meditatio mortis e condenação dos sentidos no secretum de … · 2017-07-11 · 1 meditatio...
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Meditatio mortis e condenação dos sentidos no Secretum de Petrarca
Maria Rita da Motta Thimoteo1
Resumo: O trabalho a ser apresentado nesta Jornada consistirá num comentário crítico sobre
o livro De secreto conflictu curarum mearum, do poeta italiano Francesco Petrarca (1304-
1374). Este comentário terá dois principais objetivos: 1) expor o conteúdo do livro,
ressaltando dois elementos essenciais na filosofia moral de Petrarca: a contradição e embate
entre o mundo sensível e o espiritual e a importância da meditação e reflexão sobre a morte
para que se viva de modo virtuoso; 2) discutir os livros dos historiadores e filólogos
Martinelli, Rico, Baron e Billanovich, considerando especialmente o problema da data de
confecção do Secretum e as implicações deste impasse para a elaboração da imagem histórica
polarizada de um Petrarca jovem, em conflito com a luxúria, e um Petrarca mais velho e
maduro, confessor de seus pecados e seguidor obstinado da filosofia agostiniana. Este
comentário faz parte de uma extensa pesquisa, iniciada na graduação e aperfeiçoada no
mestrado, sobre o conceito de filosofia virtuosa nos textos de Francesco. Um dos principais
objetivos da pesquisa é expor os argumentos mais acentuados por Petrarca no distanciamento
que existiria entre o caminho virtuoso para o conhecimento e o que ele mesmo classifica
como “costume moderno da ciência” de seu tempo, que seria a filosofia escolástica praticada
nas Universidades.
Reconhecido como uma das figuras mais importantes no enriquecimento e
consolidação da língua italiana moderna, Francesco Petrarca (1304-1374), nascido em
Arezzo, dedicou boa parte de sua vida a expressar – seja em composições poéticas de canzioni
e sonetti, seja em diálogos, tratados ou em seu rico epistolário – perturbações morais e
espirituais advindas de um conflito interno entre suas paixões terrenas e o desejo de ascensão
à bondade divina e à Verdade. É certo que este não é o único tópico contemplado em sua
extensa produção, mas certamente é um dos mais frequentes e profundamente explorados.
1Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-
mail: [email protected]
2
No trabalho atual, realizaremos um comentário crítico de seu diálogo De secreto
conflictu mearum curarum2, destacando especialmente o problema de sua datação e
revisando-o. Reconsiderar este problema é uma das ferramentas escolhidas para a verificação
da seguinte hipótese: Petrarca se distancia das apropriações escolásticas da filosofia
aristotélica e segue por orientações agostinianas e neoplatônicas no que se refere ao caminho
para acessar a Verdade (para ele também o Bem e a Sabedoria), que, ele defende, não se dá
através de uma ascensão dialética, mas por uma experiência mística de revelação ou
rememoração da Verdade pela iluminação da alma e desenvolvimento da visão interior3.
Realizar a devida leitura do Secretum só é possível quando levamos em consideração
as características mais marcantes de sua obra no que se refere às considerações sobre virtude e
espiritualidade. Historiadores como Rico, Baron, Billanovich, Martinelli e Garin defendem
que a temática dos escritos de Petrarca se transforma visceralmente na maturidade, e que o
jovem poeta apaixonado pela herança latina e facilmente suscetível aos prazeres mundanos
(do corpo e da fama) que se apresenta nas Canzioni, por exemplo, lentamente cede lugar a um
Petrarca vivamente convertido, espiritualizado, estudioso das Escrituras e contemplador
admirado de seus mistérios. Não é tarefa nossa – e pareceria injusto à sua memória – tentar
reduzir este importante personagem a uma figura dicotômica pagã x cristã, jovem x maduro,
inflamado x ascético, etc. Mas concordamos que existe de fato uma mudança do eixo temático
de sua obra a partir de meados da década de 1340 que ele mesmo justifica com uma profunda
transformação espiritual.
Ao estudarmos sua obra e adentrarmos nos conflitos pessoais que Petrarca deseja
apresentar, torna-se evidente que a figura histórica e religiosa que ocupa o posto de grande
mestre nos ensinamentos sobre a conduta do cristão virtuoso e sobre o cultivo da sabedoria
que direciona a alma a Deus é Santo Agostinho (354-430). A admiração de Petrarca pelo
bispo de Hipona é explicitamente demonstrada em diversas passagens de sua obra, como
2Foi consultada a tradução para o italiano realizada por Giulio Cesare Parolari no site:
http://digilander.libero.it/letteratura_petrarca/index.html. A edição de referência em latim é: BIGI, E (org).
Opere di Francesco Petrarca. Milano: Ugo Mursia Editore, 1963. Contudo, para facilitar a identificação das
citações, uma vez que as disponibilizadas pelo site não são dadas em páginas, as referências a este texto serão
apresentadas de acordo com a versão em latim disponibilizada digitalmente pela editora Riccardo Ricciardi:
PETRARCA, F. De secreto conflictu curarum mearum (Secretum). Milano-Napoli: Riccardo Ricciardi editore,
1955. 3 Esta é uma das hipóteses defendidas na dissertação de Mestrado, e o presente trabalho apresentará apenas uma
das considerações possíveis sobre a hipótese.
3
numa de suas Familiares onde ele defende que assim como muitas e várias são as estrelas
luminosas – aqui relacionadas aos diversos filósofos e poetas que passaram pelo mundo –
apenas um é o Sol que ilumina a vista, e a este se assemelha Agostinho4. Entretanto, Petrarca
faz questão de esclarecer que, por maior que seja seu apreço ao teólogo, ele não é dependente
por completo de suas palavras, uma vez que não deseja ser “escravo nem de uma opinião,
nem de uma seita, nem de um homem, sem poder mudar de parecer depois de haver
conhecido a verdade”5 e nem “jurar sobre a palavra de mestre algum” – atitude que confessa
ter aprendido com o próprio Agostinho, Cícero e Horácio6.
Neste sentido, retomamos aqui a constatação de Garin sobre o peso da filosofia de
Agostinho na espiritualidade e filosofia de Petrarca:
Filosofia que é, para Petrarca, com inflexões agostinianas, vida no Logos
vivente, escuta humilde do Verbo magistral, [e que] se opõe apenas à ciência
verbosa e abstrata, que isola o mundo de suas raízes, que entre os olhos do
homem e o mundo levanta véus e diafragmas, que se preocupa de tudo a não
ser da alma [...] E tal ciência deve ser ciência socrática, reforma da alma,
renovação interior. Os studia humanitatis possuem isto, eles abrem, para
além dos olhos do corpo, a mente, renovando o homem de modo que possa
compreender as coisas na raiz de sua verdade. Aqui, de fato, se implanta a
polêmica contra os naturalistas, médicos, cientistas, Averróes, Paris, que
destruiu Assis: a compreensão do mundo se dá através da alma e Deus, e não
vice-versa: a compreensão das coisas é alcançada não as removendo de suas
respectivas bases, mas numa imersão no fogo daquela vida de caridade
universal a partir da qual as coisas floresceram7.
Considerando que a partir de 1350 seus escritos encontram-se regularmente imersos
em profundas reflexões religiosas e autoavaliações que nos ajudam a verificar o verdadeiro
modo de filosofia para Petrarca, iniciaremos a leitura crítica do diálogo Secretum. Este
diálogo nos parece sua produção mais significante no que se refere à representação de si,
discussão dos conflitos espirituais, valorização do ato de meditar como o exercício filosófico
e potencialidade da presença agostiniana e platônica na filosofia de Petrarca, que, como
4 Fam IV,5. Petrarca segue o estilo das Familiares de Sêneca, onde o valor informativo familiar é modesto e as
cartas servem mais como pequenos tratados monográficos. PETRARCA, Francesco. Delle Cose Familiari,
tradução ao italiano por FRACASSETTI, Giuseppe. Firenze: Le Monnier, 1863, v.1 e v.5 de 1867. 5 PETRARCA, Fam IV, 16.
6 Idem.
7 GARIN, E. Storia della Filosofia Italiana, V.I. Torino: Giulio Einaudi, 1966, p. 248-249.
4
previamente apontado, será, entre outros elementos, utilizado como arsenal em sua crítica à
escolástica.
1.1. Sob a luz da Verdade
A repercussão desta obra, já cem anos após sua morte, pode ser verificada pela
tiragem das opere varie de Petrarca em 1501 por Francesco Mazali, na qual o Secretum estava
incluso: mil cópias8, quantia grande para a época, ampliando as edições anteriores feitas em
manuscrito, que chegaram ao número de sessenta9. O livro teria sido composto não para uma
futura publicação, mas na esperança de que “em qualquer momento que eu o lesse, pudesse
experimentar novamente o prazer que tive na própria conversa”, evitando assim os “lugares
onde homens se reúnem”10
.
Este diálogo trata majoritariamente sobre a miséria humana. Podemos classificar o
escrito dentro do gênero de diálogo socrático, que propõe, através da reflexão pessoal
realizada pelos participantes, uma investigação da verdade e valor das opiniões utilizando
como material suas próprias experiências. O uso do gênero do diálogo no final da Idade
Média e início da Idade Moderna se dá principalmente na apresentação de questões morais de
maneira didática ao público11
. De acordo com Van Rossem, um importante fator de distinção
entre este método e outras formas de conversação como o debate é a proposta de se refletir
sobre a temática levantada de maneira cuidadosa e profunda12
.
O livro tem início com a visita inesperada que a figura da Verdade faz a Petrarca,
introduzindo-o ao personagem de Santo Agostinho. Esta alegoria é mobilizada por Petrarca
numa função metafórica. Assim, a Verdade possui, no desenrolar da conversa, a função de
8 DIONISISOTTI, Fortuna del Petrarca nel Quattrocento, in <IMU”, XVII (1974), p. 66.
9 MARTINELLI, Sulla data del Secretum del Petrarca, in Critica letteraria, 13. Loffredo Editore: Nápoles,
1985. p. 434. O autor diz que essa publicação era extremamente notável para a época, sendo uma vistosa
representação do alcance da área editorial possibilitada pela explosão da “Galassia Gutemberg”, p. 435. 10
PETRARCA 1955, p.3. 11
KRISTELLER, Eight Philosophers of the Italian Renaissance, Stanford University Press: 1964, p. 151. 12
VAN ROSSEM, Que és um diálogo socrático?, Revista acadêmica P@kenredes. Volume I, n9. p. 3. Ainda
sobre o método socrático de diálogo, ele diz o seguinte sobre sua estrutura e o efeito esperado: “La estructura de
un diálogo socrático varía de acuerdo con la época y el contexto, pero el elemento común a casi todas las
propuestas es que un grupo analice una cuestión inicial. Esta cuestión puede ser elegida de antemano por la
persona que dinamiza el diálogo (en adelante, el facilitador) , aunque es preferible que los participantes elijan
la pregunta por sí mismos. Las formas en que los participantes encuentran una pregunta adecuada que les
interese de verdad varían según la creatividad del facilitador, la tradición y el contexto en el que se desarrolla
el diálogo.[…] El efecto es que uno ya no busca la respuesta fuera de sí mismo, sino que se acerca al
autoconocimiento”, p. 4.
5
levar a luz às trevas, de trazer de volta, através da memória, ideias que já teriam sido
compreendidas, mas que foram escurecidas pelas práticas terrenas e entrega às paixões. O
Homem, para conhecer Deus, não precisaria imitá-lo, mas sim retornar a Ele num movimento
de ascensão que se daria através de um dom divino disponível a todos, mas que poucos se
dedicam a cultivar. Deste modo a alma, e não ao corpo, entre dúvidas e dores similares às do
parto, garante lentamente o acesso à Verdade.
É possível também relacionar esta estratégia praticada pelo personagem de Agostinho
à doutrina formulada por Platão no diálogo Mênon e na República: a de amnésia, de
movimento de retorno às Formas Primeiras, como aqui apresentamos:
...se alguém forçasse a olhar para a própria luz [luz esta que representa a
Verdade, o Bem, as Formas Ideais], doer-lhe-iam os olhos e voltar-se-ia,
para buscar refúgio junto dos objetos para os quais podia olhar, e julgaria
ainda que estes eram na verdade mais nítidos do que os que lhe mostravam
[...] agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, via com
mais perfeição [...] O antro subterrâneo é o mundo visível. O fogo que o
ilumina é a luz do sol. O cativo que sobe à região superior e a contempla é a
alma que se eleva ao mundo inteligível. [...] Nos extremos limites do mundo
inteligível está a ideia do bem, a qual só com muito esforço se pode
conhecer, mas que, uma vez conhecida, se impõe à razão como causa
universal de tudo o que é belo e bom, criadora da luz e do sol no mundo
visível, autora da inteligência e da verdade no mundo invisível, e sobre a
qual, por isso mesmo, cumpre ter os olhos fixos para agir com sabedoria nos
negócios particulares e públicos13
.
Percebemos, portanto, a forte presença de dois elementos platônicos em Secretum: a
metafísica da luz e o processo de reminiscência, que mediam a conversa de Petrarca com
Agostinho, representante da doutrina cristã e do estágio espiritual a ser alcançado por
Petrarca.
Ainda no que se refere à representação da Verdade no Secretum, podemos dizer que
semelhante alegoria é utilizada por Boécio (480- após 524) em seu famoso De Consolatione
Philosophiae14
, texto que possui igualmente fortes influências platônicas e agostinianas15
, sob
13 PLATÃO. A República. Tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2001, p. 316-317. 14
BOÉCIO, De consolatione philosophiae. Tradução de Pablo Masa, Prólogo e notas de Alfonso Castaño Piñan.
Buenos Aires: Aguilar Argentina, 1964. 15
“Es continua la influencia del pensamiento platónico en la acentuación del carácter inefable del ser divino y
su absoluta bondad, de la tendencia de todas las cosas hacia Dios, del valor inmenso del alma y su
inmortalidad, de la distinción del conocimiento racional y las apariencias, de la necesidad de Dios para
6
o nome de Sabedoria. A estratégia que as duas figuras praticam com os atormentados autores
dos textos é a mesma: tanto a Verdade quanto a Sabedoria possuem uma luz que, num
primeiro momento, pode doer à vista humana, mas que, uma vez a ela habituada, torna
possível trazer da memória ideias verdadeiras – formas ideais - e encontrar o Bem, num
processo de recuperação do conhecimento perdido que restaura a alma16
assim como quando
um médico oferece remédio à dor17
.
A recuperação das ideias uma vez esquecidas se dá numa analogia à recuperação da
saúde pela manipulação de medicamentos. Há uma espécie de inevitabilidade que marca o ato
de nascimento, de vir ao mundo como espírito e matéria: nascer é se enfermar, é participar de
uma experiência contaminada por sentidos enganadores. Portanto, assim como não existe
pessoa adoecida que não deseje profundamente a restituição de sua saúde, também não existe
pessoa tão negligente que não busque fervorosamente restituir sua alma ao estado de graça.
Consequentemente, a meditação filosófica proporciona um encadeamento de níveis de
ascensão: ela produz um desejo por cura, que gera a busca por virtude, iniciando a salvação.
Deste modo a alma, assim como o corpo, é passível de ser curada. Contudo, aquilo que
restaura sua sanidade não é qualquer coisa de material, mas sim o processo de retorno a Deus,
à Primeira Sabedoria: a meditatio mortis.
Primeiramente, o personagem de Agostinho explica que, a fim de evitar as
angústias da vida mortal e elevar a alma, deve-se meditar sobre a morte e a miséria
explicar el mundo y su orden admirable, del alma del cosmos, de la reminiscencia de las ideas, etc. En su
doctrina de la presciencia divina y la libertad de la voluntad humana, recoge la influencia de Jámblico y Proclo,
pero no acepta la teología panteísta y emanatista de Plotino, sino que subraya su posición teísta y de él no toma
apenas ningún elemento.” E transitando desta à agostiniana: “rechaza, por ejemplo, la sensualista teoría del
conocimiento de los estoicos y admite, en cambio, la teoría de la reminiscencia platónica en una forma que es
similar a la teoría agustiniana de las incommutabilia vera. […] Y, por fin, citaremos la influencia de San
Agustín, patente en el matiz que da Boecio a la teoría de la reminiscencia y, sobre todo, en la notable
investigación que en el libro V, prosa 6, dedica a la eternidad y el tiempo. En ella completa el agudo análisis
agustiniano (Cf. Confesiones, II, 14-31) que había señalado, sobre todo, el carácter subjetivo de la conciencia
del tiempo, condicionada por la “expectatio, attentio et memoria”. Ibidem, p. 6. 16
A função de trazer de volta à memória o conhecimento uma vez aprendido recai sobre Agostinho, que
pergunta: “Como pudestes ter esquecido todos os sábios preceitos da Filosofia, os quais declaram que homem
algum pode ser feito infeliz pelas coisas que você recita?”. PETRARCA, F. 1955, p. 8. 17
BOÉCIO, 1964, p.12: “Pero no es ahora tiempo de lamentos —dijo la mujer aparecida—, sino de poner el
remedio”; p. 15 “¿Has oído estas palabras? —me dijo la Filosofía—. ¿Han penetrado en tu espíritu, o bien te
has quedado tan insensible como el asno ante la lira? ¿Por qué lloras? ¿Por qué fluyen de tus ojos esos arroyos
de lágrimas? Si buscas remedio a tu mal, preciso es que descubras la herida”; e também p. 21 “¿Me permitirás,
pues, que tantee y pruebe tu espíritu por medio de preguntas para saber el tratamiento que te conviene?”.
7
humana, deixando que o pensamento sobre as mesmas penetre em todo o ânimo18
.
Petrarca, contudo, revela não compreender o que isso realmente significa, fazendo com que
Agostinho discorra por páginas seguidas sobre o tema de modo profundo, assustador,
detalhado e belo, ensinando cada nível de reflexão para demonstrar a maneira correta de se
pensar sobre a morte. As estratégias são as seguintes: trazer da memória imagens e cheiros
de corpos mortos e imaginar a si mesmo morto e os efeitos da morte em cada parte do
corpo, a fim de compreender o que significa este nome e tornar-se acostumado com a ideia
da morte, que é certa para todos, apesar de incerta sobre quando chegará.
De acordo com o personagem de Agostinho, algumas ordens religiosas, inclusive,
incentivariam seus membros a assistirem defuntos serem lavados e vestidos para o enterro
a fim de fazê-los refletir sobre a morte e “assustar da mente daqueles sobreviventes
qualquer esperança para este mundo transitório”19
. Em seguida, ele descreve exatamente
como se imaginar morto:
Devemos imaginar os efeitos da morte em cada parte de nossa estrutura
corpórea, as extremidades frias, o peito suando com febre, os lados latejando
de dor, os espíritos vitais correndo cada vez mais lentamente enquanto a
morte se aproxima, os olhos inchados e marejantes, cada olhar preenchido de
lágrimas, a testa pálida e marcada, as bochechas penduradas e côncavas, os
dentes fixados e descoloridos, as narinas encolhidas e afiadas, os lábios
espumando, a língua imunda e imóvel, o céu da boca murcho e seco, a
cabeça lânguida e o peito ofegante, o murmúrio rouco e o suspiro triste20
.
Contudo, Petrarca continua inseguro sobre como saberá se a meditação chegou ou
não ao fundo da alma, como se espera que seja, e assim o personagem de Agostinho
pondera que quando se medita sobre qualquer tópico, mas não se comove verdadeiramente,
é certo que a meditação foi em vão. Ele descreve quais devem ser os efeitos da meditação
correta:
...se no ato da meditação você se encontrar de repente enrijecido, se você
tremer, se empalidecer, e sentir como se já tivesse suportado suas dores; se,
ao mesmo tempo, você sentir como se estivesse deixando seu corpo para
trás, e fosse forçado a prestar contas diante do Tribunal do eterno juízo, se
todas as palavras e atos de sua vida passada não fossem omitidas ou deixadas
18 PETRARCA, 1955, p.9.
19 Idem.
20 Ibidem, p.18.
8
de lado; que nada, jamais, deve ser esperado de boas aparências ou status
social, nada da eloquência, ou da riqueza, ou do poder: se você realizar que
este Juiz não aceita subornos e que todas as coisas aparecem nuas e claras
perante seus olhos; que a morte em si não se freará por nenhuma apelação;
que ela não é o fim dos sofrimentos, mas apenas uma passagem: se você
imaginar para si milhares de formas de punição e dor, o barulho e
lamentação do Inferno, os rios sulfúricos, a escuridão densa, as Fúrias
vingativas, numa palavra, a poderosa maldade em todos os lados que a
escuridão cobre; e, o que é o clímax deste horror, que a miséria não conhece
fim, e o desespero, portanto, é perpétuo desde o tempo em que é passada a
misericórdia de Deus; se, eu digo, todas essas coisas se elevarem diante de
seus olhos de uma só vez, não como ficções mas como a verdade, não como
sendo possíveis mas inevitáveis, e certamente obrigadas a chegarem, sim,
agora mesmo, na sua porta; e se você pensar nestas coisas, não
superficialmente, não com desespero, mas repleto de esperança em Deus, e
de que sua forte mão direita é capaz de arrancar-te para fora de tamanhas
calamidades; se você mostrar-se desejoso de ser curado e ascender; se você
se unir à sua finalidade e persistir em sua conduta, então você estará certo de
que não meditou em pecado”21
.
A descrição desses efeitos é importante porque ela não apenas explica como se dá a
prática da meditação, mas também como a pessoa deve se sentir após alcançar essa
instância atemporal da alma. Assim, o que se espera da meditação é que ela permita ao
homem considerar - não de forma ordenada e cronológica, mas sim numa experiência
mística na qual todo o tempo e toda a ordem dos acontecimentos se concentram num único
instante de revelação - os horrores intermináveis da vida terrena, o sofrimento e as chamas
do Inferno e a bondade e a misericórdia de Deus22
.
Através desta contemplação, a alma deseja ser curada e ascender, o que é um efeito
extremamente importante, uma vez que desejar a virtude é a segunda atitude que, atrelada
à meditação, permite que a alma de fato se eleve à Verdade23
. Através da autoavaliação
guiada por Agostinho, num processo que novamente se assemelha ao que acontece em De
Consolatione Philosophiae, Petrarca primeiramente queixa-se de diversos elementos da
vida humana que trazem a ele e aos outros uma grande infelicidade, como a penúria, dor,
doença, desgraça, morte, etc. O personagem de Agostinho retoma aqui os conceitos de
virtude e vício em Cícero, para quem nada é oposto à verdadeira felicidade que não seja
21 Ibidem, p. 19.
22 Boécio chega à mesma conclusão. “Tú, igualmente, si quieres percibir la verdad en todo su fulgor y avanzar
por el camino recto, deja a un lado las bulliciosas alegrías, aleja de tu corazón el temor, desecha la esperanza,
ahuyenta todo dolor. Bajo el dominio de esas pasiones, pesada niebla se cierne sobre el espíritu, que se siente
como atado con fuertes cadenas.” BOÉCIO, 1964, p.23. 23
Ibidem, p. 9.
9
igualmente oposto à verdadeira Virtude24
, e nenhum homem pode ser infeliz a não ser por
escolha própria, na medida em que, através do desejo pela virtude, ele inicia a caminhada
em sua direção25
.
A meditação aparece, portanto, como um fator de extrema importância no que se
refere à busca pela Verdade sobre o mundo exterior e sobre si mesmo, que é uma só, assim
como para alcançar a humildade e serenidade que permitirá ao Homem viver
bondosamente. Além disso, é ela que garante o desejo por virtude, sem o qual não há
felicidade. Neste sentido, seria coerente afirmar que para Petrarca o conhecimento mais
alto a respeito das coisas se alcança através de uma experiência mística, introspectiva,
numa jornada interior que permite a elevação da alma e o acesso à Verdade.
A temática da meditação sobre a morte, contudo, não é original no poeta e pode ser
mapeada desde a filosofia antiga. O princípio de meditatio mortis, ou momento mori,
sugere que a prática da Filosofia é nada além de uma preparação para a morte alcançada
através da meditação, treinamento ascético de separação da alma em relação ao corpo, cujo
conhecimento constantemente se corrompe devido à confusão causada pelos sentidos. Este
exercício antecipatório permitiria uma aceitação melhor da morte, condição necessária para
uma vida feliz de acordo com Platão26
, Cícero27
e com a própria Bíblia28
, transformando a
vida dos homens de modo a torná-los bons – o que é, enfim, o objetivo da Filosofia. De
acordo com diversos estudiosos de Petrarca29
a principal mensagem no Secretum é, sem
dúvidas, a proposta de meditatio mortis como caminho único para o conhecimento do
Bem.
24 “Por pessoas de bem entendo as que reúnem todas as virtudes. Por felizes, entendo as que possuem todos os
bens, sem nenhuma mescla de males. Pois não creio que a felicidade nos permita outra noção senão o conjunto
de todos os bens, com exclusão de todos os males. Ora, seria em vão que a virtude aspirasse à felicidade, se fora
dela houvesse algum outro bem”. CÍCERO. A virtude e a felicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.31. 25
PETRARCA, 1955, p. 9. 26
Diz Sócrates: “Embora os homens não o percebam, é possível que todos os que se dedicam verdadeiramente à
Filosofia, a nada mais aspirem do que a morrer e estarem mortos”, in: PLATÃO, Fedon, Versão eletrônica do
diálogo platônico “Fedão”. Tradução: Carlos Alberto Nunes, grupo Acrópolis, p. 6. Texto digitalizado:
http://br.egroups.com/group/acropolis/. 27
“Portanto, a vida de todos os filósofos é comentário sobre a morte”, in: CÍCERO, Tusculanae Disputationes,
Liber Primus, XXX, 74, Internet, http://www.thelatinlibrary.com/cicero/tusc1.shtml 28
Eclesiastes 8:8 e 9:5-6; Jó 10:18-22; 1Co 15:20; entre outros. 29
MARTINELLI, 1985, p. 435. RICO, Francisco, Lectura del Secretum, in: Vida u Obra de Petrarca, v. I.
University of North Carolina, 1974, p. 20. E por fim BARON, Hans, Petrarch’s Secretum: its making and its
meaning. University of Cambridge: Massachusetts, 1985, p. 44.
10
Assim, amparado por elementos retirados das tradições católica, platônica e latina,
o Agostinho de Petrarca é grande instrutor deste modo de filosofia capaz de apaziguar os
temores do homem e elevar sua alma. De acordo com Baron, “Petrarca consegue
incorporar com sucesso o esquema casual num contexto que enfatiza a meditatio mortis
como passo indispensável em direção à educação de si”30
ao longo do diálogo, o que
parece ser a primeira e mais importante decisão para sua mutatio vitae. Portanto, é por
meio de um diálogo socrático direto com a tradição católica - que no texto se representa no
personagem de Agostinho, e que por sua vez é introduzido por elementos místicos
platônicos e morais ciceronianos - que Petrarca apresenta em Secretum sua proposta
filosófica transformadora do Homem.
1.2 – O debate da datação do Secretum e a dualidade na obra de Petrarca
De acordo com Martinelli, grande especialista nos estudos petrarcheschi, uma
releitura histórica correta do livro Secretum deve ter como ponto fundamental de referimento
sua data de composição. Até o final dos anos 60, a colocação cronológica do livro mantinha a
solução tradicional proposta por Sabbadini em 1917: de que o diálogo teria sido composto em
1342, com algumas revisões posteriores. Nesta época, contudo, a teoria inicial passa a ser
contestada por Francisco Rico, que argumenta que a ideia de um paralelismo cronológico
entre ação e redação no Secretum é falaciosa. Em sua opinião, o diálogo representa - para
além da importância e profundidade que os temas tratados pareciam exercer na vida de
Petrarca - um exercício de memória, pois o poeta mobilizaria um personagem com seu
próprio nome para representar quem ele havia sido em anos anteriores, realizando uma
reflexão madura sobre suas antigas atitudes que só poderia ter sido possível num momento
posterior.
É certo que o explicit do texto editado por Tedaldo della Casa, responsável pela
primeira transcrição completa das obras de Petrarca, indica três datas diferentes: 1353, 1349,
134731
. A crítica tradicional orientada por Sabbadini defende que o poeta redigiu finalmente
os três livros em 1358, partindo de retoques que teriam sido dados em 1347 no Livro I, 1349
no Livro II e 1353 no terceiro e último livro. Contudo, Rico alega que essas datas se referem
30 BARON, 1985, p. 45. Todas as citações apresentadas no trabalho, inclusive esta, foram traduzidas livremente
pela autora. 31
Biblioteca Laurenziana, Florence, 26 sin. Copiada ao final da década de 1370.
11
não a retoques, mas sim a redações e refundições exatas do corpo inteiro do texto, e que
teriam sido realizadas de modo inverso ao proposto pela interpretação em vigor. Petrarca teria
anotado primeiramente o ano em que o Secretum sofreu sua mais ampla e decisiva
relaboração, 1353. A edição de 1349 se referiria a uma refundação intermediária do texto, e a
de 1347 à sua redação inicial, seguindo, assim, uma hierarquia de importância32
.
A crítica em geral aceita com quase unanimidade a composição entre o outono de
1342 e inverno de 1343. Em relação aos três diferentes anos marcados no explicit, Sabbadini,
por exemplo, afirma que se referem aos anos em que o texto original de 1342-43 foi
enriquecido, mas não profundamente modificado, e que a assinatura final fora preparada em
1358, cinco anos após Petrarca se mudar da Provença para Milão. Deste modo, a tradição
acredita que o Secretum foi escrito antes da composição do Rerum memorandarum libri, em
junho de 1343.
A quantidade de historiadores e filólogos que defenderam a composição original por
volta de 1342-1343, próxima à redação do Africa e do De viris illustribus, é vastíssima:
Baldelli, Korting, Voigt, Sabbadini, Foresti, Tatham, Calcaterra, Bosco, Billanovich, Wilkins.
De modo geral, podemos dizer que seu posicionamento estava baseado nos seguintes
argumentos de origem filológica: a utilização do advérbio nuper logo na Introdução, que
significaria recentemente ou há pouco tempo, o que impossibilitaria a confecção do texto por
um Petrarca “amadurecido”, o contato do poeta com o exemplar da Naturalis historia de
Plínio, o Velho33
, um conhecimento direto do diálogo Fédon de Platão, a insistência nas
tópicas ócio/amor/glória, que são refletidas em outros escritos de 1343 (canção I’vo pensando,
por exemplo), a posse das cópias das Tusculanae de Cícero34
e duas citações diretas das ad
Atticum de Cícero, com as quais ele não teria tido contato material após 1345.
Francisco Rico, contudo, está na contramão da crítica tradicional e propõe que
Petrarca poderia ter, por exemplo, movimentado uma data falsa em seu discurso de forma tão
lícita quanto sua mobilização alegórica da figura da Verdade que cai do céu para dar início à
conversa35
: ambos seriam técnicas de construção de texto. Após contestar alguns dos
principais argumentos de defesa da data de 1342, Rico levanta sua hipótese de uma datação
32 RICO, 1974, p. 15.
33 Que teria sido consultada na biblioteca papal da Provença.
34 Que ele havia deixado em Valchiusa.
35 Ibidem, p. 9.
12
em 1353 baseando-se em motivos da evolução filosófica e espiritual de Petrarca. São
mobilizados por ele certos motivos “psicológicos”, como o desejado afastamento à cidade de
Avinhão, refletido na Familiar VI, 3 e nos sonetos 114 e 117, sua estadia em Vaucluse36
, o
nascimento da filha Francesca37
e o envio do irmão ao mosteiro dos Cartuxos38
.
Os personagens de Francesco e Agostinho no diálogo teriam características opostas,
complementares, que evidenciariam um distanciamento temporal, filosófico e espiritual entre
eles: a saber, um estoicismo e destaque da ratio na busca da Verdade em Agostinho por um
lado, e uma moral peripatética, baseada nos sentidos e costumes na figura de Francesco39
por
outro. O personagem de Agostinho representaria a maturidade de Petrarca e o personagem de
“Francesco” sua juventude. Assim, ao redatar o Secretum Petrarca encarnaria a tensão entre a
certeza da ratio e as impressões enganadoras do sensus. O diálogo apontaria para um “sutil
intercâmbio de personalidades e cruzamento efetivo de planos temporais, como um jogo de
espelhos cujas imagens se refletem através dos tempos”40
, uma vez que Francesco e
Agostinho conteriam etapas distintas, porém complementares, da trajetória espiritual de
Petrarca.
Sob essa interpretação, o personagem Francesco representaria um estágio
espiritualmente já superado, e Agostinho o estágio incessantemente perseguido agora, na
maturidade. Imprescindível causa deste acontecimento teria sido a estadia curta com o irmão
no mosteiro e o aprofundamento da leitura do De vera religione. Rico escreve:
A concentração na questão dos phantasmata e a semelhança ou
complemento no tratamento dos mesmos permitem conjecturar que o
Secretum e o De otio religioso (cujas versões primeiras, segundo todos os
indícios, são quase contemporâneas) respondem a um mesmo período de
interesse pelo De vera religione: período que deve se situar até 1347.
Petrarca havia lido a obra pela primeira vez em junho de 1335. O Francisco
do Secretum, contudo, queria fazer crer que o tratado agostiniano chegara
às suas mãos nas datas fictícias em que transcorrem as ações do diálogo41
.
36 Abril de 1343.
37 20 de julho 1343. Não se conhece o nome da mãe da criança, mas sabe-se que Petrarca manteve uma relação
de proximidade com a filha. Inclusive, “Quando Boccaccio foi a Veneza na primavera de 1367, conhece Eleta,
neta de Petrarca que portava o nome de sua bisavó [mãe de Petrarca]”. MARTINELLI, 1985, p. 472. 38
Abril de 1343. 39
RICO, 1974, p. 55. 40
Ibidem, p. 77. 41
Ibidem, p. 113.
13
Com algumas exceções como a apresentada acima, sua argumentação pauta-se
majoritariamente num aspecto subjetivo da escrita de Petrarca que nos parece impossível de
acessar. Entretanto, nos parece justa e possível, por exemplo, a identificação temática que
Rico propõe entre Secretum e outras duas obras: De otio religiosorum e De vita solitaria,
ambos iniciados entre 1346/1347 e concluídos entre 1356/1357, no que se refere à busca por
isolamento das cidades e à valorização da meditação. Além disso, a própria questão da crítica
à escolástica e sugestão do método de meditação como mais útil ao acesso à Verdade parece
se tornar um tema recorrente após meados de 1340, orientando a composição de obras como a
Invective contra medicum (1355) e o famoso De sui ipsius et multorum ignorantia (1368).
Comparando seus textos de antes de 1345, como Africa, De viris illustribus e De
rerum memorandum libri, percebemos certa predominância da narração objetiva, o
entusiasmo pela grandeza de Roma e implacável imitação dos modelos clássicos. Já nas obras
pós-1345 os aprendizados retirados do modelo latino clássico parecem servir para outros
interesses: indagação de questões morais, reflexão sobre a vida e a morte, conciliação destes
com referências patrísticas e medievais. Para Rico42
, esta nova prosa de Petrarca incorporará
um acordo entre classicismo e cristianismo, revocando a docta pietas de São Jerônimo43
. Essa
conciliação entre doutrinas latinas e cristãs, da ética com a técnica no discurso, se dá
especialmente no âmbito da filosofia moral, um dos cinco pontos dos studia humanitatis44
, e
concordamos que ela é extremamente importante na produção de Petrarca. De acordo com
Rico, uma leitura aprofundada dos clássicos garantiria reflexões espirituais úteis a qualquer
cristão, uma vez que os problemas morais ali expostos se estendem à dimensão religiosa.
A exposição de Rico, que se posiciona na contramão da tradição aceita, recebeu as
mais diversas críticas. Hans Baron, por exemplo, se coloca ao seu lado na defesa de uma
datação pós-1342 para o texto principal de Secretum. Ele chega à conclusão de que “Petrarca
42RICO, 1974, p. 490.
43 Docta pietas representa, tal como proposto por São Jerônimo, a virtude intelectual e a própria erudição do
estudioso cristão. ETHAN, Daniel. Florence and Beyond: Culture, Society and Politics in Renaissance Italy, in:
RUMMEL, Erika. Desiderius Erasmus. Continuum: London, 2004, p. 117-118. Texto digitalizado em:
https://books.google.com.br/books?id=lqCYBvufYj0C&pg=PA118&lpg=PA118&dq=docta+pietas+jerome&so
urce=bl&ots=yCKW0Psg9f&sig=sr9ZsRRJyMDHlkBzSJdbLg40cSk&hl=pt-
BR&sa=X&ved=0ahUKEwiE8K7L8tDPAhUGEZAKHUMlAVMQ6AEIKTAC#v=onepage&q=docta%20pieta
s%20jerome&f=false 44
Para além da retórica, gramática, história e poética.
14
mudou substancialmente ao menos três extensas seções desse texto”45
, ressaltando novamente
a interdependência entre Secretum e o De vera religione, assim como a relação entre estes
textos e a preparação do De otio religioso. Baron defende que diversos autores clássicos com
os quais Petrarca não era familiar antes de meados da década de 1340 são citados no Secretum
sem qualquer sinal de terem sido ali tratados por intermédio de outros autores, e também
realiza uma série de analogias entre o diálogo e as epístolas Familiares já citadas por Rico46
.
No que se refere, entretanto, ao argumento defendido por Rico sobre o personagem de
Agostinho representar um Petrarca maduro e de tendências estoicas, Baron coloca-se contra47
.
Uma pergunta importante para nossa pesquisa, levantada através dessa revisão, é a
seguinte: seria o Secretum, como propõe Rico, um embate entre o Francesco aristotélico,
corrompido pelos sentidos, e um Agostinho estoico? Sobre a hipótese principal de Rico
devemos especificar, primeiramente, a qual uso da doutrina estoica ele estaria se referindo ao
identificá-la em Petrarca, o que o próprio autor não faz. Certamente ele não poderia estar
falando do estoicismo de pórtico ou antigo48
e nem do estoicismo médio49
. O estoicismo ao
qual poderíamos nos referir tratando de um humanista como Petrarca é o imperial (I-III d.C),
com assimilação de elementos da ética cínica50
. Importantes representantes desta fase são os
romanos Sêneca, Epíteto e o Imperador Marco Aurélio, que dissertam sobre a ética exaltando
a liberdade e dignidade do homem, que deve ser capaz de se deparar com a morte de forma
serena aceitando desde sempre a perenidade do mundo51
.
Neste caso, não seria inviável sugerir que a meditatio mortis proposta pelo
personagem de Agostinho a Petrarca, especialmente no livro I, segue orientações do
45 BARON, 1985, p. 4.
46 Devido às limitações de página, não é será possível contemplar aqui esta discussão em toda sua profundidade.
Ela é tratada extensivamente entre as páginas 110-114 (op. cit). 47
O principal ataque à proposta de Rico, contudo, vem de Bortolo Martinelli, no seu Sulla data del Secretum,
acusando-o de manipulação de texto e dizendo que, no trabalho de Rico, a ciência cede posto à opinião. Ele
acredita que o artifício utilizado por Rico de transformar a revisão de três textos em três redações novas é
falacioso e se trata de um caso de petitio principii, o que já esvaziaria o valor de sua argumentação desde o
início. 48
Que se refere à sistematização e expansão da doutrina estoica ensinada pelo mestre Zenão de Cítio, ao longo
dos séculos III-II a.C. 49
No qual há uma apropriação de elementos neoplatônicos e epicuristas ao longo dos séculos II-I a.C. 50
Escola helenística fundada por Diógenes de Sinope (404 ou 412 a.C - 323 a.C), que propunha uma reforma no
estilo de vida através do retorno à natureza e libertação das convenções políticas, sociais e culturas. Defendia
uma convergência entre filosofia e vida, na busca de eliminação das necessidades supérfluas do Homem. 51
Não sobreviveram obras completas de qualquer filósofo estoico das duas primeiras fases. Apenas textos
romanos da última fase chegaram completos até os dias atuais.
15
estoicismo latino. Contudo, as observações de Baron sobre o problema nos parecem muito
mais coerentes: nas primeiras páginas do livro I do Secretum, o personagem de Agostinho
emerge não como um filósofo semi-estoico, mas como um professor religioso e
minuciosamente patrístico52
. É certo que o conflito proveniente das paixões humanas é
apontado pelos estoicos desde Zenão; contudo, Baron identifica versos virgilianos em
Agostinho que se referem ao mesmo conflito53
. Sendo assim, a melhor maneira de responder a
esta pergunta não é ressaltando um estoicismo em Petrarca, mas sim um possível estoicismo
na obra de Agostinho54
.
É certo que o debate sobre a data do Secretum é extremamente longo e detalhado, e o
que desejamos apresentar aqui é uma resumida revisão de seus pontos mais importantes. Essa
releitura, contudo, nos permite considerar a relevância que a obra em específico possui dentro
de toda a produção petrarchesca e com isso reforçar a magnitude da presença de elementos
agostinianos e platônicos em sua filosofia.
Verificamos, assim, a exposição dos seguintes temas em Secretum: exposição da
miséria e fraqueza humana, introspecção, disposição socrática (através de Agostinho) ao
conhecimento de si, visão mística, rememoração platônica da Verdade, desvalorização das
impressões físicas e evidenciação da sabedoria interior. O conflito humano constante entre o
corpo – com seus prazeres – e a alma – em sua busca pela Verdade - só pode ser resolvido
quando é feita a escolha pelo caminho do conhecimento de si, da meditação e do desejo da
virtude.
Percebemos que a distração causada pelos prazeres do corpo na busca pela plenitude
espiritual e sabedoria é, como assinalado desde o início, um dos tópicos mais marcantes da
filosofia de Petrarca. De acordo com Rico, o mal profundo do protagonista Francesco em
Secretum é o engano sobre si, a perversa opinio e a confusão causada pelas falsas imagens
que nublam a vista55
: deste modo, apesar de diferentes vícios serem apontados ao longo das
diversas páginas do diálogo, fica claro que o pior erro humano, aquele no qual frequentemente
52 BARON, 1985, p. 34.
53 No livro XIV da Cidade de Deus Agostinho explora a ideia de pecado original como fonte de vida carnal e das
paixões viciosas, apresentando diretamente argumentos platônicos e estoicos (capítulos VII e VIII). 54
Ao refletirmos sobre a apropriação de elementos agostinianos nos discursos morais e espirituais de Petrarca
devemos também considerar que ela é seletiva, como qualquer apropriação. O Agostinho que claramente
identificamos em Secretum é o das Confessiones e De vera religione, não o teólogo dogmático que servirá de
matéria para as discussões escolásticas e suas incessantes quaestione disputatae. 55
RICO, 1974, p. 22
16
incide Petrarca, é mentir a si mesmo levando-se pelos sentidos, pois o homem que assim age
impossibilita a própria felicidade.
Podemos dizer, portanto, que a filosofia defendida por Petrarca parece estar
circundada por uma tensão constante entre os seguintes motivos: homem x mundo, interior x
exterior, alma x natureza, iluminação x sensação. Estes tópicos pontuam, nos limites de sua
filosofia, as congruências com a tradição agostiniana e platônica, assim como os desvios
perante a tradição aristotélica. O estudo mais profundo de sua crítica à medicina certamente
possibilitará a compreensão destas tensões de maneira mais clara, uma vez que nos
aprofundaremos no modelo de estudo que Petrarca não considera virtuoso e enriquecedor à
alma.
Contudo, através do conteúdo já analisado, podemos propor que o conhecimento
verdadeiro para Petrarca não é derivado do contato sensitivo com o mundo, mas sim de uma
experiência de iluminação espiritual e rememoração da verdade que poderia ser descrita como
uma ascensão cognitiva. É, portanto, neste aspecto de sua filosofia que se identifica um forte
alinhamento tanto com a agostiniana quanto com a platônica, uma vez que ambas se
constroem sobre um ceticismo perante os sentidos e a percepção sobre o mundo que deriva
deles.
Considerando a exposição realizada até agora, verificamos também que a discussão
que o poeta levanta em seus escritos sobre o conhecimento verdadeiro e virtuoso produz
fortes dissonâncias em relação à filosofia escolástica, que se referem tanto ao processo de
produção de conhecimento sobre o mundo (conflito em relação ao modo de produzir
conhecimento escolástico, que, por ser silogístico, não se aproxima do exercício construtivo
da meditação), quanto ao nível moral (se produz ou não homens bons) e ao espiritual (se eleva
ou não a alma a Deus).
Através deste estudo espera-se ter comprovado que a filosofia proposta por Petrarca
em sua obra é aquela existente em Deus: imutável e eterna, porque Deus é sempre igual a si
mesmo e não conhece a passagem do tempo. Tudo o que há para se conhecer, portanto, é
Deus, pois o amor a Deus é amor à Sabedoria56
. Deus deve ser o ponto mais alto da vontade
humana57
; assim, é ele que se encontra quando se medita e quando se deseja a virtude. Da
56PETRARCA, Fam X,5.
57PETRARCA, 1906, p.21.
17
mesma forma, o amor a Deus deve estar acima do amor a qualquer tipo de conhecimento
mundano58
, porque é o amor a Ele que faz dos homens realmente bons, e ser bom é a única
coisa que o filósofo deve necessariamente aprender.
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VAN ROSSEM, Que és um diálogo socrático?, Revista acadêmica P@kenredes. Volume I,
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58 Idem.