mary jane spink - práticas discursivas e produção

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    Mary Jane SpinkOrganizadora

    PRTICAS DISCURSIVAS

    E PRODUO DE SENTIDOSNO COTIDIANOAproximaes tericas e

    metodolgicas

    Rio de Janeiro2013

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    Esta publicao parte da Biblioteca Virtual de Cincias Humanas do CentroEdelstein de Pesquisas Sociais www.bvce.org

    Copyright 2013, Mary Jane Spink.Copyright 2013 desta edio on-line: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais

    Ano da ltima edio: 2004, Editora Cortez.

    Nenhuma parte desta publicao pode ser reproduzida ou transmitida porqualquer meio de comunicao para uso comercial sem a permisso escritados proprietrios dos direitos autorais. A publicao ou partes dela podem serreproduzidas para propsito no comercial na medida em que a origem dapublicao, assim como seus autores, seja reconhecida.

    ISBN: 978-85-7982-068-7

    Centro Edelstein de Pesquisas Sociaiswww.centroedelstein.org.br Rua Visconde de Piraj, 330/1205Ipanema Rio de Janeiro RJCEP: 22410-000. BrasilContato: [email protected]

    http://www.bvce.org/http://www.bvce.org/http://www.bvce.org/http://www.centroedelstein.org.br/http://www.centroedelstein.org.br/mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]:[email protected]://www.centroedelstein.org.br/http://www.bvce.org/
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    II

    SUMRIO

    APRESENTAO .....................................................................................IV

    CAPTULOI Prticas Discursivas e Produo de Sentido:

    Mary Jane P. Spink e Rose Mary Frezza ............................................ 1

    CAPTULOII

    Produo de Sentido no Cotidiano: Mary Jane P. Spink e Benedito Medrado.......................................... 22

    CAPTULOIII A Pesquisa como Prtica Discursiva:

    Mary Jane P. Spink e Vera Mincoff Menegon ................................... 42

    CAPTULOIV

    Rigor e Visibilidade: Mary Jane P. Spink e Helena Lima .................................................. 71

    CAPTULOV Anlise de Documentos de Domnio Pblico

    Peter Spink .................................................................................... 100

    CAPTULOVI

    Garimpando Sentidos em Bases de Dados

    Lia Yara Lima Mirim ..................................................................... 127

    CAPTULOVII Entrevista: uma Prtica Discursiva

    Odette de Godoy Pinheiro .............................................................. 156

    CAPTULOVIII Por Que Jogar Conversa Fora?

    Vera Mincoff Menegon .................................................................. 188

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    III

    CAPTULOIX Textos em Cena:

    Benedito Medrado ......................................................................... 215

    CAPTULOX Imagens em Dilogo:

    Carlos Andr F. Passarelli ............................................................. 242

    R EFERNCIASBIBLIOGRFICAS .......................................................... 252

    AUTORES .............................................................................................. 263

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    IV

    APRESENTAO

    Esta coletnea fruto de uma longa trajetria. De empreitada tpicados fazeres intelectuais, pautada pela interface entre leituras e pesquisas etornada visvel em texto e fala, assumiu, progressivamente, um cartercoletivo. No se trata de uma proposta coletiva em sua origem, mas de umcoletivismo resultante do prprio desenvolvimento terico. Pensar, afinal, uma prtica social e como tal, perpassada por dialogia.

    Em retrospecto, seria possvel propor que o carter coletivo desta obradefiniu-se a partir de vrias etapas. Primeiramente, claro, uma formaespecfica de pesquisar em Psicologia Social foi se definindo para mim a partir de leituras e de pesquisas. No por acaso, esses interesses tinham naSade Pblica o seu foco. No por acaso, portanto, a perspectiva coletiva sefazia presente. Mas para que as ideias extrapolassem esse mbito maisintimista foi preciso que fizessem sentido tambm para outros. Esses outrosforam inicialmente os vrios orientandos de Mestrado e Doutorado para quemas ideias encontravam ecos. Esses eram ainda fruns acanhados: dilogostravados em momentos de orientao; leituras compartilhadas ideiastestadas, quando muito, nos encontros no Ncleo de Pesquisa em PsicologiaSocial e Sade, na Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo.

    Emergiu dessas discusses a demanda de uma apresentao maissistemtica dessas ideias, gerando, a partir de 1996, as propostas deseminrios avanados e as inmeras participaes em congressos, j emformas coletivas: mesas, papers e painis em coautoria. Ampliavam-se asoportunidades para levar as ideias a passear e faz-las conversar com outrosautores, outros referenciais. Coletivizava-se paulatinamente a propostaatravs da disponibilidade de falar sobre e de escutar as dvidas, ascrticas, os encontros e desencontros.

    Sendo muitos os colaboradores, expandia-se a proposta. Mas crescia

    tambm a dificuldade de socializ-la. Eram poucos os textos escritos por

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    ns. As reflexes estavam confinadas s teses e dissertaes sempre dedifcil circulao ou s apresentaes orais em congressos de circulaoainda mais difcil. Tornava-se urgente, assim, uma apresentao maissistemtica das reflexes que fazamos; surgiu dessa premncia a propostade elaborao de uma coletnea de textos que refletissem o que propnhamos. No um projeto acabado pois eles nunca o so. Mas comouma oportunidade para ampliar o debate.

    Sendo muitos os autores e novas as ideias, a prpria elaborao dolivro suscitou um rico debate. No s entre os autores; muitas outras pessoacontriburam, s vezes sem nem ao menos terem conscincia da imensacontribuio que fizeram. Por exemplo, Pedrinho Guareschi, em seminriorecente,1 inadvertidamente forneceu um conceito que se tornou central paranossos esforos de desfamiliarizao das perspectivas essencialistas. Referiase ele sociabilidade intrnseca do conceito de pessoa, elaborado no mbitoda Teologia, fornecendo uma pista valiosa para redefinir subjetividade (e oconceito de indivduo a abrigado) a partir da perspectiva construcionistaMesmo sem compartilhar dos pressupostos que embasam nossa propostaPedrinho uma voz que se faz presente neste livro. Tambm Rogrio Costa professor da PUC-SP cujas virtudes filosficas tantas vezes nos iluminaramteve um papel ativo para alm do que ele possa estar ciente.

    Os debates, a sim propiciando contribuies deliberadas, travaram-seem dois momentos. No incio desse ano fomos convidados para discutirnossas ideias no 4o Encontro Cientfico do Centro de Investigao SobreDesenvolvimento e Educao Infantil CINDEDI.2 Foi uma experinciamuito rica. No se tratava de fazer uma palestra, ou um seminrio, mas defornecer alguns textos por ns considerados bsicos que foram lidos ediscutidos anteriormente pelo grupo. Travou-se nesse contexto um ricodebate visando problematizar conceitos e esclarecer dvidas. Foi uma primeira oportunidade de testagem de conceitos e do inter-relacionamento

    1 Simpsio Internacional sobre Representaes Sociais Questes Epistemolgicas; Natal,

    Rio Grande do Norte, 22 a 25 de novembro de 1998.2 Realizado no perodo de 2 a 5 de fevereiro de 1999 na FFCL da USP em Ribeiro Preto.

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    desses em um ambiente receptivo e disposto a dialogar com o referencialem desenvolvimento. Foram muitas as pessoas presentes e muitas ascontribuies; impossvel, portanto, dar nomes s muitas vozes que sefizeram ouvir. Mas impossvel tambm deixar de mencionar duas colegas Maria Clotilde Rossetti Ferreira e Ana Maria Almeida Carvalho pelocarinho com que acolheram nossos posicionamentos tericos; de mencionaro nome de Carmem Craidy, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pela importante sugesto de leitura de um texto de Fernand Braudel; deagradecer a Ana Paula Soares da Silva e os membros do Grupo de Trabalhode Entrevista, que leram nossos textos com tanta ateno e conduziram odebate com tanta propriedade.

    Um segundo momento de debate ocorreu j na fase de elaborao doscaptulos desta coletnea. Tendo em vista a riqueza da experincia junto aoCINDEDI, achamos que seria interessante apresentar esses captulos ao Ncleo de Pesquisa em Psicologia Social e Sade de modo a usufruir dasexperincias que os membros do Ncleo j tinham no manuseio dosconceitos-chave que sero aqui discutidos. Como participam do Ncleo,direta ou indiretamente, alunos e pesquisadores de outras instituies,comunicamos a eles essa proposta. Ficamos encantados com areceptividade. Muitos compareceram s reunies do Ncleoespecificamente para a discusso dos quatro captulos iniciais. Muitos no puderam comparecer, mas se fizeram ouvir enviando seus comentrios porcorreio. Foram discusses preciosas. Uma experincia inesquecvel detrocas pautadas pelo respeito mtuo at mesmo quando os pressupostos

    no podiam ser compartilhados.Agradecemos muito especialmente as contribuies dos colegas que

    enfrentaram algumas horas de estrada para estarem presentes nessasdiscusses: Marisa Japur, professora da FFCL da USP de Ribeiro Preto; AnaPaula Silva, doutoranda; Emerson Fernando Rasera (o Mera), mestrandonessa mesma Instituio; e Daniel Gonzalo Eslava, doutorando na Faculdadede Enfermagem da USP de Ribeiro Preto. Reconhecemos tambm ascontribuies de colegas da Faculdade de Sade Pblica da USP: Oswaldo

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    VII

    Tanaka, professor do Departamento de Sade Materno Infantil; SniaAndrade e Cristina Melo, doutorandas nesse mesmo Departamento. E, aindaos alunos do Mestrado e Doutorado da PUC-SP, membros atuais ou futuros do Ncleo. Agradecemos ainda os comentrios de colegas que se fizeram presentes por vias eletrnicas, como Jacqueline Machado Brigago, que dalonjura do Kentucky enviou tantas contribuies preciosas; e Marcos Reigotaque em suas perambulaes globais encontrou tempo para nos enviar porcorreio (nada eletrnico) suas ponderaes.

    Restou-nos, assim, o problema da autoria. O que vem a ser autoriaquando tantas vozes se fazem presentes? Quando fazemos interlocuo comtantos autores? Quem somos, o que fizemos? Talvez tudo o que podemosfazer concordar com Dom Torbio de Cceres y Virtudes, personagem doconto de Gabriel Garcia Marquez, Do amor e outros demnios. Conversavam ele e o marqus de Casalduero, quando foram surpreendidos pelas badaladas das cinco.

    horrvel disse o bispo. cada hora me ressoa nas entranhas

    como um tremor de terra.A frase surpreendeu o marqus, pois era o mesmo que ele pensara

    quando soaram as quatro. Ao bispo aquilo pareceu uma coincidncia natural.

    As ideias no so de ningum disse. Com o indicador, desenhouno ar uma srie de crculos contnuos, e concluiu: Andam voando por a,como os anjos.

    Qui, como herdeiros de Bakhtin, no poderia ser de outra forma!!Mas vivendo em outras pocas, coloca-se, sim, a necessidade decontabilizar esforos. Trata-se de reconhecer as contribuies e o tempodespendido e de aceitar a responsabilidade pelas ideias formuladas noconjunto dos textos desta coletnea. Acatar a natureza coletiva das ideiasno elimina a responsabilidade de cada um por faz-las circular. Assumoeu, portanto, a responsabilidade pela organizao desta coletnea. Deixo pblico meu reconhecimento pelo empenho e investimento de dois dos

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    meus colaboradores mais prximos Benedito Medrado e Vera Menegon.Agradeo, ainda, a cuidadosa reviso dos textos feita por Teresa Ceclia deOliveira Ramos, Maria Helena de Carvalho e Rita de Cssia Q. Gorgati.

    De resto, as autorias definem as caractersticas do prprio livro. A primeira parte, mais coletiva e foco dos debates travados, compreendequatro captulos escritos em coautoria. O primeiro, intitulado Prticasdiscursivas e produo de sentido: a perspectiva da Psicologia Social , foiescrito em coautoria com Rose Mary Frezza e visa fornecer o contextohistrico da perspectiva terica endossada na coletnea como um todo.Situa a perspectiva construcionista e a forma de trabalhar com linguagemno mbito da Psicologia Social. O segundo captulo, Produo de sentidono cotidiano: uma abordagem terico-metodolgica para a anlise das prticas discursivas, foi escrito em coautoria com Benedito Medrado e tem por objetivo discutir os pressupostos e definir os conceitos que vmfornecendo subsdios para a compreenso da produo de sentidos nocotidiano a partir da anlise das prticas discursivas. O terceiro captulo, A pesquisa como prtica discursiva: superando os horrores metodolgicos,escrito em coautoria com Vera Mincoff Menegon, volta-se discussometodolgica. Tem como objetivo problematizar o conceito institudo de pesquisa cientfica e apresentar a posio construcionista, buscandoressignificar, nesse processo, o conceito de rigor. O captulo quatro, Rigor evisibilidade: a explicitao dos passos da interpretao, escrito emcoautoria com Helena Lima, retoma a problemtica do rigor luz dos processos de interpretao. Fazendo uma ponte com os captulos seguintes

    da coletnea, introduz algumas das tcnicas que vm sendo utilizadas porns para dar visibilidade ao processo de interpretao.

    Os captulos seguintes, fruto de reflexes e pesquisas realizadas pelogrupo, tm, como no poderia deixar de ser, autoria nica. Buscam, em seuconjunto, abordar a diversidade de formas de coletar informaes para darsubsdios compreenso dos processos de produo de sentido a partir das prticas discursivas. Constituem por vezes exemplos de uso das tcnicasapresentadas no captulo quatro, sem ser esse entretanto seu objetivo

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    explcito. Focalizam as diferentes maneiras em que a construo dialgicado sentido se faz presente no cotidiano.

    Assim, o captulo cinco, intitulado Anlise de documentos dedomnio pblico, de autoria de Peter Spink, explora as possibilidades detrabalhar os documentos de domnio pblico (relatrios, arquivos, jornaisetc.) como processos scio-histricos de construo de saberes e fazeresChama a ateno para as importantes contribuies que os historiadores podem trazer para a Psicologia Social, seja pela forma de anlise eidentificao do material ou pelo tratamento que do temtica do tempoMas pontua tambm a especificidade do tratamento que a Psicologia Sociad a esses documentos visto que eles refletem prticas discursivas que, paraalm do que est impresso em suas pginas, so parte do processo deconstruo da esfera pblica.

    O captulo seis,Garimpando sentidos nas bases de dados, de autoriade Lia Yara Lima Mirim, tem por objetivo discutir a utilizao da literaturacientfica como recurso metodolgico em pesquisa. Para isso, inicia com

    uma discusso sobre a cincia como linguagem social que tem formas peculiares de apresentao e circulao de discursos. Focaliza ento acrescente importncia das bases de dados como acesso literatura cientficae fornece um exemplo de uso de uma base especfica (o Medline) utilizadaem pesquisa sobre a construo social do sentido do teste HIV.

    O captulo sete, Entrevista: uma prtica discursiva, de Odette deGodoy Pinheiro, discute os aspectos terico-metodolgicos relacionados

    (inter)ao dos interlocutores na situao de entrevista. Busca aindaexemplificar os procedimentos de anlise e interpretao de dados relacionado entrevista, entendida como prtica discursiva, a partir de pesquisa focalizadna entrevista inicial de um Servio de Sade Mental da rede bsica.

    O captulo oito, intitulado Por que jogar conversa fora? Pesquisandono cotidiano, de Vera Mincoff Menegon, prope que as conversas podemser algo mais do que um mero hbito corriqueiro do cotidiano. Posicionaassim as conversas como modalidades privilegiadas para o estudo da

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    produo de sentido. Traz, dessa forma, algumas reflexes sobre as peculiaridades e a importncia das conversas nas interaes sociais denosso cotidiano, baseando-se na pesquisa que realizou com conversas cujoassunto em pauta era a menopausa.

    No captulo nove,Textos em cena: a mdia como prtica discursiva,Benedito Medrado focaliza conceitos e processos que so centrais aos estudosem mdia. Discute a reconfigurao entre as dimenses do pblico e privado proporcionada pela mdia a partir de seu poder de dar visibilidade aosfenmenos sociais e de construir novas dinmicas interacionais. De modo ailustrar alguns processos que caracterizam a produo miditica, apresentaalgumas experincias de pesquisa com jornais e comerciais de televiso.

    O captulo dez, Imagens em dilogos: filmes que marcaram nossasvidas, de autoria de Carlos Andr F. Passarelli, busca discutir os pressupostos do processo de recepo de sons e imagens em movimentoque constitui o campo de anlise de filmes. Para tanto, apresenta oselementos que compem a linguagem cinematogrfica, buscando entend-

    los a partir da perspectiva terica dos estudos de linguagem de Bakhtin.Com base nos conceitos de dialogia, enunciao e gneros discursivos busca compreender queimagens podem se formar no campo da PsicologiaSocial a partir das que so projetadas na tela do cinema.

    So todos eles trabalhos estimulantes. Propostas de anlise que buscam entender os fenmenos do cotidiano a partir de um olhar pautado pela dialogia dos processos sociais implcita nas prticas discursivas que

    permeiam nosso dia-a-dia. So olhares novos. Ou talvez apenas novasconfiguraes de velhos olhares.

    Mary Jane Paris SpinkSo Paulo, 15 de junho de 1999

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    CAPTULO I

    PRTICASDISCURSIVAS EPRODUO DESENTIDO:

    A perspectiva da psicologia social

    Mary Jane P. Spink e Rose Mary Frezzaobjetivo deste captulo fornecer o contexto histrico necessrio para acompreenso da proposta terico-metodolgica do estudo da produo

    de sentido no cotidiano, que ser apresentada nos captulos que compem estcoletnea. A contextualizao a ser feita aqui busca situar, no mbito daPsicologia Social, o estudo da produo de sentido a partir da anlise das prticas discursivas. Busca, ainda, situar a produo de sentido como forma dconhecimento que se afilia perspectiva construcionista e situar as prticadiscursivas dentre as vrias correntes voltadas ao estudo da linguagem.

    Faz-se necessrio esclarecer que o objetivo nos posicionarmos nodebate contemporneo. No pretendemos, assim, fazer uma anlise histricada Psicologia Social, do construcionismo ou das correntes filosficas que privilegiam a linguagem. Consideramos necessrio, entretanto, esclarecerquais afiliaes pautam nossa proposta. Do ponto de vista da PsicologiaSocial, buscaremos situar brevemente a genealogia da temtica produo de sentido, aspecto que ser explorado na primeira parte deste captulo.Concebendo o sentido como uma construo dialgica, buscaremos, nasegunda parte do captulo, explicitar os fundamentos epistemolgicos desta proposta a partir de uma breve apresentao da perspectiva construcionistaem Psicologia Social. Finalmente, entendendo ser necessrio tambm situaa noo de linguagem que embasa a proposta de trabalho com prticasdiscursivas, abordaremos essa temtica na terceira parte do captulo.

    Embora focando o estudo da produo de sentido na Psicologia Socialconsideramos que a proposta terico-metodolgica em construo

    O

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    necessariamente interdisciplinar. Buscando responder pergunta:comodamos sentido ao mundo em que vivemos?, tornou-se imprescindvelestabelecer uma interface com a Histria e com a Antropologia comoresultado da necessria reflexo sobre o contingente e o universal , e tambmcom a Filosofia (e mais especificamente com a Epistemologia), a partir dareflexo sobre as formas possveis de concretizar uma proposta metodolgica.Essas interfaces sero expostas e discutidas ao longo dos captulos seguintes.

    1. Psicologia Social e a compreenso do sentido na vida cotidiana

    A expressodar sentido ao mundo nem sempre fez parte do projetoda Psicologia Social, ou pelo menos da ortodoxia da disciplina. Falava-seem percepo, em atitudes, em cognio, em interao, e at mesmo nafora do grupo em direo conformidade, uma espcie de tendnciacentral operando socialmente em direo a mdia. No af de definirconceitos e mecanismos universais passveis de demonstrao emprica decunho experimental, o interesse pela compreenso dos sentidos na vidacotidiana era, no mnimo, visto como suspeito. At os anos setenta, vivia-seo sonho da Psicologia Cientfica, pensando cincia como um fazer pautado pela demonstrao e generalizao dos resultados.

    Ernest Hilgard,1 em influente obra publicada nos anos cinquenta,reiterava o discurso corrente na poca, afirmando que a Psicologia, tal comooutras cincias, busca compreender, predizer e controlar o comportamentode homens e outros animais. Para concretizar o projeto cientfico, apoiava-

    se sobretudo nomtodo, traduzido em sua prtica, a partir da hegemonia domtodo cientfico: ... um procedimento regular, explcito e passvel de serrepetido para conseguir-se alguma coisa, na definio fornecida por Mario

    1 Hilgard, E. (1953), Introduction to Psychology. London: Methuen.

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    Bunge.2 Emerge, desse contexto, a influente vertente da PsicologiaExperimental3 com suas ressonncias na Psicologia Social Experimental.4

    Com raras excees, falava-se pouco em bases filosficas.5

    isso oque aponta Rom Harr,6 em recente reavaliao da Psicologia Socialcontempornea, quando afirma, de forma maliciosa, que os psiclogos soavessos metafsica, visto que a cincia moderna define-se sobretudo pelacontraposio metafsica. Harr, ao usar o termometafsica, faz um jogode palavras; emprega-o no sentido de reflexo crtica sobre a natureza domundo a ser investigado. Diz ele:

    ao contrrio dos fsicos, poucos psiclogos, com exceo de figurasnotveis como Jerome Bruner (...), Michael Billig (...) e John Shotter(...), engajam-se em investigaes filosficas de sua prtica ou noexame crtico das bases metafsicas implcitas de suas teorias (1993:24).

    Eram essas as foras hegemnicas que empurravam os psiclogossociais para o laboratrio, abandonando as razesmais sociais dosfundadores da disciplina (entre eles George Mead e Kurt Lewin) e

    fortalecendo a perspectiva individualista em Psicologia Social.7

    O estudodas atitudes um excelente exemplo desse movimento de progressivaindividualizao dos conceitos centrais da disciplina. Exploradasinicialmente por socilogos e psiclogos, na tradio inaugurada em 1918

    2 Bunge, M. (1980), Epistemologia. So Paulo: T.A. Queiroz, p. 19.3 Veja-se, por exemplo: Woodworth, R. & Schlosberg, H. (1938). Experimental Psychology.London: Methuen (revisado em 1954); Osgood, C. (1953). Method and Theory in Experimental

    Psychology. New York: Oxford University Press (j na stima edio em 1962).4 Em livro publicado em 1966, Robert Zajonc afirmava: A Psicologia Social no um tipoou uma escola da Psicologia. decididamente umramo da Psicologia, e reconheceintegralmente as leis da Psicologia Geral e Experimental.Zajonc, R. (1966).Social Psychology: an Experimental Approach.Califrnia: Wadsworth, p. 2.5 Por exemplo, Piaget, J. (1970). L'pistmologie Gntique. Paris: Presses Universitaires deFrance (traduzido para o portugus pela Editora Vozes).6 Psiclogo e filsofo que contribuiu para as obras iniciais de psicologia crtica.7

    A esse respeito, ver Farr, R. (1996).The Roots of Modern Social Psychology. Oxford:Blackwell (traduzido para o portugus pela Editora Vozes, 1998).

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    pelo estudo de William Thomas e Florian Znaniecki8 sobre camponeses poloneses emigrados para os Estados Unidos, passaram primeiramente poruma purgao nominal, deixando de ser denominadas de atitudes sociais para adotar apenas a qualificao de atitudes.9 Passaram, a seguir, a serestudadas preferencialmente por meio de escalas e situaes experimentaisem laboratrio, abandonando, em larga medida, os estudos de campo.

    No final dos anos cinquenta e na dcada de sessenta, esboava-se umareao ao paradigma dominante de fazer cincia em Psicologia Social,impulsionada inicialmente em duas direes: a valorizao da observao doscomportamentos em situaes naturais e o estudo de comportamentos em seuambiente natural. A valorizao da observao minuciosa doscomportamentos pode ser exemplificada com o fortalecimento do ensino daEtologia nos cursos de graduao10 e com as pesquisas sobre comportamentoinfantil da Psicologia do Desenvolvimento.11 J a perspectivanaturalista doestudo decomportamentos em seu ambiente natural tem na obra de EdwinWillems e Harold Rauch12 um marco importante.

    Inevitavelmente, sair do laboratrio implicava acatar a viso dooutro, o que levou a uma revalorizao do estudo dos processos sociais inspirada, por exemplo, no trabalho de Erving Goffman13 sobre dramaturgia

    8 Thomas, W. & Znaniecki, F. (1958).The Polish Peasant in Europe and America. NewYork: Dover Publ.9 Estamos nos referindo, aqui, ao artigo de G. W. Allport sobre atitudes, publicado em C. A.Murchinson (org.) (1935). Handbook of Social Psychology. Worcester, Mass.: ClarkUniversity Press.10

    O fortalecimento do ensino de Etologia foi impulsionado pelo trabalho de Lorenz eTinbergen, entre outros. Por exemplo, Lorenz, K. (1966).On Aggression. London: Methuen.11 Nesse contexto destaca-se John Bolwby como precursor. Ver Ferreira, M.C.R. (1986). Mes e Crianas separao e reencontro.So Paulo: Edicon.12 Willems, E. P. & Rauch, H. L. (1969). Naturalistic Viewpoints in Psychological Research. New York: Holt.13 Os trabalhos de Goffman marcam uma distino na produo do conhecimento emPsicologia Social, fazendo parte de uma vertente denominada Psicologia Social Sociolgicaque se constituiu em contraposio Psicologia Social Experimental. Dentre elesdestacamos:The Presentation of Self in Everyday Life. New York: Doubleday Anchor, 1959

    (traduzido para o portugus pela Editora Vozes), eStigma. New Jersey, USA: Prentice Hall,1963 (traduzido pela Editora Zahar)

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    e de Serge Moscovici14 sobre o conhecimento do senso comum. Tratava-se,antes de mais nada, de uma virada metodolgica, que reagia contra a psicologia de laboratrio.

    Obviamente o impulso metodolgico tem implicaes para a prpriadefinio do que vem a ser o objeto da Psicologia Social. A partir dos anossessenta, e especialmente na dcada de setenta, surgiram importantesreflexes crticas focando tanto a naturalizao do fenmeno psicolgico (qufaz perder de vista o fato de que os conceitos e teorias so produtos culturaissocialmente construdos e legitimados) como a despolitizao da disciplina(que faz perder de vista o papel da disciplina, entendida como domnio desaber, na legitimao da ordem social). Dentre as obras importantes para estareflexo destacamos (no contexto Europeu):The Context of Social Psychology, organizado por Joachim Israel e Henri Tajfel e publicado em1972; Reconstructing Social Psychology, organizado por Nigel Armistead e publicado em 1974; Radical Perspectives in Psychology, de Nick Heather, publicado em 1976. Essas obras congregam muitos dos autores que, naEuropa, definiram as bases para a Psicologia Social Crtica, solo em que seancoraram os tericos ps-modernos da Psicologia Social.15 Um pouco maistarde, com forte influncia na Amrica Latina, foram publicadas as obras dIgnacio Martn Bar ( Accin e Ideologa, 1983; eSistema, Grupo y Poder,1989 e o livro Psicologia Social: o Homem em Movimento, organizado porSilvia Lane e Wanderley Codo, publicado pela primeira vez em 1984. Soobras que focalizam, tal como os antecessores europeus, a naturalizao edespolitizao da Psicologia, mas que adquirem uma conotao singular po

    serem reflexes feitas a partir do ponto de vista dos dominados. esse, portanto, o contexto histrico em que se apoia a proposta de

    estudo da produo de sentido por meio das prticas discursivas. Antes deadentrar a caracterizao dos posicionamentos construcionistas e suas

    14 La Psychanalise son image et son public.Paris: Presses Universitaires de France, 1961(traduzido para o portugus pela Editora Zahar).15

    Ver, por exemplo, Parker, I. (1989).The Crisis in Modern Social Psychology and how toend it . London: Routledge.

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    implicaes para o trabalho com linguagem, importante frisar que, comoem tantos outros domnios de nossa vida, o novo e o velho convivem, lado alado, na Psicologia Social. Nem toda a Psicologia Social uma psicologiacrtica; e tambm a psicologia crtica apresenta-se polissmica: muitos soos seus sentidos. Nas palavras de Harr:

    A histria da psicologia social nos ltimos vinte anos tem sido (...)uma mistura desconcertante de desenvolvimentos e desapontamentos.Ocorreram expanses e aplicaes vigorosas do novo paradigma,mas, paralelamente, em vrios lugares, algumas das piorescaractersticas do antigo programa persistiram praticamente

    inalteradas (1993:24).H, segundo Harr, duas fontes de conservadorismo na Psicologia

    Social: uma filosfica e outra cultural. A primeira, como mencionamosanteriormente, decorre da falta de reflexo filosfica entre os psiclogos. Asegunda, admite ele, mais sutil e seus efeitos mais difceis de identificarsem cair em afirmaes tendenciosas. Trata-se da longa hegemonia norte-americana na psicologia acadmica, a qual tem exercido uma pressocontnua no sentido da incorporao do individualismo e do cientificismona Psicologia Social e, como consequncia, a resistncia s inovaes.

    2. Constr ucionismo e Psicologia Social

    A perspectiva construcionista resultante de trs movimentos: naFilosofia, como uma reao ao representacionismo; na Sociologia do

    Conhecimento, como uma desconstruo da retrica da verdade, e naPoltica, como busca de empowerment de grupos socialmentemarginalizados. Os trs movimentos so, obviamente, interdependentes,refletindo um movimento mais amplo de reconfigurao da viso de mundo prpria a nossa poca. Sendo impossvel fazer uma discusso mais amplano escopo deste trabalho, iremos focalizar o construcionismo a partir daPsicologia Social e da Sociologia do Conhecimento, apoiando-nos, paraisso, em quatro autores: Peter Berger e Thomas Luckmann, KennethGergen e Toms Ibez.

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    Esses autores utilizam, preferencialmente, a expressoconstruo social para falar da ao, econstrucionismo para referir-se abordagemterica. H autores que empregam o termoconstrutivismo, como por exemploaqueles vinculados s correntes tericas da terapia familiar sistmica,herdeiros de Gregory Bateson e Paul Watzlawick, da Escola de Palo Alto,Califrnia.16 O uso desse termo pode, entretanto, gerar confuses conceituais,uma vez que ele empregado tambm pelos autores vinculados escola piagetiana para referir-se centralidade da atividade do sujeito nodesenvolvimento cognitivo. O termoconstrutivismo, dessa forma, d margem adeso (ainda que no intencional) a uma perspectiva individualista, mesmoquando o indivduo concebido como um ser em sociedade; lembramos que para o construcionismo, a prpria noo de indivduo uma construosocial.17 Decorre da nossa opo por essa nomenclatura.

    2.1. O construcionismo na perspectiva da Sociologia do Conhecimento

    Quando falamos em construcionismo, vem mente o nome de PeterBerger e Thomas Luckmann, e de seu livro, j um clssico, intitulado A

    Construo Social da Realidade, publicado originalmente em 1966. ASociologia do Conhecimento tem ancestrais imponentes: Karl Marx, pelareflexo sobre a relao entre a atividade humana e a conscincia, presentesobretudo nos Manuscritos Econmicos e Filosficos; Friedrich Nietzsche, pelo anti-idealismo ferrenho daGenealogia da Moral e de A Vontade de Potncia, e Wilhem Dilthey, pelo historicismo marcante de sua obra. Mas adisciplina propriamente dita tem como fundadores Max Scheler, filsofoalemo que cunhou o termoSociologia do Conhecimento na dcada devinte, e Karl Mannheim, que lhe deu os contornos clssicos, centrados narelao entre ideologia e verdade.

    Em seus primrdios, a Sociologia do Conhecimento focalizavaquestes epistemolgicas utilizando, como campo emprico, a histria da

    16 Ver, por exemplo, Watzlawick, P.; Beavin, J. H. & Jackson, D. D. (1968). Pragmatics of Human Communication. London: Faber and Faber.17

    Vide, por exemplo, a excelente anlise de Nicholas Rose sobre o tema. Rose, N. (1992)Individualizing Psychology. Em J. Shotter & K. J. Gergen:Texts of Identity. London: Sage.

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    ideias ou a histria das cincias. Berger e Luckmann subvertem essa ordeminstituda partindo de uma reorientao da reflexo, centrando-se noconhecimento do homem comum. A crtica que fazem com relao compreenso intelectualista do conhecimento que o restringe ao pensamento terico, pois, nessa dimenso, no se leva em conta oconhecimento que os homens comuns tm da realidade, ou seja, oconhecimento do senso comum. Para esses autores, a importncia de focaressa dimenso do conhecimentose justifica medida que precisamenteeste conhecimento que constitui o tecido de significados sem o qualnenhuma sociedade poderia existir (Berger & Luckmann, 1966/1976:30).

    Berger e Luckmann so inovadores, mas pertencem a sua poca.Falam em homens para referirem-se s pessoas, no reconhecendo osavanos da reflexo feminista; usam e abusam de conceitos problemticoscomo realidade e conhecimento, embora os usem entre aspas, e fazem umadistino, hoje suspeita, entreideias domnio dos homens sbios e sensocomum domnio do povo.

    Na obra acima referida, os autores partem do pressuposto de que arealidade socialmente construda e que a Sociologia do Conhecimentodeve analisar como isso ocorre. Eles operacionalizam sua proposta a partirda indagao: como possvel que os significados subjetivos se tornemfacticidades objetivas? Essa indagao respondida a partir de trsconceitos centrais da proposta terica dos autores: tipificao,institucionalizao e socializao. A partir do conceito detipificao, eles propem que a sociedade um produto humano (ou seja, a realidade construda socialmente). Essa uma proposta interacionista, medida que a base da realidade da vida cotidiana so as interaes face a face em que ooutro apreendido a partir de esquemas tipificadores. As heranas de Meade Goffman so visveis. Um exemplo de esquemas tipificadores so os preconceitos (de gnero, de raa etc.).

    Partindo do pressuposto de que a sociedade uma realidade objetiva,

    usam o conceito deinstitucionalizao para situar como essa objetividade

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    construda. Defendem que os esquemas tipificadores, a partir dos quais ooutro apreendido, tornam-se habituais com o decorrer das geraes e,como hbitos, adquirem autonomia e institucionalizam-se. justamenteesse processo de institucionalizao que gera aobjetividade percebida. Essaobjetividade instituda internalizada por meio de processos de socializao primria e secundria. O pressuposto, aqui, que ohomem um produto social . Mas no se trata de um modelo esttico pois, se asocializao um instrumento deconservao, os processos deressocializao e as rupturas decorrentes do enfrentamento do no familia possibilitam a ressignificao e a transformao social.

    2.2. O construcionismo na Psicologia Social

    Berger e Luckmann, como socilogos, preocuparam-se sobretudocom os processos de conservao e transformao social: da focalizarem o processos de tipificao, institucionalizao e socializao. J os autores daPsicologia Social, que so porta-vozes dessa perspectiva no mbito dadisciplina, tendem a focalizar justamente o momento da interao, ou seja

    os processos de produo de sentido na vida cotidiana. Kenneth Gergen, umdos primeiros psiclogos sociais a focalizar o conhecimento nessa perspectiva, ser nosso principal interlocutor com base em um artigo publicado no American Psychologist em 1985.18 Nesse artigo, ele define oque vem a ser a investigao construcionista: A investigaosocioconstrucionista preocupa-se sobretudo com a explicao dos processo por meio dos quais as pessoas descrevem, explicam ou do conta do mundo(incluindo a si mesmos) em que vivem (Gergen, 1985:266).

    A investigao, sob essa perspectiva, difere do enfoque tradicional por transferir olocus da explicao dos processos de conhecimento internos mente para a exterioridade dos processos e estruturas da interaohumana. Gergen afirma:

    18

    Para uma verso mais recente da posio de Gergen, ver: Gergen, K. (1994). Realities and Relationships: soundings in social construction.Cambridge, Mass.: Harvard University Press.

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    Os termos em que o mundo conhecido so artefatos sociais, produtosde intercmbios historicamente situados entre pessoas (...). Nessesentido, convida-se investigao das bases histricas e culturais das

    variadas formas de construo de mundo (...). As descries eexplicaes sobre o mundo so formas de ao social. Desse modo,esto entremeadas com todas as atividades humanas (1985:267-268).

    Essa forma de posicionar-se perante o conhecimento implica, por umlado, abdicar da viso representacionista do conhecimento, a qual tem como pressuposto a concepo de mente como espelho da natureza (Rorty,1979/1994); e, por outro, adotar a concepo de que o conhecimento no

    uma coisa que as pessoas possuem em suas cabeas, e sim algo que constroem juntas. A adoo plena da perspectiva construcionista exige, assim, um esforode desconstruo de noes profundamente arraigadas na nossa cultura.

    O termodesconstruo utilizado, aqui, para se referir ao trabalhonecessrio de reflexo que possibilita uma desfamiliarizao comconstrues conceituais que se transformaram em crenas e, enquanto tais,colocam-se como grandes obstculos para que outras possam serconstrudas. Damos preferncia ao termodesfamiliarizao porquedificilmente des-construmos o que foi construdo. Criamos espao, sim, para novas construes, mas as anteriores ficam impregnadas nos artefatosda cultura, constituindo o acervo de repertrios interpretativos disponveis para dar sentido ao mundo. Decorre da a espiral dos processos deconhecimento, um movimento que permite a convivncia de novos eantigos contedos (conceitos, teorias) e a ressignificao contnua e

    inacabada de teorias que j caram em desuso.Para falar desses esforos de desfamiliarizao nos apoiaremos nos

    escritos de Toms Ibez, psiclogo social da Universidade Autnoma deBarcelona. Utilizaremos mais especificamente um texto publicado em 1994no qual Ibez aborda quatro temticas que esto no cerne do realismofundante da retrica da cincia na modernidade: a dualidade sujeito-objeto,a concepo representacionista do conhecimento, a retrica da verdade e ocrebro como instncia produtora de conhecimento.

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    A crena na dualidade sujeito-objeto apoia-se em trs posturasepistemolgicas: o empirismo, o idealismo e o interacionismo. Para oempirismo, o objeto a determinao ltima do conhecimento, de modo que projeto cientfico consiste em aproximaes, cada vez mais precisas, a esseobjeto. J para o idealismo, a possibilidade do conhecimento no se encontrdo lado do objeto, mas sim do sujeito. Trata-se das categorias do entendimentoconstitutivas da mente humana, as quais so universais e necessrias para oconhecimento. Por fim, para o interacionismo, o conhecimento produzido ninterao entre sujeito e objeto, apresentando, portanto, caractersticas deambos. Essa , a bem dizer, uma verso fraca de construcionismo.

    Na perspectiva construcionista, tanto o sujeito como o objeto soconstrues scio-histricas que precisam ser problematizadas edesfamiliarizadas. Acatar essa afirmao, entretanto, implica problematizaa noo de realidade. Alguns dos pensadores construcionistas acabam poracatar uma dupla noo de realidade, pautada, por um lado, pelo realismoontolgico (ou seja, a postulao da existncia da realidade) e, por outro pelo construcionismo epistemolgico, ou seja, a postulao de que arealidade no existe independente de nosso modo de acess-la.19 Issosignifica que o nosso acesso realidade que institui os objetos que aconstituem. Dito de outra forma, s apreendemos os objetos que se nosapresentam a partir de nossas categorias, convenes, prticas, linguagemenfim, de nossos processos de objetivao.

    Por sua vez, a crtica daconcepo representacionista doconhecimento uma decorrncia da desfamiliarizao da dicotomia sujeito-objeto. Se os objetos da natureza so constitudos por nossas categorias, seessas categorias so artefatos humanos, produtos de interaeshistoricamente situadas, ento a hegemonia dos sistemas de categoriasdepende das vicissitudes dos processos sociais e no da validade interna doconstructos. Isso significa dizer que o conhecimento no uma

    19

    Por exemplo, Baskar, R. (1997). On the ontological status of ideas. J. for the Theory ofSocial Behavior 27 : 2/3.

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    representao nem uma traduo de algo que pertence realidade externa.Entretanto, essas construes no so fices desenfreadas. No se trata deum vale-tudo, porque elas tm como limite as prprias caractersticas doshumanos que as produzem, ou seja, as caractersticas sociais e biolgicas de pessoas historicamente situadas.

    A obra Making Sex, de Thomas Laqueur (1990), exemplar parailustrar o que acaba de ser dito. Nesse livro, o autor focaliza a mudana deconcepo que ocorreu nos ltimos sculos sobre a anatomia dos rgossexuais femininos. Desde Galeno (130 a 200 a.C.) acreditou-se que os rgossexuais femininos eram, anatomicamente, iguais aos masculinos, s queinternalizados. Essa concepo anatmica implicava uma srie de restries vida da mulher, pois os exageros poderiam acarretar na expulso dessesrgos e na consequente mudana de sexo. Com o advento da anatomia ecom a dissecao sistemtica de cadveres, as evidncias acabaram por mostrarque essa concepo era infundada. Da, ento, outro modelo interpretativotornou-se possvel. No entanto, apesar das evidncias anatmicas, foi precisoainda quase um sculo para a construo de uma nova concepo. A antigadesfez-se, perdendo sua coerncia interna; entretanto, muitos de seuselementos ainda hoje esto presentes, reconfigurados numa teoria de gnero.Basta pensar no poder organizador da dualidade ativo-passivo.

    A desfamiliarizao da objetividade implcita naretrica da verdade baseia-se na crtica da concepo de verdade comoconhecimento absoluto.Trata-se, aqui, de perceber que no h uma verdade absoluta. A verdade averdade de nossas convenes, embora, nem por isso, menos impositiva.Segundo Ibez, se os critrios de verdade so estabelecidos socialmente,no h portanto nada que seja verdade no sentido estrito da palavra(1994:45). No entanto, Ibez no prope que vivamos num mundo semverdades; sugere apenas que elas so sempre especficas e construdas a partirde convenes pautadas por critrios de coerncia, utilidade, inteligibilidade,moralidade, enfim, de adequao s finalidades que designamoscoletivamente como relevantes. importante observar que essa mudana de perspectiva sobre a verdade no significa que possamos abrir mo dela,

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    incondicionalmente, no sentido de que no existem diferenas entreenunciados verdadeiros e falsos ou de que algum pode estabelecer o que verdadeiro, de livre e espontnea vontade. O que a postura construcionistareivindica a necessidade de remeter averdade esfera da tica; pontuarsua importncia no como verdade em si, mas como relativa a ns mesmos.

    A concepo do crebro como a instncia produtora do conhecimento parte da constatao bvia de que no podemos pensar se no possumos umcrebro e de que o pensamento fica prejudicado quando lesionamosdeterminadas partes do crebro. Com base nessas constataes, afirma-sefrequentemente, que os mecanismos do pensamento esto situados apenas ncomplexa estrutura de neurnios. Ibez procura mostrar que, embora ocrebro constitua uma condio de possibilidade para o pensamento, essa no a nica condio. O conhecimento contingente, tambm, s ferramentasdisponveis como, por exemplo, a prpria estrutura lingustica , as quais so produes sociais. Entretanto, seria uma reduo dizer que o pensamento produto apenas das prticas sociais. Para Ibez, o mais correto seria dizer quo pensamento tem sua condio na interface entre crebro e sociedade, e portanto, no numa substncia, mas num processo (1994:47).Consequentemente, se todo o corpo social se constitui a partir dos organismoque lhe do sustento, sendo esse o nvel que cabe s cincias biolgicas (poexemplo, o estudo do crebro), o pensamento, por se constituir na interfacecrebro-social, deve se situar no nvel das cincias sociais.

    Para entender a linha de argumentao utilizada por Ibez, basta pensar no impacto dastecnologias da inteligncia a escrita, a imprensa, amicroinformtica, entre outras. Entender o pensamento e o conhecimentocomo fenmenos intrinsecamente sociais possibilita superar trs premissaque impedem uma adeso plena ao construcionismo: 1) o internalismo, quesitua os processos cognitivos dentro da cabea e reduz a explicao aos processos neurolgicos; 2) o essencialismo, que faz da cognio um objetonatural, e 3) o universalismo, que faz da nossa forma atual de pensar aforma cannica de pensamento.

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    Os antipodianos, seres ficcionais que habitam um planeta em outragalxia, utilizados por Richard Rorty (1979/1994) para desnaturalizar a perspectiva da mente como espelho da natureza, constituem bons exemplosda possibilidade de outras formas de pensamento. Muito semelhantes a ns,eles diferiam num aspecto fundamental: no sabiam que tinham mentes,nem o que significavam osestados mentais. Como as disciplinas maisavanadas eram a neurologia e a bioqumica, grande parte da conversaoentre as pessoas referia-se ao estado de seus nervos: diziam, Isso faz o meufeixe neurnico G-14 estremecer, mas no tinham noes como sentir -semaravilhosamente bem. Rorty imagina, ento, a chegada de umaexpedio vinda da Terra, trazendo consigo alguns filsofos, e a polmicaque se estabeleceria com a tentativa detraduzir os modos de apreensoantipodianos para os terrqueos. A possibilidade de ruptura com o habitual,de estranhamento, , pois, o passo primeiro para a desfamiliarizao denoes que foram naturalizadas.

    2.3. Objees ao construcionismo

    Como toda proposta que se contrape ao que nos parece bvio,natural e legtimo, a abordagem construcionista do conhecimento tende aser ou absolutamente ignorada ou violentamente contestada. A contestaotem como principais alvos o relativismo e o reducionismo lingustico.

    A crtica endereada aorelativismo associado ao construcionismo pauta-se numa definio especfica do termo a partir da qual toda equalquer crena sobre um dado tpico igualmente aceitvel. Crtica

    semelhante endereada ao pragmatismo, perspectiva filosficaintrinsecamente associada ao construcionismo. Richard Rorty (1996)comenta: Os filsofos que so chamados de relativistas so os queafirmam que as razes para a escolha entre tais opinies [referindo-se aopinies incompatveis] so menos pautadas por algoritmos do que se pensava (Rorty, 1996:166). A querela, diz ele, no entre pessoas queacham que um ponto de vista to bom quanto qualquer outro e os que no

    pensam assim. A querela entre aqueles que pensam que nossa cultura,

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    nossos objetivos ( purpose) e instituies no podem ser sustentados a noser conversacionalmente, e as pessoas que ainda almejam outros tipos desuporte (Rorty, 1996:167). Trata-se, em suma, da querela entre os quealmejam atingir as essncias, os princpios transcendentais herdeiros dePlato, ressignificado por Kant e os que enfatizam a conversao como princpio bsico da liberdade herdeiros da dialtica,20 portanto.

    Sendo uma vertente do historicismo de Hegel, reinterpretado porDilthey , o construcionismo incorpora a noo de que os critrios econceitos que utilizamos para descrever, explicar, escolher entre as opesque se apresentam so construes humanas, produtos de nossasconvenes, prticas e peculiaridades. Como construes histricas eculturais, elas no podem, por princpio, ser invariantes. Entretanto, esserelativismo histrico e cultural s se torna claro numa perspectiva de anlisede tempo longo. No cotidiano de nossas vidas, somos, de fato, produtosde nossa poca e no escapamos das convenes, das ordens morais e dasestruturas de legitimao. A pesquisa construcionista , portanto, umconvite a examinar essas convenes e entend-las como regras socialmenteconstrudas e historicamente localizadas. um convite a aguar a nossaimaginao e a participar ativamente dos processos de transformao socialImpe-se, em contrapartida, a necessidade de explicitao de nossas posies: no a escolha arbitrria entre opes tidas como equivalentes, maa opo refletida a partir de nossos posicionamentos polticos e ticos.

    Quanto aoreducionismo lingustico, no h dvida de que, para oconstrucionismo,algo adquire o estatuto de objeto a partir do processo deconstruo lingustico-conceitual. Isso no quer dizer, entretanto, que todosos fenmenos se reduzam linguagem; que essealgo que adquire estatutode objeto a partir da linguagem seja de natureza lingustica. Quer dizer,apenas, que o construcionismo reconhece a centralidade da linguagem nos processos de objetivao que constituem a base da sociedade de humanosLembramos, ainda, que a centralidade da linguagem no pensamento no

    20 Tomado, aqui, no sentido de arte da conversao, conforme o termo grego.

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    absolutamente um privilgio do construcionismo. Outras correntesfocalizaram os processos lingusticos: por exemplo, Vygotsky,21 importante precursor de uma perspectiva que d linguagem papel central nodesenvolvimento cognitivo e que, sobretudo, conceitua a linguagem numa perspectiva social. O prximo tpico busca, assim, situar a perspectivalingustica com a qual nos propomos a trabalhar.

    3. A l ingu agem como prti ca social

    A linguagem tornou-se um tpico moderno e, como tal, passou a ser

    moda falar navirada lingustica e citar Wittgensteinad nauseum.Trata-sede um terreno complexo por ser transdisciplinar e contar, portanto, com umamultiplicidade de abordagens, cada qual presa a seu sistema de refernciaterico e metodolgico. A proposta, aqui, no dar uma viso de conjunto dalinguagem no pensamento contemporneo, at porque isso requereria umaprofundamento na Filosofia da Linguagem que extrapolaria o escopo destecaptulo. O objetivo to-somente situar a perspectiva lingustica que vemsendo usada na Psicologia Social de cunho construcionista e, mais particularmente, os pressupostos lingusticos que vm norteando essetrabalho. Destacaremos, assim, brevemente, duas correntes analticas: a quefocaliza as trocas lingusticas e a que focaliza o discurso.

    3.1. O foco nas trocas lingusticas

    Sem dvida, o que est em pauta nas anlises discursivas da PsicologiaSocial a linguagem em uso. Fica mais fcil entender essa perspectivaapoiando-nos em autores que buscam, justamente, situ-la no conjunto dostrabalhos sobre linguagem. Esse o caso de Jerome Bruner. Em um artigo publicado em 1984, Bruner prope que, ao estudarmos a linguagem, nossosobjetivos associam-se a trs possveis critrios, descritos a seguir.

    1) Foco na boa formatao (well formedness): (...) perguntamos dosenunciados se eles so bem formados no sentido de conformar-se s

    21 Vygotsky, L. S. (1989). Pensamento e Linguagem. So Paulo: Martins Fontes.

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    regras gramaticais que governam a linguagem (Bruner, 1984:969).Trata-se da esfera da sintaxe cuja anlise refere-se s relaes entresignificantes, e que no busca entender o sentido dos enunciados ouo uso que deles feito.

    2) Foco no sentido (meaningfulness): (...) isso, como sabemos, umadupla questo. Um enunciado refere-sea algo no mundo real, ouem um mundo possvel, e tem um sentido. Os dois aspectos juntosconstituem o sentido (meaning ) (1984:971). Estamos, aqui, naesfera da semntica, cuja anlise refere-se aos significados.Estritamente falando, o debate histrico principal centra-se nagnese primeira, se gramtica (sintaxe) ou semntica. O contextono foi problematizado at o filsofo H. Grice22 publicar um artigoem 1957 no qual propunha a existncia de dois possveis tipos de sentido: o sentido a-histrico (timeless) e o sentido ocasional, presoao contexto de uso. Isso nos leva, assim, a um terceiro critrio possvel para a anlise lingustica, o performtico.

    3) Foco na performtica: as regras da pragmtica (ou melhor,asmximas da pragmtica) tm a ver com quando, em que condies,com que inteno e, obviamente, de que modo devemos falar(1984:972). Essa a esfera da pragmtica da linguagem, a qual serefere s condies de uso dos enunciados e que tem como figurasfundantes dois filsofos: John Austin, que em 1962 publicou oinfluente livro How to do Things with Words, e John Searle, que em1969 publicou o livroSpeech Acts: an essay in the philosophy of

    language. Obviamente, so esses mesmos critrios que pautam asreflexes de outro influente filsofo da linguagem, Wittgenstein,cujo livro Philosophical Investigations foi publicado em 1953.

    Essa tipologia til medida que possibilita situar as contribuies defilsofos e linguistas, contrapondo, por exemplo, Noam Chomsky, quefocaliza a gramtica generativa, e Mikhail Bakhtin, que focaliza os aspectos

    22 Grice, H. P. (1957). Meaning. Philosophical Review,66.

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    No entanto, ambas so abordagens minimalistas que focalizam asmincias da interao lingustica to excessivamente que perdem de vista ocontexto da interao. Em contraste com esse tipo de anlise, a segundacorrente aqui considerada a perspectiva discursiva procura problematizaro contexto discursivo, sem perder de vista a interao.

    3.2. A perspectiva discursiva

    A linguagem tambm se tornou foco de interesse para autores voltados compreenso do poder dos discursos emanados de diversas esferas de sabercunhando-se a a expresso anlise de discursos. Dois autores servem de

    referncia a essa rea. O primeiro deles Michel Foucault, que exerceugrande influncia nos debates e investigaes sobre as relaes entre saber e poder, especialmente por meio de seus trabalhos de arqueologia, que tm nolivro A Arqueologia do Saber , publicado em 1969, uma sistematizao dosaspectos conceituais que orientaram suas obras anteriores: Histria da Loucura, Nascimento da Clnicae As Palavras e as Coisas24. O segundoautor, mais hermtico, mas tambm essencial para entender o que vem a ser

    um esforo de desconstruo do texto, Jacques Derrida. dele a afirmaode que no h nada alm do texto, o que o leva a um embate com asvertentes interpretativas que buscam o sentido do texto privilegiando o queest fora do texto, tomando o contexto como referente do sentido.

    Embora os autores tericos mencionados venham de uma tradio ps-estruturalista, o termoanlise de discurso tende a ser identificado como mtodo introduzido por M. Pcheux a anlise automtica do discurso ,

    que essencialmente um empreendimento estruturalista. Para Pcheux, umdiscurso determinado pelas condies de produo e por um sistemalingustico. Desde que se conheam as condies de produo e o sistemalingustico, pode-se descobrir a estrutura organizadora ou processo de produo, atravs da anlise da superfcie semntica e sinttica dessediscurso (ou conjunto de discursos) (Bardin, 1979:214). As condies de

    24 Publicao original em 1961, 1963 e 1966, respectivamente.

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    produo, para Pcheux, so definidas peloslugares ocupados pelo emissore receptor na estrutura de uma formao social.

    Essa uma proposta que se aproxima das configuraes atuais daPsicologia Social Discursiva, que tem em Jonathan Potter (Potter &Wetherell, 1987; Potter, 1996a) e Ian Parker (Parker, 1989; Burman &Parker, 1993) seus mais loquazes tericos. Parker, com certeza, identifica-secom a perspectiva ps-estruturalista, termo que ele emprega para referir-se sdiversas abordagens que suspeitam da pretenso de que possvelexperienciar um mundo que estaria para alm da linguagem. Dentro dessa perspectiva, os pesquisadores buscam, segundo Parker, entender como osobjetos (tais como personalidade, atitudes e preconceitos) so construdos nodiscurso e como so a construdos os sujeitos como ns nosexperienciamos quando falamos e quando ouvimos outros falarem sobre ns.

    Potter e colaboradores aproximam-se dessa perspectiva ao inclurementre os aspectos centrais de sua teoria a noo de repertrios interpretativos o conjunto de termos, lugares-comuns e descries usado em construes

    gramaticais e estilsticas especficas. Mas a nfase de sua proposta nousoda linguagem e, para isso, ancoram-se na tradio da etnometodologia.

    A anlise de discurso, segundo Potter e colaboradores, focaliza trstemticas: a funo, a construo e a variao. A funo refere-se ao discursotomado como ao, pois to produtor de realidade quanto qualquer aoconcreta. Esse aspecto de sua teoria tem forte influncia de Austin, Searle eWittgenstein. J aconstruo diz respeito ao uso dos recursos lingusticos

    preexistentes os repertrios interpretativos , o que implica seleo eescolha. Por fim, avariao concebida como consequncia da funo e daconstruo, ou seja: se o discurso construdo para a ao, diferentessituaes implicariam a construo de diferentes discursos.

    As prticas discursivas, assim situadas, constituem o foco central deanlise na abordagem construcionista. Implicam aes, selees, escolhas,linguagens, contextos, enfim, uma variedade de produes sociais das quais

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    so expresso. Constituem, dessa forma, um caminho privilegiado paraentender a produo de sentido no cotidiano.

    Para concluir, importante retomar em seus diversos aspectos ocontexto histrico do qual emerge o projeto terico-metodolgico de estudoda produo de sentido a partir das prticas discursivas, pois esse o solo qulhe d sustentao e possibilita seus desenvolvimentos. Propor que a produo de sentido uma fora poderosa e inevitvel da vida em sociedade buscar entender como se d sentido aos eventos do nosso cotidiano fez comque novos horizontes se abrissem e novas perspectivas pudessem serconsideradas. Quando a questo do sentido no pode mais ser respondidasomente no mbito da lngua, da sintaxe e da semntica; quando a produodo conhecimento comea a ser questionada por desconsiderar, justamenteaquilo que sua base, o senso comum; quando a Psicologia Social comea afazer sua prpria crtica quanto ao que produz e quanto despolitizao daresultante, tem-se, ento, a configurao de um contexto propcio para nova buscas: conceitos, mtodos, epistemologia, teoria, viso de mundo. portanto, no bojo desse movimento que se vem construindo essa nova proposta que denominamos prticas discursivas e produo de sentido.

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    CAPTULO II

    PRODUO DESENTIDO NOCOTIDIANO:

    Uma abordagem terico-metodolgicapara anlise das prticas discursivas

    Mary Jane P. Spink e Benedito Medrado

    sentido uma construo social, um empreendimento coletivo, mais precisamente interativo, por meio do qual as pessoas na dinmica das

    relaes sociais historicamente datadas e culturalmente localizadas constroem os termos a partir dos quais compreendem e lidam com assituaes e fenmenos a sua volta. Neste captulo, pretendemos discutir pressupostos e conceitos que nos tm fornecido subsdios para apreender, pomeio da anlise das prticas discursivas, a produo de sentido no cotidiano.

    Em nossa perspectiva, dar sentido ao mundo uma fora poderosa einevitvel na vida em sociedade. Esse pressuposto est na base dodesenvolvimento da Psicologia Social, seja na sua vertente sociocognitivaseja na sua vertente interacional. Quanto vertente sociocognitiva, bastarecordarmos que, em suas razes, esto as proposies da teoria da Gestalt esua nfase na seletividade dos processos perceptivos.1 Quanto vertenteinteracional, lembramos que, nas bases das teorizaes sobre a interao

    humana, esto os processos de comunicao e a atividade de interpretaoque os acompanha. 2

    Coerentes com a perspectiva psicossocial, propomos, aqui, que a produo de sentido no uma atividade cognitiva intraindividual, nem

    1 Ver, por exemplo: Codol, Jean Paul (1988). Vingt ans de cognition sociale. Bulletin de Psychologie. XLII(390), 472-491. 2

    Ver, por exemplo: Blumer, Herbert (1986).Symbolic Interactionism perspectives andmethods.Berkeley, Los Angeles e California: University of California Press.

    O

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    pura e simples reproduo de modelos predeterminados. Ela uma prticasocial, dialgica, que implica a linguagem em uso. A produo de sentido tomada, portanto, como um fenmeno sociolingustico uma vez que o usoda linguagem sustenta as prticas sociais geradoras de sentido e buscaentender tanto as prticas discursivas que atravessam o cotidiano(narrativas, argumentaes e conversas, por exemplo), como os repertriosutilizados nessas produes discursivas.

    Essa abordagem terico-metodolgica est embasada no referencialdo construcionismo social,3 como apresentado no captulo um, e alia-se aos psiclogos sociais que trabalham, de formas variadas, com prticasdiscursivas,4 sendo melhor definida a partir de trs dimenses bsicas:linguagem, histriae pessoa.

    1. L inguagem em uso:

    Introduzindo o conceito de prticas discursivas

    A concepo de linguagem que adotamos est centrada nalinguagemem uso. Mais precisamente, entendemos a linguagem como prtica social e,com base em nossa abordagem terico-metodolgica, buscamos trabalhar ainterface entre os aspectos performticos da linguagem5 e as condies de produo, entendidas tanto como contexto social e interacional, quanto nosentido foucaultiano de construes histricas. Usamos, portanto,terminologia distinta para trabalharmos em diferentes nveis de anlise. necessria, assim, uma distino entre discurso e prticas discursivas.

    O discurso, em nossa perspectiva, remete s regularidadeslingusticas, ou, para utilizarmos uma expresso de Bronwyn Davies e Rom

    3 Autores como Rorty (1979/1994), Gergen (1985) e Ibez (1993a) so alguns dos que seidentificam com o referencial construcionista e que embasam nossa abordagem.4 Alguns desses autores(as) so: Moscovici (1961), Potter e Mulkay (1985), Potter e Reicher(1987), Potter e Wetherell (1987), Jodelet (1989), Parker (1989), Davies e Harr (1990),

    Potteret alli(1990), Billig (1991), Potter e Billig (1992), Shotter (1993), Potter (1996a).5 Sobre a linguagem e sua dimenso performtica, ver captulo um.

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    Harr (1990), aouso institucionalizado da linguagem e de sistemas de sinais de tipo lingustico. Esse processo de institucionalizao pode ocorrertanto no nvel macro dos sistemas polticos e disciplinares, como no nvemais restrito de grupos sociais. Diferentes domnios de saber tais como aPsicologia, a Sociologia, a Antropologia, a Histria tm seus discursosoficiais. Diferentes grupos sociais como uma organizao nogovernamental, um sindicato, um partido tm seus discursos. Diferentesestruturas de poder tm seus discursos.

    Sendo institucionalizado, h uma tendncia permanncia no tempo,embora o contexto histrico possa mudar radicalmente os discursos: bastaatentarmos, por exemplo, para o discurso mdico sobre ahomossexualidade, ao longo dos anos. Alm disso, num mesmo contextohistrico, possvel identificar, como defendem Davies e Harr (1990),discursos que podem competir entre si ou criar verses distintas eincompatveis acerca de um dado fenmeno social.

    Assim concebidos, os discursos aproximam-se da noo de

    linguagens sociais, que, na definio de Mikhail Bakhtin (1929/1995), soos discursos peculiares a um estrato especfico da sociedade uma profisso, um grupo etrio etc. , num determinado contexto, em umdeterminado momento histrico.

    Alm disso, o contexto situao, interlocutores presentes ou presentificados, o espao, o tempo etc. molda a forma e o estilo ocasionaldas enunciaes, isto , os speech genres. Segundo Bakhtin (1995), os

    speech genresou gneros de fala, so as formas mais ou menos estveis deenunciados, que buscam coerncia com o contexto, o tempo e o(s)interlocutor(es). Por exemplo, ao se encontrarem, duas pessoas comfrequncia empregam enunciados tpicos, como:1. Oi, tudo bem? 2. Tudobem, e voc?; ou, num primeiro encontro:1. Muito prazer! 2. O prazer todo meu! Num enterro, comum o enunciado Meus psames! E, rarssimasvezes, algum dir Meus parabns!, embora, apesar da baixa probabilidade,

    isso no seja completamente improvvel.

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    Assim, inegvel que existem prescries e regras lingusticassituadas que orientam as prticas cotidianas das pessoas e tendem a mantere reproduzir discursos. Sem elas, a vida em sociedade seria impraticvel.Mas, embora o conceito de discurso aponte para uma estrutura dereproduo social ou seja, a linguagem vista a partir das regularidades ,ele no desconsidera a diversidade e a no regularidade presentes em seuuso dirio pelas pessoas. , antes de tudo, uma questo de foco, de distinoentre o que se elege como figura/fundo. Qualquer fenmeno social pode servisto luz das regularidades, como no caso, por exemplo, daEpidemiologia, em relao aos fenmenos do campo da sade. Entretanto,se procurarmos entender os sentidos que uma doena assume no cotidianodas pessoas, passamos a focalizar a linguagem em uso. O olhar recai sobre ano regularidade e a polissemia (diversidade) das prticas discursivas.

    interessante resgatar aqui a metfora do binculo. Se olharmosatravs desse instrumento, conseguimos visualizar uma cena composta detal forma que a especificidade de seus elementos pouco interferem noconjunto, a totalidade aponta para alm da soma de suas partes. Vemos, porexemplo, uma densa floresta. Ao invertermos esse mesmo instrumento, passaremos a visualizar no mais a primeira cena, mas uma outra imagem,uma outra cena. Vemos, por exemplo, uma formiga sobre uma pequenafolha seca. A formiga estava l, por certo, desde a primeira observao, porm nosso olhar, no primeiro momento, s nos permitiu nomear afloresta. Por meio desse exerccio, possvel perceber que focos diferentes produzem objetos distintos, irredutveis um ao outro. No se trata, portanto,

    de observar a especificidade diante do global, nem de observar o global emdetrimento da especificidade.

    Usualmente, pela ruptura com o habitual que se torna possvel darvisibilidade aos sentidos. essa, precisamente, uma das estratgias centrais da pesquisa social. Por exemplo, numa entrevista, as perguntas tendem a focalizarum ou mais temas que, para os entrevistados, talvez nunca tenham sido alvode reflexes, podendo gerar prticas discursivas diversas, no diretamente

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    associadas ao tema originalmente proposto. Estamos, a todo momento, emnossas pesquisas, convidando os participantes produo de sentido.

    Discurso, linguagem socialou speech genre so conceitos quefocalizam, portanto, o habitual gerado pelos processos de institucionalizaoO conceito de prticas discursivasremete, por sua vez, aos momentos deressignificaes, de rupturas, de produo de sentido, ou seja, correspondeaos momentos ativos do uso da linguagem, nos quais convivem tanto aordem como a diversidade.

    Podemos definir, assim, prticas discursivascomo linguagem em

    ao, ou seja, as maneiras a partir das quais as pessoas produzem sentidos ese posicionam em relaes sociais cotidianas. As prticas discursivas tmcomo elementos constitutivos: a dinmica, ou seja, osenunciadosorientados porvozes; as formas, que so os speech genres(definidosacima); e os contedos, que so os repertrios interpretativos.

    Os conceitos deenunciadose vozescaminham juntos na abordagemde Bakhtin: ambos descrevem o processo deinteranimao dialgicaquese processa numa conversao. Em outras palavras, os enunciados de uma pessoa esto sempre em contato com, ou so endereados a, uma ou mais pessoas e esses se interanimam mutuamente, mesmo quando os dilogosso internos. As vozes compreendem esses interlocutores (pessoas) presentes (ou presentificados) nos dilogos.

    O enunciado o ponto de partida para a compreenso da dialogia.Bakhtin (1994b) define os enunciados como expresses (palavras esentenas) articuladas em aes situadas, que, associados noo devozes,adquirem seu carter social. As vozes compreendem dilogos, negociaeque se processam na produo de um enunciado. Elas antecedem osenunciados, fazendo-se neles presentes no momento de sua produo, tendoem vista que o prprio falante sempre um respondente em maior ou menograu. Na viso desse autor, impossvel pensar a ideia de um primeirolocutor a quebrar o silncio do universo.

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    Na perspectiva bakhtiniana,linguagem, por definio, uma prticasocial. A pessoa no existe isoladamente, pois os sentidos so construdosquando duas ou mais vozes se confrontam: quando a voz de um ouvinte(listener ) responde voz de um falante ( speaker ) (Wertsch, 1991).Entretanto, as vozes s quais um enunciado dirigido podem estar espacialou temporalmente distanciadas. Dessa forma, inclusive o pensamento dialgico: nele habitam falantes e ouvintes que se interanimam mutuamentee orientam a produo de sentidos e enunciados.

    Se um entrevistado, por exemplo, ao ser indagado sobre um assuntoqualquer, diz: Pois , eu me lembro da minha infncia, quando meu pai, nesse momento, num esforo de produzir sentido, ele traz para adialogia a voz do pai. Pode trazer tambm a voz da professora, do amigo, dame. Todas essas vozes permeiam essa prtica discursiva e se fazem nela presentes, com maior ou menor nfase, dependendo do tema em pauta, dolocal, de quem pergunta, enfim, do contexto em que so produzidas. Acompreenso dos sentidos sempre um confronto entre inmeras vozes.

    Ao mesmo tempo, preciso entender que a linguagem ao e produz consequncias.6 Nosso trabalho, como cientistas sociais que analisam prticas discursivas, exatamente estudar a dimenso performtica do uso dalinguagem, trabalhando com consequncias amplas e nem sempreintencionais. Num movimento constante de argumentao, de exerccioretrico (Billig, 1991), quando falamos, estamos invariavelmente realizandoaes acusando, perguntando, justificando etc. , produzindo um jogo de posicionamentos com nossos interlocutores, tenhamos ou no essa inteno.

    Esse processo, contudo, no se restringe s produes orais. Umtexto escrito, por exemplo, constitui umato de fala impresso, um elementode comunicao verbal que provoca discusses ativas: pode ser elogiado,comentado, criticado, pode orientar trabalhos posteriores. Assim, nos dias

    6 As prticas discursivas, em seu carter performtico, constituem speech actsou atos de

    fala, expresso cunhada pela etnometodologia para se referir orientao do uso dalinguagem para a ao.

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    atuais, o rdio, a televiso, os sites da Internet etc. podem tambm serconsideradosatos de fala.

    Alm disso, um enunciado no surge, magicamente, do nada. Eleconstitui uma unidade do ato de comunicao, um dos elos de uma correntde outros enunciados, complexamente organizados. Em outras palavras, ao produzir um enunciado, o falante utiliza um sistema de linguagem e deenunciaes preexistente, posicionando-se em relao a ele. O que estamos propondo que, no cotidiano, o sentido decorre do uso que fazemos dosrepertrios interpretativos de que dispomos.

    Os repertrios interpretativosso, em linhas gerais, as unidades deconstruo das prticas discursivas o conjunto de termos, descries,lugares-comuns e figuras de linguagem que demarcam o rol de possibilidades de construes discursivas, tendo por parmetros o contextoem que essas prticas so produzidas e os estilos gramaticais especficos ou speech genres.

    Jonathan Potter e Margareth Wetherell (1987), baseados nos trabalhosde Gilbert e Mulkay,7 definem os repertrios interpretativos como dispositivoslingusticos que utilizamos para construir verses das aes, eventos e outrofenmenos que esto a nossa volta. Eles esto presentes em uma variedade de produes lingusticas e atuam como substrato para uma argumentao.

    Os repertrios interpretativos, na viso desses autores, socomponentes fundamentais para o estudo das prticas discursivas, pois pomeio deles que podemos entender tanto a estabilidade como a dinmica e avariabilidade das produes lingusticas humanas. Em outras palavras, esseconceito particularmente til para entendermos a variabilidade usualmenteencontrada nas comunicaes cotidianas, quando repertrios prprios dediscursos diversos so combinados de formas pouco usuais, obedecendo auma linha de argumentao, mas gerando, frequentemente, contradies.

    7

    Gilbert, N. e Mulkay, M. (1984).Opening Pandoras Box: a sociological analysis of scientists discourse. Cambridge: Cambridge University Press.

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    O foco dos estudos que adotam esse conceito deixa de ser, assim,apenas a regularidade, o invarivel, o consenso, e passa a incluir tambm a prpria variabilidade e polissemia que caracterizam os discursos,entendendo polissemia, no como um fenmeno semntico em que uma palavra se estende de um sentido primitivo a vrios outros, mas como a propriedade que uma palavra possui (numa dada poca) de representarvrias ideias diferentes (Lalande, 1996). 8

    Admitir que as prticas discursivas so polissmicas, no significa,entretanto, dizer que no h tendncia hegemonia ou que os sentidos produzidos possuem igual poder de provocar mudanas. Por outro lado, anatureza polissmica da linguagem possibilita s pessoas transitar porinmeros contextos e vivenciar variadas situaes.

    Contudo, vivemos num mundo social que tem uma histria. Osrepertrios interpretativos que nos servem de referncia foram histrica eculturalmente constitudos. Trabalhar no nvel da produo de sentidoimplica retomar tambm a linha da histria, de modo a entender a

    construo social dos conceitos que utilizamos no mtiercotidiano de darsentido ao mundo.

    2. Tempo e hi str ia:

    O dilogo entre permanncias e rupturas

    Buscando entender o uso dos repertrios interpretativos nas prticasdiscursivas cotidianas, cedo percebemos que eles possuam inscries nahistria, o que nos levou a trabalhar numa perspectiva temporal. Tempo, claro, uma categoria fundamental na Histria. Como diz Fernand Braudel,para o historiador, tudo comea e tudo acaba pelo tempo (Braudel,1989:34).

    8

    O conceito de polissemia ope-se ao de polilexia, utilizado por linguistas contemporneos para designar a existncia de vrios sinnimos para uma mesma ideia (Lalande, 1996).

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    Entretanto, a inscrio histrica desses repertrios no o foco denossos interesses. Nossa aproximao com a temporalidade dos repertriosdecorre da problemtica dos contextos de sentidos. O sentidocontextualizado institui o dilogo contnuo entre sentidos novos e antigosNo contexto dialgico no h nem uma primeira nem uma ltima palavra eno h limites (ele se estende ao passado sem fronteira e ao futuroinfinito)9 (Bakhtin, 1994a:169). Mesmo os sentidos passados, decorrentesde dilogos travados h muitos sculos, no so estveis; so sempre passveis de renovao nos desenvolvimentos futuros do dilogo. Emqualquer momento, essas massas de sentidos contextuais esquecidas podemser recapituladas e revigoradas assumindo outras formas (em outroscontextos). Nada est absolutamente morto: todo sentido poder ter seufestival de boas vindas (homecoming ) (Bakhtin, 1990a:170).

    Obviamente, Bakhtin fala como linguista. Mas tambm os historiadorestm conscincia plena dessa problemtica: Meu grande problema, o nico problema que tive que resolver, foi o de mostrar que o tempo se move emvelocidades diferentes, disse Braudel numa entrevista concedida a PeterBurke, em 1977 (Burke, 1990:39). Em seu texto clssico, Histria e CinciasSociais, publicado originalmente em 1958, Braudel aborda reiteradamenteessa questo da imbricao do presente com o passado:

    Cada atualidade rene movimentos de origem e de r itmodiferentes: o tempo de hoje data simultaneamente de ontem, deanteontem, de outrora () o presente e o passado esclarecem-semutuamente, com uma luz recproca (Braudel, 1989:18-21).

    Cada autor busca, a sua maneira, resolver a problemtica decorrentedessa imbricao. Braudel nos fala do tempo longo (la longue dure) e ocontrasta com o tempo breve o tempo dos acontecimentos, a escala dosindivduos, da vida cotidiana ou da tomada de conscincia. O tempo longo para ele a medida da permanncia, olocus de compreenso da estrutura queboa ou m (...) domina os problemas de longa durao (1989:14). No

    9 No original: it extends into the boundless and the boundless future.

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    que sejam estruturas universais e imutveis, afirma o autor: so universosconstrudos que constituem outras tantas explicaes imperfeitas, mas aquem so geralmente concedidos sculos de durao (Braudel, 1989:15).

    Bakhtin, por sua vez, apresenta-nos uma diviso temporal que fazdialogar o pequeno tempo ( smalltime) e o grande tempo ( great time). Otempo pequeno engloba o dia de hoje, o passado recente e o futuroesperado. O tempo grande consiste no dilogo infinito e inacabado no qualnenhum sentido (meaning ) morre (1994a:169).

    Nosso trabalho com prticas discursivas levou-nos a propor uma

    diviso temporal semelhante, embora a formao especfica em PsicologiaSocial tenha suscitado a necessidade de incluso de mais um tempo: o davida vivida, dos processos de socializao. Assim, desde 199310 vimos postulando a necessidade de trabalhar o contexto discursivo na interface detrs tempos histricos: otempo longo,que marca os contedos culturais,definidos ao longo da histria da civilizao; otempo vivido,das linguagenssociais aprendidas pelos processos de socializao, e otempo curto,

    marcado pelos processos dialgicos.Essa forma de aproximao com os contedos histricos decorre da

    ambio de trabalhar as prticas discursivas em diferentes nveis, buscandoapreender a cristalizao em discursos institucionalizados, as posiessocialmente disponveis e as estratgias lingusticas utilizadas para nos posicionar na interao. Essa diviso tripartite possibilitou-nos abordar o paradoxo de enunciados que pertencem concomitantemente ordem das

    regularidades possibilitando visualizar as permanncias que sustentam ocompartilhamento e da polissemia dos repertrios, que sustenta asingularidade dos processos de produo de sentido.

    Chamamos detempo longoo domnio da construo social doscontedos culturais que formam os discursos de uma dada poca.Deparamos aqui com as fronteiras da Histria Social, que focaliza

    10

    Ver, por exemplo, Spink (1993a; 1993b; 1994a; 1994b; 1996; 1999a; 1999b); Medrado-Dantas (1997); Menegon (1998); Pinheiro (1998), entre outros.

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    processos de formao e ressignificaes continuadas, os quais do acessoaos mltiplos significados que foram historicamente construdos. nessetempo histrico que podemos apreender os repertrios disponveis quesero moldados pelas contingncias sociais de poca, constituindo as vozede outrora que povoam nossos enunciados. No os temos mais comoteorias, pois muitas j perderam sua razo de ser; tambm no os temoscomo acontecimento, tempo da vida cotidiana, da interanimao, dasiluses. S os temos como fragmentos e, por isso mesmo, como repertrios

    O tempo longoconstitui o espao dos conhecimentos produzidos ereinterpretados por diferentes domnios de saber: religio, cincia,conhecimentos e tradies do senso comum. Esses conhecimentosantecedem a vivncia da pessoa, mas se fazem nela presentes por meio deinstituies, modelos, normas, convenes, enfim, da reproduo socialUm exemplo de como as construes dotempo longo permeiam nossocotidiano e nossas prticas discursivas so as obras de museu, que carregamem suas imagens uma imensido de sentidos, e a partir das quais podemosdelinear a representao social de um tema, como, por exemplo, a paternidade. Desse modo, uma imagem de pai construda, digamos, naRenascena, se faz presente em nosso cotidiano, ressignificada. assim queo tempo longo se faz presente. No uma histria morta, depositada nostempos passados; so construes que alimentam, definem e ampliam osrepertrios de que dispomos para produzir sentido.

    Definimostempo vividocomo o processo de ressignificao dessescontedos histricos a partir dos processos de socializao primria esecundria (Berger & Luckmann, 1966); corresponde s experincias da pessoa no curso da sua histria pessoal. nesse nvel que ocorre aaprendizagem das linguagens sociais.

    Entramos assim no territrio dohabitus, ou seja, das disposiesadquiridas a partir da pertena a determinados grupos sociais (Bourdieu1994). Como destaca Srgio Miceli (1987), ohabitus um conjunto de

    esquemas apreendidos desde a infncia e permanentemente atualizados ao

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    longo da trajetria social da pessoa; esquemas que demarcam os limites daconscincia que pode ser mobilizada pelos grupos e/ou classes, sendo assimresponsveis, em linhas gerais, pela demarcao das possibilidades desentidos em que operam as relaes de fora e poder.

    Estamos falando da aprendizagem, no tempo de vida de cada um dens, das inmeras linguagens sociais prprias a segmentos de classe, agrupos profissionais, a faixas etrias etc. Trata-se dasvozes situadasque povoam nossas prticas discursivas, sejam elas externalizadas ou no.Entretanto, otempo vivido tambm o tempo da memria traduzida emafetos. nosso ponto de referncia afetivo, no qual enraizamos nossasnarrativas pessoais e identitrias.

    O tempo curto tempo do acontecimento e tempo da interanimaodialgica aquele que nos possibilita entender a dinmica da produo desentido. Nesse tempo, esto em pauta, concomitantemente, a possibilidadeda compreenso (understanding ), da comunicao e a construo discursivadas pessoas. Esse o momento concreto da vida social vista como atividade

    de carter interativo. Nesse momento especfico, as possibilidades decombinao das vozes, ativadas pela memria cultural de tempo longo ou pela memria afetiva de tempo vivido, fazem-se presentes.

    O tempo curtorefere-se s interaes sociais face a face, em que osinterlocutores se comunicam diretamente; pauta-se, portanto, pela dialogia e pela concorrncia de mltiplos repertrios que so utilizados para darsentido s experincias humanas. Como as combinaes so mltiplas,

    deparamos, nessa escala, com a polissemia.Focalizando o momento da interao por meio das prticas

    discursivas, encontraremos polissemia e contradio. Depararemos, aomesmo tempo, com a processualidade e a produo situada dessesrepertrios, deixando emergir a possibilidade de construo de inmerasverses de nossas pessoas. medida que nos distanciamos, terica eempiricamente, do tempo curto, adentramos o campo das abstraes: astipificaes de papel, as regras de discurso, as linguagens sociais e as

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    identidades sociais que povoam nosso universo; encontramos as estruturas aque Braudel se referia.

    Portanto, para compreendermos o modo como os sentidos circulamna sociedade necessrio considerar as interfaces desses tempos longo,vivido e curto , nos quais se processa a produo de sentido. Resulta daque a pesquisa sobre produo de sentido, cujo foco o contexto de sentido(na acepo de Bakhtin), necessariamente um empreendimento scio-histrico e exige o esforo transdisciplinar de aproximao ao contextocultural e social em que se inscreve um determinado fenmeno social.

    A concepo de histria que adotamos em nossos trabalhos est,como abordado acima, diretamente associada compreenso dasdiversidades e permanncias das construes lingusticas dotadas desentido. Contudo, no depositamos todas as permanncias no tempo longonem toda diversidade no tempo curto. Permanncias e diversidades permeiam todos os tempos histricos, indistintamente, em maior ou menograu, e orientam as prticas discursivas das pessoas. Focalizamos, assim, a

    terceira dimenso da nossa abordagem: a noo de pessoa.3. Pessoa como r elao soci al

    Ao adotarmos o termo pessoa em nossos estudos e pesquisas,estamos nos posicionando em relao ao uso de certas terminologias quenos colocam diante de dicotomias, tais como sujeito-objeto, indivduo-sociedade. Com o conceito de pessoa, estamos buscando enfatizar nossofoco sobre a dialogia, em vez de privilegiar a individualidade ou a condiode sujeito. Essa postura no implica abandonar oindivduoou o sujeito, conceitos fundadores da Psicologia, mas ressignific-los luz da perspectiva construcionista, recuperando um termo pessoa que, emltima anlise, pertence ao tempo longo da histria.

    Por um lado, o conceito de indivduo nos remete imediatamente adicotomias, tais como indivduo-sociedade e pblico-privado, pressupondocises claras e absolutas. Falar em sujeito pode nos conduzir a dois

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    caminhos distintos, porm ambos problemticos, ou seja, um que nosconduz a uma distino essencial entre sujeito e objeto ou outro que, aindamais complexo e perigoso, aproxima-nos da postura de sujeitvel, tornar-se sujeito a.

    Como destaca A. Cuggenberger (1987), no tpico Pessoa do Dicionrio de Teologia, organizado por Heinrich Fries:

    O mundo pelo qual a pessoa foi compreendida no decorrer dos sculos um caso tpico do caminho que os conceitos percorrem atravs dostempos. Por isso, a histria do conceito de pessoa uma pgina

    particularmente eloquente de uma teologia do caminho (p. 239) O conceito de pessoa, cuja base est na Teologia, foi aos poucos

    sendo incorporado pela Filosofia, tornando-se objeto de estudo e reflexo.Assim, na modernidade, a Filosofia assumiu como algo prprio dadisciplina a questo da pessoa. Porm, como destaca Cuggenberger, desde apoca medieval estava claro que o ser da pessoa no pode encerrar-se numadefinio formal. Vrios pensadores tais como S. Toms de Aquino, Duns

    Scoto, entre outros se debruaram sobre a questo da pessoa e propuseramdefinies a partir de diferentes referenciais teolgicos e epistemolgicos.O carterrelacionalest na base da maioria dessas definies.

    Como aponta Cuggenberger (1987), s possvel pensar em pessoas,a partir da noo derelao. O homem ou, mais precisamente, a pessoa est em um mundo e no apenas em um ambiente, como os animais.

    Daqui provm oeu no seu carter fundamental de pessoa, arelacionalidade com o universo(capacidade de comunicar-se), a sualimitao e o seu carter de no ser um objeto() A relaohumana apresenta