mata-borrÃo - peças soltas – pai vai atrás, tropeçando na renda. joão!! mÃe ai o meu rico...
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MATA-BORRÃO
Personagens
JOÃO “Spock”, estudante
FILIPA, estudante
RICARDO “Califórnia”, estudante
LUÍS “Mau-mau”, irmão de Filipa, estudante
Um A'JO, feminino, e seus ajudantes
Um DIABO, feminino, e seus ajudantes
GIL VICE'TE
A FADA DOS LOBOS
DUAS RAPARIGAS, estudantes
PAI
MÃE
ACTO Ú�ICO
Uma noite de acampamento na serra, numa casa da guarda à beira de um precipício. Há
uma grande janela por onde entra o luar. 'o início, porém, à boca de cena, PAI e MÃE
lêem o jornal e fazem renda como se estivessem em casa. De um quarto de adolescente ao
fundo da casa vem o ruído abafado da música em altos berros.
PAI
Lendo o jornal.
Já viste isto? Mais uma excursão que ficou presa na Serra da Estrela. Isto é que está a ser
um verão esquisito...
MÃE
Ainda bem que desistiram da ideia. Agora estavam presos, cercados pela neve e pelos
lobos.
PAI
Ó filha, já não há lobos na Serra da Estrela.
MÃE
Sei lá! Também não devia haver neve nesta altura do ano. Olha, ‘inda bem!
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PAI
Já não havia no tempo dos teus pais! Em que ano é que pensas que estamos?
MÃE
Tu é que estás a ler o jornal. Eu não me meto nessas coisas.
PAI
Olha aqui... Mostra-lhe o jornal. A mãe pega no jornal e passa-lhe a renda. O Pai tenta
fazer renda.
MÃE
Mesmo assim, ‘inda bem que o Joãozinho ficou em casa desta vez. Vão agora para a Serra,
rapazes e raparigas, a dormirem todos juntos... e com tanto para estudar. Sei lá! Eles não
têm quinze anos.
PAI
Concentrado na renda.
É pior a emenda que o soneto... Mas sempre foram para a Serra?...
MÃE
Sei lá! Olha aqui... Este rapaz parece mesmo o nosso João. Chama pelo João. Joãozinho!!
Anda cá para veres isto! João! É sempre a mesma coisa, fecha-se no quarto com a música
em altos berros... Estas férias nunca mais acabam... Mostra ao Pai, que está concentrado
na renda. Olha aqui!!
PAI
Hã?! Ajusta os óculos. Ó filha, mas isto é o nosso Joãzinho! Ele não está no quarto? Saem a
correr à procura de João. O Pai vai atrás, tropeçando na renda. João!!
MÃE
Ai o meu rico filho!!
Ao som de um tema de dança ensurdecedor, João, Ricardo, Luís, Filipa e as duas
raparigas chegam pela primeira vez ao dormitório. Há uma pequena confusão acerca da
propriedade dos sacos. As raparigas saem com as respectivas malas, mochilas e sacos de
viagem. Ricardo e Luís saem atrás delas. Filipa volta atrás para pegar num saco que
ficaria com João. Entreolham-se. Filipa sai, Ricardo e Luís chegam com mais sacos.
Procuram o interruptor da luz. João monta um telescópio. Ricardo brinca com uma
câmara de filmar. Luís fica encarregue de preparar os Shots Kalashnikov vodka servido em
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copo pequeno, com meia rodela de limão no topo, coberta de açúcar e regada com a
bebida alcoólica, a que se pega fogo. Quando o lume apaga, chupa-se o limão e bebe-se de
um só trago.
RICARDO
À janela, através da câmara.
Que altura tem isto?
JOÃO
Praí cem metros, bem medidos.
RICARDO
De lá de baixo não parece tão alto...
LUÍS
Enquanto prepara as bebidas, para João:
Isso é que é o Poço do Lobo?... Na aldeia ficávamos mais perto da excursão de espanholas.
JOÃO
Já disse que não havia lugar no parque. Tivemos sorte em ter lá ficado ontem, mas hoje ia
ficar cheio. Vais ter tempo, elas vão aos mesmos sítios que nós.
LUÍS
Tu queres é ficar agarrado ao periscópio, a ver as estrelas. Isso fazes tu em casa.
JOÃO
Daqui vê-se melhor. Vou filmar tudo.
RICARDO
Vais filmar o quê, afinal?
LUÍS
A chuva de estrelas! Dá à meia-noite.
JOÃO
Não é uma chuva de estrelas. É uma nebulosa, já te disse.
LUÍS
Ou isso.
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RICARDO
Quê?
JOÃO
Uma ne-bu-lo-sa!
RICARDO
Ne-bu... Muda de assunto. Os shots?
LUÍS
‘Tá quase! Nós é que vamos ficar enublados esta noite.
RICARDO
Um gajo que se atirasse daqui abaixo... não sobrevivia, pois não? Ficava todo aos bocados.
JOÃO
Um molho de brócolos.
RICARDO
Até mede medo, não é, Mau-mau?...
LUÍS
Se fizer muito frio, vamos lá para baixo para a aldeia!
JOÃO
O que é isto? Ouviste?
RICARDO
O quê?
JOÃO
Não estás a ouvir? Imita o uivar de um lobo.
RICARDO
Parecem lobos. Imita também.
JOÃO
Pelo menos dois... Eles cheiram pessoas à distância...
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RICARDO
Ou lobisomens. Já viste a lua? Que dia é hoje?
JOÃO
Quinta-feira!! E já passa da meia-noite. Devem ter sentido o cheiro dos shots! Aterrorizado,
LUÍS entorna os shots e corre a esconder-se dentro do saco-cama.
JOÃO
Mas isso ainda não está pronto?
RICARDO
Faz os shots, meu!! Então? Olha, vai mesmo assim! Enche três copinhos com vodka pura,
brindam e bebem. RICARDO engasga-se. Ouve!
JOÃO
Bem!
RICARDO
Este bateu! Levanta-se, eléctrico. Agarra-me, baby! Vai à janela. Kika! Pepa! Lola! O
Califórnia, o Luís Mau-mau e o Spock vieram para dominar a cena! Inspira fundo. A Serra
da Estrela é minha. Épico. Chegámos a Gouveia pela tardinha, de madrugada a torre era
nossa!... Os lobos uivavam quando pisámos a primeira neve da manhã... O inimigo tentou
resistir com todas as forças, mas nós vínhamos armados com as nossas Kalashnikovs. Roda.
Imita uma metralhadora Tacatacatacatacataca! Luís espreita de dentro do saco-cama. Eu
não tenho medo da morte... tenho medo é da autópsia! Cai, fingindo-se morto, para cima de
Luís. Atacam-no como se fossem lobos.
LUÍS
Ai!! O meu braço!! Cuidado!! Párem!
RICARDO
Antes querias cheirar as meias do Herman José ou as cuecas à Teresa Guilherme? Diz!
Tens de escolher.
LUÍS
É pá, a Teresa Guilherme... É como ir ao cu a um sargento...
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RICARDO
Tu cheiravas as meias do Herman José!? Solta-o. Que nojo! Metes-me tanto nojo, meu!
Baaa!... Eu preferia a Teresa Guilherme. De longe.
LUÍS
Magoaste-me no braço. Vê as horas. Já são horas de irmos ter com elas!!
RICARDO
Hã? O quê? Já!? Tenho de me arranjar!! A minha mochila? Pega na mochila e tira um
espelho de mão, um desodorizante em spray e um tubo de gel para o cabelo. Para João: Tu
não te arranjas?
JOÃO
Vão vocês que eu fico.
LUÍS
Vais ficar aqui sozinho?!... As miúdas estão todas produzidas! A Filipinha...
RICARDO
Oh! Respeitinho pela minha irmã!...
LUÍS
Desculpe, senhor Major Califórnia. Faz uma continência.
RICARDO
‘Tá desculpado. À vontade.
JOÃO
Não me parece. Já estou a aterrar.
LUÍS
Coitadinho... está cansadinho, o menino...
RICARDO
Anda lá!! Viemos juntos, ficamos juntos.
LUÍS
E se nós engatamos umas miúdas? Depois tu estás a dormir no quarto, para onde é que as
levamos?
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JOÃO
Não te preocupes.
RICARDO
E depois se te dá um ataque de sonambulismo e andas aí sozinho, ainda cais da janela...
JOÃO
Não, isso já não me acontece, já estou farto de dizer!!
RICARDO
Nas últimas férias fomos dar contigo a jogar matrecos sozinho!...
LUÍS
Ouve lá, o céu é o mesmo em toda a parte, o que muda são os ambientes! Vamos antes ver
as estrelas espanholas que andam aí à solta. Gajas no firmamento é que é.
RICARDO
Ainda estou eu aqui com a Lola e apareces tu de repente, a dormir, e queres apalpá-la toda e
depois a Lola ainda se zanga comigo, e quem se lixa sou eu!... Ná! Vens antes com o
pessoal, deixa-te de cenas.
LUÍS
Quem é a Lola?
RICARDO
Então tu não sabes quem é a Lola? É uma estrela… — que eu vou conhecer daqui a bocado.
JOÃO
Realmente... Tu falares com uma miúda seria um episódio cósmico tão raro como a
passagem do cometa Haley. É só de setenta em setenta e seis anos!
RICARDO
Até o universo abana! Para que conste, a última que dei parecia que estava a viajar pelo
hiperespaço, num tunel warp, não sei se estão a ver...
JOÃO
Eu não digo? É uma ocorrência impossível... Tu sonhaste.
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LUÍS
E acordaste todo molhadinho...
RICARDO
Ouve, ó Galileu, está decidido. Hoje vens observar as estrelas que estão à solta na Serra.
Para Luís: Já encontraste a cena, meu?
LUÍS
Lembra-se de procurar.
Não encontro. Estava aqui dentro, não sei.
RICARDO
És sempre o mesmo, cheio de tangas.
LUÍS
Não posso ter perdido aquilo.
RICARDO
Trouxeste a cena ou não?
LUÍS
Preocupado.
Não encontro.
RICARDO
Boa.
LUÍS
A ficar assustado.
Achas que eu deixei aquela cena em casa? Ia a pegar na cena quando tu e a tua irmã
chegaram, escondi-a na cintura. Depois só me lembrei no autocarro, foi quando te disse
para 'tares atento. Não sei.
JOÃO
Vocês estão a falar de quê?
LUÍS
Quase em pânico.
Não larguei as malas tempo nenhum. Tu trouxeste a minha mala para cima, não foi, João?
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JOÃO
Eu? 'tás maluco!?...
LUÍS
Quem é que trouxe?
JOÃO
Eu não fui. Vocês trazem a casa às costas e eu agora é que sei?
RICARDO
Ouve lá, tens a certeza que foi nessa mochila?
LUÍS
Quer dizer, não sei... A tua irmã não veio buscar uma mochila?
JOÃO
Mas do que é que vocês estão a falar afinal?
RICARDO
Fingindo que dá um tiro na cabeça.
Pum-pum, ‘tás a ver?
JOÃO
Uma pistola?
RICARDO
Ele é que disse que ia trazer. E agora está a inventar que não sabe da arma.
JOÃO
Mas onde é que arranjaste a... cena?
RICARDO
Ouve, deixa lá, não conseguiste trazer o raio da pistola, não interessa. Esquece, meu, já
percebemos.
LUÍS
Mas eu trouxe!! Com balas de prata e tudo, para apanharmos um lobisomem. Ganda cena.
E agora?
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RICARDO
Agora, vou fazer mais um shot.
JOÃO
Mas vocês passam-se?
RICARDO
Pulp Fiction, meu. Era para assaltar o pão quente. Há pão quente nas aldeias da Serra, não
há?
LUÍS
Vamos lá e assaltámos a panificadora. Mãos ao alto, Pan y mantequilla, para cá. Ou então,
ouve, já sei, vamos lá abaixo e exigimos uma mesa de matraquilhos para o pessoal. Uma
semana sem jogar matrecos, não aguento, já 'tou a ressacar. É isso.
JOÃO
‘Tão a ouvir? E a pistola?
FILIPA
Entra furiosa. Silêncio. Fixa o olhar em João. Estende o saco no ar.
Esta mochila não é nossa.
LUÍS
Pega no saco e procura a arma.
Não está aqui...
RICARDO
Ho, deixa-te de tangas.
FILIPA
Então tu fugiste de casa? Ridículo...
JOÃO
Que história é essa?
FILIPA
Tu vieste embora sem dizer nada a ninguém? Os teus pais andam loucos à tua procura.
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JOÃO
E o que é que tu tens a ver com isso?
FILIPA
O que é que eu tenho a ver com isso? Olha, convenci-os que estava tudo bem, e que não
valia a pena virem buscar-te!
JOÃO
Só agora é que deram pela minha falta?
FILIPA
Andas parvo. Pregas um susto destes e ainda refilas?
LUÍS
He pá, a miúda tem razão.
JOÃO
Também tu agora?
RICARDO
Para Luís.
Não digas nada...
LUÍS
Eu não...
RICARDO
Vamos bazar. Já passa da hora. Bebem os shots e saem
JOÃO
Foi a minha mãe que telefonou?
FILIPA
Foram os dois. Pausa. Tens dinheiro?
JOÃO
Tenho.
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FILIPA
E onde é que arranjaste?
JOÃO
Arranjei. Olha, vocês não iam sair? Eu tenho coisas para fazer.
FILIPA
Não penses que te livras de mim assim. Vais ficar aqui a fazer o quê? Viemos juntos,
combinámos que estávamos juntos, que íamos sair todos juntos, o grupo todo.
JOÃO
Está bem, Filipa, mas daqui a pouco há uma cena no céu que eu quero filmar. Depois vou
ter convosco.
FILIPA
Uma cena no céu? O que é isso, «uma cena no céu»?!
JOÃO
Uma cena no céu é uma «nebulosa» que vai sofrer uma «pressão luminosa» da «Mérope»,
nas «Plêiadas», que é... uma estrela! As poeiras mais pequeninas e leves da nuvem são
travadas pelas radiações da estrela, e as mais pesadas continuam à deriva, formando a
imagem de um espectro. Uma nebulosa é uma «cena no céu», que se vê melhor do alto da
serra, e que eu quero filmar. Agora percebeste?
FILIPA
Então, nesse caso... fico aqui contigo. Não te importas, pois não?
JOÃO
As tuas amigas não estão à espera?
FILIPA
Eu disse que íamos lá ter.
JOÃO
Ouve, tu não curtes estas cenas, estás toda produzida, vais agora ficar aqui fechada a olhar
para as estrelas?
FILIPA
Mas hoje até estou curiosa.
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JOÃO
Se quiseres combinamos já um ponto de encontro, eu depois vou lá ter contigo, prometo.
FILIPA
Com total sinceridade
É uma tempestade magnética, não é? Eu sei, eu sei o que é, eu li num livro... sei o que
acontece.
JOÃO
Não, Filipa, as tempestades magnéticas não se podem ver...
FILIPA
Estás-me a contar tudo? É só isso?
JOÃO
É.
FILIPA
Então não posso ficar aqui porquê?
JOÃO
Porque não. Quero ficar sozinho, percebes?
FILIPA
Mas fazes de conta que eu não estou cá...
JOÃO
Não! Vim para aqui para ficar sozinho, longe de casa, dos meus pais, de vocês todos, longe
de ti!...
FILIPA
Vieste com a gente para o meio da serra para ficares longe de nós? Grande lógica.
JOÃO
Ouve Filipa, eu gosto muito de ti, tu sabes, és...
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FILIPA
Isto é tudo por causa de ontem à noite, não é? Tens medo de quê? Eu não te como. Correu
mal, pronto, é normal, era a primeira vez. Eu também reagi mal, também tive medo.
Ninguém tem culpa. Já passou.
JOÃO
Tu não vais para Coimbra?... daqui a um mês? Nós só nos vemos nas férias. Quantas vezes
tenho que dizer estas coisas?
FILIPA
Mas...
JOÃO
Nem mas, nem meio mas. Desampara-me a loja.
FILIPA
Não querias ser adulto? Não foi isso que me disseste, que já éramos crescidos? Agora é que
tens essa oportunidade. Fala, diz qualquer coisa... Tenta acariciá-lo. Anda cá.
JOÃO
Larga-me.
FILIPA
João!
JOÃO
Anda, chavala, baza!
Vai até à janela, desesperado. Prepara-se para se atirar. Muda de ideias. Vai buscar a
câmara e grava uma mensagem.
JOÃO
Para a câmara vídeo
Ouve Filipa... não sei explicar. Tu nunca me deixas falar... As férias vão passar, toda a
gente vai para casa, e eu não posso fazer nada contra isso. Perguntávamos às vezes um ao
outro «se eu morresse, ias ao meu enterro?» Sorri. «e choravas?». Pausa. Tu não tens a
culpa, mas... Pausa. Queria passar uma esponja sobre isto tudo... sinto que sou uma espécie
de borrão, um erro, sempre a emendar, sempre a emendar, mas cada vez mais... todo
riscado. É pior a emenda que o soneto, como diz o meu pai. Sorri. Não aguento mais...
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Pausa. Acho que o meu tio teve razão em acabar com a vida. O que é que nós andamos
aqui a fazer? Somos uma migalha no universo, um grão de areia. Quando morremos... não
há mais nada. Eu não acredito no céu, nem no inferno... vou simplesmente dormir para
sempre e nunca acordar.
João empunha a câmara, e sobe à janela. Ouvem-se sirenes. Entra um bombeiro agitado,
com a cara feita fuligem, e um machado na mão, seguido de um par de anjinhos.
A�JO
Olha em redor, estupefacto, até reparar em João, que permanece na janela.
Já vou, já vou!
Isto não estava a arder?
Vim para apagar o fogo
antes que a coisa ficasse séria.
Isto devia estar a arder.
JOÃO
Não, aqui não está nada a arder..
A�JO
Meia-noite, o alarme
no quartel dizia meia-noite...
JOÃO
Mas ainda não é meia-noite.
A�JO
Claro que não,
nós chegamos antes,
para evitar o pior.
JOÃO
Nós quem?
A�JO
Nós, a BPS. Explica.
A Brigada de
Prevenção de Suicídios.
Um anjo, um diabo
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e um escrivão.
Eles devem estar a chegar.
E os ajudantes,
estes imprestáveis! Tenta bater-lhes, sem sucesso.
Fizeram-me vir a correr
para quê!?!
JOÃO
Eu devo estar a sonhar, isto é espectacular!...
A�JI�HOS
Não, não está... Os Anjinhos beliscam-no.
A�JO
Quietos!!
JOÃO
Parem!! Os Anjinhos param imediatamente.
A�JO
Nada disso, nós somos reais!
JOÃO
Mas você é um homem ou uma mulher?
A�JO
Não vamos ficar aqui
a noite toda a discutir isso,
pois não?
Isso agora não interessa nada.
Você ia matar-se, não ia?
Isso é que interessa!
A�JI�HO
Olha, ele estava a filmar a morte!!
JOÃO
Queria deixar uma mensagem...
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A�JI�HA
Interrompe-o.
Mas você quer culpar alguém?
Não acha que já é crescidinho?
JOÃO
Mas... Não, não é nada disso, era precisamente o que eu dizia na cassete...
A�JO
Ora, está a ver,
você até é bom rapaz,
não quer castigar ninguém.
Se calhar era melhor
deixar essas ideias de parte
e ir ter com os seus amigos.
Eles gostam de si.
Estão agora provavelmente a dançar...
JOÃO
Não, não. Não têm nada que se sentir castigados. É uma decisão só minha.
A�JI�HA
Mas ainda bem, que diacho.
Nós também só queremos
chamar a atenção do Joãozinho
para a realidade dos factos.
Nada de pressões.
As decisões são todas suas.
Se nos quiser mandar embora é só dizer.
A�JI�HO
E a Filipinha? Vai partir-lhe o coração...
JOÃO
Não, a Filipa vai encontrar alguém melhor para ela, lá em Coimbra ou...
A�JO
E é por isso que se quer matar?
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JOÃO
Eu? Eu sou um erro dos meus pais, e um erro da Filipa, um erro para toda a gente, e não há
maneira de corrigir o erro.
A�JO
Ó meu amigo, não pense assim!
Sabe o que acontece aos suicidas?
Nem céu nem inferno,
nem purgatório!
Vão parar a um limbo
onde não se passa nada.
Mesmo nada.
E ninguém vai ao funeral! Chega-se à janela.
Bem, deixe ver...
isto são uns cem metros:
se tiver remorsos a tempo,
antes de ficar estatelado,
pode ser que se safe.
Mas é preciso peritagens,
testemunhas, demora
tudo muito tempo.
E o terror que uma pessoa
sente mal inicia a queda
não deixa ninguém pensar.
JOÃO
Ah é?...
A�JO
Ah pois é!...
Mas se está mesmo
farto da vida...
Não gostava de se inscrever
nos Anjos Voluntários?
Se quiser pode trocar
de lugar comigo.
Eu volto à vida e você
passa a ser um anjinho...
Ainda está na idade,
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aliás, é agora ou nunca.
Pense bem... De lá de cima
vê-se a via láctea muito
bem, e o sistema solar inteiro!
JOÃO
Se é assim tão bom, porque é que quer vir-se embora?...
A�JO
Eu estou um bocadinho cansado,
ando nisto há muito tempo,
estive em reclusão
no mosteiro da Singeverga,
vi a Sé de Braga a ser construída...
Tenho saudades de sentir
uma pedra na mão outra vez,
sabe? E o João fica com
um óptimo lugar lá em cima.
Nas estrelas. Se quiser...
pense bem. É só dizer sim.
JOÃO
E vivo para sempre?
A�JO
Claro. E quando se fartar,
é só arranjar alguém que
queira trocar de lugar.
Você tem a idade adequada,
e um passado atormentado
que lhe dá toda a possibilidade
de admissão.
Basta que se sinta culpado
e queira morrer de vergonha,
como agora.
É meio caminho andado.
Ora, a situação que
mais o atormenta é
a noite passada com a Filipa, não é?
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Vamos lá ver isso outra vez,
para não ter dúvidas. Tira uma cassete vídeo do bolso.
A câmara de filmar.
A�JI�HO
Tira a câmara a João.
É para rever o passado.
Já ouviu as pessoas contar
que na hora da morte
vêem a vida toda
passar à frente dos olhos?
Cada pessoa tem uma cassete.
Vamos ver a sua.
A�JO
Põe a cassete na câmara.
Ora, aqui está, a catequese,
a primeira comunhão...
estou a andar para trás...
vou pôr para a frente...
ops, que é isto?
Os primeiros sinais da puberdade?...
Olha aqui ele a corar
com as pernas da professora!!
Que engraçado... Cá está.
Espreite aqui a noite de ontem...
FILIPA
Gravação da Cassete
Pára, João, pára – está a doer. Espera... por favor...
JOÃO
Parem! Você não tem o direito...
A�JO
Pára imediatamente.
Não, tem razão,
aqui os direitos são todos seus...
Nós só estamos para o ajudar...
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Mas você, quando reparou no sangue,
também podia ter parado, não?
JOÃO
Eu não sabia, fiquei baralhado...
A�JO
Não, você sabia que
aquilo podia ter acontecido.
Vem nos livros.
Por isso é que continuou.
Achou que era natural,
tão natural como tirar um dente.
As dores iam passar,
e ela ia ter prazer.
Pelo menos o Joãozinho
já estava a ter prazer.
JOÃO
Eu não sabia o que fazer...
A�JO
Errou. Por isso é que
se sente culpado.
Isto não dá muito jeito
para entrar no céu.
Em contrapartida,
se mostrar arrependimento sincero
e se pedir muito perdão,
tudo bem, passa-se uma esponja
sobre o assunto.
Ou põe-se uma pedra.
Mas nesse caso tem de dizer:
eu arrependo-me e peço perdão,
e para expiar a culpa
eu quero ir para o céu
no lugar do anjo .
Vá, não tenha medo de falar.
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JOÃO
Eu estou arrependido...
A�JO
E pede perdão!... E...
JOÃO
E peço perdão...
A�JO
Isso, isso, e para fazer a troca
o Joãozinho vai morrer à mesma,
ter a experiência da morte,
é bom, não é?!
Só que vai para o céu,
para o meu lugar.
Ponha-se a jeito que eu empurro-o.
Ou prefere um incêndio?!
JOÃO
Mas você é um anjo ou um diabo? Espere!
A�JO
Já lhe estou a oferecer o meu lugar, quer mais o quê?
JOÃO
Quero que me deixe em paz!
A�JO
Troque comigo!
Quer mais paz que no céu?
Porque é que não faz como lhe digo?
Tem-se uma vista fantástica
para a nebulosa!
JOÃO
Não é isso!
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A�JO
Pare de se armar em vítima.
Um burburinho em crescendo vem do lado de lá da porta.
São eles. Pense nisso.
É a melhor oferta que vai ter hoje.
Entra o Diabo, seguido de diabinhos cães, e Gil Vicente, que anota tudo o que acontece.
DIABO
Para a plateia.
Estou agora a ter conhecimento,
não vou comentar o caso.
É tudo, obrigado.
Acabo de chegar de Buenos Aires.
Não faço mais comentários.
Por favor. Estou aqui em trabalho.
O Diabo dirige-se para João e, agarrando-o, começa a dançar o tango argentino, ao
mesmo tempo que o instrui.
Ummmm, dooooois, três-quatro
— como é que te chamas?...
Ummmm, dooooois, três-quatro
— o meu nome é Rosado Aires...
— Rosita, quando rapo os pelos das pernas...
— Quando isto acabar... três-quatro
— podemos ir tomar um... um copo. Não?
Durante a dança, levou-o até à janela, para o assustar.
Vamos lá fora, para a noite. Escuta, posso ensinar-te a dançar qualquer coisa... Não te mates
já... Só tens de assinar uma declaração. Que os meus secretários trazem ali. Então, que
dizes? Um dos cães traz o contrato na boca. Está aqui... o contrato!... Para João. Segura aí.
Dantes aceitávamos contratos de boca, mas as pessoas estão sempre a voltar com a palavra
atrás! João queima-se ao pegar no contrato, que cai ao chão. João fica a ler.
DIABO
Para o Anjo.
Já cá estás?
A�JO
Tentando ignorá-lo; para Gil Vicente.
Posso ver a lista dos óbitos?
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GIL VICE�TE
O nome dele só apareceu há um bocadinho...
A�JO
E ainda não passaste o mata-borrão para secar o nome? Estás à espera de quê? Ele vai
atirar-se...
GIL VICE�TE
Enquanto não passar o mata-borrão, há uma hipótese... Achas que ele quer mesmo atirar-
se?...
A�JO
Ai, quer, quer.
GIL VICE�TE
Vocês é que sabem...
DIABO
Eu vou espremer isto até ao caroço. Como é que está a situação? Mostra lá a lista. A lista.
Vicente! Gil Vicente dá-lhe finalmente uma lista. Não, pá, isto é a receita do caldo verde.
Gil Vicente vira a lista.
GIL VICE�TE
Está do outro lado.
DIABO
É pá, isto está mais para lá do que para cá. O nome dele está muito nítido. Mas ainda há
pouco mal se via. Para o Anjo. O que é que tens estado aqui a fazer desde que chegaste?
A�JO
Nada. Cheguei agora mesmo. Deixa-me ver.
DIABO
Não temos muito tempo. Fecha a janela e põe a mão por cima do ombro de João. Caro
João, a situação é a seguinte: os suicidas dão muito trabalho a processar. Todos os mortos
dão que fazer, mas os que auto-falecem... a papelada nunca mais acaba.
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A�JO
Nós, a brigada, foi criada para tratar disso.
GIL VICE�TE
Apresentamo-nos assim desta maneira para simplificar as coisas, para sermos mais...
reconhecíveis. Andaste na catequese?
A�JO
Andou, andou.
GIL VICE�TE
Então ouviste falar do céu, do inferno...
JOÃO
...e do purgatório. Estou a par, estou, mas...
GIL VICE�TE
...e do purgatório, muito bem.
DIABO
Leste as Barcas? Os autos das barcas, barca do inferno, barca da glória...
JOÃO
Eu sou de ciências...
DIABO
Não leste. Alguma vez foste ao teatro?
JOÃO
Fui...
DIABO
Eles estão sempre a fazer as barcas, não me digas que não viste?
A�JO
Fomos nós que tivemos a ideia, sabes. Inventámos os autos. Falámos com o Vicente e tal...
Foi assim uma maneira de explicar às pessoas como é que as coisas se passam. Portanto, de
certa maneira, até ficamos contentes por saber se leste, se viste, se gostaste...
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JOÃO
Eu gostei.
GIL VICE�TE
Gostaste?
JOÃO
Gostei. Mas acho que se salva gente a mais.
GIL VICE�TE
Claro, mas isso é claro..
A�JO
Só não nos lembrámos no caso dos suicidas. Por isso, não há precedente jurídico. É uma
complicação. E não entram nem numa barca nem noutra...
GIL VICE�TE
Já agora Sabes porque é que deram o meu nome a um clube de futebol? Ainda por cima em
Barcelos? Nós nunca fomos a Barcelos!!
JOÃO
Mas eu já estou morto?
DIABO
Não, não é assim tão simples.
DIABO
Digamos que te está a ser dada uma segunda oportunidade. É que tu morto assim tão novo
vales muito pouco para nós no inferno. Nós queremos é pecadores calibrados! Senão,
chegas lá e nem te dão um quarto em condições! Vais dormir para a banheira.
A�JO
E olha que no inferno as banheiras têm lava!!
DIABO
Mas se te aguentares por cá mais uns tempos, a coisa muda de figura. Tu já fizeste das tuas,
e estás no mau caminho, que para nós é bom... Já pensaste no que podes fazer com a nossa
ajuda, se continuares vivo? Um futuro à medida do inferno. Só tens de assinar os papéis. É
rápido.
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DIABI�HO
Ainda bem que o Anjo te descurou tanto. Assim vês melhor quem está do teu lado.
JOÃO
Ele era o meu anjo da guarda?
DIABI�HO
Era e é.
JOÃO
Mas ele queria empurrar-me! Queria que eu caísse e depois trocasse de lugar com ele.
A�JO
Era o melhor para ti: não queres viver, gostas de ver as estrelas, sentes-te culpado...
JOÃO
Para os Diabos.
E tu queres mandar-me para a engorda, para depois colheres a minha alma. Antes quero o
limbo. De lá também se vêem as estrelas. Prefiro essa companhia. vai para a janela.
DIABO
Onde é que está o comando? Confere a lista, Vicente, confere a lista!
GIL VICE�TE
Espera, João. Sabes o que eu dava para estar agora no teu lugar? O que qualquer um de nós
daria? Não vás deitar tudo a perder, agora podes fazer o que queres. Não tens um sonho,
que gostasses de tornar realidade? Um sonho qualquer?
A�JI�HOS
Vamos chamar os pais dele.
JOÃO
Não quero ver os meus pais.
A�JO
Diz que trocas comigo! Diz!
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JOÃO
Isto não é real. Eu devo estar a sonhar.
DIABO
O comando, o comando?
JOÃO
Se eu fechar os olhos vocês desaparecem, não é? Fecha os olhos e tapa os ouvidos.
DIABO
Agarra o comando.
Olha, olha o teu futuro! Os teus amigos. A estas horas já engataram as espanholas. O
Ricardo está aí não tarda com uma castelhana cheia de salero. Vai ser uma tourada. E isto
não é nada. Vocês são novos. Ainda falta muito para o casamento. Mas mesmo o
casamento, hã?, não me digas que não gostavas de um casamento à maneira... E para não
ficares com saudades da vida de solteiro, uma despedida como deve ser, e uma garrafa de
whisky num casa de strip à tua escolha para o resto da vida. Que será looooonga!
A�JO
Em contrapartida, imagina que em vez de morreres na queda, ficas paraplégico.
DIABO
Eu que sou manco por tradição, tenho muito respeito pelos paraplégicos; mas devo dizer
que não é uma experiência agradável! Vês-te a explicar a toda a gente que estás assim
porque te atiraste para o poço do lobo durante uma viagem de fim-de-semana à Serra da
Estrela, tudo porque... afinal porquê!? Porque tiveste uma nega da Filipa?!
JOÃO
Abre os olhos.
Não foi uma nega! Não foi nada disso!!
DIABO
Esperem, vamos ver como seria hoje à noite. Usa o comando.
FILIPA
Entra estremunhada, com um lobo de peluche.
João... porque é que saíste de ao pé de mim?
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JOÃO
O que é que ela está aqui a fazer?
DIABO
Calma.
FILIPA
Não me filmes assim, ouviste? Nunca largas a merda da câmara. Estás a ouvir?
DIABO
Imagine os dois na universidade, juntos quatro ou cinco anos, uma grande aventura...
FILIPA
João... não queres vir para a cama?
JOÃO
Mas você está louco?! Mande-a embora.
DIABO
Este telecomando está sem pilhas ou lá o que é isto...
FILIPA
Anda lá... Embriagada, meiga e doce, mas sem controle da força física. João!... Anda cá!...
Anda cá! Rouba-lhe um beijo. Tira a roupa, anda, tira a roupa. Sem querer, empurra-o para
o sofá.
JOÃO
Pára, pára!... está aqui gente, Filipa, agora não... espera... Para os outros. Façam-na parar!
Por favor. Para Filipa. Filipa, ouve... Estás a sonhar. É um sonho. Agora — dorme. Filipa
adormece.
DIABO
Não correu mal. Às vezes quando o comando avaria ficamos à rasca para nos vermos livres
delas.
A�JO
Então?
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JOÃO
Vocês fazem sempre isto, assim sem mais nem menos? Não têm uma pinga de respeito por
ela?
DIABO
E tu, tens?
A�JO
É só uma projecção do que ela gostava de fazer.
DIABO
E tu, o que é que vais fazer?
A�JO
Decide-te, miúdo.
JOÃO
Já acabou? Então desculpe, mas não estou interessado em nenhuma das propostas. Acabam
de superar as minhas piores expectativas acerca da vida depois da morte. À janela. Já se vê
a nebulosa... a chuva de estrelas... Eu quero acordar deste sonho!!
DIABO
Viagens à lua? Também se têm arranjado algumas!...
A�JO
Trocas comigo?
JOÃO
Era ali que eu queria estar.
A�JO
Diz que sim, diz que sim.
DIABO
Não te precipites. Não viste já que tudo é possível? Queres melhor garantia?
JOÃO
Não.
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DIABO
Basta dizer que sim, tratamos da papelada depois.
JOÃO
Pega no telecomando.
Queria ter outras palavras na boca. Mas só sinto um formigueiro.
FILIPA
Acorda sobressaltada.
João!
Aponta uma pistola a João. João volta-se para ela. Os outros ficam surpreendidos.
JOÃO
A arma não é a sério, é?
FILIPA
Eu sei porque é que vieste connosco. Percebi logo que querias fugir de casa para te matares,
como o teu tio. Vi os teus recortes de jornal. Sonhei com isso noites a fio. Não queria
acreditar. Não podias ser tu o primeiro a desistir. Eu às vezes também queria acabar com
tudo, mas tu ajudavas-me a continuar. Agora já não. É mesmo isso que queres, não é? Mas
vamos os dois.
JOÃO
Isto é a sério?!
FILIPA
Andei a controlar tudo o que fazias, a ver se descobria o teu plano. Tenho a cabeça cheia de
histórias de suicidas: enforcamentos num sobreiro, veneno para o escaravelho, uma
caçadeira na boca, e uma mulher que não tinha gás em casa... Riso. Foi comprar uma botija
para enfiar a cabeça no forno.
JOÃO
O que é que estás a dizer!?
FILIPA
Uma botija. Todos temos vontade de fazer uma cena destas, de vez em quando, sabias? Foi
por isso que ontem à noite cedi ao que tu querias. Estúpida. A pensar que com um sacrifício
te ajudava... mas que ideia a minha. Sacrifício? Não serviu para nada. Enchem-nos a cabeça
com cada coisa... Ficamos cheios de medo, e depois claro que dá para o torto... Não é
33
sacrifício nenhum, não tem de ser. É a coisa mais natural do mundo... Pronto, connosco
correu menos bem, mas faz parte da aprendizagem. Ainda bem que foi contigo, para nos
lembrarmos mais tarde, quando cada um estiver casado e com filhos e nos encontrarmos
por acaso, na rua. Ou de férias na Serra da Estrela... Culpados de quê?
JOÃO
Quem é que tem o comando?!
FILIPA
Mas contigo não adianta. És um erro. E eu sou um erro contigo. O borrão alastrou para o
meu nome. João!! És capaz de me ouvir? Uma botija, percebes?, foi comprar uma botija! E
tu andas aí para trás e para a frente...
DIABO
Mas este gajo não faz nada?!
GIL VICE�TE
Fá-la parar, João! Faz qualquer coisa.
JOÃO
Filipa!
FILIPA
João encosta a cabeça na arma.
Eu já vou ter contigo. Filipa dispara. João cai como morto. Repara nos outros. Quem são
vocês? Para trás! Que é que estão aqui a fazer? João! Olha para João. Enfia a pistola na
boca e dispara. Cai no sofá, em posição idêntica à de adormecida. É como se o tiro tivesse
atingido todos.
DIABO
Bonito serviço!...
A�JO
Palhaço!...
DIABO
Como é que vamos explicar isto?!
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GIL VICE�TE
Mas não havia ninguém a tomar conta dela?
A�JO
Eu mesmo agora vi a lista! Não percebo nada disto.
DIABO
Está sempre a falhar. Estou farto de avisar. Qualquer dia...
Entra a Fada dos Lobos, de comando na mão. Os outros vão-se desvanecendo.
FADA DOS LOBOS
Que tal a sensação da morte? Deu para satisfazer as tuas ânsias? Não ganhaste para o susto,
hã? Ainda pensei que parasses tudo a meio. E tenho de confessar que a Filipa me saiu das
mãos. Tens sorte em não dar de caras com a ceifeira em carne e osso. Mais osso do que
carne.
DIABO
Ainda consegues vê-lo, Gil?!
A�JO
Onde é que estás, João? Não nos convidas?...
FADA DOS LOBOS
Sabes, tu tens a sorte de ainda poder contar os dias. Domingo, Segunda, Terça, por aí
adiante... Domenicus... Martis... Não me querem ajudar? Nem em Latim?
A�JO
Não sei do que falas!
DIABO
Onde é que ele está? Atirou-se?...
A�JO
Não quero ir embora...
DIABO
Não vejo nada.
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FADA DOS LOBOS
São uns charlatães estes amigos. Para eles estas coisas simples tornam-se indistintas,
confusas. É como estar dentro de um compartimento sem sentir o dia nem a noite. E não
vêem os limites do compartimento. É universalmente baço. São mortos que dariam tudo
para voltar à vida. Têm saudades do tempo a passar. E de sentir uma pedra na mão. A
história das Barcas é só para enganar os mortais...
DIABO
Paralisa.
Está tudo a desaparecer. Ele está a mandar-nos embora.
A�JO
Já não consigo ver a Filipa. O que é que eles estão a fazer?
DIABO
Já não consigo ver.
GIL VICE�TE
João, se me estás a ouvir... Conta esta história… para nos manteres vivos.
JOÃO
E tu quem és?
FADA DOS LOBOS
Estava de passagem quando vi a brincadeira destas palhacinhas. Sou quem olha para os
jovens lobos nesta passagem da vida, quando são expulsos da alcateia para se tornarem
adultos. Eu sou a Fada dos Lobos. Vejo-te das estrelas. Dou o peito a roer à tua boca. Vejo-
te das estrelas. Sou a protectora dos lobos da estrela. Tu e a Filipa são meus filhos, perdidos
numa serra à procura um do outro.
JOÃO
Abeira-se de Filipa para acordá-la.
Filipa. Filipa... Acorda, anda.
FILIPA
Acorda sobressaltada.
Hã, onde é que estou? João? Porque é que não me acordaste? Que horas são? Temos de ir
embora? Vamos ter com eles.
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JOÃO
Não. Ficamos antes aqui. Para Filipa.
FILIPA
A fazer o quê?
JOÃO
Vou contar-te uma história. Queres?
FILIPA
Não. Quer dizer, sim.
JOÃO
Anda para aqui para a janela. Daqui vês as estrelas. Ajuda Filipa a levantar-se.
Luís e Ricardo chamam de fora.
LUÍS
João, anda à janela! João aproxima-se e abre a janela. Ouve, pá, encontrámos uma mesa de
matraquilhos numa tasca aqui só a cinco quilómetros!... Estão lá dois espanhóis a cilindrar
toda a gente. Anda daí. Vamos ser campeões ibéricos.
RICARDO
Eu ‘tou lesionado, meu! Contra estes tipos tens de ser tu. Anda lá.
JOÃO
É pá, agora 'tou aqui tão bem... Vão vocês.
RICARDO
Tás a fazer o quê?
LUÍS
Tás a beber shots sozinho?
JOÃO
Estou com a Filipa!
RICARDO
O quê?!