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Educação e Pesquisa Universidade de São Paulo [email protected] ISSN: 1517-9702 BRASIL 2004 Marta Kohl de Oliveira CICLOS DE VIDA: ALGUMAS QUESTÕES SOBRE A PSICOLOGIA DO ADULTO Educação e Pesquisa, maio-ago, año/vol. 30, número 002 Universidade de Sao Paulo São Paulo, Brasil pp. 211-229

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Educação de Jovens e Adultos

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  • Educao e PesquisaUniversidade de So Paulo

    [email protected]

    ISSN: 1517-9702

    BRASIL

    2004 Marta Kohl de Oliveira

    CICLOS DE VIDA: ALGUMAS QUESTES SOBRE A PSICOLOGIA DO ADULTO Educao e Pesquisa, maio-ago, ao/vol. 30, nmero 002

    Universidade de Sao Paulo So Paulo, Brasil

    pp. 211-229

  • Artigos / Reviews

  • 211Educao e Pesquisa, So Paulo, v.30, n.2, p. 211-229, maio/ago.2004

    Resumo

    Neste artigo pretende-se sistematizar algumas reflexes sobre apossibilidade de formulao de uma psicologia do adulto, a partirda definio do desenvolvimento psicolgico como transforma-o que ocorre ao longo de toda a vida e da postulao da idadeadulta como uma etapa culturalmente organizada de passagemdo sujeito pela existncia tipicamente humana. Com base na afir-mao da importncia das atividades e prticas culturais naconstituio do psiquismo, especialmente por meio da realizaode tarefas e da utilizao de instrumentos e signos como me-diadores da atividade psicolgica, buscam-se caminhos para ahistoricizao da psicologia do adulto. Para isto prope-se umacompreenso aprofundada da organizao de diferentes prticasculturais, da construo compartilhada de sentidos e significados,da internalizao de modos de fazer, de pensar e de produzir acultura em cada um dos seus mbitos concretos, cuja finalidade superar a prtica mais comum na psicologia, isto , a apresen-tao daquilo que contextualizado historicamente como sendouniversal. Com a inteno de aprofundar a compreenso de umgrupo especfico de adultos, inclui-se neste artigo a discusso dedados empricos obtidos na fase preliminar de uma pesquisasobre trabalhadores urbanos que freqentam um curso supletivocom o objetivo de elevao da escolaridade associada prepara-o para o trabalho. Implicaes para a educao de jovens eadultos, subentendidas ao longo de todo o texto, so brevemen-te explicitadas no final.

    Palavras-chave

    Cultura e desenvolvimento psicolgico Psicologia do adulto Educao de jovens e adultos.

    Correspondncia:Marta Kohl de OliveiraFaculdade de Educao/USPAv. da Universidade, 30805508-900 So Paulo SPe-mail: [email protected]

    Ciclos de vida: algumas questes sobre a psicologia doadulto

    Marta Kohl de OliveiraUniversidade de So Paulo

  • Educao e Pesquisa, So Paulo, v.30, n.2, p. 211-229, maio/ago. 2004212

    Life cycles: some questions on the psychology of theadult

    Marta Kohl de OliveiraUniversidade de So Paulo

    Abstract

    This article seeks to systematize some reflections on thepossibility of formulating a psychology of the adult, startingfrom the definition of psychological development as atransformation that occurs throughout the life, and from thepostulation of adulthood as a culturally organized stage of thesubjects passage through the typically human existence. Basedon the assertion of the importance of the cultural practices andactivities to the constitution of the psyche, especially throughthe execution of tasks and the use of instruments and signs asmediators of the psychological activity, ways of historicizing thepsychology of the adult are pursued. To that end, a deeperunderstanding of the organization of different cultural practicesis proposed, as well as of the shared construction of sense andmeanings, of the internalization of ways of doing, thinking andproducing culture in each one of its concrete domains, whosepurpose is to go beyond the more common practice inPsychology, i.e., that of presenting as universal that which ishistorically contextualized. With the intention of enhancing theunderstanding about a specific group of adults, a discussion isincluded in this article of empirical data obtained during thepreliminary stage of a research on urban workers attending asupletivo course (a substitute course for secondary education)with the purpose of increasing schooling in connection with theirpreparation for work. Implications for the education ofyoungsters and adults, implied throughout the text, are brieflyelucidated at the end.

    Keywords

    Culture and psychological development Adult psychology Education of youngsters and adults.

    Contact:Marta Kohl de OliveiraFaculdade de Educao/USPAv. da Universidade, 30805508-900 So Paulo SPe-mail : [email protected]

  • 213Educao e Pesquisa, So Paulo, v.30, n.2, p. 211-229, maio/ago.2004

    As idias elaboradas neste texto provm,originalmente, de duas situaes especficas: aparticipao em um seminrio sobre ciclos davida, realizado na cidade de Porto Alegre,1 e odesenvolvimento da etapa preliminar de umapesquisa junto a adultos trabalhadores, alunosde um curso supletivo (Moraes et al., 2002). Aparticipao no referido seminrio possibilitoua sistematizao de reflexes j em andamen-to sobre a questo da psicologia do adulto ealimentou a elaborao de segmentos de umtexto anteriormente publicado, em co-autoria,e aqui parcialmente reproduzido (Oliveira;Teixeira, 2002). O desenvolvimento da pesquisagerou a coleta e a anlise de dados empricossobre a condio de um grupo de adultos tra-balhadores imersos num contexto histrico es-pecfico.

    Ciclos de vida e estgios dedesenvolvimento

    No contexto atual de diversos sistemasde ensino estaduais e municipais no Brasil, aidia dos ciclos de vida remete aos ciclos deformao, um modo de organizao da escolaalternativo ao sistema seriado. No contexto dapsicologia, essa idia remete aos estgios dedesenvolvimento humano, um modo de orga-nizao das etapas da vida humana. do lugarda psicologia da educao que buscamos argu-mentar, aqui, que o conceito (e o termo) ciclosde vida pode ser mais promissor para umacompreenso de maior alcance do fenmeno dodesenvolvimento do que a idia, normalmenteutilizada em psicologia, dos estgios.2

    Podemos definir desenvolvimento, sinte-ticamente, como transformao. Processos detransformao ocorrem ao longo de toda a vidado sujeito e esto relacionados a um conjuntocomplexo de fatores. Na abordagem histrico-cultural encontramos a postulao do desenvol-vimento humano como sendo resultado dainterao entre quatro planos genticos afilognese, a ontognese, a sociognese e amicrognese (Vygotsky; Luria, 1996; Wertsch,

    1988, Oliveira; Rego, 2003). Num outro contex-to terico, Palacios elabora essa mesma idia,sintetizando os trs fatores aos quais se rela-cionariam os processos de transformao, oude desenvolvimento: 1) a etapa da vida emque a pessoa se encontra; 2) as circunstnciasculturais, histricas e sociais nas quais sua exis-tncia transcorre e 3) experincias particularesprivadas de cada um e no generalizveis aoutras pessoas (1995, p. 9). O primeiro dessesfatores, correspondente ao plano ontogenticoestudado por Vygotsky e decorrente de deter-minaes biolgicas advindas da pertinncia espcie humana (plano filogentico), introduzuma certa homogeneidade entre todos os su-jeitos que se encontrem em uma determinadaetapa de sua vida individual. O segundo fator,correspondente ao plano sociogentico, introduzuma certa homogeneidade entre aqueles quevivem em uma mesma cultura, em um mesmomomento histrico e dentro de um determinadogrupo social. O terceiro dos fatores (planomicrogentico), prossegue Palacios, introduzelementos idiossincrticos que fazem com queo desenvolvimento psicolgico seja um fen-meno nico, que no ocorre da mesma maneiraem dois sujeitos diferentes.

    Os estgios de desenvolvimento habitu-almente definidos nas teorias psicolgicas fun-damentam-se, principalmente, no primeiro des-ses fatores, focalizando o indivduo isolado e astransformaes que ocorrem para todos osseres humanos de forma similar (por exemplo,o aparecimento dos dentes, a capacidade decaminhar, a aquisio da linguagem, o amadu-recimento sexual, o envelhecimento do orga-nismo). Ao proceder desta maneira, a psicolo-gia nos tem fornecido modelos de desenvolvi-

    1. Seminrio Nacional de Educao: Culturas e ciclos da vida: desafios da(re)inveno da escola na Cidade Educadora, promovido pela SecretariaMunicipal de Educao de Porto Alegre de 13 a 15 de maio de 2002.2. No se trata, aqui, de uma referncia ao chamado modelo do ciclo vital(ou life-span model, em ingls), que busca estudar o desenvolvimentohumano ao longo de todo o ciclo de vida de uma pessoa e no apenas nosseus primeiros anos de existncia, embora certos pressupostos dessemodelo sejam compatveis com as reflexes desenvolvidas no presentetexto (cf., por exemplo, Palacios, 1995).

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    mento baseados principalmente nos processosde maturao biolgica, universais para todosos membros da espcie humana. Mas a matu-rao biolgica, essencial para o processo dedesenvolvimento, no representa a totalidadedo desenvolvimento: as transformaes maisrelevantes para a constituio do desenvolvi-mento tipicamente humano no esto na bio-logia do indivduo, mas na psicologia do sujei-to, muito mais referida, portanto, ao segundo eterceiro fatores explicitados na citao dePalacios feita anteriormente, isto , s circuns-tncias histrico-culturais e s peculiaridadesda histria e das experincias de cada sujeito.

    Podemos afirmar, como j o fizemos an-tes, que o desenvolvimento individual

    se d no interior de uma determinada situaohistrico-cultural, que fornece aos sujeitos, ecom eles constantemente reelabora, contedosculturais, artefatos materiais e simblicos, in-terpretaes, significados, modos de agir, depensar, de sentir. Assim, o beb, que permanecedeitado nos meses iniciais de sua vida e precisados cuidados do adulto, dadas certas caracters-ticas peculiares da espcie humana e prpriasde sua fase de desenvolvimento, ser acalenta-do, banhado, alimentado, vestido, de muitasmaneiras diferentes, conforme as prticas cultu-rais de seu grupo social. As caractersticas daespcie e das vrias fases de desenvolvimentoonto-gentico sero interpretadas de acordocom as vises de mundo e as formas de signifi-cao prprias de cada cultura. A puberdade,por exemplo, conjunto de transformaes fisio-lgicas ligadas maturao sexual do indiv-duo, interpretada e tratada de formas diversasem diferentes culturas. Pode levar ao casamentoe procriao imediatos, ao isolamento do jovemem casas separadas para pessoas dos sexos mas-culino e feminino, criao de categorias soci-almente reconhecidas denominadas adolescen-tes e pr-adolescentes, a prticas de inicia-o ligadas religio, etc. Do mesmo modo,outros fenmenos do desenvolvimento, original-mente provenientes de caractersticas da espcie

    ou das fases de desenvolvimento individual (porexemplo, o treino para controle das funesexcretoras, a aquisio da linguagem, a velhice),recebem significao e tratamento peculiar den-tro de cada cultura. (Oliveira, 1997, p. 55)

    Alm disso,

    a imensa multiplicidade de conquistas psicolgi-cas que ocorrem ao longo da vida de cada in-divduo gera uma complexa configurao deprocessos de desenvolvimento que ser absolu-tamente singular para cada sujeito. (...) Emcada situao de interao com o mundo exter-no, o indivduo encontra-se em um determinadomomento de sua trajetria particular, trazendoconsigo certas possibilidades de interpretao ere-significao do material que obtm dessafonte externa. (Oliveira, 1997, p. 56)

    importante destacar que, alm da n-fase nos processos de origem biolgica, a buscada universalidade como meta maior do empre-endimento cientfico tem resultado na apresen-tao daquilo que contextualizado historica-mente como sendo universal. Pensemos, porexemplo, nos grandes perodos em que normal-mente tem sido dividida a vida humana ainfncia, a adolescncia, a idade adulta e avelhice. Essas etapas nos tm sido apresentadascomo universais e associadas a caractersticascomuns a todas as pessoas e a todos os gruposhumanos: a infncia como o perodo em queocorrem as experincias com efeito determinantee configurador de todo o desenvolvimento pos-terior, a adolescncia como a poca das mudan-as drsticas e turbulentas, a idade adulta comoo momento de estabilidade e ausncia de mu-danas importantes e a velhice como sinnimode deteriorao dos processos psicolgicos(Palacios, 1995, p. 21-22). Por no levar emconta aspectos da histria cultural e da histriaindividual dos sujeitos, essa perspectiva nocontempla a multiplicidade de possibilidades dedesenvolvimento humano. Para contestar essasuposta universalidade, basta imaginar e compa-

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    rar pessoas de diferentes grupos culturais nasmesmas etapas de desenvolvimento: uma crianade classe mdia alta, de sete anos, em Nova York,freqentando a escola, e uma criana de seteanos na zona rural do Afeganisto, que trabalhano campo e cuida dos irmos menores; uma jo-vem paulistana que faz curso de ingls com in-teno de inscrever-se num programa de inter-cmbio e ir estudar na Austrlia e outra jovempaulistana que mora nas ruas e est grvida dosegundo filho; e uma dona de casa carioca, ummonge do Tibete e um cientista ingls, o quetm em comum como adultos?

    A perspectiva universalizante no con-templa, tampouco, a prpria essncia do de-senvolvimento, isto , a transformao. Comoexplicar os inmeros casos de pessoas quesuperam condies adversas ocorridas em suainfncia? Ou dos jovens que percebem suaadolescncia mais como continuidade do quecomo ruptura com seu percurso anterior? Ondeficaria o potencial transformador das interveneseducativas na idade adulta? E os idosos queiniciam uma nova atividade em idade avana-da e tornam-se criativos, produtivos, indepen-dentes?

    Diante dessas reflexes, a questo no eliminar o problema da etapizao do desenvol-vimento, mas historicizar sua compreenso.Toda sociedade

    organizada por idades e toda sociedade tem umsistema de expectativas sociais com relao aocomportamento apropriado s idades. O indiv-duo passa por um ciclo socialmente regulado donascimento morte to inexoravelmente comopassa pelo ciclo biolgico: uma sucesso destatus de idade delineados socialmente, cada umcom seus direitos, deveres e obrigaes reconhe-cidos. (Neugarten apud Merrian; Caffarella,1999, p. 120)

    nesse sentido que a idia dos ciclos davida pode ser mais promissora para uma com-preenso minuciosa do fenmeno do desenvol-vimento do que a idia dos estgios: no nos

    remete a uma passagem por um percurso abs-trato (natural) da vida humana, mas por um per-curso contextualizado historicamente (cultural).Pode ser que terminemos, mais uma vez, falan-do em crianas, jovens, adultos e idosos. Masser importante dar substncia a esses ciclos davida, atrelando-os aos modos concretos deinsero dos sujeitos no seu mundo social, emsituaes histrico-culturais especficas.

    Atividade como princpioexplicativo na psicologiacultural

    Tomo emprestado, aqui, o ttulo de umartigo escrito por Tulviste (1999), bem como odesenvolvimento de seu argumento nesse mes-mo ensaio, para sugerir caminhos para a pro-posta de historicizao da psicologia ou cons-truo de uma psicologia cultural. O argumentose inicia com uma referncia ao conhecido es-tudo de Luria com camponeses soviticos en-tre 1931 e 1932. Luria, em colaborao comVygotsky, realizou uma pesquisa sobre proces-sos psicolgicos com comunidades soviticasda sia Central, regio bastante isolada, estag-nada economicamente, com alto grau de anal-fabetismo e predomnio da religio muulmana.Seu objetivo era estudar as relaes entre cul-tura e formas de funcionamento psicolgico. Osadultos pouco escolarizados por ele estudadostenderam a apresentar um modo de pensamen-to baseado na experincia individual e nas re-laes concretas observadas na vida cotidiana,ao passo que aqueles com maior grau de esco-laridade operaram de forma desvinculada dassituaes concretas, trabalhando de modo abs-trato e descontextualizado (Luria, 1990).

    Tulviste menciona que ele prprio, aotomar conhecimento desse estudo, inicialmente seperguntou: por que os adultos sem escolarizaorespondem assim? interessante pensar queessa tem sido exatamente nossa pergunta maiscomum quando, em estudos de psicologia ereas correlatas, olhamos para fora de nsmesmos: por que os outros no funcionam

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    como ns? O que lhes falta? Especificamentecom relao compreenso do funcionamen-to psicolgico do adulto pouco escolarizado,normalmente o que se faz uma comparaocom um adulto abstrato, supostamente universal,mas que na verdade um adulto bastante espe-cfico e historicamente contextualizado: ociden-tal, urbano, branco, pertencente s camadasmdias da populao, com um nvel instrucionalrelativamente elevado e com insero no mundodo trabalho em ocupaes razoavelmente quali-ficadas (Oliveira, 2001).

    Ele prossegue relatando que demorou aperceber que a questo real era, na verdade,por que as pessoas que freqentaram a escolaresolvem essas questes do modo que o inves-tigador considera correto? Isto , no avariao cultural e histrica da mente que deveser explicada via cultura e histria; a prpriamente, seu desenvolvimento e funcionamento,que s podem ser explicados se a cultura e ahistria forem empregadas de uma nova formana explicao (1999, p. 72). O que precisa serexplicado por meio da cultura no so as ca-ractersticas de diferentes indivduos e gruposque divergem das normas europias e america-nas de funcionamento mental, mas a prpriamente humana e seu funcionamento. A cultu-ra tem que ser o princpio explicativo da men-te especificamente humana.

    Explorando melhor essa idia geral, Tulvistemostra que as atividades executadas numa cultu-ra aquilo que as pessoas fazem constituem ofator que permite explicar a mente especificamentehumana, ou os processos mentais superiores.3 Essasatividades envolvem diferentes tarefas e instrumen-tos semiticos, que por sua vez esto funcional-mente relacionados a formas de pensar. Pessoasenvolvidas em diferentes tipos de atividade e,portanto, resolvendo diferentes tipos de tarefas,disporo de diferentes meios semiticos ou instru-mentos fornecidos pela sociedade, e por usaremdiferentes instrumentos, pensaro de formas dife-rentes (1999, p. 69). Qualquer ser humano, emqualquer cultura, tem sua disposio tantos mo-dos de pensar quantos forem os diferentes tipos de

    atividade. O pensamento humano, em qualquercultura, heterogneo por natureza.

    Voltando aos sujeitos pouco escolarizadosestudados por Luria que traziam para a situa-o de resoluo de silogismos informaes ex-tradas de sua prpria experincia cotidiana, aoinvs de se limitarem s regras dessa modalidadede raciocnio formal , Tulviste afirma que seumodo de pensar no era extico. Era apenassenso comum, um modo universal de pensarassociado a situaes e atividades prticas. Ossujeitos escolarizados resolveram corretamenteos silogismos aplicando um modo de pensarespecfico adquirido na escola e dirigido soluo de problemas escolares. Obviamenteesse modo de pensar no poderia existir emsociedades sem cincia e sem escola. Destaca,entretanto, que no h cultura em que os su-jeitos se ocupem apenas de atividades prticas em todas as culturas h atividades como arte,religio e jogo, separadas das atividades prti-cas; e certamente essas atividades tm relaocom o pensamento.

    Tulviste tem como centro de seu argu-mento a idia de que a construo de umapsicologia cultural deve utilizar a atividade nomeramente como um contexto em que o fun-cionamento psicolgico ocorre, mas como umprincpio explicativo: a mente, e sua origem edesenvolvimento, seriam explicados por meio daatividade. Nesse quadro, os ciclos de vida, isto, os ciclos culturalmente organizados de pas-sagem dos sujeitos pela existncia humana,poderiam ser definidos a partir dos tipos deatividade em que os sujeitos esto envolvidose os correspondentes instrumentos, signos emodos de pensar.

    Destaca-se aqui, entretanto, a necessidadede se ir alm de uma mera catalogao de ativi-dades, como se elas constitussem elementospreexistentes com relao aos sujeitos e suas pr-ticas de construo conjunta de sentidos e, portan-to, da prpria cultura. Conforme afirma Smolka,

    3. O trabalho de Tulviste est fundamentado, em grande medida, nachamada teoria da atividade, cujo principal proponente o psiclogosovitico A. N. Leontiev.

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    no propriamente a atividade prtica, em si,que traz novidade, mas aquilo que o signo, pro-duzido necessariamente na e pela atividadeconjunta, faz com ela. Ou seja, a novidade estno efeito do signo, ou naquilo que ele produz como acontecimento que se tornou possvel pelaatividade na prpria atividade. (...) O X daquesto est em como o signo, e mais especial-mente a palavra, na sua materialidade simbli-ca, afeta e transforma a atividade e o prpriohomem; em como o signo/palavra produz umredimensionamento intrnseco da atividade emao humana, orientada, transformad(or)a esignificativa, tornando-se constitutiva dos sujei-tos em interao. (Smolka, 2004, p. 43)

    Considerando o psiquismo humano comoum processo permanente de produo que envol-ve o indivduo e seu meio sociocultural em cons-tante interao, revela-se a natureza semitica daatividade psquica (Pino, 1991). Uma compreen-so apurada de cada ciclo de vida, portanto, pedemuito mais do que uma nomeao genrica deatividades: no basta dizer a criana brinca ouo adulto trabalha, por exemplo. preciso enten-der de forma aprofundada a organizao das di-ferentes prticas culturais, a construo compar-tilhada de sentidos e significados, a internalizaode modos de fazer, de pensar e de produzir a cul-tura em cada mbito concreto da cultura.

    A idade adulta como um ciclode vida

    A psicologia no tem sido capaz de for-mular, de modo satisfatrio, uma psicologia doadulto. Na verdade, as teorias psicolgicas somenos articuladas e complexas quanto maisavanamos no processo de desenvolvimento dapessoa: sabemos muito sobre bebs, bastantesobre crianas, menos sobre jovens e quasenada sobre adultos. As questes analisadasanteriormente explicam bem essa peculiaridadeda psicologia: como esta tem sido tradicional-mente uma cincia do indivduo e que preten-de chegar a explicaes universais para o de-

    senvolvimento humano e quanto mais jovensmais similares entre si so os indivduos dosvrios grupos culturais, de certa forma maisfcil construir teoria para as etapas da vida emque os sujeitos humanos so mais prximos desua origem animal, sem tanto peso da culturaem sua constituio. Bebs de trs meses, porexemplo, de qualquer tempo e lugar, so mui-to mais parecidos entre si do que crianas dequatro anos, que j dominam a lngua do seugrupo cultural, do que escolares, que j foramsubmetidos ao mundo da escrita e do conhe-cimento sistematizado, e, claro, do que adultos,inseridos no mundo do trabalho, das relaesfamiliares complexas e da prpria conduo doprojeto cultural de constituio dos membrosplenos das diferentes culturas.

    A questo que se apresenta aqui , en-to, como caracterizar a idade adulta. A defini-o dela como sendo um estgio psicolgico deestabilidade e ausncia de mudanas importan-tes (quase que excludo, portanto, da prpriaessncia do desenvolvimento) , claramente, ina-dequada. Mesmo dentro de uma perspectivageneralizante essa assero falsa, na medidaem que os adultos, tipicamente, trabalham,constituem famlia, se relacionam amorosamen-te, aprendem em diferentes dimenses da vida,educam seus filhos, tm projetos individuais ecoletivos. Todas essas caractersticas trazem, emsi, potencial para profundas transformaes.

    Para alm dessa definio genrica deum estgio supostamente estvel, poderamosarrolar algumas caractersticas dessa etapa davida que distinguiriam, de maneira geral, oadulto da criana e do jovem. O adulto estinserido no mundo do trabalho e das relaesinterpessoais de um modo diferente daquele dacriana e do jovem.

    Traz consigo uma histria mais longa (e prova-velmente mais complexa) de experincias, co-nhecimentos acumulados e reflexes sobre omundo externo, sobre si mesmo e sobre as ou-tras pessoas. Com relao insero em situa-es de aprendizagem, essas peculiaridades da

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    etapa de vida em que se encontra o adulto fa-zem com que ele traga consigo diferentes habi-lidades e dificuldades (em comparao crian-a) e, provavelmente, maior capacidade de re-flexo sobre o conhecimento e sobre seus pr-prios processos de aprendizagem. (Oliveira,2001, p. 18)

    Alguns autores tm destacado a especi-ficidade da inteligncia adulta como mais asso-ciada a conhecimentos (e menos a processos),particularmente conhecimentos especializados ereferidos a domnios especficos, por um lado,e conhecimentos tcitos, ligados a procedimen-tos e necessidades prticas, por outro (Ackerman,1998; Torff; Sternberg, 1998).

    Continuamos, entretanto, num plano deanlise muito genrico. A compreenso apro-fundada de uma psicologia do adulto no podeser feita em termos abstratos. Se, conforme dis-cutido anteriormente, os ciclos de vida deve-riam ser compreendidos a partir dos tipos deatividade em que os sujeitos esto envolvidose os correspondentes instrumentos, signos emodos de pensar, temos que estabelecer de queadultos estamos falando.

    A busca de caminhos para a histori-cizao da psicologia do adulto nos conduziua trabalhar no com a categoria abstrata adul-to, mas a focalizar um grupo cultural espec-fico: os adultos trabalhadores que freqentamcursos supletivos . Em termos de uma caracte-rizao geral, esses sujeitos adultos so trabalha-dores, excludos da escola regular, inseridos nomundo do trabalho em ocupaes de baixaqualificao profissional e de baixa remunerao(para um aprofundamento dessa caracterizao,veja-se Oliveira, 2001). importante destacarque, no contexto da presente discusso, enfo-camos especificamente o adulto, embora oscursos supletivos sejam voltados tambm educao de jovens. O jovem atendido por es-ses cursos tambm um excludo da escola, po-rm geralmente incorporado aos cursos supleti-vos em fases mais adiantadas de escolaridade,com maiores chances, portanto, de concluir o

    ensino fundamental ou mesmo o ensino mdio.Tende a ser mais ligado ao mundo urbano, en-volvido em atividades de trabalho e lazer maisrelacionadas com a sociedade letrada, escola-rizada e urbana. Certamente uma das primeirastarefas na direo da compreenso desse ciclo devida ps-infncia uma melhor explicitao dacategoria jovem, em contra-posio ao estgiobiopsicolgico da adolescncia, por um lado, eem contraposio ao adulto por outro, espe-cialmente quando tratamos da questo da edu-cao de jovens e adultos.

    Partindo dessa caracterizao geral, ain-da insuficiente, temos que mapear as condiesespecficas de pertinncia cultural dos sujeitosadultos focalizados. Quando falamos em traba-lhadores, de que tarefas efetivamente desempe-nhadas estamos falando? De tarefas coletivasou desempenhadas isoladamente? De que graude responsabilidade na conduo do cotidianono mundo do trabalho? De que histria ocupa-cional, experincias prvias, formao profis-sional, projetos para o futuro? De que tipo egrau de envolvimento com sindicatos e outrasassociaes de classe? E a excluso da escola,o que significa exatamente? Qual a histriaconcreta de passagem pela escola, as represen-taes sobre valor e interesse da escola, moti-vaes, projetos? A que tipo de tecnologia e delinguagens o sujeito tem acesso? Para que fi-nalidade e com que grau de domnio?

    Adultos trabalhadores comosujeitos de desenvolvimento eaprendizagem

    Com a inteno de aprofundar a compre-enso desse grupo cultural especfico, nos reme-temos, neste item, a dados coletados na pesqui-sa inicialmente mencionada (Moraes et al., 2002).Tal pesquisa foi desenvolvida em cooperao como Centro de Educao, Estudos e Pesquisas(CEEP), organizao que implementou o Progra-ma Supletivo Profissionalizante Educao dosTrabalhadores pelos Trabalhadores juntamentecom o Centro Estadual de Educao Tecnolgica

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    Paula Souza, com sindicatos de trabalhadoresde diferentes categorias e com entidades do mo-vimento popular. Esse programa de ensino suple-tivo busca propiciar, ao aluno trabalhador, eleva-o da escolaridade associada preparao parao trabalho e se prope a gerir a experincia pe-daggica com base na cooperao entre vriosgrupos, oriundos de diferentes instituies sin-dicatos, movimentos populares, universidade eescolas de ensino fundamental, mdio e tcnico.

    A pesquisa em foco, coordenada porquatro pesquisadoras da Faculdade de Educa-o da USP,4 foi planejada com o objetivo decontribuir para a definio de prticas pedag-gicas que possam servir como referncia a po-lticas pblicas de educao de jovens e adul-tos e est referida a quatro eixos de investiga-o que se complementam: a compreenso doadulto trabalhador como sujeito de conheci-mento e aprendizagem, o desenvolvimento demetodologias de ensino para adultos trabalha-dores, a construo de itinerrios de formaoprofissional correspondentes a diferentes ocu-paes demandadas no mercado de trabalho ea criao de possibilidades de organizao dostrabalhadores em atividades econmicas a partirde princpios associativistas.

    Os procedimentos de pesquisa incluramlevantamento e organizao de documentos emateriais referentes ao curso supletivo (leis, regu-lamentos, estatsticas e outras fontes escritas ofi-ciais, bem como material didtico e iconogrficodiverso, registro de reunies pedaggicas, produ-es de alunos e professores), acompanhamentode reunies pedaggicas de planejamento e ava-liao, observao de aulas de diferentes discipli-nas e de estudos do meio, participao em ceri-mnias e festividades promovidas pelos alunos eprofessores do curso, aplicao de questionriose realizao de entrevistas.

    O questionrio dos alunos foi respondidopela quase totalidade dos quinhentos alunos dasturmas de ensino fundamental (141 respondentes)e mdio (trezentos respondentes) e incluiu per-guntas sobre idade, sexo, situao socioeco-nmica, trajetria cultural e profissional, hist-

    ria de passagem pela escola, cursos de qualifi-cao realizados, profisso e escolaridade dospais, representaes dos sujeitos sobre a escolae sua relao com o trabalho e expectativas deprofissionalizao e formao. Foi aplicado noprimeiro semestre de 2002, em situao coleti-va de sala de aula, pelas pesquisadoras e pelasbolsistas da pesquisa, que auxiliaram os alunosna compreenso das questes e na elaboraodas respostas, quando necessrio. Os 45 profes-sores e coordenadores do curso tambm respon-deram a questionrios, aplicados pessoalmentepor integrantes da equipe da pesquisa, nos dife-rentes locais de realizao do programa.

    Uma vez tabuladas e analisadas as res-postas aos questionrios, elaborou-se um rotei-ro de entrevista semi-estruturada, com a fina-lidade de aprofundar a compreenso da hist-ria de vida dos sujeitos, especialmente no quediz respeito a sua passagem pela escola, forma-o profissional, histria ocupacional, ativida-de junto ao sindicato e s suas reflexes sobreo mundo do trabalho, da escola e da ativida-de sindical. As entrevistas foram realizadas comuma amostra selecionada de doze alunos,priorizando aqueles que eram sindicalistas.Foram tambm colhidos os depoimentos detrs sindicalistas integrantes do conselho peda-ggico do curso, em geral responsveis pelasatividades de formao profissional realizadasno sindicato de sua categoria, e de trs profes-sores, totalizando-se, assim, dezoito entrevistas,realizadas pelas pesquisadoras e demais inte-grantes da equipe de pesquisa.

    Os dados de pesquisa explorados no pre-sente item so oriundos dos questionrios e en-trevistas realizados com os alunos e sindicalis-tas, e se referem ao primeiro eixo de investiga-o, que diz respeito ao aprofundamento dareflexo sobre como os adultos trabalhadorespensam e aprendem e s relaes entre fun-cionamento intelectual e vida adulta, escola etrabalho.

    4.Carmen Sylvia Vidigal Moraes, Marta Kohl de Oliveira, Ndia NacibPontuschka e Sonia Maria Portella Kruppa.

  • 220 Marta K. OLIVEIRA. Ciclos de vida: algumas questes ...

    importante destacar que a categoriaadultos trabalhadores, especialmente quandoassociada condio de alunos de cursos quese apresentam como oportunidade de recupe-rao ou elevao de escolaridade, remete a umgrupo de sujeitos que compartilham um certolugar social, caracterizado pela condio deadultos, de excludos dos processos regularesde escolarizao e de membros de determina-dos grupos culturais.

    No que diz respeito aos grupos culturaisa que pertencem esses sujeitos, esses tm sidodescritos como bastante homogneos, compos-tos primordialmente por cidados de baixa ren-da, migrantes que chegaram s grandes metr-poles provenientes de reas rurais empobrecidas,filhos de trabalhadores rurais no-qualificados ecom baixo nvel de instruo escolar (muitofreqentemente analfabetos), com passagemcurta e no sistemtica pela escola e inseridosno mercado de trabalho em ocupaes urbanasno qualificadas, aps experincia como traba-lhadores rurais na infncia e na juventude. (ver,por exemplo, Di Pierro, 2003; Haddad, 2000;Oliveira, 2001; Ribeiro et al, 1992).

    Os dados obtidos na fase preliminar dainvestigao em pauta apontam para um perfildiferente daquele tipicamente descrito para osadultos trabalhadores, alunos dos cursos deeducao de jovens e adultos. Embora 62% dosalunos que responderam aos questionrios se-jam migrantes, isto , no nasceram no muni-cpio em que residem atualmente, a grandemaioria deles proveniente de zona urbana ecomeou a trabalhar ainda na infncia em ocu-paes urbanas de baixa qualificao (princi-palmente como ajudantes em vrios ramos deatividade ou como empregadas domsticas). Amaioria estudou em idade regular, permanecendona escola por pelo menos quatro anos (58% pormais de oito anos), embora tenha abandonadoos estudos antes de completar o ensino funda-mental. Com relao instruo dos pais dessesalunos, aproximadamente 35% deles tm nvelde escolaridade correspondente ao primriocompleto ou mais.

    A maioria dos alunos trabalha na inds-tria (32,6%) ou no comrcio (20,2%), em vri-as funes, e mais de 90% tm um rendimentomensal de at quatro salrios mnimos (57,4%de at dois salrios mnimos e 33,8% de mais dedois at quatro). A quase totalidade dos alunosreside com a famlia, em moradias de alvenaria,com gua encanada, esgoto, coleta de lixo, luzeltrica, guias e sarjetas e pavimentao na rua,sendo que parte substantiva das residncias prpria. Observa-se, assim, que o curso supleti-vo pesquisado atende a uma populao de tra-balhadores adultos mais urbanos e escolarizadosdo que as populaes habitualmente atendidaspor cursos de educao de jovens e adultos.5

    Com relao condio de excludos dosprocessos regulares de escolarizao, os alunosdo Supletivo Profissionalizante Educaodos Trabalhadores pelos Trabalhadores, embo-ra tenham estado afastados da escola por umperodo bastante longo antes do ingresso nocurso supletivo (a maior parte por mais de dezanos), no constituem um grupo de adultostipicamente excludos da escola, alijados detodo contato com a instituio escolar. Aocontrrio, alm de terem permanecido na esco-la por vrios anos, conforme mencionado ante-riormente, mais de 80% dos alunos declaram teringressado na escola regular com sete anos oumenos e apenas 4% aps os dez anos de idade.Nesse sentido, mais do que totalmente exclu-dos da escola, esses alunos podem ser conside-rados como produtos do fracasso do sistemaescolar em garantir escolaridade bsica com-pleta para toda a populao.

    interessante explorar a hiptese deque, para alm dos indicadores objetivos ida-de de ingresso na escola, anos de escolarida-de ou srie completada, a condio de ex-cludos do mundo da escola transparece em

    5. Ressalta-se, aqui, o fato de os dados da investigao relatada referi-rem-se a alunos do ensino mdio e do segundo segmento do ensino funda-mental e, em sua maioria, ligados a sindicatos de trabalhadores urbanos,caractersticas que claramente contribuem para o delineamento de umperfil mais urbano e escolarizado do que aquele apresentado por alunosadultos em fase de alfabetizao ou de escolarizao inicial.

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    outras dimenses da vida desses sujeitos. As-sim, por exemplo, embora declarem ter entra-do na escola em idade regular e nela permane-cido durante um perodo relativamente prolon-gado, os alunos do supletivo estudado apresen-taram marcada dificuldade de fornecer informa-es precisas sobre a histria de sua passagempela escola.

    Esse fato fica bastante evidente comrelao pergunta do questionrio Com queidade voc entrou na escola pela primeiravez?. Essa pergunta no produziu uma respostaautomtica e inequvoca, como costuma pro-duzir em sujeitos para os quais a passagempela escola faz parte essencial de sua narrati-va autobiogrfica. Ao contrrio, a pergunta nofoi imediatamente compreendida por muitosdos entrevistados e gerou dvidas sobre o con-tedo da resposta. Conforme pudemos obser-var no momento de aplicao do questionrio,parece que, uma vez esclarecido o significadoda pergunta, vrios alunos arbitraram uma ida-de de ingresso na escola que no tinha umsentido de preciso cronolgica, mas, ao con-trrio, consistia numa referncia bastante sub-jetiva a um perodo da prpria biografia, talvezcorrespondente genericamente infncia, vida antes do ingresso no mercado de trabalhoou ao momento em que prevalecia um certomodo de relao com a famlia, com a cidadeou com as instituies sociais.

    interessante mencionar alguns dadosreferentes a essa relao subjetiva com o pro-cesso de escolaridade e com a prpria infncia.O sindicalista V., por exemplo, quando fala deseus tempos de infncia respondendo a umapergunta sobre sua vida escolar feita na entre-vista, passa de um discurso de anlise polticabastante sofisticada para um tom nostlgico,personalista, emocional. Vejamos os dois tiposde discurso:

    Sobre o curso supletivo: O supletivo eu pensoque parte de um sonho que a gente tinha,que essa forma de trabalhar a educao dotrabalhador de um modo geral. Ns sempre ti-

    vemos aquela experincia, aquele negcio dedizer assim, ele um trabalhador que contribuicom a formao de outros, e assim era a gente.Na fbrica, por exemplo, eu vou contar umaexperincia da fbrica. A maioria do pessoal quevem do interior (...) para Limeira, por exemplo, umacidade de um nvel razoavelmente industrial, osque vieram na dcada de 1970, 1980, a maioriatem muito pouca escolaridade e como se aprende aser inspetor de qualidade, se aprende a ser umtorneiro mecnico? Aprende na raa. O peo quechega ali j fica trabalhando de ajudante ge-ral, o operador da mquina j est bem prxi-mo ali e o operador daquela mquina, sejatorneiro, plainador, acaba ensinando o ajudan-te. uma forma do trabalhador ensinar a ou-tros trabalhadores. o que a gente pensa docurso supletivo. Ns achamos que possvel essatroca de experincia entre o aluno trabalhadore o professor. O professor o trabalhador darea da educao e est dando a sua contribui-o de formao, escolaridade, queles que notiveram oportunidade de ter um nvel de escola-ridade como deveriam ter.

    Sobre a vida escolar na infncia: Na verdade,lembrar do tempo de escola, de infncia, d sau-dade. A gente fazia um percurso grande, a esco-la na zona rural ficava oito, dez quilmetros dis-tante de casa e era gostoso, porque a gente pas-sava no meio das [?], corria das vacas, voc viaaquele monte de gado, voc trilhava e corria esaa uma criana para um lado, outra para ooutro no meio do mato se desviando. interes-sante, encontrava escorpio, cobra no meio domato e tambm na volta da escola catava fruta,porque no sei se vocs conhecem, tem umaplanta interessante no mato, nativa, chamadade ing, tem at umas vagens, uma delcia, inge a pindaba, pindaba tipo a fruta-do-conde,o formato igual, s que rosada e d em r-vores grandes. Ento a gente matava o tempo,porque tinha que chegar em casa, catar o quetinha, que era o caf para o meio-dia, levavapara o pai l e os irmos, e j ficava trabalhan-do, ento aos oito, dez anos, j era no trampo

  • 222 Marta K. OLIVEIRA. Ciclos de vida: algumas questes ...

    direto, mas o bom que eu lembro era isso, a dis-tncia, mesmo com a dificuldade que tinha,mais o orvalho; ms de inverno ento era horr-vel, mas era bom.

    Observa-se como o tempo de escola, deinfncia parece estar mapeado subjetivamen-te, por impresses, sensaes, lembranas pes-soais de movimentos, relaes, sabores, semreferncia a marcadores burocrticos ou dealguma forma objetivamente compartilhadossobre a passagem do tempo ou a passagem dosujeito por etapas estabelecidas no discursotpico do mundo letrado e escolarizado. Emboraa narrativa mencione a idade de oito, dezanos essa referncia cronolgica no pareceter a funo de precisar marcos bem definidos,mas remeter ao tempo da vida rural, da corre-ria com as crianas, do ing e da pindaba. Essesujeito provavelmente responder perguntaCom que idade voc entrou na escola pelaprimeira vez? a partir desse mapea-mento sub-jetivo, segundo o qual as idades de oito oudez anos, por exemplo, correspondem a ummesmo momento biogrfico.

    Essa falta de preciso (do ponto devista do pesquisador), que certamente afeta afidedignidade dos dados quantitativos sobre es-colaridade constantes de um relatrio de pes-quisa, poderia ser tomada, talvez, como evidn-cia de uma relao no letrada, no esco-larizada, com a prpria passagem pela escola,sugerindo uma modalidade de excluso queno transparece em indicadores mais objetivos.Mas poderia ser tomada, tambm, como umindcio da importncia das condies de vida edas diferentes pertinncias culturais na consti-tuio de diversos modos de pensar, sentir,lembrar, esquecer, narrar, omitir, possveis paracada sujeito, a cada momento de sua histriapessoal.

    De qualquer forma, uma possvel relaode excluso com o mundo da escola pode serconsiderada como estando presente em outrosaspectos das entrevistas, tais como: dificulda-des no uso da terminologia referente aos ciclos

    escolares (Quando apareceu essa oportunida-de lanada em 1999, comeou na primeiraturma, eu fiquei esperando, porque eu j tinhaa oitava srie, vamos dizer o ensino mdio,n?), falta de informao sobre idade prpriapara ingresso na escola (J comecei meio atra-sado, com sete anos) e inconsistncias nosrelatos sobre a histria da prpria escolaridade,como fica evidente no dilogo a seguir, retira-do da entrevista com o sindicalista A.

    Entrevistador: Com que idade voc entrou naescola?A.: Veja eu sou nordestino, nasci nas Alagoas(...) Eu nasci em 1953, vim embora aqui paraSo Paulo em 1968.E.: Com quinze anos?A.: Exatamente. Com essa idade a eu no tinhanem o ensino fundamental, eu no tinha. Eucomecei a estudar, fazer supletivo desde os... Euestudei no Senai, primeiro eu fiz o Sesi, depoiseu fiz supletivo segundo grau no Santa Ins, eprestei vestibular, passei (...). Eu me formei noMackenzie.E.: Voc fez um supletivo?A.: , eu comecei estudando no ensino funda-mental, estudei em Alagoas, j estudei emSergipe, tambm, moramos uns dois anos.E.: Voc fez escola antes de vir para c aosquinze anos?A.: Fiz at o terceiro ano primrio.E.: Em que idade comeou a escola?A.: Eu comecei em torno de uns oito anos, maisou menos.E. : E a fez at que srie?A.: Fiz primeira, segunda e terceira, a vimpara So Paulo, fiz um teste.E.: Parou quanto tempo?A.: Parei assim uns dois anos sem estudar, maisou menos, a depois eu fiz um teste no Sesi, eraSesi, n? E passei para fazer o quarto ano epassei para o quinto ano, s que do quinto anoem diante fiz s supletivo, para recuperar aidade, porque eu fiquei muito tempo tambmsem estudar, eu comecei a estudar...E.: Isso me interessa muito, conclui essa histria,

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    voc comeou e fez at trs anos...A.: Na verdade eu acho que no me lembreidireito e falei uma coisa que no bem assim.E.: Corrige...A.: Na verdade eu fiz assim que eu me lembremesmo, eu fiz pr-primrio numa escola francis-cana na cidade de Penedo. (...) Uma escola defreira. (...) A depois eu cheguei a estudar umprimeiro ano mesmo na escola estadual (...),segui o primeiro ano, depois no conclu. Fiz oprimeiro ano, mas no conclu o segundo ano,porque a gente ficava viajando de um lado parao outro, fiquei um tempo sem escolaridade evim estudar aqui em So Paulo, quando a genteveio para c. A foi que eu fiz um teste no Sesie passei para fazer. Comecei o supletivo desde oprimrio, digamos assim.

    No que diz respeito condio de adul-tos dos trabalhadores que freqentam cursos su-pletivos destaca-se, aqui, a necessidade dehistoricizao da investigao sobre a psicologiado adulto e a importncia de se tomar a cultu-ra como princpio explicativo do psiquismo. Aprincipal modalidade de insero da pessoaadulta na cultura o trabalho e essa seria acategoria fundamental de anlise no processo deconstruo de uma psicologia do adulto.

    Para os alunos trabalhadores a questodo trabalho , por definio, ainda mais proe-minente. Apenas alguns dados preliminaressobre a questo da imerso dos sujeitos nomundo do trabalho foram obtidos nessa etapainicial da pesquisa. A esse respeito o caso deum diretor do Sindicato dos Radialistas se anun-cia como extremamente relevante como objetode um estudo mais aprofundado. Se. estudouat a stima srie do ensino fundamental, masocupa o cargo de tcnico em metereologianuma emissora de rdio e TV. Seu trabalho con-siste em interpretar dados de mapas metereo-lgicos recebidos de agncias internacionais eorganiz-los sob forma de notcias sobre otempo a serem transmitidas pelos locutores daemissora aos ouvintes e telespectadores. Sua ati-vidade diretamente relacionada a um mundo

    de representaes simblicas linguagens etecnologias bastante especficas e seu desen-volvimento nesse mundo se deu independente-mente da qualificao profissional escolar. Eleprprio afirma, porm, que adquiriu o conhe-cimento tcnico na prtica, mas que a escola oajuda no aperfeioamento da construo dotexto escrito.

    Como no caso do tcnico em metereo-logia, em vrios outros depoimentos eviden-ciou-se a importncia da relao entre o modode insero do sujeito no mundo do trabalhoe as prticas de formao profissional, deescolarizao e de envolvimento na atividadesindical.

    Em primeiro lugar observa-se que a prpriabusca de elevao da escolaridade desses adultosque procuraram o curso supletivo est claramen-te associada demanda de certificao por partedos empregadores e s novas necessidades deformao ligadas s inovaes tecnolgicas nomundo do trabalho. Vrios dos sindicalistas entre-vistados apontaram para essa questo, como sepode observar nos trechos abaixo:

    Hoje todo profissional tem que ter escolaridade,porque o mercado de trabalho se aperfeioou,ele tem outros mecanismos que exigem que apessoa tenha condio de interpretao, mexacom novas tecnologias. (C.)

    Bom, para mim a recuperao da escolaridadesignifica garantia do emprego, em primeiro lu-gar; e para quem est desempregado ento fundamental a recuperao escolar. (Se.)

    Ou voc tem o estudo ou voc no tem, ouvoc mandado embora, at para faxineiromesmo, se voc no tiver o primeiro grau, lvoc no entra. (J.)

    Agora, com as novas tecnologias, as coisas es-to apertando, as empresas esto apertandoesses camaradas para ter o certificado; entoeles esto vendo hoje que se faz necessrio vol-tar para o banco da escola. (Se.)

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    Ao mesmo tempo, entretanto, a elevao daescolaridade apontada como relevante no spelas exigncias do mercado de trabalho, masprincipalmente porque educao importantepara elevar a conscincia das pessoas, da reali-dade, eleva a conscincia poltica, eleva a ne-cessidade do saber. Ela fundamental, funda-mental para a vida das pessoas (a educao) epara os trabalhadores isso para ns est entreas prioridades. (C.)

    Essa postulao est estreitamente liga-da questo do papel da escolarizao no de-senvolvimento psicolgico, tema que tem sidopor ns tratado em trabalhos anteriores (Olivei-ra, 1995, 1996, 2001). Por um lado podemosarrolar algumas caractersticas do funcionamen-to cognitivo geralmente associadas aos adultospouco escolarizados, tais como pensamentoreferido ao contexto da experincia pessoalimediata, dificuldade de operao com catego-rias abstratas, dificuldade de utilizao de es-tratgias de planejamento e controle da prpriaatividade cognitiva, bem como pouca utilizaode procedimentos metacognitivos (Oliveira,1995). A escola parece estar ligada, portanto, promoo de um modo de funcionamento in-telectual que envolve capacidade de anlise ereflexo, de articulao do pensamento verbal,de planejamento e tomada de deciso, de dis-tanciamento do contexto concreto da vidacotidiana, de transcendncia das condiesobjetivamente vivenciadas.

    Por outro lado, entretanto, sabemos quea passagem pela escola no garante, de modohomogneo, o acesso a essa forma de funcio-namento intelectual, j que entre sujeitos esco-larizados h aqueles que no apresentam ascaractersticas mencionadas e entre sujeitospouco escolarizados h aqueles que as apre-sentam. necessrio, portanto, buscar outrasprticas culturais que poderiam constituir fon-tes relevantes de desenvolvimento psicolgiconuma determinada direo. interessante men-cionar, aqui, uma observao pontual que indi-ca a importncia de diferentes atividades cul-

    turais na implementao de modos de funcio-namento psicolgico. O uso sistemtico deagendas e o uso do registro escrito em reu-nies, modos de ao tipicamente letrados e,portanto, normalmente associados exposioa nveis relativamente altos de escolaridade, soprticas totalmente disseminadas entre os sin-dicalistas estudados, independentemente deseu grau de instruo escolar. A fonte dessasprticas letradas, portanto, no a escola edeve ser buscada em outras formas de ativida-de cultural. Alm do trabalho, j mencionadocomo categoria fundamental de anlise na pre-sente pesquisa, a participao na atividade sin-dical se apresenta neste contexto, portanto,como prtica potencialmente relevante para aconstituio de um determinado modo de fun-cionamento psicolgico.

    Podemos afirmar que nos dados obtidosna pesquisa em foco, escola e sindicato apare-ceram como fontes alternativas ou complemen-tares de desenvolvimento psicolgico. Assim, se,por um lado, os alunos que se destacam nocurso supletivo so aqueles que participammais ativamente da atividade sindical, por ou-tro lado, a escolaridade considerada importan-te e, quando baixa, aparece como falta, comoalgo que definitivamente faz diferena no de-sempenho pleno no mbito do sindicato. No-vamente as entrevistas apresentam depoimen-tos bastante relevantes a esse respeito:

    Bom, tem desde os alunos que no esto na dire-o do sindicato: a partir do momento em quecomearam o curso eles melhoraram at na suaparticipao na atividade do sindicato, desde ocurso de formao sindical, poltica, as questesdas discusses de negociaes, das assemblias,decises de salrios; qualquer evento que o sindica-to faa os alunos tm participado. Agora, ns te-mos um grupo, basicamente trs a quatro alunos,que so diretores do sindicato que tm mostrado aimportncia desse curso, tm dado seu resultado.Por exemplo, tem o sr. S., um senhor que j estcom seus cinqenta e poucos anos e est na dire-o do sindicato. Tinha parado um bom tempo de

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    estudar e voltou e um dos mais assduos partici-pantes, vai l, no falta a uma aula. O curso in-teiro acho que ele faltou umas trs vezes porqueteve que viajar para alguma atividade. Ento nesse sentido que a gente v a expectativa dessaspessoas e principalmente a nossa, enquanto direodo sindicato, da importncia que est sendo essecurso na formao de trabalhadores. (M.)

    O sindicalista dentro da sala de aula ajuda, euacho que um dos pontos; mas um ponto maisforte mesmo a ligao entre professor e sindica-to, e o elo de ligao que existe que o traba-lho dentro da sala de aula. lgico que com osindicalista l dentro tem mais poder de insero,de pedir a fala e poder mostrar um pouco. (AC.)

    P: Voc acha que quem tem baixa escolarida-de mais despolitizado ou igual?J.: No meu caso, eu no tinha escolaridade mastinha formao poltica, muita gente tambmque no tem escolaridade tem formao polti-ca. Quem no tem o estudo, acho que meiodifcil ter formao poltica. Tm pessoas mes-mo que ligam a televiso e, quando est emhorrio poltico, desligam, no querem nem sa-ber o que est passando.P: Mas e a, voc no tem um caso de um sin-dicalista que tenha pouca escolaridade, mas quetivesse uma atuao poltica legal?J.: Tem [cita alguns nomes].(...)P: Ento a escola para eles no fez falta?J.: Eu acho que faz falta, sim, porque se elestivessem estudo eles poderiam sentar em umamesa de negociao, negociar melhor, saber osnmeros, entendeu, que era o meu caso. Comoeu vou analisar uma negociao de (?), vamossupor, se eu no tiver estudo, como eu vou fa-zer um clculo daqueles? Que a dificuldadede um deles, que um diretor de sindicato.P: Ento voc acha que a escola faz diferena?J.: Faz diferena.

    Para alm dessas relaes mais gerais ob-servadas, os dados preliminares sobre como os

    adultos trabalhadores pensam e aprendem esobre as relaes entre funcionamento intelectuale vida adulta, escola e trabalho indicaram, demodo geral, a importncia de se considerar astrajetrias singulares dos diferentes sujeitos e aquesto de que no haveria um nico caminhode desenvolvimento ou uma nica forma defuncionamento psicolgico para o ser humano.Ser adulto, trabalhador, estudante, participante desindicato e pai de famlia, membro de gruporeligioso, militante de partido poltico, etc. socondies que, em diferentes combinaes ecom diversos significados, constituem formaspeculiares de construo de conhecimento e deaprendizagem, evidenciando que o desenvolvi-mento psicolgico um processo de constantetransformao e de gerao de singularidades. Aesse respeito podemos citar brevemente algumasinformaes extradas das entrevistas.

    O sindicalista AC., por exemplo, nos falada morte da me como um fator significativo emseu processo de desenvolvimento juntamentecom a escola e o sindicato esse evento espec-fico moldou, de acordo com o prprio sujeito,algumas de suas caractersticas pessoais:

    P: Agora, onde que voc, alm da escola, lgi-co, onde voc conseguiu essa facilidade de con-versa, de expor suas idias?AC.: No, eu estive em vrias escolas, uma delasfoi a perda de um membro da famlia, que eraminha me, eu tive que morar sozinho e pra morarsozinho a gente tem que ser desinibido pra pediralguma coisa pras pessoas, porque a gente depen-de uma da outra. Pra lavar uma roupa eu pediapara os vizinhos. E eu conversava muito pouco. Asegunda o sindicato. Agora, a terceira que estmelhorando o meu vocabulrio a escola.

    A sindicalista Si. menciona, alm da escolae dos cursos de formao no sindicato, a inten-sa prtica de leitura e a atividade na Igreja Ca-tlica como fontes de conhecimento:

    P: E quais outras atividades na sua vida social,fora da escola, que voc acha que te trazem co-

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    nhecimento? [alm de cursos de formao nosindicato, sobre os quais se falou anteriormente.]Si.: Olha, eu sou uma leitora crnica, eu ado-ro ler. Tudo quanto tipo de leitura, salvo asporcariadas, s vezes at as porcariadas porquedeve ter alguma coisa interessante. At porqueassim, quando voc entra num espao de forma-o sindical, voc tem que estar lidando tam-bm com essas coisas do senso comum, voc nopode bitolar e tampar os olhos para aquilo queexiste no mundo. Ah, esqueci de dizer que eufui catequista.

    No que diz respeito qualificao pro-fissional, no caso do marceneiro R., a experin-cia de trabalho na serraria do pai, na infncia,tem clara relao com seu destino e formaoprofissional, e com o conhecimento de todo ociclo de produo dos produtos de madeira.Mas foi no Senai que ele aprendeu a lidar complantas e a utilizar ferramentas que at hoje opai, ainda marceneiro, no utiliza:

    R.: Comecei a trabalhar com uns 14 anos.P: L no Maranho?R.: L no Maranho.P: E o que voc fazia?R.: Eu trabalhava na roa, n, logo de manhtrabalhava na roa. O sol esquentava e eu iapara a serraria com meu pai. Meu pai era, afamlia era uma famlia de operrio. Meu paitinha uma serraria.P: Ah, ento voc j mexia com madeira?R.: , ento ns amos para a roa logo de ma-nh cedo. O sol esquentava a ns amos para amarcenaria. Ento eu conheo, a gente conhece,desde o p da rvore, n, voc derrubava ele n,no era na serra, era com machado, lavava, la-vava ele, e a gente ia, levava para a serraria,que a gente chamava de estaleiro. Ento meu paificava embaixo e, com um serrote (...) e a gentetirava mais ou menos (...) umas doze tbuas pordia. (...) E a para a marcenaria fazer os mveis.(...)P: Ento seu aprendizado foi mais com seu pai,mesmo?

    R.: , mais com meu pai.P: E o Senai (...), acrescentou conhecimento as-sim, ou no?R.: Acrescentou, acrescentou, foi a parte tcnica,n? Por exemplo, l, meu pai, at hoje ele noconhece de planta, foi o que ns conhecemos, umpouco de planta, n? E a ferramenta de trabalho,l ns tnhamos outra ferramenta de trabalho.

    O caso da formao deste marceneiro,especialmente sua relao com a totalidadedo ciclo de produo, na infncia, e a apro-priao de tecnologia (as ferramentas e asplantas, como instrumentos mediadores),poder ser utilizado, juntamente com o casodo tcnico em mete-reologia mencionado an-teriormente, para um aprofundamento dacompreenso da imerso dos sujeitos nomundo do trabalho.

    J o bancrio A., bacharel em Qumica,explicita uma escolha profissional (que, alis,no corresponde ao ramo de seu emprego) apartir de uma experincia no mundo do tra-balho, que lhe despertou curiosidade intelec-tual:

    E j trabalhei com meu prprio irmo como aju-dante de encanador, registrado em carteira, tra-balhei como auxiliar de expedio, registrado j,j trabalhei como eletricista (...), passei a eletri-cista, trabalhei quase quinze anos como eletricis-ta e me encantei pela qumica porque j traba-lhei na Petroqumica Unio, como eletricista,mas eu via, eu acompanhava os qumicos fazendoformulao e outras coisas que me levaram a,despertou a vontade de estudar qumica. (A.)

    Evidentemente essas informaes pon-tuais no constituem um corpo de dados sufi-cientemente denso que permita a explorao daquesto da constituio da singularidade nas tra-jetrias individuais e suas relaes com caracte-rsticas comuns ao grupo de adultos estudados.Elas esto aqui mencionadas como indicadoresda importncia de se construir uma compreen-so aprofundada das configuraes histricas no

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    processo de constituio dos sujeitos. Assim,mesmo num grupo relativamente homogneo detrabalhadores adultos urbanos, em cujo discur-so, na situao de entrevista contextualizada napresente pesquisa, destacam-se os temas do tra-balho, da escola e do sindicato, emergem temaspeculiares, nicos, singulares. Para um sujeito amorte prematura da me um fator fundamen-tal, para outro as prticas de leitura e a Igreja;para um enfatiza-se o trabalho na infncia, liga-do esfera familiar; para outro a experincia nafbrica. A construo de categorias que levemem conta esses temas fundamentais para cadasujeito, sem perder de vista o objetivo de umaordenao generalizante dos dados obtidos, um desafio a ser enfrentado numa fase de apro-fundamento da anlise.

    Relacionado a isso delineia-se, aqui, umaquesto terico-metodolgica: fundamentaltransitar entre os objetivos de compreenso maiscomplexa dos temas centrais na constituiodas singularidades dos sujeitos estudados e deconstruo de categorias de anlise que permi-tam certa ordenao generalizante dos dadosobtidos. Como afirma Ecla Bosi uma histriade vida, ou mil histrias de vida jamais substi-tuiro um conceito ou uma teoria da Histria.(...) Muito mais que qualquer outra fonte, o de-poimento oral ou escrito necessita esforo desistematizao e claras coordenadas inter-pretativas (2003, p. 49).

    O trabalho de pesquisa de Bernard Lahire(1997) sobre o sucesso e o fracasso escolar decrianas provenientes de um meio social bastan-te homogneo, cujos perfis individuais foramanalisados em termos do processo de constitui-o de singularidades, funda-se numa meto-dologia exemplar, nesse sentido. Esse pesquisa-dor mergulha nos casos individuais, procuran-do superar o plano de anlise correlacionalcom uma anlise aprofun-dada de configura-es nicas. Mas retoma a empreitada cient-fica da generalizao ao encontrar temas re-correntemente associados ao sucesso escolarpresentes nos diversos casos estudados. Comoafirma ele, o

    problema central de construo do objeto consisteem passar de uma reflexo estatstica sobre asrelaes, as correlaes entre meio social e de-sempenhos escolares, a uma microscopia sociol-gica dos processos e das modalidades dos fenme-nos sociais, sem cair, no entanto, em puras descri-es monogrficas. (Lahire, 1997, p.31)

    Com relao educao de jovens eadultos, campo que dialoga diretamente com asreflexes aqui propostas, as implicaes da pre-sente anlise so bastante claras. Os sujeitos daao educativa nesse campo encontram-se jus-tamente nos ciclos de vida ps-infncia, para osquais, como vimos, no h conhecimento te-rico muito bem estruturado disponvel, e per-tencem a segmentos sociais especficos, quetm sido objeto de generalizaes pouco fun-damentadas sobre supostas relaes entre fun-cionamento psicolgico e pobreza, baixo nvelinstrucional e baixa qualificao profissional(ver, por exemplo, pesquisas mencionadas emHaddad, 2000 e Kleiman, 1995).

    Neste artigo procuramos enfatizar a ne-cessidade de historicizar a compreenso dodesenvolvimento, tomando os ciclos de vidacomo etapas culturalmente organizadas depassagem do sujeito pela existncia tipicamen-te humana. As atividades e prticas culturais,e especialmente os instrumentos, signos e mo-dos de pensar a elas relacionados, foram pos-tulados como constitutivas da mente humana.Nesse sentido os jovens e adultos concretosque se encontram na sala de aula deveriam serobjeto de conhecimento aprofundado, pormeio da investigao sobre seu modo de in-sero na vida social, suas atividades, seuacesso a diferentes tecnologias e linguagens,a partir do qual poderia ser estabelecido umdilogo com os instrumentos, signos e modosde pensar que so prprios da escola (paraum exemplo de um trabalho com adultos naescola no sentido de constitu-los como sujei-tos da aprendizagem e do prprio processo deescolarizao, veja-se Fonseca, 2001). As pr-ticas escolares assim construdas tomariam es-

  • 228 Marta K. OLIVEIRA. Ciclos de vida: algumas questes ...

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    ses alunos como sujeitos humanos plenos, emconstante constituio por meio da imersoem situaes concretas de construo de sig-nificaes. A superao da excluso do mundoletrado e escolarizado passaria, desse modo,

    no apenas pela oferta de oportunidade formalde elevao de escolaridade, mas pela apropri-ao da escola, pelos sujeitos adultos, comolugar social que de todos os atores que nelainteragem.

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    Recebido em 17.05.04Aprovado em 05.08.04

    Marta Kohl de Oliveira docente da Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo. graduada em Pedagogia pelaUSP e mestre e doutora em Psicologia da Educao pela Universidade de Stanford, EUA.