memória e história da antiga vila de cuitezeiras - pedro velho/rn
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBACENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS E DA NATUREZA
DEPARTAMENTO DE GEOCIÊNCIASPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA
MARCOS TAVARES DA FONSECA
MEMÓRIA E HISTÓRIA DA ANTIGA VILA DE CUITEZEIRASPEDRO VELHO/RN (1861 a 1936)
João Pessoa, 2006.
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MARCOS TAVARES DA FONSECA
MEMÓRIA E HISTÓRIA DA ANTIGA VILA DE CUITEZEIRASPEDRO VELHO/RN (1861 a 1936)
Dissertação de Mestrado apresentadaao Programa de Pós-Graduação emGeografia da Universidade Federal daParaíba, em cumprimento às exigênciaspara obtenção do título de Mestre emGeografia, sob orientação da Profª DrªMaria de Fátima Ferreira Rodrigues.
João Pessoa – PBSetembro de 2006.
F676m Fonseca, Marcos Tavares da.
Memória e História da Antiga Vila deCuitezeiras. Pedro Velho/RN (1861-1936) / MarcosTavares da Fonseca. – João Pessoa, 2006.
119p.
Orientadora: Profª. Drª. Maria de FátimaFerreira Rodrigues.
Dissertação (Mestrado) UFPB/CCEN.
1. Geografia social. 2. Memória – EngenhoCunhaú. 3. Pedro Velho – Memória. 4. Vila deCuitezeiras.
UFPB/BC CDU: 911.3:30 (043.2)
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Formatação, editoração eletrônica e capaAna Bernadete de Carvalho Accioly Soares
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MARCOS TAVARES DA FONSECA
MEMÓRIA E HISTÓRIA DA ANTIGA VILA DE CUITEZEIRASPEDRO VELHO/RN (1861 a 1936)
Dissertação de Mestrado apresentadaao Programa de Pós-Graduação emGeografia da Universidade Federal daParaíba, em cumprimento às exigênciaspara obtenção do título de Mestre emGeografia, sob orientação da Profª DrªMaria de Fátima Ferreira Rodrigues.
________________________________________________________
Profa. Dra. Maria de Fátima Ferreira RodriguesDepartamento de Geociências da Universidade Federal da Paraíba – UFPB
Orientadora
________________________________________________________
Profa. Dra. Regina Célia GonçalvesDepartamento de História da Universidade Federal da Paraíba – UFPB
1ª Examinadora
________________________________________________________
Profa. Dra. Alexandrina Luz ConceiçãoDepartamento de Geociências da Universidade Federal de Sergipe – UFS
2ª Examinadora
Dissertação aprovada em 19/09/2006.
João Pessoa – PBAgosto de 2006.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus por sempre me orientar pelo caminho certo na vida.
A todos os Narradores que gentil e pacientemente concederam as
entrevistas e informações.
Aos alunos da Escola Municipal de Ensino Fundamental José Targino –
Pedro Velho/RN – que me ajudaram nessa empreitada o meu mais profundo
agradecimento.
Ao Programa de Pós-Graduação em Geografia pela possibilidade de
formação dispensada. Aos professores do Programa que me avaliaram em algum
momento, o mais profundo respeito e sincero agradecimento pelos comentários
sempre tão pertinentes dos quais espero ter podido fazer bom uso. Pela perspicácia,
competência e seriedade acadêmica, atributos que foram a grande referência e
estímulo para continuar, a despeito de todas as dificuldades e fatores
desestimulantes.
À Profa. Dra. Maria de Fátima Ferreira Rodrigues, pela orientação e
paciência ao longo destes anos.
Aos amigos Cledenilson V. Moreira, Ana Lúcia de Lima Bezerril,
Maxencinho, Nivaldo, João Maria, por sempre estarem prontos a ajudar, nos
avanços e recuos ao longo da trajetória que termina aqui.
A todos os amigos da Prefeitura Municipal de Pedro Velho, da Secretaria
de Educação de Pedro Velho, da Escola Municipal José Targino, da Escola
Municipal Hélio Galvão e CNSP, o meu mais profundo obrigado.
A todos os colegas do Mestrado, meu agradecimento.
Aos meus pais, minha noiva, irmãos e todos que, de alguma forma,
contribuíram para conclusão desta empreitada, o meu mais profundo
agradecimento.
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RESUMO
Este trabalho tem por finalidade resgatar a história da Vila de Cuitezeiras, da suaorigem em 1861 à consolidação da cidade de Pedro Velho, em 1936, tendo amemória como papel fundamental na recuperação da vida social. Escrever essahistória demandou um resgate da memória do lugar e sobre a fundação domunicípio de Pedro Velho a partir de um viés teórico e de cunho etnográfico.Apoiei-me em autores como Pollak (1989 e 1992), Montenegro (2003),Frochtengarten (2005), Le Goff (1994), Bosi (1994), Halbwachs (1990), dentreoutros. Além disso, a história da Vila de Cuitezeiras foi recuperada a partir dasliteraturas de Lima (1997), Medeiros (1992), Cascudo (1992, 1955, 1968, 1971),dentre outros. Também fiz uso de relatos orais em entrevistas com narradoresportadores da memória do lugar: os senhores Daniel Galvão, Jaldemar Nunes, JoãoAlberto, Carlos Alberto Soares de Carvalho, Cledenilson Valdevino Moreira e JoãoHortêncio Sobrinho. Apresento também uma descrição do município. Procureiconceituar a memória e as relações existentes entre algumas de suas categorias.Estabeleci relações entre tradição e memória enfocando as categorias de tempo, apartir dos relatos; das lembranças e da cultura popular no contexto da antiga Vila.Trabalhei a memória do lugar, fazendo relações com os fatos marcantes de suahistória: a formação da Vila Nova de Cuitezeiras e a Consolidação da Cidade dePedro Velho. Nas considerações finais apresento uma análise dos fatos quemarcaram a história da Vila de Cuitezeiras a partir das vivências e a vida na novaVila após a enchente do rio Curimataú, consolidando os primeiros alicerces da novacidade. Portanto, exponho a importância do resgate da memória para a sociedadepedrovelhense e para a construção de um trabalho científico.
Palavras-chave: memória, lugar, Engenho Cunhaú, Vila de Cuitezeiras, PedroVelho.
15
ABSTRACT
This work aims a discussion about the concept of memory recovering the history of Cuitezeirasvillage, your origin and your consolidation. This task demands a study about the memory of this place.It is a research with theoric approach and etnographic aspect. It is based on authors such as Pollak(1989 and 1992), Montenegro (2003), Frochtengarten (2005), Le Goff (1994), Bosi (1994) Halbwatchs(1990) and others. It was used oral reports in interviews with narrots of the place who know about thehistory such as Mr. Daniel Galvão, Mr. Jaldemar Nunes, Mr. Joao Alberto, Mr. Carlos Alberto Soaresde Carvalho, Mr. Cledenilson Valdevino Moreira and Mr. José Hortêncio Sobrinho. It is showed adescription of municipal district. It was elaborated a conception of memory and relations among somecategories of your categories. It was established relation between tradition and memory showing thecategories of time based on accounts, on souvenir and popular culture in context of old village. It wasemphasized the memory of place linking to relations with important facts of the history; the beginning ofnew village of Cuitezeiras and the consolidation of Pedro Velho City. On the final words it is showed ananalysis about facts of the history based on the life at new village after the flood of Curimataú Riversolidating the first basis of a new city. Therefore, It is showed the importance of memory ransom for asociety of Pedro Velho city and for building of a scientific work.
Key-words: Memory, place, Engenho Cunhaú, Vila de Cuitezeiras, Pedro Velho.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Vista aérea da cidade de Pedro Velho (RN).21
Figura 2 Vista aérea da cidade de Pedro Velho (RN). 22
Figura 3 Mapa de localização do Município de Pedro Velho. 25
Figura 4 Senhor Jaldemar Nunes. 28
Figura 5 Iconografia do Engenho Cunhaú. 29
Figura 6 Capela de Santa Rita, na antiga Cuitezeiras, única estruturaque ficou de pé após as cheias do rio Curimataú em 1901.
40
Figura 7 Senhor Daniel Galvão de Lima. 48
Figura 8 Capela do Cunhaú, local do Massacre do Cunhaú, nomunicípio de Canguaretama/RN.
53
Figura 9 Cresentia cujete. 56
Figura 10Cruzeiro da antiga Vila de Cuitezeiras, que ficou parcialmentedestruído com as cheias do rio Curimataú em 1901. 57
Figura 11 Cemitério dos “ricos” da antiga Vila de Cuitezeiras, hoje PedroVelho/RN.
62
18
Figura 12Várzea do Curimataú na região da antiga Vila de Cuitezeiras,destacadamente lembrada como sendo fértil e importante naprodução econômica do lugar estudado.
70
Figura 13 O Senhor João Alberto da Fonseca. 79
Figura 14 Estação ferroviária de Pedro Velho, Antiga Vila de Cuitezeiras. 97
20
LISTA DE ABREVIATURAS
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IDEC Instituto de Desenvolvimento do Rio Grande do Norte
PRÓ-ÁLCOOL Programa Brasileiro de Álcool
TELERN Telecomunicações do Rio Grande do Norte S.A.
UFRN Universidade Federal do Rio Grande do Norte
22
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO – Os passos dados na construção da pesquisa 15
CAPÍTULO I – Lembrar para Contar: da caracterização àmemória do Lugar
23
1.1 Memória e origem da Vila de Cuitezeiras 24
1.2 O Lugar 24
1.3 A Memória e o pertencimento ao lugar 30
1.4 Memória e Identidade Social do Engenho e da antiga Vila 35
1.5História e Memória: relatos orais e escritos da antiga Vila de
Cuitezeiras42
CAPÍTULO II – Tradição e Memória: relação espaço-tempo e
cultura popular no contexto da antiga Vila 49
2.1 A construção da memória dos narradores 50
2.2 A Memória e as evidências orais 58
2.3 A Memória e sua relação com o passado [da Vila de Cuitezeiras] 61
2.4 A memória e sua relação com o presente 65
2.5 A matéria-prima da memória: as lembranças [da velha Vila] 67
23
2.6 A memória e sua ligação com a cultura popular 73
CAPÍTULO III – Do Engenho Cunhaú à Vila Nova de Cuitezeiras 80
3.1 A Vila de Cuitezeiras – um lugar construído pela memória 81
3.2 A história e o lugar na memória da cidade 85
3.3 As lembranças do lugar: a formação da cidade 90
3.4 A memória e o novo lugar: a cidade de Pedro Velho 96
CONSIDERAÇÕES FINAIS
FONTES
REFERÊNCIAS
24
ANEXOS
Anexo A – Decreto que eleva o povoado de Cuitezeiras à condição de Vila
Anexo B – Decreto de criação da Paróquia de São Francisco de Assis de Vila Nova
APÊNDICES
Apêndice A – Caracterização dos Narradores
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Introdução – Os passos dados na construção da pesquisa
Este trabalho tem por finalidade resgatar a história da Vila de Cuitezeiras,
da sua origem, em 1861, à consolidação da cidade de Pedro Velho, em 1936, tendo
a memória como papel fundamental na recuperação da vida social. Escrever essa
história demandou um resgate da memória do lugar e da fundação do município de
Pedro Velho a partir de um viés teórico e de cunho etnográfico.
Pretendia trabalhar, inicialmente, a questão agrária, particularmente o
crescimento da concentração fundiária e sua ligação com a atividade das
agroindústrias do açúcar e do álcool que atuam no município de Pedro Velho-RN,
com ênfase na década de 1970, impulsionadas pela necessidade de substituição da
fonte energética petróleo (para fabricação de gasolina) incentivadas pelo Pró-Álcool
(Programa Brasileiro de Álcool).
Nesse sentido, o Projeto estaria ligado à questão agrária e aos problemas
ambientais relacionados às agroindústrias situadas na área da bacia do rio Piquiri e
suas nascentes.
No decorrer da pesquisa documental e do trabalho de campo redirecionei
os objetivos, centrando-os no resgate histórico da antiga Vila de Cuitezeiras, a qual
deu origem à cidade de Pedro Velho, com ênfase no registro da memória e
recuperação histórica do lugar, em substituição à idéia inicial, anteriormente
mencionada.
Na construção desse novo trabalho busquei apreender, a partir dos
relatos anteriormente citados, as conclusões, os sonhos e as ilusões dos narradores
portadores da memória, por sua importância no entendimento da ocupação do lugar.
Do ponto de vista metodológico recorri à coleta de referências
bibliográficas na biblioteca setorial do Departamento de História da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), na Biblioteca Municipal de Pedro Velho, na
Fundação José Augusto, em pesquisas feitas na Internet e em bibliotecas
particulares. Nesses locais de pesquisas foram levantadas referências bibliográficas
relacionadas aos temas principais: memória e memória do lugar, com suas
definições com ênfase nos conceitos já existentes e em metodologias que puderam
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ser aplicadas na construção da pesquisa permitindo a formulação da proposta de
trabalho, conciliando os principais temas expostos.
A pesquisa documental tomou, como suporte, os Documentos de
Província conseguidos a partir de sites especializados como o da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) – Departamento de História. Quanto aos
registros de famílias, estes foram obtidos a partir de consultas nos arquivos do I
Cartório de Pedro Velho e nos acervos particulares do Historiador Carlos Alberto
Soares de Carvalho, do Cientista Social Cledenilson V. Moreira e do Geógrafo João
Hortêncio Sobrinho.
Do ponto de vista teórico, utilizo, ao longo da pesquisa, autores que
trabalham a memória, com destaque para Pollak (1989 e 1992), Montenegro (2003),
Frochtengarten (2005), Le Goff (1994), Bosi (1994), Halbwachs (1990), Queiroz
(1991) e Burke (1992 e 2000), buscando estabelecer um diálogo com os mesmos na
perspectiva da construção da memória do lugar e de sua relação com a fundação do
município de Pedro Velho. Com esses autores pretendo entender a memória,
destacando o significado fundamentalmente histórico, bem como ideológico.
Do ponto de vista etnográfico, as entrevistas realizadas seguiram o
modelo de conversas livres com os narradores portadores da memória do lugar e os
relatos obtidos forneceram subsídios para a análise que fundamenta este texto de
dissertação.
No que concerne às entrevistas feitas, fiquei atento ao que foi dito e não
apenas ao que esperava ser mencionado, ou seja, aquilo que se configurava como
hipótese. Com essa postura tentei não incorrer no risco de
Continuar aceitando, como dogma, interpretações superficiais, frutode pesquisas e explicações mal fundamentadas ou ideologicamentedistorcidas, quando vemos o que queremos e ficamos totalmentefelizes, mas não vemos o que acontece (MARTINS, 1986, 95).
Escutar os narradores e observar suas reações a partir de alguns
questionamentos lançados ao longo da conversa foi um procedimento empregado
em todas as entrevistas. Os pontos destacados visaram à obtenção de informações,
por ordem de importância para os narradores, no sentido de possibilitar o resgate da
memória do lugar.
27
Com vistas a entender a fundação e estruturação do município de Pedro
Velho, busquei averiguar se os narradores se relacionam com a história oficial e se
interpretam como se deu a construção do lugar do qual fazem parte.
Como existem poucos registros escritos sobre o tema e poucos
testemunhos sobre a fundação de Pedro Velho, entendemos as entrevistas como
fontes de consulta à memória local. Entendemos, sobretudo, que elas servem
também para oportunizar outras formas de se interpretar o significado da memória
do lugar, em contraposição à História Documental Oficial, que carece de outras
interpretações.
As fontes escolhidas para esta pesquisa colocam-se como
representações mais autônomas do segmento de narradores portadores da
memória do lugar.
Ao procurar compreender as possibilidades de desenvolvimento de uma
memória, a despeito da importância e interligação desta com outras dimensões da
história, busco privilegiar, sobretudo, a dimensão do conhecimento baseado na
tradição do lugar, na interpretação da política, da sociedade, da economia e na
construção do território. Esse ponto de partida e escolha metodológica permitiram
minimizar as incertezas ao mesmo tempo em que fugiram das interpretações
deterministas que findam por empobrecer o debate sobre o conceito em tela.
Procurei “conceder a voz”, neste trabalho, a um grupo de memorialistas
do lugar, não organizados entre si, em reconhecimento à legitimidade social que têm
e em respeito aos motivos e fatores relacionados aos seus interesses na construção
de uma memória da Vila.
A predisposição dos indivíduos, quase sempre pessoas do povo, que se
sentem realizadas com a lembrança coletiva dos seus relatos, de se articularem em
torno de experiências pessoais ou coletivas quanto à memória de um lugar,
estabelece e reforça o conhecimento do seu povo, numa relação de confiança e
reciprocidade, que pode ser explicada, parcialmente, a partir da existência de uma
realização pessoal desfrutada por eles.
Porém, há necessidade de se advertir que a construção da memória
local, no recorte adotado, não se faz a partir do simples ouvir e transcrever dos
relatos, erro grave no processo de sua construção, pois são raras as vezes em que
os narradores se prendem a uma organização cronológica ou a um método definido.
28
Na realidade, esses homens, quando descrevem as memórias que
carregam, seja daquilo que viveram ou adquiriram a partir dos conhecimentos sobre
a memória do lugar o fazem de forma livre. Cabe ao historiador, pesquisador desses
objetos, após a transcrição dos relatos, organizá-los em função do seu interesse e
de suas convicções científicas, de sua visão de mundo e de sociedade.
Os relatos obtidos através de entrevistas livres constituem-se em registro
dos testemunhos históricos que compõem o universo dialético da História. Além das
entrevistas, o conhecimento de outras técnicas foi importante para o entendimento
da memória do lugar: os depoimentos, e a memória oral locais, definitivamente
decisivos na compreensão dos processos sociais próprios do ambiente estudado e
do que ficou guardado nas mentes dos narradores portadores da memória e da
cultura popular locais.
Vale destacar que comumente relacionamos a expressão cultura popular
a objetos, conhecimentos, valores e celebrações que compõem o modo de vida de
uma sociedade, de um povo. São exemplos: histórias transmitidas de forma oral
(contos de fadas, lendas, mitos), história da fundação de um lugar, transmitida
também de forma oral, pelos mais velhos ou por jovens interessados na
perpetuação dessa, danças, músicas, dentre outros.
Em se tratando dos eventos relativos ao município de Pedro Velho e à
cultura popular, relatados pelos narradores, eles possibilitaram o entendimento de
experiências, perspectivas, visões e interpretações da política, da sociedade e
economia do lugar no sentido de recuperar a história da Vila de Cuitezeiras e foram,
portanto, cruciais para o entendimento do objeto de estudo e para o
desenvolvimento da pesquisa.
Com as referências dos autores já mencionados e especialmente a partir
da transcrição dos relatos, abordei a origem e a memória da Vila de Cuitezeiras.
Partindo do entendimento de que a memória é imprescindível às
pesquisas que buscam realizar um resgate sócio-histórico, apoiei-me em categorias
e autores como Pollak (1989 e 1992), Montenegro (2003), Frochtengarten (2005), Le
Goff (1994); apoiei-me também em Bosi (1994) e Halbwachs (1990), que ajudaram
na compreensão da memória coletiva. A esses autores outros se somaram ao longo
do texto no sentido de dar clareza ao tema.
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Para recuperar a história da Vila de Cuitezeiras tomei como base a
historiografia regional de autores como: Lima (1997), Medeiros (1985), Cascudo
(1955, 1968 e 1971) dentre outros e utilizei, sobretudo, os relatos orais dos
senhores Daniel Galvão, Jaldemar Nunes e João Alberto, “narradores portadores da
memória do lugar”, do Historiador Carlos Alberto Soares de Carvalho, do Cientista
Social Cledenilson V. Moreira e do Geógrafo João Hortêncio Sobrinho.
O trabalho está organizado e distribuído em três capítulos. No primeiro
capítulo, detalho os procedimentos adotados para a realização da pesquisa
teórico-metodológica e a coleta de informações de caráter etnográfico sobre a Vila
de Cuitezeiras, evidenciando os passos dados ao longo da pesquisa; ao mesmo
tempo apresento uma breve caracterização do município.
Conceituo a memória as relações existentes entre algumas das
categorias que com ela se relacionam e que são responsáveis pela identidade social
do lugar em estudo, em relação a sua gênese, a partir das terras e da história do
Engenho Cunhaú. Analiso também a idéia e o sentimento de pertencimento ao lugar
a partir de uma abordagem teórica e etnográfica memorialista, tendo em vista
registrar a história e a organização social da Vila a partir das lembranças,
destacando a importância da oralidade e a relação entre a transmissão oral e a
escrita.
No segundo capítulo, abordo as relações entre a tradição e a memória
enfocando as categorias de tempo, a gênese dos relatos, bem como as lembranças
e a cultura popular no contexto da Vila de Cuitezeiras e do Massacre ocorrido no
Engenho Cunhaú. Também analiso os relatos orais e escritos, tendo em vista a
construção histórica da identidade social da Vila de Cuitezeiras.
Sobre o tempo e a memória argumento a propósito da relação entre a
memória, passado e presente da antiga Vila de Cuitezeiras, hoje cidade de Pedro
Velho, abordando uma discussão sobre o que está presente na memória tendo em
vista a origem e a formação da Vila. Nesse âmbito, discuto sobre a importância das
lembranças no sentido de compreendê-las como matéria-prima da memória,
ressaltando os relatos dos narradores portadores da memória do lugar na
reconstituição do cenário social e econômico da Vila de Cuitezeiras.
30
Discuto ainda sobre a relação existente entre a cultura do povo (a cultura
popular), e memória, no sentido de compreender como elas se apresentaram nas
representações sociais, políticas, econômicas e religiosas da Vila de Cuitezeiras.
No terceiro capítulo analiso a memória, estabelecendo relações próximas
com o lugar: a Vila de Cuitezeiras, enfocando a categoria lugar como espaço
socialmente construído a partir da memória – com ênfase na origem da Vila de
Cuitezeiras e no advento da enchente do rio Curimataú no ano de 1901, que arrasou
a Vila. Também evidencio a memória do lugar e a origem da Vila, a partir de sua
gênese nas terras do Engenho Cunhaú. Esse percurso se estende da formação da
nova Vila até a consolidação da Cidade de Pedro Velho. Nesse último ponto,
procuro realizar uma discussão sobre espaço rural e urbano, na conceituação de
cidade.
Por fim, enfatizo a formação da Vila Nova de Cuitezeiras após a enchente
do rio Curimataú numa discussão teórica sobre o conceito de lugar. Apresento uma
descrição etnográfica sobre o desenrolar da vida social da Vila Nova de Cuitezeiras
a partir da primeira casa construída e dos aspectos socioeconômicos que
possibilitaram o desenvolvimento da agricultura como meio de sobrevivência dos
habitantes da nova Vila e a formação da vida urbana consolidando um novo espaço
social: a cidade de Pedro Velho.
Nas considerações, exponho a importância do resgate de memória e do
enfoque histórico na construção de um trabalho científico para a academia e para a
sociedade de Pedro Velho.
Figura 01: Vista aérea da cidade de Pedro Velho (RN). Fonte: PrefeituraMunicipal de Pedro Velho, 2004.
31
Figura 02: Vista aérea da cidade de Pedro Velho (RN). Fonte: http//:www.pedrovelho.cjb.net.Acesso em 27 de agosto de 2006, às 10:30h.
32
35
Pedro Velho, apesar de Centenária continua uma Vila Nova.
1.1 Memória e origem da Vila de Cuitezeiras
Na constituição deste capítulo, parto do registro de memória como fonte
de informação na construção do conhecimento histórico, utilizando como estudo de
caso a origem da Vila de Cuitezeiras, hoje Pedro Velho, no Estado do Rio Grande
do Norte, e sua relação social com a história do Engenho Cunhaú.
Considerando que a memória remete ao passado e traz ao presente
recortes históricos e testemunhos diversos, inicio a seguir uma breve apresentação
do município de Pedro Velho no contexto atual, mas sem perder de vista nem me
distanciar do tema e do recorte histórico proposto e sem esquecer que esse se
fundamenta na memória da ocupação do lugar.
1.2 O Lugar
A atual denominação do Município – Pedro Velho – remete a fatos
históricos mais recentes e não aos primórdios da história do lugar, pois a
denominação inicial atribuída à atual cidade pelos primeiros habitantes foi Vila de
Cuitezeiras. Esse topônimo origina-se e remonta, segundo registros da memória, à
terceira década do século XVII. Posteriormente, foi registrado como município
oficialmente no ano de 1890 pelo artigo 1º da Lei Orgânica de 03 de abril de 1890,
que o estabeleceu como entidade autônoma e básica da Federação, com garantia
de dignidade aos seus moradores.
Encontra-se distante 88 km da capital, Natal, e está inserido na Zona
Litoral Oriental, Subzona da Mata, Litoral Sul, com altitude de 22 m acima do nível
do mar.
Figura 03: Mapa de localização do município de Pedro Velho. Fonte: IBGE (2000).Elaboração de Mapa Temático: Aline Barboza de Lima.
36
37
Atualmente o município possui uma população de 13.518 habitantes distribuídos emuma área que corresponde a 181 km2 e que está compreendida entre os paralelos
38
6º26’21” de latitude sul e entre o meridiano 35º13’17” de longitude oeste de
Greenwich (IDEC, 1991).
Os atuais limites são: ao norte, os municípios de Canguaretama e Espírito
Santo; ao sul, o Estado da Paraíba e o município de Montanhas; a leste,
Canguaretama; e a oeste, os municípios de Nova Cruz e Montanhas. Esses limites
permanecem os mesmos estabelecidos pelo Decreto de 24 de maio de 1890
(ANEXO A), à exceção da área limítrofe do Município de Montanhas, que ficou
independente em 1962.
O município de Pedro Velho possui uma economia diversificada, onde a
agricultura, a pecuária e o comércio, com a presença dos pequenos e médios
estabelecimentos de comércio, são suas principais fontes geradoras de recursos.
Assim como ocorre em grande parte dos municípios brasileiros, a maioria da
população se encontra na área urbana, mas possui fortes vínculos com o campo.
Em decorrência dessa relação, a agricultura constitui-se como sua base principal.
Os produtos derivados dessa atividade são: feijão, frutas e, principalmente, a
cana-de-açúcar. A cana-de-açúcar contribuiu fortemente para a composição atual
das áreas agrícolas do município.
Outras atividades participam da sustentação econômica do município,
dentre elas o comércio nos pequenos mercados ou no Mercado Público, nas
“vendas”, que ainda hoje lembram a velha Cuitezeiras como locais de socialização,
de “desafogo das ilusões” e de recriação de alguns aspectos da vida social.
Também os aposentados injetam no comércio local, em grande parte das vezes, a
mais importante parcela do capital de giro. Nas datas em que ocorrem os
pagamentos vêem-se filas intermináveis às portas da agência dos Correios, da
Lotérica da Caixa Econômica Federal e do caixa eletrônico do Banco do Brasil,
únicos locais de atividades bancárias do município.
Quanto à paisagem, apesar do avanço de culturas como a da
cana-de-açúcar e do feijão, principalmente, o município de Pedro Velho ainda
preserva parte do seu patrimônio ambiental tendo muitas de suas matas e áreas
verdes ainda parcialmente preservadas nos locais aonde as atividades agrícolas da
cana-de-açúcar ainda não avançaram. O predomínio dos coqueirais no centro da
cidade contribuiu para a denominação que a identifica como a “cidade dos
coqueiros”.
Figura 05: Iconografia do Engenho Cunhaú. Fonte: Medeiros Filho(1993).
41
1 .
3
A Memória e o pertencimento ao lugar
As evidências levam a crer que os habitantes de Pedro Velho partilham
uma memória do lugar, que os liga à construção histórica do Engenho Cunhaú e à
influência política, econômica e social dos Albuquerque Maranhão no Estado do Rio
Grande do Norte. Cientes de tal fato chegam a afirmar que não existiria essa cidade
se o Engenho Cunhaú ali não se encontrasse.
Na busca dessa memória, procurei resgatar a história da antiga Vila e,
posteriormente, da cidade de Pedro Velho. Parti, por conseguinte, do conceito de
memória e de sua inter-relação com a História, entendendo que “as relações entre
memória e história, e o conjunto de atos individuais e coletivos que lhes dão
42
materialidade e espessura política, delimitam um amplo espectro de abordagens
historiográficas” (ZARIAS, 2001, p. 1).
Tal concepção apóia-se num referencial teórico-metodológico em que a
diversidade da memória pode definir e remeter a várias interpretações. Dentre uma
variedade de autores que se alinham a esse entendimento temos Le Goff (1994, p.
423), que, ao interpretar a dimensão de reatualização, adverte que:
A memória, como propriedade de conservar certas informações,remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas,graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informaçõespassadas, ou que ele representa como passadas.
Refletindo sobre a diversidade da memória e sobre sua abrangência
entendemos que a memória é um fenômeno social que se manifesta nos seguintes
tipos: coletiva, individual, histórica. A memória coletiva, que se poderia chamar de
memória social, está relacionada a uma história vivida, na qual o passado
permanece vivo na consciência de um grupo social. Esta noção é contraposta à
história (memória histórica), que seria uma forma de conhecimento do passado,
exterior ao domínio do vivido. Por seu turno, a memória individual será sempre ‘um
ponto de vista sobre a memória coletiva.
A memória em Halbwachs (1990) pode ser entendida em relação à
situação e à necessidade de um momento histórico, o que possibilita a valorização
do relato oral e textos escritos fora dos circuitos acadêmicos que se constituem
como fontes primordiais nesse tipo de pesquisa. De acordo com Frochtengarten
(2005, p. 1):
Temos assistido a um movimento de valorização do recurso àmemória oral no campo das ciências humanas. Entre psicólogossociais, antropólogos e historiadores, cada vez mais assídua temsido a prática de recolhimento de lembranças por meio dedepoimentos.
É nessa perspectiva que inscrevemos esta pesquisa, especialmente
quando procuramos entender as condições, os modos de produção e as práticas
que envolvem motivos e formas de lembrar e esquecer, maneiras de contar, de
fazer e registrar histórias, de fazer e registrar memórias.
43
Smolka (1998) faz uma incursão sobre a memória com o objetivo de
compreender os muitos modos, historicamente construídos, de pensar e de falar
sobre o tema. Sua proposta de trabalho se aproxima da problemática aqui em
discussão visto que tomamos como base lembranças e relatos históricos, na busca
do entendimento da memória social da Vila de Cuitezeiras.
Desse modo, as relações existentes entre memória e história e sua
ligação com os processos sociais se aproximam, quando entendemos que uma
complementa a outra no sentido de pensá-las como instrumentos passíveis de
análise. É o que afirma Zarias (2001, p. 2) ao discorrer sobre o tema:
Pensadas como ferramentas analíticas, as noções de memória ehistória são articuladas para dar conta dos processos sociaisrelativos à interpretação do passado, à construção de biografias, àreflexão sobre lugar da disciplina a que chamamos de História nasCiências Humanas (...).
Outra abordagem que procura explicar esse processo é a que toma a
memória como produto de uma atividade meramente subjetiva, que foi superada
pelo pensamento de Halbwachs (1990), para quem a rememoração das lembranças
é fruto de uma atividade de reconstrução do vivido. Em sua concepção, o trabalho
da memória conta com o suporte de imagens e idéias, valores, anseios e afetos,
vinculados a grupos sociais junto aos quais o memorialista exercita algum
sentimento de pertencimento.
O sentimento de pertencimento é perceptível no âmbito do resgate
histórico do Engenho Cunhaú. Essa história começa a ser registrada, no âmbito
desta pesquisa, por volta do início do século XVIII, quando o Rio Grande já se
destacava como um importante centro de criação de gado e a pecuária, como uma
importante atividade socioeconômica, ajudou a constituir o núcleo urbano do lugar,
sendo esse formado, em sua maioria, por vaqueiros e lavradores. A agricultura e a
pecuária impulsionaram a economia da região e nessas atividades destacaram-se
produtos como o algodão, no agreste, e a cana-de-açúcar, no litoral. Nessa época, o
Engenho Cunhaú se destacava por sua importância como o maior produtor de
açúcar, fato também que se deu em quase todas as épocas.
Nesse contexto, Carlos Alberto Soares de Carvalho enfatiza a importância
do Engenho Cunhaú no processo de produção açucareira e destaca ainda que:
44
Um dos pontos mais importantes do povoamento do Rio Grande doNorte foi o vale do Cunhaú, não só porque aí se localizou a primeiraconcessão de terras feitas aos filhos de Jerônimo de Albuquerque,mas porque lá também se constituiu o primeiro engenho de açúcar.O vale do Cunhaú era o ponto obrigatório da primeira etapa doscaminhantes das expedições do vale da Paraíba, de Mamanguape,da Baía da Traição, que transpunham a fronteira norteriograndense.
Apoiando-se nesse relato, vejo que a Vila de Cuitezeiras se constituiu
como conseqüência do movimento econômico de expansão das lavouras da
cana-de-açúcar do Engenho Cunhaú e do povoamento inicial da região. Nesse
contexto, foi decisiva a participação da família Albuquerque Maranhão, proprietária
do Engenho. Sobre esse tema, Lima (1997, p. 31) comenta:
Um dos fatores relativos a Pedro Velho, é o processo de ocupaçãoda área do Município, que pode ser enquadrada dentro da lógica quemarca a ocupação de todo o território nordestino desde o início dasua colonização. O processo, como nas economias capitalistas emgeral, tem sua essência na intensa concentração fundiária. (...) Deinício, esse processo foi sendo feito com acesso à implantação dacultura canavieira no vale úmido do litoral, especificamente no valedo Cunhaú.
Observa-se, por conseguinte, que o território do município de Pedro Velho
(RN), anteriormente denominado Vila de Cuitezeiras e, depois, Vila Nova de
Cuitezeiras, antes de caminhar rumo à sua formação como cidade, se destacava
como área pertencente ao Engenho Cunhaú, tendo como atividade dominante o
cultivo da cana-de-açúcar.
Através dos relatos referentes à importância do Engenho Cunhaú quanto
à fundação da Vila de Cuitezeiras, percebe-se uma identificação dos narradores
com a terra, revelada em palavras, frases e gestos, que anunciam o sentimento de
pertencimento à comunidade e à sua história. Trata-se mesmo da relação da
memória coletiva com as memórias individuais dos narradores. Essa discussão vem
acompanhando as observações e análises históricas desde os gregos antigos,
quando Aristóteles distinguiu a memória propriamente dita, a mneme, faculdade de
conservar o passado, da reminiscência, a mamneri, faculdade de invocar
voluntariamente o passado. Essa forma de compreender e de analisar a memória é
retomada ao longo do tempo.
45
Partindo de compreensão semelhante, Halbwachs (1990), em sua análise
sobre a memória, enfatiza a força dos diferentes pontos de referência que
estruturam nossa memória individual e que a inserem na memória da coletividade a
que pertencemos. Em vários momentos, ele insinua não apenas a seletividade de
toda memória, mas também um processo de “negociação” para conciliar memória
coletiva e memórias e percepções sensitivas do intelecto.
Em outra interpretação de memória, Halbwachs (1990) defende o caráter
eminentemente social e real da mesma, confrontando-a com o sonho e a afasia,
onde a presença da sociedade está retraída e alterada, e remete o ato da memória
ao plano, também social, da linguagem.
Portanto, Halbwachs (1990) estabelece um diálogo com filósofos,
religiosos e estudiosos ao discutir memória seguindo uma linha de tempo que se
estende do século I com Cícero, para quem a memória é parte da prudência junto à
inteligência e à providência, até os séculos X e XI, com São Tomas de Aquino e
Santo Alberto, que concebem a memória como parte prudente relacionada às regras
da memória artificial.
É este "sentimento de realidade" a base para a reconstrução do passado.
No ato de lembrar nos servimos de campos de significados - os quadros sociais -
que nos servem de pontos de referência. As noções de tempo e de espaço,
estruturantes dos quadros sociais da memória, são fundamentais para a
rememoração do passado na medida em que as localizações espacial e temporal
das lembranças são a essência da memória.
Halbwachs (1990) não descarta a relevância do indivíduo para o
pensamento social. Segundo ele, apesar de o homem só poder ter memória de seu
passado enquanto ser social, cada um traz em si uma forma particular de inserção
nos diversos meios em que atua. Para o autor, cada memória individual é um ponto
de vista da memória coletiva, e esse ponto de vista varia de acordo com o lugar
social que é ocupado; e este lugar, por sua vez, muda em função das relações que
se tem com outros meios sociais.
Portanto, o conceito de memória está relacionado ao conjunto de idéias
que envolve as lembranças, o corpo, a razão, as imagens, o espaço social e o
momento histórico. A articulação desses elementos, acompanhada de uma
atividade mental (intelectual), constrói o que conhecemos por identidade social de
46
um povo, família ou lugar. O exemplo da Vila de Cuitezeiras, hoje município de
Pedro Velho, revela, a partir dos remanescentes do antigo Engenho Cunhaú, sua
trajetória social na construção do lugar.
1.4 Memória e Identidade Social do Engenho e da antiga Vila
Sabemos que a identidade social está intrinsecamente ligada à memória
e ao passado de um grupo social ou sociedade e que desconhecer a história de seu
povo é desconhecer a existência de sua vida social, mesmo a mais atual.
Para entendermos um grupo social é preciso recuperar a memória e
resgatar os momentos históricos que provocaram transformações individuais e
coletivas no âmbito de qualquer sociedade.
Pollak (1992, p. 2), entende que, “a priori, a memória parece ser um
fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa”. E cita
Halbwachs (1990), afirmando que esse autor já havia, nos anos de 1920 e 1930,
sublinhado que “a memória deve ser entendida também ou, sobretudo, como um
fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e
submetido a frustrações, transformações, mudanças constantes”.
Pollak (1992, p. 2) afirma ainda que “se destacarmos essas
características flutuantes, mutáveis, da memória, tanto individual quanto coletiva,
devemos lembrar também que na maioria das memórias existem marcos ou pontos
relativamente invariantes, imutáveis”.
Desse modo, entendendo a relação memória – identidade social, Pollak
(1992) enfatiza que, quando a memória e a identidade social estão suficientemente
constituídas, suficientemente instituídas, suficientemente amarradas, os
questionamentos vindos de grupos externos à organização, os problemas colocados
pelos outros, não chegam a provocar a necessidade de se proceder a
rearrumações, nem ao nível da identidade coletiva, nem ao nível da identidade
individual. E acrescenta que, quando a memória e a identidade trabalham por si sós,
isso corresponde a conjunturas ou períodos calmos, em que diminui a preocupação
com a memória e a identidade.
47
Nesse contexto, a construção da relação memória coletiva – identidade
social revela, em certo sentido, a preocupação em conservar as idéias de memória
coletiva e individual, com respaldo no trabalho de Pollak (1992), que concebe
determinado número de elementos que se tornam realidade, passam a fazer parte
da própria essência da pessoa, muito embora outros tantos acontecimentos e fatos
possam se modificar em função dos interlocutores ou em função do movimento da
fala.
Amparado nos fundamentos apontados por Pollak e Halbwachs destaco,
na composição da memória coletiva estudada, um dos eventos que marcam os
documentos oficiais e os relatos registrados: o Massacre da população da antiga
comunidade do Engenho Cunhaú. O “Massacre do Cunhaú”, como é mais
conhecido, realizado pelos holandeses e índios janduís, e que culminou com a
disseminação do sentimento de terror na região, de grande repercussão histórica.
As marcas do terror se fizeram notar na época do Massacre, visto que
muitos portugueses que viviam próximos à povoação e, especialmente no território
da Paraíba, deixaram suas casas, em pânico, movidos pelo receio de novo ataque
como o do Engenho Cunhaú.
Na historiografia regional, mais especificamente em Mariz & Suassuna
(1997, p. 95-96), o Massacre também teria tido conotação de intolerância religiosa,
visto que, na época, os holandeses eram perseguidos por serem protestantes e
teriam partido, após um primeiro momento de aceitação do culto católico durante o
governo de Maurício de Nassau, para uma reação aqui no Brasil.
Na memória desse Massacre, a fala e a escrita se colocam como
instrumentos importantes na constituição da memória, uma vez que os relatos orais
e escritos tomam relevância no resgate histórico e se mantêm na memória coletiva
da região, remetendo-nos à discussão teórica sobre a constituição da memória, num
cruzamento de idéias sobre linguagem, calcadas principalmente nas perplexidades,
desencadeadas aqui pelo Massacre.
Pollak (1992, p. 2) nos alerta ainda que, na constituição da memória, os
aspectos individual e coletivo, anteriormente mencionados, são imprescindíveis. O
primeiro, por se tratar dos acontecimentos vividos pessoalmente e, o segundo, por
estarem vinculados aos acontecimentos “vividos por tabela”, ou seja,
48
acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa sente
pertencer.
Nesse sentido, nem sempre as pessoas que participam do grupo ou da
coletividade vivenciaram tais eventos, mas, na memória coletiva, as mesmas idéias
tomaram tamanho relevo que, torna-se quase impossível às pessoas conseguirem
excluí-los de sua memória pessoal. No relato do senhor Daniel Galvão sobre o
Massacre a memória é por ele rememorada como se tivesse participado desse
evento.
Mas, a memória é constituída, sobretudo, por pessoas, paisagens,
lugares, como o Engenho Cunhaú, a Vila de Cuitezeiras, retratados no quarto
capítulo.
Ao abordar essas características do relato memorialista, Pollak (1992, p.
2) nos lembra ainda que “existem lugares na memória, lugares particularmente
ligados a uma lembrança, que podem ser uma lembrança pessoal, mas também
podem não ter apoio no tempo cronológico”. E cita alguns exemplos: pode ser um
lugar de férias na infância, que permaneceu muito forte na memória da pessoa,
muito marcante, independentemente da data real em que a vivência se deu.
Outro exemplo seria o da memória dos mortos que permanece a partir
dos relatos e da escrita de pessoas que levam escritos memorialistas ou
vivenciaram com pessoas e épocas passadas e que podem servir de base a uma
relembrança. A memória da África, seja de Camarões ou do Congo, pode fazer
parte da herança da família com tanta força que se transforma praticamente em
sentimento de pertencimento. Outro exemplo seria o da segunda geração dos Pieds
Noirs na França, que na verdade nem chegaram a nascer na Argélia, mas entre os
quais a lembrança argelina foi mantida de tal maneira que o lugar se tornou
formador da memória. Ainda no caso da França, não é preciso ter vivido na época
do General De Gaulle para senti-lo como um contemporâneo.
Ao investigar a relação entre memória e identidade social, observei que a
valorização do registro memorial e da história de vida individual ou coletiva de um
lugar é a marca maior desse tipo de abordagem. Conservado, esse evento que
marcou gerações, as lembranças podem vir à tona sob risos ou lágrimas.
Pollak (1992, p. 2), tratando sobre algumas particularidades desse tipo de
memória, adverte-nos que: “além dessas projeções, que podem ocorrer em relação
49
a eventos, lugares e personagens, há também o problema dos vestígios dotados de
memória, ou seja, aquilo que fica gravado como data precisa de um acontecimento”.
Percebemos esse traço da memória quando tomamos os relatos sobre a
enchente do rio Curimataú, que arrasou a Vila de Cuitezeiras. O senhor Daniel
Galvão nos conta que:
Na noite do dia 13 de maio de 1901 veio à tragédia e tudo mudoubruscamente. O rio Curimataú destruiu com suas águas o povoado,impondo a necessidade de refundação do lugar que passou adenominar-se Vila Nova de Cuitezeiras.
O senhor Jaldemar Nunes também relata com detalhes o dia fatídico da
enchente e enfatiza a importância da tragédia para a construção de um novo
território, ligando o desenvolvimento atual da cidade a esse fato:
Então, em 1890 nós se desmembramos de Canguaretama,Cuitezeiras passou a ficar como uma cidade e que a alegria duroupouco porque em 1901 quando em janeiro uma enorme cheia do rioCurimataú destruiu grande parte do lugarejo levando as casas, nãohouve vítimas, o que fez a população procurar um lugar mais altoque passaria a se chamar Vila Nova. As grandes cheias doCurimataú foram em 1901. A mudança para Pedro Velho significou aconquista de uma nova cidade, já era vizinho do Curimataú,continuou vizinho, mas num lugar mais seguro e que, para nossasurpresa, foi construída essa grande população de Pedro Velho quehoje se encontra ai.
Carlos Alberto Soares também destaca esse momento nas palavras que
se seguem:
A tranqüilidade e a prosperidade da Vila de Cuitezeiras só foiquebrada na noite do dia 13 de maio de 1901, quando o rioCurimataú recebeu uma grande enchente no seu leito, avançandosuas águas destruindo a Vila, sua plantação, seus prédios, matandoe carregando o gado. Dos prédios só sobraram as paredes da igrejade Santa Rita de Cássia e o obelisco do túmulo da esposa deFabrício Maranhão. Não houve nenhuma vítima fatal.
A enchente alagou a várzea, subiu até o casario e derrubou ruas
mantendo-se em pé apenas a igreja. Conforme relata o senhor Daniel Galvão, eram
50
duas grandes ruas, sendo a principal delas a Rua da Cruz, que ia do velho cruzeiro
até o outro lado do Rio Curimataú.
O senhor Jaldemar Nunes complementa afirmando que:
Parte da população de Cuitezeiras escapou da enchente dentro daresistente igreja que ficou incólume – hoje existem apenas as ruínas;a cheia levou a metade do lugarejo, contudo, ainda restou vida emuitos moradores continuaram morando naquele local.
Figura 06: Capela de Santa Rita, na antiga Cuitezeiras, única estrutura que ficou depé após as cheias do rio Curimataú em 1901.
51
52
Esta versão da história, relatada oralmente, é também resgatada, sem
citar a data exata, por Cascudo (1968, p. 233), em sua obra “Nomes da Terra”
(1968):
O Curimataú avançou suas águas e destruiu a Vila, casas, gado,plantios, depósitos. Só não carregou a coragem. Pelo contrário,deu-lhes fé, levando a comunidade a reconstruir seu espaço real – aVila Nova de Cuitezeiras e ali, entrelaçada às tarefas econômica ereligiosa vão expressar o sentimento de religiosidade dos habitantesda Vila.
Entretanto, mais do que ressaltar a importância do registro para a
conservação da memória, o que se percebe é que os relatos aludem às
particularidades das personagens e às relações sociais com o grupo, o coletivo.
Essa discussão gera questões que se buscou responder aqui como:
quando se estiver relatando, o fato prevalece à memória individual ou à coletiva? O
que predomina nos relatos da memória? Os relatos são voltados para a
individualidade familiar ou para a vida pública? Desses dois, o que é mais
importante numa identidade social?
Segundo os estudos de Pollak (1992), a vida familiar apresenta-se mais
marcante nos relatos de memória, como acontecimentos que ficaram mais
intensamente presentes no grupo social do que na sociedade.
Neste trabalho, percebi ainda o apego às mudanças pessoais ou
familiares no cotidiano quando nos relatos dos narradores, identifiquei o sentimento
de existência ligado à reconstrução da Vila: a reconstrução do lugar está totalmente
imbricada com a reconstrução da história pessoal desses narradores.
Refletindo sobre a diversidade de aspectos que compõem a memória,
Pollak (1992, p. 2) nos lembra que a memória é realmente seletiva e que nem tudo
fica gravado, nem tudo fica registrado e acrescenta ainda que a memória é herdada
e não se refere apenas à vida física da pessoa. Além disso, ela também sofre
flutuações em função do momento em que é articulada, em que está sendo
expressa.
O conjunto das leituras realizadas nos leva a afirmar que a memória
contribui para a formação de uma identidade social, como se faz ao resgatar a
53
história do engenho Cunhaú e da Vila de Cuitezeiras, visto que as pessoas
relembram e relatam aspectos marcantes de uma vida e/ou dos fatos sociais
significativos da história de vida da sociedade. Nesse ínterim, concordamos com
Pollak (1992, p. 2) quando afirma: “se é possível o confronto entre a memória
individual e a memória dos outros, isso mostra que a memória e a identidade são
valores disputados em conflitos sociais e intergrupais e, particularmente, em
conflitos que opõem grupos políticos diversos”.
1.5 História e Memória: relatos orais e escritos da antiga Vila de Cuitezeiras
Entendo que não se reconstrói a história sem os relatos orais acrescidos
da pesquisa documental. Entendo também que, diferentemente dos escritos
registrados, os relatos orais são efêmeros em relação ao processo histórico de
qualquer povo, ou seja, ninguém vive duzentos ou trezentos anos, poucos chegam a
cem anos; surge daí, a importância de se resgatar a memória de um lugar, relatada
oralmente. Parte desse contexto a necessidade de se registrar a fundação da Vila
de Cuitezeiras na pesquisa em pauta.
É a partir de relatos orais e de poucas fontes, a exemplo do Decreto de
Criação nº. 24, que se tem o registro de nascimento da referida Vila e a história da
emancipação política do lugar.
Cascudo (1968, p. 233) nos faz saber dos termos do Decreto, publicado
na República do dia 11 de maio de 1890, que estabeleciam:
O Governador do Rio Grande do Norte, tendo em vista arepresentação dos habitantes de Cuitezeiras e o Estado florescentedesse povoado, decreta:Art. 1º - Fica elevada a Vila e desmembrado do município deCanguaretama o povoado de Cuitezeiras, com os limites seguintes:uma linha reta de oeste para leste desde os limites do município deNova Cruz até as nascentes do Piquiri, seguindo depois o cursodeste rio até encontrar a linha do telégrafo nacional, a leste estamesma linha telegráfica até os marcos da estrada nos limites doestado da Paraíba, ao sul do rio Guajú, que separa o Estado do RioGrande do Norte da Paraíba, a oeste os antigos limites do municípiode Canguaretama com Nova Cruz.Art. 2º - Ficam revogadas as disposições em contrário.
54
Carlos Alberto Soares de Carvalho nos relata que:
Administrava o governo do Estado do Rio Grande do Norte o Dr.Joaquim Xavier da Silveira Júnior. Com a emancipação política, foieleito a 11 de novembro do ano de 1892, o primeiro Presidente deIntendência do município o senhor João José da Cruz, que sedestacou por beneficiar o município com a construção de váriasobras públicas.
O senhor Daniel Galvão relata que, cerca de 10 anos após sua fundação
como município, Cuitezeiras destacava-se na região por sua ligação com uma
atividade agrícola e comercial que se pautava na diversificação. Possuía 20
fazendas de criação de gado, dois engenhos de açúcar, uma área significativa
plantada com algodão para exportação e dois descaroçadores.
Esse senhor relata ainda que no auge da produção algodoeira – o
algodão era uma exigência do capitalismo internacional da época – no início do
Regime Republicano, a Vila de Cuitezeiras produzia 300 toneladas do produto por
ano.
Enfatizando a importância do relato oral para a conservação do saber,
Queiroz (1988, p. 16-17), lembra-nos que:
(...) Através dos séculos, o relato oral constituíra sempre a maiorfonte humana de conservação e difusão do saber, o que equivale adizer, fora a maior fonte de dados para as ciências em geral. Emtodas as épocas, a educação humana (ao mesmo tempo formaçãode hábitos e transmissão de conhecimentos, ambos muitointerligados) se baseara na narrativa, que encerra uma primeiratransposição: a da experiência indizível que se procura traduzir emvocábulos. Um primeiro enfraquecimento ou uma primeira mutilaçãoocorre então, com a passagem daquilo que está obscuro para umaprimeira nitidez, – a nitidez da palavra, — rótulo classificatóriocolocado sobre uma ação ou uma emoção.A transmissão tanto diz respeito ao passado mais longínquo, quepode mesmo ser mitológico, quanto ao passado muito recente, àexperiência do dia-a-dia. Ela se refere ao legado dos antepassados etambém à comunicação da ocorrência próxima no tempo; tantoveicula noções adquiridas diretamente pelo narrador, que podeinclusive ser o agente daquilo que está relatando, quanto transmitenoções adquiridas por outros meios que não a experiência direta, etambém antigas tradições do grupo ou da coletividade.
Queiroz (1988, p. 16) ressalta ainda que o relato oral:
55
(...) Está, pois, na base da obtenção de toda a sorte de informaçõese antecede a outras técnicas de obtenção e conservação do saber; apalavra parece ter sido senão a primeira, pelo menos uma das maisantigas técnicas utilizadas para tal. Desenho e escrita lhesucederam. Quando o “homem das cavernas” deixou, nas paredesdesta, figuras que se supõe formarem um sentido, estavatransmitindo um conhecimento que possuía e que talvez já tivesserecebido um nome, estando já designado pela palavra. O fruto desuas experiências e descobertas ficava assim concretizado epassava aos demais, inclusive aos pósteros. Mais tarde a escrita,quando inventada, não foi mais do que uma nova cristalização dorelato oral.
Nesse sentido, Le Goff (1994, p. 426) alerta-nos para a importância dos
relatos orais na constituição da memória, quando diz que:
No estudo histórico da memória histórica é necessário dar umaimportância especial às diferenças entre sociedades de memóriaessencialmente oral e sociedades de memória essencialmenteescrita, como também às fases de transição da oralidade à escrita.
Em conformidade com essa idéia, Montenegro (2003, p. 40) explica que:
A história oral se descobre num processo de socialização de umavisão do passado, presente e futuro que as camadas popularesdesenvolvem de forma consciente/inconsciente. Entretanto, aaquisição da capacidade de falar, de comunicar idéias é elementodeterminante dessa historicidade. Uma historicidade de luta, deresistência, que, evidentemente, tem suas marcas de conformismo erepetição do status quo.
Na construção da memória coletiva o interesse pelos relatos orais
encanta os historiadores e se apresenta como memorável aos olhos dos estudiosos.
Desse modo, vários historiadores realizam diversos trabalhos resgatando a
oralidade e registrando histórias de vida. A história oral remonta a Antiguidade, foi
nesse período que teve início o registro dos relatos orais, tanto familiares quanto
coletivos. Sobre essa temática Le Goff (1994, p. 431) salienta que:
Nas sociedades sem escrita a memória coletiva parece ordenar-seem torno de três grandes interesses: a idade coletiva do grupo quese funda em certos mitos, mais precisamente nos mitos de origem, oprestígio das famílias dominantes que se exprime pelas genealogias,
56
e o saber técnico que se transmite por fórmulas práticas fortementeligadas à magia religiosa.
O surgimento da escrita está diretamente relacionado às mudanças da
memória coletiva. Conforme Le Goff (1994, p. 431), “a memória assume então a
forma de inscrição e suscitou na época moderna uma ciência auxiliar da história, a
epigrafia”.
Nesse sentido, Leroi-Gourhan (apud Le Goff, 1994, p. 433) entende que:
A evolução da memória, ligada ao aparecimento e a difusão daescrita, depende essencialmente da evolução social e especialmentedo desenvolvimento urbano: a memória coletiva, no início da escrita,não deve romper o seu movimento tradicional a não ser pelointeresse que tem em se fixar de modo excepcional num sistemasocial nascente.
Dessa maneira, devemos compreender a relação existente entre a
memória e a forma de transformá-la em texto. O relato oral é apenas o meio, ou
seja, a ponte entre o que está guardado na memória e sua transferência para o
registro escrito; e esse processo nos permite citar os gregos antigos que deram
grande contribuição para o nascimento da memória técnica. Le Goff (1994, p. 436)
complementa afirmando que entre os gregos, “da mesma forma que a memória
escrita se vem acrescentar à memória oral, transformando-a, a história vem
substituir a memória coletiva, transformando-a, mas sem a destruir”.
Com o passar do tempo, foram surgindo várias concepções ligando a
oralidade e a escrita com a memória. Nesse sentido, Le Goff (1994, p. 450) entende
que: “o escrito desenvolve-se a partir do oral e, pelo menos no grupo dos clérigos e
literatos, há um equilíbrio entre memória oral e memória escrita, intensificando-se o
recurso ao escrito como suporte à memória”.
A partir das décadas iniciais do século XX, diversos sociólogos e
antropólogos norte-americanos utilizaram-se de relatos orais advindos da memória
que ajudaram na construção de pesquisas históricas sobre os mais variados temas.
Na década de 1950, essa prática começa a aparecer em pesquisas
acadêmicas no Brasil, em especial nas Ciências Sociais e, com a “Nova História”,
ocupam definitivamente o campo dessa disciplina, embora enfrente sempre
57
resistências por parte de historiadores mais ortodoxos e relutantes quanto à
utilização da memória.
Nos anos 1970, a pesquisa histórica recupera definitivamente a
importância dos relatos dos narradores, homens como os senhores Daniel Galvão,
Jaldemar Nunes e João Alberto, portadores da memória e das situações singulares,
fenômenos que privilegiam a dimensão do vivido.
Essas mudanças na interpretação acerca da importância da memória
como suporte à pesquisa juntaram-se ao estabelecimento de novas fontes e novas
metodologias históricas, o que impulsionou a história cultural e uma nova
interpretação a partir do campo do materialismo dialético especificamente em
relação a essa técnica de construção da história de um lugar.
Algo bastante ligado à utilização é sua capacidade de particularizar os
fatos relatados. Isso quer dizer que se nos deixarmos guiar exclusivamente pelos
relatos dos narradores, teremos uma visão particular e idealizada do evento tratado,
pois sua impressão sobre este é limitada àquilo que seus olhos viram e que seus
ouvidos escutaram, mesmo que se trate de sua história de vida ou da seleção das
memórias passadas que elegeu como essenciais para serem perpetuadas por suas
palavras.
Entretanto, a capacidade de descortinar a memória a partir dos relatos
dos eventos históricos vividos ou não, das personagens reais ou imaginárias e das
representações da sociedade em que vive, é inegável.
Le Goff (1994, p. 453) concebe que: “a memória é um glorioso e
admirável dom da natureza, através do qual invocamos as coisas passadas,
abraçamos as presentes e contemplamos as futuras, graças à sua semelhança com
as passadas”.
Portanto, dentre as variadas conotações que podemos ter da memória,
não importando se é natural ou artificial, oral ou escrita, tradicional ou eletrônica,
torna-se relevante o que elas têm a fornecer, a riqueza de recuperar a história de
um povo considerando a sua base material e social, tarefa que nos propomos no
próximo capítulo com enfoque para a tradição, a cultura popular e a noção de tempo
e espaço no contexto social da Vila de Cuitezeiras.
63
natureza que os homens formam entre si, um deles não faça uma idéiacorreta do lugar que ocupa no pensamento dos demais (...).
HALBWACHS (1990)
Nesse capítulo, realizo uma discussão sobre o espaço socialmente
construído a partir da memória e do que foi discutido anteriormente sobre a
importância dos relatos orais de memória na construção da história, tendo em vista
relatar o tempo histórico da formação da Vila de Cuitezeiras, procurando recuperar
os traços culturais que constituíram a vivência dos habitantes da antiga Vila.
2.1 A construção da memória dos narradores
Parto da compreensão de que a marca da tradição deve ser analisada
tanto internamente às narrativas da memória, quanto na relação dessas com a
sociedade: essas narrativas se refletem nas próprias regras de composição das
várias formas de memória – a memória coletiva, memória individual, dentre outras;
em sua existência social.
Para Bosi (1992), esse invariável na memória, freqüentemente
categorizada como típico, deve ser atribuído à fidelidade vivida subjetivamente como
boa forma, vivência espontânea da própria tradição, procedimento que se contrapõe
à reiteração coatora, imitação pela imitação, repetição afetada de fórmulas de
prestígio.
Deve-se afirmar, no caso da memória coletiva, o caráter essencial e
positivo da repetição – exigência inerente a qualquer estruturação memorial – mas
reconhecidamente muito marcante nesta forma especifica de reprodução. A referida
memória parece, principalmente, permitir aos que a ela têm acesso, o controle do
processo da construção mnemônica e funcionar como núcleo condensador do
tempo, elementos imprescindíveis a uma produção centrada especialmente na
reprodução cultural.
Nessa perspectiva, Burke (1992, p. 68) chama a atenção para vários
64
aspectos favoráveis à ligação entre repetição e memória. Entre eles, está a
facilitação da própria tarefa do narrador, que utiliza frases estereotipadas, retém
tipos de seqüências, repete frases para gozar um “momento de fôlego, um alívio da
pressão da criação contínua, uma oportunidade de pensar no que viria a seguir”
(recursos especialmente úteis no improviso).
Para o público, o autor aponta o alívio da necessidade de concentração
extensa, proporcionado pelo uso da redundância e o gosto advindo de se saber com
antecedência o que irá acontecer em seguida.
Dessa maneira, é reconhecida a função de fixação a que está
subordinada a repetição dos “motivos”, das palavras e frases. Como faz todo
narrador, vai emendando as histórias: de uma narrativa, faz escorrer a lembrança de
outra e mais outra. Informa inclusive sobre as circunstâncias em que a história se
explica e como chegou a saber daquilo, liga o relato à sua vida pessoal e sua época.
Tanto o narrador esmera-se em exercitar sua memória, quanto o público espera a
redundância nos relatos.
Há, portanto, uma vinculação essencial da narrativa à memória da
tradição a ser transmitida de geração em geração, trabalhando num longo prazo.
Nesse sentido, Benjamin (apud Konder, 1985, p. 72) destaca, com precisão, a arte
dos narradores, homens que, ao trabalhar a experiência das gerações passadas à
sua própria ou à relatada pelos outros, dão suporte, de forma cumulativa e tributária,
à uma memória coletiva.
Nesse sentido, Halbwachs (1990, p. 51), lembra-nos que:
(...) Se a memória coletiva tira sua força e sua duração do fato de terpor suporte um conjunto de homens, não obstante eles se lembram,enquanto membros do grupo. Dessa massa de lembranças comuns,e que se apóiam uma sobre a outra, não são as mesmas queaparecerão com mais intensidade para cada um deles. Diríamosvoluntariamente que cada memória individual é um ponto de vistasobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme olugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo asrelações que mantenho com outros meios. Não é de admirar que, doinstrumento comum, nem todos aproveitam do mesmo modo.Todavia quando tentamos explicar essa diversidade, voltamossempre a uma combinação de influencias que são, todas, denatureza social.
Assim, a memória coletiva, formula Benjamin (apud Konder, 1985, p. 72),
65
seria a grande experiência coletiva, na qual o conhecimento pode ir se
sedimentando e é produto do trabalho, conduzindo à sabedoria – o lado épico da
verdade, em oposição à vivência do indivíduo, privada, impressão forte, que produz
efeitos.
Sobre a autoridade do narrador que se aproximou da memória de outros
para construir sua própria memória, Benjamin (apud Konder, 1985, p. 72) explicita
que esse papel especial de conhecedor, que ficou claro na pesquisa quando na
tomada de opinião sobre que senhores poderiam ser entrevistados como portadores
da memória da Vila de Cuitezeiras, é característico do narrador; é o que o distancia
em parte dos ouvintes e faz dele “o sujeito que tem aquele prazer de satisfazer a
curiosidade (...) importante naquele ponto, interessante para aquele povo, digno do
prestígio de ser um conhecedor para aquele povo, do que ninguém sabia”.
É natural, portanto, que os narradores pareçam especialmente derivar
sua competência da tradição memorial, por serem portadores de uma sabedoria
antiga e permanente, cuja lembrança surge com naturalidade, entre eles e seu
público, a identidade que a memória compartilhada do mesmo patrimônio cultural
afirma.
Observamos tal fenômeno quando nos deparamos com a tradição
memorial do Massacre do Cunhaú e sua relação com a fundação da Vila de
Cuitezeiras, contidas nos relatos orais tomados. Lembrado pela permanência na
memória coletiva, o Massacre do Cunhaú, com sua violência material e simbólica,
marcou decisivamente na memória coletiva dos grupos sociais que se
estabeleceram na área a partir de então e se faz presente até nossos dias, quando
ressaltamos a fundação dos municípios de Canguaretama e, posteriormente, de
Pedro Velho.
Figura 08: Capela do Cunhaú, local do Massacre doCunhaú, no município de Canguaretama/RN. Fonte:Medeiros Filho, 1989.
66
Nesse sentido, em descrições próprias da narrativa baseada na memória
do lugar da Vila de Cuitezeiras, os senhores Daniel Galvão e Carlos Alberto Soares
de Carvalho remetem ao Massacre do Cunhaú, cada um com sua forma de
interpretar o fato:
Carlos Alberto Soares: Cerca de onze anos após a conquista dofortim do Cunhaú ocorreu o massacre no engenho do Cunhaú. Fatoeste ocorrido no dia 16 de julho de 1645, sob o comando de JacobRabi com a ajuda dos janduís quando 35 pessoas e o padre Andréde Soveral foram terrivelmente massacrados no momento em queestava sendo celebrada uma missa na capelinha de Nossa Senhora
67
das Candeias. Todo o engenho foi destruído.
Sr. Daniel Galvão: Foi um massacre horrível. Morreram muitaspessoas incluindo os religiosos, o que se trata de um grande pecado,pois são pessoas santificadas. Os holandeses e o Jacó Rabiestavam possuídos pelo demônio. Nunca mais o local deixou de servisto como um lugar santificado.
Nesse registro memorialista encontra-se a identidade que se perde – ou
se acha – num tempo ancestral, pois essas narrativas se destacam, definem-se
quase, pela sua imprecisão quanto a datas, lugares, nomes, autoria. Nessa
perspectiva, Cascudo (1971, p. 7) se referia ao fato de a memória oralmente
transmitida pertencer simultaneamente ao repertório do narrador e do público
apresentando-se como omissa “nos nomes próprios, localizações geográficas e
datas fixadoras do caso no tempo”.
A observação de Cascudo (1971, p. 7) sugere essa tendência imemorial
da narrativa. Para compreendê-la, importa registrar uma de suas principais
ambições:
O fato de ter acontecido com alguém desconhecido, há muito emuito tempo, num lugar bem distante daqui que a narrativa fabricasua maior força junto aos ouvintes, evitando que a contextualizaçãohistórica e geográfica retire o encanto do entrecho e do desfecho,que podem, então, ser sentidos como sentença perene desabedoria.
Cabe aqui outra definição relativa ao caráter da narrativa e de sua
construção a partir da memória, aspecto que é básico quando buscamos sua
inteligibilidade e nos deparamos com elementos que podem evidenciar
pensamentos e concepções: ela realmente expressa visões de mundo.
Destarte, a memória pode perfeitamente se aplicar às palavras de
Chevalier e Gheerbrant (1998, p. 188) ao procurar destacar nas palavras do
narrador o fato de que este “exprime o mundo percebido e vivido tal como [...] o
experimenta, não segundo sua crítica e ao nível de sua consciência, mas segundo
todo seu psiquismo, afetivo e representacional, principalmente ao nível do
inconsciente”.
Por conseguinte, narrar eventos praticamente não depende de materiais,
sua permanência está condicionada à manutenção de determinadas relações
68
econômico-sociais, que definem o tempo doméstico disponível e a importância
cultural da transmissão oral pessoal.
Esses fatores são determinantes para que aconteçam serões, sessões
nas portas das casas ou para o simples contato com os mais velhos. Nesse sentido,
pude ver, a partir dos relatos orais, como os narradores do lugar contam a origem de
Pedro Velho a partir da fundação da Vila de Cuitezeiras situada às margens do rio
Curimataú, área que, em épocas anteriores, havia sido habitado pelos índios
Paiaguás.
No contexto da importância dos relatos orais para construção da
memória, nos deparamos com as descrições tomadas sobre a fundação da Vila de
Cuitezeiras. Trago inicialmente as palavras do senhor Daniel Galvão sobre o evento
que descreve:
Com o estabelecimento dos Afonso, família tradicional da época, nasegunda metade do século XIX surgia o povoado de Cuitezeiras,nome dado em virtude das numerosas árvores de cuités (coités oucuités – Cresentia cujete) que existiam na área e eram importantescomo fornecedoras de cabaços utilizados à época como utensíliosdomésticos. Ali os Afonso erigiram uma capela em honra de SantaRita de Cássia, benta em 1862 e em torno da qual se edificaram asprimeiras moradias. À época o povoado situava-se no sítio adquiridopor Cláudio José da Piedade, provavelmente dos AlbuquerqueMaranhão, no início do século XIX.
Figura 09: Cresentia cujete. Fonte:http//:www.tropilab.com/calabashtree.html
69
O senhor Jaldemar Nunes também comenta sobre a fundação da Vila e
se identifica com as palavras do senhor Daniel Galvão ressaltando que:
Cuitezeiras foi fundada no ano de 1861, vinculada à cidade deCanguaretama como Carnaúba e Cuité pertencem a Pedro Velhohoje, seu primeiro chefe de intendência foi o senhor José PauloTamatanduba do sítio Tamatanduba. O povoado foi fundado por umafamília, os Afonso que ergueram nesse lugar em 1862 a capela deSanta Rita que iniciou as práticas religiosas locais. Em 1890Cuitezeiras se desmembrou de Canguaretama e após 11 anos o rioCurimataú, com suas cheias, invadiu a cidade levando a metade dolugarejo e seus moradores com medo de novas enchentesprocuraram um lugar mais alto para construírem suas moradias. Apalavra Cuitezeiras é porque tinha muitos pés de Cuité. Era umlugarejo que tinha dois descaroçadores de algodão, dois engenhosde açúcar, muitas lojas (vendas e mercearias) e muita gente, aquionde era a cidade de Pedro Velho era mato, nada existia.
Carlos Alberto Soares de Carvalho expõe a sua versão sobre a fundação
da Vila de Cuitezeiras nessas breves palavras:
Figura 10: Cruzeiro da antiga Vila de Cuitezeiras, que ficou parcialmente destruído com ascheias do rio Curimataú em 1901.
70
Ao sul, a margem esquerda do rio Curimataú, no sitio pertencente aosenhor Cláudio José da Piedade, durante as primeiras décadas doséculo XIX fez surgir o povoado de Cuitezeiras, nome este emvirtude das inúmeras arvores de cuités. Este povoado foi fundado noano de 1861 e pertencia judicialmente ao município deCanguaretama. O seu primeiro chefe de intendência foi o senhorJosé Paulo de Tamatanduba. Em 1862, foi construída a igreja deSanta Rita de Cássia e o Cruzeiro pelo padre João Medeiros. Areferida Santa tornou-se a padroeira do povoado.
Conclui-se, portanto, que relatos como esses, sobre a fundação da Vila
de Cuitezeiras, ressaltam a importância atual da narrativa, no contexto da produção
cultural da população do lugar, oferecendo-nos muitas referências quanto à
recuperação e resgate que pesa, hoje, sobre a possibilidade de sobrevivência do
costume de conservar a memória de um lugar.
71
2.2 A Memória e as evidências orais
Um diálogo com os autores e fontes de referência é o que me move
nesse item do trabalho. Com esse diálogo pretendo analisar os relatos orais e
escritos, uma vez que entendo que não se constrói a história com dados
equivocados ou não confiáveis, pois uma história contada sem seriedade no que se
diz ou se escreve, vira “estória” e recai em prejuízo científico incalculável, bem como
a predominância da falsa memória.
Nesse sentido, analiso alguns elementos dessa confiabilidade. A iniciar
com as idéias de Bosi (1994, p. 55) que afirma:
Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer,reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiênciasdo passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é,deve-se duvidar da sobrevivência do passado, “tal como foi”, e quese daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é umaimagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossadisposição, no conjunto de representações que povoam nossaconsciência atual.
Dessa forma, é importante ressaltar que, ao lado da história escrita, das
datas, da descrição de períodos, há correntes do passado que só desapareceram
na aparência. Essas podem reviver numa rua, numa sala, em certas pessoas, como
ilhas efêmeras de um estilo, de uma maneira de pensar, sentir, falar.
Bosi (1994, p. 12) pergunta: “Para que servem os velhos?” Essa pergunta
é respondida em seu livro “Memória e sociedade: lembrança de velhos”, no qual
trata sobre memória social, ancorado na velhice, essa fase da vida inevitável que
muitos jovens simplesmente ignoram. A autora afirma: “(...) Não pretendi escrever
uma obra sobre memória, nem uma obra sobre velhice. Fiquei na interseção dessas
realidades: Colhi memórias de velhos”.
Essa abordagem implica a confiança que o historiador deposita nos
relatos escritos e orais das pessoas senis, ou seja, acreditar nos velhos. Diante do
exposto, amplia-se a pergunta de Bosi (1994): é confiável a fonte de informação
proveniente dos velhos? Os fatos são reais ou imaginários? Seja como for, o fato é
que as histórias são contadas com uma subjetividade intensa, na qual as
72
lembranças fluem a ponto de se confirmar os fatos críveis. Tudo isso, sendo produto
da memória.
Essa confiança do historiador se amplia para qualquer trabalho de cunho
científico, principalmente quando se referir à pesquisa de campo antropológica e
que requer uma coleta de relatos de pessoas idosas que tenham uma mente sadia
no sentido de preservar as informações fidedignas na memória.
Partindo desse entendimento, registrei algumas informações obtidas
através dos depoimentos dos narradores portadores da memória do lugar quando se
expressaram sobre a educação na antiga Vila como forma de suplementar a
memória discutida ao longo da pesquisa.
A educação, como na maioria dos municípios criados antes das
mudanças das leis do século passado, que transformaram essa atividade numa
obrigação do Estado, era, em sua maioria, dirigida por particulares.
Assim, como relata o senhor Daniel Galvão: “A educação ainda não tinha
não; a educação era particular, com escola particular, educação pública não tinha,
cuidada pelo governo”.
Em relação à forma de relatar do senhor Daniel Galvão, entendo a
memória na velhice como uma narrativa de homens e mulheres que já não são mais
membros ativos da sociedade, mas que já foram. Isso significa que os velhos têm
uma nova função social: lembrar e contar para os mais jovens a sua história, de
onde eles vieram, o que fizeram e aprenderam. Na velhice, as pessoas tornam-se a
memória da família, do grupo (BOSI, 1994, p. 63).
A questão da confiabilidade está relacionada com a legitimidade e a
limitação da história oral ao tempo presente. Nessa acepção, Pollak (1992, p. 12).
Cita:
A história oral permite fazer uma história do tempo presente, e essahistória é muito contestada. Há vários tipos de hostilidades. Porexemplo, há uma oposição entre fontes clássicas, legítimas, e fontesque estão adquirindo nova legitimidade. Na França há também a“dignidade” do período. A história medieval, por exemplo, é omáximo, é o que existe de mais fino. É claro que quando você estáacostumado a trabalhar com Idade Média, vai ser difícil se reciclarem entrevistas! Mas há também um problema de legitimidade, atémesmo em relação à história contemporânea. A história do períodoseguinte à Primeira Guerra Mundial é vista como bem menos “digna”do que a história de períodos mais antigos.
73
Portanto, essa tarefa de lembrar, aparentemente difícil para os jovens, se
apresenta de forma prazerosa para os velhos, e esse esforço de memória é
considerado e encarado pelos historiadores como fonte que de forma alguma pode
ser desprezada.
75
2.3 A Memória e sua relação com o passado [da Vila de Cuitezeiras]
Estabelecer uma relação da memória com o passado é entender que não
existe presente sem influências do passado. Por outro lado, falar de memória e do
passado é falar da experiência do vivido, da vivência de ruptura e das construções
sociais dos agentes da memória viva.
Nesse aspecto é que busquei a compreensão dos fatos passados na
antiga Vila de Cuitezeiras. Essa recuperação se deu através do ato de lembrar
contido na memória. É esse o exercício em curso: resgatar o passado da antiga Vila
com os artifícios da arte de narrar sem perder de vista que, como afirma
Frochtengarten (2005, p. 4):
O passado narrado carrega uma opinião: uma lembrança é umaperspectiva sobre o vivido. Por meio dela o memorialista apareceaos demais. A arte de narrar envolve a coordenação da alma, davoz, do olhar e das mãos. É como que uma performance em que apalavra, associada à ação, permite ao homem mostrar quem ele é.
Assim, os narradores portadores da memória do lugar relataram a
discriminação racial contra os negros da antiga Vila de Cuitezeiras e a relação com
o cemitério local. É fato que brancos e negros pertenciam a grupos sociais distintos
antes da libertação dos escravos em 1888. É fato também que eram muitos os
mecanismos utilizados para que isso pudesse vigorar.
Uma das estratégias de segregação era o cemitério. Invariavelmente, nas
cidades brasileiras, no período tratado, existia o cemitério dos brancos e/ou
famosos, o dos poucos conhecidos e, em muitos casos, o dos negros.
Desconhecedor dessa repetição histórica, o Senhor Daniel Galvão relata o fato de
na Vila de Cuitezeiras existir essa forma de segregação. Vejamos nas suas
palavras:
No cemitério próximo à igreja só se enterravam os brancos,geralmente pessoas famosas, as outras pessoas, os negros, eramenterradas em outro cemitério, que ficava distante, até nisso tinhapreconceito, até no sepultamento tinha preconceito.
Figura 11: Cemitério dos “ricos” da antiga Vila de Cuitezeiras, hoje Pedro Velho/RN.
76
Apesar da segregação visível, o senhor Daniel Galvão enfatiza que não
existia violência de nenhum tipo por causa disso e complementa:
Vandalismo, não tinha isso na Cuitezeiras; o que ocorria eram brigasquando o homem fraco se embebedava e ia brigar com os outros,era essa a violência, mas mesmo sem roubos e sem vandalismohavia muitas mortes.
De fato não há registro nos documentos oficiais pesquisados de crimes,
assaltos, roubos ou assassinatos, o que nos leva a concluir que a população da Vila
de Cuitezeiras era pacata. Diz o senhor Daniel Galvão que todas as festas
realizadas eram muito tranqüilas. Segundo ele, “a população participava dos
festejos com muita harmonia e sem violência”.
Visando compreender o movimento que marca a descrição dos
narradores e sua relação com os eventos passados, Frochtengarten (2005, p. 5) nos
alerta para algumas das suas características primordiais, quando afirma:
77
Uma narração é uma prática da linguagem em processo e que serenova a cada experiência de recordar, pensar e contar. O passadolembrado não é linear. A narração avança e recua sobre a linha dotempo, como que transbordando a finitude espaço-temporal que éprópria dos acontecimentos vividos. As lembranças abrem as portaspara o que veio antes e depois. Uma recordação chama outra,compondo uma teia de rememorações mais ou menos singular, cujatextura se alinhava pela maneira como cada memorialista recolhe eamarra as imagens pregressas e busca sua significação.
Nessa acepção, relatar o passado envolve algum tipo de organização das
idéias, a nomeação das vivências e sua integração a outras representações. É o
que percebi nos relatos do Carlos Alberto Soares de Carvalho, quando retrata a
mudança do território da Vila de Cuitezeiras após a enchente do rio Curimataú e
enfatiza a importância de uma primeira consciência urbana na formatação da nova
Vila.
Após o drama da enchente a população procurou recomeçar tudonovamente. Mudou-se para um chapadão de terras mais elevadasacima do leito do rio e no decorrer de alguns meses a população foiconstruindo suas residências e projetando as futuras ruas da novacidade com proporções e feições modernas. O intendentetenente-coronel Manoel Lopes Teixeira providenciou a distribuiçãodos lotes de terras que foram distribuídos à população e as casasdeveriam ser construídas dentro de um padrão em forma dequadras, isto demonstra que a cidade de Pedro Velho foi uma cidadeplanejada. A importância dessa estrutura de urbanização fez comque a cidade não tivesse nenhum aglomerado urbano.
Ainda sobre o evento, segundo o senhor Daniel Galvão, apenas uma
parte da população foi morar no chapadão mais alto. A maioria da população
preferiu continuar no núcleo urbano “original” sem a perspectiva de obter um lugar
para estabelecer sua nova moradia.
Continuando com os relatos do senhor Daniel Galvão, em 1901, Claudino
Martins Delgado, que é considerado o fundador da cidade de Pedro Velho, membro
de família tradicional e muito influente no início do século XX no município, construiu
uma casa para residência a dois quilômetros de Cuitezeiras. No seu relato original o
senhor Daniel Galvão afirma:
78
Não morreu ninguém, não houve vítimas, o socorro saiu de canoas,portanto canoas transportaram o povo para cá para o lugar mais altoque é Pedro Velho, dois quilômetros de lá para cá e começaram aconstruir aqui. A primeira casa é ali onde é a Telern hoje, sabe ondeé? Foi lá a primeira casa a ser construída na Vila Nova e era dofundador da cidade Claudino Martins.
Esse resgate histórico-social transmitido pelos relatos dos narradores
portadores da memória do lugar permite a reconstrução de fatos marcantes da vida
dos habitantes de Cuitezeiras, uma reconstrução real e/ou imaginária do passado da
antiga Vila. Nesse caso, considera-se que uma vida é vivida quando narrada. Sobre
esse tema, Pollak (1989, p. 3) afirma: “(...) O passado está ligado [...] à necessidade
de encontrar um modus vivendi”. Ainda refletindo a respeito do real e do imaginário
da memória no relato dos narradores sobre o passado, Vigotsky (1987, p. 21) nos
alerta:
Ao ser capaz de imaginar o que não viu, ao poder conceber o quenão experimentou pessoal ou diretamente, baseando-se em relatos edescrições alheias, o homem não está encerrado no estreito círculoda sua própria experiência, mas pode ir muito além de seus limitesapropriando-se, com base na imaginação, das experiênciashistóricas e sociais alheias.
A conclusão a que se chega após toda essa discussão sobre passado e
memória é que eventos passados podem se apresentar trágicos ou venturosos. No
caso deste estudo em particular, o passado da Vila de Cuitezeiras, aparece no
primeiro momento dos relatos como tendo sido trágico, porém, depois mostra-se
“venturoso” no sentido de ter proporcionado – a tragédia – transformações
importantes para os moradores e conseqüentemente a mudança da comunidade
para a Vila Nova de Cuitezeiras.
2.4 A memória e sua relação com o presente
79
A discussão sobre a relação passado/memória remete ao tempo
presente. O momento atual é o ponto de partida dos narradores da memória do
lugar, base para sua rememoração. Essa rememoração também serve de
matéria-prima no momento da indagação do pesquisador, quando busca trazer da
memória acontecimentos através de lembranças que chegam e se associam numa
seqüência que, com freqüência, parece não ter nexo com pessoas situadas em
outros tempos e lugares.
Assim, pude perceber nos relatos do senhor Jaldemar Nunes e Cascudo,
(1968), como era a Vila de Cuitezeiras e a vivência de algumas pessoas, bem como
a força do relato dessas pessoas no sentido de influenciar na memória da Vila.
O historiador Câmara Cascudo (1968) também relata sobre a fundação
da Vila de Cuitezeiras. Trata-se da versão historiográfica corroborando com as
versões orais. O autor afirma que nos idos da terceira década do século XIX,
Cláudio José da Piedade adquiriu o sítio de Cuitezeiras, às margens do rio
Curimataú.
A essa época, Cuitezeiras era pouso obrigatório para comboios
carregados de algodão, açúcar e farinha que passavam pela região. Sobre esse
papel da Vila de Cuitezeiras, o senhor Jaldemar Nunes afirma:
A Vila de Cuitezeiras era um lugarejo pequeno, aonde 80% da rendaviria da passagem de pessoas pelo lugarejo, onde compravam nasvendas. Na época o lugarejo era vinculado a Canguaretama(conhecido na época por Penha), o nome vem da existência de cuitée a fundação está vinculada ao transporte das cargas que vinham daParaíba e iam para este Estado. Em 1890 houve a emancipação.Tratava-se de uma cidade pequena. Tinha umas 30 mercearias,poucas casas, um cemitério.
Cascudo (1968) confirma a versão oral do senhor Jaldemar Nunes.
Segundo ele, o lugar, localizado na orla da estrada realenga para o sul, já antes de
sua separação do município de Canguaretama, tornara-se ponto de passagem dos
comboios de animais carregados com os produtos (açúcar, algodão e farinha) que
movimentavam a economia daquela região e complementavam o abastecimento da
cidade do Recife (PE).
Ao tomar como referência a historiografia de Cascudo (1968) para
confirmar os relatos do senhor Jaldemar Nunes, entendo que, embora a experiência
80
dos narradores que lidam com memória do lugar se mostre e pareça estar pronta, é
preciso atentar para a subjetividade no tocante à vivência dos habitantes da antiga
Vila de Cuitezeiras.
Nessa acepção, Hall (1992, p. 1) esclarece que:
Hoje em dia somos todos um pouco menos ingênuos, me parece, ereconhecemos que a história oral está longe de ser uma históriaespontânea, não é a experiência vivida em estado puro, [...] osrelatos produzidos pela história oral devem estar sujeitos ao mesmotrabalho crítico das outras fontes que os historiadores costumamconsultar.
A memória é a expressão do improviso, concretizado através do contar e
recontar histórias. É a expressão da invenção ou da precisão do relato do orador e
da sua capacidade de selecionar motivos e de constituir regras de composição de
certo repertório culturalmente dado, suportes poderosos da tradição.
Ainda nessa perspectiva, o que se percebe é que a construção da
memória é complexa, visto que se apóia em testemunhos de pessoas que
participaram ou testemunharam algum tipo de acontecimento.
Segundo Montenegro (2003), a memória se vincula ao caráter de criação
coletiva, que é expressa por um indivíduo ou indivíduos, que fazem com que tal obra
não se perca no tempo, sendo marcada pela época em que se vive ajudando na
construção da história oficial.
Nesse sentido, a construção da História, a partir da memória, na maioria
das vezes, remete a uma seletividade, a uma distinção do que é e do que não é
importante segundo conceitos pré-elaborados, de visões de mundo construídas ao
longo da vida, ideologias, concepções étnicas e políticas e até temores próprios da
cultura popular; cultura popular essa que não busca descobrir um enclave dentro da
representação cultural produzida oficialmente, mas antes de tudo fazer um caminho
inverso .
Com isso, todas as considerações de ordem geral sobre a memória e sua
ligação com a História, inicialmente feitas, bem como a caracterização de sua
inserção social, permitem uma derivação adequada das exigências especiais de
flexibilidade colocadas para a instrumentalização do material da narrativa na análise
antropológica.
81
Essas considerações autorizam afirmar que a memória coletiva
proporciona significativa amplitude e exatidão para se captar a interpretação
conferida à realidade social pelo próprio grupo social que a carrega.
Nesse entendimento, o exame de narrativas reforça a vantagem da
escolha de elementos de caráter coletivo dentro da produção cultural, pelo seu valor
analítico.
O que registrei nas tomadas de memória permite um controle mais exato
da relação entre os aspectos mais internalizados pelos sujeitos e as condições
sociais, já que elas derivam sua autoridade da passagem contínua pelo crivo de
ouvintes e narradores, através dos tempos, mais ainda no tempo atual.
Em suma, é importante ressaltar que tal condição social da memória é
preciosa, uma vez que, a partir da aceitação de que determinações sociais geram e
mantêm padrões de percepção do indivíduo e de grupos sobre si próprios, é
essencial evitar uma passagem direta, mecânica, através do tempo, entre variáveis
socioeconômicas e o comportamento ou a percepção, investigando-se as formas
específicas pelas quais os determinismos são processados pelas pessoas, na
organização de um espaço e, principalmente, um tempo correlato ao externo.
2.5 A matéria-prima da memória: as lembranças [da velha Vila]
A matéria-prima da memória é a lembrança. Quando alguém relata suas
lembranças, transmite emoções e vivências que podem e devem ser partilhadas,
transformando-as em experiências que fogem do esquecimento.
Halbwachs (1990), nessa perspectiva, afirma que as lembranças se
constituem na matéria-prima dos depoimentos com os quais trabalhamos na
construção da memória. Sendo assim, as lembranças não vivem no passado, ao
contrário, precisam de um tempo presente de onde sejam projetadas e ancoradas
por um sentido. E acrescenta ainda que:
A lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado coma ajuda de dados emprestados do presente, e, além disso,preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de
82
onde a imagem de outrora se manifestou já bem alterada(HALBWACHS, 1990, p. 71).
As lembranças são de ordem relacional, não isoladas e se correspondem
com vários indivíduos, e esses se abastecem dessas lembranças para continuarem
suas trajetórias de construção da memória de algum lugar. Isso se dá porque, no ato
de lembrar, sempre nos servimos de campos de significados – os quadros sociais –
que nos servem de pontos de referência. Nessa perspectiva, Barros (1989, p. 29)
enfatiza que:
As noções de tempo e espaço, estruturantes dos quadros sociais damemória, são fundamentais para a rememoração do passado namedida em que as localizações espacial e temporal das lembrançassão a essência da memória.
É nessa acepção que se tem a lembrança dos senhores Daniel Galvão,
Jaldemar Nunes e Carlos Alberto Soares de Carvalho sobre a economia da Vila de
Cuitezeiras. Segundo relatam esses narradores, a economia era baseada na
agricultura e no comércio, destacando-se as vendas, que eram locais de
socialização, ponto de encontro e de conversas. Lugar onde se poderia saber dos
‘causos’ passados, sempre na companhia de uma boa dose de aguardente
destilada, fato comum no interior e que persiste, apesar do tempo, nas pequenas
cidades do Nordeste.
Ainda sobre a economia, eles afirmam que, nos idos de 1880, ainda no
governo do primeiro Intendente, José Paulo de Tamatanduba (1861-1892),
Cuitezeiras tinha uma vida econômica promissora: possuía três descaroçadores de
algodão, quatro engenhos de açúcar e inúmeras casas de farinha, além de um
grande número de cabeças de gado, arregimentados em cerca de trinta fazendas e
criados de forma extensiva.
O senhor Daniel Galvão destaca a economia da Vila de Cuitezeiras com
certo prazer e orgulho enfatizando que:
A produção era grande, num sabe, a produção agrícola como muitoalgodão, muita farinha de mandioca, muito milho, a produção eragrande, muito fumo, tinha 3 (três) descaroçadores de algodão aquiem Cuitezeiras, três usinas (engenhos), que eram de JoaquimAzevedo, do outro lado da estrada de ferro, uma outra ali aonde
83
mora dona Chiquita, que era de Alexandre Galvão e a outra era alionde é o sindicato que era de Pedro Costa, um senhor que tinhaaqui. Se produzia muitas frutas, apesar das terras serem quasetodas ocupadas pelo algodão e pela cana-de-açúcar, aqui existiammuitos engenhos que produziam açúcar, rapadura, aguardente,tinham vários engenhos aqui no município.
O senhor Jaldemar Nunes também enfatiza a economia da Vila de
Cuitezeiras sem se desconectar da realidade atual, fato comum aos que fazem a
história oral. Assim ele relata:
Os produtos que se destacavam era a cana-de-açúcar, e não eracomo hoje que vemos essa quantidade de caminhões transportandode Cuitezeiras a cana em grande quantidade, jerimuns, melancias,naquela época não existia isso não. Se as pessoas não plantassemno começo de janeiro, em outra época não daria nada, mas hoje temirrigação, hoje tem inseticida para combater a praga, tem aqueleremédio que você coloca no jerimum, na melancia para eles sedesenvolver mais rápido. Existe Hoje essa grande diferença, para otrabalhador trabalhar melhor. Antigamente você pagava uma renda,hoje paga menos. Os donos da terra, os donos do Cunhaú davam aterra braba, queria apenas que você plantasse uma carreira de canaou café, não cobrava nada. Hoje para você trabalhar a terra vocêprecisa pagar a renda, o que algumas vezes significa muito. AEconomia passada se dava numa cidade de porte pequeno que nãotinha verbas no passado e vivia com renda própria. Existia o algodão,você ia para a boiada [várzea do Curimataú] com seu saquinhoapanhava o algodão e ali no Pau Grande tinha um quartinho comuma balança, ali você já pesava o que você colheu e recebia porisso, (já em datas mais recentes, mas o processo apenas serepetia).
Figura 12: Várzea do Curimataú na região da antiga Vila de Cuitezeiras,destacadamente lembrada como sendo fértil e importante na produçãoeconômica do lugar estudado.
84
No mesmo sentido de registrar a importância da Vila de Cuitezeiras como
ponto de parada, Carlos Alberto Soares de Carvalho enfatiza:
A vila era ponto obrigatório de repouso dos comerciantes que vinhamdo sertão para o litoral sul do Estado. Os comerciantescomercializavam os seus produtos como o algodão, açúcar, farinha,sal, tecido, mel, cachaça e outros. A vila se desenvolvia atravésdeste comércio.Com estas atividades econômicas a vila atraia um grande número dehabitantes, a sua infra-estrutura contava com uma grande feirasemanal, prédios públicos como o da Intendência, mercado público,cemitério, cadeia pública, escola e uma boa urbanização. O seumaior desenvolvimento se deu com a chegada da estrada de ferroque liga Natal a Nova Cruz, no ano de 1882. Durante o período de1890 a 1900, Cuitezeiras mantinha toda a sua base econômicavoltada para o comércio, produção de algodão, criação de gado eaçúcar.
85
Fica claro, a partir dos relatos sobre a economia da Vila de Cuitezeiras,
nessa situação em especial, que é em grande parte na memória que se encontram
as informações que compõem as histórias individual e coletiva. É nela onde se
reelaboram significações e se restabelecem as relações com o passado, superando
assim o esquecimento e permitindo apreender a dinâmica da própria sociedade.
As entrevistas, os depoimentos, as histórias de vida ligadas às
lembranças coletivas, ressalvadas nas palavras dos narradores, são técnicas que
complementam o estudo da memória. Por isso, torna-se de grande importância
estabelecer diferenças entre cada uma delas. Nesse sentido, Queiroz (1991, p. 6)
afirma que:
A diferença entre história de vida e depoimento está na formaespecífica de agir do pesquisador ao utilizar cada uma destastécnicas, durante o diálogo com o informante. Ao colher umdepoimento, o colóquio é dirigido diretamente pelo pesquisador. [...]A entrevista pode se esgotar num só encontro; os depoimentospodem ser muito curtos, residindo aqui uma de suas grandesdiferenças com relação às histórias de vida. [...] Toda história de vidaencerra um conjunto de depoimentos.
Geralmente, durante entrevistas em que se busca colher lembranças e
esquecimentos a partir da memória, há a troca de impressões sobre o que está
sendo relatado, numa tentativa de ambos ordenarem suas convicções e suas
conclusões. A entrevista serve a esse propósito, ao funcionar como uma
comunicação articulada mais ou menos livre.
Nesse aspecto, o entrevistado, como narrador portador da memória, e o
entrevistador, constroem uma interpretação daquilo que é dado como real a partir da
experiência do vivido ou passado pelas gerações, buscando analisar aquilo que é
visto ou sentido como verdadeiro, no tocante ao entendimento da memória.
Os relatos do vivido e, principalmente, do que foi passado pelas gerações
revelam que o mais importante da experiência social para construção de uma
memória é a forma como o ator vive os processos sociais e entende o mundo do
seu tempo.
Nesse sentido, foi basicamente a partir dos relatos do vivido e,
principalmente, do que foi passado pelas gerações, que se tornou possível conhecer
a economia da Vila de Cuitezeiras e entender sua estruturação a partir dos setores
86
primário, no binômio agricultura e pecuária, e secundário, importantes para o
entendimento da constituição econômica da cidade de Pedro Velho dos nossos
dias. No que concerne, especificamente, ao setor agrícola, o destaque maior foi
para a produção de alimentos: feijão, milho dentre outros, realizada por pequenos
proprietários, arrendatários e grandes proprietários, com destaque especial para
dois povoados de Cuitezeiras: Cuité e Carnaúba.
Embora de forma menos expressiva, o setor secundário também se
sobressaiu desde os primórdios da constituição econômica do povoado de
Cuitezeiras. No início do século XIX, com uma infra-estrutura voltada para o
beneficiamento do algodão, essa área empregava mão-de-obra,
predominantemente masculina, com as mulheres participando da confecção de
sacos que eram utilizados para o armazenamento de algodão já descaroçado, para
o transporte.
O algodão era o principal gênero agrícola explorado em Cuitezeiras. Era
produzido no entorno do povoado em grandes quantidades para a época e essa
produção alimentava a fábrica de beneficiamento, junto com uma parcela vinda de
cidades e povoados próximos como: Montanhas, Canguaretama, Nova Cruz,
Espírito Santo, Goianinha e também Jacaraú, na Paraíba. Depois de descaroçado, a
pluma era exportada para Natal e Recife, onde o escoamento era feito através de
caminhões e trens pelas rodovias e ferrovias existentes.
Quase todos os produtos que vinham da zona rural eram trazidos em
cangalhas e caçoás, no lombo de animais, para serem vendidos na Vila de
Cuitezeiras, e eram também transportados para outras localidades. Naquele tempo,
havia muitos armazéns de compra de farinha que era exportada para o sertão do
Estado e praias, que não a produziam. Nesses armazéns, além da farinha, também
eram guardados cereais como feijão, milho e arroz. É o que se pode absorver na
literatura de Cascudo (1968).
O fato de ter acessado esses dois tipos de fontes, a escrita e a oral,
leva-nos a reafirmar sua importância como fontes complementares. Mais
especificamente, reconhecer a relevância das lembranças evocadas e transmitidas
por um sujeito, portador da memória, e que estão presas a sua trajetória de vida ou
foram passadas pela memória do lugar, o que lhe permite oferecer um relato das
87
transformações ocorridas nesse mesmo lugar, geralmente de vivência e, ao mesmo
tempo, produzir uma análise parcial das mudanças por ele percebidas.
Portanto, os relatos das lembranças se transformam num instrumento
analítico, que pode ser utilizado na leitura e evolução da memória de uma nação, de
uma região ou de um lugar, pois assinalam o universo social de onde provém.
2.6 A memória e sua ligação com a cultura popular
Que relação existe entre cultura popular e memória? Só podemos
resgatar os elementos da cultura popular se procurarmos compreender as
mudanças e permanências, num momento histórico, de algum aspecto da cultura.
Para isso, é preciso buscar, na memória coletiva, as marcas deixadas pelas
lembranças e pelas experiências vividas.
Nesse contexto, é importante observar que numa pesquisa sobre
memória, a força do simbolismo que emana da cultura popular é bem mais visível
que a produção material, propriamente dita, embora essas dimensões sejam em sua
totalidade, inseparáveis. Entretanto, Montenegro (2003, p. 12) lembra que a cultura
popular se caracteriza:
Por um conjunto disperso de práticas, representações e formas deconsciência que possuem lógica própria (o jogo interno doconformismo, do inconformismo e da resistência) distinguindo-se dacultura dominante exatamente por essa lógica de práticas,representações e formas de consciência.
E acrescenta que a cultura popular, como parceira da memória torna-se
ainda mais essencial quando se trata de uma das únicas fontes existentes ou
trata-se de uma opção pessoal. Talvez a própria opção seja uma forma de
resistência característica do fazer popular, que se compõe trilhando o caminho
inverso construído pelos que, muitas vezes, convivem, toleram, assimilam ou
reproduzem a cultura oficial.
Resgatar a memória a partir da cultura popular é acreditar que essa não
se perdeu no tempo, pois, como ressalta Montenegro (2003, p. 13):
88
Ela está presente, pelas próprias condições materiais de carênciaradical das condições mínimas de sobrevivência, ao gerar umaprodução material e simbólica que muitas vezes manifestacaracterísticas muito distintas da cultura oficial. É nesse cenário quea própria relação com a cultura oficial, por parte dessa população, éproduzida, recriada e regenerada.
Nesse sentido, resgatar a memória a partir da cultura popular também é
penetrar num mundo de idéias, em grande parte, não compreendidas pela
oficialidade ou pela própria população que a constrói, pois essa é muitas vezes
dominada, “coadjuvante” no processo de formação da história oficial.
Na perspectiva de teorizar sobre cultura popular, Chauí (2000, p. 63)
afirma que:
Para aqueles, como nós, que passaram pela experiência históricado populismo, as expressões “cultura popular” e “cultura do povo”provocam certa desconfiança e vago sentimento de mal-estar. Noentanto, convém admitir que as tais reações nascem da lembrançado contexto político em que aquelas expressões foramabundantemente empregadas. [...] Quando se fala em culturapopular, não enquanto manifestação dos explorados, mas enquantocultura dominada, tende-se a mostrá-la como invadida, aniquiladapela cultura de massa e pela indústria cultural, envolvida pelosvalores dos dominantes, pauperizada intelectualmente pelasrestrições impostas pela elite, manipulada pela folclorizaçãonacionalista, demagógica e exploradora, em suma, como impotenteface à dominação e arrastada pela potência destrutiva da alienação.
Nesse aspecto, Chauí (apud Montenegro, 2003, p. 13) critica aqueles que
defendem essa idéia e ainda aqueles que consideram a memória como tendo um
quadro simbólico reduzido e, por tal razão, se constituiria em uma cultura pobre.
Montenegro (2003, p. 13) ratifica Chauí afirmando que:
É completamente equivocado se procurar compreender e explicar aprodução material e simbólica da população – e por extensão asformas de relação com a sociedade a sua volta – a partir dos valoresinstituídos pela cultura oficial.
Os elementos simbólicos inerentes à cultura popular estão também na
marca da religiosidade e do costume. Nessa relação, Thompson (1998, p. 22) afirma
que:
89
(...) Não podemos esquecer que “cultura” é um termo emaranhado,que, ao reunir tantas atividades e atributos em um só feixe, pode naverdade confundir ou ocultar distinções que precisam ser feitas.Será necessário desfazer o feixe e examinar com mais cuidado osseus componentes: ritos, modos simbólicos, os atributos culturais dahegemonia, a transmissão do costume de geração para geração e odesenvolvimento do costume sob formas historicamente específicasdas relações sociais e de trabalho.
Dessa maneira, Bosi (1986) afirma que existe uma cultura vivida e uma
cultura a que os homens aspiram. A concepção de cultura como necessidade
satisfeita pelo trabalho da instrução leva a atitudes que reificam, ou melhor,
condenam à morte os objetos e as significações da cultura do povo por que
impedem ao sujeito a expressão de sua própria classe.
Bosi (1986) ainda acrescenta que Chombart de Lowe, escutando os
militares franceses, percebeu que a cultura não é um conjunto de conhecimentos a
assimilar, mas é o fruto de um esforço comum a todos “para compreender melhor o
que se passa em volta de nós e explicar aos outros”. Nos relatos do senhor Daniel
Galvão, percebi tal esforço, quando da descrição do transporte da antiga Vila e sua
relação com a demarcação religiosa.
O transporte básico em Cuitezeiras era o cavalo, carroças puxadaspor cavalos, essas coisas no interior do município. Para fora era aestrada de ferro, que já passava por aqui, essa mesma estrada deferro que existe hoje já existia, que por sinal hoje o trem não passa.A parada era ali no Cruzeiro, pois ainda não tinha estação, amercadoria era desembarcada lá; vinha de Natal, de Recife, daParaíba, desse meio de mundo e era transportada de cavalo e decarroças para o comércio de Cuitezeiras.
A partir da demarcação religiosa e sua relação com o transporte na Vila,
na perspectiva das Ciências Sociais, é importante distinguir qualitativamente as
modalidades de religião visto que a religião popular resulta da combinação de
variáveis, com destaque para duas que percebi nas entrevistas: a concepção social
dos fiéis, pobres, oprimidos, população carente, e a função da religiosidade em
conservar uma tradição ou responder ao desamparo suscitado por mudanças
sociais.
90
Registrando essa tradição, pude perceber a importância da construção de
um cruzeiro na formação da nova Vila de Cuitezeiras, pois, no Brasil, até meados da
segunda metade do século passado, o Cruzeiro era fator de demarcação para
sociedade e tratava-se de uma referência, daí o fato de, na ausência de uma
estação ferroviária, tal elemento de religiosidade e representação de poder, servir de
lugar de parada dos trens nas pequenas cidades.
O transporte ferroviário, que chegou ao povoado em 1882, segundo o
senhor Daniel Galvão, foi fundamental para dinamizar o escoamento dos produtos
de Cuitezeiras e demais municípios e povoados da região, bem como para o
desenvolvimento urbano da localidade em estudo.
A historiografia oficial, especialmente as obras de autoria de Câmara
Cascudo (1968; 1971), confirma a versão do senhor Daniel Galvão quando afirma
que a rede ferroviária, que rumava desde setembro de 1881, partindo de São José
de Mipibu (RN) com destino a Nova Cruz (RN), chegou a Vila Nova de Cuitezeiras
no ano de 1882.
Com a chegada da ferrovia à Nova Cruz, no mesmo ano de 1882, e com
o aumento da atividade agrícola ligada ao plantio e beneficiamento do algodão, a
criação de uma vila urbanizada se fez urgente. Junto ao edifício da Intendência veio
o mercado, realizou-se a feira, a capela de Santa Rita foi erguida, junto a ela o
cemitério, o que consistia em traços claros de uma urbanização que ia ganhando
novas feições com os primeiros alinhamentos de ruas.
Dessa maneira, as marcas da religiosidade estão presentes como
aspectos da manifestação cultural dos habitantes de Cuitezeiras. Nesse sentido,
Chauí (2003, p. 76) afirma que:
A religião fornece orientação para a conduta da vida, sentimento decomunidade e saber sobre o mundo, compensando a miséria porum sistema de “graças”: cura, emprego, regresso ao lar do maridoinfiel, do filho delinqüente, da filha prostituta, o fim do alcoolismo.
Chauí (2000) considera também que a cultura e a religiosidade estão
relacionadas com a vida política e social dos indivíduos como uma estratégia de
dominação através da cultura de massa. Nesse sentido e corroborando com Chauí,
Bosi (1986, p. 19) afirma:
91
Se um dia a classe pobre alcançar a gestão sobre seu destino, asua cultura não deixará de englobar os valores dos que trabalham,valores que se opõem aos dos que dominam [...] E, quem sabe, anossa cultura ganhará o que perdeu: o trabalho manual, o cultivo daterra, a ligação religiosa com o todo.
Na discussão sobre cultura, religião e política social, Bosi (1986, p. 65)
considera, em conformidade com Chauí, que “tanto do ponto de vista histórico
quanto do funcional, a cultura popular pode atravessar a cultura de massa tomando
seus elementos e transfigurando esse cotidiano em arte”.
No que diz respeito à relação entre cultura popular e religião, percebi que
foi a partir da identidade religiosa, fincada na fé em Santa Rita de Cássia, que os
moradores de Cuitezeiras estabeleceram a parceria para a constituição do novo
território que resultaria na Vila Nova de Cuitezeiras.
Este aspecto da religiosidade e suas manifestações são abordados por
alguns pesquisadores no âmbito da Geografia, a exemplo de Rosendahl (1996), que
sobre o tema afirma que a geografia e a religião são, em primeiro lugar, duas
práticas sociais. Afirma ainda que o homem sempre fez geografia e que a religião
por outro lado, sempre foi parte integrante da vida do homem, como se fosse uma
necessidade sua para entender a vida.
Ressalte-se que a formação da Vila Nova de Cuitezeiras se deu a partir
da construção da Capela de Santa Rita e do Cruzeiro no percurso dos viajantes, que
comercializavam e usavam o lugar como pousio desde os primórdios da antiga Vila.
A partir daí, estabeleceu-se o lugar e teve início a estratificação social e a distinção
entre os que governavam e os seus subordinados.
Portanto, ao longo dessa discussão, que abordou a memória e sua
ligação com a cultura popular, vi que é estreita essa relação e que, como enfatiza
Montenegro (2003), observam-se duas realidades de linguagem na construção da
memória ligada à cultura popular: a linguagem dos ricos, fortes influenciadores da
construção da história oficial, e a linguagem dos pobres, muitas vezes simbólica,
imaginária, construtora de uma memória. Além disso, as concepções de cultura
popular estão voltadas para sua relação com os costumes e na influência que
recebe da cultura erudita e cultura de massa.
É no âmbito dessa relação existente entre cultura e história que o próximo
capítulo recupera os aspectos mais importantes da história da Vila de Cuitezeiras. É
92
uma viagem pelos caminhos históricos da memória da antiga Vila a partir da
gênese: o engenho Cunhaú, passando pela formação da Vila, a enchente do rio
Curimataú, que levou à formação de uma nova Vila (a Vila Nova) até a consolidação
da cidade de Pedro Velho.
96
Um local é um lugar facilmente apreendido pela memória, como uma casa,um espaço entre colunas, um canto, um arco, etc. Imagens e formas,
97
marcas e simulacros (formae, notate, simulacra) daquilo que queremoslembrar.
Ana Luiza Bustamante Smolka (1998)
Ciente da importância em articular a discussão teórica com as
informações empíricas e de cunho etnográfico realizo nessa parte do trabalho uma
discussão sobre a memória, particularizando uma de suas categorias mais
importantes – a memória do lugar. Nesse exercício parto da antiga Vila de
Cuitezeiras, o povoado que deu origem à cidade de Pedro Velho no início do século
XX.
3.1 A Vila de Cuitezeiras – um lugar construído pela memória
De início, o lugar que se apresenta como cenário desse estudo se
constituiu no passado como o lugar de destaque histórico no município de Pedro
Velho. Esse lugar, tido como especial na imaginação dos narradores portadores da
memória do lugar, era repleto de mistérios desde o desmembramento, mediante
Decreto de 11 de maio de 1890, quando o Governador Dr. Joaquim Xavier da
Silveira Júnior separou a Vila do município de Canguaretama, definindo seus limites
e elegendo o senhor João José da Cruz o primeiro Presidente da Intendência do
município. Esse aspecto da memória coletiva aparece fortemente em depoimentos,
conforme posto a seguir pelo senhor Daniel Galvão:
É de fato uma terra boa, de grande produtividade onde quase tudoque se planta nasce. Desde criança ando por lá e aqui, na área dePedro Velho já vi sair de tudo um pouco: feijão, algodão, macaxeira,manga e muitas outras culturas. É uma terra santa, um pedaçoabençoado por Deus.
O mesmo narrador ainda acrescenta: cerca de 10 (dez) anos após sua
fundação como município, Cuitezeiras destacava-se na região por sua ligação com
uma atividade agrícola e comercial que se pautava na diversificação.
Essas informações registradas nos relatos do senhor Daniel Galvão,
revelam, com base na análise de Bauman (1999), horizontes e limites criados e
98
recriados constantemente, onde pode incidir ao mesmo tempo o internacional, o
nacional e o global, como dimensões sociais com graus diferentes de
intermediação.
O lugar também se representa na noção de coletividade, sinônimo de um
espaço-tempo enraizado fisicamente. Trata-se do espaço onde ocorrem ligações e
relações de colaboração, solidariedade, contradição, disputa e conflitos. Esse traço
da memória se faz marcante no comportamento dos narradores do lugar, quando
relatam o cotidiano das pessoas da antiga Vila e a solidariedade dos habitantes
durante a tragédia ocorrida – a enchente do rio Curimataú, que arrasou a Vila.
Nos relatos sobre esse evento, “o lugar pode ser também dos excluídos”.
Após a enchente, as pessoas construíram novos espaços geográficos e sociais,
consolidando um território denominado de Vila Nova de Cuitezeiras, posteriormente,
cidade de Pedro Velho.
Na tentativa do entendimento da memória do lugar e da construção do
território pedrovelhense, apoiei-me em Souza (2001) que enfatiza o valor essencial
do espaço como aparelho de manutenção, conquista e exercício de poder,
características que ele destaca como algo “muitíssimo antigo”, e importantíssimo
para o entendimento da memória do lugar. O lugar ou o território construído a partir
do lugar é tido por esse autor como um espaço produzido, definido e delimitado por
e a partir de relações de poder e da propagação de sua memória.
Em suma, o espaço geográfico-social da Vila de Cuitezeiras se constituiu
num ambiente construído e reconstruído com a vitalidade dos habitantes, depois de
uma tragédia sem precedentes na localidade.
O espaço socialmente construído da Vila de Cuitezeiras foi recriado com
o advento da enchente do rio Curimataú. No lugar da antiga Vila, sobraram apenas
as ruínas da Igreja de Santa Rita, o cemitério, parcialmente destruído, que ficava
atrás da Igreja e o velho Cruzeiro. Não havendo mais possibilidade de ali continuar a
vida, os moradores criaram um novo espaço, o território da Vila Nova de Cuitezeiras,
no qual teve início um novo povoamento.
Nas palavras do Senhor Daniel Galvão, o início da ocupação desse
espaço – o lugar recriado que originou a cidade de Pedro Velho – revela nomes
familiares, eventos e mudanças:
99
As famílias de Claudino Martins, Alexandrino Martins, Joaquim daLuz, Manoel Bezerril, José Galvão de Lima estão entre as primeirasque chegaram e se estabelecerem na nova Vila de Cuitezeiras aindano início da década de 1860. Essas também foram as primeirasfamílias da Vila Nova de Cuitezeiras após a mudança para ochapadão em 1901.Também, ainda no mês de dezembro de 1901, a sede do municípiofoi transferida pelo intendente Manuel Lopes Teixeira para uma áreamais elevada localizada nas terras de Fernando Pedrosa.Posteriormente, através da Lei 181 de 04 de setembro de 1902, opresidente da Intendência Joaquim Lopes Teixeira confirmou atransferência da sede da Vila para o novo local e, junto com outrasautoridades municipais, oficializou o novo nome da cidade: Vila Novade Cuitezeiras.A partir da construção da residência de Claudino Martins Delgado sesucederam as construções e se desenvolveu o comércio, lançandodessa forma os alicerces para a fundação do novo município,inaugurado, religiosamente, em 17 de dezembro de 1901 quando sebenzeu o cruzeiro e, politicamente, a 4 de setembro de 1902 quandoadotou-se o nome de Vila Nova de Cuitezeiras, sede oficial domunicípio a partir de então. Também no dia 17 a feira na nova Vilaera inaugurada.
Na acepção de Santos (1996), a idéia de lugar consiste da extensão do
acontecer homogêneo ou do acontecer solidário. Nesse sentido a configuração
territorial é norma, mesmo que efêmera e a estrutura é tão importante quanto a
duração do fenômeno. Mas como são as pessoas e os lugares que se globalizam, o
espaço se torna único. A globalização tenta impor uma única racionalidade ao
mundo. Ainda para o referido autor, a diferença entre lugar e região é hoje menos
relevante do que antes. Sobre tal diferença Santos (1996, p. 145) nos alerta que:
Quando se trabalha uma concepção hierárquica e geométrica doespaço geográfico, aí, a região pode ser considerada como umlugar, sempre que se verifique a regra da unidade, e da contigüidadedo acontecer histórico. E os lugares – veja-se o exemplo dasgrandes cidades – também podem ser regiões, nas quais o tempoempirizado acede como condição de possibilidade e a entidadegeográfica como condição de uma espacialização prática, que crianovos limites e solidariedades sem respeitar as anteriores (...) Oslugares se definem, pois, por sua densidade informacional e por suadensidade comunicacional cuja função os caracteriza e distingue.Essas qualidades se interpenetram, mas não se confundem.
Nesse sentido, mais importante do que a consciência do lugar é a
consciência de mundo que se tem por meio do lugar.
100
Quanto ao território, entender a idéia de territorialidade contida nos
relatos documentais e historiográficos oficiais sobre o Cunhaú, área gênese da
antiga Vila de Cuitezeiras, bem como a noção de “território vivido”, contida nos
relatos orais referentes a essa, perpassa pelas várias posições científicas do
entendimento desse “ser” geográfico.
Nesse caso, a busca do entendimento do território como um conceito da
história do pensamento geográfico, se justifica, pois complementa a pesquisa
histórica, permitindo compreender a ligação dos que propagam a memória do lugar
e o apego que geralmente esses “homens do lugar” têm com o território em que
vivem e onde se relacionam.
Nessa acepção, Bonemaison (apud CLAVAL, 2002) nos alerta que é
possível entender o apego afetivo dos “homens do lugar” com o seu “lugar de vida”,
compreendendo que esse se trata de onde eles se sentem, com demasiada
satisfação, responsáveis por reproduzir a tradição que carregam, fruto também de
uma construção temporal.
Numa outra concepção de território, Souza (2001) o trata como um
espaço produzido, definido e delimitado por e a partir de relações de poder e a
propagação da idéia de poder está ligada também à memória.
Nessa perspectiva, deixa fora do diálogo sobre a concepção do território
questões sobre as características geoecológicas, sobre o que se produz ou quem
produz em dado espaço e até mesmo as ligações afetivas e de identidade entre o
grupo social e seu espaço.
Souza (2001) enfatiza a busca por quem domina ou influencia o território,
colocando-o, essencialmente, como um instrumento de poder e ainda que territórios
existem e são construídos, e desconstruídos, nas mais diversas escalas, sejam elas
espaciais ou temporais. A refundação de lugares, como no caso Vila Nova de
Cuitezeiras, faz parte desse processo.
Na perspectiva de Claval (2002), o território, o lugar territorializado,
oferece aos grupos uma base e uma estabilidade que eles não teriam sem esse. Tal
sentimento de territorialidade, de pertencimento ao território, faz nascer nos grupos
que carregam a memória do lugar uma sensação de segurança para construir a sua
história.
101
Provavelmente, a impressão anterior que trata da refundação e do novo
espaço construído, a Vila Nova de Cuitezeiras, leva-nos a crer no espírito de
renovação. Contar os acontecimentos, eventos, os fatos que os cercam e que
compõem a memória do seu lugar, trazendo-os para o momento atual, é uma
renovação. Pode não ocorrer a interpretação e até mesmo o entendimento, quase
sempre fruto de uma aversão ao novo, que parece não ser o ideal, mas, mesmo
assim, há renovação com o “contar de novo”.
Enfim, a nova Vila construída não se apresenta apenas por uma
mudança necessária ao território, e sim uma renovação de vida cotidiana a partir de
um espaço socialmente reconstruído. O novo lugar não é o mesmo, mas as pessoas
buscaram recuperar o passado adaptando as relações sociais com a nova vivência.
Construir um espaço não significa somente existir, mas estruturar instituições sociais
que possibilitem o funcionamento dessas relações no espaço habitado.
3.2 A história e o lugar na memória da cidade
Sobre a temática histórica, Halbwachs (1990, p. 71) enfatiza que a
memória histórica acrescenta à formação memorial do indivíduo “os quadros
coletivos da memória e que estes não se resumem a datas, nomes e fórmulas [...].
Que eles representam correntes de pensamento e de experiências onde
encontramos nosso passado, porque este foi atravessado por isto”. Vê-se com base
nesse autor que a memória de um indivíduo ou de um país está na base da
formulação de uma identidade onde a continuidade é vista como uma característica
marcante.
Ainda para Halbwachs (1990, p. 89-90) ao destacar os detalhes,
acrescenta:
O que justifica ao historiador estas pesquisas de detalhe, é que odetalhe somado ao detalhe resultará num conjunto, esse conjunto sesomará a outros conjuntos, e que no quadro total que resultará detodas essas sucessivas somas, nada está subordinado a nada,qualquer fato é tão interessante quanto o outro, e merece serenfatizado e transcrito na mesma medida. Ora, um tal gênero de
102
apreciação resulta de que não se considera o ponto de vista denenhum dos grupos reais e vivos que existem, ou mesmo queexistiram, para que, ao contrário, todos os acontecimentos, todos oslugares e todos os períodos estão longe de apresentar a mesmaimportância, uma vez que não foram por eles afetadas da mesmamaneira.
Nessa perspectiva, Nora (apud LE GOFF, 1994) complementa essa
discussão entre memória e História enfatizando que a primeira tornou-se objeto da
segunda, sendo por ela filtrada, o que impede o estabelecimento de diferenças entre
a memória coletiva e a memória histórica. Para esse autor tudo que se considera
memória é, em realidade, história, restando apenas “lugares de memória”.
Para Pollak (1989, p. 2), a função da História não é historicizar memórias
que já deixaram de existir, e sim, trazer à superfície memórias “que prosseguem seu
trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível” e que “afloram
em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados”. Nesse aspecto, “a
história da memória tem sido quase sempre uma história das feridas abertas pela
memória”.
Concluindo a discussão acerca das relações entre Memória e História,
Halbwachs (1990, p. 85) nos alerta que: “A história começa somente do ponto onde
acaba a tradição, momento em que se apaga ou se decompõe a memória social.
Enquanto uma lembrança subsiste, é inútil fixá-la por escrito”.
A partir da discussão teórica anteriormente tratada, chega-se ao
entendimento de que a reprodução da memória do lugar, a Vila de Cuitezeiras,
faz-se desde a reprodução da memória na gênese do lugar em estudo: o Engenho
Cunhaú no século XVII. Foi nessa localidade que teve início a vida social dos que,
após o Massacre do Cunhaú, se deslocaram até o lugar da Vila e ali desenvolveram
o povoado até a enchente do rio Curimataú, em 1901.
Nessa visão, há a necessidade de relatar brevemente a história do
Engenho Cunhaú no contexto histórico do Rio Grande do Norte e como uma forma
de entendermos a história da antiga Vila.
Com suas terras extremamente propícias ao cultivo da cana-de-açúcar, o
Engenho Cunhaú trazia sobre si, à época, o interesse de portugueses e holandeses
pela sua posse.
103
Do tempo do antigo engenho, a história é resgatada através dos escritos
de Medeiros Filho (1993, p. 8):
Durante quase três séculos a área do Cunhaú, localizada asmargens do Curimataú, pertenceu aos Albuquerque Maranhão. Ariqueza dos relatos referentes à memória do lugar dá conta que aregião era citada como propícia à instalação de engenhos já no anode 1607. Cronistas como o padre Serafim Leite, em sua obra Históriada Companhia de Jesus no Brasil, descreviam a várzea doCurimataú como local ideal para a instalação de engenhos devido àexistência de terras, águas, lenhas e tudo necessário para [uns] oitoingénios.
Ainda no século de sua fundação, o Engenho Cunhaú já se destacava
como o principal núcleo econômico da Capitania, principalmente por sua ligação
com a produção açucareira, como descreve o historiador Medeiros Filho (1993, p.
11):
CUNHAÚ – três milhas acima de Camaratuba existe ainda umengenho, no lugar chamado Cunhaú, o qual faz anualmente de6.000 a 7.000 arrobas de açúcar; este lugar está sob a jurisdição doRio Grande e ali moram bem 60 ou 70 homens com suas famílias;meia milha distante deste engenho corre um rio, de três milhas delongo e meia de largo, onde as barcas iam carregar açúcar, de 100 a110 caixas cada barca, e traziam dali também comestíveis; há alitambém muito gado, farinha e milho que ordinariamente é trazidopara Pernambuco com o açúcar.
Estes escritos de Medeiros Filho (1993) nos levam a pensar sobre a
memória como vida e a História como fim. Sobre essa característica da história,
Borges (apud ARÉVALO, 2004, p. 2), nos lembra que “o presente não passa de
uma partícula fugaz do passado e que estamos feitos de esquecimentos, sabedoria
tão inútil como os corolários de Spinoza ou as magias do medo”.
Ao abordar esse tema, Nora (apud LE GOFF, 1994), no seu clássico texto
Entre memória e história - a problemática dos lugares, alerta-nos que não existe
mais memória, que esta só é revivida e ritualizada numa tentativa de identificação
por parte dos indivíduos e que a sociedade utiliza-se hoje da história para lhe
conferir lugares onde pode pensar que não somos feitos de esquecimentos, mas de
lembranças: “os lugares de memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema
onde subsiste uma consciência comemorativa numa história que a chama, porque
104
ela a ignora”. Nesse contexto, Arévalo (2004, p. 2) ressalta que a memória é
histórica.
Tudo o que é chamado de clarão de memória é a finalização de seudesaparecimento no foco da história. A necessidade de memória éuma necessidade da história. O apelo que nossa sociedade faz depreservação de sua memória é, em última instância, a necessidadede reconstituição de si mesma, encarada como algo formado dopassado para o presente, por isso, preservar vestígios, trilhas,fósseis, [um lugar], etc. (Grifo nosso).
Vale enfatizar que as sociedades locais, a exemplo das pequenas vilas,
precisam da história como um instrumento para encontrar um significado que, por
vezes, não lhe é mais inteligível. Nesse sentido, Foucault (apud ARÉVOLO, 2004, p.
4) nos alerta que:
A história contínua é o correlato indispensável à função fundadora dosujeito: a garantia de que tudo que lhe escapou poderá serdevolvido, a certeza de que o tempo nada dispensará semreconstituí-lo em uma unidade recomposta, a promessa de que osujeito poderá, um dia – sob a forma da consciência histórica –, seapropriar, novamente, de todas essas coisas mantidas a distânciapela diferença, restaurar o seu domínio sobre elas e encontrar o quese pode chamar sua morada.
Nesse contexto, torna-se relevante o registro do Massacre do Cunhaú, a
partir de Medeiros Filho (apud Mariz & Suassuna, 1997, p. 95-96), como parte do
resgate da história da fundação da Vila de Cuitezeiras.
O temor se concretizou e algumas famílias que haviam se refugiadona casa-forte existente no sítio de João Navarro, sogro do holandêsJoris Garstman, no desaguadouro da Lagoa do Papari, foram emseguida massacrados pelo grupo de Jacob Rabbi, receoso de umareação dos luso -brasileiros.
Esse episódio abriu caminho para a possibilidade de uma formação
territorial de passagem na área de Cuitezeiras, devido à migração de grupos de
agricultores temerosos, formação esta que geraria a posterior estruturação da Vila
de Cuitezeiras anteriormente revelada nos primeiros capítulos deste trabalho.
Portanto, verifica-se que a história da cidade da Vila de Cuitezeiras teve
105
início a partir do que foi produzido e realizado no Engenho Cunhaú, o qual se
constituía como foco central do poder na região e tinha o comando de uma família
oligárquica tradicional, os Albuquerque Maranhão.
Com os episódios nessa localidade, destacadamente com o Massacre do
Cunhaú e a queda da produção, os habitantes se deslocaram para a Vila de
Cuitezeiras, lugar de refúgio e de comércio, por ser caminho obrigatório das
pessoas ligadas ao transporte de produtos para os grandes centros como Recife e
Natal. Com o desenvolvimento comercial da Vila, veio o progresso que, como já
observamos, não durou muito, pois essa foi arrasada pela enchente, o que levou a
população a reconstruí-la, num chapadão próximo ao local, com a denominação de
Vila Nova de Cuitezeiras.
A conclusão a que se chega após essa discussão de viés teórico e de
cunho etnográfico, é que a história do lugar se constitui de histórias de lutas,
progressos e tragédias, que podem ser contadas e escritas mediante a
recomposição da memória histórica, a partir de literaturas desenvolvidas nos
estudos de alguns historiadores e, especialmente, recorrendo-se às ferramentas da
memória. O que nos leva a inferir que o resgate da memória da Vila de Cuitezeiras,
não teria sido possível sem o acesso à memória do lugar e sua matéria-prima: as
lembranças dos velhos e dos jovens aqui registrados.
3.3 As lembranças do lugar: a formação da cidade
Nesta parte do trabalho, realizo uma construção etnográfica de caráter
teórico-empírico sobre como os narradores portadores da memória do lugar
lembram do espaço socializado da formação da nova Vila e sua transformação em
cidade. Neste exercício enfatizo também as lembranças como um artifício para
entender o processo de formação do núcleo urbano a partir de uma discussão sobre
lugares da memória.
106
Nesse sentido, Le Goff (1994, p. 473) comenta sobre a história que se
desenvolve a partir do estudo dos “lugares da memória”, ressaltando a sua
multiplicidade e os sentidos dos lugares de memória:
Os lugares topográficos como os arquivos, as bibliotecas, osmuseus, lugares monumentais como os cemitérios ou asarquiteturas; lugares simbólicos como as comemorações, asperegrinações, os aniversários ou os emblemas; lugares funcionaiscomo os manuais, as autobiografias ou as associações: estesmemoriais têm sua história. (...) Lugares de externalização damemória, a memória das coisas, nas ações coletivas.
A essência da “A externalização da memória, a memória das coisas” são
as lembranças. Sobre esse aspecto da memória Halbwachs (1990) destaca que é a
partir delas que se dão os registros de nossas vivências, tanto as pessoais, quanto
as coletivas.
Nesse sentido, lembramos aquilo que é importante para nós e, em grande
parte das vezes, para o grupo.
Halbwachs (1990) aponta ainda que as lembranças podem, a partir da
vivência em grupo, ser reconstruídas ou simuladas. Que podemos criar
representações do passado assentadas na percepção de outras pessoas, no que
imaginamos ter acontecido ou pela internalização de representações de uma
memória histórica. Nesse sentido, o autor define lembranças como:
Uma viagem engajada em outras imagens [...] que é em largamedida uma reconstrução do passado com a ajuda de dadosemprestados do presente, e, além disso, preparada para outrasreconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem deoutrora manifestou-se já bem alterada (HALBWACHS, 1990, p.75-78).
Assim, com referência às lembranças em Halbwachs (1990), considero
que vivemos entre a memória e o esquecimento, talvez porque vivemos entre o ser
e o não ser mais. Certamente precisamos de ambos para viver. A memória, a partir
das lembranças, faz-nos lembrar de quem somos e nos faz também querer ir a
algum lugar.
Entendidas as funções das lembranças, torna-se necessário, a partir
107
daqui, voltarmos ao conceito de “lugares da memória”.
Quando Le Goff (1994) menciona os “lugares de memória” refere-se à
“externalização” da memória, memória coletiva por excelência. Os autores com os
quais Le Goff dialoga, a exemplo de Simônides, Agostinho e Ricci, mantêm
afinidades entre si e corroboram para a fundamentação deste trabalho visto que, ao
falarem de locais e imagens, de “lugares da memória”, estão se referindo a locais
guardados na memória, a possibilidades de organização e funcionamento mental,
interno, memória individual assim como ocorre com o lugar e os grupos sociais que
se fazem presentes neste trabalho.
Para compreender o conceito de “lugares da memória” e entender a
transformação do lugar da Vila de Cuitezeiras, depois Vila Nova de Cuitezeiras,
cabe aqui analisar o foco desse processo de construção, o que costumamos chamar
de “lugar”.
Spink (2001, p. 1), mediante esse argumento, assegura que a construção
do lugar se dá com a formação do poder local, “a disputa pelos arranjos de
governança dos espaços dentro dos quais se organiza a vida de muitas pessoas, é
um longo processo sócio-histórico”.
Nessa acepção, sustentado no pensamento de Spink (2001, p. 1),
ressalto a seguinte indagação: será que o conceito de lugar, mesmo no sentido
amplo, como espaço de convivência, nem sempre pacífica, de lógicas diferenciadas,
culturas organizacionais polimorfas, solidariedade, disputas, conflitos, é suficiente
para uma reflexão mais teórica?
No entendimento de Spink, Clemente e Keppke (1999, p. 15), a resposta
para essa indagação pode estar no fato de que:
A preocupação inicial desde o uso do local [lugar] como elementoconstitutivo de uma hierarquização de espaços (local, regional,nacional, global) e o perigo de reificação que isso poderia acarretar.Assim, o local é visto como parte intrínseca de uma lógica deordenação do espaço – construído e produzido num dado processosocioeconômico – que automaticamente o subordina a algo maior.[O que o torna reflexivo, teórico].
No âmbito dessa discussão acerca de lugares da memória e lugar, a
cidade de Pedro Velho oferece, nas lembranças dos narradores o lugar
transformado em cidade. O relato de Carlos Alberto Soares de Carvalho é ilustrativo
108
desse processo. O referido senhor afirma ter sido lento o processo de mudança da
população para a nova área do chapadão de terras altas, onde passaram a construir
novas residências e fizeram a marcação das futuras ruas.
Seguindo o viés econômico, o senhor Daniel Galvão nos relata que foi
incansável a luta do povo para perpetuar a Vila, demonstração clara, segundo ele,
“do amor por esta”. Ele nos lembra ainda que:
O comércio foi novamente reativado, continuava como grandecomerciante o senhor Joaquim da Luz, com seu armazém bastanteabastecido, e isto só foi possível com o movimento do vai e vem dostrens, que transportavam passageiros e comerciantes de outrasregiões e de outros estados, mantendo assim um considerávelintercâmbio comercial consolidado com a construção da estaçãoferroviária.
Ainda no viés econômico, Carlos Alberto Soares de Carvalho afirma que
nas primeiras décadas do século XX, com a produção da lavoura algodoeira a
cidade já contava com dois descaroçadores de algodão o que facilitava o transporte
do mesmo para a sua comercialização. E acrescenta:
Um homem de grande destaque no comercio do algodão era osenhor Manoel Gadelha de Freitas que comprava toda a produçãodos pequenos, médios e grandes agricultores. Da nossa cidadesaiam várias toneladas desse produto para o município de NovaCruz. As atividades agrícolas tradicionais permaneciam fazendocom que uma boa parte da população produzisse para o seu próprioconsumo, no que os economistas chamam de economia desubsistência.
Nos relatos paralelos à discussão econômica, constatei que, em 1908, o
nome do município foi mudado de Vila Nova de Cuitezeiras para Pedro Velho, sob a
influência emocional da morte de Pedro Velho de Albuquerque Maranhão
(1856-1907), oligarca-chefe e líder da família de mesmo sobrenome, família que
dominava o poder político do Estado a partir do Engenho Cunhaú. Tal denominação
permanece até os dias atuais (CASCUDO, 1968).
A oligarquia Albuquerque Maranhão no Rio Grande do Norte, como em
todo o Brasil da República Velha, possuía suas bases mantenedoras do poder
econômico e conseqüentemente político, fincadas na atividade agro-exportadora.
109
Há uma ligação do republicanismo oligárquico com a estrutura
coronelística, especificamente, a dos Albuquerque Maranhão, no Rio Grande do
Norte.
O movimento republicano no Rio Grande do Norte teve comoprincipal liderança Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, membrode uma das mais importantes famílias da província. Antes mesmo dafundação do Partido Republicano norteriograndense (27 de janeirode 1889), Pedro Velho já assumira a liderança do movimentorepublicano, constituindo-se numa das principais liderançasoposicionistas da província (TRINDADE E ALBUQUERQUE, 2001, p.78).
A fase republicana de influência da oligarquia foi iniciada e liderada por
Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, que já “no dia 17 de novembro de 1889,
(...) assumiu o posto de presidente do Rio Grande do Norte, tendo sido logo
substituído por Adolfo Gordo” (TRINDADE E ALBUQUERQUE, 2001, p. 79). Essa
oligarquia teve grande participação política, econômica e social no Estado.
Posteriormente, em 1892, eleito presidente, Pedro Velho de Albuquerque
Maranhão deu início à consolidação oligárquica, num processo de acesso e
manutenção do poder, em que o nepotismo político predominou tanto na dominação
do poder executivo, como no legislativo.
O grupo Albuquerque Maranhão possuía, como centro de sua atividade
mantenedora, o açúcar, obtido, na sua maior parcela, a partir da cultura processada
no Engenho Cunhaú, localizado no litoral oriental do Estado. Nesse aspecto, essa
oligarquia, que esteve à frente do Estado no período republicano durante 28 anos
(de 1890 a 1918), procurou, em todo esse tempo, implantar um sistema de
beneficiamento de açúcar, como parte do projeto de sua manutenção econômica e
de reestruturação da produção desse gênero agrícola que se deparava com uma
crise desde o século XIX.
A base oligárquica dos Albuquerque Maranhão estava fincada no aspecto
econômico citado e em acordos políticos no âmbito federal e estadual, o que
consistia na política dos governadores, nos estados dependentes do Governo
Federal política e economicamente (MARIZ, 1984, p. 46).
Esse aparato de controle oligárquico dos Albuquerque Maranhão
começou a decair a partir da segunda década do século XX. Talvez a insistência em
110
beneficiar a cultura açucareira com instituições de crédito estatal e a própria criação
do Banco de Natal que, segundo “Tavares de Lyra, ‘dois anos depois de sua
fundação’” (TAKEYA E LIMA, 1987, p. 19) tinha na prosperidade um fato
incontestável. Havia contribuído para tal decadência a idéia geral dessa oligarquia
que insistia em resistir aos novos rumos da economia mundial, pautada no viés do
capitalismo liberal. Da mesma forma, ainda no viés do capitalismo liberal, tenha sido
fruto da mentalidade do oligarca ligado à produção açucareira, mentalidade mais de
proprietário de terras que de industrial, que considera sempre como símbolo de
progresso, e prosperidade em seus negócios, aglutinar mais terras em torno de si
(ANDRADE, 1986, p. 53).
No contexto histórico de influência oligárquica, o Historiador Carlos
Alberto Soares de Carvalho relata o evento da mudança de nome da cidade
enfatizando que:
Com o falecimento do grande líder republicano o Dr. Pedro Velho deAlbuquerque Maranhão em dezembro de 1907, os seuscorreligionários políticos e o Congresso do Estado (hoje AssembléiaLegislativa), em sua homenagem, mudaram o nome de Vila Nova deCuitezeiras para Pedro Velho. Hoje os mais idosos continuamchamando a cidade de Vila Nova.
Nos relatos do senhor Jaldemar Nunes também aparece o evento da
mudança de nome do município:
Naquela época, não tinha prefeito, tinha intendente e então opessoal buscaram construir suas casas num lugar seguro aqui emPedro Velho e botaram o nome de Vila Nova de Cuitezeiras, que em1908 passou a ser Pedro Velho em homenagem ao granderepublicano Pedro Velho de Albuquerque Maranhão que teriafalecido no ano anterior, como seja em 1907 e naquela época veiode trem e ao passar por Pedro Velho o trem descarrilou na Lagoa doCunhaú, mas foi coisa rápida, não houve problema não. Essahomenagem era porque ele era membro de uma família ilustre quedominava a política aqui na região e no Estado; foi médico,governador do Estado duas vezes, Senador da República, então erairmão de Augusto Severo aquele que inventou o Pax, aquele aviãoque caiu na França, era irmão de Fabrício Maranhão, cuja esposa foienterrada naquele túmulo alto do cemitério da Cuitezeiras, onde seencontra o meu do lado, que fiz para ser sepultado lá. SobreCuitezeiras a origem dela é esta.
111
O senhor Daniel Galvão demonstra insatisfação com relação à mudança
de nome, mas, ao mesmo tempo, admite que, a partir de tal evento, o município
passou a ter maior desenvolvimento, enfatizando a participação de Fabrício
Maranhão, irmão do governador morto, como grande incentivador desse processo.
Assim o senhor Daniel Galvão descreve, a partir da memória, a mudança de nome
do lugar:
O nome Pedro Velho porque o Sr. Pedro Velho foi o primeirogovernador da República no Rio Grande do Norte depois defuncionada a República. Ele era médico, era escritor, jornalista epolítico, um dos maiores do Rio Grande do Norte e do Brasil aliadode Deodoro na Proclamação da República e aí, em homenagem aele foi mudado o nome para Pedro Velho, eu não sei para quemudar.Com esse nome, Pedro Velho ficou mais evoluída, apareceu maisesforço. O primeiro a incentivar isso em Pedro Velho foi FabrícioMaranhão. Com esse esforço surgiu o mercado, escolas como aprimeira, o Fabrício Maranhão (antes se chamava Pedro Velho), tudoisso depois do nome Pedro Velho.
Nesse sentido, o que se percebe, a partir das narrações dos portadores
da memória do lugar, é que o “lugar da memória”, é, pois, o lugar da imortalidade e
que a memória não está apenas no passado trazido à tona pela recordação, mas
está presente em nossos corpos, em nosso idioma, no que valorizamos e
entendemos como sendo o correto, no que tememos e no que esperamos. A
memória nos identifica como indivíduos e como coletividade, permitindo que estas
linhas sejam escritas em seqüência.
Nesse contexto, Frochtengarten (2005) enfatiza a importância da
narração afirmando que essa doa um tempo e um lugar, uma seqüência e uma
causalidade às reminiscências. Doa mesmo um início e um final; um antes, um
durante e um depois; permite mesmo contar um passado e um presente.
O autor nos alerta ainda para o fato de que contar o passado envolve
alguma organização das idéias, a nomeação das vivências e sua integração a
outras representações, bem como lembra-nos também de que a memória integra
esse trabalho de elaboração psíquica. E que é pela reconstrução do ponto de fricção
de sua experiência no mundo, por sua recorrente inscrição na subjetividade, que o
sujeito poderá caminhar, mais ou menos bem sucedido, para a liberação de novas
significações ao vivido.
112
Conclusivamente, o que se percebe ao contar o passado da cidade de
Pedro Velho, a partir da Vila de Cuitezeiras e Vila Nova de Cuitezeiras é que a
origem histórica da cidade de Pedro Velho, obtida a partir da memória dos relatos
dos narradores do lugar, apresenta-se estruturada com forte influência política,
marcadamente pela presença da oligárquica família Albuquerque Maranhão, que
participou ativamente da construção da história do município marcando o lugar e
permanecendo na memória.
3.4 A memória e o novo lugar: a cidade de Pedro Velho
O contexto da formação da cidade de Pedro Velho remonta ao novo lugar
construído socialmente após a enchente do rio Curimataú e à procura por um
chapadão elevado, evento discutido nos itens anteriores, tendo em vista construir
uma nova sociedade.
Nessa discussão sobre o lugar, a memória revela a história da cidade de
Pedro Velho, iniciada no Engenho Cunhaú, em seguida transformada em Vila de
Cuitezeiras, e, depois da enchente do Curimataú, na Vila Nova de Cuitezeiras.
Agora, havemos de resgatar a formação da cidade de Pedro Velho, com enfoque
para o espaço urbano que se constituiu. Esse resgate se dará através dos
narradores do lugar, fazendo relações teóricas com algumas categorias como:
espaço social, cidade e urbanização.
A Vila Nova de Cuitezeiras crescia a partir do novo Cruzeiro – o Cruzeiro
da Rua da Linha – ao longo da linha ferroviária que liga Natal/RN a Recife/PE,
atualmente desativada. Nesse percurso direcionado pela linha férrea encontrava-se
a estação ferroviária.
Figura 14: Estação ferroviária de Pedro Velho, Antiga Vila de Cuitezeiras.Fonte: acervo do Professor Genar Bezerril.
113
A primeira casa a ser construída por Claudino Martins Delgado, em 1901,
distante 2 km (dois quilômetros) de Cuitezeiras, lançou os alicerces da cidade – área
urbana – que se denominou Vila Nova de Cuitezeiras. A partir daí, sucederam-se as
construções e desenvolveu-se o comércio, segundo relatos de Cledenilson V.
Moreira.
Segundo o mesmo narrador:
Em 17 de dezembro de 1901, benzeu-se o cruzeiro e a feira foiinaugurada. Em 04 de setembro de 1902, foi oficializada atransferência do nome Cuitezeiras para Vila Nova de Cuitezeiras. Asede municipal foi transferida para Vila Nova, que estendeu seunome ao município. A paróquia de São Francisco só seria criada em11 de fevereiro de 1922 (Decreto de Criação – ANEXO B).
114
Nesse sentido, a sagração a São Francisco como padroeiro da cidade de
Pedro Velho, parece representar uma relação de cidadania e de crença que dá
forma às ações das pessoas. A ação conjunta dos cidadãos ao reconstruir a cidade
tem um significado social e religioso, mas indica também uma faceta cultural, a
superstição.
Nos dias atuais, tradicionalmente celebra-se a festa religiosa do
Padroeiro, São Francisco de Assis, a 4 de outubro. Antes desse santo se fixar nas
representações coletivas dos habitantes de Vila Nova, os devotos ainda admiravam
e veneravam Santa Rita, padroeira da antiga Vila.
Nessa acepção, que envolve os aspectos religiosos, sociais, históricos e
geográficos, o professor Anelino Silva afirma:
A identidade religiosa dos moradores de Pedro Velho vai estabeleceruma parceria entre a geografia, o social e o religioso, que têm emSanta Rita de Cássia, o elo capaz de proporcionar as ações deproduzir no cotidiano a sobrevivência formal dos habitantes, quenuma dinâmica (de ação e religiosidade), passa a ter em SãoFrancisco, o novo padroeiro da Cidade.
Dessa forma, o conjunto dessas ações e construções vai formando a
cidade. Para Brissac (2005), em sua obra “Cidade sem janelas”, a cidade é o
espaço compacto entre as coisas, como uma vegetação espessa, funciona como
cimento, ligando objetos e planos de diferentes dimensões. A cidade é um muro
impenetrável e opaco.
A Vila Nova de Cuitezeiras só seria elevada à cidade através do Projeto
do Deputado Sandoval Wanderley em 1936; formação que se dá a partir de um
incipiente núcleo urbano.
O IBGE (1996) distingue as situações urbano e rural a partir de alguns
indicadores como população, cidade e urbano. Na situação urbana, consideram-se
as pessoas e os domicílios recenseados nas áreas urbanizadas ou não,
correspondentes às cidades (sedes municipais), às vilas (redes distritais) ou às
áreas urbanas isoladas. A situação rural abrange a população e os domicílios
recenseados em toda a área situada fora dos limites urbanos, inclusive os
aglomerados rurais de extensão urbana, os povoados e os núcleos.
115
Considerando as características que marcam grande parte das cidades
brasileiras, Mueller (1996, p. 75) faz referência às pequenas cidades do Nordeste
como “centros locais”, que estão em última posição na escala hierárquica das
cidades e que fornecem apenas bens e serviços simples para as cidades sem
centralidade e zonas rurais tributárias.
Nessa discussão envolvendo concepções de espaço e cidade, Sposito
(1989, p. 64) afirma:
Os espaços não são apenas urbanos; existe a cidade e o campo. Omodo de produção não conduz cidades de um lado e campo dooutro, mas ao contrário, esta produção compreende uma totalidade,com uma articulação intensa entre dois espaços.
Dessa forma, a busca por um entendimento relacionado à formação das
cidades remete a buscar uma melhor compreensão sobre elas. Lefebvre (1991, p. 4)
diz: “A própria cidade é uma obra, e esta característica contrasta com a orientação
irreversível na direção do dinheiro, na direção do comércio, na direção das trocas,
na direção dos produtos”.
Acrescenta, ainda, que a cidade oriental e arcaica foi essencialmente
política; a cidade medieval, sem perder o caráter político, foi principalmente
comercial, artesanal e bancária. Ela integrou os mercadores outrora quase
nômades, relegados para fora da cidade. A partir do sobreproduto crescente da
agricultura, em detrimento dos feudos, as cidades começam a acumular riquezas:
objetos, tesouros, capitais virtuais. Nas cidades medievais, o capitalismo comercial e
bancário já tornou móvel a riqueza e constituiu circuitos de trocas e redes, que
permitem as transferências de dinheiro. Já existia nesses centros urbanos uma
grande riqueza monetária, obtida pela usura e pelo comércio. Nesses centros,
prosperava o artesanato, produção bem distinta da agricultura.
Ainda na concepção de Lefebvre (1991), declarar que a cidade se define
como rede de circulação e de consumo, como centro de informações e de decisões,
é uma ideologia quase absoluta. A cidade sempre teve relações com a sociedade no
seu conjunto, com sua composição e seu funcionamento, com seus elementos
constituintes (campo e agricultura, poder ofensivo e defensivo, poderes políticos,
Estado), com sua história. Portanto, ela muda quando muda a sociedade no seu
conjunto. A cidade depende também, não menos essencialmente, das relações do
116
imediato, das relações diretas entre as pessoas e grupos que compõem a
sociedade (famílias, corpos organizados, profissões e corporações); Ela não se
reduz mais à organização dessas relações imediatas e diretas, nem suas
metamorfoses se reduzem às mudanças nessas relações.
Analisando a formação das cidades, Santos (1926, p. 95) afirma que a
organização interna das cidades é caótica.
As cidades, e, sobretudo, as grandes, ocupam, de modo geral,vastas superfícies, entremeadas de vazios. Nessas cidadesespraiadas, características de uma urbanização corporativa, háinterdependência do que podemos chamar de categorias espaciaisrelevantes desta época: tamanho urbano, modelo rodoviário,carência de infra-estruturas, especulação fundiária e imobiliária,problemas de transporte, extroversão e periferização da população,gerando, graças às dimensões da pobreza e seu componentegeográfico, um modelo específico de centro-periferia.
Nessa acepção, percebe-se que a cidade se transforma não apenas em
razão de “processos globais” relativamente contínuos, tais como: o aumento da
produção material no decorrer das épocas, com suas conseqüências nas trocas, ou
no desenvolvimento da racionalidade, como também em função de modificações
profundas no modo de produção, nas relações “cidade-campo”, nas relações de
classe e de propriedade.
Dessa forma, Marx & Engels (apud Maia, 1994, p. 64) afirmam:
[...] A cidade é já a realidade da concentração da população, dosinstrumentos de produção, do capital, dos prazeres, dasnecessidades, ao passo que o campo torna patente precisamente arealidade oposta, o isolamento e a solidão. O antagonismo entrecidade e campo só pode existir no quadro da propriedade privada.
Sposito (1989, p. 64) explica que a cidade é, “particularmente, o lugar
onde se reúnem as melhores condições para o desenvolvimento do capitalismo. O
seu caráter de concentração, de densidade, viabiliza a realização com maior rapidez
do ciclo do capital, ou seja, diminui o tempo entre o primeiro investimento necessário
à realização de uma determinada produção e o consumo do produto”.
Como a cidade de Pedro Velho tem, em suas raízes, uma conotação
religiosa, cabe aqui entender o que afirma Rosendahl (1996, p. 39):
117
É importante assinalar que a gênese das primeiras cidades estávinculada à apropriação de um excedente, por uma classe social queemerge, e que tem no aparecimento do Estado e na força da religiãodos elementos de controle efetivo político, militar, institucional eideológico, assegurando e justificando a dominação.
E acrescenta que “as cidades possuem uma ordem espiritual
predominante e marcadas pela prática religiosa da peregrinação ou romaria ao lugar
sagrado”.
Em outro aspecto, Sposito (2001, p. 95-96) ressalta que:(...) [Há] cidade polinucleada que inviabiliza a própria constituição deuma identidade urbana para seus habitantes e permite a construçãode diferentes representações de cidade, definidas não apenas pelopadrão socioeconômico de seus moradores, mas pela localizaçãoque ocupam e pelos lugares que vivenciam na trama de fluxos quese estabelecem no interior dessas grandes áreas urbanas.
Assim, voltando à história do município, Cledenilson V. Moreira explica
que, no contexto das relações sociais que se estabelecem a partir da formação das
cidades, tendo em vista as concepções de Lefebvre (1991), a cidade de Pedro
Velho foi se constituindo e, no dia 26 de novembro de 1908, a Vila Nova de
Cuitezeiras, que ainda não possuía uma tradição toponímica, foi transformada em
município com a denominação de Pedro Velho.
Nesse sentido, de acordo com Nesi (1992), não existia qualquer ligação
material ou moral entre o Primeiro Governador do Rio Grande do Norte e a Vila
Nova de Cuitezeiras, porém Pedro Velho havia falecido no ano anterior e seus
correligionários, saudosos e gratos, adotaram o seu nome na Vila.
O senhor Daniel Galvão afirmara anteriormente que o nome “Pedro
Velho” havia sido dado ao município em homenagem à família Albuquerque
Maranhão e ao personagem Pedro Velho como republicano maior do Estado.
Segundo seus relatos, tratava-se “de um homem de grande influência como o
Marechal Deodoro da Fonseca, Quintino Bocaiúva, Benjamim Constant, Prudente
de Morais, Campos Sales, Rodrigues Alves que foram grandes personagens da
Primeira República”.
118
Dessa forma, os familiares e correligionários de Pedro Velho, embora
dessem uma denominação em homenagem a uma figura que pouco tinha ligação
com a cidade, contribuíram para a construção de uma tradição toponímica, que
ajudou, dessa forma, a formatar o espaço social da nova cidade.
Castells (2000, p. 181-182) entende a formatação do espaço social como
sendo:
Um produto material em relação com outros elementos materiais –entre outros, os homens, que entram também em relações sociaisdeterminadas, que dão ao espaço (bem como aos outros elementosda combinação) uma forma, uma função, uma significação social.Portanto, ele não é uma pura ocasião de desenvolvimento daestrutura social, mas a expressão concreta de cada conjuntohistórico, no qual uma sociedade se especifica.
Nesse sentido, compreendo que é legítima a confiabilidade dos fatos a
partir dos relatos dos membros da própria sociedade, pois a vivência se
consubstancia num aspecto forte que remonta à história de um povo, suas
experiências, aptidões, desejos e costumes. Toda essa legitimidade é completada
com os referenciais teóricos analisados para a compreensão das fontes empíricas
(etnográficas).
Assim, são importantes os relatos de João Hortêncio Sobrinho a respeito
da formatação da nova cidade, sob o aspecto econômico, e ainda Vila Nova de
Cuitezeiras:
A nova Vila dos moradores de Pedro Velho era agora reconstruir eproduzir. A terra era boa e plantar para desenvolver a economia erapreciso. [...] Mais recentemente observamos mudanças no contextopolítico-econômico nacional que ainda refletem em Pedro Velho e,levou o município a situação de “decadência” em relação ao seupassado próspero.
Toda essa organização social e econômica, bem como a formatação da
nova cidade, pressupõe o que Camarotti & Spink (1999) chama de organizações
formais a partir do lugar, lançando, portanto, um olhar, metaforicamente, de fora
para dentro, e tendo de descrevê-las para iniciar seu estudo, talvez nosso ponto de
partida não seja nem o tipo, nem a estrutura, nem o tamanho, nem a tecnologia,
nem a estratégia, nem a meta, mas o simples fato social de sua existência ou
119
presença como espaço social delineado, com acesso restrito e parcialmente
privatizado. E acrescenta:
Se continuarmos a olhar, encontraremos outros elementosorganizativos normalmente considerados informais; mas, mesmoassim, dotados de tanta forma quanto os primeiros. Também terãosuas bases de legitimidade: de parentesco, de vizinhança, deconfiança e de solidariedade na luta pela sobrevivência(CAMAROTTI & SPINK, 1999, p. 3).
Por conseguinte, para entendermos a formação da nova cidade, Pedro
Velho, devemos atentar para o destaque da influência permanente da oligarquia
Albuquerque Maranhão, inclusive na apropriação do novo território.
O supracitado território foi doado por Fabrício Gomes de Albuquerque
Maranhão no início da República no Brasil em setembro de 1902, após a destruição
da Vila de Cuitezeiras pelas águas do Curimataú em 1901, povoado que antes
pertencia ao município de Canguaretama.
Conclui-se que, somente a partir do entendimento das imbricações
discutidas aqui, nos relatos orais de memória ou nas análises das bibliografias
pertinentes, imbricações essas de caráter econômico, social, político ou
cultural-religioso, poderemos construir a história dessa Vila Nova de Cuitezeiras,
consolidada posteriormente como cidade de Pedro Velho.
121
Considerações Finais
Com este trabalho objetivo contribuir para a construção de uma história
contada a partir de evidências orais registradas com base em relatos, vivências que
traduzem sentimentos de identidade social e pertencimento ao lugar: a Vila de
Cuitezeiras.
Através das lembranças de alguns narradores do lugar pude recuperar
aspectos da origem da Vila de Cuitezeiras tendo início nas terras do Engenho
Cunhaú e nas marcas das relações sociais desenvolvidas nessa localidade que
possibilitaram a ocupação de um novo espaço social construído: a Vila Nova de
Cuitezeiras que mais tarde se consolidaria como Cidade de Pedro Velho.
Para apreender os processos sócio-históricos do lugar abordei teorias,
conceitos e concepções de estudiosos das ciências históricas, sociológicas,
filosóficas e geográficas ao mesmo tempo em que apliquei, no campo, uma
metodologia de cunho etnográfico.
Em alguns momentos recorri às análises e às interpretações dos relatos
cruzando-os com as teorias necessárias ao desenvolvimento e à compreensão do
objeto de estudo. Foi nessa perspectiva que pude perceber o quanto a identidade
social de um povo é significativa na sua história e como os narradores se identificam
com a sua terra quando estão relatando os acontecimentos vividos ou assimilados
através da memória coletiva.
Ao resgatar a gênese da Vila de Cuitezeiras, a qual remonta aos tempos
do engenho Cunhaú percebi uma articulação político-religiosa entre católicos e
protestantes que tinha como “pano de fundo” o controle e o interesse econômico da
produção dos engenhos e das terras da região. Em conseqüência dessa disputa
ocorreu o Massacre dos devotos católicos na Capela do Engenho Cunhaú. Sem
dúvida, um fato histórico que marcou a vida política e religiosa de todos os
integrantes do engenho. O líder holandês Jacob Rabi influenciando os índios
Janduís fez com que eles invadissem a capelinha de Nossa Senhora das Candeias
e assassinassem 35 pessoas e o padre André Soveral.
Minha preocupação se voltou para a importância de transformar a história
oral em registro histórico para evitar que essa parte da história da Vila de
122
Cuitezeiras se perdesse com a morte dos narradores portadores da memória do
lugar. A esse acervo histórico somaram-se os documentos, principalmente, o
Decreto de Criação do município, informando que em 11 de maio de 1890, o
Governador Dr. Joaquim Xavier da Silveira Júnior separou a Vila de Cuitezeiras do
município de Canguaretama, definindo seus limites e elegendo o senhor João José
da Cruz, o primeiro Presidente republicano da Intendência do município.
Além dos relatos orais, pude resgatar parte dessa história mediante
documentos importantes da história da Vila de Cuitezeiras e do cenário da cidade de
Pedro Velho; embora não tenha havido a pretensão de substituir as evidências orais
tão presentes na memória coletiva de Pedro Velho, essas duas matérias da
memória complementam-se na construção deste trabalho.
As lembranças se consubstanciam como a matéria-prima da memória,
um importante instrumento na construção dos relatos de memória. Foi a partir das
lembranças que escolhi recuperar os detalhes da economia da Vila de Cuitezeiras a
partir dos idos de 1880. A história mostra que a Vila de Cuitezeiras tinha uma vida
econômica em desenvolvimento: possuía três descaroçadores de algodão, quatro
engenhos que produziam além do açúcar, rapadura e aguardente. Havia casas de
farinha, além de um grande número de cabeças de gado. A produção agrícola era
composta por algodão, farinha de mandioca, milho e fumo.
Ao buscar nas lembranças os nexos com a cultura popular, encontramos
na memória dos narradores portadores da memória do lugar as experiências vividas
e as representações simbólicas que permeiam o imaginário coletivo. Nesse
contexto, se fez necessário entender que toda história está envolvida num contexto
cultural e que a cultura popular se faz presente de forma mais concreta na vida
social. Essa leitura da sociedade pedrovelhense permitiu destacar a importância do
lugar e sua relação com a memória. A memória do lugar como espaço socialmente
construído, abrange concepções de territorialidade e o território é um espaço
produzido, definido e delimitado a partir de relações de poder e da propagação de
sua memória. Nessa perspectiva, os fatos marcantes ocorridos na Vila de
Cuitezeiras e na Vila Nova de Cuitezeiras, bem como as atividades econômicas e os
acontecimentos religiosos, políticos, sociais e naturais fizeram parte da construção
dos novos espaços sociais (territórios) dos moradores de Pedro Velho.
123
Finalmente, concluí que a história de constituição desse lugar investigado,
embora envolva diferentes denominações e contextos históricos diversos, é única;
refere-se às terras do engenho Cunhaú e à sociedade que ali habita que somente
devido as transformações sociais, políticas, religiosas e econômicas saíram desse
lugar em busca de outro espaço, de preferência onde a vida ativa – econômica –
pudesse se desenvolver. Foi na Vila de Cuitezeiras que encontraram esse novo
espaço. O que atraiu a sociedade local a esse lugar, foi certamente, a busca por um
lugar seguro num período de massacres e perseguições político-religiosas e a terra
fértil visto que até hoje ali se encontra uma várzea considerada de grande produção
agrícola.
Esses fatos relatados e registrados de forma coerente ou, os fragmentos
da memória em sua vulnerabilidade contribuíram para a construção deste texto cuja
matéria-prima é a memória.
Destaco que essa dissertação se configura como um documento
importante para a sociedade pedrovelhense no sentido de promover um resgate
parcial da história e da identidade social da sociedade local e visa também contribuir
para as academias de ciências humanas e sociais que procuram desenvolver
trabalhos neste campo de pesquisa embora esteja ciente de sua incompletude e,
por conseguinte das perspectivas que abre para outros estudos.
Enfim, sabemos que nos dias atuais, a memória é cada vez mais
fragmentária e que o historiador tem um importante papel no resgate e registro da
mesma, foi com esse espírito que me lancei em busca dessa construção histórica
que também é minha!
124
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135
ANEXO B
Decreto de criação da Paróquia de São Francisco de Assis de Vila Nova
Dom Antônio dos Santos Cabral, por mercê de Deus e da Santa Fé Apostólica,
Bispo de Natal.
Fazemos saber que, de acordo com o prescrito pelo código do direito canônico,
coms. 216,454,1415. § 3.1421 § 5 1º e 20, levando ainda em consideração de
gravíssima responsabilidade de nossa consciência na direção dos direitos e dos
destinos espirituais do quinto rebanho que juramos apresentar e defender em pleno
exercício de nossa jurisdição ordinária; haveremos por bem desmembrar
perpetuamente da Paróquia da Penha desta diocese, e elevar à categoria de
Paróquia... A capela de São Francisco de Assis de Vila Nova, que assim esta
paróquia chamar-se-á a Paróquia de São Francisco de Vila Nova, cujo território terá
os mesmos limites civis que separam e constituem o município de Vila Nova. No
intuito de aprovar a convincente sustentação do povo e para explicitação do culto
divino, os habitantes da referida paróquia contribuam com os mandamentos e
benesses que estão fixados na tabela diocesana.
Justando assim a segura, quam referium, os estimáveis benefícios de permanência
de um paróquio propício para satisfazer as suas necessidades espirituais.
Mandamos, outra assim, a todos os fies compreendido com os limites da nossa
paróquia que agora dirigimos, reconheçam na pessoa do sacerdote por nós
designado para dirigi-la assim como nas dos seus sucessores conheçam o seu
legítimo paróquio.
O presente Decreto ascensão será lido a estação da missa paroquial e registrado no
Livro de Tombo da nossa paróquia, bem assim, nos das paróquias limitrópoles,
Penha e Nova Cruz, dado e passado nesta episcopal cidade de Natal sobre o zelo e
igual de Nossa Senhora Norma, aos 11 de fevereiro de 1922.
M. Antônio Bispo de Natal.
137
APÊNDICE A
CARACTERIZAÇÃO DOS NARRADORES
– O historiador Carlos Alberto Soares de Carvalho nasceu em Natal/RN, tem 50anos de idade, reside em Pedro Velho e é graduado em História pela UniversidadeFederal do Rio Grande do Norte (UFRN). Possui também pós-graduações(Especializações) em História do Brasil e Pré-História.
– O Cientista Social Cledenilson V. Moreira nasceu em Pedro Velho/RN, tem 32anos de idade, reside no município citado e é licenciado em Ciências Sociais ebacharel em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).É solteiro e atualmente faz pós-graduação em Língua Portuguesa pela UFRN eEducação pela FARN.
– O Geógrafo João Hortêncio Sobrinho nasceu no Cuité, distrito de Pedro Velho,tem 42 anos de idade, reside no distrito de Cuité, Pedro Velho/RN e é licenciado emGeografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); é solteiro eatualmente exerce a função de Coordenador de Cultura do município de PedroVelho/RN.
– O Senhor Daniel Galvão de Lima nasceu em Pedro Velho/RN, tem 83 anos, écasado, foi vereador no município e hoje se encontra aposentado.
– O Senhor Jaldemar Nunes nasceu em Florânia/RN, tem 71 anos, é casado,cursou até a 4ª série, é sargento da Polícia Militar e Guarda Patrimonial na área daAntiga Cuitezeiras.
– O Senhor João Alberto da Fonseca nasceu em Pedro Velho/RN, tem 69 anos, écasado e hoje se encontra na condição de comerciante aposentado.