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Memória coletiva e lembranças individuais F ábio Daniel Rios INTRATEXTOS, Rio de Janeiro, 5(1): 1-22, 2013. ISSN 2176-6789 1 MEMÓRIA COLETIVA E LEMBRANÇAS INDIVIDUAIS A PARTIR DAS PERSPECTIVAS DE MAURICE HALBWACHS, MICHAEL POLLAK E BEATRIZ SARLO Fábio Daniel Rios 1 RESUMO: Nesse artigo, discuto a relação entre memória coletiva e memória individual segundo três perspectivas distintas. Maurice Halbwachs é o fundador dos estudos sobre a memória na área das ciências sociais, concebendo-a como um fenômeno inteiramente coletivo. Pollak retoma e problematiza essa perspectiva, apontando o caráter negociado da memória e a importância da agência individual para a sua formação. Por fim, Sarlo indica os limites da subjetividade como fonte de conhecimento e destaca o caráter discursivo da constituição mnemônica. Em suma, a memória não é totalmente coletiva, nem inteiramente individual: estrutura e prática se entrelaçam no processo de construção das recordações. PALAVRAS-CHAVE: Memória coletiva; memória individual; poder de agência. Recebido em: Agosto, 2013 Aceito em: Novembro, 2013 Para citar este artigo: ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- RIOS, FÁBIO; “Memória coletiva e lembranças individuais a partir das perspectivas de Maurice Halbwachs, Michael Pollak e Beatriz Sarlo”. In: Revista Intratextos, 2013, vol 5, no1, p. 1-22. DOI: http://dx.doi.org/10.12957/intratextos.2013.7102 --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 1 Doutorando do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da UERJ, bolsista CAPES. Email: [email protected].

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  • Memria coletiva e lembranas individuais Fbio Daniel Rios

    INTRATEXTOS, Rio de Janeiro, 5(1): 1-22, 2013. ISSN 2176-6789 1

    MEMRIA COLETIVA E LEMBRANAS INDIVIDUAIS A PARTIR

    DAS PERSPECTIVAS DE MAURICE HALBWACHS, MICHAEL

    POLLAK E BEATRIZ SARLO

    Fbio Daniel Rios1

    RESUMO: Nesse artigo, discuto a relao entre memria coletiva e memria individual

    segundo trs perspectivas distintas. Maurice Halbwachs o fundador dos estudos sobre a

    memria na rea das cincias sociais, concebendo-a como um fenmeno inteiramente

    coletivo. Pollak retoma e problematiza essa perspectiva, apontando o carter negociado da

    memria e a importncia da agncia individual para a sua formao. Por fim, Sarlo indica os

    limites da subjetividade como fonte de conhecimento e destaca o carter discursivo da

    constituio mnemnica. Em suma, a memria no totalmente coletiva, nem inteiramente

    individual: estrutura e prtica se entrelaam no processo de construo das recordaes.

    PALAVRAS-CHAVE: Memria coletiva; memria individual; poder de agncia.

    Recebido em: Agosto, 2013

    Aceito em: Novembro, 2013

    Para citar este artigo:

    ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

    RIOS, FBIO; Memria coletiva e lembranas individuais a partir das perspectivas de Maurice Halbwachs, Michael Pollak e Beatriz Sarlo. In: Revista Intratextos, 2013, vol 5, no1, p. 1-22. DOI: http://dx.doi.org/10.12957/intratextos.2013.7102 ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

    1 Doutorando do Programa de Ps Graduao em Cincias Sociais da UERJ, bolsista CAPES. Email:

    [email protected].

  • Memria coletiva e lembranas individuais Fbio Daniel Rios

    INTRATEXTOS, Rio de Janeiro, 5(1): 1-22, 2013. ISSN 2176-6789 2

    Introduo

    Nesse artigo, discuto a relao entre memria coletiva e memria individual a partir

    das obras de trs autores fundamentais para esse campo de estudos: Maurice Halbwachs,

    Michael Pollak e Beatriz Sarlo. Os dois primeiros podem ser considerados nomes clssicos da

    literatura sociolgica sobre a memria, enquanto Sarlo uma autora contempornea, ainda em

    atividade, cuja obra vem trazendo importantes questionamentos sobre o tema. Desse modo,

    analiso e comparo as definies de cada um desses autores sobre o fenmeno da memria:

    como ela se forma, que tipo de funo ou trabalho ela realiza, que tipo de conhecimento sobre

    o passado ela nos permite construir.

    Na medida em que todos esses autores definem a memria como um fenmeno

    coletivo, minha inteno saber que espao eles reservam para as memrias individuais. Ou

    seja, na viso desses autores seria indiscutvel o fato de que a memria apresenta uma

    dimenso social ou coletiva, no entanto, que lugar o indivduo ocuparia nesse processo?

    Existem lembranas puramente individuais, ou o sujeito se encontra completamente

    submetido aos ditames da sociedade? O indivduo capaz de formar memrias particulares?

    Ele participa da formao das memrias dos grupos? Nesse caminho, a relao entre

    memria e histria tambm se mostra relevante, pois coloca em discusso a formao social

    da experincia subjetiva e nos ajuda a compreender como a relao indivduo-sociedade se

    manifesta no processo de constituio das lembranas.

    1. Maurice Halbwachs e o carter coletivo da memria

    Maurice Halbwachs o responsvel pela fundao do campo de estudos sobre a

    memria na rea das cincias sociais. Na dcada de 1920, ele lana o livro Les cadres sociaux

    de la mmoire (Os quadros sociais da memria), erigindo um novo objeto de pesquisa para a

    sociologia. Com esse gesto, porm, no era apenas a sociologia que ganhava um novo tema de

    investigao; podemos dizer que a memria tambm encontrava uma nova casa, um novo

    campo de reflexes para ser pensada, discutida e redefinida. Afinal, no mbito do pensamento

    ocidental, a memria j havia ocupado a reflexo de importantes pensadores desde a

    antiguidade, incluindo filsofos como Aristteles, Santo Agostinho e Henry Bergson (Santos,

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    2003). Este ltimo exerceu grande influncia sobre o pensamento de Halbwachs, contribuindo

    ainda para a discusso sobre a memria em outras disciplinas.

    Outra influncia fundamental para o pensamento de Halbwachs foi a obra do

    socilogo francs mile Durkheim. Ao lado de Weber e Marx, Durkheim apontado como

    um dos fundadores da sociologia, tendo sido o responsvel pela constituio de uma das

    matrizes fundamentais da disciplina: o funcionalismo. Com o intuito de delimitar a

    especificidade da sociologia como um campo autnomo de conhecimento, diferenciando-a de

    reas como a Psicologia e a Filosofia, Durkheim (1984) definiu os fatos sociais como os

    objetos prprios de reflexo da nova cincia. Os fatos sociais teriam uma existncia

    objetiva fora das conscincias individuais, atuando de modo coercitivo sobre elas. Na

    abordagem durkheimiana, o comportamento do indivduo determinado por fatores que se

    impem a ele desde o meio externo, tendncia seguida por Halbwachs em sua abordagem

    sobre a memria.

    Halbwachs costuma ser associado segunda gerao da escola sociolgica francesa,

    grupo ao qual tambm pertenceram autores como Marcel Mauss, Robert Hertz e at mesmo

    Durkheim, se considerarmos a fase final de sua produo. Aps um primeiro momento mais

    extremo de afirmao da sociologia como disciplina autnoma, esses autores procuravam

    agora tornar a abordagem funcionalista um pouco mais complexa e matizada. Nesse sentido,

    eles aprofundaram a discusso sobre a relao indivduo-sociedade, sem abandonar o

    determinismo da primeira gerao, mas tentando mostrar o desenvolvimento da estrutura no

    plano das aes individuais. Esses autores destacaram tambm a dimenso simblica da

    vida social, concebendo os cdigos sociais como uma espcie de linguagem.

    No livro Os quadros sociais da memria, Halbwachs lana as bases para a

    constituio de uma abordagem sociolgica sobre o ato de rememorao. Nessa obra, ele

    realiza algo semelhante ao que Durkheim havia feito no livro O suicdio (2000), procurando

    atestar a objetividade das lembranas como fenmeno coletivo atravs de uma abordagem

    prxima da morfologia social (Santos, 2003). No presente trabalho, contudo, concentraremos

    nossa ateno sobre outra obra fundamental de Halbwachs: A memria coletiva (2006).

    Lanada postumamente na dcada de 1950, ela tem um carter ensastico, dando continuidade

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    abordagem funcionalista iniciada na dcada de 1920, mas deixando algumas lacunas que

    permitem novas interpretaes sobre o fenmeno da memria.

    Ao longo das obras de Halbwachs, sobressai a noo de que a memria consistiria

    num fenmeno eminentemente coletivo. Ou seja, ao invs de ser um fato puramente

    individual como era defendido pela filosofia, pela psicologia e pelo senso comum da poca

    , a memria seria uma construo social, constituindo-se a partir das relaes mantidas entre

    os indivduos e grupos. Essa a tese central de Halbwachs, para quem a memria tampouco

    poderia ser concebida como um fenmeno puramente biolgico, ou como uma mera reao

    fisiolgica. A caracterizao da memria como um fenmeno coletivo segue, portanto, a

    mesma frmula tradicional que ope a constituio do social aos planos do indivduo e da

    natureza frmula que sustentou a especificidade da sociologia, num primeiro momento de

    sua formao.

    No esquema analtico de Halbwachs, afirmar que a memria tem um carter coletivo

    equivale a dizer que o indivduo s capaz de recordar na medida em que pertence a algum

    grupo social ou seja, a memria coletiva sempre uma memria de grupo. Assim, s

    possvel ao sujeito construir e acessar lembranas na condio de membro de um conjunto ou

    totalidade que o ultrapassa, no s em termos quantitativos, mas tambm em termos

    qualitativos. O indivduo isolado no forma lembranas, ou pelo menos no capaz de

    sustent-las por muito tempo, pois necessita do apoio dos testemunhos de outros para

    aliment-las e format-las. As memrias individuais se formam a partir da relao com o

    outro:

    Recorremos a testemunhos para reforar ou enfraquecer e tambm para completar o

    que sabemos de um evento sobre o qual j temos alguma informao. (Halbwachs,

    2006, p.29)

    preciso que haja um mnimo de concordncia entre as lembranas dos indivduos

    para que elas possam se complementar, formando um patrimnio comum de recordaes. A

    memria tem, portanto, um carter relacional, formando-se na interao entre os indivduos.

    Segundo Halbwachs, as lembranas mais difceis de serem recuperadas so justamente

    aquelas relacionadas a eventos que vivenciamos sozinhos, pois nesses casos, no podemos

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    contar com o auxlio de ningum mais para mantermos vivas essas experincias em nossos

    pensamentos. Incomunicveis, elas tendem a desvanecer.

    Se, por um lado a memria coletiva, por outro, somente o indivduo capaz de

    lembrar. Como afirma Halbwachs, em todo ato de memria se faz presente uma espcie de

    intuio sensvel, que parece denotar a participao do indivduo na formao das

    lembranas. No entanto, o sujeito no nada mais que um instrumento das memrias do

    grupo, mesmo quando lembra individualmente:

    Nossas lembranas permanecem coletivas e nos so lembradas por outros, ainda que

    se trate de eventos em que somente ns estivemos envolvidos e objetos que somente

    ns vimos. Isto acontece porque jamais estamos ss. No preciso que outros

    estejam presentes, materialmente distintos de ns, porque sempre levamos conosco

    certa quantidade de pessoas que no se confundem. (Halbwachs, 2006, p.30)

    A memria individual est contida no conjunto maior da memria coletiva, sendo

    apenas um fragmento ou uma viso parcial dos fatos vivenciados pelo grupo. Ela mais

    densa, porm, menos abrangente do que a memria social. De modo geral, o indivduo apenas

    materializa a ao de foras sociais que o ultrapassam. Para Halbwachs, o sentimento de

    liberdade e singularidade do indivduo no passa de uma iluso: a diversidade de

    comportamentos individuais pode ser entendida como o resultado das diferentes combinaes

    de foras sociais sobre cada sujeito. Ou seja, cada indivduo como uma configurao

    especfica criada pelo cruzamento de diferentes foras sociais concomitantes. O sujeito sofre,

    ao mesmo tempo, a influncia de diversas correntes de pensamento coletivo, mas por no

    poder atribuir seu comportamento a nenhuma delas exclusivamente, passa a creditar a si

    mesmo a responsabilidade por seus atos, acreditando na possibilidade de agir de modo

    totalmente autnomo.

    Mesmo quando constri lembranas baseadas em experincias individuais, o sujeito

    precisa recorrer a instrumentos que lhe so fornecidos pelo meio social, tais como as idias e

    as palavras. S assim ele pode tornar sua experincia inteligvel e comunicvel, no s para os

    outros, mas tambm para si mesmo. O indivduo absolutamente isolado no seria capaz de

    construir qualquer tipo de experincia, no sendo capaz tambm de manter qualquer tipo de

    registro sobre o passado. Porm, como vimos, na prtica jamais estamos ss, pois estamos

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    sempre imersos num mundo de smbolos socialmente construdos, que nos fazem sentir a

    constante influncia da sociedade sobre nosso comportamento. A percepo individual

    formatada por cdigos sociais que funcionam como uma linguagem. Somente por meio da

    referncia a um mesmo conjunto de smbolos, socialmente elaborados, os indivduos podem

    dotar suas experincias de significados, e essa mesma condio tambm atua sobre a

    construo de vises sobre o passado. Nesse sentido, a memria social porque, em ltima

    instncia, toda forma de experincia tambm o .

    Segundo Halbwachs, as memrias individuais se constituem a partir de quadros

    fornecidos ou impostos pelo meio social. Esses so os chamados quadros sociais da

    memria, que funcionam como pontos de referncia para a construo subjetiva de

    lembranas. Eles determinam o que deve ser lembrado, esquecido, silenciado ou comemorado

    pelos indivduos. A contextualizao realizada pelos quadros sociais inclui, ainda, a

    padronizao social do tempo e do espao, dimenses fundamentais da experincia humana.

    Na concepo de Halbwachs, a memria pode ser entendida como uma re-construo

    do passado realizada com o auxlio de dados do presente. Isso ocorre atravs de um processo

    de seleo, pois impossvel registrar tudo o que ocorreu num dado momento, no s no

    plano individual, mas tambm no plano coletivo. Assim, as vises construdas sobre o

    passado revelam mais sobre o momento presente do que sobre o passado que se pretende

    restituir. Nossas vises sobre o passado so incompletas, parciais e cambiveis. Elas podem

    variar conforme a posio que ocupamos num determinado grupo e conforme mudam as

    relaes desse grupo com outros meios. A participao dos indivduos em variados grupos faz

    com que suas memrias se formem de modo fragmentrio, como um mosaico.

    A memria , portanto, um tipo de relao que se estabelece entre o presente e o

    passado. Simbolicamente, ela capaz de congelar o tempo por um instante, fornecendo uma

    imagem bem acabada sobre determinado momento de nossas vidas, permitindo que ele seja

    revivido de algum modo por ns. O tempo, no entanto, consiste tambm numa construo

    social. O modo como o percebemos marcado por padres e convenes coletivas que

    organizam a experincia dos indivduos. Embora tenha uma dimenso subjetiva, a

    padronizao do tempo fundamental para a sincronizao das aes individuais, permitindo

    o desenvolvimento da vida social.

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    O mesmo ocorre com o espao: cada grupo se relaciona com ele de modo particular,

    moldando-o sua imagem e semelhana. A experincia subjetiva mediada por convenes

    sociais, que condicionam sua orientao espacial. Os grupos fazem do espao um espelho, no

    qual procuram projetar sua prpria imagem. Ele serve de depositrio para os valores e modos

    de vida dos grupos, materializando-os sob formas mais ou menos estveis. Desse modo, a

    fixidez do espao permite que os grupos possam objetivar suas memrias e identidades, como

    acontece no caso dos monumentos, prdios histricos e todo o patrimnio arquitetnico

    cultivado por determinado grupo.

    A padronizao do tempo e do espao permite, portanto, a formao de memrias, que

    cumprem uma funo social fundamental: elas contribuem para a manuteno e coeso dos

    grupos, na medida em que ajudam a produzir o sentimento de identidade entre seus membros.

    Segundo Halbwachs, o compartilhamento de memrias contribui para a formao de uma

    comunidade de sentimentos. Por meio da memria, o grupo lana suas razes no passado,

    assentando suas origens num momento distante e, muitas vezes, mtico. Essas memrias so

    objetivadas no espao, conferindo materialidade e estabilidade ao modo de vida do grupo.

    A relao entre memria e identidade faz com que Halbwachs estabelea tambm uma

    associao entre memria e tradio. Para o autor, a memria no diz respeito simplesmente a

    uma experincia iniciada e concluda no passado, mas sim a algo que permanece vivo,

    animando os pensamentos e aes dos indivduos e grupos no presente. Quando uma memria

    deixa de existir, isso significa que os laos sociais que a alimentavam e que nela se

    alimentavam j no existem mais, ou seja, foi o prprio grupo, outrora cultivador dessa

    lembrana, que deixou de existir. Nesse ponto, a memria se distinguiria da histria, pois esta

    enquanto disciplina acadmica corresponderia ao registro escrito de acontecimentos que j

    no se encontram mais vivos na memria de nenhum grupo. Para Halbwachs, a memria

    vida, consiste numa viso interna do grupo sobre si mesmo e tem um carter mltiplo, pois

    cada grupo cultiva um conjunto particular de lembranas. A histria, por sua vez, como um

    cemitrio habitado por fatos que j morreram nas memrias dos grupos; trata-se de uma

    viso externa e racionalizada dos acontecimentos, que almeja universalidade e, ao pretender

    ser de todos, torna-se propriedade de ningum. Em suma, a histria s possvel e s se faz

    necessria quando a memria-tradio j no existe mais.

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    2. Michael Pollak e o carter negociado das memrias.

    Michael Pollak outro importante artfice dos estudos sobre memria no campo das

    cincias sociais. Sua obra realiza um dilogo bem-sucedido entre reas como a sociologia, a

    histria e a psicanlise. Embora Halbwachs tenha iniciado a reflexo sobre a memria entre as

    dcadas de 1920 e 1940, somente nos anos 1970 e 1980 sua obra seria redescoberta e

    revalorada, efetivando-se como um campo slido de estudos sobre o tema. Dentre os autores

    que participaram desse processo, encontra-se Michael Pollak, num momento em que a histria

    procurou encampar a memria como objeto de estudos e fonte de dados. Novas reas de

    pesquisa surgiram nesse contexto, como a nova histria, a histria oral e a histria do tempo

    presente. A seguir, analiso a obra de Pollak a partir de dois artigos importantes para a

    divulgao de sua obra no Brasil: Memria e identidade social (1992) e Memria,

    esquecimento, silncio (1989).

    Pollak traz importantes inovaes para a abordagem sociolgica da memria, mas no

    rompe, simplesmente, com a obra de Maurice Halbwachs. Ele influenciado de muitas

    maneiras pela obra do socilogo francs, e podemos dizer que as definies de memria de

    ambos os autores concordam em diversos pontos. Em linhas gerais, tanto Pollak como

    Halbwachs apontam a memria como um fenmeno coletivo, definindo-a como uma

    construo social. Por ser uma construo, a memria envolve um processo de escolha, sendo

    parcial e seletiva. Ambos os autores definem a memria como uma construo do passado

    realizada no presente. Ela seria, ento, varivel, e tambm mltipla, pois cada grupo cultiva

    um conjunto particular de recordaes. Por fim, Pollak e Halbwachs apontam o papel

    fundamental da memria para a criao do sentimento de identidade. Existem, portanto,

    continuidades importantes na comparao das obras desses autores. Porm, existem tambm

    diferenas cruciais, que procuraremos destacar ao longo do trabalho.

    Como dissemos, tanto Pollak como Halbwachs definem a memria como um

    fenmeno coletivo, ou seja, como uma construo social. No entanto, afirmar o carter

    coletivo da memria suficiente para dizer tudo aquilo que ela na viso de Halbwachs, mas

    no na perspectiva de Pollak. Para este ltimo, a memria coletiva, sim: ela tem uma

    dimenso social, sendo parcialmente herdada pelos sujeitos. Porm, o indivduo tambm tem

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    suas lembranas, o que contraria a viso de Halbwachs, para quem o social se define em

    oposio ao individual. Para Pollak, o indivduo tambm capaz de formar e acessar

    memrias, participando ativamente da construo das recordaes dos grupos. O sujeito

    administra as influncias que lhe chegam de fora a fim de construir suas prprias recordaes.

    Sendo assim, ele no se encontra totalmente submetido aos quadros sociais da memria. De

    fato, as lembranas dos indivduos e grupos se organizam em torno de alguns pontos mais ou

    menos estveis, que conferem ordem s suas representaes. Contudo, o poder de agncia dos

    indivduos tambm se faz presente e deve ser considerado.

    Segundo Pollak, as memrias sejam elas individuais ou coletivas incluem sempre

    trs elementos: acontecimentos, pessoas (ou personagens) e lugares. Os acontecimentos

    consistem em eventos dos quais uma pessoa pode ter participado diretamente ou no, isto ,

    que podem ter sido vivenciados por tabela, a partir do pertencimento do indivduo a um

    determinado grupo. Do mesmo modo, as personagens que integram as lembranas de algum

    podem efetivamente ter feito parte do seu crculo de convvio, ou podem apenas ter-se tornado

    conhecidas devido a sua relevncia como figuras pblicas. Por fim, os lugares que servem de

    base para o desenvolvimento das memrias de um sujeito podem ter sido realmente

    freqentados durante certo tempo, ou podem ter sido incorporados de modo indireto s suas

    experincias.

    Em suma, a constituio de memrias envolve no s experincias vividas

    diretamente, mas tambm, experincias herdadas, aprendidas, transmitidas aos indivduos

    pelos grupos atravs do processo de socializao. Vale dizer que, mesmo os acontecimentos,

    pessoas e lugares que compem as experincias diretas dos indivduos e grupos so alterados

    quando registrados na forma de lembranas, no correspondendo de modo totalmente fiel

    realidade. As memrias podem, ainda, envolver elementos que transcendem o espao-tempo

    de durao de vida dos indivduos e grupos, evocando passagens mticas e fantsticas.

    Sendo assim, as memrias podem se basear em fatos reais, ou no. O processo de

    constituio das lembranas d lugar a invenes, confuses, imprecises, projees, e

    incoerncias, o que pode ocorrer de modo deliberado ou no, envolvendo ainda silncios e

    esquecimentos, que se do de modo consciente ou inconsciente. A formao de recordaes

    tambm no precisa se desenvolver a partir de datas precisas: a memria tende a prevalecer

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    sobre a cronologia oficial, apesar de essa ltima ter ligaes com interesses polticos, sendo

    mais bem informada pela historiografia.

    Para Pollak, semelhana de Halbwachs, a memria contribui para a criao do

    sentimento de identidade dos indivduos e grupos. Em sua definio, a identidade a auto-

    imagem que os indivduos e grupos constroem para si mesmos e para outros. Ele concebe a

    identidade a partir de trs elementos: 1) unidade fsica que se refere ao corpo, no caso dos

    indivduos, e ao territrio, no caso dos grupos; 2) continuidade no tempo e 3) sentimento de

    coerncia. Ao lanar as origens de um grupo no passado, investindo-o de autoridade, a

    memria serve de base para a construo de uma narrativa coerente sobre sua trajetria,

    contribuindo para a criao do sentimento de identidade. Essa seria, portanto, a funo da

    memria: ela participaria no s da criao do senso de igualdade entre os membros de uma

    dada coletividade, mas tambm da demarcao de fronteiras entre os outros.

    Memria e identidade tm sempre um carter relacional, o que pode resultar em

    conflitos. Ao invs de serem tomadas como essncias, Pollak as define como construes

    sociais a memria uma reconstruo do passado realizada a partir dos interesses e

    preocupaes dos grupos e indivduos no presente. Isso lhe confere um carter circunstancial

    e mutvel, pois ela se encontra sempre num processo de reinterpretao e mudana. A

    memria pode variar, mas deve haver sempre algum nvel de concordncia das novas

    representaes com aquelas j existentes. Uma vez constitudas, as lembranas tendem a

    realizar um trabalho de conservao em prol da manuteno das representaes do grupo.

    Caso essa continuidade entre o novo e o velho seja rompida bruscamente, uma crise de

    identidade pode vir a se instalar.

    As transformaes da memria tambm podem decorrer das disputas e conflitos entre

    os diversos grupos. Segundo Pollak, o carter negociado da memria j pode ser encontrado

    na obra de Halbwachs, muito embora o autor francs no dedique grande ateno a esse

    ponto, desenvolvendo seus argumentos em outra direo. Como vimos, Halbwachs destaca a

    importncia dos testemunhos de outros para a formao das lembranas do indivduo, o que

    serviria como argumento para a demonstrao do carter coletivo da memria. No entanto,

    no qualquer testemunho que pode servir ao processo de constituio de lembranas

    comuns:

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    INTRATEXTOS, Rio de Janeiro, 5(1): 1-22, 2013. ISSN 2176-6789 11

    Para que nossa memria se aproveite da memria dos outros, no basta que estes nos

    apresentem seus testemunhos: tambm preciso que ela no tenha deixado de

    concordar com as memrias deles e que existam muitos pontos de contato entre

    uma e outras para que a lembrana que nos fazem recordar venha a ser reconstruda

    sobre uma base comum. (Halbwachs, 2006, p.39)

    Em suma, necessrio que haja algum nvel de concordncia entre as lembranas do

    eu e do outro para que elas possam se reforar e se completar mutuamente, vindo a constituir

    um patrimnio comum de recordaes. Numa s passagem, Pollak identifica o carter

    relacional e negociado da memria na obra de Halbwachs, o que implicaria ainda a

    participao do indivduo na constituio dessas lembranas. As anlises originais de

    Halbwachs, no entanto, se encaminham num outro sentido.

    Para Halbwachs, o que importa o carter coletivo da memria, ou seja, a influncia

    dos quadros sociais da memria sobre a formao das lembranas dos indivduos. Para ele,

    esses quadros servem como pontos referncia que organizam as memrias dos grupos e dos

    indivduos, enquanto membros dos grupos , conferindo estabilidade e coerncia s

    representaes coletivas. A memria contribui para a formao de identidades, e isso se d na

    medida em que os grupos se constituem como comunidades de sentimentos. A adeso dos

    indivduos aos grupos e s representaes coletivas ocorreria no plano afetivo, mas para

    Pollak, isso mascara os processos de coero e dominao que esto relacionados formao

    das memrias.

    Segundo Pollak, a homogeneidade de um grupo, vista por Halbwachs como sinal de

    funcionalidade, s pode ser entendida como o resultado da hegemonia de um segmento mais

    poderoso sobre os demais. Como bem afirma Halbwachs, a memria tem um carter mltiplo,

    na medida em que cada grupo cultiva um conjunto particular de lembranas. Na viso de

    Pollak, porm, justamente essa diversidade que leva a memria a se tornar um objeto de

    conflitos e disputas, pois os grupos procuram salvaguardar suas vises sobre o passado,

    impondo-as sobre os demais.

    Para Halbwachs, a memria tem carter seletivo, mas isso ocorre simplesmente porque

    no possvel registrar todos os eventos do passado. A seletividade da memria seria

    necessria estritamente por conferir ordem s representaes dos grupos. Pollak, por sua vez,

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    denomina enquadramento a esse processo de escolha que fundamenta a constituio

    mnemnica: alguns eventos so priorizados em detrimento de outros, mas isso no se d de

    modo totalmente aleatrio. Indivduos e grupos procuram destacar os elementos que

    concorrem para a formao de uma identidade positiva, auxiliando a manuteno de uma

    posio privilegiada de poder e status ainda que isso no se d de modo totalmente

    consciente e calculado. O processo de enquadramento encontra-se na base de formao das

    memrias de carter hegemnico, as quais esto relacionadas aos interesses da sociedade

    englobante.

    A elevao das memrias de um grupo ao plano hegemnico envolve o combate e a

    supresso das memrias de outros grupos, que passam a ocupar uma condio de

    marginalidade. No entanto, ainda que sofram com a opresso e a censura, esses grupos no

    deixam de produzir suas prprias memrias. Pollak refere-se a esta modalidade de lembranas

    como memrias subterrneas: so elas as memrias dos grupos marginalizados, das

    minorias polticas, dos segmentos mais pobres, dos movimentos sociais, etc. Por serem

    reprimidas, elas tendem a assumir um aspecto traumtico, mas ao mesmo tempo isso o que

    explica sua fora. Se, por um lado, elas se vem relegadas ao silncio e ameaadas pelo

    esquecimento durante longos perodos, por outro, elas tendem a vir tona com muita

    intensidade quando os ventos mudam de direo, rompendo com a ordem vigente e trazendo

    mudanas e conseqncias incalculveis.

    O silncio no deve ser visto sempre como um sintoma do risco de amnsia coletiva.

    Muitas vezes, ele se mostra como uma condio necessria para a sobrevivncia das

    lembranas de grupos subjugados. Por se encontrarem margem, essas memrias no tm

    como se conservar e se propagar atravs dos meios oficiais de expresso. Ainda assim, elas

    sobrevivem, como forma de resistncia poltica e cultural. Nesse caso, a memria, enquanto

    construo idealizada do passado que se faz no presente, pode ser entendida como uma forma

    de contestao da ordem vigente e como a formulao de um projeto social para o futuro.

    As memrias subterrneas tendem a sobreviver e a transmitir-se por vias informais,

    como redes de sociabilidade que abrangem o mbito da famlia ou de pequenos grupos,

    sempre com uma tonalidade afetiva mais acentuada. Elas tendem a carregar tambm a marca

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    da oralidade, por isso, as entrevistas de histria oral, ou histria de vida, se apresentam como

    um mtodo privilegiado para a abordagem desse tipo de experincia.

    A histria oral visa reconstituio dos eventos a partir de memrias baseadas em

    relatos individuais. Nesse caso, os testemunhos pessoais so considerados relevantes,

    primeiro, porque o sujeito tomado como o representante de determinado grupo

    marginalizado, sintetizando em sua trajetria particular as vicissitudes do caminho percorrido

    pelo grupo. No entanto, o indivduo tambm tem suas prprias recordaes: ele administra

    suas lembranas, procurando harmoniz-las com a identidade que almeja construir para si

    mesmo. Tal como os grupos, os indivduos intentam, igualmente, elaborar uma narrativa

    coerente sobre suas trajetrias de vida, produzindo algo semelhante ao sentimento de unidade

    subjetiva que Bourdieu (1998) denomina iluso biogrfica. Essa tendncia se torna mais

    acentuada na situao artificial criada pela entrevista, quando o sujeito se v obrigado a

    elaborar representaes sobre si mesmo de modo reflexivo.

    De todo modo, o que desejamos destacar nesse ponto a existncia de um trabalho

    psicolgico fundamental, realizado pelos indivduos, na base do processo de formao das

    memrias. As situaes vivenciadas pelo grupo so elaboradas internamente pelos indivduos,

    que criam suas prprias vises e interpretaes sobre os eventos. Pollak destaca, portanto, a

    importncia da agncia individual para a formao das lembranas e procura conectar os

    planos micro e macro da vida social em sua anlise, mostrando que a estrutura se constitui, se

    expressa e se modifica no plano da ao individual.

    3. Beatriz Sarlo e os limites da subjetividade.

    No longo debate que separa memria e histria como modalidades diferentes de

    reconstituio do passado, podemos dizer que Beatriz Sarlo se localizaria do lado da histria.

    Ou melhor, diante da importncia exagerada assumida pela memria e pelos testemunhos

    pessoais como fontes de verdade, desde o surgimento da histria oral como um campo de

    estudos legtimo no meio acadmico, a autora procura apontar os limites da subjetividade

    como fonte de conhecimento, destacando a importncia do rigor metodolgico para a

    manuteno do estatuto cientfico da histria. Recorrendo ao pensamento de Susan Sontag,

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    ela afirma: mais importante entender do que lembrar, embora para entender tambm seja

    preciso lembrar (Sarlo, 2007, p.22).

    No livro Tempo passado (2007), Sarlo critica aquilo que ela mesma denomina

    guinada subjetiva, processo que teria ocorrido nas cincias sociais ao mesmo tempo em que

    a chamada guinada lingstica, por volta das dcadas de 1970 e 1980. Nesse contexto, as

    cincias sociais passaram a se ocupar da subjetividade como objeto de estudos, numa atitude

    reflexiva que procurava problematizar as abordagens mais tradicionais da disciplina,

    questionando as variadas formas de determinismo que faziam do indivduo um mero

    autmato, um ser passivo diante das diversas influncias recebidas do meio externo. Com a

    valorizao da ao individual, as cincias sociais corrigiam um equvoco do passado,

    reconhecendo a existncia de um sujeito que desfruta de certa margem de liberdade e

    contribui para a construo da vida social. No entanto, esse avano abriu espao para que o

    indivduo, alijado pela sociologia no momento inicial de constituio como cincia, voltasse a

    ocupar um papel central no cenrio epistemolgico.

    No campo da histria, a guinada subjetiva pode ser observada a partir do surgimento

    de novos objetos, mtodos e campos de pesquisa, tais como a histria oral ou histria vida, a

    nova histria, a histria contempornea ou histria do tempo presente, etc. Com a influncia

    da abordagem de tipo etnogrfico, alguns pesquisadores promoveram o fortalecimento de

    reas ligadas histria social e cultural, interessando-se pelos aspectos micro da vida

    coletiva. Os estudos histricos passam, ento, a se ocupar de pequenos grupos, das relaes

    familiares e comunitrias, de comportamentos desviantes, das minorias marginalizadas e, ao

    mesmo tempo, da conduta do homem comum, definido em oposio aos grandes nomes da

    cena pblica. Nessa esteira, temos a valorizao da subjetividade, das emoes, dos interesses

    e vontades individuais, dos impulsos irracionais ou inconscientes como fontes do

    conhecimento e como elementos imprescindveis ao bom entendimento do comportamento

    humano em todas as pocas e lugares.

    Com a histria oral, observamos a valorizao da memria e dos relatos em primeira

    pessoa como fontes de verdade e meios privilegiados para a reconstituio histrica do

    passado. A premissa que sustenta esse modo de fazer histria aponta a memria como o

    resultado de uma experincia mais verdadeira, por ela ter sido pretensamente vivenciada de

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    forma direta ou imediata no-mediada pelo indivduo. O modo mais apropriado para a

    captao dessas memrias seriam os testemunhos pessoais, ou seja, os relatos orais em

    primeira pessoa, nos quais os entrevistados procuram reconstituir as ricas experincias plenas

    de realidade vivenciadas por eles.

    De certo modo, a concepo da memria como o resultado de um certo tipo de

    experincia direta j se encontra presente no pensamento de Halbwachs (2006). Esse autor

    valoriza as lembranas como um fator de coeso social, definindo-a como o fruto de

    experincias espontneas que permanecem vivas na ao dos grupos no presente, enquanto a

    histria seria caracterizada pela frieza de um registro escrito e artificial sobre fatos que j no

    movem mais os homens. Devemos destacar, no entanto, que as lembranas so estritamente

    coletivas em sua perspectiva, no comportando qualquer dimenso subjetiva.

    Benjamin (1987), por sua vez, aponta uma relao de identidade entre experincia e

    relato, que encontra seu paradigma na figura do narrador, mas que teria se tornado

    impossvel na modernidade. Na antiguidade e na idade mdia, o narrador seria capaz de

    comunicar a vivacidade de sua experincia subjetiva de modo mais pleno, dirigindo-se

    diretamente a um pblico que se enriquecia espiritualmente ao ouvir seus relatos. Isso mudou,

    no entanto, como o surgimento da imprensa e do romance na modernidade, quando a figura

    do narrador tornou-se dispensvel. Nos tempos modernos, a experincia traumtica do choque

    torna-se parte do cotidiano, fazendo com que os homens comuns, tal como os soldados que

    retornam da guerra, tenham dificuldades de constituir experincias. Ou seja, eles no

    conseguem torn-las inteligveis nem para si mesmos nem para os outros, e assim elas se

    perdem no silncio. Ainda assim, a obra de Benjamin marcada por uma aporia, na medida

    em que ele defende a importncia da memria como uma forma de conhecimento superior ao

    positivismo da histria monumental, realando seu poder de reparao.

    Sarlo no contesta a importncia da memria e do testemunho, em si mesmos, como

    fontes de conhecimento para os estudos histricos. O problema so os exageros ligados

    guinada subjetiva, que fazem com que elas assumam a condio de fontes inquestionveis e

    infalveis na reconstituio do passado, como se fossem mais reais e verdadeiras que as

    demais. Para a autora, as lembranas e relatos pessoais podem, sim, contribuir para a

    construo do conhecimento histrico, desde que suas especificidades sejam levadas em

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    INTRATEXTOS, Rio de Janeiro, 5(1): 1-22, 2013. ISSN 2176-6789 16

    considerao. Memrias pessoais podem ser fontes valiosas em determinados contextos de

    pesquisa, mas isso no pode ser aplicado a todas as situaes. Como toda metodologia, a

    histria oral tem suas vantagens e limitaes, e assim os testemunhos devem ser submetidos a

    uma avaliao crtica.

    A autora tambm destaca a importncia poltica que os testemunhos podem assumir

    em certos contextos histricos, quando a memria se torna uma fonte alternativa diante das

    vises oficiais defendidas pelos grupos que se encontram no poder. No caso da Amrica

    Latina, os relatos pessoais das vtimas-testemunhas foram fundamentais para denunciar os

    abusos cometidos pelas ditaduras civil-militares que dominaram o continente entre as dcadas

    de 1960 e 1980, contribuindo para a transio democrtica nesses pases. Os testemunhos tm

    ainda um carter reparador e teraputico para a subjetividade das vtimas de regimes

    autoritrios e tragdias como o holocausto, cumprindo importante funo moral e jurdica. O

    problema, na viso da autora, quando os direitos morais atribudos memria levam seus

    adeptos a reivindicarem um estatuto indevido de veracidade. Toda fonte de conhecimento

    pode e deve ser criticamente analisada, e com os relatos pessoais no deve ser diferente.

    Para Sarlo, a importncia moral assumida pelos testemunhos das vtimas de casos-

    limite, como o holocausto, passou a ser estendida de modo indevido a toda forma de

    experincia subjetiva, inclusive s mais banais e ordinrias. Como diz a autora, vivemos uma

    poca de forte subjetividade, e esse trao no uma exclusividade do campo da histria ou

    das cincias sociais. Trata-se de uma caracterstica cultural e ideolgica das sociedades

    ocidentais contemporneas. O mundo ocidental assiste invaso do espao pblico pelos

    assuntos da vida privada, num processo ao qual Sennett (1988) denomina tirania da

    intimidade. Nesse contexto, temos o declnio do homem pblico e a emergncia do

    sujeito narcsico como tipo social, um modelo de conduta que leva o indivduo a se

    enclausurar e se afogar nas profundezas de si mesmo.

    Richard Sennett critica o narcisismo contemporneo, encarando-o como uma forma de

    incomunicabilidade que leva eroso da vida coletiva. Apesar da desconfiana de alguns

    intelectuais pessimistas, vivemos aparentemente numa poca de otimismo identitrio,

    como afirma Sarlo. Assim, numa viso mais difundida, o sujeito no s capaz de constituir

    experincias, como tambm capaz de express-las plenamente aos outros. Numa poca em

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    que se desconfia da Verdade oferecida por qualquer modelo de meta-narrativa, seja ela

    mstica ou secular, acreditamos na existncia de verdades mltiplas, que tm sua origem na

    experincia parcial e impressionista do sujeito.

    Contra a valorizao exagerada da subjetividade, Sarlo ope a noo de que a

    memria, bem como toda experincia tida como puramente subjetiva, apresenta um carter

    discursivo. Desse modo, as lembranas s se constituem quando assumem a forma de uma

    narrativa, organizando os acontecimentos da vida pessoal em torno de princpios teleolgicos

    bem definidos, que transcendem o indivduo e conferem um sentido socialmente inteligvel s

    trajetrias individuais. Para a autora, portanto, no existe uma experincia pura, verdadeira e

    plena que se deixe expressar por inteiro atravs dos testemunhos individuais. No existe uma

    relao de identidade entre o relato e a experincia, assim como no existe uma relao

    referencial entre as palavras e as coisas na teoria foucaultiana (Foucault, 2002) . Em suma, o

    relato remete sempre a uma experincia anterior, mas ao mesmo tempo, a experincia no

    existe caso no seja expressa e formatada por um relato, sendo inserida na ordem de

    determinado discurso.

    Como vimos, a memria uma reconstruo do passado que se realiza no presente.

    Sendo assim, ela tem sempre um carter vicrio e fragmentrio, pois lida com experincias e

    sujeitos que se encontram necessariamente ausentes no momento em que o relato produzido.

    A hegemonia do presente e o anacronismo so traos que marcam toda forma de

    conhecimento sobre o passado, o que pode ser aceito no caso da memria, mas deve ser

    problematizado no mbito da historiografia. As memrias e relatos pessoais so importantes,

    mas no so o nico caminho que nos leva ao passado, tampouco o mais confivel.

    Consideraes finais

    Desenvolvo agora alguns comentrios gerais sobre o que foi discutido ao longo desse

    trabalho. No que diz respeito discusso sobre a relao entre memria coletiva e memria

    social, podemos apontar a perspectiva de Halbwachs como a mais extremista na defesa do

    carter social das lembranas. Para ele, a memria coletiva, e isso resume tudo o que h de

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    mais importante a ser dito sobre ela. As recordaes dos indivduos se formam a partir dos

    quadros sociais fornecidos pelos grupos dos quais eles participam no h espao para a

    manifestao da subjetividade ou da singularidade individual. A liberdade do sujeito uma

    iluso que se forma diante da impossibilidade de atribuio das razes de seu comportamento

    a uma s corrente social. Em suma, no h memria que seja puramente individual, os

    indivduos no capazes de formar lembranas prprias, nem participam de modo ativo na

    constituio da memria coletiva eles participam, sim, desse processo, mas no apresentam

    sinais de reflexo ou agncia.

    Pollak, por sua vez, retoma e problematiza a perspectiva de Halbwachs sobre a

    constituio da memria. Ele destaca o carter negociado e potencialmente conflituoso do

    processo de formao das lembranas, apontando a existncia de memrias hegemnicas e

    subalternas ou melhor, subterrneas, subversivas, revolucionrias. Por serem reprimidas

    durante longos perodos, essas lembranas carregam um aspecto traumtico, irrompendo com

    uma fora incontrolvel quando as condies se mostram favorveis. Devido ao seu carter

    marginal, esse tipo de recordao sobrevive atravs de canais informais de transmisso, sendo

    marcado pela oralidade. Assim, a histria oral se apresenta como um mtodo valioso para a

    construo do conhecimento sobre o passado, partindo das memrias individuais como via de

    acesso para a reconstituio das memrias dos grupos. Para Pollak, a memria coletiva, mas

    isso apenas uma parte do que ela . Os indivduos tambm tm suas lembranas: atravs de

    uma espcie de trabalho psicolgico, eles elaboram subjetivamente os acontecimentos,

    participam ativamente do processo de formao das memrias dos grupos e administram suas

    prprias lembranas em harmonia com a identidade que almejam construir para si mesmos.

    Pollak reconhece, portanto, o poder de agncia dos sujeitos e a importncia das prticas

    individuais para a constituio, mudana e atualizao das estruturas sociais.

    Por fim, Beatriz Sarlo procura apontar os limites da subjetividade como fonte de

    conhecimento, tendo em vista a importncia indevida assumida pela memria e pelos

    testemunhos pessoais como fontes de uma verdade inquestionvel, baseada no imediatismo da

    experincia individual. Essa tendncia pode ser encontrada na hipervalorizao da histria

    oral como mtodo de reconstituio do passado. Quando Pollak defendeu a histria de vida

    como forma de acesso s memrias de grupos marginalizados, os estudos histricos passavam

    por um momento de importantes transformaes, que levaram ao englobamento da memria e

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    da subjetividade como fontes de conhecimento. Sarlo, no entanto, escreve numa outra poca,

    marcada pela invaso cada vez mais agressiva do plano pblico pelos assuntos da vida

    privada. Nesse sentido, ela procura desfazer a pretensa identidade estabelecida entre

    experincia e relato pessoal, mostrando que a memria tem sempre um carter discursivo e se

    forma como uma narrativa orientada por princpios sociais.

    Em suma, o que procuramos mostrar nesse artigo que a memria apresenta de fato

    um carter coletivo que no pode ser negado. No entanto, isso no significa que o indivduo

    se encontre totalmente alijado do processo de formao de lembranas. O sujeito tem suas

    prprias recordaes, assim como tambm desfruta de certo nvel de liberdade, conscincia e

    poder de ao em todos os nveis da vida social. A memria no totalmente coletiva, nem

    tampouco totalmente individual. A considerao do poder de agncia dos indivduos nos

    permite observar a articulao entre indivduo e sociedade, ao e estrutura, numa dialtica

    que evidencia que os planos micro e macro-sociolgicos so complementares e no podem ser

    entendidos de modo isolado.

    Referncias Bibliogrficas:

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    SENNETT, Richard. O declnio do homem pblico. So Paulo: Companhia das Letras,

    1988.

    COLLECTIVE MEMORY AND INDIVIDUAL REMEMBRANCES ACCORDING TO

    THE PERSPECTIVES OF MAURICE HALBWACHS, MICHAEL POLLAK E

    BEATRIZ SARLO

    ABSTRACT: In this article, I discuss the relationship between collective memory and

    individual memory according to three different perspectives. Maurice Halbwachs founded the

    memory studies within the social sciences, conceiving it entirely as a collective phenomenon.

    Pollak problematizes this view, pointing the negotiated aspect of memory and the importance

    of individual agency for its formation. Finally, Sarlo indicates the limits of subjectivity as a

    source of knowledge and highlights the discursive aspect of the mnemonic constitution. In

    short, memory is not entirely social nor totally individual: structure and practice are

    intertwined in the construction of memories.

    KEYWORDS: collective memory; individual remembrance; agency.