marx e bourdieu - aproximaÇÕes

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MARX E BOURDIEU - APROXIMAÇÕES Paulo Cesar, CEDRAN 1 RESUMO A crise paradigmática que enfrentamos neste início de século reflete-se sobremaneira no campo educacional. Se a educação, até meados dos anos 70, foi analisada pelo viés reprodutivista fundamentado na teoria de Bourdieu Passeron, hoje, com a crise da pós- modernidade e do pós-neoliberalismo, a educação encontra-se novamente diante de uma encruzilhada em que as teorias macroexplicativas ou de interpretação mecanicista do marxismo obscurece as possibilidades de aproximações da teoria marxista no que tange ao processo educativo e sua influência na teoria de Bourdieu. Assim nosso artigo se propõe a identificar pontos de convergência entre a análise sociológica e histórica em função dos mecanismos de dominação presentes na educação. Resgatar este espaço multidimensional em que vivemos por meio da superação do objetivismo ou subjetivismo no espaço educativo permitirá a atuação dos agentes deste processo que ocupam posições neste multifacetado espaço social. PALAVRAS-CHAVE: Teoria social, Marxismo e Educação, Bourdieu e o Agente Social, Pedagogia Histórico-crítica e cultural. É no contexto da crise do capitalismo em sua fase neoliberal que situamos nosso recorte histórico para estabelecer paralelos necessários à análise da temática educacional sob os aspectos analisados por Karl Marx e Pierre Bourdieu. Este terreno mostra-se árido uma vez que muitos sociólogos ou historiadores da educação consideram as análises teóricas destes pensadores como antagônicas, ou seja, como praticamente inconciliáveis. Assim nossa proposta analítica pauta-se pelo viés em que a ortodoxia do pensamento encontra-se superada uma vez que a sociedade e suas relações pautam-se pelo conceito que Zigmuth Bauman chama de relações líquidas, ou seja: Líquidos mudam de forma muito rapidamente, sob a menor pressão. Na verdade, são incapazes de manter a mesma forma por muito tempo. No atual estágio “líquido” da modernidade, os líquidos são deliberadamente impedidos de se solidificarem. A temperatura elevada ou seja, o impulso de transgredir, de substituir, de acelerar a circulação de mercadorias rentáveis não dá ao fluxo uma oportunidade de abrandar, nem o tempo 1 Mestre em Sociologia pela UNESP/Araraquara/SP; Doutor em Educação Escolar pela UNESP/Araraquara/SP; Supervisor de Ensino da Diretoria de Ensino Região de Taquaritinga; docente do Centro Universitário Moura Lacerda/Jaboticabal/SP; e docente da Faculdade UNIESP, Taquaritinga /SP. E-mail: [email protected]

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A crise paradigmática que enfrentamos neste início de século reflete-se sobremaneira no campo educacional. Se a educação, até meados dos anos 70, foi analisada pelo viés reprodutivista fundamentado na teoria de Bourdieu – Passeron, hoje, com a crise da pós-modernidade e do pós-neoliberalismo, a educação encontra-se novamente diante de uma encruzilhada em que as teorias macroexplicativas ou de interpretação mecanicista do marxismo obscurece as possibilidades de aproximações da teoria marxista no que tange ao processo educativo e sua influência na teoria de Bourdieu. Assim nosso artigo se propõe a identificar pontos de convergência entre a análise sociológica e histórica em função dos mecanismos de dominação presentes na educação. Resgatar este espaço multidimensional em que vivemos por meio da superação do objetivismo ou subjetivismo no espaço educativo permitirá a atuação dos agentes deste processo que ocupam posições neste multifacetado espaço social.

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Page 1: MARX E BOURDIEU - APROXIMAÇÕES

MARX E BOURDIEU - APROXIMAÇÕES

Paulo Cesar, CEDRAN1

RESUMO

A crise paradigmática que enfrentamos neste início de século reflete-se sobremaneira no

campo educacional. Se a educação, até meados dos anos 70, foi analisada pelo viés

reprodutivista fundamentado na teoria de Bourdieu – Passeron, hoje, com a crise da pós-

modernidade e do pós-neoliberalismo, a educação encontra-se novamente diante de uma

encruzilhada em que as teorias macroexplicativas ou de interpretação mecanicista do

marxismo obscurece as possibilidades de aproximações da teoria marxista no que tange

ao processo educativo e sua influência na teoria de Bourdieu. Assim nosso artigo se

propõe a identificar pontos de convergência entre a análise sociológica e histórica em

função dos mecanismos de dominação presentes na educação. Resgatar este espaço

multidimensional em que vivemos por meio da superação do objetivismo ou

subjetivismo no espaço educativo permitirá a atuação dos agentes deste processo que

ocupam posições neste multifacetado espaço social.

PALAVRAS-CHAVE: Teoria social, Marxismo e Educação, Bourdieu e o Agente

Social, Pedagogia Histórico-crítica e cultural.

É no contexto da crise do capitalismo em sua fase neoliberal que situamos

nosso recorte histórico para estabelecer paralelos necessários à análise da temática

educacional sob os aspectos analisados por Karl Marx e Pierre Bourdieu.

Este terreno mostra-se árido uma vez que muitos sociólogos ou historiadores

da educação consideram as análises teóricas destes pensadores como antagônicas, ou

seja, como praticamente inconciliáveis. Assim nossa proposta analítica pauta-se pelo

viés em que a ortodoxia do pensamento encontra-se superada uma vez que a sociedade e

suas relações pautam-se pelo conceito que Zigmuth Bauman chama de relações líquidas,

ou seja:

Líquidos mudam de forma muito rapidamente, sob a menor

pressão. Na verdade, são incapazes de manter a mesma forma

por muito tempo. No atual estágio “líquido” da modernidade,

os líquidos são deliberadamente impedidos de se solidificarem.

A temperatura elevada — ou seja, o impulso de transgredir, de

substituir, de acelerar a circulação de mercadorias rentáveis —

não dá ao fluxo uma oportunidade de abrandar, nem o tempo

1 Mestre em Sociologia pela UNESP/Araraquara/SP; Doutor em Educação Escolar pela UNESP/Araraquara/SP;

Supervisor de Ensino da Diretoria de Ensino – Região de Taquaritinga; docente do Centro Universitário Moura

Lacerda/Jaboticabal/SP; e docente da Faculdade UNIESP, Taquaritinga /SP. E-mail: [email protected]

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necessário para condensar e solidificar-se em formas estáveis,

com uma maior expectativa de vida. (REVISTA ISTO É ON

LINE, 24 set. 2010)

Essa fluidez subverte o viés analítico seja sob o aspecto estrutural economicista

ou determinista, como também apresenta uma teoria social fundamentada na

precariedade de suas certezas. Desta forma, Karl Marx no momento crucial do

estabelecimento da relação capitalista em sua fase industrial e Pierre Boudieu, no

momento em que as relações capitalistas demonstram formas mais sutis e perversas de

sua face neoliberal, representaram na passagem do século XIX para o XX e do XX para

o XXI, uma proposta de análise coerente com o momento social e ao mesmo tempo

criaram a possibilidade de sua extensão analítica pela busca de uma práxis ou de uma

ação social, que mais do que contestatória mostra-se revolucionária sob o aspecto da

desnudação das formas de dominação que sustentam e legitimam as relações sociais sob

a égide do capitalismo. Podemos afirmar que neste processo as revisões teóricas se

complementam e não se antagonizam se considerarmos como o principal aspecto a

permear a teoria de Marx e Bourdieu a saber: a dominação e a desfiguração do homem,

subjugando as possibilidades de sua constituição enquanto agente de suas relações

sociais. Assim o nome da obra organizada por Ruy Braga intitulada O Marxismo

Encontra Bourdieu é pródiga ao afirmar em sua apresentação feita por Michel Burawoy

que o marxismo é uma ferramenta indispensável se desejarmos transformar o mundo em

seu sentido igualitário e emancipatório. Assim, o marxismo ao encontrar Bourdieu deve

ser tratado não mais como uma doutrina ou uma doxa, ou seja, como um corpo de

crenças estabelecidas em definitivo mas como uma teoria que se reatualiza

constantemente sob o aspecto analítico das relações sociais e suas determinantes

capitalistas.

Mesmo sabendo que o sociólogo ou o ser social no exercício de seu ofício deve

resguardar-se de suas ideologias no campo de forças em que atua ou do lugar discursivo

em que exerce sua análise não se abstrai de ser portador de uma visão de mundo ou de

um engajamento social. Sob este aspecto podemos identificar que Marx e Bourdieu se

aproximam pelo estabelecimento do que poderíamos chamar de uma pedagogia social

pautada na análise e no estabelecimento de uma relação acadêmica com a comunidade

sociológica e extra-acadêmica pelo exercício de sua cultura política pautada em um

conceito de resiliência, que procura valorizar a grandeza do legado de Bourdieu sem

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contudo esquecer a influência de Marx sob seu pensamento. Michel Burawoy no

prefácio da obra reafirma:

Eu sempre me senti atraído pela relação tortuosa entre o

marxismo e a sociologia, por isso seria esse o tema de minhas

aulas como sociólogo, Bourdieu havia se degladiado com o

marxismo durante boa parte de sua vida; e a presença do

marxismo ficou escrita em seus volumosos trabalhos – inscrita,

porém, escassamente reconhecida. (BURAWOY, 2009, p.11)

Mesmo Bourdieu apresentando-se como o mais proeminente sociólogo do final

do século XX, tornando-se parte integrante do cânone sociológico, a compreensão de

sua análise teórica não é nada fácil pois seus trabalhos assim como os de Marx

abrangem das artes a literatura passando pela política, família e educação.

É sob o aspecto educacional que tentaremos concentrar as aproximações

teóricas que envolvem este campo analítico. Assim, o primeiro conflito que alguns

teóricos marxistas identificaram na obra de Bourdieu estaria relacionada á sua análise

reprodutivista das relações escolares enquanto portadora dos valores predominantes na

sociedade capitalista e culturalmente selecionados, validados e legitimados pela elite

dominante. O apressamento dessa análise colocaria a teoria de Bourdieu numa camisa

de força em que a análise sociológica conseguiria apenas focar e constatar esse

mecanismo de reprodução, dissecando a dominação que perpetua o capitalismo. Mas

Burawoy, por exemplo desmonta esta armadilha analítica ao observar que um dos

argumentos fundamentais da obra de Bourdieu seria o da relação que este estabelece

entre as estruturas da sociedade que se reproduzem tanto através da manipulação das

normas sociais, como através de sua inculcação nos indivíduos e de sua atualização por

estes. Esta atualização com certeza passa pela instituição escolar. Conceitos como

Hábitus, Campo e Capital, são desenvolvidos segundo Burawoy de forma muito

inconcistente, mas é também ele que antevê que Bourdieu mesmo não possuindo uma

teoria da história, poderia ser alçado ao cânone sociológico em que se encontra Marx,

Weber e Durkheim. Assim Burowoy reconhece:

(...) descobri que as análises de Bourdieu envolviam o

reconhecimento de uma conformidade psicológica ou

subordinação dos indivíduos que era bem mais profunda que

minha análise da situação. (BUROWOY, 2009, p.17)

Ao realizar esta autocrítica de sua obra, Burowoy enfatiza que Bourdieu

enfocava a maneira pela qual a cultura e a educação penetravam as classes subalternas e

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exploradas e mistificavam sua existência. Portanto, podemos afirmar que Bourdieu e

Marx lutaram contra a reprodução da sociedade capitalista por meio da educação,

mesmo que por caminhos diferentes a saber: Marx que pelo viés de superação do Estado

como educador do povo e Bourdieu pela vontade em garantir o acesso de todos ao

precioso capital cultural com poucos compartilhados pela escola. Mesmo assim, Michel

Burowoy afirma que em relação a Bourdieu, pairava o seguinte problema:

Mesmo acreditando na obrigação do cientista sociais levarem

suas idéias a esfera pública, Bourdieu não conseguia encontrar

nenhum público capacitado e desejoso de ouvi-los. Há classes

dominantes que não possuem qualquer interesse em saber nada

sobre sua própria dominação simbólica (embora pudessem

compreendê-la); e há classes dominadas que não estão aptas a

compreender sua submissão (embora isso lhes pudesse

interessar). Em seus enunciados teóricos, Bourdieu falou sobre

a profundidade da dominação simbólica que torna as classes

dominadas totalmente surdas às revelações da sociologia. A

esses respeito, Bourdieu divergia dos marxistas ortodoxos que,

em uma análise final, consideravam as classes dominadas

capazes de entender sua própria opressão e as mensagens dos

intelectuais. Por mais difícil que seja, cruzar esse abismo,

segundo os marxistas ele não seria completamente

intransponível. (BURAWOY, 2009, p.20).

Burawoy, assim se refere ao que chama de corporativismo do universal, onde

caberia aos intelectuais atuarem como intelectuais orgânicos da humanidade,

corroborando esta crítica à teoria de Antonio Gramsci. Mas não desprezando uma

leitura mais aprofundada do contexto deste autor, Burawoy lembra que Bourdieu assim

como Marx propôs a criação de uma internacional de intelectuais que desafiassem o

neoliberalismo e a violação dos direitos humanos no âmbito global; enquanto Marx

propunha a mesma internacional para unir o operariado como forma de combater a

dominação e a exploração capitalista. Desta forma conclui que Bourdieu se assemelha a

Auguste Comte quando afirma:

Eis um resquício do sociólogo comtiano em Bourdieu: a vívida

personificação de uma luta interna e externa entre certo

marxismo subliliminar e a sociologia crítica. (BURAWOY,

2009, p.21)

É a este marxismo subliliminar e a sociologia crítica que nos referimos ao

analisar as aproximações de Bourdieu e Marx. Situando a análise sob o aspecto

educacional vamos identificar como Marx e Bourdieu estabelecem as relações do

processo educativo por meio da escola e a reprodução social. Marx, assim como

Bourdieu não se dedicou a uma análise específica sobre educação a ponto de estabelecer

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uma sociologia da educação. Isso contudo não impediu que Marx ao rejeitar a filosofia

liberal de educação lembra que o conhecimento não pode ser estudado como atividade

isolada de seu contexto histórico e Bourdieu irá relacionar esta conjuntura ao contexto

cultural, pois estes não são absolutos, dados mas são relativos e produzidos pelos

homens. Assim: “(...) o conhecimento escolar é uma característica da alienação do

homem.” (SARUP, 1986, p.38)

Marx ao analisar as conseqüências da obrigatoriedade que o ensino primário na

Inglaterra trouxe para a produção industrial, critica a educação das classes alta e média,

quando discorre:

Por forças que pareçam no todo, as cláusulas educacionais da

Lei Fabril proclamam a instrução primária como condição

obrigatória para o trabalho. (...) do sistema fabril como se pode

ver detalhadamente em Robert Owem brotou o germe da

educação do futuro, e há de conjugar, para todas as crianças

acima de certa idade, trabalho produtivo com ensino social,

mas como único método de produzir seres humanos

desenvolvidos em todas as dimensões. (MARX, 1984, p.86-87)

Assim refletindo sobre esta concepção de educação como forma de

direcionamento e preparação de mão de obra para suprir a nascente indústria na

Inglaterra Marx, lembra em sua Para a crítica da economia política que o objeto deste

estudo é a produção material, ou seja, indivíduos produzindo em sociedade e afirma:

Quando se trata, pois de produção, trata-se da produção em um

grau determinando de desenvolvimento social, da produção dos

indivíduos sociais. (MARX, 1988, p.4)

Assim, a produção poderia ser compreendida não apenas sob a forma de uma

produção particular, mas enquanto certo corpo social, sujeito social que exerce sua

atividade numa totalidade maior ou menor de ramos de produção. Portanto, a

obrigatoriedade da educação pública faria parte de um processo de produção ou melhor,

de preparação para o exercício maior da produção em escala industrial. A utilização da

educação sob o aspecto econômico fez com que o próprio Marx na Crítica ao Programa

de Gotha, exponha o que José Vaidergorn chama de:

(...) a falácia da educação popular, geral e igual a cargo do

Estado, e da assistência pois, como elemento estratificador da

sociedade servido aos liberais como marca da cidadania

conservadora, aos progressistas como promessa de usufruto dos

benefícios da civilização e a possibilidade de superar as

diferenças de classe e aos conservadores como elemento de

controle às rebeliões de massa, apontando para o totalitarismo.

(VAIDERGORN, 2000, p.21)

Page 6: MARX E BOURDIEU - APROXIMAÇÕES

Poderíamos então questionar: sob que aspecto a análise bourdesiana se

enquadraria diante do amplo campo de interpretações e sua relações da educação como

elemento dominador utilizado pelo capitalismo? Numa primeira tentativa de resposta,

poderíamos afirmar que para Bourdieu a apropriação não estaria em especial, detida

apenas pelo capital, mas que esta apropriação estaria relacionada ao que ele chama de

campo de forças que envolve as relações educacionais no contexto capitalista. Neste

campo de forças, a incorporação irrestrita dos liberais cederia lugar à possibilidade de se

pensar a educação como forma de dominação via capital cultural, ou seja, uma

percepção que não nos remeteria ao conceito de classe como afirma Marx, mas a uma

concepção mais próxima do aspecto psicológico onde o agente e não o sujeito, tenderia

a corroborar ou refutar esta concepção de educação de acordo com as posições

relacionais que o mesmo ocuparia neste campo de forças.

Bourdieu ao utilizar o termo agente, como literalmente sendo aquele que age,

rejeita a idéia de sujeito “livre” que pode transformar o mundo a partir do uso de sua

razão. Para ele razão e consciência não constituem-se em fatores suficientes para

explicar a dominação social que não pode ser reduzida a um jogo de escolhas que visa

maximizar as possibilidades do indivíduo. Diante dessa rejeição, também ao pólo de

explicação identificado no estruturalismo, que considera os processos sociais como

meros reflexos da regras propostas pelas estruturas culturais em cada sociedade, retira

do individual algum papel na explicação do funcionamento social.

Como afirma Rosário S. Genta Lugli no texto A Contrução Social do Indivíduo

que:

Há portanto, dois pólos para a explicação do social,

aparentemente irreconciliáveis: um que situa o princípio da

razão individual que o situa na lógica das estruturas. Ora,

Bourdieu pretendeu superar essa dicotomia, elaborando um

pensamento que articulasse, tanto as dimensões individuais

como os constrangimentos estruturais – em outras palavras, ele

procurava responder a seguinte questão: como, exatamente os

comportamentos individuais com suas inúmeras variáveis e

imprevisibilidades, vinculam-se às normas e estruturas sociais

e no sentido inverso, como é construído o poder que as normas

e as estruturas sociais possuem sobre todos os indivíduos numa

cultura? (LUGLI, 2013, p.26)

Para tanto, Bourdieu recorre ao conceito de hábitus, que analisaremos

oportunamente. Mesmo assim, podemos afirmar que Bourdieu completou a obra de

Marx por meio do estudo das superestruturas sociais, com uma análise mais estável e

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funcional e não somente histórica. Esta concepção nos remete ao que Michel

BURAWOY chama do fato de Bourdieu repudiar o determinismo histórico de Marx,

centrando sua análise nas questões que envolve a concepção de dominação e reprodução

da dominação, para também definir o papel dos intelectuais na política, ou seja, no lugar

que ocupam na reprodução e transformação da ordem social. Este foi o contexto em que

Leda Maria de Oliveira Rodrigues na resenha intitulada: Bourdieu – Um olhar marxista

aponta:

Enquanto o capitalismo avançado organizava a mistificação

simultânea da exploração e do consentimento à dominação, o

socialismo buscava apresentar os interesses do Estado como

sendo interesses de todos. No entanto, percebia-se essa

intenção como algo frágil e sempre ameaçado pela escandalosa

transparência da exploração. (RODRIGUES, 2011, p.316)

Mesmo diante desta transparência da exploração, as mudanças não ocorrem de

acordo com o grau que a exploração manifesta. Voltando para a análise da escola, Marx

deixou claro que a proposta de educação tutelada pelo Estado serviu a manutenção dos

interesses do capital. Assim, ele amplia a análise dessa estrutura para o próprio processo

de formação docente. A educação e o processo de formação docente, passam em Marx

pelo que Madan Sarup em Marxismo e Educação denomina de educação como iniciação

e assim explica:

Sugeriu-se que o modelo da educação como iniciação, adotado

pelos filósofos liberais, presume a superioridade do professor.

Há uma suposição comum de que, quanto maior a idade ou a

experiência do professor, mais válidas as suas prescrições para

os jovens. Os que ainda estão na escola são definidos como

‘incapazes’, como carentes de um remédio. A noção

predominante é que como são jovens, são num certo sentido

‘deficientes’. Nesse processo, as crianças são peneiradas, de

modo que só umas poucas chegam ao ‘alto da pirâmide’.

(SARUP, 1986, p.65)

Essa experiência do professor dada como válida neste processo, não considera

o que Marx mais preza ao realizar sua crítica em relação a formação docente, ou seja, o

conceito de formação e alienação na relação docente e práticas sociais. Assim o

currículo que instrumentaliza o conhecimento em função de uma prática voltada à

alienação e a burocratização atuam como algo externo ao processo que envolve a

formação do professor e do aluno. Sarup então afirma que:

(...) se o currículo for considerado como algo externo à busca

de significado, pode tornar-se um edifício alienante. É possível

Page 8: MARX E BOURDIEU - APROXIMAÇÕES

que grande parte da alienação experimentada nas escolas seja

uma das muitas conseqüências imprevistas dos ensinamentos

dos filósofos liberais. (SARUP, 1986, p.65)

E complementa: “A lucratividade dessas atividades e o conceito do currículo raramente são

questionados, a natureza da educação e o conhecimento é aceito sem discussão, é fixa. (SARUP, 1986,

p.66)

Dessa forma, ganha sentido quando nas Teses Contra Feurbach, Marx afirma:

“Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo.

(MARX, 1988, p.163)

Ao buscar essa transformação, Marx volta a criticar o conceito de alienação,

que em particular, separa o homem de sua atividade produtiva, onde o sujeito é reduzido

a nível de objeto. Por não considerar modo de produção, simplesmente a reprodução da

existência física dos indivíduos Marx, tratará Ada relação educação e alienação da

seguinte forma:

‘É antes uma forma definida de atividade desses indivíduos,

uma forma definida de expressar sua vida, um modo de vida

definido e sua parte.’ Para Marx, isso significa uma expressão

da alienação das relações sociais dentro e através do

capitalismo. Pode-se perguntar que, como expressão da

produção alienada, a educação é tratada como coisa. É

transformada num fetiche e a ela são atribuídos poderes

habitualmente dados ao homem. A educação torna-se assim

reeficada, quer dizer, passa a ser considerada como um poder

sobre e acima do homem, e, portanto, fora de qualquer

possibilidade de modificação. (SARUP, 2000, p.125)

Vejamos como Marx se refere então à formação docente, uma vez que ao ser

tratada como coisa, ao professor também são atribuídos poderes que o reificam, ou seja,

o colocam acima dos outros homens ou como Bourdieu afirma, sendo este um detentor

do capital cultural a serviço dos interesses de sua própria elite intelectual. Assim, Marx

afirma na obra Ideologia Alemã:

A doutrina materialista da transformação das circunstâncias e

da educação esquece que as circunstâncias têm de ser

transformadas pelos homens e que o próprio educador tem de

ser educado. (...) a coincidência da mudança das circunstâncias

e da atividade humana ou autotransformação só pode ser

tomada e racionalmente entendida como práxis revolucionária.

(MARX, 1981, p.104)

Ao afirmar que o educador precisa ser educado, Marx reforça a tese de que a

educação não se limita a prática formativa do ambiente escolar como também na sua

formação de corrente das relações de classe que ele estabelece. Bourdieu irá reafirmar a

Page 9: MARX E BOURDIEU - APROXIMAÇÕES

questão da escola como elemento reforçador da desigualdade como identifica Denise

Bárbara Catani no artigo A Educação como ela não é:

Desde cedo, na obra de Bourdieu, a escola é tida como

instância conservadora e a pedagogia como um conjunto de

procedimentos que podem agravar as diferenças sociais vividas

na cultura escolar como diferenças de capacidades ou de

aptidões. De ‘inteligência’ de ‘dons’. (CATANI, 2013, p.18-

19)

Esse conjunto de procedimentos que podem agravar as diferenças estaria

relacionado ao processo de formação docente pois estes, são assim formados para

garantir essa reprodução. A aproximação entre Marx e Bourdieu neste ponto é muito

clara. O professor será um agente desta reprodução sob o aspecto de que este fora

educado pala circunstância que instauram a detenção de dado poder à saber, o poder

cultural ou capital cultural que sobrepõe o professor ao aluno legitimando esse processo

pelo acesso das camadas populares a escola sob a forma com que Bourdieu amplia esta

análise pelo conceito de violência simbólica que regula a produção e as práticas

culturais sejam as de interpretação ou as de circulação da aprovação como forma de

consumo. No texto A Escola Conservadora”: as desigualdades frente à escola e à

cultura, Bourdieu afirma:

‘É provável por um efeito de inércia cultural que continuamos

tomando o sistema escolar como um fator de mobilidade social,

segundo a ideologia da ‘escola libertadora’, quando, ao

contrário, tudo tende a mostrar que ele é um dos fatores mais

eficazes de conservação social, pois fornece a aparência de

legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a herança

cultural e o dom social tratado como dom natural.

(NOGUEIRA, CATANI, 2002, p.41)

Ao tocar no ponto que Bourdieu chama de ideologia da escola libertadora este

critica teóricos marxista que afirmam ser a educação escolar tida como possibilidade de

transformação social. Marx e Bourdieu se aproximam quando consideram que a escola é

utilizada pelo Estado como subterfúgio para garantir a dominação pela desigualdade

social em nome da igualdade de direitos.

Assim enquanto análises marxistas, mas não de Marx, consideram o mundo

social como espaço unidimencional orientado e conduzido diretamente em função do

modo de produção econômica dele gerado, Ione Ribeiro Valle no texto A obra do

sociólogo Pierre Bourdieu: uma irradiação incontestável irá afirmar que:

Page 10: MARX E BOURDIEU - APROXIMAÇÕES

Para Bourdieu, o mundo social é um espaço multidimensional,

que não pode ser reduzido a um determinismo econômico de

classe, pois se apresenta diferenciado em campos relativamente

autônomos no interior dos quais os indivíduos ocupam

posições determinadas. Segundo Thompson (2001), ele

emprega de maneira distinta a noção de classe em relação aos

marxistas tradicionais, não é definindo como simples oposição

entre proletários e não-proletários, mas como conjuntos de

agentes que ocupam posições análogas no espaço social,

possuem quantidades similares de capital, oportunidades

semelhantes de sucesso e disposições muito próximas.

(VALLE, 2007, p.123)

Esta concepção nasce do que a própria autora identifica como o de um

sociólogo que de origem modesta passa à posição dominante, sem contudo, esquecer

que sua história pauta-se na tensão entre práticas produzidas no decorrer da história

individual e coletiva e assim afirma:

As raízes do pensamento de Pierre Boudieu podem ser

encontradas numa dolorosa, mas rica e diversificada

experiência existencial, reconhecida pelo próprio autor. O

distanciamento em relação ao mundo intelectual e o fato de ser

constantemente lembrado de seu ‘estrangeirismo’ lhe

permitiram ‘ver o que outros não vêem’ e o incitaram a sentir o

que outros não sentem: os códigos implícitos, as rotinas, os

fundamentos que governam o mundo das idéias e orientam as

práticas cotidianas. (VALLE, 2007, p.121).

Bourdieu criticando os conceitos mecanicistas na análise sociológica se reporta

ao que Valle descreve como sendo condutas orientadas na direção de fins. Assim ela

afirma:

Ele recorre também à noção de estratégia, utilizada pela

sociologia interacionista (principalmente por Goffman),

visando restituir uma margem de invenção e de improvisação

nos agentes. Ademais transpõe para a sociologia a noção

Chomskyana de ‘competência generadora’. No entanto,

diferentemente de Chomsky que a considera como inata, ele a

concebe como geradora das condutas, sendo portanto

adquirida. Produto da aprendizagem, os esquemas de

percepção e de ação concebem as condutas sob a forma de

disposições. (VALLE, 2007, p.125)

Esse produto da aprendizagem representaria a possibilidade de aplicarem uma

abordagem sociológica como ciência libertadora que nos estilo de Marx, busca

redimensionar o valor da cultura que ao superar sua base infra-estrutural em função do

econômico repõe no universo da escola uma sociologia das instituições escolares onde

as pessoas ou grupos de classes que mantêm um monopólio educacional sabem assentar

o sistema escolar como aquele construído para identificar e reificar a inteligência e

Page 11: MARX E BOURDIEU - APROXIMAÇÕES

valorizar o “dom” dos inteligentes ou do eu os pensadores liberais e neoliberais

criticados por Marx e Bourdieu chama de igualdade de oportunidades. Bourdieu ao

valorizar o que os indivíduos, em virtude dos habitus encontram-se pré-dispostos a

determinados objetivos e preferências revoluciona sua relação com o marxismo e coloca

no campo da subjetividade algo que Marx via apenas como forma possível de combate

da alienação, no campo da objetividade. Portanto, o conceito de classe se sobrepondo

ao indivíduo mesmo assim a função sociológica e por conseguinte a função escolar

devem ser elucidadas diante do caráter arbitrário de certos esquemas defendidos e

reproduzidos historicamente.

Diante dos desafios enfrentados por Marx e Bourdieu podemos à guisa de

conclusão afirmar que será pelo encontro do indivíduo e da subjetividade do agente que

poderemos repensar as possibilidades de superação das formas de dominação tão

criticadas por Marx e Bourdieu e que são ao nosso ver um dos maiores pontos de

aproximação destes grandes teóricos sociais.

Page 12: MARX E BOURDIEU - APROXIMAÇÕES

BIBLIOGRAFIA

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