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1

UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE UNIDADE ACADMICA DE LETRAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGUAGEM E ENSINO (MESTRADO)

O LETRAMENTO ESCOLAR: DESCRIO DE UMA PROPOSTA DE ENSINO DO SEMINRIO

Marcelo Clemente Silva

Campina Grande, 2007

2

Marcelo Clemente Silva

O LETRAMENTO ESCOLAR: DESCRIO DE UMA PROPOSTA DE ENSINO DO SEMINRIO

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Linguagem e Ensino (Mestrado), na Universidade Federal de Campina Grande, como requisito para a obteno do grau de Mestre, na rea de concentrao Ensino-aprendizagem de lngua e literatura.

Orientadora: Prof Dra. Williany Miranda da Silva

Campina Grande - PB 2007

3

FOLHA DE APROVAO

________________________________________ Prof Dr. Williany Miranda da Silva UFCG Orientadora

________________________________________ Prof Dr. Maria Auxiliadora Bezerra UFCG Examinadora

________________________________________ Prof Dr. Evangelina Maria Brito de Faria UFPB Examinadora

4

A Deus e a todos aqueles que sempre me incentivaram a continuar: amigos, familiares e professores.

5

AGRADECIMENTOS

Meus agradecimentos especiais:

- a Deus por me conceder a graa da inspirao e da disposio para realizar este trabalho; - minha esposa Eliani pelo incentivo e pela compreenso e pacincia perante minhas infinitas horas em frente ao computador; - prof Dra. Williany Miranda da Silva pela orientao preciosa, pelas importantes reflexes e por me fazer acreditar neste trabalho; - ao professor de Histria J. D. que to gentilmente permitiu que a interveno didtica descrita neste trabalho fosse realizada em suas aulas; - aos professores Dra. Maria Auxiliadora Bezerra e Dr. Edmilson Luiz Rafael pelas valiosas contribuies para este trabalho no exame de qualificao; - prof Dra. Maria Augusta Reinaldo pelas indicaes e disponibilizao de referncias para leitura. - a todos os professores do Programa de Ps-graduao (mestrado) em Linguagem e Ensino da UFCG por tudo o que contriburam na minha formao.

6 RESUMO

O objetivo do presente trabalho contribuir para a construo de uma metodologia de ensino do seminrio na escola atravs da aplicao de uma interveno didtica sobre a ao dos alunos e posterior avaliao dos resultados obtidos. Trata-se de uma pesquisaao associada abordagem qualitativa. Os dados esto constitudos de transcries de 04 seminrios realizados por uma turma do primeiro ano do Ensino Mdio e de alguns textos escritos usados pelos alunos expositores durante o evento. A anlise revela a pouca familiaridade dos alunos com algumas prticas de letramento envolvidas no planejamento e realizao do seminrio e a necessidade de ensino continuado para a aquisio das mesmas. Mostra tambm a origem dos saberes que os alunos mobilizam para a produo dos vrios gneros textuais que constituem o seminrio e os padres interacionais instaurados durante o evento. O estudo sugere a possibilidade de um trabalho interdisciplinar para o ensino do seminrio. Ao mesmo tempo, sugere que o seminrio constitui uma oportunidade favorvel para o ensino de algumas prticas letradas importantes tanto para a vida acadmica dos alunos como para o exerccio da cidadania numa sociedade cada vez mais complexa. Palavras-chave: seminrio; prticas de letramento; ensino.

7 ABSTRACT

This study aims at interfering on the literacy practices involved in planning and carrying out school seminars. By analyzing the didactic intervention results we intended to confirm or not some expectations in order to offer some insights for the development of a school seminar teaching methodology. This study is based on a qualitative approach known as action research. The transcription of four school seminars and some written texts used by students during these events constitute the data for analysis. The seminars were held by students from High School in History classes. Findings show students low familiarity in some literacy practices involved in the school seminar production and the need for more teaching on them. The analysis also shows where the information and knowledge used by students in seminars come from and the interactional standards established during the event. This study suggests the possibility for a interdisciplinary teaching of school seminars. At the same time, it suggests that the seminar offers a good opportunity for teaching some important dominant literacy practices required for students academic life and for their active participation in a more and more complex society.

Key-words: school seminar; literacy practices; teaching.

8

SUMRIOINTRODUO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10 CAPTULO 1 LETRAMENTO(S), ORALIDADE E ESCRITA . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14 1.1 Algumas abordagens do letramento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14 1.2 Prticas e eventos de letramento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 1.3 Letramentos vernaculares e letramentos dominantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 1.4 Letramento escolar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

1.5 Gnero textuais e as relaes entre oralidade e escrita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24 CAPTULO 2 SABERES, INTERAO E ENSINO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28 2.1 A constituio dos saberes de sala de aula . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28 2.2. Estudos da interao: a perspectiva microetnogrfica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30 2.2.1 A interao face a face e as noes de falantes e ouvintes . . . . . . . . . . . . . . . . 31 2.2.2 O contexto situacional: a estrutura de participao e os processos de figurao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

CAPTULO 3 CONSIDERAES SOBRE O SEMINRIO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37 3.1 O seminrio no campo dos estudos da educao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37 3.2 O seminrio no campo dos estudos (etno)lingsticos e da Lngistica Aplicada. . . 41

CAPTULO 4 - ASPECTOS METODOLGICOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48 4.1 Natureza do estudo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48 4.2 Contexto situacional para a coleta de dados: a escola-alvo . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 4.3 Sujeitos da pesquisa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50 4.4 Procedimentos de coleta e citao de dados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4.5 A proposta de ensino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51 52

4.5.1 Planejamento e execuo da ao didtica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52 4.5.2 A realizao dos seminrios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60

4.6 As categorias de anlise . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62 CAPTULO 5 DISCUSSO DOS DADOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5.1 Gneros textuais escritos presentes nos seminrios: usos e funes . . . . . . . . .

63 63

9 5.2 As prticas de letramento nos textos produzidos pelos alunos para o seminrio . . 78

5.3 A interao aluno x professor e aluno x aluno: o contexto situacional do 83 seminrio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87 5.4 A utilizao dos conhecimentos/saberes mobilizados pelos alunos . . . . . . . . . . . 5.4.1 Prticas de letramento acadmico e sua (no) apropriao por alunos 94 do Ensino Mdio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96 5.5 Discusso das temticas: a expresso de opinies pelos alunos . . . . . . . . . . . . . 107 110 115 115 122 130 143 151

CONSIDERAES FINAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . REFERNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ANEXOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Anexo 1: transcrio dos dados orais do seminrio 1 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Anexo 2: transcrio dos dados orais do seminrio 2 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Anexo 3: transcrio dos dados orais do seminrio 3 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Anexo 4: transcrio dos dados orais do seminrio 4 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Anexo 5: Roteiro utilizado pelo professor em aula preparatria para os seminrios . . . .

10 INTRODUO

1. As questes centrais

Nos ltimos anos, a partir da influncia do movimento da Escola Nova, os seminrios passaram a fazer parte do cotidiano escolar como uma das alternativas para as to criticadas aulas expositivas, tidas pelos defensores do escolanovismo como exemplo tpico e dominante da prtica pedaggica tradicional, em que o aluno tinha apenas um papel passivo, de mero expectador, enquanto o professor era a figura central no processo de ensino e aprendizagem (VEIGA, 2002). O movimento da Escola Nova propunha uma mudana na relao entre professor, aluno e objeto de ensino. Neste rearranjo de papis, o aluno figurava como protagonista, em torno do qual todo o processo de ensino deveria se organizar. Alm disso, era preciso fazer do aluno um agente ativo na aquisio de sua aprendizagem e imprimir s prticas de ensino um carter mais dinmico em que a interao entre os sujeitos fosse a base para as atividades escolares. Este contexto favoreceu o surgimento das chamadas tcnicas de ensino socializado para fazer face aos novos desafios que se colocavam diante da tarefa de educar e servir de alternativa s prticas de ensino tradicionais. Segundo Veiga (2002), dentre as vrias tcnicas de ensino existentes, o seminrio constitui uma das mais freqentemente utilizadas em sala de aula, pois oferece as condies para o desenvolvimento da investigao, da crtica e da independncia intelectual dos alunos. Para Bezerra (2003: 2), o seminrio mais que uma simples tcnica, , sobretudo um texto, um gnero discursivo no sentido bakhtiniano do termo, pois rene caractersticas temticas, composicionais e lingsticas particulares. Esta mesma leitura do seminrio feita por Schneuwly, Dolz, de Pietro e Zahnd (2004), porm, com um enfoque mais didtico e um uso do termo como sinnimo de exposio oral. Com base em Bezerra (2003) e influenciado pela teoria sobre gneros do discurso de Bakhtin e pela noo de continuidade na relao entre fala e escrita defendida por Marcuschi (2001a), Silva (2005) desenvolve um estudo em que investiga a prtica do seminrio em uma turma de 8 srie do Ensino Fundamental. Neste estudo, o seminrio tido como um gnero textual cuja materializao sonora, mas sua concepo discursiva, isto , seu processo de criao, d-se com base em textos escritos. No estudo de Vieira (2005), o seminrio concebido como um evento comunicativo que rene vrios tipos de letramentos: escolar, informacional, tecnolgico e visual. Para as finalidades deste estudo, conceberemos o seminrio como um evento de letramento escolar cuja constituio envolve a leitura e produo de vrios gneros

11 textuais, tanto orais (exposio oral, debate, discusso), como escritos (textos didticos, roteiros, esquemas, etc), alm de envolver o uso de estratgias de escrita, tais como a citao de referncias e a atividade de leitura e sistematizao de informaes atravs do fichamento. Nosso objeto de estudo so as prticas de letramento e os padres interacionais presentes em seminrios realizados por alunos de uma turma do primeiro ano do Ensino Mdio. Tais aspectos sero observados tanto no nvel de planejamento conduo didtica, pelo professor, das vrias etapas de preparao do seminrio , quanto no nvel de materializao do seminrio papis interacionais dos participantes do evento, saberes utilizados, prticas de letramento realizadas e expresso de opinies de alunos em discusses ps-exposio oral. Nosso interesse pelo objeto de estudo deve-se motivao de investigar situaes de ensino-aprendizagem que possam auxiliar o professor no planejamento de uma metodologia de ensino do seminrio. Assim, o presente estudo apresenta-se como uma proposta de ao, buscando oferecer subsdios para uma transformao qualitativa nas produes de seminrios pelos alunos, enquanto aprendizes, e na ao didtica do professor, enquanto mediador dessas produes. Seguindo essa perspectiva, o presente estudo busca responder s seguintes questes: Que tipo de relaes so observadas entre os saberes mobilizados pelos alunos a partir de variadas fontes a que tiveram acesso e sua fala nas exposies orais e nas discusses durante os seminrios? Quais os papis interacionais assumidos pelos participantes do evento? Que aspectos podem ser considerados para o planejamento de uma metodologia de ensino do seminrio? O objetivo do presente trabalho contribuir para a construo de uma metodologia de ensino do seminrio na escola atravs da aplicao de uma interveno didtica sobre a ao dos alunos e posterior avaliao dos resultados obtidos. De modo mais especfico, procuramos interferir nas prticas de letramento envolvidas no planejamento e realizao de seminrios. Alm disso, buscamos descrever os saberes mobilizados pelos alunos durante a fase de planejamento do seminrio e verificar quais destes saberes so efetivamente utilizados durante o evento. Na ltima dcada, principalmente a partir da publicao dos PCN de Lngua Portuguesa em 1998, tm-se intensificado as discusses sobre possveis mudanas no ensino de lngua na escola. Os PCN propem que o ensino da lngua materna tenha como unidade bsica o texto e no a frase. Fundamentados na noo bakhtiniana de gneros discursivos e nos estudos da didtica da lngua dos autores da Escola de Gene-

12 bra1, os PCN defendem a produo lingstica contextualizada; alm de priorizarem o uso e no a forma da lngua. Os PCN tambm inovam quando propem que o ensino de Lngua Portuguesa no se restrinja apenas escrita, mas que se ocupe, ao mesmo tempo, do ensino do oral. Entretanto, no qualquer oral que deve ser ensinado, mas o pblico e formal, exigido geralmente em contextos sociais institucionalizados, uma vez que as crianas j chegam escola dominando os usos mais espontneos da lngua. Na tentativa de atenderem s orientaes dos PCN, os LD de Lngua Portuguesa procuram redimensionar suas propostas de ensino, inclusive com atividades voltadas para o desenvolvimento da lngua falada. Porm, conforme observa Bezerra (2003: 10) ainda marcante a concepo de que o ensino da lngua falada ocorre quando se d ao aluno a oportunidade de conversar com os colegas sobre o tema que se est estudando. Esta conversa em sala de aula , por vezes, uma extenso da conversa face a face espontnea que ocorre entre familiares, amigos e colegas, caracterizada por um uso informal e localmente planejado da lngua. O seminrio uma das alternativas para desenvolver um trabalho com o oral pblico e formal. No entanto, embora seja freqentemente usado na escola, no constitui um objeto explcito de ensino e as aulas expositivas dos professores acabam sendo a nica referncia para os alunos. Conforme evidenciam Barton e Hamilton (2000: 14), as prticas de letramento mudam e novas prticas so freqentemente adquiridas atravs de processos de aprendizagem e construo de sentido informais como tambm por meio de educao formal e treino (traduo e grifo nossos). Seguindo esta observao, acreditamos que as prticas de letramento envolvidas na realizao de seminrios requerem ensino formal e treino, pois no so inatas ou algo que se aprende de forma inconsciente e espontnea. Assim como Bezerra (2003), pensamos que a elaborao de seminrios no seja tarefa fcil para os alunos do Ensino Bsico, pois se trata de uma prtica de letramento mais complexa, pois envolve no s informaes, mas tambm tomadas de posio e questionamentos (p. 04). Alm disso, envolve o domnio de estratgias de sistematizaes de informaes e de mobilizao de saberes oriundos de variadas fontes, principalmente escritas. Tais aspectos justificam a necessidade de estudos que auxiliem o professor no desenvolvimento de metodologias de ensino do seminrio, para que ele possa oferecer a seus alunos condies necessrias para a realizao deste complexo evento de letramento.1

A Escola de Genebra refere-se ao grupo de pesquisadores do Departamento de Didtica da Lngua da Faculdade de Psicologia e Cincias da Educao (FAPSE) da Universidade de Genebra (UNIGE) cujos estudos buscam traar um conjunto de intervenes didticas dos gneros orais e escrito, baseados, sobretudo, no interacionismo scio-discursivo. Dentre seus representantes esto Jean-Paul Bronckart, Bernard Schneuwly, Joaquim Dolz, A. Pasquier, Sylvie Haller entre outros.

13 2. A organizao da dissertao

Este estudo est organizado em cinco captulos. O captulo I, Letramento(s), oralidade e escrita, traz os principais aspectos da teoria que concebe o letramento como uma prtica essencialmente social, apresenta a noo de gnero textual com base na teoria bakhtiniana e encerra com algumas consideraes sobre a relao entre oralidade e escrita. Este captulo fornece as bases tericas para a descrio do seminrio como um evento de letramento que envolve a utilizao de variados gneros textuais. O captulo II, Saberes, interao e ensino, traz uma breve reviso da teoria sobre transposio didtica e apresenta alguns aspectos do estudo da interao a partir da perspectiva microetnogrfica, com destaque para as noes de alinhamento, estruturas de participao e processos de figurao. Este captulo oferece o respaldo terico para a anlise dos saberes mobilizados pelos alunos na situao do seminrio e para a descrio dos padres interacionais que so instaurados durante o evento. No captulo III, Consideraes sobre o seminrio, revisaremos alguns estudos que descrevem o seminrio a partir de diferentes perspectivas tericas: ora concebendo-o como uma tcnica de ensino, ora como um gnero textual, ora como um evento comunicativo. O captulo IV, Aspectos metodolgicos, primeiramente apresenta a natureza do estudo, o seu contexto situacional e os procedimentos de coleta, tratamento e citao dos dados. Em seguida, so descritos o planejamento e a execuo da ao didtica proposta para o ensino do seminrio bem como os aspectos que nortearam sua organizao e realizao pelos alunos. Por fim, so apresentadas as categorias de anlise cujo objetivo oferecer possveis respostas para as questes levantadas. No captulo V, Discusso dos dados, procederemos anlise do corpus luz das teorias referenciadas nos trs primeiros captulos desta dissertao. Este captulo est subdividido em seis partes: i) Gneros textuais escritos presentes nos seminrios e seus respectivos usos e funes, ii) As prticas de letramento nos textos produzidos pelos alunos, iii) A interao aluno x professor e aluno x aluno no seminrio, iv) A utilizao dos conhecimentos mobilizados pelos alunos para compor o seminrio, v) As prticas de letramento acadmico e sua (no) apropriao pelos alunos e, por fim, vi) A expresso de opinies dos alunos na fase ps-exposio oral do seminrio. Finalmente, na ltima parte do trabalho, constam as consideraes finais em que procuramos retomar e responder s questes deste estudo, discutir os resultados obtidos e suas possveis implicaes para o planejamento de metodologias de ensino do seminrio na escola.

14 CAPTULO 1

LETRAMENTO(S), ORALIDADE E ESCRITA

Neste captulo, iremos revisitar parte da literatura que trata o letramento como uma prtica social. Veremos como esta abordagem questiona a viso do letramento como um conjunto de habilidades ou competncias presentes ou no no indivduo e a maneira com que procura situar o letramento em variados contextos sociais atravs das noes de eventos e prticas de letramento. No final do captulo, traremos a noo de gneros textual baseada na teoria de Bakhtin, alm de algumas consideraes sobre a relao entre fala e escrita. Tais noes sero importantes para a descrio do seminrio (captulo 3) como um evento de letramento escolar que envolve a utilizao de vrios gneros textuais e prticas de letramento especficas.

1.1 Algumas abordagens do letramento

Nas ltimas dcadas, o letramento tem sido objeto de estudo de diferentes disciplinas, o que fez surgir diferentes concepes do fenmeno e diferentes formas de abord-lo. Abordagens mais tradicionais2 concebem o letramento como um conjunto de habilidades cognitivas e universais voltadas para a leitura e a escrita em geral. Outras procuram investig-lo sob uma perspectiva mais ampla, levando em conta os usos, as funes e os efeitos da escrita para o indivduo e para a sociedade. No contexto brasileiro, o termo letramento (proveniente do ingls literacy) tem sido usado pela necessidade de se distinguir os estudos da alfabetizao relativos ao domnio do cdigo escrito como uma habilidade individual e especfica ensinada na escola dos estudos que enfatizam o impacto social da escrita e a forma como ela organiza e influencia a vida das pessoas, sejam elas alfabetizadas, escolarizadas ou no (SOARES, 2001; TFOUNI, 2002). Street (1984) procura sistematizar o conjunto dos estudos do letramento das ltimas dcadas do sculo XX dentro de dois grandes modelos concorrentes: o modelo autnomo (mais amplamente difundido pelas principais agncias de letramento e seus rgos reguladores, a escola e as secretarias de educao, por exemplo) e o modelo ideolgico (modelo que surgiu como reao ao primeiro). De modo geral, os autores que situam2

Sobretudo aquelas de inspirao positivista que focavam sua ateno na mente e/ou no comportamento individuais (cognitivismo e behaviorismo).

15 suas pesquisas dentro do modelo autnomo estabelecem uma relao de causalidade entre letramento e progresso, civilizao e mobilidade social. Segundo Street (2003, 01),A viso padro em muitos campos de estudo (...), trabalha a partir da hiptese de que o letramento em si autonomamente ter efeitos em outras prticas sociais e cognitivas. Introduzir o letramento para os pobres, pessoas iletradas, vilas, jovens de centros urbanos etc. teria o efeito de desenvolver suas habilidades cognitivas, melhorando suas perspectivas econmicas, e tornando-os melhores cidados, no obstante as condies sociais e econmicas que foram 3 responsveis por seu iletramento em primeiro lugar.

Logo, segundo as hipteses do modelo autnomo, o letramento seria uma habilidade ou capacidade cognitiva a ser oferecida s pessoas por meio da escolarizao para que elas pudessem melhorar suas condies de vida e ao mesmo tempo auxiliar no desenvolvimento de sua comunidade e de seu pas. Trata-se de uma viso de letramento como dficit, como algo que as pessoas no tm e que precisam adquirir para seu desenvolvimento pessoal. Entre seus defensores esto estudiosos como Goody (1977), Olson (1977), Olson & Hildyard (1983) e Ong (1982). O segundo modelo, articulado pelo prprio Street, contrape-se idia de que o letramento por si s traga efeitos sociais, econmicos e culturais. Conforme relata Signorini (2001: 07),Os debates iniciados nos anos 80, envolvendo a histria social, a antropologia, a etnografia, os estudos sobre educao e sobre cultura e educao questionaram a viso psicolingstica do letramento como conhecimento estrito da letra, ou do cdigo, e como capacidade, ou condio cognitiva unificada, universal e abstrata decorrente do uso da escrita enquanto tecnologia.

Street (1984) prope que o letramento seja situado em seu contexto mais amplo de propsitos sociais e relaes de poder. Com uma grande sensibilidade para os aspectos culturais e ideolgicos, este autor defende que o letramento seja investigado a partir das prticas sociais de uso da escrita e das relaes de poder que permeiam tais prticas. Logo, interessa investigar o papel das prticas de letramento na manuteno ou na ameaa das estruturas de poder na sociedade. Esta perspectiva sustenta que o letramento social e culturalmente determinado, devendo ser investigado a partir de uma perspectiva etnogrfica, considerando o conjunto de prticas sociais desenvolvidas por

3

Traduo nossa

16 grupos em lugares especficos4. Dentre os autores que situam seu trabalho nesta linha de estudo esto: Heath (1983), Gee (1990), Barton (1994, 1998, 2000), Barton & Hamilton (1998, 2000) entre outros. Esta abordagem lanou as bases para o que veio a se chamar de Os Novos Estudos do Letramento 5 , tendo como representantes, alm do prprio Street, Shirley Heath, James Paul Gee, David Barton, Mary Hamilton, Roz Ivanic e outros. Segundo Maybin (2000: 197)

estes estudos partilham origens em comum com a tradio antopolgicoetnogrfica de documentar atividades de letramento em pequenas comunidades, mas vo alm desta tradio ao analisar os modos pelos quais os significados de 6 eventos locais esto ligados a instituies culturais e prticas mais amplas.

Para Hamilton (2000b: 01) os Novos Estudos do Letramento (NEL) devem olhar para alm dos textos escritos, procurando perceber o que as pessoas fazem com eles, com quem e como. Em outras palavras, esta abordagem procura investigar as formas de como os sentidos e os usos de textos escritos esto culturalmente moldados e motivados e as maneiras que so socialmente regulados. O letramento, portanto, configura-se fundamentalmente como uma prtica social situada, e como tal, varia de uma cultura para outra e de um contexto para outro. Assim, se as prticas sociais so diversificadas, as prticas de letramento tambm o so, permitindo que se fale em diferentes letramentos e no apenas em um, universal, esttico, associal e permanente. Segundo Hamilton (2000b: 01),a partir do momento em que no vemos mais o letramento simplesmente como um conjunto de habilidades, mas como prticas nas quais estamos ativamente engajados, torna-se bvio que existem muitas e diferentes formas nas quais a leitura e a escrita so usadas e que as pessoas esto desenvolvendo novos letramentos o tempo todo.4

Gee (2000) observa que nas ltimas dcadas tem havido uma virada social em vrias disciplinas humanas em reao ao modelo positivista de cincia. Assim, ao invs de se focar a ateno no indivduo isoladamente em busca de uma anlise objetiva do comportamento e pensamento humano, procura-se destacar a interao das pessoas em seu ambiente sciocultural. 5 Os Novos Estudos do Letramento (NEL) so parte de um movimento mais amplo dentro da cincia social que se afastou do behaviorismo da primeira parte do sculo XX cujo foco estava no comportamento individual das pessoas, e do cognitivismo dos anos 60 e 70 do mesmo sculo que investigava a mente do indivduo de forma autnoma, sem, portanto, considerar a construo social do pensamento. Segundo Gee (2000: 180), os NEL tm como base a viso de que as atividades de ler e escrever s tm sentido quando investigadas no contexto de prticas sociais e culturais em que ocorrem e das quais so apenas uma parte. Em outras palavras, as atividades de leitura e escrita assim como os sentidos que elas produzem so sempre situados em prticas sociais especficas e dentro de Discursos especficos (GEE, 1990). Os NEL so, em ltima anlise, um movimento que defende a importncia de teorizar o letrameno como prticas scioculturais, e no como competncias e habilidades descontextualizadas. 6 Traduo nossa.

17

De acordo com Barton & Hamilton (2000: 10), a idia de diferentes letramentos tem vrios sentidos, podendo se referir a prticas que envolvem diferentes mdias ou sistemas simblicos, como filme e computador7, ou a diferentes culturas e lnguas. Porm, embora considerem a aplicabilidade destes sentidos, o Grupo de Lancaster 8 utiliza a noo para se referir aos diferentes letramentos associados a diferentes domnios da vida social ou domnios de atividades como o trabalho, a escola, o lar, a igreja, a priso e at mesmo comunidades virtuais possibilitadas atravs das novas tecnologias. Assim, o objeto de estudo do grupo so os letramentos em seus vrios contextos sociais, e no uma abstrao idealizada chamada de letramento (EWING, 2003: 16). por essa razo que o grupo utiliza as construes composicionais letramento acadmico, letramento familiar, letramento emergente, entre outras. O letramento, para o Grupo de Lancaster, no se refere estritamente atividade de ler e escrever como um objetivo em si mesmo, mas a um meio de realizar diferentes aes e objetivos sociais. Assim, o letramento pode ter mltiplas funes, desde resolver um problema do dia-a-dia at fazer parte da rotina de trabalho das pessoas. O letramento configura-se como uma prtica social situada em diferentes domnios da vida em que o texto escrito serve de base para os diferentes propsitos das pessoas. Dentro dessa viso de letramento, qualquer texto, ferramenta, tecnologia ou prtica social pode tomar significados (e valores) bem diferentes em diferentes contextos e nenhum deles tem um significado (ou valor) fora de seus contextos de uso (GEE, 2000: 188). A vida urbana moderna constituda por uma multiplicidade de letramentos, comunidades e domnios. A noo de domnio de grande importncia para os NEL. De acordo com Magalhes (1995), o termo domnio foi primeiramente usado na dcada de 1960 pelo sociolingista norte-americano Joshua Fishman para se referir aos diversos domnios da lngua escrita, como a escola, a casa e o trabalho. De modo semelhante, Barton e Hamilton (2000) definem o termo com base na idia de lugar fsico, tambm tomando a casa, a escola e o local de trabalho como tpicos exemplos de domnios. Segundo essa concepo, cada domnio manteria prticas e eventos distintos e por vezes recorrentes, por se situarem em contextos diferentes da vida social. A escola, portanto, seria um domnio cujas prticas e interaes seriam, em geral, identificveis e diferentes das que ocorrem em outros domnios como a igreja ou o lar, por exemplo.

7 8

Da as expresses letramento cinematogrfico e letramento computacional. A Escola de Lancaster um grupo de pesquisa cuja abordagem tem se tornado internacionalmente reconhecida e distinguida dentro dos Novos Estudos do Letramento. Ela foca suas anlises em letramentos localmente situados.

18 A noo de domnio, todavia, no to definida e esttica, baseada apenas no espao fsico. Tusting (2000) defende que a noo v alm da idia de um espao scioculturalmente determinado, podendo estar associada tambm ao tempo ou ainda ao papel social assumido pelos participantes de uma interao verbal. Zerubavel (apud TUSTING, 2000: 40), investigando as prticas de enfermeiras em hospitais, observa que elas definem seus papis dependendo do fato de estarem em seu horrio de trabalho ou fora dele. Assim, de acordo com o tempo, estaro em domnios diferentes e iro interagir com seus pares de forma distinta, apesar de estarem em um mesmo espao fsico e com as mesmas pessoas. Isso mostra a possibilidade de haver permeabilidade entre domnios como tambm uma relao instvel com sua localizao fsica imediata. De modo semelhante, Wilson (2000) realiza um estudo das prticas de letramento existentes no interior de prises e observa que pode haver, em um mesmo contexto fsico, vrios espaos competindo entre si, dentro dos quais diferentes letramentos so praticados e diferentemente legitimados, dependendo da percepo de sua existncia pelas pessoas. A vida social moderna, por seu carter multifacetado e complexo, faz-nos desempenhar variados papis. Por essa razo, comunidades ou domnios podem coexistir de forma simultnea ou paralela, como, por exemplo, na situao de amigos ou membros de uma associao tnica que so, ao mesmo tempo, colegas de turma em um determinado curso (POURBAIX, 2000: 133). Do mesmo modo, pode-se dizer que, em determinados momentos, alguns domnios so predominantes e outros secundrios, o que mostra o carter dinmico e complexo da noo.

1.2 Prticas e eventos de letramento

As noes de prticas e eventos de letramento formam a base conceitual dos NEL e orientam o processo metodolgico de base etnogrfica, j que o letramento passa a ser investigado atravs das prticas e dos eventos desenvolvidos no contexto social em que ocorrem, possibilitando uma nova compreenso terica sobre a questo. Street (2003) mostra que o termo evento de letramento foi primeiramente usado por A.B. Anderson et. al. (1980) sendo definido como uma ocasio na qual uma pessoa procura compreender sinais grficos. Em seguida, Heath (1982: 93) o utiliza como qualquer ocasio em que uma pea de escrita integra a natureza das interaes dos participantes e seus processos interpretativos. Barton e Hamilton (2000: 8) utilizam a noo de eventos de letramento para se referirem a atividades particulares em que o letramento exerce um papel podendo haver conversa sobre um texto ou textos escritos,

19 j que estes geralmente so centrais para a atividade. Os autores ainda definem eventos de letramento como episdios observveis que surgem de prticas e so moldadas por elas. Para estes autores, a noo importante porque enfatiza a natureza situada do letramento. Segundo Barton & Hamilton (2000: 12), a noo de evento de letramento merece especial ateno porque os textos no tm significados autnomos, independentes de seu contexto social de uso assim como no tm um conjunto de funes independentes dos significados sociais onde esto inseridos. Para os NEL, o texto escrito condio sine qua non em eventos de letramento, ainda que este no esteja materialmente presente no contexto da interao. Portanto, pode haver ocasies em que no haja textos para serem lidos ou escritos pelas pessoas, mas se o contedo de uma conversa ou discusso tiver como base textos que foram escritos ou lidos anteriormente, tal atividade caracteriza-se como um evento de letramento. Assim, quando as pessoas comentam uma notcia que leram em um jornal ou revista, ou relatam para amigos a histria de um romance que acabaram de ler, esto instaurando um evento de letramento, pois esto partilhando uma atividade interativa que tem como base textos escritos (BARTON & HAMILTON, 2000). Eventos de letramento, de modo geral, podem acontecer atravs de uma mescla de lngua falada e lngua escrita 9 , ou de uma mistura destas com outros sistemas semiticos, como sistemas matemticos, notaes musicais, figuras, mapas, cones etc, usados como coadjuvantes na produo de sentidos numa interao social. Paradoxalmente, porm, a simples presena fsica de textos escritos em um evento no o caracteriza automaticamente como um evento de letramento. Com base nessa idia, Hamilton (2000a) prope a seguinte questo: quo central o letramento tem de ser para um evento para ele ser considerado um evento de letramento?. Vejamos o que dizem Tustin, Ivanic & Wilson (2000: 214) sobre este problema:H algumas prticas sociais nas quais o letramento relativamente constitutivo das prticas: por exemplo, as prticas sociais de escrever carta ou ler jornal no existiriam sem o letramento. Em outras arenas, o letramento pode ser auxiliar, desempenhando pouco ou nenhum papel em algumas prticas sociais: por exemplo, ele no tem um papel importante na ao de estacionar um carro. s vezes o letramento pode at mesmo desaparecer quando se est muito familiarizado com uma prtica social. (...) quando um guarda de trnsito emite uma multa por algum ter estacionado em rea proibida, o letramento est em primeiro plano, tanto na multa emitida quanto nos avisos colocados na rua que 10 estabelecem as regras de estacionamento.9

Num evento de letramento, as atividades de ler e escrever esto sempre inter-relacionadas com a fala de alguma forma. 10 Traduo nossa.

20 Portanto, podemos dizer que, para um evento de letramento ser caracterizado como tal, o texto escrito tem de estar em primeiro plano, ou seja, deve ser a base da interao entre as pessoas, e, estas, por sua vez, tm que estar cientes de que isso ocorre. A partir desta reflexo, podemos ver que nem sempre fcil saber quando comea ou termina um evento de letramento, ou seja, por vezes, as fronteiras que demarcam seu incio e fim podem no ser muito claras, a no ser em eventos mais ritualizados em que o letramento central para a interao entre os participante e para a realizao de suas atividades, como o caso das aulas na escola ou das missas na igreja catlica. As questes de presena e ausncia em um evento de letramento so levantadas pelos estudiosos dos NEL e consideradas de grande importncia. Para Tustin, Ivanic & Wilson (2000: 215), o que visvel ou invisvel em um evento de letramento , em grande medida, determinado pela estrutura pr-existente do observador e pelo conhecimento dos discursos envolvidos. Desse modo, h situaes em que um evento de letramento existe para algumas pessoas e para outras no, mesmo que elas estejam compartilhando o mesmo tempo e o mesmo espao social. Enquanto os eventos de letramento so episdios observveis por estarem materialmente situados no tempo e espao, as prticas de letramento so padres mais globais, unidades no observveis, pois envolvem valores, sentimentos, atitudes, conhecimentos partilhados, sentidos, propsitos, regras e relaes sociais. So as formas culturais gerais de utilizao do texto escrito (BARTON & HAMILTON, 2000). Segundo Street (2003), as prticas de letramento so as formas particulares de pensar sobre a leitura e a escrita e as formas de realiz-las nos diferentes contextos sociais. Tendo esse carter mais amplo e abstrato, as prticas de letramento no podem estar contidas inteiramente em atividades e tarefas observveis (BARTON & HAMILTON, 2000: 8), podem apenas ser inferidas de eventos ou de caractersticas presentes no texto 11 (IVANIC & ORMEROD, 2000). Culturalmente sensveis, as prticas variam de um contexto para outro, de uma cultura para outra, por isso a impossibilidade de consider-las como habilidades tcnicas e universais presentes em indivduos (STREET, 2003). Sendo as prticas socialmente constitudas, so permeadas por relaes de poder que, por sua vez, determinam como os textos so utilizados, onde, quando e por quem. As prticas devem ser vistas de forma dinmica, no esttica, pois, como toda atividade humana, variam de um contexto social para outro. Novas prticas surgem, adaptam-se e se modificam ao passar do tempo, sobretudo quando novas necessidades11

Este aspecto ser importante para as anlises realizadas no item 5.2 (p. 78-83).

21 sociais se instalam ou novos recursos tecnolgicos se tornam disponveis. Conforme assinalam Barton e Hamilton (2000: 14), as prticas de letramento mudam e novas prticas so freqentemente adquiridas mediante processos de aprendizagem e construo de sentido informais como tambm atravs de educao formal e treinamento (grifo dos autores). por essa razo que uma abordagem do letramento como habilidade problemtica, pois no oferece a flexibilidade necessria para lidar com a mudana (POURBAIX, 2000: 129). As questes de presena e ausncia so igualmente importantes para a noo de prticas de letramento. Segundo Barton & Hamilton (2000), prticas de letramento envolvem a percepo que as pessoas tm do letramento e tm a ver com a identidade social dos indivduos e com os conhecimentos partilhados que eles possuem, no interior de grupos ou comunidades. Logo, as prticas s existem se tivermos conscincia delas. Tustin, Ivanic & Wilson (2000: 215) ilustram esta idia da seguinte forma:O mesmo fenmeno visual por exemplo, um executivo lendo um jornal poderia ser interpretado de forma bastante diferente por algum de uma cultura onde homem de terno no significa executivo e uma coleo de pginas soltas em preto e branco no significa jornal. O jornal est presente em um sentido 12 material, mas aquilo que o faz significar jornal no est.

As prticas de letramento s podem ser compreendidas quando devidamente situadas no tempo e no espao em que ocorrem, quando se descobre como as pessoas as percebem, o que pensam sobre elas e com que propsitos as utilizam.

1.3 Letramentos vernaculares e letramentos dominantes

Sendo o letramento uma prtica social, preciso reconhecer que alguns deles tm mais prestgio e visibilidade do que outros, de acordo com o contexto de onde emanam. Segundo Barton e Hamilton (2000: 12), as prticas de letramento so moldadas por instituies sociais e relaes de poder, e alguns letramentos so mais dominantes, visveis e influentes que outros (grifo dos autores). Seguindo essa premissa, Hamilton (2000b) procura fazer uma distino entre letramento dominante e letramento vernacular. O primeiro est associado aprendizagem formal e ao uso burocrtico e institucionalizado do letramento. O segundo est associado aprendizagem informal e a contextos mais espontneos do dia-a-dia, o que o torna menos valorizado e menos visvel que os letramentos institucionalizados. Segundo Barton e Hamilton (2000: 9),12

Traduo nossa.

22Alguns eventos esto ligados a seqncias rotinizadas, podendo ser parte de procedimentos formais e das expectativas de instituies sociais como o trabalho, a escola e agncias de assistncia social. Alguns eventos so estruturados por expectativas mais informais e presses do lar ou de grupos que compartilham 13 caractersticas em comum.

Nos letramentos dominantes, os papis, objetivos e procedimentos esto relativamente estabelecidos e nomeados, pois, geralmente, fazem parte da rotina de uma determinada instituio. Para Hamilton (2000b: 04), os letramentos dominantes so aqueles associados a organizaes formais, tais como a escola, a igreja, o ambiente de trabalho, o sistema legal, o sistema mdico e o sistema burocrtico da assistncia social. So, portanto, letramentos de reconhecido prestgio social, cujo poder legitimado pelas instituies que os mantm. Nos letramentos vernaculares, as prticas so aprendidas de maneira informal e assistemtica, no cotidiano de lares ou de comunidades. De acordo com Hamilton (2000b: 05),Letramentos vernaculares so essencialmente aqueles que no so regulados ou sistematizados por regras formais e procedimentos de instituies sociais, mas tm sua origem nos propsitos da vida diria. Eles no so altamente valorizados por instituies sociais formais, embora s vezes se desenvolvam em resposta a essas instituies. Eles podem ser ativamente desaprovados e trivializados, podendo ser contrastados com letramentos dominantes, que so vistos como racionais e de alto 14 valor social.

Por no serem institucionalmente controlados, os letramentos vernaculares tendem a ser voluntrios e a se auto-regular, uma vez que no so impostos de fora. Freqentemente incorporam conjuntos de valores diferentes daqueles dos letramentos dominantes. Apesar de serem diferentes nos seus processos e propsitos, estes dois tipos de letramento mantm uma relao dialgica. Assim, os letramentos dominantes e vernaculares no so independentes ou duas categorias vistas de forma dicotmica, mas esto em contnuo dilogo entre si, com suas fronteiras permeveis e intercambiveis (HAMILTON, 2000b: 4).

1.4 O letramento escolar

Os estudos que concebem o letramento como um conjunto de habilidades ou competncias voltadas para a leitura e a escrita pressupem o ensino formal de tais13 14

Traduo nossa. Traduo nossa

23 habilidades, e, como este ensino tradicionalmente uma prerrogativa da escola, logo escolarizao e letramento manteriam uma relao de interdependncia. Porm, conforme j visto nos itens anteriores, estudos relativamente recentes sobre o letramento (BARTON, 2000b; BARTON & HAMILTON, 1998; GEE, 1990; HEATH, 1983; STREET; 1984) no mais o consideram como algo que reside apenas na cabea das pessoas ou como um conjunto de habilidades/competncias a ser aprendido. Para estes pesquisadores, o letramento configura-se como uma prtica essencialmente social, e como tal, situa-se em lugares diversos e tempos particulares, no apenas na escola, portanto. Nessa viso, fica claro perceber que existem outros letramentos fora da sala de aula, e que as prticas letradas que nela ocorrem constituem apenas um conjunto de prticas em meio a vrias outras existentes em outros contextos sociais. As prticas escolares letradas, por serem mantidas por instituies pblicas ou privadas e receberem influncia e regulao do Estado, fazem parte de um letramento tido como dominante, nos termos de Hamilton (2000b). De modo geral, este tipo de letramento goza de grande prestgio e visibilidade devido ao fato de que, nas sociedades modernas, a escola seja considerada a principal agncia de letramento. Lahire (apud ROJO, 2001b: 243) ressalta que a escola de hoje fruto de uma histria bastante mais longa de letramento e cultura da escrita, de imprensa e de impressos, o que nos faz concluir que h uma anterioridade do letramento em relao escola: escola letramento e dele decorre, quer suas prticas sejam orais ou escritas; quer haja ou no texto escrito sendo utilizado na sala de aula (ROJO, 2001b: 243). Porm, segundo esta autora, mais importante do que discutir qual a varivel dependente escola ou letramento saber como ocorre a construo e o funcionamento do letramento na escola. Assim como Rojo (2001b), utilizaremos a expresso letramento escolar, para nos referirmos s prticas letradas que esta instncia produz e reproduz. Para alcanar seu objetivo, fazer aprender, a escola divide seu tempo em aulas de diferentes disciplinas que, por sua vez, renem conhecimentos adaptados para o ensino. Estes conhecimentos, embora muitas vezes sejam ensinados por meio da oralidade, tm sua base na cultura escrita e, portanto, so provenientes de uma histria de letramento. O aspecto grafocntrico do ensino escolar tem se tornado mais evidente nas ltimas dcadas j que a prtica pedaggica cotidiana est cada vez mais apoiada em livros didticos. Estes, por sua vez, so compostos por saberes oriundos de outras instncias de produo do conhecimento, como a cincia e a divulgao cientfica, que entram em relao com outros saberes (inclusive os do senso comum, se que se pode fazer uma distino clara destes) para a produo dos objetos de ensino efetivos da sala de aula.

24 Apesar de reconhecermos que h semelhanas entre a escola e a universidade pois nelas se processam aprendizagem e ensino, h professores e alunos, aulas divididas em campos do saber diversos, alm de outros aspectos compartilhados entre si - assumimos, para as finalidades deste estudo, que as prticas letradas do ensino bsico (Ensino Fundamental e Mdio, no caso do Brasil) so, de modo geral, diferentes das que ocorrem na universidade. Na universidade, os alunos precisam ter maior autonomia em sua aprendizagem e, para isso, so conduzidos para pesquisas, realizao de exposies orais ou seminrios, produo de relatrios, fichamentos, citao das fontes de pesquisa. Do mesmo modo, comum, no ensino superior, a participao dos alunos em palestras, mini-cursos, mesas redondas, apresentao de trabalhos, etc, atividades, por vezes, no verificadas no ensino bsico. Logo, utilizaremos os termos letramento acadmico para nos referirmos s prticas letradas que ocorrem no ensino superior e letramento escolar para fazer aluso quelas prticas que se desenrolam no interior da escola. At aqui, vimos tratando da viso do letramento como uma prtica essencialmente social, situada e culturalmente sensvel. Dentro de diferentes domnios da vida humana, as prticas e os eventos mediados por textos escritos variam para atender as necessidades e os objetivos das pessoas, grupos ou instituies sociais. Tais prticas e eventos de letramento envolvem a produo/utilizao de diferentes gneros textuais que mantm, por vezes, relaes bastante imbricadas entre as modalidades da lngua (fala e escrita). A seguir, apresentamos algumas consideraes sobre a noo de gneros textuais com base em Bakhtin (1952) e sobre as relaes entre oralidade e escrita na viso de diferentes autores e perspectivas tericas.

1.5 Gneros textuais e as relaes entre oralidade e escrita

Segundo Bakhtin ([1953] 1992), os gneros so tipos relativamente estveis de enunciados que emanam das diferentes esferas sociais. So caracterizados por contedo temtico, estilo e construo composicional. O contedo temtico constitui aquilo que dizvel por meio de um gnero. O estilo diz respeito s escolhas lingsticas (recursos lexicais, fraseolgicos, gramaticais); j os aspectos estruturais do texto formam sua construo composicional. Para o autor, os usos da lngua so marcados por uma certa estabilidade, j que so fruto de construo scio-cultural e histrica. Porm, assim como as atividades humanas so dinmicas e, portanto, transformam-se com o tempo, os textos e os discursos que permeiam tais atividades tambm mudam.

25 A maneira de compreender os gneros do discurso a partir de Bakhtin nem sempre tem tomado o mesmo rumo. Por vezes d-se mais nfase aos aspectos formais, procurando fixar as caractersticas dos gneros para estabelecer suas dimenses ensinveis, como o fazem Schnewly, Dolz & Noverraz (2004), por exemplo. Marcuschi (2005), no entanto, percebe a impossibilidade de classificao dos gneros, por eles serem altamente plsticos, dinmicos e culturalmente sensveis. Segundo o prprio Bakhtin ([1953] 1992: 279),

a riqueza e a variedade dos gneros do discurso so infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana inesgotvel, e cada esfera dessa atividade comporta um repertrio de gneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se medida que a prpria esfera se desenvolve e fica mais complexa.

Marcuschi (2005) observa como se pode interpretar a teoria de Bahktin sobre gneros de forma estanque, especialmente quando se busca enfocar os aspectos mais formais da teoria.parece que para Bakhtin era mais importante frisar o relativamente do que o estvel, contudo, para muitos, o aspecto mais interessante foi a noo de estabilidade tida como essencial para a afirmao da forma, mas do ponto de vista enunciativo e do enquadre histrico-social da lngua, a noo de relatividade parece sobrepor-se aos aspectos estritamente formais e captar melhor os aspectos histricos e as fronteiras fluidas dos gneros (MARCUSCHI, 2005: 17). (nfases do autor).

Pensamos que no se pode ver a questo de maneira esttica. Ao estarem situadas no tempo e no espao em um determinado domnio, e assumindo os papis sociais que estes contextos culturalmente demandam, as pessoas tendem a utilizar a lngua de determinada maneira e a interagir com seus pares por meio de gneros tpicos daquela esfera. Porm, variaes nas condies de produo dos gneros podem tornlos instveis e abrir espao para mudanas. No que se refere s modalidades oral e escrita da lngua, os gneros se distribuem numa escala contnua de relaes, podendo apresentar desde diferenas mais acentuadas, at semelhanas tais que fica difcil, se no impossvel, enquadr-los como

26 pertencentes a uma modalidade da lngua ou a outra. De acordo com Schneuwly (2004:135)No existe o oral, mas os orais em mltiplas formas, que, por outro lado, entram em relao com os escritos, de maneira muito diversas: podem se aproximar da escrita e mesmo dela depender como o caso da exposio oral, ou ainda, do teatro e da leitura para os outros -, como tambm podem estar mais distanciados como nos debates ou, claro, na conversao cotidiana. No existe uma essncia mtica do oral que permitiria fundar sua didtica, mas prticas de linguagem muito diferenciadas, que se do, prioritariamente, pelo uso da palavra (falada), mas tambm por meio da escrita (...).

Esta idia um dos mais fortes argumentos contra a viso dicotmica entre oralidade e escrita15, pois no se limita anlise do cdigo lingstico, nem considera que exista apenas um oral que se contraponha a um escrito. Ao observarmos os usos reais que as pessoas fazem da lngua, percebemos que ela varia de um contexto social a outro, mantendo relaes variadas entre suas modalidades. Em muitos casos, as duas modalidades se relacionam de forma bastante imbricada. por essa razo que Marcuschi (2001b) prope trs grandes conjuntos de gneros textuais: i) gneros tipicamente orais, ii) gneros tipicamente escritos e iii) gneros compostos na interface entre oralidade e escrita. Dentro desta abordagem, a conversao espontnea seria gnero prototpico da oralidade, j um artigo cientfico seria um gnero prototpico da escrita. Porm, grande parte dos gneros produzida na interface entre oralidade e escrita. Uma pea de teatro ou um telejornal so materializados via oralidade, mas tm sempre textos escritos que lhes servem de base; j uma ata de reunio, uma entrevista publicada em revista ou anotaes de aula so textos originalmente falados que servem de base para a escrita. Assim, podemos dizer que alguns gneros orais so mais permeados pela escrita e outros menos, do mesmo modo, alguns gneros escritos apresentam mais traos da oralidade, enquanto outros os apresentam em quantidade menor. Fica, portanto, difcil sustentar a dicotomia entre fala e escrita. Os usos reais da lngua revelam a existncia de muitos gneros que apresentam uma relao estreita entre as duas modalidades. H, no entanto, outra posio, defendida por Rojo & Schneuwly (2006), que percebe a impossibilidade de situar alguns gneros num continnum entre uma oralidade e

15

De acordo com Marcuschi (2001a), a perspectiva dicotmica, por se limitar, em geral, ao cdigo lingstico, divide as modalidades da lngua em dois blocos bastante distintos, atribuindo-lhes propriedades tpicas. Segundo os defensores desta concepo dentre eles Bernstein (1971), Labov (1972) e Ochs (1979) a fala seria implcita, redundante, no planejada, imprecisa, nonormatizada e fragmentria; a escrita, por outro lado, seria explcita, condensada, planejada, precisa, normatizada e completa (MARCUSCHI, 2001: 27)

27 uma escrita prototpicas. Os autores chegam a essa concluso aps investigarem como se d a relao entre os gneros conferncia e apresentao em power point.Conclui-se, desta primeira parte, que conferncia e apresentao power point so dois gneros que, embora se materializam em modalidades diferentes (grfica, fnica), no podem ser considerados como separados num continuum entre oralidade e escrita, a apresentao mais alinhada com a escrita e a conferncia mais alinhada com a oralidade devido materialidade de cada uma. Ao contrrio, so gneros secundrios mutuamente constitutivos, um fazendo parte do outro de maneira determinante (SCHNEUWLY & ROJO 2006: 481). (grifo nosso)

E completam, mais adiante:A relao entre um e outro no de semelhanas e diferenas entre textos prototpicos num continuum, mas de efeito mtuo e de entrelaamento. Uma relao dialgica no sentido bakhtiniano, em que um enunciado da apresentao constitui um elo (detonador de outros elos) na cadeia da fala da conferncia (SCHNEUWLY & ROJO 2006: 481).

Os autores, portanto, chamam ateno para as complexas relaes intertextuais e interdiscursivas presentes entre gneros de diferentes modalidades da lngua. Estas relaes de mtua constitutividade se manifestam nos gneros orais formais pblicos, j que estes so construdos com base em outros gneros na modalidade escrita. Esta abordagem mais abstrata, porm, mais dinmica, pois no procura fixar os gneros em algum ponto de um continuum, mais prximos da escrita ou da oralidade. Busca, ao invs disso, perceber como gneros orais e gneros escritos se entrelaam e se tornam elos de uma cadncia de enunciados diversos (SCHNEUWLY & ROJO, 2006: 489). Esta abordagem atualiza e mantm em aberto a discusso sobre os nveis de relaes que oralidade e escrita podem manter. Ao mesmo tempo, lana luz sobre as possibilidades de ensino dos gneros orais formais pblicos na escola.

28 CAPTULO 2

SABERES, INTERAO E ENSINO

Neste captulo, faremos uma breve e parcial reviso da teoria sobre transposio didtica com o intuito de evidenciar alguns aspectos relativos constituio dos saberes que circulam dentro da sala de aula. Posteriormente, iremos nos referir ao estudo da interao face a face de inspirao microetnogrfica e trataremos das noes de falante/ouvinte, alinhamento e processos de figurao trazidas por Goffman (1967, 1979, 1983), alm do conceito de estruturas de participao introduzido a partir dos estudos de Philips (1972). Todas as noes apresentadas neste captulo serviro de referencial terico para as anlises realizadas no captulo cinco (p. 63-106).

A constituio dos saberes de sala de aula

Se formos observar os saberes que so usados em sala de aula pelo professor no processo de ensino, perceberemos que eles podem emanar de diferentes instncias sociais as quais Bourdieu (1994) denomina de campos de produo de saberes. Assim, os saberes utilizados na sala de aula para o ensino podem vir de, pelo menos, duas instncias: da cincia e da divulgao cientfica. Porm, eles no chegam sala de aula sem modificaes, ou seja, os saberes no transitam de um lugar social para outro de modo autnomo e automtico, isso porque as instncias so dotadas de histria, de funes sociais, de estruturas e de formas de funcionamento especficas (BRONCKART & GIGER, 1998: 45). Logo, os saberes so mveis, transitam, mas se modificam para atender s demandas especficas de cada instncia. A escola tambm uma instncia de produo de conhecimento, j que no toma emprestado os saberes tais como eles se encontram em suas esferas de origem, estes saberes so modificados para atender especificamente a uma situao de ensino/aprendizagem. Para atender s necessidades prprias da situao de ensino em sala de aula, o professor e os autores dos manuais didticos realizam adaptaes e reconfiguraes e os conceitos e termos utilizados pela cincia e pela divulgao cientfica acabam sofrendo transformaes, alm de se agregarem a outros saberes (da tradio escolar, da formao continuada do professor, do senso comum, etc). O resultado desse processo constitui o objeto de ensino efetivo de sala de aula. Desse modo, o professor utiliza, em sua prtica, conceitos que j no so mais exatamente aqueles previstos pela

29 teoria (...) e/ou pela divulgao, mas so objetos prprios da situao de ensino (RAFAEL, 2001: 92). Verret (apud BRONCKART & GIGER, 1998) mostra trs caractersticas do saber didatizado: a dessincretizao, a despersonalizao e a programabilidade. A

dessincretizao diz respeito separao dos saberes de seu contexto de elaborao para serem convertidos em saberes a serem aprendidos. Trata-se de um recorte dos saberes advindos de prticas tericas diversas, para serem usados em uma situao de ensino. A despersonalizao refere-se dissociao do saber da pessoa que o produziu ou do pensamento de onde ele se originou, ou seja, o saber passa a ter uma vida prpria, autnoma, diferente do saber cientfico em que as referncias precisam sempre ser identificadas. A programabilidade diz respeito organizao dos saberes em seqncias lgicas e suficientemente inteligveis para cada nvel de ensino, visando proporcionar a aquisio progressiva de conhecimentos por parte dos alunos. No entanto, conforme observa Rafael (2001: 117)Podemos admitir, portanto, observando as relaes entre saberes/contedos e suas prticas de realizao, que o saber construdo como objeto do discurso didtico, atravs da transposio, no resultado de um repasse, ou transformao de um saber cientfico (especializado/erudito, a priori) em outro saber menos especializado/erudito. E nesse sentido, parece no se tratar de dessincretizao e despersonalizao do saber cientfico, tido como nica fonte de emprstimo, mas de construo de um saber que guarda suas relaes com outro(s) saber(es), inclusive o cientfico.

Portanto, os saberes ensinados na escola no so uma simplificao ou um mero recorte de saberes que so produzidos em outras instncias, mas so resultado de uma produo de saberes especfica para a sala de aula, com o objetivo de atender a uma situao de ensino. A mobilizao de saberes em sala de aula resultante de uma prtica de construo de conhecimentos, e no de simples reproduo de saberes orindos da cincia e/ou da divulgao cientfica. Os conhecimentos, ao serem semiotizados e transmitidos por meio de gneros textuais, transformam-se, segundo Bronckart e Giger (1998), em prticas de linguagem. Proveniente de uma prtica de linguagem, a aula ocorre em um ambiente lingstico institucional e se d por intermdio da interao entre o professor, o aluno e o saber a ser ensinado. A organizao entre estes trs elementos denominado por Chevallard (apud Bronckart & Giger, 1998) de sistema didtico. Em tal sistema se forma o contrato didtico (conjunto de procedimentos de natureza interacional implcito e explcito) que se desdobra em uma temporalidade particular (tempos didticos).

30 Os saberes utilizados como objeto de ensino na escola so transmitidos, em grande medida, pela fala do professor. Essa fala letrada e dominante (nos termos de HAMILTON, 2000b) por meio da qual o ensino se processa, definida por Matencio (2001) como discurso didtico. Este discurso atende a um pblico que se define em funo da srie cursada, da idade e do nvel de ensino e realiza-se dentro de um quadro institucional bem determinado (MATENCIO, 2001). O discurso didtico realiza-se por meio de eventos de letramento cujo objetivo introduzir o aluno em uma certa rea do conhecimento. Ele a mais importante manifestao lingstica dos discursos produzidos na escola, pois sua principal caracterstica fazer aprender (BEACCO & MOIRAND apud MATENCIO, 2001). O discurso de ensino/aprendizagem pressupe a existncia de dois grupos: os que sabem e os que no sabem, mas tm o desejo ou a necessidade de saber, seja por interesse prprio ou por presses sociais. A fim de que os objetivos desse discurso sejam alcanados, preciso que haja o reconhecimento recproco entre os sujeitos, ou seja, a aceitao de ambos como tais: quem ensina e quem aprende. O aprendiz, ao admitir sua falta de conhecimento, geralmente aceita de forma positiva o papel de quem ensina; pretende superar a assimetria de conhecimento por meio do envolvimento no processo de ensino/aprendizagem. Havendo essa aceitao, o discurso didtico tende a ser mais eficaz, e quem ensina, por sua vez, tem mais chances de sucesso. Nos prximos itens que seguem, procuramos descrever de forma mais detalhada alguns aspectos concernentes interao em contextos institucionais, especialmente quela de carter multi-participativo em que h pronunciamento em pblico. Para isso, iremos tomar como base os estudos interacionais de perspectiva microetnogrfica.

2.2 Estudos da interao: a perspectiva microetnogrfica

A partir dos estudos de inspirao etnogrfica, surgiram variadas abordagens tericas que buscaram oferecer subsdios para a anlise dos fatores contextuais da interao. Uma delas a microetnogrfica 16 , abordagem que prope um tratamento dinmico de situao de fala, enfatizando, principalmente, o aspecto scio-interativo do desempenho e distribuio dos papis dos participantes durante um evento comunicati-

16

Segundo Reinaldo (1994), a microetnografia uma tendncia de origem sociolingstica, configurada a partir dos estudos de Hymes e Cazden, que, mais tarde, convergiu para a etnometodologia. Enquanto a etnografia tradicional procura estudar a cultura de forma ampla, a microetnografia ocupa-se apenas do estudo de aspectos parciais dessa cultura.

31 vo 17. central nessa abordagem a anlise da ecologia imediata das relaes sociais entre pessoas engajadas em situaes de interao face a face. Para Erickson (1996: 302) a microetnografia nos ajuda a ver e a entender a interao social como um ecossistema e no apenas como trocas lingsticas. Trata-se de uma abordagem particular que investiga como as pessoas interagem em encontros sociais especficos, enfocando aspectos lingsticos e contextuais. Para a microetnografia, portanto, a conversao sempre social e culturalmente organizada, construda por falantes e ouvintes simultaneamente. Logo, o papel do ouvinte igualmente importante ao papel do falante, pois na interao face a face, ambos influenciam-se mutuamente o tempo todo (ERICKSON, 1996). Em razo disso, o autor afirma que a microetnografia considera a escuta como uma ao comunicativa, ao invs de v-la apenas como uma recepo passiva de informaes. Nessa perspectiva, a comunicao seria uma atividade fundamentalmente dialtica e interativa. Outro aspecto importante desta abordagem diz respeito ao carter multidimensional da identidade dos participantes em um encontro social. Segundo esse princpio, falantes e ouvintes podem assumir vrias identidades sociais em um evento comunicativo a cada vez que ocorre uma mudana de enquadre na situao. Dos estudos em contextos especficos, interessa-nos, sobretudo, a abordagem interacional aplicada a contextos instrucionais em que h pronunciamento em pblico com base em textos escritos. Segundo Reinaldo (1994), foi Goffman (1983) quem primeiramente desenvolveu o estudo desse tipo de interao ao analisar o quadro situacional de uma conferncia. O autor estudou a conferncia levando em conta aspectos como as condies de produo em que escrita e oralidade se relacionam de alguma forma, o ritual da interao, o enquadramento organizacional, a estrutura de participao e as formas de pronunciamento da conferncia. sobre este e outros estudos de Goffman que vamos tratar a seguir.

2.2.1 A interao face a face e as noes de falantes e ouvintes

Goffman (1983) prope que sejam revistos os conceitos originais do modelo didico falante/ouvinte, uma vez que tal modelo no permite a identificao de uma srie de aspectos da identidade social, relevante para a anlise da interao face a face. Segundo este autor, os participantes de um evento interacional desempenham diferentes17

O termo evento comunicativo utilizado aqui no sentido de Hymes (1986), como sendo atividades, ou aspectos de atividades, que so diretamente orientadas por regras de uso da fala.

32 papis comunicativos e assumem diferentes identidades sociais. Para a noo de falante, o autor classifica maneiras especficas de falar, as quais denomina de formatos de produo da elocuo. Estas diferentes formas de proferir a palavra estabelecem os seguintes papis comunicativos: animador, autor e responsvel 18 . A capacidade de produzir sons atravs dos nossos rgos fonadores e articuladores, realizar movimentos faciais e corporais, faz com que o homem seja, segundo o autor, uma mquina de falar, ou um animador, algum que d vida s palavras. Paralelamente ao animador, pode estar a presena do autor, algum a quem se atribui a criao do contedo expresso e as escolhas lingsticas realizadas. O falante pode ser tambm o responsvel, algum pessoalmente comprometido, identificado com o que diz, defende as opinies, valores e crenas de um grupo social do qual faz parte ou com o qual se identifica. As noes de animador, autor e responsvel, portanto, permitem uma anlise mais detalhada dos papis assumidos pelo falante em um evento comunicativo. Em um processo de fala, seja ele face a face ou no, um nico indivduo pode assumir, simultaneamente, os papis de animador, autor e responsvel, sendo que, dependendo da natureza do evento em curso, um dos trs papis tende a se sobressair. Porm, h casos em que o animador, autor e responsvel no so a mesma pessoa. Pensemos em algum que recita um poema de um escritor famoso ou em um poltico que reproduz oralmente um discurso preparado por outrem. A pessoa que profere estas palavras ser o animador, mas no o autor. Algum que conta uma piada de contedo racista, pode no ser o autor da piada, mas ser sempre o animador e, muitas vezes, o responsvel, se adere ao posicionamento preconceituoso. De igual modo, podemos expressar opinies, crenas e sentimentos que no so nossos (GOFFMAN, 1983: 145). Ao descrever o que ocorre em uma conferncia, Goffman (1983) classifica trs modos de animar as palavras faladas: leitura em voz alta, memorizao e fala espontnea. Segundo o autor, a leitura em voz alta um modo de proferimento freqente em conferncias. Porm, este recurso deve ser usado com reserva uma vez que o conferencista pode cansar a audincia ou dar a impresso de que no domina suficientemente o tema. Goffman (1983) observa que, numa situao de fala pblica como a conferncia, pode-se lanar mo de recursos teatrais e recorrer a notas escritas para dar a impresso de fala espontnea, quando, na verdade, trata-se de uma fala em grande medida memorizada. Assim, o animador articula sua fala de modo a passar uma impresso de que a construo textual responde imediatamente situao apresentada pelo evento em curso. Segundo o autor, a preferncia pela fala espontnea (ou sua18

O termo em ingls principal foi traduzido por Branca Teles Ribeito Pedro Garces (1998) por responsvel.

33 simulao) ocorre porque ela parece ser o ideal geral para o evento em questo. Cada um desses modos de fala estabelece uma relao diferente entre falante e ouvinte, ou seja, o falante assume enquadres diferentes em relao audincia dependendo do modo de proferimento que utiliza (leitura, memorizao ou fala espontnea). Para as finalidades deste estudo, nos interessa tambm a noo de falante primrio, ou seja, algum que, em certas ocasies, reconhecido como tendo o direito de manter o turno por algum tempo (BULBLITZ apud REINALDO, 1994). Assim como h diferentes modos de falar, h tambm modos particulares de ouvir De acordo com Goffman (1983), o ouvinte pode ter dois tipos de participao: i) ratificada quando o ouvinte reconhecido como participante oficial, direto da interao e ii) no ratificada quando se trata do ouvinte circunstancial, no reconhecido pelo falante como participante legtimo da interao, mas que, de alguma maneira, pode acompanhar o que est sendo dito, intencionalmente ou no. Para os objetivos deste estudo, nos interessa apenas a noo de participao ratificada e sobre ela que iremos tratar a seguir. Os participantes ratificados podem ter trs status de participao: ouvinte endereado, ouvinte no endereado e audincia. O primeiro diz respeito quele ouvinte a quem o falante dirige suas palavras e sua ateno visual; o segundo, apesar de possuir status de participante legtimo, no possui prioridade no direcionamento da fala; o terceiro, a audincia, so ouvintes ratificados de interaes multi-participativas que ocorrem em contextos institucionais nos quais os ouvintes apreciam o que est sendo dito por outrem sem responder de forma direta, embora tenham o direito de faz-lo (cf. SILVA, 2002). Atravs da descrio detalhada das noes de falante e ouvinte, Goffman d uma importante contribuio para a anlise do quadro situacional em que se desenvolve a interao face a face.

2.2.2

O contexto situacional: a estrutura de participao e os processos de figurao

Numa interao face a face, falantes e ouvintes influenciam-se mutuamente. Conforme nos diz McDermott (apud ERICKSON, 1996: 284): as pessoas ao interagirem constituem ambientes umas para as outras. Tais ambientes interacionais, segundo Erickson & Shultz (1998), surgem dentro de um tempo-espao especfico e podem alterar-se de momento a momento, fazendo com que os papis dos participantes sejam reajustados e redistribudos, produzindo diferentes estruturas de participao. Assim, em um nico evento de interao, envolvendo as mesmas pessoas, pode haver mudanas nas estruturas de participao entre elas.

34 A estrutura de participao diz respeito aos arranjos estruturais da interao (PHILIPS, 1972), ou seja, aos nveis de organizao da interao face a face. Esta noo est associada aos papis dos interactantes, ao desempenho de uma identidade social. Logo, em eventos de interao face a face, os papis comunicativos e a identidade social dos participantes podem alterar-se configurando uma mudana de footing ou alinhamento (nos termos de GOFFMAN, 1979). Tal mudana re-enquadra as novas identidades e papis e, conseqentemente, redefine o contexto (QUENTAL, 1991: 93). A estrutura de participao envolve um conjunto de esquemas de conhecimentos scio-culturalmente partilhados que informa as pessoas sobre as maneiras de se portar e interagir nos vrios contextos que fazem parte de sua experincia. So esquemas de conhecimentos especficos de que as pessoas lanam mo em eventos comunicativos para a realizao de tarefas e aes sociais. Estes esquemas incluem o que sabemos sobre quadros interacionais especficos e estabelecem as maneiras de falar, de ouvir, de obter o turno e mant-lo, de conduzir e ser conduzido (ERICKSON & SHULTZ, 1998: 144). De modo semelhante, Goffman (1979) analisa os aspectos estruturais da interao face a face propondo a idia de footing. A noo de footing19 refere-se aos ajustes ou alinhamentos que os participantes precisam realizar cada vez que a situao de interao face a face muda. Ao mesmo tempo, uma mudana de footing implica uma mudana na projeo de identidade dos participantes de um evento comunicativo e sinaliza a forma em que um enunciado deve ser produzido e recebido (entendido) (GOFFMAN, 1979: 75). Segundo Reinaldo (1994: 16),(...) o conceito de footing designa a sinalizao das mudanas que ocorrem na estrutura de participao, traduzindo mudana na projeo de identidade ou na orientao dos participantes em relao uns aos outros e em relao interao, ou seja, sinalizando enquadramentos ou re-enquadramentos das atividades em andamento. Desse modo, os alinhamentos so marcados por traos lingsticos ou paralingsticos e representam, portanto, mudanas na maneira de interagir, as quais, por sua vez, se relacionam com a variao dos papis desempenhados pelos participantes.

A noo de footing refora a idia de que os eventos comunicativos face a face so pelo menos do ponto de vista interacional localmente planejados, pois as mudanas de enquadre ou da projeo de identidade acontecem on-line e in loco, ou seja, ocorrem no mesmo tempo-espao da interao.

19

Segundo Ribeiro e Garcez (1998), Erving Goffman, em seu livro Frame analysis, desenvolve o conceito de frame (enquadre) a partir da leitura que faz de Gregory Baterson. Footing, por sua vez, seria um desdobramento desta noo.

35 De modo geral, quando as pessoas interagem publicamente, elas estabelecem regras de convvio e de cooperao mtua para assegurar uma boa relao social e evitar possveis desconfortos ou constrangimentos. A quebra de tais regras pode ameaar a face das pessoas envolvidas na interao, isto , pode comprometer a autoimagem que elas projetam para si quando interagem socialmente. Conforme assevera Goffman ([1967] 1982: 33-4),20

sempre que a possibilidade fsica de interao discursiva surge, parece que um sistema de prticas, convenes e regras procedimentais entram em cena e funcionam como um meio de guiar e organizar o fluxo da mensagem.

Goffman (1982: 05) utiliza o termo face para se referir imagem do self delineada em termos de atributos socialmente aprovados j que, segundo o autor, todas as pessoas, em maior ou menor grau, esto preocupadas com a imagem que os outros tm delas, e em razo disto, esforam-se para passar uma auto-imagem positiva que julga ser compartilhada socialmente. Goffman (1967) apresenta os processos de figurao, isto , a dinmica do jogo das faces da seguinte maneira: a) uma pessoa est na face quando a conduta que assume apresenta uma imagem de si que internamente compatvel com julgamentos e evidncias de outrem; b) uma pessoa est na face errada quando informaes sobre o valor social dela vm tona e so incompatveis com a conduta que os outros atriburam a ela e, c) uma pessoa est fora da face quando ela participa de um contato social com outras pessoas sem saber o que se espera da conduta que os participantes deste contado devem assumir. Segundo o autor, se uma pessoa sente que est na face, ela reage com sentimentos de confiana, segurana e alvio. Por outro lado, se ela pressentir que est na face errada ou fora da face, provavelmente ir alimentar sentimento de vergonha e inferioridade, pois teme o que pode acontecer com sua reputao. Logo, ao sentir que sua face foi ameaada, a pessoa pode recuar, confundir-se, atrapalhar-se ou ficar momentaneamente incapacitada enquanto interactante (GOFFMAN, 1982: 08). O conceito de poise (traduzido aqui como postura, pose) importante no estudo das faces, pois refere-se a uma estratgia utilizada pelas pessoas na tentativa de administrar seu comportamento em situaes de ameaa de sua auto-imagem. Diz o autor que poise se refere capacidade de conter ou esconder qualquer sinal de vergonha durante um determinado contato social ou ainda ao processo pelo qual a pessoa sustenta uma impresso para os outros de que no perdeu a face. Atravs desta20

Estamos aqui traduzindo o termo spoken interaction como interao discursiva.

36 estratgia, portanto, as pessoas controlam seu constrangimento e ao mesmo tempo o constrangimento dos outros diante da situao de mal-estar. Nos processos de preservao de face, as pessoas podem assumir as seguintes orientaes: a) uma orientao defensiva para salvar a prpria face ou b) uma orientao protecionista para resguardar a face alheia. Assim, segundo Goffman (1967: 14), algumas prticas sero primariamente defensivas, enquanto outras sero basicamente

protecionistas. Porm, segundo o autor, ao assumir uma orientao protecionista, as pessoas geralmente tm o cuidado de no colocarem em risco suas prprias faces. Essa dinmica dos processos de figurao servir para corroborar a anlise dos comportamentos observados durante a realizao dos seminrios. Nosso objeto de reflexo ser retomado no tpico 5.3 A interao aluno x professor e aluno x aluno: o contexto situacional do seminrio (p. 83).

37 CAPTULO 3

CONSIDERAES SOBRE O SEMINRIO

O Dicionrio Eletrnico Houaiss da Lngua Portuguesa (2002) traz as seguintes acepes para o verbete seminrio:s.m. (1562-1575 cf. PaivSerm) 1 meio no qual algo se origina e do qual se propaga 2 (1624) canteiro onde se semeiam vegetais que depois sero transplantados 3 (1600) ECLES instituio educacional onde se formam os eclesisticos 4 conjunto dos educadores e dos alunos dessa instituio 5 congresso cientfico ou cultural, com exposio seguida de debate 6 grupo de estudos em que os estudantes pesquisam e discutem tema especfico 7 aula dada por um grupo de alunos em que h debate acerca da matria exposta por cada um dos participantes

Se observarmos no mbito social mais geral, iremos constatar os mltiplos sentidos do termo seminrio. No contexto da Internet, por exemplo, ao inserirmos a palavra seminrio na ferramenta de busca google 21 , so obtidos 811.000 resultados para o termo. Dos dez resultados iniciais, a maioria (resultados 1, 2, 3, 6, 7, 8 e 10) sinaliza a acepo 5 trazida pelo dicionrio Houaiss (2002) congresso cientfico ou cultural, com exposio seguida de debate, porm, nenhum resultado, dentre os dez primeiros, remete s acepes 6 grupo de estudos em que os estudantes pesquisam e discutem tema especfico ou 7 aula dada por um grupo de alunos em que h debate acerca da matria exposta por cada um dos participantes. Como observa Bezerra (2003), a bibliografia da rea da educao freqentemente recorre etimologia do termo seminrio numa tentativa de resgatar sua idia originria, ocasio de semear idias ou de favorecer sua germinao. O objetivo deste captulo apresentar algumas consideraes sobre o seminrio visto a partir de diferentes perspectivas tericas: dos estudos da Educao que o vem como uma tcnica de ensino, aos estudos etnolingsticos em que o seminrio pode ser considerado um gnero discursivo/textual, um evento comunicativo ou um evento de letramento. Para situar o seminrio como um evento de letramento, iremos tomar como base alguns aspectos tericos apresentados no primeiro captulos desta dissertao.

21

Consulta realizada no dia 15 de maro de 2006.

38 3.1 O seminrio no campo dos estudos da Educao

Para a didtica tradicional e a metodologia cientfica, o seminrio sempre foi visto como uma tcnica de ensino, uma prtica tipicamente acadmica presente nos cursos de graduao e ps-graduao (SEVERINO, 2000; LAKATOS & MARCONI, 1992; VEIGA, 2002), embora hoje esteja cada vez mais presente na escola, tanto no nvel fundamental quanto no mdio. Segundo Veiga (2002), o seminrio passa a integrar o cotidiano escolar brasileiro a partir dos anos trinta do sculo XX por influncia da Escola Nova, movimento que se opunha s prticas pedaggicas tidas como tradicionais. Um dos princpios bsicos do movimento era colocar o aluno no centro do processo pedaggico, lugar antes conferido ao professor. A aula expositiva tida pelos defensores do escolanovismo como um mtodo de ensino retrgrado, um monlogo do professor em que o aluno um mero expectador passivo passa a ser duramente criticada e em seu lugar so propostas outras tcnicas de ensino como os trabalhos em grupo, pesquisa, jogos criativos, dinmicas de grupo etc. O objetivo imprimir s prticas escolares um carter mais socializador e fazer os alunos terem um papel mais ativo e autnomo em sua aprendizagem. Surgem, portanto, as tcnicas de ensino socializado. De acordo com Veiga (2002: 103), as tcnicas de ensino socializado ou de grupo, j h alguns anos, vm sendo largamente utilizadas por professores, em substituio s aulas expositivas, muito criticadas pela pouca participao do aluno no processo de ensino/aprendizagem, ou seja, o uso de tais tcnicas faz parte de um esforo do professor em utilizar diferentes meios de ensino, de modo que a aula expositiva no seja a nica forma de interao entre professor e aluno, e entre estes e o objeto de ensino/aprendizagem. O ensino socializado foi concebido dentro do movimento da Escola Nova com inspirao nas pesquisas realizadas por profissionais de um campo da psicologia social chamada Dinmica de Grupo (cf. VEIGA, 2002: 103). Nos anos 50 e 60 do sculo XX, tais estudos vo inspirar vrias tcnicas de ensino/aprendizagem utilizadas nas escolas, dentre elas: o simpsio, o painel, o dilogo entre alunos, os grupos de cochicho, a discusso, a dramatizao, o workshop, a conferncias, o brainstorming e o seminrio. De acordo com Veiga (2002: 106), o seminrio possui um sentido amplo e outro restrito. O primeiro refere-se a um congresso cientfico, cultural ou tecnolgico que rene pesquisadores, tcnicos e estudantes de uma determinada rea do saber em torno do estudo e discusso de alguma questo ou algum tema pertinente ao campo. Este evento, em geral, rene um grupo relativamente grande de pessoas e coordenado por uma comisso de educadores, especialistas ou autoridades no assunto. Entretanto, o

39 seminrio, em seu sentido amplo, no um evento exclusivo do contexto universitrio e, portanto, no rene necessariamente apenas educadores, especialistas e alunos. H, por exemplo, seminrios destinados a empresrios de determinado setor, a categorias profissionais especficas (no necessariamente do mbito cientfico), a grupos culturais, polticos e religiosos. Em seu sentido restrito, o seminrio concebido como uma tcnica de ensino socializado na qual alunos se renem em grupos com o objetivo de estudar, expor, debater e discutir, com os demais integrantes da sala da aula, um ou mais temas de determinada rea do saber, sempre com a superviso do professor responsvel pela disciplina ou curso (VEIGA, 2002: 107). Por se dar no contexto da sala de aula, tambm conhecido como seminrio didtico (BEZERRA, 2003: 01). Semelhante a Veiga (2002), outros autores da rea de educao (LAKATOS & MARCONI, 1992; NRICI, 1977; RAMPAZZO, 2002; SEVERINO, 2000) tambm procuram definir o seminrio em seu sentido mais restrito, variando os termos, mas mantendo a mesma idia de base. Assim, o seminrio descrito como uma tcnica, um mtodo de estudo ou um procedimento didtico de sala de aula que conduz pesquisa, ao debate e/ou discusso de temticas, com utilizao especfica em cursos de graduao e psgraduao. Segundo Veiga (2002: 107), grande parte da literatura didtica que trata do assunto aborda apenasorientaes prescritivas sobre as caractersticas e os esquemas de funcionamento de um seminrio, sem, contudo, entrar na discusso de sua fundamentao terica. Uma orientao prioritria na caracterizao do seminrio relativa ao como organizar, que vai desde o preparo do tema, arranjo fsico da sala de aula, nmero de participantes, durao, at a realizao e avaliao do mesmo.

A partir da dcada de 1980, alguns estudiosos passam a apresentar algumas crticas a respeito do uso indiscriminado do seminrio em sala de aula. Balzan (apud VEIGA, 2002: 107-8) afirma que o seminrio, muitas vezes, constitui-se em uma tentativa mal fundamentada de inovar e substituir o monlogo do professor. O autor observa que, sem a devida fundamentao terica, o seminrio acaba se convertendo em uma aula expositiva dada pelos alunos, em que ocorre apenas a substituio do monlogo do professor pelo monlogo do aluno. Logo, sem discusso ou debate, a interao limita-se apenas exposio (pelo seminarista) e apreciao (pela audincia) do que est sendo dito, o que no contribui para a socializao de saberes, premissa fundamental nas tcnicas de estudo socializado. O autor tambm critica a extrema diviso do trabalho e sua descontinuidade, como tambm o risco de se cair em superficialidades e

40 generalizaes que nada contribuem para a problematizao de uma determinada temtica. Um estudo de Pierroti (1990 apud VEIGA, 2005) tambm aponta alguns problemas relacionados ao uso do seminrio, nesse caso, no curso de Licenciatura em Letras de uma determinada Universidade. Dentre os problemas verificados esto: apresentaes sem planejamento, montonas e cansativas, pesquisas superficiais, no aprofundamento do tema, pouca ou nenhuma participao dos alunos, ausncia de discusses ou questionamentos e falta de orientao do professor. Alm disso, o estudo constata que, em algumas disciplinas, o seminrio constitui a nica tcnica de ensino proposta para o perodo letivo e, muitas vezes, sem o devido planejamento e reflexo necessrios. Como resultado, o que ocorria era apenas a distribuio dos temas e das datas dos seminrios aos grupos e a posterior exposio oral dos alunos. Pinto (1999), ao investigar as prticas de transmisso de saber na universidade, constata que, em alguns casos, o seminrio acaba reproduzindo a estrutura da aula expositiva, semelhante, portanto, constatao apresentada por Balzan (apud VEIGA, 2002). Para Pinto (1999: 68), a nica diferena entre a aula expositiva e o seminrio que, enquanto na primeira o conhecimento transmitido pelo professor, no segundo, o aluno que assume tal responsabilidade. O autor salienta, no entanto, que mesmo esta diferena tende a desaparecer, pois comum que o professor faa longas intervenes durante e no final do seminrio, geralmente adicionando informaes ou reelaborando as j apresentadas. No mesmo estudo, o autor observa quea ateno dos alunos varia de acordo com quem est expondo o tema, sendo menor quando se trata de um de seus colegas, com conversas paralelas e poucas anotaes, e maior quando o professor, uma vez que este possui a autoridade pedaggica que falta naqueles, o que se traduz na reorientao fsica dos olhares dispersos na direo do professor e em uma retomada das anotaes (PINTO, 1999: 68)

E mais adiante afirma o que se verifica na prtica que os temas dos seminrios acabam sendo estudados apenas pelos professores e por aqueles que os apresentam (1999: 69), o que refora a tese de que o seminrio nada mais do que uma aula expositiva dada pelos alunos, pois h apenas uma transmisso de conhecimentos de quem estudou ou sabe de algo, para os que no sabem e no estudaram. Isso ocorre porque os alunos, em geral, no lem os textos que servem de base para o seminrio de outros grupos que no o seu. Algumas vezes a situao pode ser ainda pior, pois pode ser que mesmo dentro de um mesmo grupo, os alunos no dominem o tema como um todo, j que cada integrante s se preocupou em estudar a sua parte, isto acaba gerando

41 situaes imprevistas, como a que pudemos presenciar, de um grupo que no podia apresentar o seu seminrio porque a introduo havia faltado aula (PINTO, 1999: 70). Em um estudo realizado no contexto escolar em que se investigou a prtica do seminrio em uma turma de 8 srie do Ensino Fundamental, Silva (2005) verifica que o seminrio se assemelha bastante aula expositiva no que se refere sua organizao composicional, ou seja, aos seus aspectos estruturais. Segundo o autor,

O seminrio no ensino fundamental, na medida em que no objeto de ensino sistemtico, parece ter inspirao nas aulas expositivas dos professores. No seminrio em estudo, por exemplo, prevalece a estrutura composicional de uma aula expositiva (algum explicando algo e os outros apenas ouvindo) do que propriamente, a estrutura de um seminrio (com exposio seguida de discusso ou debate). (SILVA, 2005: 41).

Outro aspecto observado pelo autor que refora as semelhanas entre aula expositiva e seminrio o uso, pelos alunos, das expresses retricas eu vou falar sobre... (no incio da exposio) e alguma dvida no final, expresses comumente usadas pelos professores com a mesma finalidade em suas aulas expositivas. Ao mesmo tempo, a ausncia de discusso e debate faz com que a exposio oral seja o nico meio de tratar das temticas, no havendo, portanto, problematizaes, comentrios ou aprofundamentos das mesmas (SILVA, 2005: 39-40). Ao comparar o resultado destes estudos, possvel observar que os problemas relacionados ao uso do seminrio so muito semelhantes tanto na escola como no ensino superior, o que justifica a necessidade de se buscar meios para tornar a prtica do seminrio melhor embasada, para que ele se torne um verdadeiro momento de socializao e apropriao de saberes, e, alm disso, constitua-se em uma possibilidade real de aquisio de prticas de letramento importantes para a vida acadmica e para o exerccio da cidadania no mundo moderno.

3.2 O seminrio no campo dos estudos (etno)lingsticos e da Lingustica Aplicada

Saindo das reas da didtica tradicional e da metodologia cientfica que concebem o seminrio como uma tcnica de ensino socializado e entrando nos campos da (Etno)lingsti