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  • Maria Lusa Seabra Marques de Azevedo

    MOARABISMO E TOPONMIA EM PORTUGAL

    ACADEMIA DAS CINCIAS DE LISBOA

  • FICHA TCNICA

    TITULO

    MOARABISMO E TOPONMIA EM PORTUGAL

    AUTOR

    MARIA LUSA SEABRA MARQUES DE AZEVEDO

    EDITOR ACADEMIA DAS CINCIAS DE LISBOA

    EDIO

    ANTNIO SANTOS TEIXEIRA

    SUSANA PATRCIO MARQUES

    ISBN 978-972-623-266-7

    ORGANIZAO

    Academia das Cincias de Lisboa

    R. Academia das Cincias, 19

    1249-122 LISBOA

    Telefone: 213219730

    Correio Eletrnico: [email protected]

    Internet: www.acad-ciencias.pt

    Copyright Academia das Cincias de Lisboa (ACL), 2015

    Proibida a reproduo, no todo ou em parte, por qualquer meio, sem autorizao do Editor

  • 1

    MOARABISMO E TOPONMIA EM PORTUGAL

    Maria Lusa Seabra Marques de Azevedo

    Resumo

    Apesar da distncia temporal, ainda possvel seguir o rasto das comunidades

    morabes que, no Al-Andalus, se cruzaram com outros povos e culturas.

    Esta interao manifesta-se na lngua, sobretudo na toponmia, onde a influncia

    morabe se revela com maior extenso e vitalidade.

    De facto, a diversidade tipolgica dos nomes de lugar morabes ultrapassa

    largamente as caractersticas mais frequentemente mencionadas conservao de -N-

    e -L- intervoclicos e aglutinao do artigo rabe al e, alm disso, eles no s esto

    presentes no Centro e no Sul do nosso territrio, mas ultrapassam a linha do Mondego,

    estendendo-se mesmo para norte do Douro, ao contrrio do que at h pouco se

    supunha.

    Atravs da anlise da toponmia morabe , assim, possvel conhecer algumas

    das caractersticas dos dialetos falados no nosso territrio antes da formao do

    galego-portugus.

    Abstract

    Despite the time distance, it is still possible to follow the trail of the Mozarabic

    communities that, in Al-Andalus, met other people and cultures.

    This interaction is expressed in the language, where the Mozarabic influence is

    revealed to a greater extent and vitality in place names.

    In fact, the typological diversity of the mozarabisms exceeds by far the three most

    frequently mentioned linguistic traces: conservation of intervocalic -N- and -L- and the

    agglutination of the Arabic article al. Besides, contrarily to previously assumed, these

    mozarabisms can be found not only in the centre and the south of our territory but even

    north of the Mondego River, crossing the Douro.

    Considering Mozarabic place names it is thus possible to study some of the

    characteristics of the dialects spoken in our territory before the formation of the

    Galician-Portuguese.

  • 2

    O Al-Andalus: encontro de saberes e de culturas

    Quando, em abril ou maio de 711, Tarique atravessou o estreito de Gibraltar e

    desembarcou no promontrio do Calpe, D. Rodrigo, o ltimo dos reis godos, reinava na

    Ibria e, cerca de trs anos depois, os rabes dominavam a Pennsula.

    Al-Andalus era o nome que os rabes davam Hispnia termo que aparece pela

    primeira vez num dinar cunhado em 716 e que, segundo a tradio escolar, se relaciona

    com os vndalos, pressupondo que a Btica se teria chamado Vandalicia. Talvez o

    termo Al-Andalus esteja relacionado com o mito da Atlntida, criado ou veiculado por

    Plato, sendo, assim, a expresso Jazirat-al-Andalus, a ilha de Al-Andalus, usada no

    rabe clssico como a ilha do Atlntico ou a Atlntida.

    Para melhor se perceber a rapidez do domnio rabe, necessrio atentar numa

    srie de fatores: por um lado, a debilidade, a falta de coeso e de um comando hbil por

    parte do estado visigodo e, por outro, a quase indiferena dos povos das vrias regies

    conquistadas. De facto, a instabilidade poltico-social e o clima de guerra civil que se

    vivia ter at levado algumas figuras proeminentes da sociedade goda a encorajar os

    rabes a entrarem na Pennsula. Alguns autores consideram mesmo que no ter havido

    propriamente uma conquista rabe, mas sim uma ocupao, conseguida com base na

    entrega espontnea das terras e no acordo motivado, em grande parte, pela vitalidade

    e pelo carter inovador da civilizao muulmana.

    Assim, na Hispnia, passaram a coexistir cinco grupos etnicossociais: os

    baladiyym, provenientes da Arbia, senhores tanto na Ibria como no norte de frica; os

    mouros ou berberes da Mauritnia, eles prprios conquistados pelos rabes e

    parcialmente islamizados; os muwalladim [muladis], hispano-godos convertidos ao

    islamismo; e os judeus, com os mesmos direitos que os morabes: hispano-godos ou

    hispano-romanos submetidos ao domnio muulmano, mas no assimilados, que viviam

    em comunidades separadas e dispunham de instituies e autoridades prprias.

    O termo morabe , alis, derivado de um particpio rabe, mustarab ou

    mustarib, que significa submetido aos rabes, arabizado.

    A toponmia atesta esta convivncia, que se prolongou muito para alm das datas

    comummente definidas como balizas histricas, pois estas populaes continuaram

    entre ns, numa frutuosa coexistncia, muito depois de 1249 (conquista do Algarve) ou

    de 1496 (dito de expulso dos judeus de Portugal).

    De facto, so centenas os topnimos que testemunham a presena de mouros e

    sarracenos, de norte a sul do pas: Vilar de Mouros (Caminha), Eira dos Mouros

    (Mono), Mourosas (Cinfes), So Martinho de Mouros (Resende), Meda de Mouros

    (Tbua), Cova dos Mouros (Palmela), Horta dos Mouros (Almodvar), Azinhal dos

    Mouros, Esteval de Mouros (Loul), Cerro dos Mouros (Silves), Presa dos Mouros

  • 3

    (Lagoa), Moura, Cabeo da Moura (Tomar), Mouro, Mouraria (Caldas da Rainha,

    Albufeira), Vale de Moura (vora, Santarm), So Pedro de Sarracenos (Bragana),

    Serrazim (Vila Verde), Serrazina (Oliveira de Azemis, Condeixa-a-Nova)

    A pegada dos mollites, ou seja, dos muladis est igualmente marcada nos nossos

    nomes de lugar: Moldes (Arouca, Paredes de Coura, So Pedro do Sul, Viana do

    Castelo, Vila do Conde, Vila Nova de Famalico), Cela de Moldes (Arouca) e Torre de

    Moldes (Barcelos).

    Tambm os judeus nos legaram vrios topnimos: Judeu (Loul), Malhada do

    Judeu (Faro), Malhada dos Judeus (Moura), Monte do Judeu (Moura, Serpa,

    Fronteira), Monte dos Judeus (Arronches, Castelo Branco), Porto Judeu (Penela,

    Monchique), Vale de Judeus (Setbal), Vale Judeu (Loul), etc.

    E a presena das populaes morabes est ainda assinalada na toponmia

    Casal da Monservia (Loures), Casal de Monservia (Sintra), Moarria (Santarm),

    Monaravia (Alenquer), Monsarros, Vila Nova de Monsarros (Anadia), Monte de

    Monarves (Viana do Alentejo) e na antroponmia antiga: Maria Mozaraba, Petrus

    Mosarabe (1167), Dominicus Mozaravinus (1232).

    Durante esta longa convivncia, a vida dos morabes no foi linear e os

    historiadores costumam distinguir trs grandes momentos.

    O que medeia, grosso modo, entre a invaso muulmana (711) e a submisso de

    Toledo (932), com a conservao da f crist e a manuteno de uma certa vitalidade e

    at de alguma superioridade da cultura romnica sobre a rabe (especialmente nos

    centros urbanos), sendo os dialetos romnicos morabes largamente utilizados tanto

    pelas populaes crists como pelos muulmanos.

    Depois o de estagnao, que termina com a perseguio das populaes

    morabes pelos almorvidas (1099) e no qual quase se extingue o esprito nacionalista

    cristo, mas no os idiomas romnicos veculos de comunicao oral privilegiados

    entre as populaes crists-morabes nem o latim, que continuou a ser usado nos

    documentos escritos.

    Por ltimo consequncia da intolerncia dos almorvidas e, mais tarde, da

    invaso sanguinria dos almadas (1146) , o da emigrao rumo ao Norte ou da

    deportao para frica de muitos que no conseguiram refgio atempado em territrio

    cristo.

    Os primeiros sculos foram, portanto, importantes pela sua relativa tranquilidade:

    as populaes que se convertiam ao islo ou se rendiam e pagavam impostos eram

    tratadas com uma certa tolerncia, estabelecendo-se entre elas e a administrao

    sarracena pactos que estipulavam condies de paz e coabitao.

  • 4

    Estes acordos consignavam a conservao e posse de propriedades, bem como a

    manuteno do Liber judicum ou Codex Gothorum, que lhes permitia continuarem a

    reger-se pelas leis visigticas e lhes proporcionava alguma autonomia poltica e

    governativa: elegiam um governador, o comes ou conde, que era auxiliado por outros

    funcionrios como o alcadi (juiz), o zavalmedina (perfeito da cidade), o almotacm

    (fiel de pesos e medidas) e o almoxarife (encarregado da fazenda).

    Uma vez que o Coro incitava os muulmanos a respeitarem os povos do livro,

    ou seja, os membros de outras religies monotestas que seguem a Palavra escrita,

    muulmanos, cristos e judeus conviveram e dialogaram, tendo mesmo chegado a

    existir locais de encontro teolgico, onde expunham e escutavam pontos de vista e

    argumentos.

    Assim, os cristos morabes puderam venerar os seus santos (Santa Maria, S.

    Vicente, S. Brs, S. Cucufate, S. Sisenando, S. Manos, Santa Iria, S. Paio, S.

    Mamede), manter uma certa hierarquia eclesistica (com vrias dioceses a

    conservarem os seus bispos) e continuar a praticar a sua liturgia hispnica.

    Depois da romana, esta a mais documentada das liturgias latinas. Acompanhada

    pelo cantocho morabe, constituda pelo conjunto de frmulas e celebraes

    litrgicas desenvolvidas na Pennsula pelos cristos, desde o perodo visigtico at ao

    sculo XI, e apresenta particularidades bem definidas, quer na ordem do calendrio,

    quer no desenvolvimento das cerimnias, sobretudo no que respeita missa e ao seu

    cnone: conservam-se oraes antiqussimas, desaparecidas da liturgia romana, e, para a

    consagrao, adota-se a narrativa da instituio eucarstica segundo S. Paulo, tal como

    nas liturgias orientais.

    A liturgia morabe continua viva na S Velha de Coimbra, onde, em certas

    ocasies, se celebra missa no rito hispnico. As ltimas de que tenho memria

    ocorreram em 15 de novembro de 2008, para comemorar os 500 anos do retbulo gtico

    da catedral, e em 9 de julho de 2014, em evocao dos 950 anos conquista da cidade aos

    mouros e dos tempos de D. Sesnando como governador morabe do Condado de

    Coimbra.

    Em termos socioculturais, algumas comunidades morabes salientaram-se pela

    sua dimenso e pelo seu peso. Foi o caso das alentejanas (Beja, Elvas e Viana do

    Alentejo), das estremenhas (Santarm, bidos, Alenquer, Sintra e Leiria) e, sobretudo,

    das algarvias (Faro, Tavira, S. Brs de Alportel e Cabo de S. Vicente), das beirs

    (Coimbra, Lorvo, Vacaria, Anadia, Lafes, etc.) e das lisboetas.

    Como refere Cludio Torres (1993: 407-408), se at meados do sculo X a

    maioria da populao andaluza no era muulmana, podemos facilmente concluir da

    importncia e extenso do fenmeno morabe.

  • 5

    Estas comunidades falavam, na sua maioria, os idiomas romnicos tradicionais e,

    simultaneamente, o rabe a lngua do poder e da administrao. Esta situao de

    bilinguismo e diglossia coexistncia e utilizao de duas lnguas em situaes

    lingusticas e comunicativas funcionalmente diferenciadas possibilitou, por um lado,

    a permanncia de numerosos moarabismos e, por outro, a entrada e a fixao de

    arabismos.

    Alis, tendo em conta que os mecanismos de difuso civilizacional passam

    sobretudo pelos intercmbios pacficos do comrcio, do convvio e dos contactos

    humanos, natural que, muito antes da ocupao do sculo VIII, a lngua rabe tenha

    dado os seus primeiros passos peninsulares pela mo de mercadores judeus e de outros

    grupos de orientais h muito radicados no Ocidente.

    Nas zonas onde houve uma populao significativa, o rabe instalou-se, primeiro

    como lngua franca, acompanhando o percurso e a fixao destes mercadores nos portos

    martimos e fluviais e noutros centros urbanos; depois, conviveu com os idiomas

    romnicos para, durante os sculos X e XI, se afirmar, ao lado do latim, como lngua

    culta e literria, sobretudo entre a populao citadina culta.

    Mesmo aps a Reconquista, muitos milhares de rabes ficaram entre ns, uns

    como escravos, outros como forros ou livres. Afonso Henriques deu carta de fidelitatis

    et firmitudinis s comunidades de Lisboa, Almada, Palmela e Alccer do Sal, tendo essa

    poltica sido continuada nos reinados seguintes: a partir do reinado de D. Pedro I, os

    mouros continuaram a residir na periferia das cidades, nas cerca de vinte mourarias ou

    aljamas, de que h notcia nos sculos XIV e XV.

    Assim, esta longa convivncia tornou inevitvel a entrada de numerosos

    arabismos na lngua portuguesa, calculando-se que constituam cerca de 8% do nosso

    lxico.

    Alguns so hoje sentidos como arcasmos (alcova, adarga, alfobre, atade,

    alvssaras, ginete, etc.) ou usam-se apenas em expresses como rebate falso, tocar a

    rebate, torre albarr, estar de atalaia, cavalo ajaezado

    Outros permanecem em decalques semntico-sintticos amanhecer bem

    disposto, olhos de gua, cor aberta / fechada, se Deus quiser!, s Deus sabe!, esta casa

    sua! / esta casa est s suas ordens e em frmulas de bno: que Deus guarde,

    que Deus haja, que Deus salve, que Deus defenda

    A toponmia uma das reas onde os arabismos abundam: Afife, Albufeira,

    Alcalamouque, Alcntara, Alcaria, Alfandaque, Algar, Algarve, Aljube, Aljuria,

    Almaa, Almanor, Almedina, Almofala, Alvaizere, Arrifana, Arzila, Azurara, Caria,

    Belazaima, Loul, Machede, Meleas, Queluz

  • 6

    Entre os arabismos "vivos" na nossa lngua, h que estabelecer uma distino

    entre os que so de uso geral em todo o pas, integrando o lxico comum de todos os

    falantes acar, albarda, alcatifa, alcatro, aldeia, alecrim, alface, alfaiate,

    alguidar, alicerce, almofariz, andaime, armazm, arroz, azeite e azeitona, cenoura,

    enxoval, garrafa, jarra, laranja, limo, papagaio, refm, samarra, tremoo, xadrez,

    xarope e os que se encontram geogrfica ou socioculturalmente circunscritos.

    Assim, existem arabismos de uso corrente no Centro e Sul do pas que so praticamente

    desconhecidos dos falantes do Norte: algar, aoteia, adiafa, algeroz, alveitar, saguo

    Por outro lado, h aqueles que, apesar de no serem utilizados de forma generalizada no

    Norte, o so por parte de falantes mais escolarizados: acepipe, aude, alfaia, chafariz,

    lezria, etc.

    Termos rabes e latinos de significados prximos passaram a coexistir, o que

    obrigou a uma reorganizao lexical acompanhada de especializao semntica, como

    o caso dos seguintes pares de palavras (a primeira rabe e a segunda latina): aafate /

    cesto, achaque / doena, alcunha / apelido, almanaque / calendrio, alforge / saco,

    almofada / travesseira, argola / anel, arrecada / brinco, enxaqueca / dor de cabea,

    nora / engenho, tabefe / bofetada, tareia / pancada, sanefa / cortina(do).

    Mais tarde, com a expanso portuguesa no Norte de frica e no Oriente,

    importaram-se novos termos de origem rabe, que vieram enriquecer o nosso lxico:

    alfazema, mbar, caf, cetim, gergelim, ncar, por exemplo.

    Mas o cruzamento da tradio cultural romano-goda com a islamo-rabe no se

    restringe apenas lngua, estendendo-se tambm literatura: as muwaahas (em rabe

    ou em hebraico) eram composies lricas de temtica amorosa (idntica das cantigas

    de amigo), cujas jaryas versos finais que funcionavam como refro eram escritas

    nos dialetos morabes.

    Alm disso, foram muitos os poetas famosos que, ao longo dos sculos XI, XII e

    XIII, nasceram e / ou poetaram no territrio hoje portugus, de entre os quais se

    destacam Ibn Ammar, Al-Mutamid, Ibn as-Sid, Ibn al-Mihil, Ibn Muqana e Ibn

    Bassam.

    Estas interinfluncias tambm se verificam na arte.

    Os exemplares da arte morabe em Portugal no so muitos nem muito

    significativos, restringindo-se sobretudo a elementos decorativos e arquitetnicos

    fragmentrios.

  • 7

    o caso de uma porta morabe, no interior do

    antigo mosteiro de S. Jorge de Milreus (1084), em

    Coimbra, que localizei, fortuitamente, em 2005:

    Mas, entre ns, o exemplo mais notvel a igreja de S. Pedro de Lourosa da Serra

    (de 912), situada no concelho de Oliveira do Hospital:

    Tambm os mudjares rabes que permaneceram nos territrios reconquistados

    deixaram a sua marca na arte peninsular, influenciando cristos e at estrangeiros,

    vindos para a Pennsula seduzidos pelo estilo rabe.

    Fig. 2 - Igreja de So Pedro de Lourosa - Vista geral (fachada principal)

    Fig. 1 - Mosteiro de S. Jorge de Milreus, Coimbra - Porta interior

  • 8

    De carter hbrido, o mudejarismo hoje considerado um movimento artstico

    hispano-muulmano de raiz islmica, que recorre a muitas tcnicas e tradies

    muulmanas, nomeadamente: a utilizao do tijolo na construo das paredes; os arcos

    de ferradura, os ogivados e os de pleno cintro; janelas geminadas ou de ajimez;

    pavimentos de tijolo e / ou de azulejo; telhas vidradas e polcromas de inspirao

    oriental; ornamentao baseada em motivos florais estilizados e geomtricos; e tetos de

    madeira concebidos segundo a tcnica do alfarge.

    O lavor de alfarge, tambm denominado almorabe, dominou, alis, toda a arte

    decorativa de interiores em Portugal, desde a conquista rabe at ao primeiro tero do

    sculo XVIII. O alfarge recorre a processos tcnicos especiais, sendo uma arte

    complexa no seu traado geomtrico, na utilizao do azulejo e da cermica, no lavor

    variadssimo do estuque, na obra de ferro e ao, na ourivesaria e no esmalte.

    Tambm muitos alarifes mouros contriburam com o seu trabalho em edificaes

    civis e religiosas. o caso da S Velha de Coimbra, que, numa das suas paredes

    exteriores, ostenta uma inscrio (j pouco ntida) que testemunha a dor de um dos seus

    construtores:

    Deixo isto escrito como recordao permanente do meu sofrimento.

    A minha mo perecer um dia, mas a grandeza ficar.

    Aps a Reconquista, Afonso X, o Sbio (av de D. Dinis) fundou em Toledo, em

    finais do sculo XI, um centro de traduo de textos rabes, que se transformou num

    Fig. 3 - S Velha, Coimbra - inscrio rabe (fachada exterior norte)

    Fig. 4 - A mesma inscrio transcrita

  • 9

    polo cultural importante, onde afluam eruditos de toda a Europa em busca dos

    benefcios da profcua interao entre as culturas rabe, judaica e crist.

    Tambm Portugal beneficiou do domnio do rabe por cristos morabes, como

    o caso de Joo de Sevilha e de Lima, de So Frei Gil de Santarm e de Afonso Diniz de

    Lisboa, que nos deixaram muitas tradues rabo-latinas, sobretudo no domnio da

    filosofia e da cincia.

    Somos, assim, direta ou indiretamente, herdeiros e beneficirios de mltiplos

    ensinamentos legados pelos rabes, nas mais diversas reas: matemtica (lgebra,

    trigonometria e geometria), astronomia (tabelas planetrias, astrolbio), qumica

    (cido sulfrico, fabrico do sabo, tcnicas de destilao), medicina

    (desenvolvimento de instrumentos e tcnicas cirrgicas e de uma vasta farmacopeia),

    pesca, salicultura, construo naval, indstrias extrativas (cobre, prata, estanho),

    pecuria (apuramento de raas), agricultura (irrigao, pomares, introduo de novos

    produtos), etc.

    A nossa identidade lingustica tambm se constituiu no caldeamento dos traos

    regionais de falantes do Norte, do Centro e do Sul, processo no qual as populaes

    morabes desempenharam um papel fundamental:

    A par da constituio de uma lngua escrita, o avanar do portugus

    diversificado do Norte para a rea morabe meridional possibilita o

    encontro que sintetizar, no eixo Lisboa-Coimbra, caractersticas

    lingusticas do Norte romnico e do Sul romnico-arabizado e permite que

    naquela rea, por razes histrico-polticas, se sedimente um dialeto que

    ousaria chamar de cosmopolita: Lisboa a cidade mais povoada, o

    primeiro porto e a porta para o mundo.

    MATTOS e SILVA (1988: 9)

    Moarabismos, alguns traos lingusticos distintivos

    Como j foi referido, as comunidades morabes eram muito numerosas e, alm

    de dominarem o rabe, conservavam os seus idiomas romnicos tradicionais usados

    sobretudo em situaes informais ou domsticas , o que possibilitou a conservao de

    muitos nomes, sobretudo na rea da toponmia e, particularmente, da toponmia menor,

    que, menos exposta mudana e influncia da norma, o domnio lexical mais

    conservador e estvel, constituindo, portanto, uma das reas onde os moarabismos

    esto mais bem preservados.

    So vrios os traos lingusticos distintivos dos moarabismos, por referncia ao

    galego-portugus. Elencam-se aqui apenas os que esto presentes nos nomes de lugar

    selecionados e que se analisaro, seguidamente, de forma breve:

  • 10

    Enfraquecimento do timbre das vogais finais ou apcope (queda).

    Anaptixe: desenvolvimento de uma vogal entre consoantes.

    Africada palatal surda [] como resultado de CE / CI latino.

    Conservao de:

    o -N- e -L- latinos intervoclicos;

    o consoantes surdas intervoclicas;

    o grupos latinos CL- PL- e FL-.

    Condicionamentos dos nomes de origem latina pela fontica rabe:

    o imela passagem de [a] tnico a [e] ou a [i];

    o evoluo do grupo -ST- para [s] ou [z];

    o palatalizao de [g] > [j];

    o sonorizao de [p] > [b] em posio forte;

    o substituio da terminao -iz por -ique.

    Interferncias morfossintticas:

    Aglutinao a uma base hispnica do

    o nabe rabe (i)ben;

    o elemento rabe wadi > ode gua;

    o artigo rabe al.

    A propsito deste ltimo tipo de aglutinao, convm esclarecer que o l do artigo

    se assimilava ao fonema inicial da palavra seguinte resultando, assim, a- , antes

    das consoantes solares hispano-rabes (as interdentais, dentais e pr-palatais oclusivas e

    fricativas), mantendo-se antes das lunares (as restantes consoantes).

    Estas designaes baseiam-se nos nomes rabes do Sol (xams) e da Lua (qmar),

    que, em sintagma com o artigo, ocorrem como axxams (< al + xams) e al qmar,

    respetivamente.

    Topnimos morabes

    Apresentam-se e analisam-se sumariamente alguns topnimos com os traos

    lingusticos supramencionados (sempre que se justifique, localizados por distrito; para

    uma localizao mais especfica / pormenorizada, pode consultar-se, entre outros sites

    de pesquisa: http://www.mapadeportugal.net/pesquisa.asp).

    Abitureira(s), Abutra e Abutre (com diversas variantes e compostos) so nomes

    de lugar que se podem encontrar um pouco por tudo o pas.

  • 11

    Com aglutinao de a(l), continuam o latim VULTRE abutre (> *VULTRE >

    a-buitre > abutre), conhecendo-se as formas arcaicas avuitor e avuitre e, na toponmia,

    Avuitoreira (1220). Refira-se a existncia dos topnimos Bitureira e Vitoreira, sem a

    aglutinao do artigo rabe.

    Alandroal e Barranco da Alandroeira (vora) assentam no nome da planta

    loendro (< LORANDRU, de rhodendron), a que se aglutinou a(l).

    A vegetao um dos fatores importantes para a denominao dos lugares e, na

    verdade, na regio abundam os alandros (arbustos ornamentais conhecidos por

    cevadilha).

    Alccer (Setbal, vora), Alcaarias, Alcaarinho e Cacela (Faro) so topnimos

    romnicos arabizados.

    Os primeiros chegaram-nos atravs do rabe qasr fortaleza, palcio,

    representante do latim CASTRU forte, e evidenciam a aglutinao de al e a evoluo

    do grupo -ST- para [s].

    O ltimo, tambm veiculado pelo rabe qastall, deriva do latim CASTELLU

    posto militar fortificado, diminutivo de CASTRU, tendo o grupo medial -ST- sofrido

    o mesmo tratamento, de que resultou [s].

    Verifica-se este mesmo fenmeno evoluo -ST- > [s] nos nomes de lugar

    Monsarros, Moarava, Monarve, Monceravia / Monaravia e Monservia /

    Monarvia < mustarab / mustarib submetido aos rabes, arabizado j referidos a

    propsito da pegada toponmica deixada pelas populaes morabes no nosso pas.

    Calveiras da Granja (Beja), Calvaria(s) (Leiria), Calves, Quinta de Calvel

    (Lisboa) e Calvino(s) (Coimbra, vora, Santarm) so representantes do latim CALVU,

    calvo, que, na nossa toponmia, se reporta, geralmente, a lugares de pouca vegetao,

    tal como sucede com a forma popular covo lugar sem vegetao (registada como

    topnimo e como apelido). Os dois primeiros nomes continuam, mais especificamente,

    CAL(A)VARIA, crnio, nome tambm derivado de CALVU.

    Todos conservam -L- intervoclico; Calves apresenta enfraquecimento do timbre

    da vogal final; Calvel, a apcope da vogal final do sufixo -el (< latim -ELLU); e

    Calvino(s), a manuteno de -N- intervoclico no sufixo -ino(s).

    Alcolombal (Lisboa) e Columbeira (Leiria) so filiados no latim COLUMBARIU

    pombal (de COLUMBA pomba). Ambos conservam -L- intervoclico, apresentando

    o primeiro tambm aglutinao de al.

  • 12

    Refira-se que se trata de uma famlia etimolgica muito representada na Pennsula

    Ibrica, como o comprovam as diversas formas apelativos, antropnimos e

    topnimos recolhidas por Simonet, no seu Glosario: colm, colmba, Colm, Aben

    Colom, Abin-Colm, Donna Colomba ou Columba, Colombira e Colomra.

    Feliteira (Lisboa), continuador de *FILICTU feto, tambm mantm o -L-

    intervoclico latino, ao contrrio do que se verifica em Feto(s), Fetal / Fetais, Feitada,

    Feteira, Feiteira, Feitos, Feitoso / Feitosa, etc., nomes de lugar presentes um pouco por

    todo o pas e que testemunham a abundncia de fetos no nosso territrio.

    O -L- intervoclico latino conserva-se ainda em Grndola, do latim

    GLANDULA, diminutivo de GLANDE bolota e em Mrtola a Myrtilis latina, que

    constitui um importante documento da fontica do romano morabe pr-portugus e

    que assenta em MYRTUS murta > *MYRTULA.

    Como j foi referido, a vegetao (ou a falta dela) reflete-se frequentemente na

    toponmia e, sendo a murta uma planta abundante em Portugal, natural que dela

    derivem numerosos topnimos: Murtal, Murtede, Murteira(s), Murtosa Diga-se

    ainda, a ttulo de curiosidade, que antes de a pimenta ser abundante entre ns, as bagas

    deste arbusto eram usadas para condimentar os enchidos; da o portugus mortadela e

    morcela.

    Outros dois nome de lugar relacionados com a flora so Alenquer (Lisboa) e

    Alenqueres (vora), topnimos hbridos em que o artigo rabe anteposto ao nome

    latino IUNCARIU juncal, locativo que, na poca proto-histrica, se revestiria da

    forma iunquerio < *al-iunquerio.

    Alm da aglutinao de al, verifica-se a imela (neste caso, passagem de [a] tnico

    a [e]) e a apcope ou o enfraquecimento da vogal final. De facto, sendo a terminao -io

    estranha ao rabe, cai, geralmente tambm, nos vocbulos adotados pelas populaes

    morabes.

    Fonte dos Alfanados (Viana do Castelo), Fanadia (Leiria), Vale Fanado (Beja) e

    Fanates (Coimbra) so alguns dos muitos topnimos relacionados com FANU templo

    e com o verbo fanar, do latim FANARE consagrar, que, por influncia hebraica,

    evoluiu semanticamente para circuncidar e da para castrar, amputar , sentido em

    que o verbo foi j usado por Ferno Lopes: mamdou tomar huus seis ou sete

    Portugueeses () e mandouhos todos deepar das maos e fanar dos narizes

    (Crnica de D. Joo I, parte I, p. 382).

    Todos mantm -N- intervoclico, apresentando o primeiro aglutinao de al e o

    ltimo, conservao da surda intervoclica [t] e enfraquecimento da vogal final.

  • 13

    Alguns dicionrios abonam fanado e afanado cortado, mutilado; murcho, seco;

    extinto, morto e fanar amputar, mutilar; cortar nas extremidades, aparar; murchar;

    Corominas aduz o topnimo Cerro Fano numas coplas antigas, relacionando-o com o

    galego e com o portugus antigo fanar cortar as orelhas ou os chifres a um animal; e,

    no asturiano antigo, fana significava desprendimento de terras.

    , portanto, possvel que estes topnimos se relacionem com as caractersticas do

    terreno ou com algum epteto atribudo ao proprietrio da terra, em virtude de alguma

    mutilao.

    Ser o caso de Beco do Fanado, pequena artria de Coimbra, cujo nome deve

    ligar-se alcunha (tornada apelido?) de algum dos seus antigos moradores.

    Disseminados um pouco por toda a toponmia portuguesa, Arneiro(s), Arnado,

    Arnal, Arnela(s) e Arnosa (alm de inmeros compostos) so nomes de lugar

    continuadores e derivados do latim ARENA areia, que tambm conservam -N-

    intervoclico, ao contrrio das formas galego-portuguesas areia, areal, areeiro,

    areosa, tambm muito frequentes entre ns.

    Espadana(s), Espadanal, Espadanedo, Espadaneira(o), Espadaneirinha e

    Espadanido so nomes que, simples ou compostos, se encontram em todo o pas.

    Conservam o -N- intervoclico dos sufixos e derivam do latim SPATHA

    esptula; espada, reportando-se, provavelmente, planta cujas folhas estreitas e

    compridas se assemelham a uma espada.

    Fontanelas, Fontana(s), Fontanal e Fontanais, bem como diversos compostos,

    so nomes que continuam o latim FONTANA fonte e que esto presentes na

    toponmia dos distritos de Lisboa, Setbal, vora, Beja e Faro.

    No seu Glosario, Simonet abona fontna e os diminutivos fontanlla, fontanlla e

    fontinlla; e Corominas refere os topnimos Fontana (inicialmente adjetivo fontana

    aqua gua da fonte) e Fontanal lugar de fontes, tambm considerados moarabismos

    por Sanchis Guarner, uma vez que conservam -N- intervoclico.

    Moreno(s) e Morena(s), em formas simples ou compostas, so topnimos

    disseminados pelo territrio nacional, ao Sul da Guarda.

    Segundo Corominas, derivam de mouro, do latim MAURU habitante da

    Mauritnia, provavelmente atravs de *MAURENU. De facto, Simonet abona maurno

    e morno escuro, bem como o apelido Moreno, onde se conserva o -N- intervoclico

    no sufixo -ENUS (este, segundo alguns autores, de origem pr-romana, eventualmente

    etrusca).

  • 14

    A famlia etimolgica de r, do latim RANA, est presente na toponmia, com -N-

    intervoclico conservado, em Rana(s) e seus compostos (Lisboa, Portalegre, Setbal) e

    em Quinta das Renelas (Viseu) variante do diminutivo Ranelas , onde se verifica a

    assimilao da primeira vogal pela tnica.

    Alm da manuteno de -N- intervoclico, ocorre o enfraquecimento do timbre da

    vogal final em Sine(s) (Beja, Portalegre, Setbal) e em Messines (Faro) e respetivos

    compostos formas semanticamente aparentadas com enseada, do latim SINU curva,

    concavidade, baa.

    Alpendrada (Setbal) e Alpendurada(s) (Porto, Aveiro, Coimbra, Setbal, Beja)

    so nomes de lugar derivados do latim PENDERE pender e devem ter comeado

    como adjetivos referentes morfologia inclinada dos terrenos.

    A aglutinao de al evidente em ambos os topnimos e Alpendurada(s)

    apresenta anaptixe de [u], talvez reforada pela analogia com pendurado(a).

    Carapinha(s), Carapelhos, Carapinheira, Carapinhal e Carapeto(s), simples ou

    compostos, ocorrem com frequncia no Centro e no Sul do pas e, segundo J. J. Nunes,

    filiam-se em *CARPA / CARPINUS espcie botnica arbustiva / arbrea.

    Podemos verificar a anaptixe de [a], amplamente documentada em fontes

    morabes, onde bastante frequente o aparecimento de uma vogal entre consoantes.

    A anaptixe de [a] est igualmente presente nos continuadores de CARVA boua;

    mata de carvalhos jovens: Caravalhosa (Castelo Branco), Caravela e seus compostos

    (Bragana, vora, Faro, Guarda, Vila Real, Viseu), Quinta da Caravelinha (vora) e

    Alcaravela (Santarm). Neste ltimo topnimo, verifica-se tambm a aglutinao de al.

    Alportel, So Brs de Alportel (Faro) e Portel (Beja, vora) so diminutivos que

    radicam no baixo latim PORTELLU, diminutivo de PORTU abertura, passagem;

    entrada de um porto, podendo assumir, nestes contextos, os sentidos de alfandega e /

    ou de passagem estreita entre montanhas.

    Apresentam apcope da vogal final do sufixo -el (do latim -ELLU) e Alportel, a

    aglutinao de al.

    A apcope da vogal final do sufixo -el est tambm patente em Ponta do Espichel

    (Leiria) e em Cabo Espichel (Setbal), nome derivado de *espiche / espicho

    originrio do cruzamento do latim SPECULA atalaia e SPECULU espelho,

    semelhana dos topnimos espanhis Espeja, Espejo, Espiel e Espiells.

    Pinhel (Guarda) um continuador do diminutivo latino PINELLU (< PINU

    pinheiro), igualemente com apcope da vogal final do sufixo -el (< latim -ELLU).

  • 15

    Da mesma famlia etimolgica de PINU pinheiro, h a registar Pino Gordo

    (Portalegre), Cabeo do Pino (Portalegre, Lisboa), Vale do Pino (Bragana) e Pineiral

    (Vila Real), nomes em que se conserva o -N- intervoclico simples latino.

    O latim ALTARIU altar; elevao onde se fazem sacrifcios continuado, na

    nossa toponmia, pelo galego-portugus outeiro, que contrasta com a forma morabe

    alter, presente em Alter do Cho e em Alter Pedroso (Portalegre), onde se verifica a

    imela, passagem de [a] tnico a [e], bem como a apcope da vogal final.

    Alvalade (Coimbra, Lisboa, Setbal), Fonte de Alvalade (Beja) e Alvalades

    (Faro) so topnimos hbridos, documentados a partir de 933: Albalat, Alualad,

    Alualati.

    Na sua base est a forma latina PALATIU palcio, com influncia do rabe

    al-balat zona plana, cho. Alm da aglutinao do artigo rabe al, ocorre a

    substituio de [p] por [b] (posteriormente fricatizado em [v]) e o enfraquecimento do

    timbre da vogal final em [e].

    Na toponmia, o apelativo alvalade afasta-se do sentido clssico de palcio para

    assumir o de residncia senhorial, casa de campo de fidalgo, explicando-se, assim, o

    plural Alvalades e a frequncia com que ocorre onde no seria esperado que se

    conservasse o significado etimolgico.

    Campo de Alvalade Grande e Campo de Alvalade Pequeno eram os nomes

    outrora dados aos atuais bairros do Campo Grande e do Campo Pequeno, nome

    conservado em Praa de Alvalade.

    Balisa / Baliza (Castelo Branco, Beja, Portalegre, Setbal) e Beliche (Faro),

    simples ou integrados em diversos compostos, so topnimos que Corominas admite

    serem continuadores morabes do latim PALU pau sufixado com -ICIU, onde, alm

    da conservao de -L- intervoclico, se verifica a sonorizao da bilabial oclusiva surda

    inicial [p] em [b].

    Em Beliche, observa-se tambm a africada palatal surda [] como resultado de CI

    latino.

    Em Chiqueiro e em vrios compostos (Aveiro, Bragana, Castelo Branco,

    Coimbra, Guarda), est igualmente presente a africada palatal surda [] como resultado

    de CI latino.

    De facto, Galms de Fuentes afirma que chiqueiro se relaciona com a forma

    morabe sirkir choa; cabana; tugrio, continuadora do latim CIRCARIU, derivado

    de CIRCA cerca, cercado.

  • 16

    Tambm Simonet abona o morabe xircir, provavelmente de um adjetivo do

    baixo latim CERCARIU ou CIRCARIU, formado de CERCA ou CIRCA ou do latim

    CIRCU cerco.

    Corcha(s) (Guarda, Beja, Faro), Corcho(s) (Beja, Castelo Branco, vora, Faro,

    Leiria, Setbal) e Vrzea do Corchinho (Beja), do latim CORTICE cortia, tambm

    apresentam a mesma africada palatal surda [], nestes casos resultantes de CE latino.

    Refira-se que, no lxico comum, corcho / corcha se usam em vrias regies do

    nosso pas com diversas especializaes semnticas, dependendo dos objetos que

    designam e dos fins a que se destinam, por exemplo: cortia, caixote, cortio,

    tbua para transportar argamassa, flutuador de cortia, bucha de madeira, escudela

    de cortia

    Beja e Mombeja (Beja) so nomes de lugar que assentam no latim PACE.

    De facto, a Pax Julia dos romanos era vulgarmente conhecida por Pace, com

    a pronunciar-se [k], o que facilitou a sua passagem a [paka], pois, de acordo com a

    morfologia rabe, os topnimos eram, geralmente, femininos.

    Por imela, o [a] da slaba tnica passou a [e], tendo-se verificado tambm a

    substituio de [p] por [b] e de [k] por [g] que, posteriormente, se palatalizou em [j],

    resultando Beja.

    O topnimo Mombeja composto pelos elementos mon (= monte) e Beja.

    Tejo, do latim TAGU, ter evoludo, nos dialetos morabes, para *Tajo e Tejo,

    sofrendo o mesmo tipo de alterao fontica que ocorreu em Beja, isto , a imela [a] >

    [e] e a palatalizao [g] > [j].

    Estes mesmos fenmenos fonticos ocorreram em Brejo(s), que se encontram em

    todo o pas, em topnimos simples ou compostos, e em Brejes (Coimbra), bem como

    nos derivados Brejoal e Brejoeira (Viana do Castelo, Leiria, Santarm, Lisboa e Beja).

    Verifica-se ainda o enfraquecimento do timbre da vogal final, em Brejes.

    Trata-se de nomes de lugar que assentam no latim *BRAGU terreno pantanoso,

    alagadio, de origem celta.

    Como apelativo, brejo documenta-se desde 1176 e a primeira abonao do

    topnimo Bregium regista-se em 1257.

    Benavente (Guarda, Santarm, Portalegre) um nome que continua Aventi, o

    genitivo do nome prprio romnico Aventus, ao qual se aglutinou o nabe rabe ben.

  • 17

    O mesmo aconteceu em Bordonhos (Viseu), de que se conhecem as formas

    antigas (sculo XI) villa de Iben-Ordonizi / Iban-Ordonis, onde bem visvel a

    aglutinao deste nabe ao antropnimo latino Ordonius.

    Viegas e diversos compostos (Beja, Coimbra, vora, Faro, Leiria, Portalegre, Vila

    Real, Viseu, Santarm), Pai Viegas (Coimbra) e Benega (Setbal) so representantes

    toponmicos do nome germnico romanizado Egas (da raiz ekk / ekka ponta, corte,

    espada), a que tambm se aglutinou o nabe rabe ben.

    As formais mais antigas, Benegas, Beniegas, Iben Egas, Iben Ecas, Ibeniegas,

    Egas iben, Veniegas, Venegas e Uenegas, remontam aos sculos X e XI, havendo a

    acrescentar, por curiosidade, Uegas (1278), com o til a assinalar a nasalidade deixada

    pelo desaparecimento do [n].

    Em Pai Viegas, h a salientar a apcope de -o em Pai (< Paio < Pelaio <

    PELAGIU), que contrasta com a sua manuteno em Paio, nome muito abundante da

    nossa toponmia.

    Em Curvatos (Beja), do latim CURVATU (particpio passado de CURVARE

    dobrar, curvar), verifica-se a manuteno da surda intervoclica [t].

    Tambm a surda intervoclica [f] se conserva em Defesa e nos seus compostos,

    bem como em Defesinha (Beja, vora, Portalegre, Setbal, Faro).

    Trata-se de topnimos que continuam o latim tardio DEFENSA (de

    DEFENDERE proibir, vedar). De facto, a ideia de proibio est presente na

    designao dos terrenos cercados de paliadas, sebes ou muros e, a par de Defesa, nome

    prevalente no Sul, regista-se Devesa na toponmia setentrional.

    Os nomes romnicos acabados em -ricus originaram a terminao -rigo (do

    acusativo) e, mais frequentemente, -riz (do genitivo). Mas, especialmente ao sul do

    Tejo, verificou-se, em vrios casos, a substituio de -iz por -ique, no sendo alheia a

    este fenmeno a frequncia da terminao -ique em palavras rabes (alambique,

    arrebique, tabique, etc.) e a representao, em rabe (igualmente por -ique), das

    terminaes romnicas ou romanizadas -icu / -ico e -ecu / -eco.

    o caso de Montachique e Cabeo de Montachique (Lisboa) Monte Aiseque,

    numa inquirio de D. Afonso III , continuadores do antropnimo germnico Agicus,

    que apresentam a terminao -ique por -icu.

    Manniko, Mannic e Mennic so formas antigas de Manique, que, simples ou em

    nomes compostos faz parte da toponmia do distrito de Lisboa.

  • 18

    Elas apontam para uma origem germnica e nelas j visvel a evoluo fontica

    da terminao [iku] em [ik], a que, na grafia, corresponde -ique.

    Em Mourique (vora), representante do genitivo patronmico Mauricii (do latim

    MAURUS), verifica-se tambm a substituio de -iz por -ique, ao contrrio do que

    acontece na toponmia do Norte, onde h vrias ocorrncias de Mouriz(es).

    Igualmente com alterao de -iz em -ique, Ourique (Beja), Vila Ch de Ourique

    (Santarm), Campo de Ourique (Coimbra, Leiria, Lisboa) e Cho de Ourique

    (Coimbra) so nomes de lugar que radicam no genitivo do antropnimo godo Auricus

    (de que se conhecem as formas antigas Oric, Ouric, Ourich, Aurich e Aulich) e que

    contrastam com Oriz (por vezes, tambm grafado Ouriz) topnimo de Braga que

    mantm o genitivo em -iz.

    Em Monchique (Braga, Porto, Setbal, vora, Faro) est tambm presente a

    tpica terminao morabe -ique.

    A localidade algarvia referida, em textos rabes, como Mordjq ou Munt Squir

    a montanha sagrada, e tambm conhecida pelos antigos como Monte Cico.

    A aglutinao do elemento rabe (wadi- >) ode- curso de gua est patente em

    Odeceixe (Faro), continuador do latim SAXU pequena pedra / rocha, o que aponta

    para Odesseixe como grafia etimolgica deste topnimo.

    Tambm em Odeleite (Faro), do latim LACTE leite, se verifica o mesmo tipo de

    aglutinao.

    Odeleite, tal como Guadalete (potamotopnimo espanhol da regio de Cdis),

    pode configurar uma situao de importao semntica seguida da traduo do

    emprstimo, uma vez que, na toponmia de Fez, se regista uad al-laban rio de leite.

    Outros nomes de rios apresentam aglutinao do elemento rabe (wadi- >) ode- /

    guad- curso de gua. o caso de Odemira (Beja), radicado em Mira, nome de origem

    germnica, e de Odiana / Guadiana, rio a que os antigos chamavam Ana(s).

    A confirmar-se a origem pr-romana (ibrica?) do apelativo ana rio, onde

    assentar Guadiana, este hidrotopnimo significa, letra, rio rio.

    Plaina(s), Plaine, Plaino, Plainada, Praina(s), Praino(s) (Aveiro, Braga,

    Bragana, Porto, Vila Real, Viseu) so continuadores do latim PLANU / PLANA.

    Nos quatro primeiros verifica-se a manuteno do grupo latino PL-; no segundo, o

    enfraquecimento do timbre da vogal final; e, nos ltimos, a evoluo L > [r], como

    tambm tpico nos moarabismos.

  • 19

    Concluso

    Esta breve resenha permite compreender a importncia da toponmia para o estudo

    dos dialetos morabes e das suas caractersticas lingusticas.

    De facto, mais do que os escassos vocbulos presentes no lxico comum, que se

    configuram como moarabismos (almoo, amora, baliza, capacho, esfanicar, fanico,

    granizo, manada, melancia, melo, mocho, moo, pepino, sangacho), os topnimos

    so testemunhos de uma camada lingustica quase totalmente submersa pelos idiomas

    dos Reconquistadores do Norte, mas no completamente inerte.

    Sem dvida que o galego-portugus, ao deslocar-se para Sul, imps os seus traos

    lingusticos, mas foi forado a acompanhar a meridionalizao da vida poltica e

    cultural portuguesa; e foi no Centro-Sul onde se falavam dialetos morabes que

    a lngua portuguesa teve o seu eixo de gravitao, adquiriu a sua fisionomia e se

    constituiu como lngua nacional.

    O estudo da toponmia revela que o fenmeno morabe foi mais extenso e mais

    profundo do que se poderia imaginar, abrangendo, num grau bastante considervel, at

    mesmo as regies mais setentrionais do pas, que se julgavam "ao abrigo" de tal

    influncia.

    (Comunicao apresentada no Instituto de Estudos Acadmicos para Sniores

    no ciclo Testemunhos da presena Islmica em Portugal,

    a 10 de Fevereiro de 2015)

  • 20

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  • 21

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