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Memria coletiva e lembranas individuais Fbio Daniel Rios
INTRATEXTOS, Rio de Janeiro, 5(1): 1-22, 2013. ISSN 2176-6789 1
MEMRIA COLETIVA E LEMBRANAS INDIVIDUAIS A PARTIR
DAS PERSPECTIVAS DE MAURICE HALBWACHS, MICHAEL
POLLAK E BEATRIZ SARLO
Fbio Daniel Rios1
RESUMO: Nesse artigo, discuto a relao entre memria coletiva e memria individual
segundo trs perspectivas distintas. Maurice Halbwachs o fundador dos estudos sobre a
memria na rea das cincias sociais, concebendo-a como um fenmeno inteiramente
coletivo. Pollak retoma e problematiza essa perspectiva, apontando o carter negociado da
memria e a importncia da agncia individual para a sua formao. Por fim, Sarlo indica os
limites da subjetividade como fonte de conhecimento e destaca o carter discursivo da
constituio mnemnica. Em suma, a memria no totalmente coletiva, nem inteiramente
individual: estrutura e prtica se entrelaam no processo de construo das recordaes.
PALAVRAS-CHAVE: Memria coletiva; memria individual; poder de agncia.
Recebido em: Agosto, 2013
Aceito em: Novembro, 2013
Para citar este artigo:
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RIOS, FBIO; Memria coletiva e lembranas individuais a partir das perspectivas de Maurice Halbwachs, Michael Pollak e Beatriz Sarlo. In: Revista Intratextos, 2013, vol 5, no1, p. 1-22. DOI: http://dx.doi.org/10.12957/intratextos.2013.7102 ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
1 Doutorando do Programa de Ps Graduao em Cincias Sociais da UERJ, bolsista CAPES. Email:
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Memria coletiva e lembranas individuais Fbio Daniel Rios
INTRATEXTOS, Rio de Janeiro, 5(1): 1-22, 2013. ISSN 2176-6789 2
Introduo
Nesse artigo, discuto a relao entre memria coletiva e memria individual a partir
das obras de trs autores fundamentais para esse campo de estudos: Maurice Halbwachs,
Michael Pollak e Beatriz Sarlo. Os dois primeiros podem ser considerados nomes clssicos da
literatura sociolgica sobre a memria, enquanto Sarlo uma autora contempornea, ainda em
atividade, cuja obra vem trazendo importantes questionamentos sobre o tema. Desse modo,
analiso e comparo as definies de cada um desses autores sobre o fenmeno da memria:
como ela se forma, que tipo de funo ou trabalho ela realiza, que tipo de conhecimento sobre
o passado ela nos permite construir.
Na medida em que todos esses autores definem a memria como um fenmeno
coletivo, minha inteno saber que espao eles reservam para as memrias individuais. Ou
seja, na viso desses autores seria indiscutvel o fato de que a memria apresenta uma
dimenso social ou coletiva, no entanto, que lugar o indivduo ocuparia nesse processo?
Existem lembranas puramente individuais, ou o sujeito se encontra completamente
submetido aos ditames da sociedade? O indivduo capaz de formar memrias particulares?
Ele participa da formao das memrias dos grupos? Nesse caminho, a relao entre
memria e histria tambm se mostra relevante, pois coloca em discusso a formao social
da experincia subjetiva e nos ajuda a compreender como a relao indivduo-sociedade se
manifesta no processo de constituio das lembranas.
1. Maurice Halbwachs e o carter coletivo da memria
Maurice Halbwachs o responsvel pela fundao do campo de estudos sobre a
memria na rea das cincias sociais. Na dcada de 1920, ele lana o livro Les cadres sociaux
de la mmoire (Os quadros sociais da memria), erigindo um novo objeto de pesquisa para a
sociologia. Com esse gesto, porm, no era apenas a sociologia que ganhava um novo tema de
investigao; podemos dizer que a memria tambm encontrava uma nova casa, um novo
campo de reflexes para ser pensada, discutida e redefinida. Afinal, no mbito do pensamento
ocidental, a memria j havia ocupado a reflexo de importantes pensadores desde a
antiguidade, incluindo filsofos como Aristteles, Santo Agostinho e Henry Bergson (Santos,
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2003). Este ltimo exerceu grande influncia sobre o pensamento de Halbwachs, contribuindo
ainda para a discusso sobre a memria em outras disciplinas.
Outra influncia fundamental para o pensamento de Halbwachs foi a obra do
socilogo francs mile Durkheim. Ao lado de Weber e Marx, Durkheim apontado como
um dos fundadores da sociologia, tendo sido o responsvel pela constituio de uma das
matrizes fundamentais da disciplina: o funcionalismo. Com o intuito de delimitar a
especificidade da sociologia como um campo autnomo de conhecimento, diferenciando-a de
reas como a Psicologia e a Filosofia, Durkheim (1984) definiu os fatos sociais como os
objetos prprios de reflexo da nova cincia. Os fatos sociais teriam uma existncia
objetiva fora das conscincias individuais, atuando de modo coercitivo sobre elas. Na
abordagem durkheimiana, o comportamento do indivduo determinado por fatores que se
impem a ele desde o meio externo, tendncia seguida por Halbwachs em sua abordagem
sobre a memria.
Halbwachs costuma ser associado segunda gerao da escola sociolgica francesa,
grupo ao qual tambm pertenceram autores como Marcel Mauss, Robert Hertz e at mesmo
Durkheim, se considerarmos a fase final de sua produo. Aps um primeiro momento mais
extremo de afirmao da sociologia como disciplina autnoma, esses autores procuravam
agora tornar a abordagem funcionalista um pouco mais complexa e matizada. Nesse sentido,
eles aprofundaram a discusso sobre a relao indivduo-sociedade, sem abandonar o
determinismo da primeira gerao, mas tentando mostrar o desenvolvimento da estrutura no
plano das aes individuais. Esses autores destacaram tambm a dimenso simblica da
vida social, concebendo os cdigos sociais como uma espcie de linguagem.
No livro Os quadros sociais da memria, Halbwachs lana as bases para a
constituio de uma abordagem sociolgica sobre o ato de rememorao. Nessa obra, ele
realiza algo semelhante ao que Durkheim havia feito no livro O suicdio (2000), procurando
atestar a objetividade das lembranas como fenmeno coletivo atravs de uma abordagem
prxima da morfologia social (Santos, 2003). No presente trabalho, contudo, concentraremos
nossa ateno sobre outra obra fundamental de Halbwachs: A memria coletiva (2006).
Lanada postumamente na dcada de 1950, ela tem um carter ensastico, dando continuidade
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abordagem funcionalista iniciada na dcada de 1920, mas deixando algumas lacunas que
permitem novas interpretaes sobre o fenmeno da memria.
Ao longo das obras de Halbwachs, sobressai a noo de que a memria consistiria
num fenmeno eminentemente coletivo. Ou seja, ao invs de ser um fato puramente
individual como era defendido pela filosofia, pela psicologia e pelo senso comum da poca
, a memria seria uma construo social, constituindo-se a partir das relaes mantidas entre
os indivduos e grupos. Essa a tese central de Halbwachs, para quem a memria tampouco
poderia ser concebida como um fenmeno puramente biolgico, ou como uma mera reao
fisiolgica. A caracterizao da memria como um fenmeno coletivo segue, portanto, a
mesma frmula tradicional que ope a constituio do social aos planos do indivduo e da
natureza frmula que sustentou a especificidade da sociologia, num primeiro momento de
sua formao.
No esquema analtico de Halbwachs, afirmar que a memria tem um carter coletivo
equivale a dizer que o indivduo s capaz de recordar na medida em que pertence a algum
grupo social ou seja, a memria coletiva sempre uma memria de grupo. Assim, s
possvel ao sujeito construir e acessar lembranas na condio de membro de um conjunto ou
totalidade que o ultrapassa, no s em termos quantitativos, mas tambm em termos
qualitativos. O indivduo isolado no forma lembranas, ou pelo menos no capaz de
sustent-las por muito tempo, pois necessita do apoio dos testemunhos de outros para
aliment-las e format-las. As memrias individuais se formam a partir da relao com o
outro:
Recorremos a testemunhos para reforar ou enfraquecer e tambm para completar o
que sabemos de um evento sobre o qual j temos alguma informao. (Halbwachs,
2006, p.29)
preciso que haja um mnimo de concordncia entre as lembranas dos indivduos
para que elas possam se complementar, formando um patrimnio comum de recordaes. A
memria tem, portanto, um carter relacional, formando-se na interao entre os indivduos.
Segundo Halbwachs, as lembranas mais difceis de serem recuperadas so justamente
aquelas relacionadas a eventos que vivenciamos sozinhos, pois nesses casos, no podemos
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contar com o auxlio de ningum mais para mantermos vivas essas experincias em nossos
pensamentos. Incomunicveis, elas tendem a desvanecer.
Se, por um lado a memria coletiva, por outro, somente o indivduo capaz de
lembrar. Como afirma Halbwachs, em todo ato de memria se faz presente uma espcie de
intuio sensvel, que parece denotar a participao do indivduo na formao das
lembranas. No entanto, o sujeito no nada mais que um instrumento das memrias do
grupo, mesmo quando lembra individualmente:
Nossas lembranas permanecem coletivas e nos so lembradas por outros, ainda que
se trate de eventos em que somente ns estivemos envolvidos e objetos que somente
ns vimos. Isto acontece porque jamais estamos ss. No preciso que outros
estejam presentes, materialmente distintos de ns, porque sempre levamos conosco
certa quantidade de pessoas que no se confundem. (Halbwachs, 2006, p.30)
A memria individual est contida no conjunto maior da memria coletiva, sendo
apenas um fragmento ou uma viso parcial dos fatos vivenciados pelo grupo. Ela mais
densa, porm, menos abrangente do que a memria social. De modo geral, o indivduo apenas
materializa a ao de foras sociais que o ultrapassam. Para Halbwachs, o sentimento de
liberdade e singularidade do indivduo no passa de uma iluso: a diversidade de
comportamentos individuais pode ser entendida como o resultado das diferentes combinaes
de foras sociais sobre cada sujeito. Ou seja, cada indivduo como uma configurao
especfica criada pelo cruzamento de diferentes foras sociais concomitantes. O sujeito sofre,
ao mesmo tempo, a influncia de diversas correntes de pensamento coletivo, mas por no
poder atribuir seu comportamento a nenhuma delas exclusivamente, passa a creditar a si
mesmo a responsabilidade por seus atos, acreditando na possibilidade de agir de modo
totalmente autnomo.
Mesmo quando constri lembranas baseadas em experincias individuais, o sujeito
precisa recorrer a instrumentos que lhe so fornecidos pelo meio social, tais como as idias e
as palavras. S assim ele pode tornar sua experincia inteligvel e comunicvel, no s para os
outros, mas tambm para si mesmo. O indivduo absolutamente isolado no seria capaz de
construir qualquer tipo de experincia, no sendo capaz tambm de manter qualquer tipo de
registro sobre o passado. Porm, como vimos, na prtica jamais estamos ss, pois estamos
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sempre imersos num mundo de smbolos socialmente construdos, que nos fazem sentir a
constante influncia da sociedade sobre nosso comportamento. A percepo individual
formatada por cdigos sociais que funcionam como uma linguagem. Somente por meio da
referncia a um mesmo conjunto de smbolos, socialmente elaborados, os indivduos podem
dotar suas experincias de significados, e essa mesma condio tambm atua sobre a
construo de vises sobre o passado. Nesse sentido, a memria social porque, em ltima
instncia, toda forma de experincia tambm o .
Segundo Halbwachs, as memrias individuais se constituem a partir de quadros
fornecidos ou impostos pelo meio social. Esses so os chamados quadros sociais da
memria, que funcionam como pontos de referncia para a construo subjetiva de
lembranas. Eles determinam o que deve ser lembrado, esquecido, silenciado ou comemorado
pelos indivduos. A contextualizao realizada pelos quadros sociais inclui, ainda, a
padronizao social do tempo e do espao, dimenses fundamentais da experincia humana.
Na concepo de Halbwachs, a memria pode ser entendida como uma re-construo
do passado realizada com o auxlio de dados do presente. Isso ocorre atravs de um processo
de seleo, pois impossvel registrar tudo o que ocorreu num dado momento, no s no
plano individual, mas tambm no plano coletivo. Assim, as vises construdas sobre o
passado revelam mais sobre o momento presente do que sobre o passado que se pretende
restituir. Nossas vises sobre o passado so incompletas, parciais e cambiveis. Elas podem
variar conforme a posio que ocupamos num determinado grupo e conforme mudam as
relaes desse grupo com outros meios. A participao dos indivduos em variados grupos faz
com que suas memrias se formem de modo fragmentrio, como um mosaico.
A memria , portanto, um tipo de relao que se estabelece entre o presente e o
passado. Simbolicamente, ela capaz de congelar o tempo por um instante, fornecendo uma
imagem bem acabada sobre determinado momento de nossas vidas, permitindo que ele seja
revivido de algum modo por ns. O tempo, no entanto, consiste tambm numa construo
social. O modo como o percebemos marcado por padres e convenes coletivas que
organizam a experincia dos indivduos. Embora tenha uma dimenso subjetiva, a
padronizao do tempo fundamental para a sincronizao das aes individuais, permitindo
o desenvolvimento da vida social.
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O mesmo ocorre com o espao: cada grupo se relaciona com ele de modo particular,
moldando-o sua imagem e semelhana. A experincia subjetiva mediada por convenes
sociais, que condicionam sua orientao espacial. Os grupos fazem do espao um espelho, no
qual procuram projetar sua prpria imagem. Ele serve de depositrio para os valores e modos
de vida dos grupos, materializando-os sob formas mais ou menos estveis. Desse modo, a
fixidez do espao permite que os grupos possam objetivar suas memrias e identidades, como
acontece no caso dos monumentos, prdios histricos e todo o patrimnio arquitetnico
cultivado por determinado grupo.
A padronizao do tempo e do espao permite, portanto, a formao de memrias, que
cumprem uma funo social fundamental: elas contribuem para a manuteno e coeso dos
grupos, na medida em que ajudam a produzir o sentimento de identidade entre seus membros.
Segundo Halbwachs, o compartilhamento de memrias contribui para a formao de uma
comunidade de sentimentos. Por meio da memria, o grupo lana suas razes no passado,
assentando suas origens num momento distante e, muitas vezes, mtico. Essas memrias so
objetivadas no espao, conferindo materialidade e estabilidade ao modo de vida do grupo.
A relao entre memria e identidade faz com que Halbwachs estabelea tambm uma
associao entre memria e tradio. Para o autor, a memria no diz respeito simplesmente a
uma experincia iniciada e concluda no passado, mas sim a algo que permanece vivo,
animando os pensamentos e aes dos indivduos e grupos no presente. Quando uma memria
deixa de existir, isso significa que os laos sociais que a alimentavam e que nela se
alimentavam j no existem mais, ou seja, foi o prprio grupo, outrora cultivador dessa
lembrana, que deixou de existir. Nesse ponto, a memria se distinguiria da histria, pois esta
enquanto disciplina acadmica corresponderia ao registro escrito de acontecimentos que j
no se encontram mais vivos na memria de nenhum grupo. Para Halbwachs, a memria
vida, consiste numa viso interna do grupo sobre si mesmo e tem um carter mltiplo, pois
cada grupo cultiva um conjunto particular de lembranas. A histria, por sua vez, como um
cemitrio habitado por fatos que j morreram nas memrias dos grupos; trata-se de uma
viso externa e racionalizada dos acontecimentos, que almeja universalidade e, ao pretender
ser de todos, torna-se propriedade de ningum. Em suma, a histria s possvel e s se faz
necessria quando a memria-tradio j no existe mais.
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2. Michael Pollak e o carter negociado das memrias.
Michael Pollak outro importante artfice dos estudos sobre memria no campo das
cincias sociais. Sua obra realiza um dilogo bem-sucedido entre reas como a sociologia, a
histria e a psicanlise. Embora Halbwachs tenha iniciado a reflexo sobre a memria entre as
dcadas de 1920 e 1940, somente nos anos 1970 e 1980 sua obra seria redescoberta e
revalorada, efetivando-se como um campo slido de estudos sobre o tema. Dentre os autores
que participaram desse processo, encontra-se Michael Pollak, num momento em que a histria
procurou encampar a memria como objeto de estudos e fonte de dados. Novas reas de
pesquisa surgiram nesse contexto, como a nova histria, a histria oral e a histria do tempo
presente. A seguir, analiso a obra de Pollak a partir de dois artigos importantes para a
divulgao de sua obra no Brasil: Memria e identidade social (1992) e Memria,
esquecimento, silncio (1989).
Pollak traz importantes inovaes para a abordagem sociolgica da memria, mas no
rompe, simplesmente, com a obra de Maurice Halbwachs. Ele influenciado de muitas
maneiras pela obra do socilogo francs, e podemos dizer que as definies de memria de
ambos os autores concordam em diversos pontos. Em linhas gerais, tanto Pollak como
Halbwachs apontam a memria como um fenmeno coletivo, definindo-a como uma
construo social. Por ser uma construo, a memria envolve um processo de escolha, sendo
parcial e seletiva. Ambos os autores definem a memria como uma construo do passado
realizada no presente. Ela seria, ento, varivel, e tambm mltipla, pois cada grupo cultiva
um conjunto particular de recordaes. Por fim, Pollak e Halbwachs apontam o papel
fundamental da memria para a criao do sentimento de identidade. Existem, portanto,
continuidades importantes na comparao das obras desses autores. Porm, existem tambm
diferenas cruciais, que procuraremos destacar ao longo do trabalho.
Como dissemos, tanto Pollak como Halbwachs definem a memria como um
fenmeno coletivo, ou seja, como uma construo social. No entanto, afirmar o carter
coletivo da memria suficiente para dizer tudo aquilo que ela na viso de Halbwachs, mas
no na perspectiva de Pollak. Para este ltimo, a memria coletiva, sim: ela tem uma
dimenso social, sendo parcialmente herdada pelos sujeitos. Porm, o indivduo tambm tem
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suas lembranas, o que contraria a viso de Halbwachs, para quem o social se define em
oposio ao individual. Para Pollak, o indivduo tambm capaz de formar e acessar
memrias, participando ativamente da construo das recordaes dos grupos. O sujeito
administra as influncias que lhe chegam de fora a fim de construir suas prprias recordaes.
Sendo assim, ele no se encontra totalmente submetido aos quadros sociais da memria. De
fato, as lembranas dos indivduos e grupos se organizam em torno de alguns pontos mais ou
menos estveis, que conferem ordem s suas representaes. Contudo, o poder de agncia dos
indivduos tambm se faz presente e deve ser considerado.
Segundo Pollak, as memrias sejam elas individuais ou coletivas incluem sempre
trs elementos: acontecimentos, pessoas (ou personagens) e lugares. Os acontecimentos
consistem em eventos dos quais uma pessoa pode ter participado diretamente ou no, isto ,
que podem ter sido vivenciados por tabela, a partir do pertencimento do indivduo a um
determinado grupo. Do mesmo modo, as personagens que integram as lembranas de algum
podem efetivamente ter feito parte do seu crculo de convvio, ou podem apenas ter-se tornado
conhecidas devido a sua relevncia como figuras pblicas. Por fim, os lugares que servem de
base para o desenvolvimento das memrias de um sujeito podem ter sido realmente
freqentados durante certo tempo, ou podem ter sido incorporados de modo indireto s suas
experincias.
Em suma, a constituio de memrias envolve no s experincias vividas
diretamente, mas tambm, experincias herdadas, aprendidas, transmitidas aos indivduos
pelos grupos atravs do processo de socializao. Vale dizer que, mesmo os acontecimentos,
pessoas e lugares que compem as experincias diretas dos indivduos e grupos so alterados
quando registrados na forma de lembranas, no correspondendo de modo totalmente fiel
realidade. As memrias podem, ainda, envolver elementos que transcendem o espao-tempo
de durao de vida dos indivduos e grupos, evocando passagens mticas e fantsticas.
Sendo assim, as memrias podem se basear em fatos reais, ou no. O processo de
constituio das lembranas d lugar a invenes, confuses, imprecises, projees, e
incoerncias, o que pode ocorrer de modo deliberado ou no, envolvendo ainda silncios e
esquecimentos, que se do de modo consciente ou inconsciente. A formao de recordaes
tambm no precisa se desenvolver a partir de datas precisas: a memria tende a prevalecer
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sobre a cronologia oficial, apesar de essa ltima ter ligaes com interesses polticos, sendo
mais bem informada pela historiografia.
Para Pollak, semelhana de Halbwachs, a memria contribui para a criao do
sentimento de identidade dos indivduos e grupos. Em sua definio, a identidade a auto-
imagem que os indivduos e grupos constroem para si mesmos e para outros. Ele concebe a
identidade a partir de trs elementos: 1) unidade fsica que se refere ao corpo, no caso dos
indivduos, e ao territrio, no caso dos grupos; 2) continuidade no tempo e 3) sentimento de
coerncia. Ao lanar as origens de um grupo no passado, investindo-o de autoridade, a
memria serve de base para a construo de uma narrativa coerente sobre sua trajetria,
contribuindo para a criao do sentimento de identidade. Essa seria, portanto, a funo da
memria: ela participaria no s da criao do senso de igualdade entre os membros de uma
dada coletividade, mas tambm da demarcao de fronteiras entre os outros.
Memria e identidade tm sempre um carter relacional, o que pode resultar em
conflitos. Ao invs de serem tomadas como essncias, Pollak as define como construes
sociais a memria uma reconstruo do passado realizada a partir dos interesses e
preocupaes dos grupos e indivduos no presente. Isso lhe confere um carter circunstancial
e mutvel, pois ela se encontra sempre num processo de reinterpretao e mudana. A
memria pode variar, mas deve haver sempre algum nvel de concordncia das novas
representaes com aquelas j existentes. Uma vez constitudas, as lembranas tendem a
realizar um trabalho de conservao em prol da manuteno das representaes do grupo.
Caso essa continuidade entre o novo e o velho seja rompida bruscamente, uma crise de
identidade pode vir a se instalar.
As transformaes da memria tambm podem decorrer das disputas e conflitos entre
os diversos grupos. Segundo Pollak, o carter negociado da memria j pode ser encontrado
na obra de Halbwachs, muito embora o autor francs no dedique grande ateno a esse
ponto, desenvolvendo seus argumentos em outra direo. Como vimos, Halbwachs destaca a
importncia dos testemunhos de outros para a formao das lembranas do indivduo, o que
serviria como argumento para a demonstrao do carter coletivo da memria. No entanto,
no qualquer testemunho que pode servir ao processo de constituio de lembranas
comuns:
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Para que nossa memria se aproveite da memria dos outros, no basta que estes nos
apresentem seus testemunhos: tambm preciso que ela no tenha deixado de
concordar com as memrias deles e que existam muitos pontos de contato entre
uma e outras para que a lembrana que nos fazem recordar venha a ser reconstruda
sobre uma base comum. (Halbwachs, 2006, p.39)
Em suma, necessrio que haja algum nvel de concordncia entre as lembranas do
eu e do outro para que elas possam se reforar e se completar mutuamente, vindo a constituir
um patrimnio comum de recordaes. Numa s passagem, Pollak identifica o carter
relacional e negociado da memria na obra de Halbwachs, o que implicaria ainda a
participao do indivduo na constituio dessas lembranas. As anlises originais de
Halbwachs, no entanto, se encaminham num outro sentido.
Para Halbwachs, o que importa o carter coletivo da memria, ou seja, a influncia
dos quadros sociais da memria sobre a formao das lembranas dos indivduos. Para ele,
esses quadros servem como pontos referncia que organizam as memrias dos grupos e dos
indivduos, enquanto membros dos grupos , conferindo estabilidade e coerncia s
representaes coletivas. A memria contribui para a formao de identidades, e isso se d na
medida em que os grupos se constituem como comunidades de sentimentos. A adeso dos
indivduos aos grupos e s representaes coletivas ocorreria no plano afetivo, mas para
Pollak, isso mascara os processos de coero e dominao que esto relacionados formao
das memrias.
Segundo Pollak, a homogeneidade de um grupo, vista por Halbwachs como sinal de
funcionalidade, s pode ser entendida como o resultado da hegemonia de um segmento mais
poderoso sobre os demais. Como bem afirma Halbwachs, a memria tem um carter mltiplo,
na medida em que cada grupo cultiva um conjunto particular de lembranas. Na viso de
Pollak, porm, justamente essa diversidade que leva a memria a se tornar um objeto de
conflitos e disputas, pois os grupos procuram salvaguardar suas vises sobre o passado,
impondo-as sobre os demais.
Para Halbwachs, a memria tem carter seletivo, mas isso ocorre simplesmente porque
no possvel registrar todos os eventos do passado. A seletividade da memria seria
necessria estritamente por conferir ordem s representaes dos grupos. Pollak, por sua vez,
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denomina enquadramento a esse processo de escolha que fundamenta a constituio
mnemnica: alguns eventos so priorizados em detrimento de outros, mas isso no se d de
modo totalmente aleatrio. Indivduos e grupos procuram destacar os elementos que
concorrem para a formao de uma identidade positiva, auxiliando a manuteno de uma
posio privilegiada de poder e status ainda que isso no se d de modo totalmente
consciente e calculado. O processo de enquadramento encontra-se na base de formao das
memrias de carter hegemnico, as quais esto relacionadas aos interesses da sociedade
englobante.
A elevao das memrias de um grupo ao plano hegemnico envolve o combate e a
supresso das memrias de outros grupos, que passam a ocupar uma condio de
marginalidade. No entanto, ainda que sofram com a opresso e a censura, esses grupos no
deixam de produzir suas prprias memrias. Pollak refere-se a esta modalidade de lembranas
como memrias subterrneas: so elas as memrias dos grupos marginalizados, das
minorias polticas, dos segmentos mais pobres, dos movimentos sociais, etc. Por serem
reprimidas, elas tendem a assumir um aspecto traumtico, mas ao mesmo tempo isso o que
explica sua fora. Se, por um lado, elas se vem relegadas ao silncio e ameaadas pelo
esquecimento durante longos perodos, por outro, elas tendem a vir tona com muita
intensidade quando os ventos mudam de direo, rompendo com a ordem vigente e trazendo
mudanas e conseqncias incalculveis.
O silncio no deve ser visto sempre como um sintoma do risco de amnsia coletiva.
Muitas vezes, ele se mostra como uma condio necessria para a sobrevivncia das
lembranas de grupos subjugados. Por se encontrarem margem, essas memrias no tm
como se conservar e se propagar atravs dos meios oficiais de expresso. Ainda assim, elas
sobrevivem, como forma de resistncia poltica e cultural. Nesse caso, a memria, enquanto
construo idealizada do passado que se faz no presente, pode ser entendida como uma forma
de contestao da ordem vigente e como a formulao de um projeto social para o futuro.
As memrias subterrneas tendem a sobreviver e a transmitir-se por vias informais,
como redes de sociabilidade que abrangem o mbito da famlia ou de pequenos grupos,
sempre com uma tonalidade afetiva mais acentuada. Elas tendem a carregar tambm a marca
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da oralidade, por isso, as entrevistas de histria oral, ou histria de vida, se apresentam como
um mtodo privilegiado para a abordagem desse tipo de experincia.
A histria oral visa reconstituio dos eventos a partir de memrias baseadas em
relatos individuais. Nesse caso, os testemunhos pessoais so considerados relevantes,
primeiro, porque o sujeito tomado como o representante de determinado grupo
marginalizado, sintetizando em sua trajetria particular as vicissitudes do caminho percorrido
pelo grupo. No entanto, o indivduo tambm tem suas prprias recordaes: ele administra
suas lembranas, procurando harmoniz-las com a identidade que almeja construir para si
mesmo. Tal como os grupos, os indivduos intentam, igualmente, elaborar uma narrativa
coerente sobre suas trajetrias de vida, produzindo algo semelhante ao sentimento de unidade
subjetiva que Bourdieu (1998) denomina iluso biogrfica. Essa tendncia se torna mais
acentuada na situao artificial criada pela entrevista, quando o sujeito se v obrigado a
elaborar representaes sobre si mesmo de modo reflexivo.
De todo modo, o que desejamos destacar nesse ponto a existncia de um trabalho
psicolgico fundamental, realizado pelos indivduos, na base do processo de formao das
memrias. As situaes vivenciadas pelo grupo so elaboradas internamente pelos indivduos,
que criam suas prprias vises e interpretaes sobre os eventos. Pollak destaca, portanto, a
importncia da agncia individual para a formao das lembranas e procura conectar os
planos micro e macro da vida social em sua anlise, mostrando que a estrutura se constitui, se
expressa e se modifica no plano da ao individual.
3. Beatriz Sarlo e os limites da subjetividade.
No longo debate que separa memria e histria como modalidades diferentes de
reconstituio do passado, podemos dizer que Beatriz Sarlo se localizaria do lado da histria.
Ou melhor, diante da importncia exagerada assumida pela memria e pelos testemunhos
pessoais como fontes de verdade, desde o surgimento da histria oral como um campo de
estudos legtimo no meio acadmico, a autora procura apontar os limites da subjetividade
como fonte de conhecimento, destacando a importncia do rigor metodolgico para a
manuteno do estatuto cientfico da histria. Recorrendo ao pensamento de Susan Sontag,
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ela afirma: mais importante entender do que lembrar, embora para entender tambm seja
preciso lembrar (Sarlo, 2007, p.22).
No livro Tempo passado (2007), Sarlo critica aquilo que ela mesma denomina
guinada subjetiva, processo que teria ocorrido nas cincias sociais ao mesmo tempo em que
a chamada guinada lingstica, por volta das dcadas de 1970 e 1980. Nesse contexto, as
cincias sociais passaram a se ocupar da subjetividade como objeto de estudos, numa atitude
reflexiva que procurava problematizar as abordagens mais tradicionais da disciplina,
questionando as variadas formas de determinismo que faziam do indivduo um mero
autmato, um ser passivo diante das diversas influncias recebidas do meio externo. Com a
valorizao da ao individual, as cincias sociais corrigiam um equvoco do passado,
reconhecendo a existncia de um sujeito que desfruta de certa margem de liberdade e
contribui para a construo da vida social. No entanto, esse avano abriu espao para que o
indivduo, alijado pela sociologia no momento inicial de constituio como cincia, voltasse a
ocupar um papel central no cenrio epistemolgico.
No campo da histria, a guinada subjetiva pode ser observada a partir do surgimento
de novos objetos, mtodos e campos de pesquisa, tais como a histria oral ou histria vida, a
nova histria, a histria contempornea ou histria do tempo presente, etc. Com a influncia
da abordagem de tipo etnogrfico, alguns pesquisadores promoveram o fortalecimento de
reas ligadas histria social e cultural, interessando-se pelos aspectos micro da vida
coletiva. Os estudos histricos passam, ento, a se ocupar de pequenos grupos, das relaes
familiares e comunitrias, de comportamentos desviantes, das minorias marginalizadas e, ao
mesmo tempo, da conduta do homem comum, definido em oposio aos grandes nomes da
cena pblica. Nessa esteira, temos a valorizao da subjetividade, das emoes, dos interesses
e vontades individuais, dos impulsos irracionais ou inconscientes como fontes do
conhecimento e como elementos imprescindveis ao bom entendimento do comportamento
humano em todas as pocas e lugares.
Com a histria oral, observamos a valorizao da memria e dos relatos em primeira
pessoa como fontes de verdade e meios privilegiados para a reconstituio histrica do
passado. A premissa que sustenta esse modo de fazer histria aponta a memria como o
resultado de uma experincia mais verdadeira, por ela ter sido pretensamente vivenciada de
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forma direta ou imediata no-mediada pelo indivduo. O modo mais apropriado para a
captao dessas memrias seriam os testemunhos pessoais, ou seja, os relatos orais em
primeira pessoa, nos quais os entrevistados procuram reconstituir as ricas experincias plenas
de realidade vivenciadas por eles.
De certo modo, a concepo da memria como o resultado de um certo tipo de
experincia direta j se encontra presente no pensamento de Halbwachs (2006). Esse autor
valoriza as lembranas como um fator de coeso social, definindo-a como o fruto de
experincias espontneas que permanecem vivas na ao dos grupos no presente, enquanto a
histria seria caracterizada pela frieza de um registro escrito e artificial sobre fatos que j no
movem mais os homens. Devemos destacar, no entanto, que as lembranas so estritamente
coletivas em sua perspectiva, no comportando qualquer dimenso subjetiva.
Benjamin (1987), por sua vez, aponta uma relao de identidade entre experincia e
relato, que encontra seu paradigma na figura do narrador, mas que teria se tornado
impossvel na modernidade. Na antiguidade e na idade mdia, o narrador seria capaz de
comunicar a vivacidade de sua experincia subjetiva de modo mais pleno, dirigindo-se
diretamente a um pblico que se enriquecia espiritualmente ao ouvir seus relatos. Isso mudou,
no entanto, como o surgimento da imprensa e do romance na modernidade, quando a figura
do narrador tornou-se dispensvel. Nos tempos modernos, a experincia traumtica do choque
torna-se parte do cotidiano, fazendo com que os homens comuns, tal como os soldados que
retornam da guerra, tenham dificuldades de constituir experincias. Ou seja, eles no
conseguem torn-las inteligveis nem para si mesmos nem para os outros, e assim elas se
perdem no silncio. Ainda assim, a obra de Benjamin marcada por uma aporia, na medida
em que ele defende a importncia da memria como uma forma de conhecimento superior ao
positivismo da histria monumental, realando seu poder de reparao.
Sarlo no contesta a importncia da memria e do testemunho, em si mesmos, como
fontes de conhecimento para os estudos histricos. O problema so os exageros ligados
guinada subjetiva, que fazem com que elas assumam a condio de fontes inquestionveis e
infalveis na reconstituio do passado, como se fossem mais reais e verdadeiras que as
demais. Para a autora, as lembranas e relatos pessoais podem, sim, contribuir para a
construo do conhecimento histrico, desde que suas especificidades sejam levadas em
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considerao. Memrias pessoais podem ser fontes valiosas em determinados contextos de
pesquisa, mas isso no pode ser aplicado a todas as situaes. Como toda metodologia, a
histria oral tem suas vantagens e limitaes, e assim os testemunhos devem ser submetidos a
uma avaliao crtica.
A autora tambm destaca a importncia poltica que os testemunhos podem assumir
em certos contextos histricos, quando a memria se torna uma fonte alternativa diante das
vises oficiais defendidas pelos grupos que se encontram no poder. No caso da Amrica
Latina, os relatos pessoais das vtimas-testemunhas foram fundamentais para denunciar os
abusos cometidos pelas ditaduras civil-militares que dominaram o continente entre as dcadas
de 1960 e 1980, contribuindo para a transio democrtica nesses pases. Os testemunhos tm
ainda um carter reparador e teraputico para a subjetividade das vtimas de regimes
autoritrios e tragdias como o holocausto, cumprindo importante funo moral e jurdica. O
problema, na viso da autora, quando os direitos morais atribudos memria levam seus
adeptos a reivindicarem um estatuto indevido de veracidade. Toda fonte de conhecimento
pode e deve ser criticamente analisada, e com os relatos pessoais no deve ser diferente.
Para Sarlo, a importncia moral assumida pelos testemunhos das vtimas de casos-
limite, como o holocausto, passou a ser estendida de modo indevido a toda forma de
experincia subjetiva, inclusive s mais banais e ordinrias. Como diz a autora, vivemos uma
poca de forte subjetividade, e esse trao no uma exclusividade do campo da histria ou
das cincias sociais. Trata-se de uma caracterstica cultural e ideolgica das sociedades
ocidentais contemporneas. O mundo ocidental assiste invaso do espao pblico pelos
assuntos da vida privada, num processo ao qual Sennett (1988) denomina tirania da
intimidade. Nesse contexto, temos o declnio do homem pblico e a emergncia do
sujeito narcsico como tipo social, um modelo de conduta que leva o indivduo a se
enclausurar e se afogar nas profundezas de si mesmo.
Richard Sennett critica o narcisismo contemporneo, encarando-o como uma forma de
incomunicabilidade que leva eroso da vida coletiva. Apesar da desconfiana de alguns
intelectuais pessimistas, vivemos aparentemente numa poca de otimismo identitrio,
como afirma Sarlo. Assim, numa viso mais difundida, o sujeito no s capaz de constituir
experincias, como tambm capaz de express-las plenamente aos outros. Numa poca em
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que se desconfia da Verdade oferecida por qualquer modelo de meta-narrativa, seja ela
mstica ou secular, acreditamos na existncia de verdades mltiplas, que tm sua origem na
experincia parcial e impressionista do sujeito.
Contra a valorizao exagerada da subjetividade, Sarlo ope a noo de que a
memria, bem como toda experincia tida como puramente subjetiva, apresenta um carter
discursivo. Desse modo, as lembranas s se constituem quando assumem a forma de uma
narrativa, organizando os acontecimentos da vida pessoal em torno de princpios teleolgicos
bem definidos, que transcendem o indivduo e conferem um sentido socialmente inteligvel s
trajetrias individuais. Para a autora, portanto, no existe uma experincia pura, verdadeira e
plena que se deixe expressar por inteiro atravs dos testemunhos individuais. No existe uma
relao de identidade entre o relato e a experincia, assim como no existe uma relao
referencial entre as palavras e as coisas na teoria foucaultiana (Foucault, 2002) . Em suma, o
relato remete sempre a uma experincia anterior, mas ao mesmo tempo, a experincia no
existe caso no seja expressa e formatada por um relato, sendo inserida na ordem de
determinado discurso.
Como vimos, a memria uma reconstruo do passado que se realiza no presente.
Sendo assim, ela tem sempre um carter vicrio e fragmentrio, pois lida com experincias e
sujeitos que se encontram necessariamente ausentes no momento em que o relato produzido.
A hegemonia do presente e o anacronismo so traos que marcam toda forma de
conhecimento sobre o passado, o que pode ser aceito no caso da memria, mas deve ser
problematizado no mbito da historiografia. As memrias e relatos pessoais so importantes,
mas no so o nico caminho que nos leva ao passado, tampouco o mais confivel.
Consideraes finais
Desenvolvo agora alguns comentrios gerais sobre o que foi discutido ao longo desse
trabalho. No que diz respeito discusso sobre a relao entre memria coletiva e memria
social, podemos apontar a perspectiva de Halbwachs como a mais extremista na defesa do
carter social das lembranas. Para ele, a memria coletiva, e isso resume tudo o que h de
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mais importante a ser dito sobre ela. As recordaes dos indivduos se formam a partir dos
quadros sociais fornecidos pelos grupos dos quais eles participam no h espao para a
manifestao da subjetividade ou da singularidade individual. A liberdade do sujeito uma
iluso que se forma diante da impossibilidade de atribuio das razes de seu comportamento
a uma s corrente social. Em suma, no h memria que seja puramente individual, os
indivduos no capazes de formar lembranas prprias, nem participam de modo ativo na
constituio da memria coletiva eles participam, sim, desse processo, mas no apresentam
sinais de reflexo ou agncia.
Pollak, por sua vez, retoma e problematiza a perspectiva de Halbwachs sobre a
constituio da memria. Ele destaca o carter negociado e potencialmente conflituoso do
processo de formao das lembranas, apontando a existncia de memrias hegemnicas e
subalternas ou melhor, subterrneas, subversivas, revolucionrias. Por serem reprimidas
durante longos perodos, essas lembranas carregam um aspecto traumtico, irrompendo com
uma fora incontrolvel quando as condies se mostram favorveis. Devido ao seu carter
marginal, esse tipo de recordao sobrevive atravs de canais informais de transmisso, sendo
marcado pela oralidade. Assim, a histria oral se apresenta como um mtodo valioso para a
construo do conhecimento sobre o passado, partindo das memrias individuais como via de
acesso para a reconstituio das memrias dos grupos. Para Pollak, a memria coletiva, mas
isso apenas uma parte do que ela . Os indivduos tambm tm suas lembranas: atravs de
uma espcie de trabalho psicolgico, eles elaboram subjetivamente os acontecimentos,
participam ativamente do processo de formao das memrias dos grupos e administram suas
prprias lembranas em harmonia com a identidade que almejam construir para si mesmos.
Pollak reconhece, portanto, o poder de agncia dos sujeitos e a importncia das prticas
individuais para a constituio, mudana e atualizao das estruturas sociais.
Por fim, Beatriz Sarlo procura apontar os limites da subjetividade como fonte de
conhecimento, tendo em vista a importncia indevida assumida pela memria e pelos
testemunhos pessoais como fontes de uma verdade inquestionvel, baseada no imediatismo da
experincia individual. Essa tendncia pode ser encontrada na hipervalorizao da histria
oral como mtodo de reconstituio do passado. Quando Pollak defendeu a histria de vida
como forma de acesso s memrias de grupos marginalizados, os estudos histricos passavam
por um momento de importantes transformaes, que levaram ao englobamento da memria e
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da subjetividade como fontes de conhecimento. Sarlo, no entanto, escreve numa outra poca,
marcada pela invaso cada vez mais agressiva do plano pblico pelos assuntos da vida
privada. Nesse sentido, ela procura desfazer a pretensa identidade estabelecida entre
experincia e relato pessoal, mostrando que a memria tem sempre um carter discursivo e se
forma como uma narrativa orientada por princpios sociais.
Em suma, o que procuramos mostrar nesse artigo que a memria apresenta de fato
um carter coletivo que no pode ser negado. No entanto, isso no significa que o indivduo
se encontre totalmente alijado do processo de formao de lembranas. O sujeito tem suas
prprias recordaes, assim como tambm desfruta de certo nvel de liberdade, conscincia e
poder de ao em todos os nveis da vida social. A memria no totalmente coletiva, nem
tampouco totalmente individual. A considerao do poder de agncia dos indivduos nos
permite observar a articulao entre indivduo e sociedade, ao e estrutura, numa dialtica
que evidencia que os planos micro e macro-sociolgicos so complementares e no podem ser
entendidos de modo isolado.
Referncias Bibliogrficas:
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SANTOS, Myrian Seplveda dos. Memria coletiva e teoria social. So Paulo: Annablume,
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SENNETT, Richard. O declnio do homem pblico. So Paulo: Companhia das Letras,
1988.
COLLECTIVE MEMORY AND INDIVIDUAL REMEMBRANCES ACCORDING TO
THE PERSPECTIVES OF MAURICE HALBWACHS, MICHAEL POLLAK E
BEATRIZ SARLO
ABSTRACT: In this article, I discuss the relationship between collective memory and
individual memory according to three different perspectives. Maurice Halbwachs founded the
memory studies within the social sciences, conceiving it entirely as a collective phenomenon.
Pollak problematizes this view, pointing the negotiated aspect of memory and the importance
of individual agency for its formation. Finally, Sarlo indicates the limits of subjectivity as a
source of knowledge and highlights the discursive aspect of the mnemonic constitution. In
short, memory is not entirely social nor totally individual: structure and practice are
intertwined in the construction of memories.
KEYWORDS: collective memory; individual remembrance; agency.