso podemos adicionar que o grau de permanência pressuposto é inversamente proporcional ao período de tempo em que a mudança se dá. Assim, uma mudança que se dá em um período muito curto de tempo tende a pressupor mais permanência do que a que se dá em um período mais prolongado. Considere, por exemplo, as mudanças resultantes do aquecimento de um pedaço de cera. A mudança do estado sólido para o estado líquido pressupõe a mesma cera como material. Mas a mudança seguinte, da cera líquida para a cinza de carbono, pressupõe apenas a permanência da matéria (átomos de carbono). Eis um esquema mostrando como a mudança ocorrida em um mais breve período de tempo pressupõe mais permanência:

Momento 1... Momento 2... Momento 3... Cera sólida: ============ Cera líquida: ============== Cinza de carbono: ============ Cera: ======================= Matéria: ==================================

Do momento 1 ao momento 2 pressupõe-se como permanente a cera e a matéria. Já do momento 1 ao momento 3 pressupõe-se como permanente apenas a matéria (átomos de carbono). Como esse modelo se repete em quaisquer outros exemplos de mudança que possamos imaginar, parece que é da própria estrutura do mundo da experiência que mudanças ocorridas em um período de tempo mais curto pressuponham mais permanências, em outras palavras, que o futuro mais próximo deva ser mais semelhante ao

56 Nicholas Maxwell: “Necessary Connections between Sucessive Events”, in Richard Swinburne (ed.): The Justification of Induction, p. 154.

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passado que o futuro mais distante, permitindo com isso inferências indutivas mais prováveis. O princípio PF1 pode assim ser precisado como

PF2: O futuro deverá ter maior semelhança com o passado quanto mais próximo ele estiver do ponto de junção com o seu passado.

Considerações como essa nos levam a perceber que a necessidade de uma semelhança do futuro com o passado se torna cada vez menor quanto mais distante estiver o futuro. Isso ajuda a explicar porque as nossas generalizações indutivas sobre o futuro nunca chegam a ser sobre um futuro indefinidamente remoto, como talvez possa parecer. Quando dizemos que a indução nos permite inferir que o sol sempre nascerá, a palavra ‘sempre’ precisa ser colocada entre aspas. Faz sentido afirmar, tendo como base indutiva o fato do sol sempre ter nascido, que ele nascerá amanhã e mesmo daqui a mil anos. Mas não faz sentido algum (e na verdade é preditivamente falso) usar a mesma base indutiva para dizer que nascerá daqui a 60 bilhões de anos. Estou bem consciente de que os argumentos recém-sumarizados são demasiado esquemáticos para responderem ao problema da indução de forma conclusiva. Mas indicar o que parece ser a direção mais certa já pode ser de alguma ajuda para um problema que à primeira vista parecia tão desorientador quanto intangível.

14. Um paradoxo de fácil soluçãoVale notar que o filósofo norte-americano Nelson Goodman sugeriu um novo enigma da indução com o qual pretendeu substituir o velho enigma humiano.57 Para expô-lo ele começou por sugerir um novo conceito, o de verul (grue), por ele definido como se estendendo a todas as coisas que são verdes antes do momento t e azuis depois de t. A questão que ele apresenta é: por que a observação de um tipo de coisa – digamos, esmeraldas – que são verdes antes de t, não é uma boa base indutiva para a inferência de que esmeraldas após t serão azuis, enquanto a observação de que esmeraldas são verdes antes de t é uma boa base indutiva para a inferência de que elas serão verdes depois de t? Não me parece que este seja um paradoxo profundo, apesar de cumprir com a função de todo o paradoxo, que é a de nos forçar à reflexão. A reação mais natural é notar que o predicado ‘verul’, diversamente da maioria, é um predicado processual, no sentido de ser definido por referência a uma propriedade com duas partes que se sequenciam no tempo: o de antes e o de depois de t. Sendo assim, qualquer aplicação observacional-verificacional desse predicado é dependente da observação

57 Nelson Goodman: Fact, Fiction and Forecast (Cambridge Mass.: Harvard University Press 1974).

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do que é o caso não só antes, mas também depois de t, sendo incompleta se isso não acontecer. Constatar que algo é verul antes de t é como afirmar a raça de um cão tendo visto apenas o seu rabo. Como no caso em questão as observações que nos devem fornecer suporte evidencial para ‘verul’ ocorrem todas antes de t, não temos nenhum modo de aplicar tal predicado à propriedade de maneira a formar um verdadeiro suporte evidencial para inferências indutivas. Como contraste, suponha que antes de t alguém faça a associação observacional (i) “A esmeralda A é verde”. Nesse caso a pessoa está observacionalmente justificada em dizer que a proposição é verdadeira, posto que ‘verde’ não é nenhum predicado processual e já pode ser efetivamente aplicado. Sendo assim, o acúmulo de observações como (i) pode contar como elemento para formar suporte evidencial indutivo para a conclusão de que esmeraldas encontradas após t são verdes. Por outro lado, suponha que antes de t alguém tente fazer a afirmação: (ii) “A esmeralda A é verul”. Como ‘verul’ é um predicado processual, e como sua aplicação só se completa na dependência do que for observado também depois de t, é impossível tornar essa afirmação verdadeira somente através da observação anterior a t, o que significa que é impossível constituir um suporte evidencial para a conclusão indutiva “Esmeraldas encontradas depois de t são verduis”. (Observe que após t a aplicação observacional do predicado ‘verul’ se torna possível. Suponha que todas as esmeraldas encontradas depois de t se tornem azuis e, por conseguinte, verduis. Nesse caso haverá suporte indutivo para a expectativa de que a próxima esmeralda a ser encontrada também será verul). Contra respostas como a que acabei de propor, Goodman sugeriu que também o verde pode ser temporalmente definido. Definindo ‘azerde’ como o que é azul antes de t e verde depois de t, diz ele, podemos de algum modo definir ‘verde’ como o que é verul antes de t e azerde depois de t. Mas isso é incorreto como uma definição de verde, pois transforma ‘...é verde’ como se fosse um predicado processual. Todavia, chamamos verde ao que é verde no período de tempo em torno da observação, e não ao que será verde no futuro após t. Se eu digo “Essa árvore é verde”, não estou implicando com isso que ela será verde daqui a alguns meses ou anos, mas que ela é verde agora. E se isso tivesse de ser implicado eu não poderia mais dizer que ela é verde.

15. Níveis de ação e a teoria do cérebro triúnoHá dois artigos relacionados um ao outro que comecei a desenvolver em Oxford e terminei em Natal. Um deles consistiu na investigação de três níveis de ação e das relações dinâmicas entre eles. O outro foi sobre livre arbítrio, elucidando o compatibilismo com base na teoria da ação.

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O primeiro artigo foi publicado sob o título de “Três níveis de ação” na revista Ethic@. A idéia é simples. Há três níveis de ação claramente hierarquizáveis. O mais inferior (já presente até mesmo nas ações dos vermes e insetos) é o de ações autônomas. Tais ações são movimentos corporais com propósitos evolucionariamente herdados, que nada têm de conscientes. Exemplo disso é a ação de construção da teia pela aranha e a ação do coração de bombear o sangue. Elas diferem de movimentos corporais sem propósito, como os de uma crise epiléptica ou o de um tique nervoso. Esse nível está presente mesmo nos seres humanos, sob forma de ações automatizadas. Os dois níveis seguintes requerem mentalidade. O segundo nível (comum a homens e a vertebrados em geral) é o de ações volitivas, que são causadas por um querer ativo, mas na independência de razões. Exemplo disso é a ação de deglutir o alimento ou o cantar do galo ao amanhecer. O terceiro nível, enfim (comum a homens e a uns poucos mamíferos superiores), é o das ações raciocinadas, em que o querer é causado por razões. Exemplos disso são as minhas ações de mudar de emprego, de ir ao médico, de declarar o imposto de renda. Eu as realizo com base em crenças sobre como satisfazer desejos, ou seja, em razões. A transição do nível da ação volitiva para o nível da ação raciocinada foi em meu juízo registrada pelo famoso experimento de Wolfgang Köhler com chimpanzés, os quais, após alguns momentos de reflexão, decidiam empilhar caixas umas sobre as outras para, subindo nelas, alcançar as bananas. Quando repetidas muitas vezes as ações tendem a passar de um nível superior a um nível inferior, de modo a deixar a mente consciente livre para tratar de outros negócios. Assim, quando uma pessoa começa a aprender datilografia, para digitar a letra ‘e’ ela pode precisar recorrer a uma tabela. Movida por desejos e crenças, ela realiza uma ação raciocinada. Mais tarde essa ação se torna volitiva, pois ela precisa ainda querer apertar a tecla, embora não precise mais raciocinar para chegar a isso. Finalmente, quando ela se encontra bastante treinada, a ação se torna totalmente automatizada, de modo que ela não é mais capaz sequer de dizer quando ou quantas vezes digitou a letra ‘e’ em uma frase. É verdade que a letra ‘e’ é automaticamente digitada dentro do escopo da ação de produção de uma frase que é volitivamente desencadeada, e que essa frase se encontra dentro do escopo da ação da produção de um texto, a qual é racionalmente escolhida, mas essas sobreposições não nos precisam confundir. Para essa distinção psicológico-comportamental entre três níveis de ação dinamicamente relacionados encontrei um fundamento neurofisiológico na teoria do cérebro triúno, do grande neurofisiologista norte-americano Paul McLean. Segundo a sua teoria, o cérebro opera como três computadores biológicos interconectados, que foram sucessivamente adicionados no processo evolucionário:

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1) O archipalium (responsável por processos autônomos, como o da respiração) já presente em insetos.2) O mesopalium ou sistema límbico (responsável pelas emoções e desejos) e comum aos vertebrados.3) O neopalium (responsável pelo entendimento e razão) e típico dos mamíferos superiores.

É fácil identificar o archipalium como sendo primariamente responsável pelas ações autônomas, o sistema límbico pelas ações volicionais e o neopalium pelas ações raciocinadas.

16. Livre arbítrio: refinando o compatibilismo tradicionalO Segundo artigo terminado em Oxford foi “Free Will and the Soft Constraints of Reason”.58 Ele foi enviado à revista Ratio, que já havia publicado “I’m Thinking”. O novo artigo não só foi aceito como me valeu um convite do editor, John Cottingham, para almoçar com ele no Saint John’s College. Lá ele me informou que a publicação havia sido recomendada por ele próprio e pelo professor Galen Strawson, reconhecido especialista no assunto. Quero resumir a idéia principal. O problema clássico do livre arbítrio é o de explicar como é possível que possamos decidir e agir livremente se somos partes de um mundo que é completamente determinado causalmente. Há tipicamente três tipos de resposta. A primeira é a do determinismo cético: não somos realmente livres, a liberdade é uma ilusão. A segunda é a do libertarismo: embora participemos de um mundo causalmente determinado, somos uma exceção: quando decidimos livremente tornamo-nos causas incausadas, rompendo as cadeias do determinismo causal. A terceira resposta é a do compatibilismo. Segundo o compabilismo tradicional, a liberdade de decisão e ação não depende da ausência do determinismo causal (exista ela ou não), mas tão somente da ausência de restrições. Ser livre não é ser restringido. Assim, dizemos que o escravo foi libertado porque agora ele pode fazer o que quiser, e dizemos que o rio corre livre por ele ter rompido a barragem. Há problemas com a definição compatibilista tradicional, tal como foi defendida com base em Hobbes. Considere, por exemplo, o contra-exemplo do suicídio coletivo dos seguidores de Jim Jones. Nós diremos que eles não agiram livremente, pois foram restringidos pela influência de um líder fanático. Mas outros poderão ainda dizer que nada os restringiu e que o suicídio teria sido um ato de afirmação do livre arbítrio. Afinal, eles mesmos, em sua grande maioria, teriam dado precisamente essa resposta. Como decidir?

58 C.F. Costa: “Free Will and the Soft Constraints of Reason”, Ratio 2006, vol. XIX, pp. 1-23.

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Uma maneira contemporânea de se lidar com muitos contra-exemplos é recorrer às assim chamadas definições compatibilistas hierárquicas de livre arbítrio introduzidas por H.G. Frankfurt. Mas também há problemas com as definições hierárquicas, que embora respondam bem a alguns contra-exemplos, deixam escapar outros. Minha maneira de resolver tais questões consistiu simplesmente em elaborar a definição tradicional compatibilista de livre arbítrio. Não tenho espaço para detalhar isso aqui, mas quero expor a principal chave argumentativa, que consistiu em analisar a questão tendo em mente a moderna teoria causal da ação, posto que tal teoria é em princípio determinista.59 Em seu cerne essa teoria nos diz que uma ação é tipicamente um evento (em geral um movimento corporal) causado por um querer ativo (intention in action, proximal intention, trying...) que o acompanha. Em muitos casos esse querer ativo é causado por um querer prévio (previous intention). A emergência de um querer ativo ou de um querer prévio é o que chamamos de decisão. O querer prévio e, por vezes, o querer ativo, são freqüentemente causados por razões, geralmente entendidas como conjunções de desejos e crenças. Por exemplo: quero encher o tanque de gasolina do carro; se me perguntarem por que razão quero fazer isso direi: porque desejo fazer uma longa viagem e creio que para tal o tanque precisa estar cheio. Essa conjunção de desejo e crença é a razão de minha decisão de encher o tanque, desse meu querer prévio. O querer prévio, por sua vez, causa o meu querer ativo, que faz com que eu pare em um posto e realize a ação de colocar gasolina no tanque de modo a realizar um efeito intencionado, que é o de chegar ao meu destino. Eis um esquema de uma ação raciocinada:

1ª Decisão 2ª Decisão RAZÃO -> QUERER -> QUERER -> MOVIMENTO -> EFEITOS (desejo & PRÉVIO ATIVO CORPORAL EXTERNOS crença)

Ora, essa teoria é ideal para caucionar uma classificação e investigação detalhada dos diversos níveis de restrição da liberdade pessoal sob a perspectiva compatibilista. Antes de fazê-lo, porém, precisei refinar o conceito de restrição da liberdade, introduzindo uma distinção já sugerida 59 Versões diversas da teoria causal da ação são encontradas em Donald Davidson, Essays on Actions and Events (Oxford: Clarendon Press 1980); A.I. Goldman, A Theory of Human Action (Englewood Cliffs: Prentice Hall 1970); J.R. Searle, Intentionality: an Essay in the Philosophy of Mind (Cambridge: Cambridge University Press 1983), cap. 3; Robert Audi: Action, Intention and Reason (Ithaca: Cornell University Press 1993). Berent Enç, How we Act: Causes, Reasons and Intentions (Oxford: Clarendon Press 2003). Ver também a coletânea editada por A.R. Mele, The Philosophy of Action (Oxford: Oxford University Press 1997).

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por Richard Taylor, entre dois tipos de restrições: (a) as limitações (que nos diminuem as alternativas disponíveis) e/ou (b) as coerções (que nos forçam a certas alternativas disponíveis).60 Além disso, distingui as origens mais próximas e importantes das restrições entre (a) externas (como a falta de água em um deserto, que impede a pessoa de beber água) e (b) internas (como o desejo de beber de um alcoólatra, que o força a beber contra a sua vontade). Em adição a essas distinções considerei o fato de que aquilo que vale como restrição depende do contexto da decisão/ação em que a liberdade ou ausência de liberdade está sendo avaliada. Para tal mostrei que nosso uso do conceito de liberdade costuma ser restrito a leques de alternativas razoáveis, sempre contextualmente determinados. Assim, posso reclamar que não sou suficientemente livre, como professor, para dar as aulas que desejo, devido a restrições exageradas e arbitrárias impostas por planos de cursos, posto que essa opção está contida no leque de alternativas razoáveis dentro do qual vige a minha liberdade. Contudo, não posso dizer que não sou livre para ocupar o tempo das aulas cantando árias de minhas óperas preferidas, pois isso extrapola os limites do leque de alternativas razoáveis que o contexto coloca ao meu dispor. A desconsideração desse vínculo contextual pode levar a declarações absurdas de filósofos que assumem que dispomos de alguma forma absoluta de liberdade. Cientes dessas distinções podemos agora opô-las ao esquema da ação raciocinada, começando do final. A primeira coisa que encontraremos serão aqui restrições físicas da liberdade (liberty), no nível da passagem dos movimentos corporais para os efeitos intencionados (como no caso de alguém que tenta ligar um carro cuja ignição não funciona) ou mesmo da passagem do querer ativo ao movimento corporal (como no caso de uma pessoa amarrada a um poste). Só nos níveis seguintes é que temos o que pode propriamente ser chamado de restrições do livre arbítrio da vontade (liberum arbitrium voluntatis). Na passagem do querer prévio ao querer ativo (como no próprio querer ativo) podem ocorrer restrições ocasionadas por desejos intervenientes, como o do soldado que não consegue atirar no inimigo (limitação interna) ou do alcoólatra que não consegue se impedir de tomar mais uma dose (coerção interna). Ter liberdade da vontade (freedom of will) é não ser restringido a esse nível. Finalmente, temos o mais interessante dos casos, que é quando a restrição se dá ao nível da formação de razões ou de sua passagem para o querer (liberum arbitrium). Para exemplificar temos o caso do psicopata racista, que acredita que fará um bem à humanidade matando o maior número possível de pessoas de cor negra (coerção como indução racional 60 Essa distinção foi feita por Richard Taylor, um filósofo libertarista. Ver seu livro Metaphysics (Englewood Cliffs: Prentice-Hall 1983), p. 41.

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interna), ou ainda o caso do psicótico que se recusa a comer, por crer que a comida esteja envenenada (limitação racional interna). Outros exemplos são o caso do suicídio coletivo dos seguidores de Jim Jones (em que temos uma indução racional externa), ou o caso da pessoa que por superstição não faz negócios no dia 13 (limitação racional externa). Tais casos são de especial interesse, pois somos com demasiada frequência restringidos em nossa liberdade por influências externas da parte de outras pessoas ou da sociedade, sem nos darmos conta disso. Em todos esses casos entram em questão razões intervenientes de origem interna ou externa, que restringem a autonomia do processo deliberativo no sentido de levar a pessoa a tomar decisões não-livres que ela pensa que são livres. Uma curiosidade acerca de restrições de ordem racional é que quando delas falamos estamos geralmente nos referindo ao ponto de vista de uma terceira pessoa, de um sujeito avaliador externo. É geralmente assim porque a pessoa que decide com base em razões restritivas (ao menos no momento de sua decisão) não está consciente de que não faz isso livremente. É por sermos sujeitos avaliadores externos, ou por fazermos parte de uma comunidade de sujeitos avaliadores externos, com perspectivas e valores similares, que geralmente avaliamos se em casos particulares a razão é ou não é livre. Outra questão é sobre o que dá ao sujeito avaliador externo a sua condição eventualmente privilegiada sobre outros sujeitos, sem o que cairemos no relativismo. Minha sugestão é que a sua condição se torna privilegiada quando a sua avaliação é apoiada em algo próximo àquilo que Habermas chamou de uma comunidade ideal de fala (ideale Sprachgemeinschaft), ou seja, no que podemos chamar de uma comunidade crítica de avaliadores potenciais que possuem o acesso máximo à informação e conhecimento, maior competência, completa liberdade de expressão e intercâmbio de opiniões etc. Juntando todos esses elementos cheguei a uma formulação mais elaborada e precisa da definição compatibilista tradicional de livre arbítrio. Chamando de S o sujeito avaliado e de A o sujeito avaliador e (admitindo que A possa eventualmente ser o próprio S em um esforço de auto-avaliação), a definição pode tomar a seguinte forma61:

61 Considere, por exemplo, a teoria de Frankfurt, segundo a qual a ausência da liberdade da vontade decorre da ausência de controle das volições de ordem superior sobre os desejos que deveriam causar a ação. Parece possível traduzir isso em termos do bloqueio de uma cadeia causal complexa, apoiada por volições de ordem superior, devido a uma cadeia causal interveniente constrangedora, que toma o lugar da primeira na produção dos movimentos corporais. Ver H. Frankfurt: “Free Will and the Concept of a Person”, Journal of Philosophy, 68, 1971, pp. 5-22. Acredito que uma investigação detalhada na direção indicada seria capaz de incorporar elementos positivos de posições compatibilistas hierárquicas com as de Garry Watson, Richard Double, Susan Wolf e vários outros.

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S age livremente sob a perspectiva de A (ancorado em uma comunidade crítica de avaliadores potenciais)seedentro de um leque de alternativas razoáveis, a ação de S não for nem externamente nem internamente limitada e/ou constrangida, quer ao nível físico, quer ao nível da volição, quer ao nível da razão.

Não sei de contra-exemplos ao compatibilismo que não revelem desconformidade com as exigências dessa definição.

17. A natureza da consciênciaEm 2005 passei a participar do primeiro doutorado em filosofia da região Nordeste do país, criado sob iniciativa do professor André Leclerc. Pela mesma época comecei a desenvolver um pequeno ensaio intitulado “Definindo Consciência”.62 Meu objetivo foi desenvolver uma definição imanente do que queremos dizer com a palavra ‘consciência’ e investigar, com base nisso, as suas principais subdivisões. Meu ponto de partida foi a sugestão de Owen Flanagan de que a consciência se define como experiência.63 Mesmo substituindo a palavra ‘experiência’ pela palavra ‘representação’, mais adequada, tal definição seria ampla demais: quando sonhamos, por exemplo, temos representações (e experiências) sem termos consciência. Ora, qual é a diferença entre representações como as do sonho e representações conscientes? A resposta mais plausível me parece ser a de que a representação consciente tem a propriedade de ser verídica, diversamente da representação meramente sonhada. Considerações como essa nos fazem concluir que a marca mais genérica da representação seja o seu caráter de representação verídica, ou seja, de representação das coisas tal como elas são ou podem ser tidas como realmente sendo. Claro que ainda continua sendo possível conceber uma representação verídica inconsciente, como no caso de experimentos com experiências perceptuais subliminares.64 Contudo, uma resposta para essa dificuldade pode ser dada quando distinguimos entre consciência perceptual e introspectiva ou reflexiva como (seguindo Locke) prefiro chamar. A distinção entre consciência perceptual e introspectiva foi introduzida na discussão contemporânea pelo filósofo australiano David Armstrong.65

62 C.F. Costa: Filosofia da Mente (Rio de Janeiro: Zahar 2005).63 Owen Flanagan: “Consciousness”, in W. Bechtel & G. Graham: A Companion to Cognitive Science (Oxford: Blackwell 1998), p. 184.64 Esse é o caso, por exemplo, quando são apresentadas imagens tão rapidamente que a pessoa não as percebe, mas em testes posteriores é possível demonstrar que houve um registro inconsciente de seu conteúdo.

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A consciência perceptual, como a entendo, é a representação (ou experiência) verídica do mundo exterior, ou seja, dele, tal como ele realmente é. Nesse sentido, estar consciente é estar acordado, atento, percebendo o mundo externo e o próprio corpo. Essa modalidade é tão abrangente quanto irrelevante, pois é com base nela que dizemos, por exemplo, que um camundongo sedado com éter perdeu a consciência; contudo, não é certamente um conceito de consciência que vale para camundongos aquele que estamos interessados em investigar. A segunda e para Armstrong realmente importante modalidade de consciência, que parece ser quase restrita à espécie humana, pode ser entendida como a representação (ou experiência) verídica do mundo interior, ou seja, dos estados internos da mente, tal como eles realmente são. Essa é a consciência que uma pessoa tem de estar feliz, de estar pensando, de estar contemplando uma paisagem etc. Ela é a consciência introspectiva ou reflexiva, a qual exige uma cognição (pensamento, juízo) de ordem superior, que tome por objeto um estado mental de nível inferior de maneira verídica, caso no qual dizemos que esse último estado se tornou consciente. 66 Posso, para dar um exemplo, ter uma dor de dente muito leve que só se torna consciente quando penso nela, quando tenho uma cognição dela. Digo então que tenho consciência da dor (forma relacional) ou que essa dor é consciente (forma predicativa). Para Armstrong essa forma de consciência teria surgido pela necessidade evolucionária de sistemas cognitivos mais complexos de monitorar os seus processos mentais de primeira ordem através de estados mentais de ordem superior. Curiosamente, é só pela consciência reflexiva que nos tornamos cientes da existência da consciência perceptual, pois a consciência perceptual é inconsciente de si mesma: o camundongo acordado não sabe que está acordado; ele deve sentir medo ao ver um gato, mas não tem consciência de que tem medo. Isso resolve o problema criado pelas representações verídicas inconscientes, como é o caso das percepções subliminares. Elas são inconscientes apenas quando entendidas em termos de consciência reflexiva; mas elas constituem, enquanto representações verídicas, parte da consciência perceptual que não passa de consciência inconsciente. Algumas conseqüências dessa maneira de ver se refletem nas subdivisões das duas modalidades consideradas. O que tem sido chamado de consciência fenomenal, por exemplo, acaba por demonstrar-se uma mistura ambígua de consciência perceptual com consciência reflexiva de estados mentais fenomenais, como sensações e emoções, revelando-se um

65 David Armstrong: “What is Consciousness?” In N. Block, O. Flanagan e G. Güzeldere (eds.): The Nature of Consciousness: Philosophical Debates (Cambridge Mass: MIT-Press 1997).66 Ver também David Rosenthal: “A Theory of Consciousness”, in N. Block, O. Flanagan e G. Güzeldere (eds.): The Nature of Consciousness: Philosophical Debates.

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conceito pouco esclarecedor. E falamos da consciência moral quando o estado mental veridicamente representado de nível inferior tem a ver com moralidade (daí a relação próxima entre consciousness e conscience).

18. Estados mentais como estados neurofuncionais Outro projeto que me interessou desenvolver na época consistiu na tentativa de ressuscitar o essencial da teoria da identidade type-type. Segundo essa teoria, os (tipos de) estados mentais são o mesmo que os (tipos de) estados cerebrais.67 A princípio nada mais razoável. Mas há fortes objeções contra isso. A única que considerei em algum detalhe foi a da múltipla realizabilidade, devida a Hilary Putnam. Segundo essa objeção, um mesmo estado mental, por exemplo, a dor, pode se realizar como descarga de “fibras-C” no homem, mas como descarga de “fibras-D” no polvo, e ainda de forma completamente diferente no cérebro de líquido verde de um marciano ou no cérebro mecânico de um robô... – o que destrói a requerida identidade de tipo.68 A resposta que me ocorreu ainda enquanto estava em Berkeley era a de que, ao menos no que diz respeito a estados fenomenais tal objeção é falaciosa, pois identifica estados mentais com estados “materiais” do cérebro (histológicos, anatômicos, bioquímicos...), quando deveria identificá-los apenas com estados também materiais, mas de ordem neurofuncional. Assim, se ao invés de recorrermos a uma definição histológica, falando enganosamente de “fibras-C”, preferirmos identificar genericamente a dor com uma excitação de certos centros pré-corticais de tal e tal modo, que é interpretada ao nível cortical de tal e tal modo e que geralmente é causada pelas descargas de neurônios nociceptores periféricos, os quais são definidos como ativáveis pelo calor e inibidos por substâncias sedativas como a morfina... estaremos nos aproximando de uma definição neurofuncional. Em tal caso, porém, torna-se plausível dizer que tanto o homem quanto o polvo podem ter realizações neurofuncionais de dor que sejam suficientemente similares para caber na definição. Afinal, se o polvo tiver células nervosas ativáveis pelo calor e inibíveis pela morfina, elas serão células nociceptoras, tanto quanto as nossas. E algo assim bem pode ser o caso. Ora, mas o que dizer da dor dos marcianos e dos andróides? Essa questão eu sugiro que seja avaliada pelos que conseguem levar a sério um filme como Artificial Inteligence, de Steven Spielberg.69

67 Ver principalmente J.J.C. Smart, “Sensations and Brain Processes”, Philosophical Review 68, 1959.68 Ver Hilary Putnam: “The Nature of Mental States”, in Mind, Language and Reality: Philosophical Papers, (Cambridge: Cambridge University Press 1975), vol. 2.69 Meu esboço não publicado sobre a questão intitula-se “Multiple Realizability and the Neurophysiological Identity”.

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Tenho vagas intuições sobre como desenvolver respostas mais consistentes do que as atuais às objeções feitas à teoria da identidade de tipo no que concerne a estados fenomenais (qualia). Contudo, não creio que a teoria possa ser aplicada a estados cognitivos (pensamentos, crenças, intenções...). De fato, parece desesperadora a expectativa de que possamos encontrar uma realização cerebral única para o pensamento de que estamos no mês de agosto. Assim sendo, mesmo sendo possível encontrar uma identidade type-type para estados fenomenais, parece-me que estados cognitivos, devido a sua natureza abstrata, só são capazes de identidade token-token. Disso alguns concluiriam que, como identidades token-token podem ser de qualquer coisa com qualquer outra coisa, o amplo domínio do mental-cognitivo pode ser “despregado” do cérebro biológico. Pode-se aceitar esse resultado, favorável aos que crêem na existência de uma alma intelectiva, capaz de sobreviver à morte do cérebro. Mas como materialista e defensor de um naturalismo biológico do mental, eu rejeito esse resultado com base no seguinte argumento. Falsos estados cognitivos, como os “pensamentos” e “raciocínios” de um computador, não vêm associados a estados fenomenais. Já os verdadeiros estados cognitivos são inevitavelmente associados a estados fenomenais, que são em algum sentido capazes de fundamentá-los, de torná-los aquilo eles que são. Como notou Kant, pensamentos sem intuições são cegos; e como notou Hume, os raciocínios precisam estar atrelados às paixões. Ora, o que essas considerações sugerem é que os estados cognitivo-indefinidamente-neurofuncionais, com as suas identidades token-token, acabam por depender essencialmente de estados fenomenais-definidamente-neurofuncionais, com as suas identidades type-type, sendo que essa dependência sozinha já basta para pregar firmemente todo o domínio do mental em seu cérebro biológico.

19. O que faz de uma pessoa a mesma pessoa?Nessa época também escrevi alguns textos sobre o problema da identidade pessoal, que pode ser enunciado como sendo o de estabelecer os critérios pelos quais podemos saber que uma pessoa permanece a mesma no curso do tempo. O texto mais desenvolvido se intitula “Identidade pessoal: por uma criteriologia mista”70, onde defendi a existência necessária de critérios físicos e psicológicos. O critério físico pode ser de dois tipos:

F1 permanência da mesma matéria, F2 uma conexão causal entre as estruturas materiais que as preserve no curso do tempo.

70 “Identidade pessoal: por uma criteriologia mista”, in Critérios de realidade e outros ensaios (London: College Publications 2010).

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A exigência de que ao menos um dos dois tipos seja satisfeito cobre casos difíceis, como o da máquina de substituição de corpo, imaginado por Sydney Shoemaker.71 Esse autor nos faz considerar uma civilização na qual o alto índice de radioatividade faz com que as pessoas facilmente desenvolvam algum tipo de câncer. Felizmente, lá existem máquinas de substituição do corpo. Elas funcionam assim: uma vez que uma pessoa entra em uma dessas máquinas, cada molécula de seu corpo é substituída por uma nova molécula igual, a qual é disposta exatamente no mesmo lugar, de modo que após algumas horas a mesma pessoa sai da máquina com a sua matéria corporal totalmente renovada. Pode parecer que essa experiência prove que a continuidade de uma pessoa depende totalmente de características psicológicas e não de qualquer característica física. Mas quem pensa assim está considerando apenas o critério físico do tipo F1. Quando consideramos o critério do tipo F2, a conexão causal material, vemos que ainda há um elemento físico responsável pela continuidade da pessoa, que é a conexão causal entre a estrutura material do corpo antes de passar pela máquina e depois disso, pois sem o papel causal da matéria estruturada anterior, tendo como efeito a preservação de uma mesma estrutura material posterior, a máquina não seria capaz de realizar a substituição. Tanto é assim que quando o critério F2 também falta, nós nos recusamos a dizer que se trata da mesma pessoa. Assim, se por uma absurda obra do acaso, as moléculas de um pântano se reunissem de modo a formar um ser absolutamente idêntico a Napoleão, com todas as suas memórias e traços psicológicos, estando certos de que não há nenhuma relação causal alguma entre essa figura e o Napoleão dos livros de história, não hesitaremos em rejeitar a idéia de que possamos estar diante do verdadeiro Napoleão. Embora a condição F1 ou F2 precise ser suficientemente satisfeita, isso não basta, o que pode ser demonstrado pela experiência imaginária de modificação do cérebro. Imagine que uma pessoa esteja em uma mesa de cirurgia com a calota craniana aberta e que neurocientistas façam com que ela ganhe características psicológicas, implantando então novas memórias e redesenhando o seu cérebro de maneira que ela passe a ter características psicológicas, intelectuais e afetivas totalmente novas. A pessoa que acordará da mesa de cirurgia será certamente uma outra, mesmo que o material físico do seu cérebro continue o mesmo. Isso significa que certa permanência de características psicológicas, intelectuais e emocionais, além da memória a elas ligada, é necessária para a identidade. Considerando que características cognitivas e memória, além de um elemento volicional, são indispensáveis, pois não parece que uma mente

71 Sydney Shoemaker & Richard Swinburne: Personal Identity (Oxford: Blackwell 1984), p. 109.

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possa trabalhar sem esses elementos, sugeri que as características mentais necessárias fossem:

M1 a permanência de características cognitivas (pensamento, raciocínio, reflexão...)M2 a permanência de características mnêmicas (memória de habilidades, memória de conhecimento, memória pessoal...).M3 a permanência de características afetivo-volicionais (traços de personalidade, caráter...)

O critério de identidade pessoal torna-se então uma regra de segunda ordem, que se aplica às características dos tipos F e M. Aqui está ele:

IP: Para que uma pessoa permaneça a mesma ela deve satisfazer os critérios F1 e/ou F2 e, em alguma medida, M1, M2 e M3.

É curioso notar que não temos como precisar o grau de satisfação dos critérios. Se, por exemplo, existisse um ser humano que não envelhecesse e vivesse por centenas de anos, e se nele pouco a pouco as memórias fossem sendo perdidas e substituídas por outras mais recentes e completamente diversas, e se as suas habilidades intelectuais e disposições emocionais acabassem por se modificar completamente, e, ainda mais, se todas essas modificações ocorressem várias vezes, em fases, tenderíamos a dizer que o mesmo corpo encarnou várias pessoas no correr de sua longa vida. Mas não parece que nos possa ser dada uma medida exata, um ponto de corte para determinarmos quando isso ocorre ou deixa de ocorrer, a não ser recorrendo a alguma espécie de estipulação. Minha conclusão é a de que, em última análise, o conceito de identidade pessoal não é só vago, mas é também solto (loose) em sua aplicação. Ele possui um insuperável elemento de arbítrio, que o faz depender de nossos interesses práticos, daquilo que queremos com ele. Essa é a principal razão pela qual têm-se encontrado tanta dificuldade com os critérios de identidade pessoal: eles não fazem o trabalho limpo que muitos filósofos gostariam que eles fizessem.72

20. Como nomes próprios referem?O próximo problema que considerei não pertence à metafísica, como o da identidade pessoal, mas à filosofia da linguagem. Interessei-me por ele pelo

72 Roderick Chisholm (seguindo Reid) pretendia distinguir o sentido filosófico do sentido solto (loose) da identidade pessoal. Se digo que depois do casamento ela virou uma outra pessoa, estou usando o sentido solto. O que pretendi evidenciar é que, para desconsolo dos filósofos, todos os sentidos são, no final das contas, soltos. Ver Roderick Chisholm: Person and Object (Chicago: Open Court 1976), p. 104 ss.

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fato de ter precisado orientar uma tese doutoral sobre a referência dos nomes próprios. A questão é: como é que nomes próprios como Aristóteles, Paris, Vênus etc. são capazes de designar seus objetos? Segundo a tradicional teoria do feixe de descrições, sugerida por filósofos como Frege, Russell, Wittgenstein e Searle, o que podemos ter em mente com um nome próprio, de maneira a sermos capazes de usá-lo referencialmente, é exprimível por um subconjunto indefinido de um conjunto aberto de descrições co-referenciais (minimamente, uma disjunção). Assim, um nome próprio como ‘Aristóteles’ pode vir no lugar de descrições definidas (que começam com um artigo definido) como ‘o estagirita’, ‘o autor da Ética a Nicômano’, ‘o discípulo de Platão’, ‘o fundador do Liceu’, ‘o tutor de Alexandre’, ou mesmo descrições indefinidas (que começam com um artigo indefinido) como ‘um grego’, ‘um filósofo’.73 Um problema com essa teoria é que, como Kripke e outros notaram,74

um nome próprio pode se aplicar sem que nenhuma das descrições usualmente associadas a ele necessariamente se aplique. Assim, pode ser que Aristóteles não tenha nascido em Estagira, que se descubra que não foi o autor da Ética a Nicômano e que não foi o tutor de Alexandre. Pode até existir um mundo possível no qual Aristóteles seja um filósofo árabe medieval que escreveu uma obra similar em conteúdo ao opus aristotélico, sem que um filósofo grego de mesmo nome tenha nele existido... A resposta que tenho sugerido foi publicada em 2011 no artigo intitulado “A Meta-Descriptivist Theory of Proper Names”, na revista Ratio.75 Ela consiste em encontrar uma meta-regra que dê ao feixe de descrições uma estrutura valorativa adequada, aumentando o poder explicativo do descritivismo. Para tal precisamos primeiramente distinguir descrições fundamentais de descrições auxiliares várias, que merecem ser descartadas. Considere, por exemplo, descrições contingentes como ‘o tutor de Alexandre’, ‘o fundador do Liceu’, ‘o pai de Nicômano’ ou mesmo ‘o amante de Herphylis’. Aristóteles com ceteza continuaria sendo ele mesmo, ainda que não tivesse sido nada disso. Além disso, há muitas descrições definidas típicas, como ‘o estagirita’, ‘o mestre dos que sabem’, que têm função apenas expressiva ou metafórica, fazendo muito pouco para caucionar a identificação do objeto referido. Finalmente, existem descrições que são adventícias e temporárias, como a usada pelo aluno que só sabe dizer de Aristóteles que ele é ‘o filósofo mencionado pelo professor’. Minha 73 Ver especialmente o artigo de J.R. Searle: “Proper Names”, Mind 67, 1958. 74 Ver Saul Kripke: Naming and Necessity cap. II. Para uma resposta importante e nunca refutada, ver J.R. Searle: Intentinality: an Essay in the Philosophy of Mind (Cambridge: Cambridge University Press 1983), cap. 9. 75 Essas idéias são apresentadas também em um livro em preparação intitulado Como expressões referenciais referem? no qual a posição cognitivista-descritivista é sistematicamente desenvolvida em teorias da referência.

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sugestão é que pessoas que só sabem essas coisas sobre Aristóteles só são capazes de se referir a Aristóteles de um modo dependente ou insuficiente, por se fiarem na existência de usuários privilegiados do nome, que realmente sabem quem foi Aristóteles, só estes últimos referindo-se a ele de modo independente ou suficiente, por associarem seu nome a descrições fundamentais (há aqui uma divisão de trabalho lingüística de caráter cognitivo). As formas tradicionais da teoria do feixe são enganosas, a meu ver, principalmente por usarem como exemplos descrições como as recém-mencionadas, visto que as descrições fundamentais para a referência do nome próprio são de outro tipo. Elas são expressões lingüísticas de duas regras identificadoras do objeto, que são:

(A) REGRA LOCALIZADORA: que estabelece a localização e carreira espacio-temporal do portador do nome próprio,(B) REGRA CARACTERIZADORA: que estabelece uma caracterização daquilo que consideramos como mais relevante no portador do nome próprio, de modo a justificar nossa aplicação do mesmo.

Assim, para um nome como ‘Aristóteles’ a descrição ‘a pessoa nascida em Estagira em 383 a.C., que viveu grande parte da sua vida em Atenas e que faleceu em Chalcis em 322 a.C.’ exprime resumidamente a nossa regra localizadora de Aristóteles no espaço e no tempo. Já a descrição que permite caracterizar Aristóteles por aquilo que consideramos relevante nele e que por isso justifica nossa identificação através do nome próprio pode ser resumida como ‘o autor do conteúdo relevante do opus aristotélico’. É interessante notar, como comprovação da importância dessas descrições, que enciclopédias geralmente explicam o que nomes próprios querem dizer a partir de descrições dos tipos (A) e (B). Se você procurar na Wikipédia, por exemplo, o nome ‘Floriano Peixoto’, o que aparecerá primeiro não será a descrição definida auxiliar ‘o marechal de Ferro’, mas uma descrição como:

(Maceió 1839 – Barra Mansa 1895) Militar e político brasileiro, primeiro vice-presidente e segundo presidente da república, de 1891 a 1894, tendo sido o responsável pela sua consolidação.

Essa descrição concentra-se nos critérios identificadores dos tipos (A) e (B). Algo semelhante resulta se considerarmos outros nomes, não só de pessoas, mas também de coisas, como ‘Taj Mahal’, ‘Paris’ e ‘Rio Amazonas’.

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Aqui pode ser objetado que sequer as condições identificadoras dos tipos (A) e (B) precisam estar sendo satisfeitas! Afinal, pode haver certo mundo possível M muito próximo ao nosso, mas no qual Aristóteles foi o pseudônimo de um filósofo árabe medieval que escreveu em grego apenas a Ética a Nicômano, não havendo nenhum Aristóteles grego para competir com ele, o que parece que nos permite admitir que nesse mundo Aristóteles existiu como esse filósofo árabe. Nesse caso apenas a condição (B) está sendo, ao menos parcialmente, satisfeita. Mas não é difícil responder a essa objeção. Basta admitir que as condições dos tipos (A) e (B) para certo nome próprio devam ser sempre condicionadas a uma regra de regras, que chamo de regra meta-identificadora disjuntiva. Aqui está ela:

RMI: Um nome próprio N se aplica em um mundo possível qualquer see existir um objeto de certa espécie que esteja na origem (tipicamente causal)76 da consciência dos usuários privilegiados do nome N de que a condição (A) para N e/ou a condição (B) para N estaja(m) sendo suficientemente satisfeita(s), sem que haja nenhum outro objeto da mesma espécie que a(s) satisfaça na mesma medida.

Aplicando RMI às descrições localizadora e caracterizadora de um nome próprio nós estabelecemos o que pode ser chamado de a regra de identificação (RI) para esse nome. Assim, se o nome for ‘Aristóteles’ temos:

RI-‘Aristóteles’: O nome próprio ‘Aristóteles’ se aplica em um mundo possível qualquer see nele existir uma pessoa que está na origem (tipicamente causal) da consciência de usuários privilegiados do nome de que ela nasceu em Estagira em 384 a.C., viveu grande parte de sua vida em Atenas, e morreu em Chalcis em 322 a.C. e/ou de que foi o autor das grandes idéias contidas no opus aristotélico, satisfazendo essa(s) condição (condições) suficientemente e mais do que qualquer outro ser humano.

Se aplicarmos essa regra de identificação ao caso do filósofo árabe medieval que em um mundo possível muito próximo escreveu o opus aristotélico, veremos que ele satisfaz unicamente e suficientemente a condição (B), mas não a condição (A), o que já basta para que ele satisfaça

76 Essa origem é geralmente causal. Quero com isso fazer uma concessão à idéia de Kripke de que não há referência se não houver uma relação causal, atual ou ao menos inferida como possível, entre o objeto e o seu nome. Contudo, essa relação causal deve ser aqui entre o objeto e a cognição da descrição fundamental e não entre o batismo do objeto e o proferimento do nome.

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a regra de identificação para Aristóteles. Contudo, se nesse mundo possível também houvesse outro Aristóteles nascido em Estagira em 383 a.C., filho do médico Nicômano, mas falecido jovem, antes de se tornar filósofo, ou se alguma outra pessoa tivesse escrito o conteúdo da Ética a Nicômano na Grécia antiga, teríamos razões para repensar nossa decisão de nele identificar o pensador árabe medieval como sendo Aristóteles, pois outra pessoa estaria satisfazendo suficientemente a disjunção de condições e talvez até mais do que o filósofo medieval. Se a medida da satisfação dos objetos concorrentes for aproximadamente a mesma pode não haver como decidir, o que significa não teremos como aplicar a regra, devendo concluir que Aristóteles não existe, posto que na lógica dos conflitos criteriais 1 + 1 = 0. Essa solução permite responder primeiro ao problema do significado dos nomes próprios (uso a palavra ‘significado’ no sentido de ‘sentido’ (Sinn) ou ‘conteúdo informativo’ (infomatives Gehalt) ou ainda ‘conteúdo epistêmico’ (Erkenntniswert) fregeanos). Em que ele consiste? Certamente não na forma da regra de identificação (RMD), que é a mesma para cada nome próprio. Também não nas descrições auxiliares, embora se possa dizer delas que formam franjas de significado. O significado de um nome próprio deve consistir centralmente naquilo que lhe é mais distintivo, qual seja, em suas regras-descrições localizadora e caracterizadora. Quem sabe o significado do nome é quem, em maior ou menor medida, domina essas regras e que chamo de usuário privilegiado do nome próprio. Outras pessoas, como aquele que sabe que Aristóteles foi o preceptor de Alexandre ou que acredita que Aristóteles foi o pai de Platão podem ser capazes de inserir o nome ‘Aristóteles’ corretamente na linguagem, mas não sabem realmente o que ele significa (uso a palavra ‘significado’ aqui no sentido de conteúdo informativo ou valor cognitivo), devendo assumir que usuários privilegiados existem e são capazes de completar ou corrigir o pouco que sabem. E se os usuários privilegiados do nome próprio desaparecessem e com eles os meios de se obter o conhecimento das descrições fundamentadoras, o significado do nome próprio também se perderia. A solução sugerida também permite responder à objeção de que a teoria do feixe não dá conta do caráter de designador rígido do nome próprio, entendido como sendo o de se aplicar a um mesmo objeto em qualquer mundo possível no qual esse objeto venha a existir. Ora, a regra de identificação para um nome próprio que satisfaz RMI se aplica ao mesmo objeto em qualquer mundo possível no qual ele exista, posto que simplesmente define aquilo que é capaz de ser individuado como o portador do nome. Com efeito, basta lermos RI-‘Aristóteles’ como uma descrição complexa para vermos que ela é analítica.

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Certamente, haverá mundos possíveis nos quais não saberemos se a regra de identificação para um nome é minimamente satisfeita ou não (digamos que tenha nascido um Aristóteles em Estagira em 384 a.C., filho de um médico da corte, mas que ele tenha morrido logo após o nascimento... e que ninguém tenha escrito o opus aristotélico). Mas isso sugere apenas que a semântica dos mundos possíveis deve ser reescrita de modo a dar lugar a casos indecidíveis. Para dar conta disso o designador rígido precisa então ser redefinido como aquele que se aplica a todos os mundos possíveis nos quais o objeto definidamente existe. A resposta acima permite explicar porque nomes próprios são designadores rígidos, diversamente de descrições definidas em geral. O nome próprio ‘Floriano Peixoto’, por exemplo, é rígido: ele se aplica em todos os mundos possíveis nos quais Floriano Peixoto existiu, posto que a sua regra de identificação sempre se aplica em mundos possíveis onde ele existiu, posto que define quem pode ter sido Floriano Peixoto. O mesmo não acontece com a descrição definida ‘o primeiro presidente do Brasil’. Ela não se aplica em um mundo possível no qual outra pessoa foi o primeiro presidente ou mesmo no qual Dom Pedro II não foi deposto e o Brasil se tornou uma monarquia constitucionalista. Por que é assim? A resposta é fácil. Por força da regra de identificação do nome próprio, nós incluímos as descrições definidas no feixe de descrições associado ao nome próprio no que diz respeito ao nosso mundo atual, tal como o conhecemos ou pensamos conhecer. Mas essa inclusão é contingente. Nenhuma das descrições, nem mesmo as mais fundamentais, se encontra necessariamente vinculada ao nome. A dita inclusão, digamos assim, é “frouxa”. Ela não precisa manter-se em outros mundos possíveis e nem sequer valer realmente para o nosso. Eis porque uma descrição definida como ‘o primeiro presidente do Brasil’ é um designador flácido e não rígido. A evidência a favor dessa sugestão é que descrições definidas fundamentais que não se encontram semanticamente subordinadas a nenhum nome próprio costumam ser vistas como designadores rígidos. Considere, por exemplo, a descrição ‘o terceiro regimento de Cavalaria de Sintra’. Ela pode ser considerada rígida, aplicando-se em qualquer mundo no qual esse regimento exista, mesmo que composto por diferentes cavaleiros e cavalos. Ela é rígida porque exprime uma regra de identificação que não está associada a nenhum nome próprio, não podendo por isso haver divergência entre o objeto de aplicação dessa regra e o objeto de aplicação de um nome próprio ao qual ela se vincule em algum mundo possível. Outros exemplos de descrições naturalmente rígidas são: ‘o assassinato do arquiduque Ferdinand em Sarajevo em 1914’ e ‘a última idade do gelo’, que designam respectivamente um evento e um processo.

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A teoria meta-descritivista recém resumida permite respostas mais convincentes aos muitos contra-exemplos ao descritivismo. Considere, por exemplo, o contra exemplo de Kripke, segundo o qual a descrição associada ao matemático Kurt Gödel é ‘o inventor da prova da incompletude’. Imagine agora, diz ele, que se descubra que a prova foi na verdade descoberta por Schmidt, que morreu em Viena em circunstâncias misteriosas e que seu amigo Gödel tenha roubado a prova e publicado em seu próprio nome. Nesse caso, se nomes fossem abreviações de descrições, pensa Kripke, deveríamos admitir que Gödel é Schmidt, pois é a Schmidt que devemos agora associar a descrição. Mas isso é contra-intuitivo, pois continuamos certos que Gödel é Gödel e não Schmidt, mesmo sabendo que foi um falsário e não descobriu a prova da incompletude. A resposta que a versão meta-descritivista da teoria do feixe dá ao exemplo em questão é, ao contrário, perfeitamente intuitiva. O usuário privilegiado do nome ‘Gödel’ o reconhece por satisfazer a regra de localização (A) de ter nascido em Brünn em 1906, estudado em Viena, emigrado para os EUA e trabalhado em Princeton, onde faleceu em 1976, e por satisfazer a regra de caracterização (B) de ter sido um grande matemático que descobriu o teorema da incompletude além de muitas outras contribuições menores. Assim, mesmo que Gödel deixe de satisfazer parte (digamos 2/3) da regra de caracterização, ele continua satisfazendo integralmente a regra de localização, satisfazendo, pois, RI para ‘Gödel’ bem mais do que RI para ‘Schmidt’. Eis porque Gödel não pode ser Schmidt!

21. Os fundamentos últimos da moralidadeConjuntamente com questões sobre filosofia da linguagem e metafísica, a questão do sistema ético mais fundamental me motivou. Para encontrá-lo, a primeira pergunta é: qual é o locus originário da moralidade? A intenção moral, a ação moral ou o seu efeito? Mais detalhadamente: como geralmente a intenção (boa ou má) conduz à ação (boa ou má) que conduz à conseqüência (boa ou má) surge a pergunta: o que é mais fundamental, o bem da intenção, o bem da ação ou o de sua conseqüência? Minha resposta encontra-se no artigo “Razões para o utilitarismo”.77 Suponha que as conseqüências de certas intenções ou ações boas se tornassem sempre más (ex: suponha que dar presentes passasse a trazer má sorte às pessoas que os ganhassem). Nesse caso as ações que produzem tais conseqüências acabariam por deixar de serem consideradas boas, assim como as intenções correspondentes. Mas uma conseqüência má não deixa de ser má, mesmo que seja sempre o produto de intenções ou ações boas. Ora, essa assimetria sugere fortemente que o locus originário do valor moral está na conseqüência da ação, pois ela é boa ou má na independência da qualidade 77 Em Cartografias Conceituais: Uma abordagem da filosofia contemporânea.

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valorativa da ação e da intenção. Com isso caem as éticas deontológicas (na medida em que priorizam as regras morais envolvidas na ação) e também caem as éticas da virtude (na medida em que priorizam as boas intenções), restando o conseqüencialismo (na medida em que prioriza os resultados da ação). Mas que conseqüencialismo? Há três formas: egoísmo, altruísmo e utilitarismo. Nem o egoísmo nem o altruísmo me parecem respeitar a natureza humana. O primeiro, buscando o bem para o agente sem consideração pelos outros, nega as nossas disposições naturais para fazer o bem, não dando lugar a coisas importantes como o exercício da amizade e do amor. O segundo, buscando o bem para os outros, mas desconsiderando o bem para o próprio agente, reprime as disposições de auto-realização e constrange a liberdade individual. O utilitarismo, porém, preserva o melhor de ambos: o bem de todos, incluindo o do próprio agente, podendo o seu princípio máximo ser entendido como sendo o do bem maior para todos os que possam ser envolvidos, na medida de seu envolvimento.78 E como o bem só pode ser pensado em termos de aumento do prazer e/ou diminuição do desprazer (o que só estóicos negariam), concluo que o utilitarismo hedonista é a doutrina que exprime o princípio ético mais originário. O utilitarismo hedonista pode tomar duas formas: a de um utilitarismo de ação e a de um utilitarismo de regras. Segundo o utilitarismo de ação, devemos seguir o princípio acima exposto de procurar o bem maior para todos os envolvidos. Segundo o utilitarismo de regras, devemos seguir as regras que se tenham demonstrado produtoras do bem maior para todos os envolvidos. Minha resposta, que logo descobri já ter sido sugerida na década de 1970 por R.M. Hare79, consiste em admitir um utilitarismo em dois níveis, combinando essas duas formas, mas dando primazia última ao utilitarismo hedonista de ação. No nível mais fundamental, de nossas ações cotidianas, vale o utilitarismo de regras, pois seguimos as regras de ação dadas (Hare diz que em tais casos nos comportamos como proles). Aqui seguimos aquelas regras que a experiência demonstrou que costumam produzir o maior bem (prazer) para a maioria. Nós seguimos tais regras sem avaliá-las, porque não temos tempo para tanto, porque não nos encontramos em condições de fazer uma avaliação independente, porque precisamos segui-las para facilitar a coordenação de nossas ações em sociedade e especialmente para manter a credibilidade nossa e do próprio sistema de regras.

78 Digo “todos os que possam ser envolvidos” porque quero obstar a busca do bem maior para o que está demasiado distante e desconectado da ação (considerando o fato apontado por Sidgwick de que sabemos avaliar melhor aquilo com o que estamos mais proximamente envolvidos) e digo “na medida do seu envolvimento” porque quero salientar a necessidade de reciprocidade.79 R.M. Hare: Moral Thinking (Oxford: Clarendon Press 1981), parte I.

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Não obstante, há um segundo nível, bem menos freqüente, no qual vale o utilitarismo de ação (Hare nota que em tais casos nos comportamos como arcanjos). Trata-se de situações excepcionais, nas quais percebemos que ao seguirmos a regra não estamos mais produzindo um bem maior para a maioria, mas um mal tão grande que a decisão de evitá-lo sobrepuja todas as vantagens de se assegurar a nossa credibilidade ou a credibilidade do sistema de regras e tudo o mais. Em tais casos devemos esquecer a regra, seja ela qual for, e seguir o princípio utilitarista de fazer o bem maior para todos os que possam estar envolvidos, na medida do seu envolvimento. Um exemplo disso é o do inocente homem gordo, lembrado por Kai Nielsen.80

O inocente homem gordo guia um grupo de doze pessoas em cavernas junto ao mar. Como o nível da água está subindo, ele se apressa em conduzir as pessoas para fora da caverna através do único buraco existente. Contudo, ao subir ele fica entalado no buraco, não conseguindo mais nem sair nem voltar. Se essa situação continuar, todos morrerão afogados, com exceção do homem gordo. Felizmente, alguém tem uma banana de dinamite consigo, que se explodida junto ao inocente homem gordo permitirá que todos os outros se salvem. Para um filósofo utilitarista como Kai Nielsen, provocar a morte do homem gordo para salvar a vida dos demais não é só a alternativa correta, mas um dever; e abster-se de fazê-lo é revelar uma forma de frouxidão moral.

22. O inefável sentido da vidaEm 2006 acontecimentos da vida pessoal fizeram renascer em mim o interesse por problemas existenciais como o do sentido da vida. A leitura de alguns artigos da excelente coletânea reunida por E.D. Klemke81 e de um inspirado livrinho de John Cottingham intitulado On the Meaning of Life82

me fizeram ver no sentido da vida um problema filosófico substancial, para além da idéia que havia mantido até então de que a vida – obviamente – não tem sentido algum. Minha conclusão, justificada no artigo “O inefável sentido da vida”83, foi a de que esse sentido, redefinido como o grau de significação de uma vida, o seu valor, pode ser avaliado em termos de felicidade, definida em termos de uma satisfação duradoura de desejos físicos, emocionais e intelectivos, não acompanhada de insatisfação. Quanto ao valor dos variados prazeres resultantes da satisfação desses desejos, pensei-os à lá Bentham, em termos hedonistas. Para Bentham não há nada de especial nos prazeres mais superiores ou sublimes. Ele deu primazia a esses prazeres apenas porque eles são mais duradouros, não vêm

80 Kai Nielsen: “Against Moral Conservatism”, em L.P. Pojman (ed.): Ethical Theory: Classical and Contemporary Readings (Belmont 1989).81 E.D. Klemke (ed.): The Meaning of Life (Oxford: Oxford University Press 2000).82 John Cottingham: On the Meaning of Life (London: Routledge 2000).83 Publicado no livro Critérios de realidade e outros ensaios.

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seguidos de desprazeres e têm o poder de produzir outros prazeres, sendo por isso mais férteis (essa pode ser, digamos, a diferença entre o prazer produzido pela leitura de um bom livro e o prazer produzido por um lauto jantar...). Essa posição contrasta com a idéia de J.S. Mill, segundo a qual alguns prazeres (como os da fruição estética e da conversação inteligente) valem mais devido a sua própria natureza, ou seja, porque são em si mesmo superiores. Essa idéia parece-me arbitrária e elitista. Afinal, em que sentido os prazeres mais elevados poderiam ser superiores, a não ser no de satisfazerem as condições já assinaladas por Bentham? A identificação da felicidade com o sentido da vida tem sido, todavia, recusada sem maiores delongas por muitos filósofos. A razão disso é que ela parece obviamente falsa. Os dois conceitos parecem ter extensões apenas parcialmente inclusivas. É muito fácil encontrarmos exemplos de vidas felizes e sem valor e de vidas infelizes, mas plenas de valor. Considere o caso do famoso playboy Porfírio Rubirosa, cujo pênis, segundo consta, tinha a espessura de um punho humano. Ele conquistou as mais belas atrizes de cinema e ascendeu na vida pelo casamento sucessivo com duas mulheres milionárias. Foi supostamente feliz, mas não parece ter tido uma vida particularmente valorosa ou cheia de significado. Considere, por outro lado, a vida de um pintor desesperado e insano como Van Gogh. Ela foi certamente miserável, terminando na loucura e no suicídio, mas ninguém dirá que lhe faltou sentido ou valor. Pelo contrário, a vida de Van Gogh foi plena de significado. Como responder a tais objeções? A resposta não é difícil de ser encontrada: quando identificamos o grau de significação da vida de uma pessoa com a felicidade, não devemos ter em mente a sua felicidade individual, mas a felicidade (ou o bem) que ela traz ao mundo, o que inclui tudo aquilo que ela trouxe de bom, não só para ela mesma, mas também, e com valor correspondente, para as outras pessoas. Com isso se explica porque a vida de Rubirosa deve ter sido pouco expressiva em termos de valor ou sentido, pois além do bem para si mesmo, não sabemos sequer se ele realmente trouxe mais bem do que mal para as outras pessoas. Já Van Gogh, apesar de ter falhado em trazer felicidade para si mesmo, trouxe um bem elevado e fértil para um imenso número de outras pessoas, um bem que se estende no tempo até hoje, para aqueles que apreciam a sua arte. É pelo fato da felicidade que trás sentido à vida ser pensada em termos coletivos que entendemos porque a vida de um compositor como Beethoven, ou de líderes com profundo senso de responsabilidade social, como Emiliano Zapata, Martin Luther King ou Mahatma Ghandi, tiveram vidas plenas de sentido. É também através disso que entendemos porque genocidas como Hitler ou Stalin tiveram vidas cujo valor é questionável, posto que eles foram causa de indescritível sofrimento para um imenso número de pessoas.84

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Interessante aqui é a complexa ligação entre felicidade e altruísmo. Aristóteles chegou a identificar a felicidade pessoal com a felicidade que alguém trás ao mundo através de sua noção de eudaimonia. Essa identificação era natural para Aristóteles porque entre os gregos a polis era vista como uma extensão do indivíduo, a tal ponto que morrer heroicamente em uma batalha era visto como a forma mais valorosa e digna de se terminar a existência. Tenho uma sugestão quanto à causa desse altruísmo ligado à felicidade. Ela se baseia na constatação de que os desejos capazes de trazer felicidade tendem a se espraiar como que em anéis crescentes, envolvendo intencionalmente outras pessoas pertencentes a círculos cada vez mais distantes. Assim, um colecionador de selos faz algo que trás felicidade para si mesmo e para mais ninguém. Um estudioso solitário de filosofia oriental faz algo que traz felicidade para si mesmo, mas que pelo menos em princípio está relacionado ao bem coletivo. Uma mãe que tem sucesso em educar bem os seus filhos trás felicidade para ela e também para outras pessoas mais próximas. Um grande líder político trás um bem maior para os cidadãos de toda uma nação. Grandes artistas do passado valorizaram as vidas das pessoas que viveram séculos adiante deles mesmos. Esses últimos três casos, ao menos, pertencem àquilo que chamo de felicidade beneficial, que transcende desejos ego-centrados, ainda que deles possa depender. Essas últimas formas de felicidade estão mais ligadas ao bem por envolverem a coletividade de modo altruista. Considerei então o conceito de felicidade pessoal, entendendo-a como o resultado de um balanço positivo entre as demandas individuais e a sua satisfação. No final do artigo procurei uma fórmula abstrata para a felicidade pessoal. Embora não seja uma receita de bolo, ela se explica pela acomodação de nossas demandas às circunstâncias concretamente dadas: felicidade individual é a satisfação suficiente de demandas razoavelmente concebidas (Stuart Mill). O que torna as coisas mais difíceis é que tanto as demandas quanto as circunstâncias dadas costumam variar, forçando um constante reajuste na relação entre ambas. Como notou Einstein, “viver é como andar de bicicleta: é preciso estar sempre pedalando para não perder o equilíbrio”.85

O resultado disso é que somos felizes quando as circunstâncias dadas possibilitam uma razoável satisfação das demandas pessoais. E somos 84 Já me foi objetado que se fosse assim a vida de Hitler poderia no final das contas ter tido sentido, pois do que ele fez resultou uma transformação na consciência social européia; mas tal objeção é claramente falaciosa, pois essa não foi a sua intenção, mas a de outros, conduzidos a isso sob a evidência do desastre produzido pelo nazismo. A intencionalidade (consciente ou não) daquilo que fazemos é certamente um fator indispensável.85 “Life is like cycling – you have to keep moving to keep your balance”. In Denis Brian: Einstein: a Life (New York: John Willey & Sons 1996).

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infelizes na medida em que a distância entre as circunstâncias dadas e as nossas demandas pessoais tiver se tornado difícil ou mesmo impossível de ser transposta. Procurei ilustrar esse ponto com uma história que ouvi de um antropólogo sobre a vida dos Inuits na Groelândia. Na primeira metade do século XX, quando ainda se encontravam isolados, eles viviam sob condições mínimas de subsistência. Mesmo assim eram felizes. Um filme da época, que os mostra caçando focas com os seus minúsculos caiaques entre grandes blocos de gelo, revela rostos transbordantes de alegria. Já no final do século XX eles tinham uma condição de vida bem melhor, sendo tutelados pelo governo canadense. Mas apesar disso passavam o tempo se alcoolizando, assistindo pela televisão uma vida da qual não podiam participar e se sentindo miseráveis. A explicação é que antes eles eram felizes porque tudo o que queriam ser e ter, que era quase nada, era o que eles eram e tinham; depois eles se tornaram infelizes porque mesmo tendo um pouco mais, eles deixaram de ser o que eram, e quase nada do que eles passaram a querer ser e ter lhes foi mais concedido.

23. AutocompreensãoNo recesso de 2007 assisti no Youtube a dezenas de filmes sobre a síndrome de Asperger. Esses filmes e mais alguns livros86 me proporcionaram um melhor insight sobre mim mesmo do que qualquer psicólogo seria capaz. A síndrome de Asperger nada mais é do que uma forma limítrofe de autismo, que não compromete a inteligência nem a linguagem, mas apenas as habilidades sociais. Falta à pessoa com essa síndrome a capacidade inata de reagir às expressões comportamentais da vida emocional das outras pessoas. Como resultado disso ela não consegue se conectar emocionalmente com elas, disso resultando um comportamento social desajeitado e por vezes impróprio. E como a pessoa com Asperger tem dificuldades em entender os sentimentos alheios, ela não consegue avaliar bem os seus próprios. Uma conseqüência disso é uma inevitável ansiedade frente a maioria das situações sociais. A síndrome tem comprovação neurológica: quando uma pessoa normal observa expressões fisionômicas e gestos, ela apresenta descarga dos chamados “neurônios espelhos” do córtex motor, uma reação que tem importância para a interação e o aprendizado imitativo. Diante dos mesmos estímulos, uma pessoa com síndrome de Asperger não apresenta essas descargas neuronais. Há muitos anos eu desconfiava que as minhas dificuldades sociais tivessem a ver com autismo, mas aqui estavam as evidências. Assim, não foi novidade obter 34 pontos ao fazer o teste AQ (Autism Spectrum Quotient), o que me coloca na margem interna do espectro autista (o teste

86 A literatura sobre o assunto é vasta, uma boa introdução é o livro de Christopher Gilberg: A Guide to Asperger Syndrome (Cambridge: Cambridge University Press 2002).

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varia de 0 a 50 pontos, tendo o grupo de controle recebido a média de 16,4 pontos; uma pessoa com mais de 32 pontos é classificada como provável portadora da síndrome).87

A consciência de ter essa síndrome me fez compreender também a razão de meu interesse pela filosofia. É que depois da “dislexia social”, o outro principal sintoma da síndrome é o interesse hiperfocado e obsessivo em assuntos específicos. No meu caso, ao invés de interessar-me por espécimes de borboletas, aconteceu de interessar-me por filosofia, uma área na qual poderia exercitar fixações cognitivas sem grandes contatos sociais e que, com alguma sorte, fui capaz de transformar em profissão. Com efeito, para um assunto complexo e árido como a filosofia, que exige muitos anos de paciência e perseverança, o interesse obsessivo pode ser uma vantagem, e desconfio que mais de um bom filósofo teria se saído bem (quero dizer, mal) em um teste de AQ. Outra vantagem é que não me sinto muito pressionado a fazer o que os outros fazem, ou a obter suporte dos outros membros da comunidade de idéias, podendo seguir mais facilmente o rumo ditado pela curiosidade e pelo interesse pessoal. As desvantagens são, contudo, consideráveis. Uma delas é que vivo em geral demasiado envolvido comigo mesmo para ser capaz de seguir uma palestra ou me concentrar na leitura de textos. Outra é que o contato com as outras pessoas continua a produzir em mim um maior ou menor grau de ansiedade e conflito, o que me faz evitar envolvimentos sociais. Essas dificuldades de contato e entendimento social têm sido de várias maneiras limitadoras da própria carreira acadêmica. Mas elas não são apenas minhas. Elas atingem pessoas com síndrome de Asperger em geral, sendo responsabilidade da sociedade o desenvolvimento de mecanismos de compensação e apoio.

24. Recriando DeusEscrevi em 2007 uma divagação especulativa no domínio da filosofia da religião, que aparece no final de um artigo intitulado “Deus: natureza e existência”.88 Parece fora de dúvida que a existência de um Deus pessoal, tal como ele é relatado pelos textos bíblicos, tornou-se demasiado improvável no interior da cultura científica na qual vivemos. Parece ter acontecido com esse Deus o que aconteceu com o Homem das Neves e o Pé Grande: como essas criaturas nunca foram vistas e os poucos traços por elas deixados sempre se demonstraram ilusórios, elas quase certamente não existem. Há hoje uma farta literatura ateísta ocupada em explorar esse ponto, ou seja, em confirmar o óbvio. O problema real que o ateísta deixa em aberto é, em meu juízo, outro. Ele pode ser formulado como: há ou não há um

87 Mais tarde a síndrome foi diagnosticada por um especialista.88 In Cartografias Conceituais: uma abordagem da filosofia contemporânea.

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elemento próprio, substantivo e resgatável, oculto sob as mais diversas fantasias religiosas? É verdade que há explicações psicológicas para a crença em Deus, como a de Freud, que via na prática religiosa uma neurose coletiva de caráter obsessivo-compulsivo, que serve de conforto para mentes imaturas. Há também explicações sociológicas, como a de Émile Dürkheim, que via nos rituais religiosos uma maneira de fazer com que os membros de um grupo social se sentissem irmanados entre si. Mas tomar essas explicações como suficientes implica em reducionismo. A questão é: há um resgate não-reducionista para alguma coisa importante incluida na crença em Deus? Gostaria de sugerir que sim. Essa suspeita se reforça quando consideramos que há concepções sublimadas e alegadamente não-antropomórficas de Deus, como a de Spinoza, que o via como uma substância-natureza com infinitos atributos, dois deles cognitivamente acessíveis a nós, o do pensamento e o da extensão. Próximo disso encontra-se um ateu profundamente religioso como Einstein, para quem Deus é a infinita inteligência expressa na perfeição e complexidade das leis que regem o universo, a consciência disso devendo produzir em nós um sentimento de reverência e de mistério. A versão de Spinoza ainda possui resquícios antropomórficos, uma vez que qualquer coisa, mesmo um grão de areia, também precisará ser uma modificação do atributo mental. E a concepção de Einstein de Deus como a inteligência expressa nas leis perfeitas que regem o universo pode ser objetada como envolvendo um ocioso fetichismo cósmico. Se a natureza enquanto tal é insuficiente para o que buscamos, perguntei-me se o conceito de “Deus” como uma idéia reguladora, como ideal normativo, não prestaria melhor serviço. Antes de prosseguir, é importante explicar o que é aquilo que Kant entendia como sendo uma idéia reguladora da razão. Trata-se de um conceito cujo objeto é tal que se encontra para além de qualquer possibilidade de experiência, não podendo a sua existência ser comprovada nem refutada. Nem por isso ele é destituído de sentido ou inútil, posto que ele nos serve como uma virtualidade norteadora de nossos processos de pensamento. O conceito de verdade absoluta pode nos servir de exemplo. Não estamos em condições de saber se tal conceito realmente se aplica a alguma crença ou não, pois o conhecimento humano do mundo é intrinsecamente falível. Na verdade, nunca poderemos saber tanto, pois mesmo que a ciência nos permita um dia alcançar a verdade absoluta, não teremos como saber que realmente a alcançamos. Isso não significa, porém, que o ideal normativo da verdade absoluta seja inútil. Como notou Popper, ele serve como meio para possibilitar a comparação interteórica.89 Parece que podemos de algum modo comparar em ciência uma teoria T1 com uma teoria T2, ambas com o mesmo escopo, concluindo que a segunda tem maior poder explicativo e que está mais próxima de alcançar o ideal da

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verdade absoluta do que a primeira, ou seja, que T2 é mais verossímil do que T1. Assim, é com base em um ideal normativo de verdade absoluta que podemos dar preferência a T2 sobre T1, mesmo que esse ideal normativo permaneça enquanto tal inapreensível. A maneira pela qual Kant entende o conceito de Deus como idéia reguladora na Crítica da Razão Pura é em meu juízo equivocada. Para ele a idéia normativa de Deus é a da causa de todas as causas. Não obstante, tudo o que podemos conceber com isso hoje é algo como o Big-Bang, que além de não ter interesse algum fora da cosmologia, já deixou de existir há muito tempo. Minha sugestão é tentar interpretar o conceito imanentista de Deus aventado por pensadores como Spinoza e Einstein em termos de uma idéia normativa kantiana. Para tal, começamos tomando em consideração algo próximo a uma outra idéia da razão sugerida por Kant, a do mundo como um todo, como a síntese de todas as sínteses, externas e internas.90 Essa idéia como tal também não nos serve porque o mundo como um todo, a natureza, como bem o percebeu Hume, é uma coisa bastante imperfeita. Deus, ao contrário, foi classicamente definido por filósofos como o ser que possui todas as perfeições. Juntando os fios, a maneira que encontro de conciliar as idéias de Deus como ideal normativo daquilo que possui todas as perfeições com o imanentismo teológico de Spinoza e outros, consiste em interpretar a noção de mundo externo e interno como sendo a de um ideal normativo de perfeição absoluta. Parece que resgatamos um elemento imprescindível à noção de Deus quando passamos a considerá-lo como:

o ideal normativo do mundo como perfeição.

Note-se que a inexistência factual do mundo como perfeição é algo que não vem ao caso. Podemos formar a idéia-ideal de mundo como perfeição como uma admissível “idéia de Deus”. E podemos comparar um mesmo constituinte de dois mundos possíveis diversos em termos de maior ou menor proximidade da perfeição, tendo como medida a idéia reguladora do mundo como perfeição. Trata-se, digamos, de uma espécie de panteísmo de perfeições virtuais, da crença em um Deus-ideal inapreensível como existente, de tal modo que quem nele realmente acredita não tem nenhuma razão para defender que ele existe, já que essa questão não mais vem ao caso.

89 Karl Popper pretendeu formular essa idéia mais precisamente no capítulo X de Conjectures and Refutations (London: Routledge 2002). O reconhecido insucesso de Popper pode ser devido a sua epistemologia anti-indutivista, não nos devendo fazer pensar que tal empreendimento seja irrealizável. 90 Emmanuel Kant: Crítica da Razão Pura A 685, B 613.

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Mas em que se constitui, afinal, o ideal normativo de mundo como perfeição? Só sou capaz de tentar responder com mais especulação! Segundo uma tradição que vem da antiguidade, a idéia de perfeição é essencialmente caracterizada por uma tríade: o verdadeiro em si, o bem em si e o belo em si (três noções que parecem se complementar). Mas também a verdade, o bem e a beleza em si não são para nós mais do que ideais normativos cujo conhecimento demanda mais do que a experiência permite (note-se também que ainda pode haver outros ideais normativos hierarquicamente subsumidos sob esses três: o ideal da justiça absoluta, por exemplo, parece estar subsumido sob o ideal do bem absoluto). Se esse for o caso, então Deus pode também ser definido como o ideal normativo do mundo como expressão do verdadeiro em si, do bem em si e da verdade em si. Embora também aqui não entre em questão a existência de objetos que satisfaçam esses ideais, parece que podemos em alguma medida comparar diferentes verdades, bens e belezas efetivamente dadas com base em seus correspondentes ideais normativos. Com efeito, na medida em que por natureza buscamos a perfeição, nós tendemos a pensar valendo-nos de tais virtualidades reguladoras e a fazer escolhas baseadas nelas. Precisamos de idéias reguladoras que dirijam não só os nossos pensamentos como também as nossas ações. As idéias-ideais da verdade, do bem e do belo absolutos seriam respectivamente capazes de nortear idealmente nossos pensamentos teóricos, nossos pensamentos práticos e, talvez (seguindo uma sugestão kantiana), a relação entre ambos, entre contemplação e ação, na medida em que as harmonizasse entre si. Essas idéias-ideais nos permitiriam comparar pensamentos e ações em busca do melhor, mesmo que eles se mantenham sempre para além de nossas possibilidades efetivas (curiosamente, aproximamo-nos aqui da concepção aristotélica de Deus, não como origem criadora, mas como um telos em direção ao que todas as coisas se movem atraídas pelo amor). Mas por que devemos perseguir semelhantes ideais? Uma observação que nos colocar no caminho de uma resposta é naturalista. Somos parte da natureza. E sabemos que a natureza tem um extraordinário poder de auto-organização, que faz com que a partir de estados de coisas mais simples sejam nela criados sistemas cada vez mais complexos, como a evolução natural e a emergência da consciência claramente o demonstram. Outro elemento que pode nos colocar no caminho de uma resposta é o princípio de homeostase. Do mesmo modo que, como produtos evolucionários somos providos da necessidade de manter a homeostase – o equilíbrio dos sistemas vitais (o que podemos chamar de bio-homeostase) – também pode ser razoável supor que, como produtos evolucionários dotados de consciência, sejamos providos da necessidade de produzir e manter a homeostase como um equilíbrio dos constituintes mentais, ou

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seja, como uma psico-homeostase – visando a produção e produção e manutenção da ordem e equilíbrio em nossa relação psicológica com nós mesmos – a desdobrar-se em uma sócio-homeostase – visando a produção e manutenção do equilíbrio no meio social que nos envolve – e até mesmo em uma eco-homeostase – visando a produção e manutenção do equilíbrio no meio natural, não humano, no qual também estamos envolvidos. Talvez essa necessidade de alcançar equilíbro seja capaz de prover ao menos parte da explicação de nossa necessidade de pensar e agir tendo em mira o ideal regulador do mundo como perfeição e de que se não o fizermos acabaremos de algum modo por violar a nossa própria natureza. Uma pergunta cuja resposta parece vir associada à anterior concerne à racionalidade de semelhantes aspirações de perfeição no representar e no agir. Uma possível resposta partiria da velha constatação de que são inúmeros os caminhos do erro e muito poucos os da verdade. Afinal, encontramo-nos em um mundo no qual a justificação racional costuma ser incerta e lacunar. Em outras palavras: o que nos espera em um prazo razoavelmente longo é um número quase ilimitado de combinações de escolhas de pensamento e ação cujos efeitos últimos estão muito além do que nos é dado prever, fazendo com que os resultados finais de nossas escolhas inevitavelmente transcendam o domínio da escolha racional. Mas se essa é a nossa condição, então parece ser pragmaticamente saudável e em última análise mais racional que nos deixemos conduzir em nossas escolhas pelos caminhos que se norteiam pelo ideal regulador do mundo como perfeição. Pois como escreveu Herman Hesse: “O espírito universal não quer atar-nos, mas elevar-nos degrau por degrau, ampliando-nos o ser”.91

25. PerspectivasHá uma variedade de outros interesses filosóficos que geraram rascunhos e esboços sobre teorias da referência, sobre temas como a justificação, a causalidade, a epistemologia da memória, o problema dos universais e como ele poderia ser solucionado através de uma teoria dos tropos, as teorias da arte, o estado justo e a necessidade da constituição de um estado mundial, entre outros. Muitos desses esboços nunca serão desenvolvidos, muito menos publicados. A abrangência de escopo tem para mim um valor heurístico ao favorecer a visão do todo e a percepção do que possa ser filosoficamente relevante. Não pretendo investigar o que esse ou aquele filósofo escreveu, mas os problemas em si mesmos, na independência do fardo por vezes paralizador

91 Herman Hesse: “Stufen”, in Das Glasperlenspiel (Frankfurt: Suhrkamp 1972).

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da tradição e mesmo na independência dos valores filosóficos provisoriamente adotados por essa ou aquela comunidade de idéias. Também não me creio capaz de inventar o absolutamente novo, se é que ele existe. Minha estratégia é buscar conexões abrangentes, postando-me como vigia em uma torre – a de minha consciência intelectual – e prestando atenção à multidão desconexa de idéias que desfilam ao redor. Deixando-me levar apenas pela curiosidade e pelo prazer do conhecimento, espero até encontrar algum elo de significação entre elas. E uma vez encontrado, tento iluminá-lo com o modesto holofote analítico de que disponho.

Notas:

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