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Assis, Olney QueirozManual de antropologia jurídica/ Olney Queiroz Assis,Vitor Frederico Kumpel. — SãoPaulo : Saraiva, 2011.1. Antropologia jurídica 2.Direito - Brasil 3. Direito eantropologia4. Sociologia jurídica I.Kumpel, Vitor Frederico. II.Título.10-06861 CDU-34:301

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Índice para catálogo sistemático:1. Antropologia jurídica 34:3011. Antropologia jurídica 34:3012. Direito e antropologia 34:301

3. Sociologia jurídica 34:301

Diretor editorial Antonio Luiz de Toledo PintoDiretor de produção editorial Luiz Roberto Curia

Gerente de produção editorial Lígia AlvesEditora Manuella Santos de Castro

Assistente de produção editorial Clarissa BoraschiMaria

Preparação de originais Maria Izabel BarreirosBitencourt Bressan / Eunice Aparecida de Jesus

Arte e diagramação Cristina Aparecida Agudo deFreitas / Mônica Landi

Revisão de provas Rita de Cássia Queiroz Gorgati/ Marie Nakagawa

Serviços editoriais Ana Paula Mazzoco / ElaineCristina da Silva

Capa IDÉE arte e comunicaçãoProdução gráfica Marli Rampim

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Produção eletrônica Ro Comunicação

Data de fechamento da edição:11-10-2010

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Nenhuma parte desta publicação poderá serreproduzida por qualquer meio ou forma sem a

prévia autorização da Editora Saraiva.A violação dos direitos autorais é crime estabelecido

na Lei n. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 doCódigo Penal.

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SUMÁRIO

I. ANTROPOLOGIA

1. Conceito e objeto1.1. Antropologia e humanismo

1.1.1. Etapas do humanismo1.2. Objeto teórico e áreas de estudo

2. Antropologia cultural2.1. Etnografia e etnologia2.2. Etnologia e antropologia2.3. Antropologia cultural e antropologia social2.4. Antropologia e sociologia

II. PRÉ-HISTÓRIA DA ANTROPOLOGIA

1. Descoberta do novo mundo2. Estranhamento

2.1. Fascínio pelo estranho2.2. Recusa do estranho

3. Choque de culturas3.1. Ocidente x Oriente3.2. Hegemônica x minoritária

III. RACISMO

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1. Doutrina racista1.1. Raça e genética1.2. Cultura x civilização1.3. Diversidade de culturas

2. Diferenças raciais e sociais

IV. ANTROPOLOGIA E DIREITO

1. Conexões1.1. Aproximações e afastamentos1.2. O fenômeno jurídico1.3. Estudo do direito

2. Antropologia jurídica2.1. Pluralismo jurídico2.2. Justiça estatal x justiça comunitária

V. NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA

1. Projeto antropológico1.1. Jean Jacques Rousseau (1712-1778)1.2. Limitações do século XVIII

2. Evolucionismo sociológico3. Evolucionismo biológico

3.1. Jean-Baptiste Lamarck (1744 – 1829)3.2. Charles Darwin (1809 – 1882)

4. Evolucionismo antropológico

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VI. EVOLUCIONISMO

1. Antropólogos evolucionistas1.1. Bachofen (1815 – 1887)

1.1.1. Direito materno x direito paterno1.2. Edward Tylor (1832 – 1917)

2. Temas do evolucionismo2.1. Sociedades simples ou primitivas2.2. Parentesco2.3. Religião e magia

3. Críticas ao evolucionismo3.1. Críticas ao evolucionismo antropológico

VII. EVOLUCIONISMO E DIREITO

1. Religião e direito1.1. Casamento religioso

2. Juristas e evolucionismo2.1. Henry Lévy-Bruhl2.2. Outras manifestações

VIII. LEWIS MORGAN (1818 – 1881)

1. Antropologia social e parentesco2. Morgan e o marxismo3. Comunidade gentílica

3.1. Princípio da solidariedade3.2. Solidariedade e costume

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4. Fim da solidariedade4.1. Desigualdade econômica

IX. FRANZ BOAS (1858 – 1942)

1. Antropologia no século XX2. Etnografia

2.1. Reconstrução da cultura3. Cultura e raça

3.1. Cultura e segregação3.2. Cultura e símbolos

4. Difusionismo4.1. Difusionismo norte-americano

4.1.1. Ruth Benedict (1887 – 1948)4.1.2. Edward Sapir (1884 – 1939)

5. Críticas ao difusionismo6. Difusionismo e direito

6.1. Difusão da tópica6.2. Casos problemáticos

X. BRONISLAW MALINOWSKI (1884 – 1942)

1. Funcionalismo2. Pesquisa de campo3. Fato e totalidade

3.1. Kula4. Natureza humana e cultura

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4.1. Ambientes: primário e secundário5. Instituições

5.1. Instituição e função5.2. Disfunção das instituições

6. Direito e costume6.1. Mito e direito

7. Instituição e direito7.1. Instituição e teoria normativa7.2. Teoria institucionalista

7.2.1. Mérito da teoria institucionalista

XI. RADCLIFFE-BROWN (1881 – 1955)

1. Teoria funcionalista1.1. Estrutura e função1.2. Família elementar

2. Estrutura social e cultura3. Crítica ao funcionalismo

3.1. Problema do método4. Sociedade e direito

4.1. Funcionalismo e direito4.2. Direito: funcionalismo e estruturalismo

XII. ÉMILE DURKHEIM (1858 – 1917)

1. Autonomia das ciências sociais1.1. Fato social

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2. Força dos fatos sociais2.1. Estudo do suicídio2.2. Antropologia e religião

2.2.1. Sagrado e profano3. Direito e solidariedade

3.1. Direito e sociedade complexa4. Justiça e retribuição

4.1. Chimpanzés e Kikuyus

XIII. MARCEL MAUSS (1872 – 1950)

1. Teoria do fato social total2. Sistema do dom

2.1. Obrigação de dar2.2. Obrigação de restituir2.3. Quarta obrigação

3. Sistema de prestações totais3.1. Potlatch3.2. Kula

4. Dom e guerra

XIV. DOM NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

1. Dom: fato social total1.1. Dons entre amigos1.2. Dom e caritas

2. Dom e utopia

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2.1. Dom e excluídos2.1.1. A demanda do dom

2.2. Dom e objeto sagrado

XV. NEOEVOLUCIONISMO

1. Evolucionismo do século XX1.1. Leslie Alvin White (1900 – 1975)1.2. Vere Gordon Childe (1892 – 1957)

2. Marshall Sahlins (1930)2.1. Primeiro período2.2. Segundo período2.3. Mitopráxis2.4. Revolução cultural havaiana

2.4.1. Visita do Capitão Cook2.4.2. Abolição do sistema de tabus

3. Crítica ao neoevolucionismo4. Neoevolucionismo e direito

4.1. Friedrich Engels (1820 – 1895) e KarlKautsky (1854 – 1938)4.2. Evgeni Bronislavovich Pachukanis (1891 –1937)

XVI. ESTRUTURALISMO

1. Introdução1.1. Estrutura: significado restrito

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1.2. Estrutura: significado genérico2. Influência de Saussure3. Lévi-Strauss e o estruturalismo

3.1. Estrutura e consciência3.2. Sistemas de culturas3.3. Organização dualista

4. Estruturalismo e direito4.1. Estrutura e hierarquia

XVII. CLAUDE LÉVI-STRAUSS (1908-2009)

1. Símbolo e sociedade1.1. Linguística e antropologia1.2. Linguagem e cultura

2. Sociedades primitivas

XVIII. NOVA ANTROPOLOGIA AMERICANA

1. Clifford Geertz (1926 – 2006)1.1. Cultura e religião1.2. Cultura e ideologia1.3. O método1.4. Brigas de galo

2. David Schneider (1918-1995)2.1. Parentesco e cultura2.2. Natureza e cultura2.3. Código de conduta e laços de sangue

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3. Símbolo e direito

XIX. CULTURA

1. Cultura como objeto da antropologia1.1. Cultura: termo ambíguo1.2. Surgimento da cultura1.3. Cultura e valores1.4. Pluralidade de culturas

2. Cultura e direito2.1. Termo cultura: uso comum2.2. Fluxo de culturas

2.2.1. A imigração3. Direito de ser: igual e diferente

3.1. Direito e cidadania3.2. Direito e minorias

XX. PROCESSO CULTURAL

1. Mudança cultural1.1. Aspectos sincrônicos

1.1.1. Endoculturação1.2. Aspectos diacrônicos

1.2.1. Invenção1.2.2. Difusão e aculturação

2. Cultura e ambiente

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2.1. Ambiente e direito2.2. Atividade econômica x defesa do ambiente2.3. Relação custo/benefício2.4. Urgência do problema

XXI. CIÊNCIA JURÍDICA

1. Modelo teórico dominante1.1. Sistema de normas1.2. Norma e proposição1.3. Norma e interpretação

2. Modelo teórico emergente2.1. Zetética jurídica2.2. Zetética e dogmática

BIBLIOGRAFIA

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I ANTROPOLOGIA

1. CONCEITO E OBJETOAdam Kuper (2002: 11) relata que, em 1917,

Robert Lowie declarou que cultura é o únicoassunto da antropologia, assim como a consciência éda psicologia, a vida é da biologia e a eletricidade éum campo da física. Alguns antropólogoscontestaram dizendo que o verdadeiro tema daantropologia é a evolução humana. Na perspectivada cultura ou da evolução humana, antropologia éuma ciência que se interessa por ideias, valores,símbolos, normas, costumes, crenças, invenções,ambiente etc., portanto, encontra-se associada aoutras ciências (direito, sociologia, política, história,geografia, linguística), motivo pelo qual suaautonomia não é universalmente reconhecida, daí asdisputas ou dificuldades em relação à determinaçãode seu objeto de estudo.

Para Lévi-Strauss (2003: 386) a antropologia nãose distingue das outras ciências humanas e sociaispor um objeto de estudos que lhe seja próprio.Segundo ele, a história quis que a antropologiacomeçasse pelo estudo das sociedades simples,também denominadas sociedades primitivas,

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sociedades arcaicas ou sociedades frias. Mas esseinteresse também é partilhado por outras ciências,inclusive pelo direito. Mesmo quando a antropologiavolta-se para o estudo das sociedades complexas,também denominadas sociedades civilizadas,sociedades modernas ou sociedades quentes,percebe-se que aí os vínculos com o direito e asdemais ciências são até mais visíveis. Há, portanto,muitos pontos de contato entre antropologia edireito, fato que ressalta o aspecto interdisciplinardessas duas áreas do conhecimento e justifica, nosseus estudos, o interesse de uma área pela outra.

Os antropólogos, de modo geral, entendem quea antropologia visa conhecer o homem inteiro, ohomem em sua totalidade, isto é, em todas associedades e em todos os grupos humanos. Esseentendimento confere à antropologia um trípliceaspecto: a) de ciência social: na medida em queprocura conhecer o homem como indivíduointegrante de sociedades, comunidades e gruposorganizados; b) de ciência humana: quando procuraconhecer o homem através de sua história, suascrenças, sua arte, seus usos e costumes, sua magia,sua linguagem etc.; c) de ciência natural: quandoprocura conhecer o homem por meio de suaevolução, seu patrimônio genético, seus caracteresanatômicos e fisiológicos.

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1.1. Antropologia e humanismoAntropologia, em sentido etimológico, significa

o estudo do homem. Para Abbagnano (2003: 67), é aexposição sistemática dos conhecimentos que se têma respeito do homem. Visa ela, portanto, fundar ouconstituir um saber científico que toma o homemcomo objeto. Mas, conforme Laplatine (2006: 13), osantropólogos não estão de acordo com apossibilidade de o homem poder estudarcientificamente o homem. Há, segundo ele, os quepensam, como Radcliffe-Brown, que as sociedadessão sistemas naturais que devem ser estudadossegundo os métodos comprovados pelas ciências danatureza, e os que pensam, como Evans-Pritchard,que é preciso tratar as sociedades não comosistemas orgânicos, mas como sistemas simbólicos.Para estes últimos, longe de ser uma “ciência naturalda sociedade”, a antropologia deve ser consideradauma “arte”.

Para Lévi-Strauss (2003: 387), a antropologiaprocede de certa concepção do mundo ou de umamaneira original de colocar os problemas, uma eoutra descoberta por ocasião do estudo defenômenos sociais que tornam manifestas certaspropriedades gerais da vida social. Por essas razões,entende que a antropologia funda um humanismodemocrático que clama pela reconciliação do homemcom a natureza.

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1.1.1. Etapas do humanismoEm estudo intitulado Os três humanismos, Lévi-

Strauss (1993: 277 a 280) constata que, para a maioriadas pessoas, a antropologia aparece como umaciência nova, um refinamento e uma curiosidade dohomem moderno pelos objetos, costumes e crençasdos povos ditos selvagens. Observa, porém, que aantropologia não é nem uma ciência à parte, nem umaciência nova; é a forma mais antiga e geral do que secostuma designar por humanismo. O humanismo,segundo o autor, pode ser decomposto em trêsetapas: a) a da Renascença; b) a dos séculos XVIII eXIX; e c) a atual.

O humanismo da Renascença redescobre aantiguidade greco-romana e faz do grego e do latim abase da formação intelectual. Nesse sentido, esboçauma primeira forma de antropologia, na medida emque reconhece que nenhuma civilização pode pensara si mesma, se não dispuser de algumas outras quelhe sirvam de comparação. A Renascença reencontra,na literatura antiga, noções e métodos esquecidos;porém, mais especialmente, encontra o meio decolocar sua própria cultura em perspectiva,confrontando as concepções renascentistas com asde outras épocas e lugares. Através da língua (gregoe latim) e dos textos clássicos, os homens daRenascença encontraram um método intelectual quepode ser denominado técnica do estranhamento.

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O humanismo dos séculos XVIII e XIX atuanuma extensão mais ampla. O progresso daexploração geográfica colocou o homem europeu emcontato com o acervo cultural das civilizações maislongínquas, como China, Índia e América. Trata-sede um humanismo ligado aos interesses industriais ecomerciais que lhe serviam de apoio, motivo peloqual, mesmo diante da multiplicidade cultural, carregavalores ligados ao etnocentrismo, na medida em queestabelece a identificação do sujeito com ele mesmo,e da cultura com a cultura europeia.

O humanismo atual, por intermédio daantropologia, percorre sua terceira etapa ao focar associedades primitivas, as últimas civilizações aindadesdenhadas. Para Lévi-Strauss, esta será, semdúvida, a última etapa, porque, após ela, o homemnada mais terá para descobrir sobre si mesmo, aomenos em termos de extensão.

Os dois primeiros humanismos, segundo ele,estavam limitados em superfície e qualidade,especificamente porque: a) as civilizações antigastinham desaparecido e só poderiam ser conhecidaspelos textos ou monumentos; b) as civilizaçõeslongínquas (Oriente e Extremo Oriente), ainda quepossuíssem textos e monumentos, só mereciaminteresse por suas produções mais eruditas erefinadas; c) as sociedades primitivas nãodespertavam interesse porque não possuíam

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documentos escritos e a maioria delas nem sequerpossuía monumentos figurados. Para superar essaslimitações e preconceitos, a antropologia depara-secom a necessidade de dotar o humanismo de novosinstrumentos de investigação.

A antropologia, conforme Lévi-Strauss,ultrapassa o humanismo tradicional em todos ossentidos, visto que seu terreno engloba a totalidadeda terra habitada, enquanto seu método reúneprocedimentos que provêm tanto das ciênciashumanas e sociais como das ciências naturais,portanto, de todas as formas do saber. No seuestágio atual, a antropologia fez progredir oconhecimento em três direções: a) em superfície,porque se interessa por todas as sociedades, sejamsimples ou complexas; b) em riqueza dos meios deinvestigação, porque, em função das característicasparticulares das sociedades primitivas, introduziunovos modos de conhecimento que podem seraplicados ao estudo de todas as outras sociedades,inclusive as sociedades contemporâneas maiscomplexas, como é o caso da sociedade europeia eda norte-americana; c) na ampliação dosbeneficiários, porque, ao contrário do humanismoclássico restrito aos beneficiários da classeprivilegiada, alcança as populações das sociedadesmais humildes.

A antropologia marca, portanto, o advento de

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um humanismo duplamente universal: a) primeiro:procurando sua inspiração no cerne das sociedadesmais humildes e desprezadas, proclama que nada dehumano poderia ser estranho ao homem, e fundaassim um humanismo democrático que se opõe aosque o precederam, criados para privilegiados, a partirde civilizações privilegiadas; b) segundo:mobilizando métodos e técnicas tomados deempréstimo a todas as ciências, para fazê-los servirao conhecimento do homem, a antropologia clamapela reconciliação do homem e da natureza, numhumanismo generalizado.

Há, portanto, na base dessa nova antropologia aafirmação do princípio de alteridade e a negação doetnocentrismo. Afirmar a alteridade significa fazerum apelo ao homem para reconhecer-se no outro,especificamente para reconhecer-se nas carências dooutro e enxergar seus privilégios como expressãodireta das privações do outro. Negar oetnocentrismo significa posicionar-se contra aatitude que consiste em supervalorizar a própriacultura e considerar as demais como inferiores,selvagens, bárbaras e atrasadas. O nacionalismoexacerbado é uma via para o etnocentrismoprincipalmente quando se manifesta por meio decomportamento agressivo, de atitudes desuperioridade e de hostilidade. A discriminação, oproselitismo, a violência, a agressividade são formas

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de expressar o etnocentrismo e negar a alteridade.A ausência de alteridade e a presença do

etnocentrismo explicam por que algumas práticas dosíndios da costa brasileira, como a antropofagia e anudez, foram condenadas e consideradas selvagenspelos europeus. Isso certamente ocorreu porque aavaliação dos padrões culturais dos índios não foifeita em relação ao contexto cultural dos própriosíndios, mas de acordo com os valores éticos e moraispredominantes na cultura europeia.

1.2. Objeto teórico e áreas de estudoA antropologia, como dito, é uma ciência

bastante diversificada. Aborda o homem de todas associedades, portanto, uma variedade de aspectos darealidade humana, razão pela qual não tem sido tarefafácil para os antropólogos descrever os reaiscontornos do seu objeto de estudo.

Nos seus primeiros momentos (meados doséculo XIX), a antropologia elege como objeto oestudo das sociedades primitivas. Essas sociedadesnão pertencem à civilização ocidental, motivo peloqual é possível apontar algumas características queas distinguem das sociedades europeias: a) sãosociedades de dimensões estritas; b) tiveram poucocontato com sociedades vizinhas; c) possuem umatecnologia pouco desenvolvida; d) é baixa a divisãodo trabalho social, no entanto, há uma menor

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especialização das atividades e funções sociais; e)são sociedades simples, porque possuem um grau decomplexidade menor.

No século XX, a antropologia amplia seu objetode estudo para alcançar todas as sociedades e todosos grupos humanos em todas as épocas. Assim, deacordo com Lévi-Strauss (2003: 399) e Laplatine(2006: 20), hoje, o objeto teórico da antropologiaconsiste no estudo do homem inteiro. Ela visa aoconhecimento completo do homem. Isso implica oestudo do homem e das culturas em todas as suasdimensões. A antropologia considera, portanto,todos os aspectos da existência humana, razão pelaqual pode ser dividida, no mínimo, em quatro áreasde estudo, a saber:

Antropologia cultural ou social: Consiste noestudo de tudo que constitui as sociedadeshumanas: seus modos de produção econômica, suasdescobertas e invenções, suas técnicas, suaorganização política e jurídica, seus sistemas deparentesco, seus sistemas de conhecimento, suascrenças religiosas, sua língua, sua psicologia, suascriações artísticas.

Antropologia biológica ou física: Consiste noestudo de problemas como o da evolução do homema partir das formas animais; de sua distribuição atualem grupos étnicos, distinguidos por caracteresanatômicos ou fisiológicos. Também verifica as

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relações entre o patrimônio genético e os espaçosgeográfico, ecológico e social, ou seja, analisa asparticularidades morfológicas e fisiológicas ligadas adeterminado ambiente, bem como a evolução dessasparticularidades. Investiga a genética daspopulações, que permite discernir o inato e oadquirido e a interação entre ambos.

Antropologia pré-histórica: Consiste no estudodo homem através dos vestígios materiais enterradosno solo; visa reconstituir as sociedadesdesaparecidas, tanto em suas técnicas eorganizações sociais quanto em suas produçõesculturais e artísticas.

Antropologia linguística: Considera a linguagemparte do patrimônio cultural de uma sociedade, omeio pelo qual ela expressa seus valores, crenças epensamentos. Consiste no estudo dos dialetos e dastécnicas modernas de comunicação.

Essas áreas, como dito, estão correlacionadas detal modo que o estudo de uma inexoravelmentevincula as demais. Além disso, os resultados daspesquisas e dos estudos desenvolvidos em todasessas áreas da antropologia repercutem no direito.Contudo, são os resultados na área da antropologiacultural ou social que têm influenciado maisdiretamente a disciplina jurídica. Enfim, osconhecimentos obtidos pelas pesquisasantropológicas repercutem de maneira bastante

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ostensiva no campo das investigações jurídicas,principalmente as pesquisas na área da antropologiacultural.

2. ANTROPOLOGIA CULTURALA antropologia cultural ou social é,

habitualmente, dividida em: a) etnografia: é oprimeiro passo da pesquisa antropológica.Geralmente denominada pesquisa ou trabalho decampo, ocupa-se, portanto, da descrição de culturasconcretas; e b) etnologia: é o prolongamento daetnografia, ou seja, é o segundo passo da pesquisa.Ocupa-se do estudo da cultura e da investigação dosproblemas teóricos que brotam da análise doscostumes humanos.

Em virtude da ampliação do campo de estudo edas tarefas do antropólogo, Lévi-Strauss (2003: 394 a399), com o intuito de delimitar o objeto de estudo daantropologia, aponta algumas diferenças, quemerecem ser anotadas, entre: a) etnografia, etnologiae antropologia; b) antropologia cultural eantropologia social; c) antropologia e sociologia; d)antropologia e história.

2.1. Etnografia e etnologiaEtnografia é o trabalho de campo, como

dissemos, o primeiro estágio da pesquisa

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antropológica. Consistente na observação, descriçãoe análise de grupos humanos considerados em suasparticularidades (frequentemente escolhidos entreaqueles que mais diferem dos grupos ditoscivilizados), visa à reconstituição, tão fiel quantopossível, da vida de cada um deles. A etnografiaengloba também os métodos e as técnicas declassificação, descrição e análise dos fenômenosculturais particulares (armas, instrumentos, crenças einstituições). No caso de objetos materiais, essasoperações prosseguem geralmente no museu, quepode ser considerado, sob esse aspecto, como umprolongamento do campo. Esse trabalho de campo éconsiderado a própria fonte da pesquisa. Em vistadisso, não se trata de conhecimento secundárioapenas para ilustrar uma tese.

Etnologia é o segundo estágio da pesquisa. Oetnólogo utiliza, de modo comparativo, osdocumentos apresentados pelo etnógrafo e elabora oprimeiro passo em direção à síntese, a qual podeoperar-se em três direções: a) geográfica, quandoprocura integrar conhecimentos relativos a gruposvizinhos; b) histórica, quando visa reconstituir opassado de uma ou várias populações; c)sistemática, quando isola, para melhor entender,determinado tipo de técnica, de costume ou deinstituição. A etnologia, portanto, compreende aetnografia como seu passo preliminar, e constitui

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seu prolongamento.

2.2. Etnologia e antropologiaDurante muito tempo considerou-se que a

dualidade (etnografia/etnologia) bastava-se a simesma. O passo ulterior da síntese era deixado aoutras disciplinas (sociologia, história, filosofia). Aocontrário, nos países que utilizam os termosantropologia social ou antropologia cultural osconhecimentos estão ligados a uma segunda e últimaetapa da síntese, tomando por base as conclusões daetnografia e da etnologia. A antropologia visa,portanto, ao conhecimento global do homem,abrangendo seu objeto em toda a sua extensãohistórica e geográfica; aspira a um conhecimentoaplicável ao conjunto do desenvolvimento humanodesde os hominídeos até os contemporâneos, etendendo para conclusões válidas para todas associedades humanas, desde a grande cidademoderna até a menor tribo aborígine. Pode-se, pois,dizer, nesse sentido, que existe entre a antropologia ea etnologia a mesma relação que se definiu antesentre esta última e a etnografia.

Etnografia, etnologia e antropologia nãoconstituem disciplinas diferentes, ou concepçõesdiferentes dos mesmos estudos. São etapas oumomentos de uma mesma pesquisa, e a preferênciapor este ou aquele desses termos exprime somente

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uma atenção predominante voltada para um tipo depesquisa, que não pode ser exclusivo dos doisoutros. De qualquer modo, nos dias atuais, há certoacordo em usar o termo antropologia em lugar deetnografia e de etnologia como o mais apto paracaracterizar o conjunto desses três movimentos dapesquisa.

2.3. Antropologia cultural e antropologia socialO termo antropologia social é usado pelos

antropólogos britânicos, enquanto os norte-americanos preferem o termo antropologia cultural.Ainda que essa divergência na adoção de cada termocorresponda a preocupações teóricas bem definidas,não há, como assinala Lévi-Strauss, grandesdiferenças entre o sentido das palavras cultural esócial quando aplicadas à antropologia.

Lévi-Strauss anota que a noção de cultura é deorigem inglesa, porque foi Tylor o primeiro a defini-lacomo o conjunto complexo que inclui conhecimento,crença, arte, moral, lei, costume e várias outrasaptidões e hábitos adquiridos pelo homem comomembro de uma sociedade. De acordo com essadefinição, cultura relaciona-se com as diferençasexistentes entre o homem e o animal, dando assimorigem à oposição, que ficou clássica desde então,e n t re natureza e cultura. Nessa perspectiva ohomem figura essencialmente como homo faber.

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Costumes, crenças, leis e instituições aparecementão como técnicas de natureza intelectual queestão a serviço da vida social e a tornam possível,assim como as técnicas agrícolas tornam possível asatisfação das necessidades de nutrição, ou astécnicas têxteis, a proteção contra as intempéries.Nessa trilha alguns teóricos americanos entendemque a antropologia social se reduz ao estudo daorganização social, portanto, trata-se apenas de umcapítulo essencial entre todos os que formam aantropologia cultural.

Radcliffe-Brown, todavia, extrai do termoantropologia social um significado mais profundo,quando define o objeto de suas próprias pesquisascomo sendo as relações sociais e a estrutura social.Nessa perspectiva o interesse do estudo concentra-se menos nas técnicas e mais nas crenças, costumese instituições. Não é mais o homo faber que seencontra no primeiro plano, mas o grupo, esteconsiderado como o conjunto das formas decomunicação que fundamentam a vida social.

Não há, observa Lévi-Strauss, nenhumaoposição entre as duas perspectivas. Prova distoestá na evolução do pensamento sociológicofrancês. Nesse sentido, Émile Durkheim mostra que énecessário estudar os fatos sociais como coisas(perspectiva da antropologia cultural), enquantoMarcel Mauss complementa essa visão ao

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estabelecer que as coisas (objetos manufaturados,armas, instrumentos, objetos rituais) são, elasmesmas, fatos sociais (perspectiva da antropologiasocial). Pode-se então dizer que ambas (antropologiacultural e antropologia social) cobrem exatamente omesmo programa: a) uma, partindo das técnicas e dosobjetos para terminar na supertécnica, que é aatividade social e política, tornando possível econdicionando a vida em sociedade; b) outra,partindo da vida social para descer até as coisas nasquais ela imprime sua marca e até às atividadesatravés das quais ela se manifesta.

Pode-se, ainda, apontar uma diferença sutil entreantropologia social e antropologia cultural.

A antropologia social considera que todos osaspectos da vida social – jurídico, econômico,político, técnico, estético, religioso – constituem umconjunto significativo, e que é impossívelcompreender qualquer um desses aspectos semrecolocá-lo em conexão com os demais. Ela tende,pois, a operar o todo em direção às partes ou, pelomenos, dar uma prioridade lógica ao todo sobre aspartes. Além disso, verifica que uma técnica não temsomente um valor utilitário; preenche também umafunção e esta implica, para ser compreendida,considerações não apenas históricas, geográficas oufísico-químicas, mas também consideraçõessociológicas. O conjunto das funções recorre, por

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sua vez, a uma nova concepção, a de estrutura, e anoção de estrutura social adquiriu uma imensaimportância nos estudos antropológicoscontemporâneos.

A antropologia cultural, de certo modo, abrangeuma concepção análoga, embora por caminhosdiferentes. Assim, em lugar da perspectiva estática,apresentando o conjunto do grupo social como umaespécie de sistema ou constelação, adota umapreocupação dinâmica (transmissão da cultura) quepode levá-la a conclusão idêntica, a saber: que osistema das relações unindo entre si todos osaspectos da vida social desempenha um papel maisimportante, na transmissão da cultura, do que cadaum dos aspectos tomados isoladamente.

Enfim, quer a antropologia se proclame culturalou social, aspira sempre a conhecer o homem total,encarado, num caso, a partir de suas produções, nooutro, a partir de suas representações. Compreende-se assim que uma orientação culturalista aproxime aantropologia da tecnologia, da geografia e da pré-história, enquanto a orientação sociológica lhe criaafinidades mais diretas com a psicologia, a história ea arqueologia. Em ambos os casos há uma relaçãocom a linguística, porque a linguagem é ao mesmotempo o fato cultural por excelência (distinguindo ohomem do animal) e aquele por intermédio do qualtodas as formas de vida social se estabelecem e se

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perpetuam.

2.4. Antropologia e sociologiaEnquanto a antropologia, nos seus primeiros

momentos (século XIX), interessava-se pelo estudodas populações mais arcaicas do mundo (sociedadessimples), a sociologia sempre se interessou peloestudo das populações contemporâneas (sociedadescomplexas). Acontece que nos últimos tempos aantropologia também tem-se interessado pelo estudodos grupos contemporâneos. Como a antropologiatende cada vez mais a se interessar por essas formasmais complexas, torna-se difícil perceber a verdadeiradiferença entre antropologia e sociologia, visto queambas parecem colocar-se diante da mesma tarefa, namedida em que se interessam pelo mesmo objeto.

Ocorre, segundo Lévi-Strauss, que a sociologiaé estritamente solidária com o observador, na medidaem que toma por objeto a sociedade dele ou umasociedade do mesmo tipo. Vale dizer, o sociólogoexplica a sua própria sociedade, portanto, atuasempre do ponto de vista do observador. Já aantropologia tende a formular um sistema aceitável,tanto para o homem da sociedade simples como parao homem da sociedade complexa. Ou seja, oantropólogo visa atingir, em sua descrição desociedades estranhas e longínquas, o ponto de vistado indivíduo que pertence a essas sociedades (o

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indígena, o aborígine). Em síntese, a antropologiadistingue-se da sociologia na medida em que tende aser uma ciência social do observado, ao passo que asociologia tende a ser a ciência social doobservador.

Já a diferença fundamental entre antropologia ehistória não é nem de objeto, nem de objetivo, nemde método; tendo o mesmo objeto, que é a vidasocial; o mesmo objetivo, que é uma compreensãomelhor do homem; e um método no qual varia apenasa dosagem dos processos de pesquisa, elas sedistinguem pela escolha de perspectivascomplementares: a história organizando seus dadosem relação às expressões conscientes da vida social,a antropologia organizando seus dados em relaçãoàs condições inconscientes da vida social.

Essas diferenças estabelecidas por Lévi-Straussnão são consensuais, mas ajudam a entender oprocesso histórico de construção do saberantropológico, cujos primeiros momentos remontamao século XVI, quando alguns teóricos europeus,impulsionados pela descoberta do Novo Mundo,interessaram-se pelo estudo das sociedades antigas(Grécia e Roma) e das sociedades ditas primitivas.Nessa trilha, começaram a refletir e debater algunstemas que mais tarde se tornariam objeto de estudoda antropologia, motivo pelo qual o século XVI éconsiderado o início do período denominado pré-

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história da antropologia. Enfim, a descoberta doNovo Mundo colocou frente a frente indivíduos eculturas diferentes. Esse fenômeno suscitouproblemas que constituem objeto de reflexões emovimentam os estudos antropológicos e jurídicosaté os dias atuais, daí a importância de colocar emevidência alguns desses problemas.

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II PRÉ-HISTÓRIADA ANTROPOLOGIA

1. DESCOBERTA DO NOVO MUNDOA gênese da reflexão antropológica é

contemporânea à descoberta do Novo Mundo. Apartir desse período o problema dasdescontinuidades e das diferenças culturais seprojetou sobre a consciência ocidental de modosúbito e dramático.

Durante o século XVI a Europa foi invadida porescritos e crônicas a respeito dos povos até entãodesconhecidos. A maioria desses escritos estavaimpregnada de informações fantasiosas. Chegou-se aduvidar da condição humana do aborígine. A teoriamonogenista, segundo a qual todas as raçashumanas descendem de um único ramo, foi posta emdúvida. Muitos foram os relatórios, comunicados ecartas que se ocuparam em descrever as novas terrase suas gentes. Nesse sentido, as denominadasRelações Jesuítas, coletânea de relatórios enviadospelos missionários dessa congregação religiosa aosseus superiores. São 73 volumes repletos dedescrições e opiniões a respeito dos novos povos,

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dos produtos da terra, dos seus hábitos e costumes(MELLO, 1982: 187).

Sobre esses relatórios opina Barbachano (inMELLO, 1982: 188): “Em resumo, incansáveisviajantes e diligentes observadores, ambospossuídos de luminar confiança em seu destino,fosse este secular ou religioso, discorreram sobre otema de sempre: afinidades e diferenças entre oshomens e seus mundos sociais e culturais. Ideiaspreconcebidas, considerações precipitadas e umforte sabor passional, de humildade ou deinfantilismo permeiam o conteúdo das páginasescritas”.

2. ESTRANHAMENTOComo diz Lévi-Strauss, os homens da

Renascença, ao estudarem outras culturas,especialmente a cultura greco-romana,desenvolveram um método intelectual que pode serdenominado técnica do estranhamento.

Estranhamento significa perplexidade diante deuma cultura diferente. Essa perplexidade implicareconhecer que algo, antes considerado natural,passe a ser problemático. Assim, o encontro deculturas distintas e distantes pode provocar umnovo olhar sobre si mesmo e sobre os hábitos,práticas ou costumes antes considerados evidentes.Acima de tudo, permite reconhecer que existem

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outras culturas, que o homem é dotado de umaextraordinária aptidão para inventar diferentes modosde vida e formas de organização social. A variedadede culturas introduz diferenças entre os sereshumanos, mas também permite reconhecer algocomum a todos – a extraordinária capacidade deelaborar costumes, crenças, línguas, instituições,modos de conhecimento –, que aponta para umahumanidade plural (LAPLATINE, 2006: 21, 22).

A gênese da reflexão antropológica depara-secom esse fenômeno, que é a diversidade de culturas.Segundo Laplatine (2006: 38 a 53), o contato com ospovos das terras descobertas provocou, na Europa,o aparecimento de duas ideologias: a) o fascínio peloestranho: significa enaltecer a cultura dassociedades primitivas e censurar a cultura europeia;b ) a recusa do estranho: significa censurar e excluirtudo o que não seja compatível com a culturaeuropeia. Os desdobramentos e repercussões dessasideologias na sociedade europeia mostram de formaindubitável as conexões entre antropologia e direito.

2.1. Fascínio pelo estranhoA fascinação pelo estranho implica contrapor a

figura do bom selvagem à do mau civilizado. Nessesentido, as seguintes manifestações e relatos dehistoriadores, religiosos e viajantes: a) Las Casas:esse dominicano, em l550, opõe-se à classificação

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dos índios como bárbaros, afirmando que eles têmaldeias, vilas, cidades, reis, senhores e uma ordempolítica que em alguns reinos é melhor que a doseuropeus; b) Américo Vespúcio: sobre os índios daAmérica afirma que se trata de pessoas bonitas, decorpo elegante e que nenhum possui qualquer coisaque seja seu, pois tudo é colocado em comum; c)Cristóvão Colombo: sobre os habitantes do Caribeafirma que não há no mundo homens e mulheres nemterra melhor; d) La Hotan: em 1703 escreve que oshurons vivem sem prisões e sem tortura, passam avida na doçura, na tranquilidade e gozam de umafelicidade desconhecida dos europeus.

O fascínio por alguns aspectos da cultura dassociedades primitivas (simples) constitui a origemprincipal da crítica aos costumes europeus. Essafascinação também estabelece a crença de que aforma mais perfeita de vida humana é a que existiu noprimeiro período da humanidade (mito da idade deouro), ou a que se observa nos povos primitivos(mito do bom selvagem). Diderot, por exemplo,chegou a sugerir que as sociedades primitivasconstituíam um apogeu a partir do qual ahumanidade só conheceu decadência. A figura dobom selvagem, contudo, encontrará sua formulaçãomais sistemática e mais radical com Rousseau. NoBrasil é possível enxergar esse fascínio na obraliterária de José de Alencar, especialmente nos

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romances O guarani e Iracema. Cabe tambémmencionar o pensador luso-brasileiro Padre AntônioVieira, que, em seus Sermões, protestouveementemente contra a escravidão dos índios.

2.2. Recusa do estranhoA recusa do estranho implica contrapor a figura

do mau selvagem à do bom civilizado. Nesse sentidoas manifestações de alguns juristas e historiadores:a) Selpuvera: esse jurista espanhol, em 1550, afirmaque os europeus, por superarem as nações bárbarasem prudência e razão, mesmo que não sejamsuperiores em força física, são, por natureza, ossenhores; portanto, será sempre justo e conforme odireito natural que os bárbaros (preguiçosos eespíritos lentos) estejam submetidos ao império depríncipes e de nações mais cultas; b) Gomara: emseu livro História geral dos índios, escrito em 1555,afirma que a grande glória dos reis espanhóis foi a deter feito aceitar aos índios um único Deus, uma únicafé e um único batismo e ter tirado deles a idolatria, ocanibalismo, a sodomia, os sacrifícios humanos, eainda outros grandes e maus pecados, que o bomDeus detesta e que pune; c) Oviedo: na sua Históriadas Índias, de 1555, escreve que as pessoas daquele“país” são, por sua natureza, ociosas, viciosas, depouco trabalho, covardes, sujas e mentirosas; d)Cornelius de Pauw: no seu livro Pesquisas sobre os

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americanos, de 1774, refere-se aos índios americanoscomo raça inferior, insensíveis, covardes,preguiçosos, inúteis para si mesmos e para asociedade, e a causa dessa situação seria a umidadedo clima. Ainda no século XIX, Stanley compara osafricanos aos “macacos de um jardim zoológico”.Esses comentários serviram para dogmatizarpreconceitos, justificar a colonização e suas práticasviolentas, submeter os negros à escravidão e fundardoutrinas racistas.

Mesmo Hegel, em sua Introdução à história dafilosofia, percorre o caminho da recusa do estranhoao enfrentar o problema das diversidades culturais.Nesse sentido, elege a filosofia como critério deanálise e comparação das diferentes culturas.Estabelece que a filosofia é sincrônica com a cultura,portanto, ambas se desenvolvem conjuntamente.Assim, ali onde a filosofia é mais desenvolvida, acultura (instituições, formas de governo, moralidade,vida social, atitudes, hábitos e preferência de umpovo) também o será. É óbvio que com esse critériode comparação a cultura europeia, em relação àsdemais, aparece em um patamar mais elevado, motivopelo qual Hegel classifica os homens europeus comocivilizados e os nativos americanos e africanos comoselvagens.

Hegel, com base em critérios extraídos da suaprópria cultura, estabeleceu valorações para as

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culturas dos demais povos, razão por que passou aafirmar que os nativos africanos e americanos vivemem estado de selvageria e em situação deplorável;que as religiões desses povos são merassuperstições, motivo pelo qual os levam a divinizarvacas e macacos; que não possuem instituiçõessociais e por isso vivem inconscientes de si mesmos.Nessa trilha afirma “que a diferença entre os povosafricanos e asiáticos, por um lado, e os gregos eromanos e europeus, por outro, reside precisamenteno fato de que estes são livres e o são por si; aopasso que aqueles o são sem saberem que são, istoé, sem existirem como livres” (1974: 343, 344).

Assim, diante de culturas diferentes, algunsteóricos passaram a entender que havia duas formasde pensamento cientificamente observáveis e comleis diferentes: o pensamento lógico-racional doscivilizados (europeus) e o pensamento pré-lógico epré-racional dos selvagens ou primitivos (africanos,índios, aborígines). O primeiro era consideradosuperior, verdadeiro e evoluído; o segundo, inferior,falso, supersticioso e atrasado, cabendo aoseuropeus “auxiliar” os selvagens “primitivos” aabandonar sua cultura e adquirir a cultura “evoluída”dos colonizadores (CHAUÍ, 2002: 282).

A ideologia da recusa do estranho forneceu aocolonialismo as justificativas para o uso da força nosentido de escravizar os índios ou de integrá-los à

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cultura europeia. Essa ideologia também serviu paranegar humanidade aos negros africanos e submetê-los ao regime de escravidão nas colônias americanas.Assim, no Brasil, o colonizador europeu impôs a suacultura, mas uma cultura inspirada na ideologia darecusa do estranho, razão pela qual o direitobrasileiro, do período colonial, é essencialmente umdireito que visa garantir e perpetuar os interessesdos colonizadores. Na prática, trata-se de um modelojurídico que visa proteger uma economia colonialfundada na propriedade fundiária e cuja produçãodepende do uso da mão de obra escrava. Segundorelato de Stuart Schwarz (LOPES, 2000: 265), a cidadede Salvador, por volta do ano de 1700, tinhaaproximadamente 40.000 habitantes, dos quais 57%eram escravos.

Conforme relata Flávia Tavares, em excelentereportagem publicada nos jornais Washington Post eO Estado de S. Paulo (26-10-2008), “o Brasil é tidocomo o país com o maior número de negros fora daÁfrica. Há expectativa de que, ainda este ano, apopulação que se autodeclara negra ultrapasse a quese denomina branca. Ainda assim, os negrosbrasileiros têm os piores índices de educação esalários – a remuneração média dos negros é metadeda dos brancos e os negros ocupam apenas 3,5%dos cargos de chefia (...) somente 6 em cada 100jovens negros entre 18 e 24 anos frequentam

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instituições de ensino superior”. Ancorada em dadosestatísticos, a jornalista conclui que a pirâmidehierárquica de cargos e salários, tanto nas empresascomo nas escolas, possui uma base formadapreponderantemente por pessoas negras e, conformese vai subindo na hierarquia em direção ao topo dapirâmide, a situação se inverte, o número de pessoasnegras vão diminuindo em relação ao número depessoas brancas.

Em virtude da atual situação social em que seencontram negros e mulatos brasileiros, não éexagero afirmar que o modelo colonialista dedominação atravessou o período imperial, penetrouno período republicano e, de certo modo, permaneceaté hoje, porque ainda seguem em curso os seusefeitos devastadores. É importante fixar que aideologia da recusa do estranho, maquiada comoutros discursos, continua presente no mundocontemporâneo e, às vezes, até de forma maisviolenta que no período colonial.

3. CHOQUE DE CULTURASUma característica comum dos povos consiste

em repudiar as formas culturais (jurídicas, morais,religiosas, sociais, estéticas) com as quais não seidentificam. Isso se traduz pela repulsa diante demaneiras de viver, crer ou pensar que lhe sãoestranhas. Para gregos e romanos, tudo que não

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participava da sua cultura era catalogado comobárbaro. A civilização europeia utilizou o termoselvagem com o mesmo sentido. Os termos selvageme bárbaro evocam um gênero de vida animal, poroposição à cultura humana.

Essa atitude de repúdio ao estranho encontraguarida em muitas sociedades, sejam elas primitivasou civilizadas. A humanidade, conforme constataLévi-Strauss (1993: 334, 335), muitas vezes cessa nasfronteiras da tribo, do grupo linguístico ou da aldeia;a tal ponto que um grande número de populaçõesditas primitivas se autodesigna com um nome ques ignifica os homens (os bons, os excelentes, oscompletos), implicando assim que as outras tribos,grupos ou aldeias não participam das virtudes oumesmo da natureza humana, mas são, quando muito,compostos de maus, de malvados, de macacos daterra ou de ovos de piolho. Chega-sefrequentemente a privar o estrangeiro deste últimograu de realidade (ovo de piolho), fazendo dele umfantasma ou uma aparição.

Assim realizam-se situações curiosas, em quedois interlocutores se replicam cruelmente. Nasgrandes Antilhas, conforme relata Lévi-Strauss,alguns anos após a descoberta da América,enquanto os espanhóis enviavam comissões deinvestigação para pesquisar se os indígenas tinhamou não uma alma, os indígenas dedicavam-se a

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afogar brancos prisioneiros, a fim de verificar, poruma observação demorada, se seus cadáveres eramou não sujeitos à putrefação. Essa passagem ilustraum paradoxo: quem pretende estabelecer umadiscriminação cultural acaba por se identificar comaquilo que se pretende negar. O europeu, porexemplo, ao recusar humanidade ao africano, colocousob suspeita a sua própria humanidade.

Contra essa concepção, os grandes sistemasfilosóficos e religiosos (cristianismo, islamismo,budismo, estoicismo, kantismo, marxismo), bem comoas declarações dos direitos humanos, proclamaram aigualdade natural entre todos os homens e afraternidade que deve uni-los sem distinção de raçaou cultura. Ocorre, porém, que a declaração formal daigualdade natural entre todos os homens esbarra naexistência igualmente natural, que é a diversidade deculturas.

3.1. Ocidente x OrienteEdward Said (in KUPER, 2002: 261), na sua obra

Orientalismo, reinterpreta a oposição entrecivilização e barbárie, tema central no discursoocidental que incorpora a ideologia da recusa doestranho. Said afirma que todas as ciênciascoloniais têm uma estrutura comum que consiste emdividir os povos do mundo em dois grupos: nós (oscivilizados: europeus e norte-americanos) e os outros

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(os bárbaros: nativos de lugares exóticos ou povosde países periféricos). Os outros são representadoscomo um grupo indiferenciado, caracterizado porsuas diferenças em relação aos europeus (nós), umadiferença sempre desfavorável para eles (os outros),que são tidos como irracionais, supersticiosos,obstinadamente conservadores, movidos pelaemoção, sexualmente descontrolados, propensos àviolência, e assim por diante. São essas diferençasque motivam e justificam o colonialismo e outrasformas de dominação. Said conclui que oorientalismo é um tipo de projeção ocidental(civilização) sobre o Oriente (barbárie) e o desejo degoverná-lo.

Algumas pessoas acreditam que as culturaspodem ser classificadas como superiores e inferiores,e tendem a prezar mais a sua própria cultura. Onacionalismo anda nesse sentido, quando fazmenção à superioridade da cultura nacional. Algunsteóricos entendem que, em termos de cultura, asfronteiras nacionais se diluíram, portanto, não fazsentido falar da cultura de determinado Estadonacional, visto que o fenômeno da globalizaçãounificou o Ocidente numa única cultura, a cultura deconsumo cuja expressão maior são os EstadosUnidos.

Ancorado nessa ideia de que as culturasocidentais foram unificadas, Samuel Huntington (in

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KUPER, 2002: 23) anuncia de forma profética ecatastrófica que, após a guerra fria, a história globaliniciou uma nova fase, em que as principais fontes deconflito não serão fundamentalmente econômicas ouideológicas, mas culturais. Afirma que “as principaisdiferenças no desenvolvimento político e econômicoentre as civilizações estão claramente enraizadas emsuas culturas distintas, a cultura e as identidadesculturais estão moldando os padrões de coesão,desintegração e conflito no mundo. Nesse novomundo, a política local é a política da etnia; a políticaglobal é a política de civilizações”. Para Huntington,a rivalidade das superpotências será substituída pelochoque de civilizações, portanto, os atuais conflitosnão passam de estágios de um conflito maior queestá por vir, o verdadeiro conflito global que serátravado entre civilização e barbárie.

Bernard Lewis também segue essa linhacatastrófica e profética. Nesse sentido, Emir Sader,em artigo publicado na revista Caros Amigos (n. 139de outubro de 2008), lembra que a afirmação deBernard Lewis – “A Europa será muçulmana, daquiaté o final do século” – tem uma conotação deameaça, de risco, de catástrofe, de triunfo dabarbárie. Para Sader, a visão de Lewis assenta-se naconcepção de que o mundo muçulmano ficouestagnado em uma oposição fundamental aoOcidente, motivo pelo qual todos os avanços da

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chamada modernidade (o Renascimento, a Reforma,as transformações tecnológicas, a democracia liberal,a economia de mercado) teriam sido ignorados nomundo islâmico. Para Edward Said, “o coração daideologia de Lewis sobre o Islã é o de que este nãomudará nunca, que toda abordagem política,histórica ou acadêmica dos muçulmanos devecomeçar e terminar pelo fato de que os muçulmanossão muçulmanos”.

3.2. Hegemônica x minoritáriaO movimento multiculturalista entende que

mesmo no âmbito do território de um Estado nacionalconvivem diversas culturas, motivo pelo qual nãoaceita a ideia de que os Estados Unidos possuamuma única cultura. Nesse sentido entende que váriosgrupos de imigrantes possuem uma cultura própria erejeita o fato de que devam assimilar a culturaamericana predominante. Para os multiculturalistas anação americana é culturalmente fragmentada. Oproblema, portanto, não reside na existência dediferenças, mas no fato de as diferenças seremtratadas com desprezo, como desvio. Existe umacultura hegemônica do “homem americano” (branco,anglo-saxão, classe média, heterossexual) que impõesuas regras a todos. As culturas minoritárias sãoestigmatizadas por serem diferentes. O grupodominante impõe suas próprias características ideais

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como normas definidoras e qualifica qualquer um queseja diferente como fora do padrão (KUPER, 2002:296). O movimento multiculturalista, ao negar apadronização da cultura, confirma o direito de serdiferente.

Para alguns teóricos, a exaltação da diferençaenfraquece os valores comuns e ameaça a coesãonacional. Nesse sentido, Jonathan Sacks, rabino-chefe da Grã-Bretanha, em artigo publicado no jornalO Estado de S. Paulo (28-10-2007), afirma que omulticulturalismo já se esgotou, mas, em sua época,foi uma ideia boa e até mesmo nobre, porque oobjetivo era fazer com que as minorias étnicas ereligiosas se sentissem mais valorizadas erespeitadas e, portanto, capazes de integrar-se àsociedade como um todo.

Segundo Sacks, o multiculturalismo, apesar deafirmar a cultura das minorias e dar dignidade àdiferença, não promoveu a integração, e sim asegregação. Afirma que nos países em que omulticulturalismo foi experimentado as sociedadestornaram-se mais hostis, fragmentadas e intolerantes.Para ele, sem uma cultura nacional não há nação.Entende que com as novas tecnologias a ideia deuma cultura nacional se desintegra, porque, unindoas pessoas globalmente, as novas tecnologias asdividem localmente; fortalecem as filiações nãonacionais e podem fazer com que as pessoas, por

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exemplo, na Inglaterra, sintam-se mais hindus,mulçumanas ou judias do que britânicas. Enfim,segundo Sacks, culturas nacionais formam nações,culturas globais podem vir a destruí-las.

Não nos parece correto culpar o movimentomulticulturalista pelo retorno da ideologiaultranacionalista (recusa do estranho) entre oseuropeus. Parece-nos que a crise econômica com oconsequente desemprego tem provocado certaxenofobia em relação aos estrangeiros e os partidosde direita têm explorado essa situação. É precisolembrar que, ancorado nas propostas de expulsarestrangeiros e proibir o véu islâmico nas escolas, oultradireitista Partido do Povo Suíço venceu aseleições gerais naquele país. Essa vitória certamenteabriu espaço para a adoção de leis mais duras contraetnias e imigrantes em toda a Europa, como é o casoda lei denominada “Diretriz de Retorno” aprovadapor esmagadora maioria do Parlamento Europeu emjunho de 2008, que estabelece, entre outrasviolências, o encarceramento do clandestino por até18 meses. É preciso também recordar que a ascensãodo partido nazista alemão começou com a ideia deuma cultura genuinamente nacional; a manipulaçãopolítica dessa ideia resultou em intolerâncias,segregações, depois perseguições e por fimextermínios.

Quando pessoas de nações e grupos étnicos

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distintos entram em contato, é possível ocorrerconfronto ou choque de culturas. Quando issoacontece, alguns reivindicam a superioridade dacultura local e exigem a adaptação dos indivíduos deculturas diferentes; outros acreditam na diversidadede culturas e por causa disso defendem o direito dasminorias, dos dissidentes, dos marginalizados e doscolonizados de preservar a sua própria cultura. Écomum, nessas situações, estabelecer conexõesentre etnias e culturas que podem resultar nahipótese de que cultura é transmitida pela raça. Aconexão raça-cultura possibilitou o surgimento dadoutrina racista.

Conforme Lévi-Strauss (1980b: 47), “o pecadooriginal da antropologia consiste na confusão entre anoção meramente biológica da raça (supondo, poroutro lado, que, mesmo nesse campo limitado, essanoção possa pretender atingir qualquer objetividade,o que a genética moderna contesta) e as produçõessociológicas e psicológicas das culturas humanas.Bastou a Gobineau (fundador da doutrina racista) tercometido esse pecado para se ter encerrado nocírculo infernal que conduz de um erro intelectual,não excluindo a boa-fé, à legitimidade involuntária detodas as tentativas de discriminação e deexploração”.

O racismo é o desdobramento moderno maisnefasto e cruel da ideologia da recusa do estranho.

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Os seus efeitos devastadores sobre as relaçõeshumanas justificam o interesse que antropólogos ejuristas dedicam ao assunto, motivo pelo qual seráexaminado no capítulo seguinte.

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III RACISMO

1. DOUTRINA RACISTAJohann Blumenbach, considerado o fundador da

antropologia física, dividiu a espécie humana emcinco raças e explicou as diferenças raciais comoconsequência das influências ambientais sobre umaforma ancestral única e comum a todos os homens(MELLO, 1982: 190). Essa teoria, ao estabelecer quetodos os seres humanos têm uma origem comum,reafirma a crença do iluminismo na unidade dahumanidade. Mas, ao afirmar a existência de raças,tornou possível o estabelecimento de um vínculoentre raças e culturas. A partir de então, aantropologia física tem sido manipulada com ointuito de explicar as diferenças culturais em termosbiológicos ou raciais. Nessa trilha, as disparidadesculturais e sociais são entendidas como a expressãode diferenças raciais, ou seja, a raça determinaria acultura, e, por conseguinte, existiriam raças e culturassuperiores.

O racismo pode ser definido como uma doutrinasegundo a qual todas as manifestações culturais,históricas e sociais do homem e os seus valoresdependem da raça; também segundo essa doutrina

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existe uma raça superior (ariana ou nórdica) que sedestina a dirigir o gênero humano. As concepçõesracistas constituem um fenômeno antigo (recusa doestranho), porém a sua arquitetura teórica tem iníciono final do século XIX com o francês Gobineau,considerado o fundador da teoria racista. Para ele,“as grandes raças primitivas que formavam ahumanidade nos seus primórdios – branca, amarela,negra – não eram só desiguais em valor absoluto,mas também diversas em suas aptidões particulares.A tara da degenerescência estava, segundo ele,ligada mais ao fenômeno de mestiçagem do que àposição de cada uma das raças numa escala devalores comum a todas; destinava-se, pois, a atingirtoda a humanidade, condenada sem distinção de raçaa uma mestiçagem cada vez mais desenvolvida”(LÉVI-STRAUSS, 1980b: 47).

Depois da Primeira Guerra Mundial, os nazistasviram no racismo um mito consolador, uma fuga dadepressão da derrota. Nessa trilha, Hitlertransformou o racismo no carro-chefe de sua política,cuja doutrina, elaborada por Alfred Rosenberg em1930 (Mito do século XX), afirma um rigorosodeterminismo racial ao estabelecer que qualquermanifestação cultural de um povo depende de suaraça. Assim, a diversidade de culturas reforçava umateoria racial da diferença. Esse determinismo serácombatido por vários intelectuais alemães,

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especialmente pelo antropólogo Franz Boas, quandoafirma categoricamente a sua principal hipótese: araça não determina a cultura.

Em síntese, as teorias racistas pretendem provar:a) que existem raças; b) que as raças são biológicas egeneticamente diferentes; c) que há raças atrasadas eadiantadas, inferiores e superiores; d) que as raçasatrasadas e inferiores não são capazes dedesenvolvimento intelectual e estão naturalmentedestinadas ao trabalho manual, pois sua razão émuito pequena e não conseguem compreender asideias mais complexas e avançadas; e) que as raçasadiantadas e superiores estão naturalmentedestinadas a dominar o planeta e que, se isso fornecessário para seu bem, têm o direito de exterminaras raças atrasadas e inferiores; f) que, para o bem dasraças inferiores e das superiores, deve haversegregação racial (separação dos locais de moradia,de trabalho, de educação, de lazer etc.), pois a nãosegregação pode fazer as inferiores arrastarem assuperiores para o seu baixo nível, assim como fazeras superiores tentarem inutilmente melhorar o níveldas inferiores (CHAUÍ, 2002: 86).

Observa Chauí que as teorias racistas estão aserviço da violência, da opressão, da ignorância e dadestruição. A biologia e a genética afirmam que asdiferenças na formação anatômico-fisiológica dosseres humanos não produzem raças. Raça, portanto,

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é uma palavra inventada para avaliar, julgar emanipular diferenças biológicas e genéticas. Asteorias racistas não são científicas; são falsas eirracionais, implicam práticas culturais, econômicas,sociais e políticas para justificar a violência contraseres humanos.

Ainda que a ciência moderna conteste aexistência de raças e confirme a impossibilidade deafirmar a superioridade ou inferioridade intelectual deum grupo étnico em relação a outro, a doutrinaracista continua em evidência e insiste na relaçãoraça-cultura, ou seja, aproveita-se da confusão quefoi estabelecida entre uma noção puramentebiológica (raça) e a produção cultural dos povos.Pretende, pois, transformar diferenças étnicas eculturais em diferenças biológicas naturais imutáveise separar os seres humanos em superiores einferiores, dando aos primeiros justificativas paraexplorar e dominar os segundos.

1.1. Raça e genéticaConforme o jornal Folha de S. Paulo (19-10-

2007), o geneticista norte-americano James DeweyWatson, tido como codescobridor da estrutura doDNA e agraciado em 1962 com o prêmio Nobel deMedicina, em entrevista ao Sunday Times(outubro/2007) declarou ser “pessimista em relaçãoao futuro da África” porque “todas as nossas

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políticas sociais são baseadas no fato de que ainteligência deles (dos negros) é igual à nossa,apesar de todos os testes dizerem que não é bemassim” (não explicou que testes são esses). “Pessoasque já lidaram com empregados negros não acreditamque isso (a igualdade de inteligência) seja verdade.”

Watson, pressionado pelos meios decomunicação da sociedade globalizada, escreveu umartigo para o jornal The Independent, no qual ter sidomal interpretado. Segundo ele, “àqueles que inferiramdas minhas palavras que a África enquantocontinente é de alguma forma geneticamente inferior,só posso me desculpar sem reserva. Não foi isso oque eu quis dizer. E o que é mais importante, do meuponto de vista, é que não há base científica para talcrença”.

Mas, no mesmo artigo, Watson sugere que sãoos genes ou sequências de DNA que determinam acapacidade intelectual e o comportamento moral daspessoas. Segundo ele, “ao descobrir o tamanho dainfluência dos genes no comportamento moral,também poderemos entender como os genesinfluenciam a capacidade intelectual”. E prossegueafirmando que “o desejo esmagador da sociedadehoje é assumir que poderes iguais de raciocínio sãouma herança universal da humanidade. Massimplesmente desejar que seja esse o caso não basta.Isso não é ciência”.

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Na trilha de Watson, outras pessoas, menoscélebres, expressam seus desejos incontroláveis deencontrar alguma coisa (qualquer coisa mesmo) nocampo da genética ou da biologia que possa servirpara estabelecer alguma diferença (qualquerdiferença mesmo) entre etnias (brancos, amarelos,negros, mestiços) e, com isso, justificar asuperioridade de umas sobre as outras. Cabe, apenaspara reflexão, a seguinte pergunta: o comportamentomoral (racista) dessas pessoas é genético oucultural?

Os geneticistas contestam a existência de raças econfirmam que é impossível estabelecer asuperioridade intelectual de um grupo étnico sobreoutros. Os antropólogos entendem que as diferençasentre umas e outras nações se devem à cultura e nãoexiste cultura superior ou inferior. Além disso, paraos antropólogos, a cultura não é herdadabiologicamente, mas assimilada, adquirida e atémesmo emprestada. É óbvio que existe certaoriginalidade nas culturas dos povos africanos,europeus, asiáticos ou americanos que permiteestabelecer diferenças entre eles. Mas essaoriginalidade deve-se a circunstâncias geográficas,históricas, políticas e sociológicas, e não a aptidõesdistintas, ligadas às constituições anatômicas oufisiológicas de negros, amarelos, brancos oumestiços.

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Ocorre, porém, que alguns indivíduos aindapersistem nessa confusão obstinada de enxergar nacultura uma qualidade inata, motivo pelo qualpassam a avaliar as pessoas pela cor da pele ecaracterísticas faciais. No âmbito do direito penal,César Lombroso (DINIZ, 1988: 99) elaborou umadoutrina, uma espécie de determinismo biológico,que seria capaz de revelar o criminoso nato. Para ele,determinados indivíduos possuiriam caracteresanatômicos do tipo delinquente. O criminoso típicoseria portador de caracteres do homem primitivo (ouselvagem), obtidos por atavismo. O atavismosignifica o reaparecimento no indivíduo de certoscaracteres físicos e morais dos antepassados. Assim,o delinquente nato seria uma cópia do homemprimitivo ou selvagem, que aparece, na sociedadecivilizada, por intermédio do atavismo. A herançaatávica, portanto, explicaria a causa dos delitos.

Segundo Lombroso, os homicidas teriam olharduro e cruel, com os globos oculares injetados desangue, lábios finos, mandíbula enorme, narizaquilino ou adunco sempre volumoso e os ladrõesteriam olhar vivo, errante, nariz comprido, retorcidoou achatado. Também constituiria caracteres dodelinquente nato: malformação das orelhas, maxilaresproeminentes, cabelos abundantes, barba escassa,rosto pálido, uso da mão esquerda, daltonismo,estrabismo, preguiça, vaidade desmedida, uso de

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tatuagens etc.Ainda se publicam livros nos quais seus autores

afirmam ter encontrado “provas científicas” de queraça é uma realidade biológica com implicações nocomportamento moral e no desenvolvimentointelectual das pessoas. Na sua totalidade, tais livrosapresentam explicações estapafúrdias, destituídas devalor científico, tal qual as de Lombroso e Gobineau.Ocorre, porém, que alguns intelectuais, cujaprodução filosófica e científica não pode serignorada, acolheram o nazismo, portantocomprometeram-se com a doutrina racista. O quemotivou esses intelectuais parece ser algoincompreensível.

1.2. Cultura x civilizaçãoNorbert Elias (in KUPER, 2002: 53 a 58)

comparou as relações entre a noção alemã de cultura(kultur) e a ideia francesa de civilização (civilisation)para explicar por que alguns intelectuais alemãesacolheram o nazismo. Ele constatou que na tradiçãofrancesa civilização era concebida como um todocomplexo e multifacetado, que abrangia fatospolíticos, econômicos, religiosos, técnicos, morais esociais. Esse conceito amplo de civilizaçãoexpressava o que a sociedade ocidental acreditavaser superior às sociedades anteriores ou àssociedades contemporâneas mais primitivas.

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Para os alemães, contudo, civilização era algoexterior e utilitário, alheio, em muitos aspectos, aosvalores nacionais. Entendiam que a civilização eraaprimorada com o tempo e transcendia as fronteirasnacionais, em contraste com a cultura, limitada notempo e no espaço e conforme com uma identidadenacional. Assim, quando os alemães expressavamorgulho por suas realizações, eles não falavam dasua civilização, mas sim da sua cultura. Esse termoreferia-se essencialmente a fatos intelectuais,artísticos e religiosos. Os alemães geralmente traçamuma clara linha divisória entre fatos dessa natureza efatos políticos, econômicos e sociais. A cultura nãoera só nacional, mas também pessoal; para osalemães todo indivíduo adquiria cultura por meio deum processo de educação e desenvolvimentoespiritual. O que os franceses consideravamcivilização transnacional os alemães consideravamfonte de perigo para a cultura local.

Elias observou que os intelectuais alemães nãose identificavam com as aspirações da classedominante (príncipes e aristocratas). Haviadiferenças ideológicas. Para eles a classe dominantenão possuía uma cultura autêntica porque os seusprincípios morais advinham de um código de honraartificial. O crescimento espiritual era mais valorizadodo que o status herdado e os sinais exterioresartificiais do estilo palaciano.

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A antítese entre uma civilização aristocráticafalsa e uma cultura nacional genuína foi projetadanuma oposição entre França e Alemanha. Essaantítese ganhou nova força depois da derrota daAlemanha na Primeira Guerra Mundial, uma guerraque teria sido declarada contra a Alemanha em nomede uma civilização universal. A ideia de culturaentrou em jogo na luta subsequente para redefinir aidentidade e o destino da Alemanha. Cultura ecivilização resumiam os valores rivais que (na visãode alguns alemães) dividiam Alemanha e França:virtude espiritual x materialismo; honestidade xartifício; moralidade genuína x cortesia exterior.

Os nacionalistas de direita aprofundaram aantítese e passaram a entender que o crescimento dacultura é orgânico e o da civilização é artificial. Nessesentido, cultura e civilização tendem a entrar emconflito na mesma medida em que divergem suasformas de crescimento. As nações não devem,portanto, permitir que seus valores singulares sejamengolidos por uma civilização comum, mesmo porque o mundo seria formado por culturasqualitativamente distintas. Essas concepçõesexplicariam por que vários intelectuais alemãesacolheram os nazistas como arautos de umarenovação cultural da raça e como inimigos de umacivilização artificial.

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1.3. Diversidade de culturasMesmo com o apoio de alguns intelectuais, o

projeto nazista fracassou, não apenas militarmente,mas, sobretudo, teoricamente. É certo que existepluralidade ou diversidade de culturas, motivo peloqual é até possível, com base no critério dodesenvolvimento tecnológico, falar de uma culturadominante ou hegemônica. Mas, ao contrário do queafirma a doutrina racista, não existem aptidões raciaisinatas, tendo em vista que há muito mais culturashumanas do que “raças” humanas. Além disso,conforme observações de Lévi-Strauss (1993: 329),duas culturas elaboradas por homens pertencentes àmesma raça podem diferir tanto quanto ou mais queduas culturas provenientes de grupos radicalmenteafastados.

Lévi-Strauss (1993: 329 a 332) constata que umaspecto importante da vida da humanidade é queesta não se desenvolve sob um regime uniforme, masatravés de modos extraordinariamente diversificados.Essa diversidade das culturas humanas não deve serconcebida de maneira estática ou fragmentada,porque não se trata de uma amostragem inerte ou deum catálogo frio. Não se pode analisar cadasociedade ou cada cultura como se tivesse nascido ese desenvolvido isoladamente, porque jamais associedades humanas estiveram sós, pelo contrário,elas mantiveram e mantêm entre si contatos muito

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estreitos.Existem, portanto, nas sociedades humanas,

simultaneamente em elaboração, forças trabalhandoem direções opostas: umas tendem à manutenção, emesmo à acentuação do particularismo; outras agemno sentido da convergência e da afinidade. Pode-sedizer que existe um intercâmbio entre culturas(difusão, aculturação, transculturação), fato queexplicaria a existência de uma multidão de sociedadescom culturas diferentes. Por conseguinte, adiversidade de culturas é menos função doisolamento dos grupos que das relações que osunem.

No mundo contemporâneo, o fenômeno daglobalização coloca em evidência essas situações,especialmente o movimento interno de cada culturano sentido de absorver ou afastar os aspectos deoutras culturas que atuam sobre si. O observadorimparcial percebe que a resistência dos países árabesà ocidentalização da sua cultura não é absoluta. Aresistência visa à manutenção de algumasinstituições, cujo poder estaria ameaçado pelaintrodução de determinados elementos novos(morais, jurídicos, estéticos, econômicos etc.)provenientes da cultura ocidental.

Enfim, os problemas (recusa do estranho)detectados na pré-história da antropologia tornaram-se mais complexos (racismo, diferenças sociais,

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diferenças culturais) no mundo contemporâneo epodem ser usados para determinados propósitos(ocultos ou inconfessáveis) que implicariamperturbações sociais incontroláveis, conflitosarmados e, por conseguinte, violência em grandeescala.

2. DIFERENÇAS RACIAIS E SOCIAISNo Brasil existe, por um lado, certa preocupação

por parte dos antropólogos e seus aliados emproteger e preservar as comunidades indígenas esuas culturas; mas, por outro lado, é quaseinexistente a preocupação em debater os problemasdas imigrações e das diferenças culturais àsemelhança do que ocorre na Europa e nos EstadosUnidos.

A população brasileira é, na sua maioria,composta de mestiços, cuja cultura expressa umaespécie de sincretismo cultural. Talvez por causadisso o tema das diferenças culturais não tenhaencontrado ressonância nos movimentos sociais.Vale dizer, a cultura brasileira (talvez em maiorproporção do que outras culturas) possui umcomplexo de traços culturais emprestados de váriasculturas (europeias, africanas, indígenas, asiáticas), oqual lhe imprime uma configuração própria. O padrãobrasileiro é o mestiço, resultado da mistura nãoapenas de etnias, mas também de culturas. Isso

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certamente influencia o comportamento e provocacerta tolerância em relação e outras culturas e outrasetnias.

Ocorre, porém, que uma parte da populaçãobrasileira, na sua maioria negros e mulatos, encontra-se excluída do mercado de emprego ou ocupa apenasposições subalternas. Esse fato tem motivado adivulgação da ideologia da supremacia de raça comfundamento no mito da igualdade de oportunidades.Nessa linha de raciocínio, as desigualdades sociais,não raras vezes, são explicadas como a expressãodas diferenças raciais. Assim, a discussão maisampla na sociedade brasileira gira em torno dadesigualdade social, que, por sua vez, coloca emevidência o problema do racismo e seusdesdobramentos nas relações sociais, especialmenteno que diz respeito à posição social (renda e riqueza)de negros e mulatos.

Certamente por essas razões os legisladoresconstituintes fizeram constar no texto constitucionalque a República Federativa do Brasil: a) tem como umdos objetivos fundamentais promover o bem detodos, sem preconceito de origem, raça, cor equaisquer outras formas de discriminação (art. 3o,IV); b) nas suas relações internacionais rege-se,dentre outros, pelo princípio do repúdio ao racismo(art. 4o, VIII); c) tipifica a prática do racismo comocrime inafiançável e imprescritível, sujeito, nos

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termos da lei, à pena de reclusão (art. 5o, XLII).É preciso anotar, porém, que existe uma grande

distância entre os direitos e garantias formalmenteconsagrados no texto constitucional e a realidade defato a que se reportam, motivo pelo qual algunsjuristas (por exemplo, o Ministro do STF ErosRoberto Grau) enxergam na Constituição um mito quefunciona como instrumento de dominação que tantomais prospera quanto mais seja acreditado. Paraesses juristas, a Constituição é um mito na medidaem que instala no seio da sociedade a convicção daigualdade de oportunidade e do combate àdiscriminação racial, apenas porque o documentoformal expressa que o objetivo fundamental doEstado é este. A Constituição formal é, assim, mitoque as pessoas acalentam, dotado de valorreferencial exemplar, na medida em que contribuieficazmente para a preservação de uma estruturasocial que não se pretendia instaurar, mas,simplesmente, manter.

A situação social de negros e mulatos nasociedade brasileira explica-se não em termos deraça, mas pela análise da estrutura social queherdamos dos tempos coloniais. Conforme relato deFábio Konder Comparato, em artigo no jornal Folhade S. Paulo (7-7-2008), mais de 3,5 milhões de jovensafricanos foram trazidos como escravos ao Brasil.Aqui desembarcados, eram conduzidos a um

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mercado público para serem arrematados em leilão. Opreço de um escravo dependia da largura dospunhos e dos tornozelos. O enquadramento dessesjovens no trabalho rural fazia-se pela violênciacontínua. Mal alimentados, eram obrigados atrabalhar até 16 horas por dia, motivo pelo qual otempo de vida do escravo brasileiro no eito nuncaultrapassou 12 anos, e a mortalidade sempre superoua natalidade, daí o incentivo constante ao tráficonegreiro.

A violência contínua e extremada provocava abusca desesperada de libertação pela fuga ousuicídio. As punições faziam-se em público,geralmente pelo açoite. Era frequente aplicar a umescravo até 300 chibatadas, quando o CódigoCriminal do Império as limitava ao máximo de 50 pordia. Mas, em caso de falta grave, os patrões nãohesitavam em infligir mutilações: dedos decepados,dentes quebrados, seios furados etc. Enfim,conforme palavras de Comparato, a escravidão deafricanos e descendentes no Brasil foi o crimecoletivo de mais longa duração praticado nasAméricas e um dos mais hediondos que a históriaregistra.

Observa Comparato que os senhores deescravos e seus descendentes não se sentiramminimamente responsáveis pelas consequências docrime nefando praticado durante quase quatro

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séculos. Essas consequências permanecem bemmarcadas até hoje em nossos costumes, nossamentalidade social e nas relações econômicas.Atualmente negros e mulatos representam mais de70% dos 10% mais pobres da nossa população. Nomercado de trabalho, com a mesma qualificação eescolaridade, eles recebem em média a metade dosalário pago aos brancos. Na cidade de São Paulo,mais de 2/3 dos jovens assassinados entre 15 e 18anos são negros. Na Universidade de São Paulo(USP), a maior da América Latina, os alunos negrosnão ultrapassam 2%, e, dos 5.400 professores, menosde dez são negros. Assim, o preconceito que tisna osbrasileiros de origem africana não está neles marcadoapenas fisicamente, como se fazia outrora com ferroem brasa. Ele aparece registrado como umadegradação social permanente, como atesta todos oslevantamentos estatísticos.

Tudo isso denota que o racismo, consciente ouinconscientemente, está inserido nas relaçõessociais. Aliás, a tipificação do racismo como crime decerto modo significa o reconhecimento de que essaprática efetivamente existe na sociedade brasileira epor isso deve ser reprimida. Mas, além do aspectorepressivo (ou mitológico), as normas jurídicas sãodotadas também de um aspecto promocional oupersuasivo que almeja as condutas tidas comodesejáveis, úteis e convenientes, motivo pelo qual se

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acha em curso algumas medidas legislativas (açõesafirmativas) de apoio à inserção de negros e mulatosno ensino superior e no mercado de trabalho. Caberessaltar que, nesse e em outros aspectos, ascontribuições da antropologia ao direito sãoincomensuráveis, especificamente quandoestabelece a alteridade como princípio orientador doestudo antropológico, decisão que implica umaposição contrária ao etnocentrismo e ao racismo.

Enfim, ao abordar a doutrina racista e as suasrepercussões devastadoras, o fizemos por váriosmotivos, dentre os quais se destacam: a) primeiro,para mostrar que os fundamentos da doutrina racistasão falsos e os desdobramentos que resultam da suaprática são inúteis e indesejáveis porque criminosos;b) segundo, para mostrar que, embora proibitivaspelo texto constitucional, práticas racistas estãoenraizadas na cultura brasileira e atingem,preponderantemente, negros e mulatos; c) terceiro,para alertar que ainda persistem em pleno século XXIpráticas racistas amparadas por leis escritas e queatingem basicamente imigrantes de paísesperiféricos. Essa situação vem-se ampliando empaíses europeus mais desenvolvidos, fato que nãocondiz com a imagem europeia de protetora maiordos direitos humanos.

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IV ANTROPOLOGIAE DIREITO

1. CONEXÕESAlguns problemas surgidos na pré-história da

antropologia e seus desdobramentos na sociedadecontemporânea demonstram que o estudo do direitonão pode restringir-se apenas ao aspecto dogmático,que implica meras sistematizações e classificações denormas jurídicas emanadas do Estado. O mundojurídico é mais articulado e complexo do que aparecenesse tipo de estudo. A ciência do direito, como dizTercio Sampaio Ferraz Jr. (1995: 92), envolve sempreum problema de decisão de conflitos sociais, motivopelo qual tem por objeto central o próprio serhumano que, por seu comportamento, entra emconflito e cria normas para decidi-lo. O ser humano é,pois, o centro articulador não apenas do pensamentoantropológico, mas também do pensamento jurídico.

As conexões do direito com a antropologia sãoevidentes, visto que o ser humano constitui objetocentral dessas duas áreas do conhecimento, motivopelo qual temas como igualdade e diferença são, aomesmo tempo, jurídicos e antropológicos. Além

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disso, o direito constitui um dos aspectos da cultura,e esta constitui objeto específico da antropologiacultural. A antropologia, tal como o direito, tambémse interessa pelos conflitos sociais, principalmenteno que diz respeito à intervenção normativa nadecisão jurídica desses conflitos, bem como pelodesdobramento da ordem jurídica diante dastransformações culturais, sociais, políticas eeconômicas.

1.1. Aproximações e afastamentosNão há acordo entre os teóricos do direito sobre

o método e o objeto da ciência jurídica. Também nãohá acordo sobre a definição do conceito de direito.Dizer o que o direito é torna-se uma tarefaextremamente difícil e controversa. Há, entre osteóricos, uma preocupação no sentido de construiruma compreensão universal do fenômeno jurídico.Essa preocupação está presente nas definições queelaboram sobre o conceito de direito. Nessa atitude,que consiste em compreender o direito como umfenômeno universal, há, segundo Ferraz Jr. (1995: 34),algo de humano, mas sobretudo de cultural.

Podem-se colher entre os juristas dois tipos dedefinições: as genéricas e as restritivas. Asdefinições genéricas, quando isoladas do contextodonde emanam, isto é, do complexo teórico que asfundamentam, são imprestáveis para traçar os limites

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daquilo que se define. Nesse sentido, uma definiçãoinspirada nos jurisconsultos romanos expressa que odireito é a intenção firme e constante de dar a cadaum o que é seu, não lesar os outros e realizar ajustiça. Já as definições restritivas esbarram emdificuldades insuperáveis, porque, em virtude deserem muito circunstanciadas, perdem a suapretendida universalidade. Nesse sentido, umadefinição inspirada no positivismo jurídicoestabelece que o direito é o conjunto das regrasdotadas de coatividade e emanadas do poderconstituído.

A universalidade dessas duas definições podeser questionada. Há, entretanto, entre elas umadiferença acentuada no que diz respeito ao enfoqueteórico adotado. Na primeira (definição genérica)predomina um enfoque zetético; enquanto na outra(definição restritiva) predomina um enfoquedogmático. Não há uma linha divisória entre zetéticae dogmática, porque toda investigação jurídicasempre utiliza os dois enfoques. Mas a diferença éimportante quando se aponta o predomínio de umenfoque sobre o outro.

O enfoque dogmático não questiona suaspremissas (dogmas); predomina o sentido diretivo dodiscurso; visa, portanto, dirigir o comportamento deuma pessoa, induzindo-a a adotar uma ação. Nessatrilha, a dogmática jurídica enfoca mais as premissas

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técnicas (normas jurídicas), suas sistematizações,classificações, divisões e conceitos. O enfoquezetético preocupa-se com o problema especulativo;predomina o sentido informativo do discurso; visa,portanto, descrever certo estado das coisas. Nessalinha, a zetética jurídica enfatiza os aspectosantropológicos, filosóficos, históricos esociológicos, insistindo sobre a inserção do direitono universo da cultura, da justiça, da história e dosfatos sociais.

Assim, numa perspectiva dogmática, o direitotende a se afastar da antropologia e de outras áreasdo conhecimento; enquanto, numa perspectivazetética, o direito se aproxima da antropologia e deoutras áreas do conhecimento.

Conforme investigações de Boaventura deSousa Santos (1988: 70, 71), mesmo entre osantropólogos não há acordo sobre a definição doconceito de direito. Essa tensão, segundo Santos,tem suas raízes nas obras de Malinowski e deRadcliffe-Brown, considerados os fundadores daantropologia jurídica. Malinowski propõe umaestratégia conceitual em que o objetivo dageneralidade se sobrepõe ao da especificidade,motivo pelo qual conclui que, em todos os povos,qualquer que seja o grau de seu “primitivismo”,existe direito. Radcliffe-Brown, ao contrário, segueuma estratégia conceitual em que o objetivo da

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especificidade tem precedência sobre o dageneralidade, motivo pelo qual conclui que algumassociedades “primitivas” não têm direito. Esseassunto será retomado por ocasião da análise dascontribuições desses dois antropólogos.

1.2. O fenômeno jurídicoPara Ferraz Jr. (1995: 21, 22), o direito é um dos

fenômenos mais notáveis na vida humana.Compreender o direito é compreender uma parte denós mesmos. É saber por que obedecemos, por quemandamos, por que nos indignamos, por queaspiramos mudar em nome de ideais e por que emnome de ideais conservamos as coisas como estão.Ser livre é estar no direito e, no entanto, o direitotambém nos oprime e nos tira a liberdade. O direito éum mistério, o mistério do princípio e do fim dasociabilidade humana. O direito nos introduz nummundo fantástico de piedade e impiedade, desublimação e de perversão.

O direito serve para expressar e produzir aaceitação da situação existente, mas aparece tambémcomo sustentação moral da indignação e da rebelião.Assim, de um lado, o direito nos protege do poderarbitrário exercido à margem de toda regulamentação,dá oportunidades iguais e ampara os desfavorecidos.Por outro lado, é também um instrumentomanipulável que frustra as aspirações dos menos

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privilegiados e permite o uso de técnicas de controlee dominação.

O estudo do direito exige precisão e rigorcientífico, mas também abertura para o humano, paraa história, para o social, numa forma combinada que asabedoria ocidental, desde os romanos, vemesculpindo como uma obra sempre por acabar. Namedida em que o direito se abre para o humano, ahistória e o social, ele se depara com a antropologia,daí a ideia de uma antropologia jurídica.

1.3. Estudo do direitoA partir do século XIX, como resultado da

positivação do direito, passa a predominar no estudojurídico o enfoque dogmático e a ciência jurídicapassa a ser concebida como ciência dogmática. Essaciência enxerga seu objeto, o direito posto e dadopreviamente pelo Estado, como um conjuntocompacto de normas que lhe compete sistematizar,classificar e interpretar, tendo em vista a decisão depossíveis conflitos. Assim, no mundocontemporâneo, o direito aparece fundamentalmentecomo um fenômeno burocratizado, um instrumentode poder, e a ciência jurídica, como uma tecnologia.

Sob a inspiração desse modelo, formou-se, entreos juristas, uma tendência bastante forte, queconsiste em identificar a ciência jurídica com um tipode produção técnica destinada apenas a atender às

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necessidades do profissional (advogado, promotor,juiz, delegado etc.) no desempenho imediato de suasfunções. Sob o império dessa premissa, muitosdesses profissionais ficam alienados em relação aoprocesso de construção do próprio direito positivo(sistema de normas); não percebem o direito comoinstrumento de gestão social; não visualizam afunção social das normas jurídicas; nãocompreendem o direito como um saber que tambémserve à luta social exigida pelo mundo em quevivemos; não entendem o direito como instrumentode mudança; enfim, não enxergam o direito como umaprática virtuosa a favor do ser humano.

Há, entretanto, uma tendência no sentido deredirecionar o estudo do direito até como forma deevitar a alienação na qual a dogmática jurídica tendea colocar o profissional do direito. Essa tendênciareconhece que o estudo do direito não se reduz amera sistematização de normas, visto que, se asnormas condicionam comportamentos, oscomportamentos também condicionam as normas.Isso significa que não é possível isolar normasjurídicas de suas condicionantes situadas naantropologia, sociologia, economia, biologia,filosofia, ética, política etc.

Ferraz Jr. (1995: 28, 29) alerta que as sociedadesestão em transformação e a complexidade do mundoestá exigindo novas formas de manifestação do

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fenômeno jurídico. Segundo ele, é possível que nofuturo (não tão distante) esse direitoinstrumentalizado, uniformizado e generalizado sob aforma estatal de organização venha a implodir,recuperando-se em manifestações espontâneas elocalizadas, um direito de muitas faces, peculiar aosgrupos e às pessoas que os compõem. Por isso, aconsciência da nossa circunstância atual não deveser entendida como um momento final, mas como umponto de partida. Afinal, diz ele, a ciência não noslibera porque nos torna mais sábios, mas é porquenos tornamos mais sábios que a ciência nos libera.

2. ANTROPOLOGIA JURÍDICAPara Norbert Rouland (2003: 405), a antropologia

jurídica demonstra sua utilidade quando permitedescobrir (e entender) o direito que se encontraencoberto pelos códigos. Essa utilidade também seevidencia quando prepara e alerta a sociedade paraaceitar as evoluções jurídicas que estão em curso eque apontam para um direito mais maleável, puniçõesflexíveis, transações ou mediações em vez dejulgamentos, regras que mais formam modelos doque prescrevem ordens. Tudo isso, segundo ele,pode ser aceito mais naturalmente quando aspessoas tomam conhecimento de que há muitotempo ou que em algumas sociedades, homens emulheres, aos quais chamamos primitivos, já

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reconheceram esses procedimentos, ou os empregamainda.

De modo geral, a sociologia jurídica sempre sepreocupou com o estudo do direito das sociedadescomplexas, sociedades metropolitanas e industriais,enquanto a antropologia jurídica investigava odireito das sociedades simples ou primitivas. A partirda década de 1960, contudo, houve, conformeobserva Boaventura de Sousa Santos (1988), umasubversão dessa divisão de trabalho, de modo que aantropologia do direito também passou a seinteressar pelo estudo das sociedades complexas oumetropolitanas. Deu-se assim origem a umsincretismo teórico e metodológico, ainda hoje emprocesso de evolução. Foi nesse contexto científicoque o conhecimento antropológico saiu do seu“gueto primitivo”.

Essa nova orientação da antropologia jurídicatem auxiliado a corrigir o desvirtuamento teórico queconsistiu em suprimir dos estudos acadêmicos aprodução jurídica não estatal. Nessa trilha, aantropologia jurídica tem colocado em evidência ofenômeno conhecido como pluralismo jurídico.

2.1. Pluralismo jurídicoO pluralismo jurídico pressupõe a existência de

mais de um direito ou ordem normativa no mesmoespaço geográfico. No início do século XX, com o

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avanço das teses do positivismo jurídico, opluralismo jurídico perdeu força e ficou praticamenteesquecido; na segunda metade do século XX,entretanto, retorna com todo vigor para constituirtema da antropologia do direito, sendo hoje um dosproblemas mais amplamente tratados por essadisciplina.

Conforme Boaventura de Sousa Santos (1988:73), o pluralismo jurídico tem lugar sempre que ascontradições se condensam na criação de espaçossociais, mais ou menos segregados, no seio dosquais se geram litígios ou disputas processados combase em recursos normativos e institucionaisinternos. Esses espaços sociais variam segundo ofator dominante na sua constituição (que pode sersocioeconômico, político ou cultural) e segundo acomposição da classe social. Santos cita o espaçojurídico consuetudinário criado pelos comerciantesamericanos, à revelia das normas do direito oficial(civil e comercial), com o objetivo de facilitar astransações e diminuir os custos. Também destaca osespaços onde se concentram as minorias e osimigrantes ilegais. Mas o exemplo de pluralismojurídico que Santos investiga é o dado pelasassociações de moradores de favelas do Rio deJaneiro.

No Rio de Janeiro, as associações de moradoresde favelas passaram a assumir funções nem sempre

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previstas diretamente nos seus estatutos, como, porexemplo, a de arbitrar conflitos entre vizinhos. Aassociação de moradores transformou-se, assim,gradualmente num fórum jurídico, à volta do qual sefoi desenvolvendo uma prática e um discursojurídico, que possibilitou o surgimento de um direitonovo: o direito da favela. Esse é um direito paralelonão oficial, cobrindo uma interação jurídica muitointensa à margem do sistema jurídico estatal.

O modelo jurídico da favela representa o traço deum movimento que parece ser mais amplo. Essemovimento ou tendência é detectável por múltiplossinais, e os mais importantes são os que dizemrespeito à criação, em certas áreas do controle social,de uma administração jurídica e judiciária paralela oualternativa à administração estatal.

A administração paralela, segundo Santos (1988:110, 111), recupera ou reativa, em novos moldes,estruturas administrativas de tipo popular ouparticipativo há muito abandonadas oumarginalizadas. Assim, em áreas como segurança,defesa do consumidor, relações entre vizinhos,questões de família, pequenos delitos criam-setribunais sociais, comunitários ou de bairrospresididos por juízes leigos, eleitos ou designadospelas organizações sociais, e em que a representaçãodas partes por advogados não é necessária. Oprocessamento das questões é informal e oral e, por

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vezes, nem sequer a sentença é reduzida a escrito.Esse modelo “marginal” tem inspirado reformas noâmbito do direito estatal, principalmente com ostribunais de pequenas causas e a aplicação dasdenominadas penas alternativas.

Apesar de toda a sua precariedade, o direito dafavela representa a prática de uma legalidadealternativa e, como tal, um exercício alternativo depoder político, ainda que embrionário. Não é umdireito revolucionário, nem tem lugar numa faserevolucionária de luta de classes. Visa decidirconflitos num espaço social “marginal”. Mas, dequalquer modo, representa uma tentativa paraneutralizar os efeitos da aplicação do direitocapitalista de propriedade no seio da favela e,portanto, no domínio habitacional da reproduçãosocial. E porque se centra à volta de uma organizaçãoeleita pela comunidade, o direito da favelarepresenta, também por essa razão, a alternativa deuma administração democrática da justiça (SANTOS,1988: 99).

2.2. Justiça estatal x justiça comunitáriaNo domínio da antropologia jurídica, os autores

costumam utilizar o método comparativo. Assim,quando se compara o direito das sociedades simplescom o direito das sociedades complexas, geralmenteapontam que: a) as sociedades simples dispõem de

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um direito cujo processo é flexível, sem demarcaçãonítida da matéria relevante, e a reconciliação daspartes tem primazia sobre tudo o mais na resoluçãodos litígios; b) as sociedades complexas dispõem deum direito formalista, dotado de um processoinflexível, e as decisões são baseadas na aplicaçãodas leis sem qualquer preocupação com areconciliação das partes.

Santos, ao comparar o direito da favela com odireito estatal, verifica que o direito estatal, por sermais institucionalizado, com maior poder coercitivo ecom discurso jurídico de menor espaço retórico, éconcomitantemente mais profissionalizado, maisformalista e legalista, mais elitista e autoritário.Enfatiza que a práxis do direito estatal é revelada pelaarticulação de três componentes estruturais básicos:a retórica, a burocracia e a violência. Cada umdesses componentes perfaz uma forma decomunicação e uma estratégia de decisão. A retóricabaseia-se na produção de persuasão e de adesãovoluntária através da mobilização do potencialargumentativo de sequências e artefatos verbais enão verbais socialmente aceitos. A burocraciabaseia-se na imposição autoritária por meio damobilização do potencial demonstrativo deconhecimento profissional das regras formais e dosprocedimentos hierarquicamente organizados. Aviolência baseia-se no uso ou ameaça da força física.

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O funcionamento e a interação desses trêscomponentes estruturais revelam o modelo jurídicoestatal da sociedade capitalista. Ocorre, porém, queesse modelo, desde o século XIX, tem-secaracterizado pelo progressivo abandono da retóricae pela progressiva expansão da burocracia e daviolência.

Paralelamente ao modelo tradicional deadministração tecnocrática da justiça, Santosreconhece a possibilidade de modelos alternativosde administração da justiça, que a torne, em geral,mais rápida, mais barata e mais acessível. Nessesentido cita a justiça comunitária, que pressupõe amediação ou conciliação através de instâncias einstituições que sejam descentralizadas e informais eque possam substituir ou complementar o modelotradicional. Essas reformas possibilitariam aconstrução de um direito novo, de um modelojurídico capaz de limitar e restringir o espaço dadominação da burocracia (domínio da hierarquianormativa) e da violência (ordenação da legitimidadesob coação) e de promover a expansão da retóricacomo processo dialógico de negociação e departicipação.

O direito da favela, como visto, favorece aemergência de um modelo jurídico dominado pelaretórica, portanto, permite atingir formas de superar acrise do paradigma tradicional do direito. Tal direito

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faz uso de um modelo decisório de mediação, que, aocontrário do modelo de adjudicação, maximiza opotencial de persuasão para a adesão à decisão.

Segundo Santos (1988: 61), quanto mais elevadoé o nível de institucionalização da função jurídicamenor tende a ser o espaço retórico do discursojurídico, e vice-versa; quanto mais poderosos são osinstrumentos de coerção ao serviço da produçãojurídica menor tende a ser o espaço retórico dodiscurso jurídico e vice-versa. Assim, nassociedades em que o direito apresenta um baixo nívelde institucionalização da função jurídica einstrumentos de coerção pouco poderosos, odiscurso jurídico tende a caracterizar-se por umamplo espaço retórico.

Conforme foi destacado, a antropologia, nosseus primeiros momentos, interessa-se pelo estudodas sociedades ditas primitivas, especialmente peloseu processo evolucionário. Essas sociedades,apesar de apresentar um baixo nível deinstitucionalização, despertou o interesse dosteóricos do direito, tanto que os primeirosantropólogos, os evolucionistas, que serãoabordados nos capítulos seguintes, eram, na suamaioria, juristas.

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V NASCIMENTO DAANTROPOLOGIA

1. PROJETO ANTROPOLÓGICONo século XVIII surge o projeto de fundar uma

ciência do homem, ou seja, aparece o primeiroesboço daquilo que se tornará uma antropologiasocial e cultural.

Esse projeto antropológico supõe: a) aconstrução de certo número de conceitos: emespecial o conceito de homem, não apenas comosujeito, mas também como objeto do saber; b) aconstituição de um saber pela observação: éessencial observar, mas, além disso, é preciso que aobservação seja esclarecida; c) o rompimento com ocogito cartesiano: fato que implica estabelecer oprincípio da identificação com o outro e o da recusade identificação consigo mesmo; d) a adoção de ummétodo de observação e análise: adota-se o métodoindutivo, que consiste na observação dos fatos paraextrair deles princípios gerais. Vários teóricosconcorreram na elaboração desse projeto, mas foiRousseau quem traçou, em seu Discurso sobre aorigem e os fundamentos da desigualdade entre os

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homens, o programa que se tornará o da antropologiaclássica (LAPLATINE, 2006: 55, 56).

1.1. Jean Jacques Rousseau (1712 – 1778)Rousseau (1973: 307, 308) confessa que tem

dificuldade de conceber como num século (XVIII) emque as pessoas se vangloriam de conhecimentosgrandiosos não existem dois homens, um quesacrifique vinte mil escudos de seus bens, outro dezanos de sua vida para uma viagem de volta aomundo, com a finalidade de estudar não só pedras eplantas, mas, pelo menos uma vez, os homens e oscostumes. Para Rousseau, os homens de seu tempose atrevem a julgar o gênero humano, conhecendoapenas os nomes das nações. Suponhamos, diz ele,um Montesquieu, um Diderot, ou homens dessatêmpera, viajando para instruir seus compatriotas,observando e descrevendo, como eles sabem, aÁfrica, o Peru, o Chile, o México, o Paraguai, o Brasile todas as regiões selvagens; suponhamos queesses homens, de retorno dessas viagens,escrevessem a história natural, moral e política doque tivessem visto; veríamos nós mesmos sair dasua pena um mundo novo e aprenderíamos assim aconhecer o nosso.

Para Lévi-Strauss (1993: 42, 43), Rousseau é ofundador da antropologia: a) no plano prático:porque o Discurso sobre a origem e os fundamentos

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da desigualdade entre os homens constitui oprimeiro tratado de antropologia clássica, no qual secoloca o problema das relações entre natureza ecultura; b) no plano teórico: porque, ao estabelecer,n o Ensaio sobre a origem das línguas, a regrametódica segundo a qual, “quando se quer estudaros homens, é preciso olhar em torno de si, mas, paraestudar o homem, importa que a vista alcance maislonge; impõe-se começar observando as diferenças,para descobrir propriedades”, distingue, com clarezae concisão admiráveis, o objeto próprio doantropólogo dos objetos do moralista e dohistoriador.

Es s a regra metódica marca o advento daantropologia porque permite estabelecer doisprincípios fundamentais: a) primeiro: preconiza,simultaneamente, o estudo dos homens maisdistantes e do mais próximo (ele mesmo); b) segundo:estabelece o princípio da alteridade, que consistena identificação com o outro (mesmo o mais fraco e omais humilde) e a recusa de identificação consigomesmo.

1.2. Limitações do século XVIIIConforme Laplatine (2006: 61, 62), o século XVIII

teve um papel essencial na elaboração dosfundamentos de uma ciência humana, mas nãopodia ir mais longe. Segundo ele, o obstáculo maior

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ao surgimento de uma antropologia científicanaquele século deve-se a dois motivos essenciais: a)primeiro: não se realiza uma distinção entre o sabercientífico e o saber filosófico; b) segundo: não ocorrea separação entre discurso antropológico e discursohistórico.

Em relação ao primeiro motivo, anota que,embora a distinção entre o saber científico e o saberfilosófico tenha sido abordada, não é realizada. Valedizer, o conceito de homem tal como é utilizado noséculo XVIII permanece ainda muito abstrato, isto é,rigorosamente filosófico. Para a pesquisaantropológica, o objeto de observação não é o“homem”, e sim indivíduos que pertencem a umaépoca e a uma cultura, e o sujeito que observa não éo sujeito da antropologia filosófica, e sim um outroindivíduo que pertence ele próprio a uma época e auma cultura.

No que diz respeito ao segundo motivo, observaque o discurso antropológico do século XVIII éinseparável do discurso histórico desse período, istoé, de sua concepção de uma história naturalliberada da teologia e animando a marcha dassociedades no caminho de um progresso universal.Restará um passo considerável a ser dado para que aantropologia se emancipe da história natural econquiste sua autonomia. Paradoxalmente, essepasso será dado no século XIX a partir de uma

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abordagem igualmente historicista: o evolucionismo.Entende-se por evolucionismo o conjunto de

doutrinas que veem na evolução a característicafundamental de todos os tipos ou formas derealidade. A evolução é tida como o princípioadequado para explicar a realidade em seu conjunto.Durante o século XIX, o conceito de evoluçãoaparece de forma ostensiva nas pesquisas e reflexõesfilosóficas, sociológicas, biológicas eantropológicas. Essas pesquisas possuem, cada umadelas, suas características próprias, motivo pelo qualé necessário distinguir os diversos tipos deevolucionismos. Na sequência, faz-se uma sucintareferência aos evolucionismos sociológico ebiológico no intuito de distingui-los doevolucionismo antropológico.

2. EVOLUCIONISMO SOCIOLÓGICOO evolucionismo sociológico tem por

característica fundamental a ideia de progresso.Evolução significa progresso, portanto, trata-se deuma doutrina que divulga uma forma otimista deencarar a realidade humana. Esse evolucionismoalcança seu apogeu no século XIX, ligado aosnomes de: a) Saint-Simon: esse filósofo afirma quehá uma sequência evolutiva através da qual devepassar toda a humanidade, distinguindo-se três fasesde atividade mental: a conjetural, a semiconjetural e a

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positiva; b) Augusto Comte: para esse filósofo,todas as sociedades atravessam três etapasprogressivas, indo da superstição religiosa (estadoprimitivo), passando pela metafísica e a teologia, parachegar à ciência positiva, ponto final do progressohumano; c) Herbert Spencer: no seu livro intituladoProgresso, estabelece que o progresso reveste todosos aspectos da realidade. Por conta disso, defendeque todo desenvolvimento (quer se trate dodesenvolvimento da Terra, da vida, da sociedade, dogoverno, da indústria, do comércio, da língua, daliteratura, da ciência, da arte) significa progresso, eno fundo de todo progresso está sempre a mesmaevolução, que, através de diferenciações sucessivas,vai da simples à complexa.

Para Lévi-Strauss (1993: 335, 336), oevolucionismo social ou cultural é um falsoevolucionismo, porque consiste numa tentativa desuprimir a diversidade das culturas, fingindoreconhecê-las plenamente. “Pois ao tratar osdiferentes estados em que se encontram associedades humanas, tanto antigas quantolongínquas, como estágios ou etapas de umdesenvolvimento único que, partindo do mesmoponto, deve fazê-lo convergir para a mesma meta, vê-se bem que a diversidade é apenas aparente. Ahumanidade se torna única e idêntica a si mesma; sóque esta unidade e identidade podem realizar

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progressivamente, e a variedade das culturas ilustraos momentos de um processo que dissimula umarealidade mais profunda ou atrasa sua manifestação”.

3. EVOLUCIONISMO BIOLÓGICOO aparecimento do evolucionismo biológico é

posterior ao evolucionismo sociológico, contudonão há influência de um sobre o outro. O termoevolução foi introduzido provavelmente por Spencerno seu ensaio sobre o Progresso, de 1857, mas apalavra e o conceito não teriam gozado de tantosucesso sem o evolucionismo biológico estabelecidopor Charles Darwin no livro Origem das espécies, de1859 (ABBAGNANO, 2003: 393).

O evolucionismo biológico provocou muitaspolêmicas ao se contrapor à teoria da substânciaformulada por Aristóteles e elevada à categoria dedogma religioso. Segundo a metafísica aristotélica,todas as formas substanciais são imutáveis porquenecessárias. Isso significa que não podem sercriadas nem destruídas. Como formas substanciais,as espécies vivas compartilham de taiscaracterísticas. Esse ponto de vista aristotélico(doutrina da substância) prevaleceu na filosofia e naciência antiga e medieval. A doutrina tradicional daimutabilidade das espécies foi, portanto, o reflexo dadoutrina aristotélica da substância (ABBAGNANO,2003: 393).

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O evolucionismo biológico ou teoria daevolução rompe com a tradição aristotélica e temcomo precursores Jean-Baptiste Lamarck e CharlesDarwin.

3.1. Jean-Baptiste Lamarck (1744 – 1829)Lamarck foi o primeiro a apresentar a teoria da

evolução biológica. A hipótese básica da sua teoriaconsiste em afirmar que a função cria o órgão. Asmudanças (evolução) produzidas nos organismosdevem-se ao maior ou menor uso dos órgãos, e quedepois teriam sido fixadas pela hereditariedade.Assim, para Lamarck, a necessidade cria o órgãonecessário e o uso o fortifica e o aumenta; a falta deuso, ao contrário, conduz à atrofia, aodesaparecimento do órgão inútil. De acordo comessa teoria, uma mudança de circunstâncias provocauma mudança de hábitos e de atos e, porconseguinte, uma mudança de forma. Não se trata deuma ação direta do meio ambiente sobre o ser; trata-se de uma ação indireta, que provoca uma reação doorganismo no sentido de adaptar-se àscircunstâncias externas.

Os exemplos dados por Lamarck ajudam acompreender sua teoria: a girafa teve seu pescoçoaumentado pela necessidade de alcançar os ramosaltos das árvores; os morcegos têm olhos atrofiadosporque passaram a viver na escuridão e, portanto, os

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olhos perderam sua função. Com base na teoria deLamarck alguns antropólogos afirmam que asdiferenças étnicas são apenas reações adaptativas adeterminado meio ambiente; assim, a pele dos negrosescureceu para suportar o sol dos trópicos, ou seja,uma reação adaptativa contra os raios violetas.

Hoje, a biologia entende que as mudançasnascidas dos hábitos não podem ser herdadas;portanto, o mérito de Lamarck não é o de terdescoberto o princípio da evolução, mas o de terinsistido na doutrina geral e em alguns aspectosimportantes dela, como o da adaptação ao ambiente.

3.2. Charles Darwin (1809 – 1882)Em 1859 Darwin publica A origem das espécies,

na qual expõe a teoria da seleção natural, isto é, oconjunto de suas ideias a respeito da evolução dasespécies. A teoria da seleção natural explica a lutapela existência e fixa os conceitos de evolução, desobrevivência e de função. Em sentido lato, seleçãonatural é a persistência do mais apto à conservaçãodas diferenças e das variações individuais favoráveise a eliminação das variações nocivas. Em sentidoes trito, seleção natural significa que na luta pelaexistência sobrevive o mais apto. Para Darwin, asvariações insignificantes, aquelas que não são nemúteis nem nocivas ao indivíduo, não são afetadaspela seleção natural.

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A teoria de Darwin admite duas ordens de fatos:a) existência de pequenas variações orgânicas que severificam nos seres vivos em intervalos irregularesde tempo e que, pela lei da probabilidade, podem servantajosas para os indivíduos que as apresentam; b)luta pela vida entre indivíduos vivos, que se deve àtendência de cada espécie a multiplicar-se segundouma progressão geométrica. Dessas duas ordens defatos resulta que os indivíduos nos quais semanifestam mudanças orgânicas vantajosas têmmaiores probabilidades de sobreviver na luta pelavida, e, em virtude do princípio da hereditariedade,haverá neles acentuada tendência a deixar oscaracteres acidentais como herança aos seusdescendentes.

Sabe-se, hoje, que ambas as teses, adaptação aoambiente (de Lamarck) e seleção natural (de Darwin),exercem funções importantes na evolução da vida eque uma tese não exclui a outra.

Para Lévi-Strauss (1993: 336), o evolucionismobiológico, diferentemente do evolucionismosociológico, é uma teoria cientifica porque estabeleceuma hipótese de trabalho fundada em observaçõesem que a parte deixada à interpretação é muitopequena. Assim, a noção de evolução biológicacorresponde a uma hipótese dotada de altoscoeficientes de probabilidade que se podemencontrar no domínio das ciências naturais; ao passo

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que a noção de evolução social ou cultural só traz,no máximo, um procedimento sedutor, masperigosamente cômodo, de apreensão dos fatos.

Embora a ideia de evolução tenha dominado odebate científico do século XIX, o evolucionismoantropológico não significa um prolongamento doevolucionismo biológico. Certamente osantropólogos evolucionistas tomaram conhecimentoda teoria da evolução de Darwin, mas isso nãosignifica que a orientação evolucionista queimprimiram nos seus trabalhos possua a mesma baseteórica do evolucionismo biológico. De qualquermodo, é certo que na segunda metade do séculoXIX, o conceito de evolução deu à antropologia oseu primeiro impulso e sua unidade. É importantefrisar que algumas figuras de destaque daantropologia evolucionista, como Morgan,Bachofen, Maine e Mac Lennan, eram juristas.

4. EVOLUCIONISMO ANTROPOLÓGICOSegundo Laplatine (2006: 63 a 66), no século XIX

a antropologia realiza o que antes era apenasempreendimento programático. É a época durante aqual se constitui a antropologia como disciplinaautônoma, uma ciência das sociedades primitivas emtodas as suas dimensões: econômica, religiosa,técnica, biológica, linguística, psicológica. Emrelação ao século XIX, merecem destaque duas

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mudanças que contribuíram para o nascimento daantropologia: a) muda o contexto econômico epolítico: a revolução industrial inglesa e a revoluçãopolítica francesa introduzem mudanças conjunturaisinéditas nas relações sociais, políticas, jurídicas eeconômicas; b) muda o contexto geopolítico: é o augedo período da conquista colonial.

É no movimento da conquista colonial que seconstitui a antropologia moderna, ou seja, quando oantropólogo começa a acompanhar de perto ospassos do colono. Nessa época, os imigranteseuropeus começam a povoar os territórios coloniais(África, Austrália, Nova Zelândia, Índia, América).Uma rede de informação se instala mediantequestionários enviados por pesquisadores dasmetrópoles para os quatro cantos do mundo e cujasrespostas constituem os materiais de reflexão dasprimeiras grandes obras de antropologia: a)Bachofen: publica, em 1861, o Direito materno; b)Fustel de Coulanges: publica, em 1864, A cidadeantiga; c) Mac Lennan: em 1865, publica Ocasamento primitivo; d) Edward Tylor : em 1871,pub lica A cultura primitiva; e) Lewis Morgan:publica, em 1877, A sociedade antiga; f) JamesFrazer: em 1890, publica os primeiro volumes deRamos de ouro.

Todas essas obras citadas caracterizam-se poruma mudança radical de perspectiva: nelas o

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indígena não é mais o selvagem; tornou-se oprimitivo, isto é, o ancestral do civilizado. Assim, aantropologia, conhecimento do primitivo, ficaindissociavelmente ligada ao conhecimento daorigem da sociedade, isto é, das formas simples deorganização social que evoluíram para formas maiscomplexas de organização social, motivo pelo qualessa antropologia é qualificada de evolucionista.

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VIEVOLUCIONISMO

1. ANTROPÓLOGOS EVOLUCIONISTASO evolucionismo antropológico, em linhas

gerais, entende que existe uma espécie humanaidêntica, mas que se desenvolve em ritmos desiguaisde acordo com as populações. As sociedades oupopulações passam pelas mesmas etapas paraalcançar a etapa mais avançada, que é a civilização.A civilização europeia aparece como a expressãomais avançada da evolução das sociedadeshumanas, e os grupos primitivos como“sobrevivência” de etapas anteriores.

Embora a preocupação dos evolucionistas fosseestabelecer as linhas gerais do progresso material,espiritual e científico das sociedades, acreditavamque, voltando os olhos ao passado, teriam subsídiospara determinar como a história da cultura humana secomportaria. A evolução humana era considerada umdado; restava, portanto, a tarefa de descobrir comoisso ocorria. Não procuravam exatamente comprovara existência do progresso humano; mais que isso,procuravam descobrir as leis gerais da evolução

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cultural do homem (MELLO, 1982: 204). Nãonegavam a influência de determinados fatores comoo ambiente geográfico (o clima e o solo) natransformação da cultura; contudo alguns (Morgan,por exemplo) elegeram como fator determinante asinvenções e as descobertas resultantes dodesenvolvimento técnico e econômico. Procuravam,assim, explicar as razões que levaram determinadacomunidade a passar de uma etapa para outra.

Em suas investigações, os antropólogosevolucionistas fizeram uso do método comparativo,que consiste em comparar padrões, costumes,objetos, culturas do passado e do presente,verificando semelhanças e diferenças. No uso dessemétodo, o material coletado é classificado,organizado e interpretado de acordo com uma ordemcronológica. Morgan, por exemplo, ao realizar umestudo comparativo dos sistemas de parentesco,distinguiu três etapas sucessivas da evolução:selvageria, barbárie e civilização.

O evolucionismo antropológico encontra suaformulação e sistematização nos autores e nas obrascitadas no final do capítulo anterior, que se tornaramos documentos de referência adotados pela maioriados antropólogos a partir da segunda metade doséculo XIX. Na sequência faz-se uma brevereferência a Bachofen (Direito materno) e Tylor(Cultura primitiva). A obra de Morgan será

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abordada em capítulo separado.

1.1. Bachofen (1815 – 1887)Segundo Engels (1976: 12 a 15), até ao início da

década de 1860, não se poderia sequer pensar numahistória da família. As ciências históricas ainda seencontravam, nesse domínio, sob a influência dosCinco Livros de Moisés. A forma patriarcal dafamília, mostrada com muitos detalhes nesses cincolivros, era admitida sem reservas.

O estudo da história da família, diz Engels,começa, de fato, em 1861, com o Direito materno deBachofen. Nesse livro, o autor formula as seguintesteses: a) primitivamente, os seres humanos viveramem promiscuidade sexual; b) essas relações excluíamtoda a possibilidade de estabelecer, com rigor, apaternidade, portanto, a filiação apenas podia sercontada por linha feminina, segundo o direitomaterno, e isso ocorreu em todos os povos antigos;c) como consequência desse fato, as mulheres, comomães, como únicos progenitores conhecidos dajovem geração, gozavam de grande apreço e respeito,motivo pelo qual detinham a posição mais elevada nahierarquia do grupo; d) a monogamia, em que amulher pertence a um só homem, incidia natransgressão de uma lei religiosa muito antiga (direitoimemorial que os outros homens tinham sobre aquelamulher), transgressão que devia ser castigada, ou

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cuja tolerância se compensava com a posse damulher por outros durante determinado período.

Bachofen procurou provas dessas teses emnumerosos trechos da literatura clássica. Apassagem da poligamia à monogamia e do direitomaterno ao paterno, segundo ele, processa-se –especialmente entre os gregos – em consequência dodesenvolvimento das concepções religiosas, daintrodução de novas divindades, representativas deideias novas, no grupo dos deuses tradicionais, queeram a encarnação das velhas ideias; pouco a poucoos velhos deuses vão sendo relegados a segundoplano. Assim, para Bachofen, o que determinou astransformações históricas na situação socialrecíproca do homem e da mulher não foi odesenvolvimento das condições reais de existênciadas pessoas, mas o reflexo religioso dessascondições no cérebro delas. De acordo com esseponto de vista, interpreta a Oréstia de Ésquilo comoum quadro dramático da luta entre o velho direito(materno) e o novo direito (paterno).

1.1.1. Direito materno x direito paternoNa Oréstia, Clitemnestra, levada pela sua paixão

por Egisto, seu amante, mata seu maridoAgamêmnon, quando este regressava da guerra deTróia; mas Orestes, filho dela e de Agamêmnon,vinga o pai, matando a mãe. Isso faz com que se veja

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perseguido pelas Erínias, seres demoníacos queprotegem o velho direito materno, segundo o qual omatricídio é o mais grave e imperdoável de todos oscrimes. Apolo, no entanto, que, por intermédio doseu oráculo, havia incitado Orestes a matar sua mãe,e Palas Atena, que intervém na qualidade de juiz (asduas divindades que representam o novo direitopaterno), protegem Orestes.

Todo o litígio está resumido na discussão deOrestes com as Erínias. Atena ouve ambas as partes.Orestes diz que Clitemnestra cometeu um duplo crimeao matar quem era seu marido e pai de seu filho. Porque razão as Erínias o perseguiam, o visavam, emespecial, se ela, a morta, tinha sido muito maisculpada? A resposta é surpreendente: “Ela nãoestava unida por vínculo de sangue ao homem queassassinou”.

O assassinato de uma pessoa com a qual nãohouvesse vínculo de sangue, mesmo que fosse omarido da assassina, era falta que podia ser expiada,e isso não era, absolutamente, tarefa das Erínias. Asua missão era a de punir o homicídio entre osconsanguíneos e, segundo o direito materno, omatricídio era o pior e o mais imperdoável doscrimes. Nesse ponto, contudo, intervém Apolo,defensor de Orestes, e em seguida Atena submete ocaso ao Areópago (Tribunal do Júri ateniense); há omesmo número de votos pela condenação e pela

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absolvição. Atena, como presidente do Tribunal,vota a favor de Orestes e o absolve. O direitopaterno vence o direito materno. Os “deuses dajovem geração”, assim denominados pelas própriasErínias, são mais poderosos que elas, pelo que sólhes resta a resignação e, finalmente convencidas,aceitam colocar-se a serviço do novo estado decoisas.

Engels reconhece que essa maneira comoBachofen interpreta a Oréstia é inteiramente correta,representa uma das melhores e mais belas passagensdo seu livro Direito materno. Não concorda,entretanto, com essa forma de mostrar a passagemdo direito materno para o direito paterno. Isto, noentanto, diz Engels (1976: 15), “não diminui os seusméritos de pioneiro, já que foi o primeiro a substituiras frases sobre um desconhecido e primitivo estágiode promiscuidade sexual, pela demonstração de que,na literatura clássica grega, há muitos vestígios deque entre os gregos existiu realmente, antes damonogamia, um estado social em que não somente ohomem mantinha relações sexuais com váriasmulheres, mas também a mulher mantinha relaçõessexuais com diversos homens, sem que com issoviolassem a moral estabelecida”.

1.2. Edward Tylor (1832 – 1917)Tylor procurou mostrar a evolução pela qual

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passou a humanidade e o fez com a utilização dométodo ou modelo comparativo. Considerou ahumanidade um todo em crescimento através dostempos, indo da infância à maturidade, estando associedades primitivas situadas no estágio infantil.Teve o mérito de proceder à sistematização dosaspectos não materiais da cultura (costumes, ideias)e entendia que estes eram transmitidos por força dohábito. Foi o primeiro a definir o conceito cultura e ofez nos seguintes termos: “cultura é um conjuntocomplexo que inclui conhecimento, crença, arte,moral, lei, costume e várias outras aptidões e hábitosadquiridos pelo homem como membro de umasociedade” (in MELLO, 1982: 40). Assim estabeleceuo conceito de cultura como objeto de estudo daantropologia em contraposição ao conceito de raça.

Para Tylor, um dos principais objetivos dacomparação consiste em descobrir a aderênciacultural, ou as correlações necessárias entre dois oumais fenômenos culturais, tais como uma regra decomportamento de parentesco e uma regra determinologia de parentesco. Mediante o uso de ummodelo comparativo, ao qual denominou aritméticasocial, procurou organizar os costumes em tabelas eestabelecer relacionamentos entre eles. O métodocomparativo o levou a afirmar que as instituiçõeshumanas eram distintamente estratificadas, tal comoas diferentes camadas da Terra, que se sucedem em

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séries uniformes por todo o globo,independentemente das raças ou da linguagem.

Tylor também se interessou pelos estudosmágico-religiosos e elaborou uma das mais curtasdefinições de religião: “uma crença no sobrenatural”.Segundo Mello (1982: 390), nessa definiçãoencontram-se dois elementos presentes em todas asreligiões: a) a crença, que é antes de tudo um ato defé, de confiança, de respeito e reconhecimento pelosistema de mitos que representa a religião; e b) osobrenatural, que é o objeto da fé, portanto, é tudoaquilo que escapa ao entendimento humano.

Tylor elaborou uma teoria sobre o animismo,que é entendido como uma crença dos povosprimitivos, segundo a qual não só as criaturas, mastambém os objetos materiais estão dotados de vida,personalidade e alma. Evans Pritchard (in MELLO,1982: 397), ao analisar a teoria de Tylor sobre acrença dos povos primitivos na existência de almas,entende que tal teoria “conta com duas tesesprincipais, a primeira concernente ao problema daorigem, e a segunda referindo-se aodesenvolvimento da alma”. Vale dizer, as reflexões dohomem primitivo a respeito de determinadasexperiências, como morte, doença, transes, visões e,acima de tudo, sonhos, levaram-no à conclusão deque tais fenômenos se devem à presença ouausência de alguma entidade imaterial, a alma. Por

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essas razões, tanto a teoria do fantasma quanto ateoria da alma poderiam ser consideradas comoversões de uma teoria ideal da origem da religião.

Assim, para Tylor, as primeiras noções religiosasconhecidas pelos homens teriam sido as de almas,seres que transcendem a matéria. Essas noçõesteriam surgido da própria consciência humana pelanecessidade de compreender determinadosfenômenos (sonho, morte, doença, visões), queteriam despertado os sentimentos do sagrado e daoutra dimensão da vida.

2. TEMAS DO EVOLUCIONISMOSão considerados características da

antropologia evolucionista os seguintes temas: a)estudo das sociedades simples ou primitivas e dassociedades antigas; b) estudo do parentesco; c)estudo da religião. Parentesco e religião são, nessaépoca, as duas grandes áreas da antropologia, ou,mais especificamente, as duas grandes vias deacesso privilegiado ao conhecimento dascomunidades primitivas e das sociedades antigas.

2.1. Sociedades simples ou primitivasOs antropólogos evolucionistas foram os

primeiros a considerar as sociedades primitivas comotemas interessantes por si mesmos. Extraíram

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informações acerca dessas sociedades mediante aampla seleção de escritos das mais diversas classes;apresentaram essas informações de forma sistemáticae estabeleceram assim as bases da antropologiasocial. No estudo das sociedades primitivasinteressaram-se pela natureza de suas instituiçõessociais, especialmente as familiares e as religiosas.Ocuparam-se também de instituições jurídicas e dosaspectos da cultura material. Em qualquer dos temasa preocupação central consiste em demonstrar comoa cultura obedece a uma evolução universal eunilinear. A história do gênero humano, diziaMorgan, é única em sua origem, única em suaexperiência e única em seu progresso.

Dentre as comunidades primitivas destaca-se oestudo dos grupos australianos. Segundo Elkin (inLAPLATINE, 2006: 67), a Austrália ocupa um lugarde primeira importância na constituição daantropologia, porque é lá que se pode apreender oque foi a origem das nossas instituições. Desde aépoca de Morgan, diz ele, a Austrália continua sendoobjeto de muitos escritos; várias gerações depesquisadores expressaram sua estupefação dianteda simplicidade da cultura material desses povos,os mais “primitivos” do mundo, vivendo na idade dapedra sem metalurgia, sem cerâmica, sem tecelagem,sem criação de animais e a extrema complexidade deseus sistemas de parentesco baseados nas relações

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minuciosas entre aquilo que é localizado na natureza(animal, vegetal) e aquilo que atua na cultura (ototemismo).

O estudo das sociedades primitivas não visaapenas revelar o primitivo por trás do civilizado. Associedades primitivas facilitam os estudos dosantropólogos porque permitem perceber, com maisfacilidade, o modelo por trás da realidade, ouconstruir com menos esforços o modelo a partir darealidade. Além disso, permitem comparações maisprecisas e possibilitam descobrir em que sedistinguem umas das outras. Permitem, sobretudo, aanálise comparativa e a reflexão crítica em relação àssociedades complexas.

2.2. ParentescoNo estudo do sistema de parentesco, os

pesquisadores do século XIX procuramprincipalmente demonstrar a anterioridade históricados sistemas de filiação matrilinear sobre os sistemasde filiação patrilinear. Segundo Engels (1976: 24), adescoberta da primitiva gens de direito materno,como etapa anterior à gens de direito paterno dospovos civilizados, tem, para a história primitiva, amesma importância que a teoria da evolução deDarwin para a biologia e a teoria da mais-valia,enunciada por Marx, para a economia política.

Franz Boas (in LÉVI-STRAUSS, 2003: 22),

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entretanto, entende que os fatos não autorizamnenhuma reconstrução histórica tendente a afirmar aanterioridade histórica das instituições matrilinearessobre as patrilineares. Segundo ele, se é possível, emesmo provável, que a estabilidade inerente àsinstituições matrilineares as tenha frequentementeconduzido, onde existem, a se transformarem eminstituições patrilineares, disso não resulta denenhuma maneira que, sempre e por toda parte, odireito materno tenha representado a forma primitiva.

Ainda que contestada, permanece em evidênciaa ideia de um direito materno ou matriarcadoprimitivo que antecedeu ao direito paterno. Essaideia exerceu e ainda exerce uma grande influência,tanto que muitas pessoas continuam inspirando-senela, como é o caso de Evelyn Reed em Feminismo eantropologia, um dos textos de referência domovimento feminista nos Estados Unidos(LAPLATINE, 2006: 67).

2.3. Religião e magiaOs antropólogos do século XIX, especialmente

Fustel de Coulanges, Edward Tylor e James Frazer,foram os primeiros a realizar estudos sobre magia ereligião dos povos antigos e primitivos e suainfluência não só na evolução das religiões mundiais,mas também na construção das instituições e dodireito. Aliás, é certo que as crenças dos antigos

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gregos e romanos persistiram durante muito tempo eexerceram grande influência na construção esolidificação da religião, das instituições e do direitoque ainda moldam a sociedade contemporânea.

Religião é a crença no sobrenatural. Magiaimplica a crença na existência de causas (ato mágico)sobrenaturais. Religião e magia, portanto, consistemem sistemas de crenças. Todas as populaçõesestudadas pelos antropólogos demonstraram possuirum sistema de crenças, que pode ser classificadocomo magia, religião ou mágico-religioso. Para osevolucionistas, a magia é uma etapa que antecede àreligião, porém, existem diferenças entre uma e outra;outros antropólogos, entretanto, não estabelecemdiferenças e por isso denominam o sistema decrenças mágico-religioso.

Tylor considerou a magia uma pseudociência,em que o homem primitivo, incorretamente, afirmauma relação direta de causa e efeito entre o atomágico e o acontecimento desejado. Frazer tambémconsiderou falsa a relação de causa e efeito entre amagia e os efeitos naturais e analisou os princípiosque governam essa relação. Além disso, investigou orelacionamento da magia com a religião e a ciência eestabeleceu um quadro evolutivo entre elas.

Para Laplatine (2006: 68), Frazer, em sua obraRamos de ouro, realiza a melhor síntese de todas aspesquisas do século XIX sobre crenças e

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supertições. Segundo ele, nessa obra gigantesca(publicada em doze volumes, de 1890 a 1915), o autorretraça o processo universal que conduz, por etapassucessivas, da magia à religião, e, depois, da religiãoà ciência. Para Frazer, a magia representa uma faseanterior, mais grotesca da história do espíritohumano, pela qual todas as raças da humanidadepassaram, ou estão passando, para dirigir-se para areligião e a ciência. Frazer tratou de vários tipos demagia e penetrou fundo no intricado campo dasinstituições religiosas, inclusive nos estudos sobre ototemismo.

3. CRÍTICAS AO EVOLUCIONISMOOs teóricos evolucionistas, como visto,

entendem que a ciência e a sociedade evoluem eprogridem. Conforme Chauí (2002: 51, 84), para essesteóricos, o tempo seria uma sucessão contínua deinstantes, momentos, fases, etapas, períodos,épocas, que iriam somando-se uns aos outros,acumulando-se de tal modo que o que acontecedepois é o resultado melhorado do que aconteceantes. Enfim, ao longo do tempo haveria umprocesso de aperfeiçoamento das sociedades e suasinstituições.

Evolução e progresso, diz a autora, exprimemuma crença na superioridade do presente em relaçãoao passado e do futuro em relação ao presente.

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Evolução e progresso também supõem uma sérielinear de momentos ligados por relações de causa eefeito, em que o passado é causa e o presente, efeito,vindo a tornar-se causa do futuro. Na ideia deevolução e progresso encontra-se uma concepçãosegundo a qual o futuro já está contido no pontoinicial de uma sociedade, cuja história ou cujo temponada mais é do que o desdobrar ou o desenvolverpleno daquilo que já era potencialmente motivo peloqual se fala de sociedades primitivas (inferiores) queprecisam evoluir para sociedades civilizadas(superiores), sociedades subdesenvolvidas quedevem tornar-se desenvolvidas.

No século XX, alguns filósofos, analisando asmudanças científicas, passaram a negar as ideias deevolução e progresso. Nesse sentido, quandocompararam a geometria euclidiana (que opera com oespaço plano) com a geometria topológica (queopera com o espaço tridimensional), perceberam quenão se tratava de duas etapas ou de duas fasessucessivas da mesma ciência geométrica, e sim deduas geometrias diferentes, com princípios,conceitos, objetos completamente diferentes. Enfim,não houve evolução e progresso de uma para aoutra, pois são duas geometrias diversas e nãogeometrias sucessivas. O mesmo foi observadoquando se comparou a física de Newton com a físicade Einstein e em outras áreas do saber.

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De acordo com essa análise, não é possívelestabelecer uma continuidade progressiva dasculturas. Isso implica afirmar que não há uma únicacultura em progresso, o que existe é uma pluralidadede culturas diferentes. Cada cultura inventa seumodo de relacionar-se com o tempo, de criar sualinguagem, de elaborar seus mitos e suas crenças, deorganizar o trabalho e as relações sociais, de criarobras de pensamento e de arte. Cada uma, emdecorrência das condições históricas, geográficas epolíticas em que se forma, tem seu modo próprio deorganizar o poder e de produzir seus valores. Essaconcepção abalou alguns princípios doevolucionismo antropológico, cujo método já vinhasendo, desde o século XIX, alvo de críticas por partede alguns antropólogos.

3.1. Críticas ao evolucionismo antropológicoNo final do século XIX, Franz Boas contestou os

métodos utilizados pelos antropólogosevolucionistas ao estabelecer como decisivo naantropologia a pesquisa de campo. Segundo Boas, aausência de pesquisa de campo comprometia o rigormetodológico e científico que deveria fundamentaros estudos antropológicos.

Os evolucionistas, como visto, adotaram ométodo comparativo, porém as falhas metodológicasnão repousavam no fato da comparação em si, mas

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na falta de rigor no seu emprego. Algunsantropólogos utilizaram indistintamente informaçõesbíblicas, mitológicas e históricas, portanto, estavamsujeitos à crítica de que tentavam explicar oconhecido pelo desconhecido. Morgan, como severá adiante, teve o mérito de iniciar a aplicação dométodo comparativo de maneira correta, quandopassou a estudar as sociedades primitivas aindaexistentes, realizando, assim, o que se denominapesquisa de campo.

Para Laplatine (2006: 68, 69), as objeções aopensamento antropológico evolucionista podem serorganizadas em torno de duas séries de críticas. Aprimeira afirma que o evolucionismo seria umajustificação dos valores da sociedade europeia doséculo XIX. Segundo essa crítica, o evolucionismomede o atraso das sociedades primitivas tomandocomo critério de avaliação a sociedade europeia. Comesse critério, o progresso técnico e econômico dessasociedade é considerado como a prova da evoluçãohistórica da qual se procura simultaneamente aceleraro processo e reconstituição de estágios. Nessa trilha,o evolucionismo define o acesso à civilização emfunção dos valores da época: produção econômica,religião monoteísta, propriedade privada, famíliamonogâmica, moral vitoriana. A segunda críticaafirma que o evolucionismo seria uma justificação docolonialismo. Isso porque o pesquisador, efetuando,

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de um lado, a definição de seu objeto de pesquisaatravés do campo empírico das sociedades ainda nãoocidentalizadas, e, de outro lado, identificando asvantagens da civilização à qual pertence, faz doevolucionismo uma justificação teórica da prática docolonialismo.

Conforme Laplatine (2006: 70), os evolucionistasdo século XIX não se importam em compreender aantropologia como prática intensiva deconhecimento de determinada cultura. O que importaé a tentativa de compreensão, a mais extensapossível, de todas as culturas, em especial das “maislongínquas” e das “mais desconhecidas”. É precisoter em conta que os pesquisadores do século XIXnão tinham nenhuma formação antropológica(Morgan, Bachofen, Maine, Mac Lennan eramjuristas), mas colocaram o problema maior daantropologia: explicar a universalidade e adiversidade das técnicas, das instituições, doscomportamentos e das crenças, comparar as práticassociais das populações infinitamente distantes umasdas outras tanto no espaço como no tempo.

O mérito maior dos evolucionistas foi o de terextraído essa hipótese mestra sem a qual não haveriaantropologia, mas apenas etnologias regionais: aunidade da espécie humana. Foram eles quemostraram, pela primeira vez, que as disparidadesculturais entre os grupos humanos não eram de

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forma alguma a consequência de predisposiçõescongênitas, mas apenas o resultado de situaçõestécnicas e econômicas.

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VIIEVOLUCIONISMO EDIREITO

1. RELIGIÃO E DIREITOAs mais antigas concepções religiosas dos

romanos dizem respeito ao culto dos espíritos dosmortos e às crenças animistas em forçassobrenaturais (numina), multidão de divindades quepresidem a natureza: os reinos animal, vegetal emineral. Essas divindades são os gênios ou espíritosprotetores (lares) de cada família, que perpetuam aunidade familiar e cujo culto transmite-se de geraçãopara geração. A casa de um patrício romano possuisempre um altar, onde é conservado o fogo sagrado.Trata-se de uma antiga crença em nadainsignificante. Não é permitido alimentar esse fogocom qualquer espécie de madeira; ele deve estarsempre puro. Não pode ser lançado sobre elenenhum objeto salgado e nenhuma ação culpáveldeve ser cometida na sua presença (COULANGES,1929: 33).

Com o aumento da complexidade social, a

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religião doméstica dos romanos transforma-se emreligião da cidade, com um corpo hierarquizado desacerdotes, um calendário religioso que estabeleceos dias fastos e os nefastos, de modo que as práticasreligiosas, antes realizadas pelas famílias, tornam-sepúblicas e formais. Os cultos passam a sercelebrados por sacerdotes iniciados, agrupados emcolégios, dos quais o mais importante é o Colégiodos Pontífices, presidido pelo Pontífice Máximo. Ossacerdotes são organizados em três categorias: a) osaugures: interpretam a vontade dos deuses pelaobservação da natureza ou leitura dos presságios; b)os flâmines: encarregam-se do culto individual decada deus; e c) os feciais: pedem às divindades oêxito nas relações exteriores de Roma.

Em Roma, até meados do século V antes deCristo, as atribuições da Justiça são confiadas aoColégio dos Pontífices, uma organização religiosaaristocrática formada apenas por cidadãos patrícios,descendentes dos fundadores da cidade, que detêmo monopólio do conhecimento, interpretação eaplicação do direito costumeiro (ius quirites). Ossacerdotes ou pontífices encarregam-se deadministrar a Justiça, guardam as regras dosprocedimentos judiciais, dos quais apenas elessabem as fórmulas legais e os dias em que podem seraplicadas (dias fastos) ou não (dias nefastos). Ossacerdotes desempenham, portanto, um papel

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relevante na formação do direito arcaico (iusquirites) porque eles constituem e neles sedesenvolve o centro do saber jurídico.

Os sacerdotes são responsáveis pelapreservação da tradição religiosa (velam e guardam oculto dos antepassados) e jurídica (guardam asregras e as fórmulas do direito arcaico). Além disso,eles interferem na vida político-social ao sugerirem ocurso dos acontecimentos pela interpretação dosauspícios (manifestações dos deuses), que consistena leitura da natureza através do voo ou canto dospássaros, a queda da folha de uma árvore e outroseventos naturais.

Nessa sociedade, direito, religião e política nãose diferenciam, de modo que os pontífices espalhamo seu prestígio para além da esfera religiosa. Oprocesso de dessacralização, que consiste emseparar direito e religião, é lento e demorado, demodo que esses diferentes aspectos da culturapermanecem unidos por um longo período. Por essemotivo o Colégio dos Pontífices, além de ser umainstituição religiosa, aparece também como umainstituição jurídica e política que passa a conviver aolado de outras, como as assembleias, o Senado edemais magistraturas.

Enfim, alguns antropólogos entendem que aordem social estabelecida nas sociedades antigas eprimitivas não permite diferenciar direito de religião e

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magia. Aliás, Michel Foucault (1996) anota que, nasociedade grega antiga, o juramento constituiu umamaneira singular de produzir a verdade, deestabelecer a verdade jurídica; observa que essasprovas mágico-religiosas do juramento tambémestavam presentes no antigo direito germânico eprevaleceu na Europa por um longo período.

Em algumas sociedades primitivas é possívelobservar certas práticas mágico-religiosas, quetambém vigoraram na Europa medieval porintermédio do antigo direito germânico, com adenominação de ordálias. Uma das característicasdas ordálias é o método ritualístico para comprovarum testemunho. De modo geral, o chefe religioso,para saber se uma acusação é verdadeira ou falsa,submete o litigante a provas corporais, físicas. Nessesentido, um exemplo retirado do direito germânicoconsistia em fazer o acusado andar sobre ferro embrasa e, dois dias depois, se ainda tivesse cicatrizes,era considerado culpado.

1.1. Casamento religiosoA aproximação entre direito e religião ainda pode

ser observada em alguns institutos jurídicoscontemporâneos. No direito brasileiro, por exemplo,essa aproximação pode ser notada no casamentoreligioso com efeitos civis. Nesse sentido, o CódigoCivil estabelece que o casamento religioso equipara-

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se ao casamento civil, desde que escrito no registropróprio, produzindo efeitos a partir da data de suacelebração (art. 1.515).

Há quem entenda que o casamento religiosopara gerar efeito civil deve ser “oficiado por ministrode confissão religiosa reconhecida (católica,protestante, muçulmano, israelita). Não se admite,todavia, o que se realiza em terreiro de macumba,centros de baixo espiritismo, seitas umbandistas, ououtras formas de crendices populares, que nãotragam a configuração de seita religiosa reconhecidacomo tal” (PEREIRA in VENOSA, 2006: 32).

Essa tendência reducionista do conceito dereligião afronta as garantias constitucionais e podeprovocar sérias perturbações sociais. A ConstituiçãoFederal prescreve que é inviolável a liberdade decrença, assegura o livre exercício dos cultosreligiosos e garante, na forma da lei, a proteção aoslocais de cultos e as suas liturgias (art. 5o, VI). Negaràs manifestações religiosas advindas da culturaafricana um lugar no conceito de religião e nomearessas manifestações de forma pejorativa, além deviolar um princípio constitucional, expressa umdesejo de restabelecer dogmas da ideologiacolonialista, que, como visto, forneceu justificativaspara negar humanidade aos negros e aos índios.

Contra essa ideologia que se manifesta comorecusa do estranho, a antropologia construiu o

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princípio da alteridade, que significa a necessidadede colocar-se na posição do outro para podercompreendê-lo. Há, portanto, na base da liberdadereligiosa constitucionalmente garantida o princípioda alteridade, que estabelece que cada homem devereconhecer sua liberdade religiosa como a expressãodireta da liberdade religiosa do outro. Onde nãoexiste liberdade religiosa, o princípio da alteridademostra de forma cabal que o privilégio de um é aexpressão direta da privação do outro.

O aumento da complexidade social decorrente dointercâmbio cultural e das imigrações revela que noBrasil coexistem inúmeras religiões. A proteçãoconstitucional alcança todas elas, sem exceção. Ainterpretação das normas do Código Civil, no que dizrespeito ao casamento religioso, não pode restringiro que a Constituição Federal não restringe. Assim,além da religião cristã, da judaica, da mulçumana, énecessário considerar outras manifestaçõesreligiosas, como as provenientes de culturasafricanas, orientais e de outras partes do mundo,inclusive de culturas de sociedades ditas“primitivas”, porque não há, em absoluto, qualquerrestrição jurídica que impeça o índio ou aborígine detrazer consigo seu ritual de casamento.

Religião é um vínculo que liga o mundo profanoao mundo sagrado. Nas várias culturas, essa ligaçãoé simbolizada de maneiras diferentes. Religião é,

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portanto, um conceito antropológico (cultural),motivo pelo qual estabelecer um conceito jurídicopara religião significa excluir da proteçãoconstitucional as diversas manifestações religiosasde uma sociedade cosmopolita como é a sociedadecontemporânea. Casamento religioso é o celebradoconforme os rituais de uma religião, e não ocelebrado conforme os rituais de determinada oudeterminadas religiões eleitas pelo legislador ou pelointérprete como as melhores. Mesmo os religiososconscientes têm o cuidado de afirmar que não existeuma religião melhor que a outra. Religião boa éaquela em que a pessoa se sente bem, portanto, amelhor religião é uma (a sua) e todas (as dos outros).

Enfim, a Constituição Federal não define oconceito de religião nem autoriza o legisladorordinário a defini-lo porque é um conceitoantropológico, mas coíbe práticas atentatórias àdignidade da pessoa humana, mesmo quandorevestidas de rituais religiosos.

2. JURISTAS E EVOLUCIONISMOOs estudos realizados pelos antropólogos

evolucionistas a respeito das populações antigas eprimitivas, dos sistemas de parentesco, do mito, damagia e da religião influenciaram e ainda influenciamos estudos jurídicos. Mas, além dessascontribuições, é possível destacar outras.

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Influenciados pelos movimentos evolucionistas,os juristas do século XIX passaram a divulgar umaregra técnica de interpretação denominada métodohistórico-evolutivo, que permanece nos manuais dehermenêutica jurídica até os dias atuais. Segundoessa regra, ao intérprete cumpre fazer umainterpretação atualizadora. Isso deve ser assimporque, se a as relações sociais evoluem e as leis semantêm estáticas, o direito perde a sua força e, emvez de promover o bem social, passa a criarproblemas cujas consequências são as de atravancaro progresso.

Mais recentemente, alguns teóricos têmdestacado que a interpretação histórico-evolutiva ousociológica é necessária para resolver os problemassemânticos que se interpõem no ato interpretativo.Herbert Hart, por exemplo, aponta, como modalidadede imprecisão semântica, a denominada texturaaberta, que constitui um vício potencial que afetatodas as palavras da linguagem natural. Vale dizer,no direito moderno, as normas jurídicas sãoexpressas em palavras, e estas são sempre vagas eambíguas. Por causa disso, geram imprecisõessignificativas. É difícil, portanto, estabelecer o realalcance e sentido de uma norma jurídica expressa nalinguagem natural, ou seja, por causa dos problemassemânticos (vaguidade e ambiguidade) os juristasentendem que não é possível uma interpretação

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unívoca (ASSIS: 1995: 156, 157).Os problemas semânticos da linguagem

constituem objeto da regra de interpretaçãohistórico-evolutiva ou sociológica. De acordo comessa regra, o significado das palavras e expressõesestaria condicionado aos momentos cultural, políticoe econômico, motivo pelo qual destaca a influênciada atmosfera cultural na interpretação e aplicação dodireito.

De modo geral, os juristas entendem que,embora não seja determinante, o intérprete deveaveriguar os motivos (comportamentos) quecondicionaram a edição da norma jurídica. Deve,portanto, verificar as condições históricas domomento do nascimento da lei (o projeto, suajustificativa ou exposição de motivos) e ascircunstâncias fáticas ou necessidades queinduziram o órgão legislativo a elaborá-la. O maisimportante, porém, consiste em proceder a umlevantamento das circunstâncias atuais com o fito deverificar as funções do comportamento e dasinstituições sociais no contexto existencial em queocorrem. Assim, a palavra ou expressão vaga eambígua, sob a luz da interpretação histórico-evolutiva ou sociológica, deverá ser entendida emconformidade com as condições (culturais, sociais,políticas e econômicas) atuais. O intérprete, portanto,deve descrever o significado da norma jurídica em

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conformidade com o contexto existencial. Ointérprete, nessa trajetória, produz redefinições develhos conceitos. Essas redefinições podem serdenotativas ou conotativas sempre baseadas emdados (culturais, sociológicos) atuais, o que torna ainterpretação evolutiva.

Também sob a influência do evolucionismo,vários teóricos do direito procuraram entender ofenômeno jurídico sob o prisma da evolução,principalmente no que diz respeito aoestabelecimento das causas que provocam talevolução. Esses teóricos, em geral, consideram queos fatores da evolução jurídica são os mesmos daevolução social em geral, portanto, o direito evoluiem conformidade com a evolução do sistema social.Dentre esses teóricos, destaca-se Henry Lévy-Bruhl.

2.1. Henry Lévy-BruhlLévy-Bruhl (2000: 79 a 85), ao investigar as

causas da evolução do direito, destaca três fatores(econômicos, políticos e culturais), que atuam sobreo direito e provocam mudanças. Em relação aosfatores econômicos, constata que a estruturaeconômica de uma sociedade traduz-se de maneirainelutável em seu direito. O direito arcaico romano,por exemplo, era perfeitamente adaptado a umasociedade de pequenos agricultores. Com aexpansão romana e o subsequente surgimento de

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uma classe de comerciantes, novas mudanças foramintroduzidas no direito para atender às necessidadesdessa classe. O mesmo fenômeno pode serconstatado na época moderna, em decorrência dacriação de grandes indústrias e do fortalecimento daclasse burguesa. Em relação aos fatores políticosanota que o fato mais característico nessa matéria é aconquista, a anexação pela força armada. Sucedequase sempre que o vencedor imponha ao vencidosua legislação, seu direito privado tanto quanto suaconstituição política. Em relação aos fatoresculturais, entende que há uma harmonia necessáriaentre os fatos jurídicos e os fatos de cultura. Acultura atua sobre o direito e, segundo ele, bastaanotar que a conquista da Grécia exerceu influêncianão só sobre as artes e literatura dos romanos comosobre suas instituições jurídicas.

Para Lévy-Bruhl, o direito está em constanteevolução, mas o ritmo evolutivo não é o mesmo emtodas as sociedades. Nesse sentido, destaca trêsmodalidades de ritmos evolutivos: estagnação,evolução regular e mutações bruscas. A estagnaçãodo direito pode ser observada nas sociedadesprimitivas, que vivem para si mesmas e não oferecemao observador senão variações quase imperceptíveisno transcurso dos séculos. Essa estagnação quelevou as sociedades primitivas a conservar quaseimutáveis suas instituições ancestrais, segundo ele,

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decorre das condições geográficas e demográficas etambém do ambiente místico em que vivem taissociedades. A evolução regular pode ser observadana maioria das sociedades. É preciso, porém,distinguir entre as instituições privadas e asinstituições públicas. Estas últimas, segundo ele, sãomais frágeis que as primeiras, isto porque, afetandomais vivamente os sentimentos coletivos, suamudança acompanha-se quase sempre de violência.Ao contrário, as instituições de direito privado, emgeral, atravessam sem grandes modificaçõesperíodos conturbados. As mutações bruscas sãoprovocadas por revoluções porque estas introduzemnovos valores e, por conseguinte, produzemmudanças no sistema jurídico. Nesse sentido, citacomo exemplo a Revolução de 1789 na França e a de1917 na Rússia.

2.2. Outras manifestaçõesOs juristas evolucionistas, de modo geral,

entendem que a evolução do direito estásubordinada à realidade social subjacente, ou seja, àpresença de determinados fatores que influenciam aevolução da sociedade e define as suas diversasestruturas. Paulo Nader (1999: 59 a 66), por exemplo,entende que o direito, para ser instrumento eficaz doprogresso social, deve estar adequado à realidade,refletindo as instituições e a vontade coletiva,

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portanto, a evolução do direito deve expressar umesforço do legislador em realizar a adaptação de suasnormas ao momento histórico. Assim, os fatores queinfluenciam a vida social, provocando-lhe mutações,vão produzir igual efeito no setor jurídico,determinando alterações no direito positivo. Essesfatores, chamados sociais e também jurídicos,funcionariam como motores da vida social e dodireito.

O s fatores jurídicos ou sociais são, assim,elementos que condicionam os fenômenos sociais e,em consequência, induzem transformações nodireito. Nader aponta dois grandes grupos de fatoresjurídicos responsáveis pela evolução do direito:fatores naturais e fatores culturais. Os diversosfatores naturais que influenciam o comportamentohumano são agrupados nos seguintes tipos: a)geográfico: diz respeito ao clima, aos recursosnaturais e às características do território; b)demográfico: diz respeito a maior ou menorconcentração humana por quilometro quadrados, emum território; c) antropológico: abrange o grau dedesenvolvimento das pessoas de determinadasociedade, de acordo com a sua constituiçãofisiológica e mental, abrange também o caráter étnico,pelas aptidões, tendências e característicaspeculiares a cada raça. Dentre os fatores culturais,também denominados históricos, destacam-se os

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seguintes: econômico, de invenção, moral, religioso,ideológico e educacional.

Ao tratar do fator natural geográfico, Nader,com base nas informações de Marcel Mauss, relataque um exemplo da influência do fator climáticosobre a organização social é representado pelacultura esquimó. Durante o verão essa sociedade épatriarcal e se forma à base de pequenas famílias, quenão mantêm maiores vínculos sociais. No inverno afamília é grande e não possui caráter patriarcal; achefia é entregue a um homem velho e bom caçadorou pai de um bom caçador. Seus membros, conformenarra Marcel Mauss, vivem em um comunismoeconômico e sexual. Assim, expressando aspeculiaridades de uma estação e de outra, há umdireito de inverno e um de verão.

Ao tratar do fator cultural relativo àsinvenções, Nader lembra que as invenções provocamnovos hábitos e costumes, determinam a evoluçãonas instituições jurídicas, visto que estas devem serum reflexo da realidade social subjacente. Anota queJean Cruet deu grande realce à importância dasinvenções na vida do direito ao observar que “osábio, sem que o suspeite, é um tanto legislador,porque, muito mais que o jurista pelos seusraciocínios, prepara pelas suas descobertas o direitode amanhã”. De um lado, as invenções envelhecem odireito, e, de outro, geram a necessidade social de

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novos instrumentos jurídicos.Percebem-se nessas manifestações de Jean

Cruet as influências de Lewis Morgan, uma vez que,para esse antropólogo e jurista, a causa principal daevolução está ligada às invenções e descobertas.Antes de encerrar a parte dedicada aoevolucionismo, merecem ser destacadas algumasnoções estabelecidas por Lewis Morgan a partir daanálise que fez das sociedades primitivas,principalmente pela influência que tais noçõesexerceram sobre o marxismo e pela contribuição quederam para a compreensão do fenômeno jurídico.Dentre essas noções destacam-se a análise dosistema de parentesco e do sistema de produção, osquais serão expostos tomando como base o livro deFriedrich Engels: A origem da família, dapropriedade e do Estado.

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VIII LEWISMORGAN (1818 –1881)1. ANTROPOLOGIA SOCIAL E PARENTESCO

Para Lévi-Strauss (1993), Morgan fundousimultaneamente a antropologia social e os estudosde parentesco, explicando por que a primeira deveatribuir tanta importância aos segundos. De acordocom Morgan, de todos os fatos sociais, os que dizemrespeito ao parentesco e ao casamento manifestam,no mais alto grau, esses caracteres duráveis,sistemáticos e contínuos, que dão ocasião à análisecientífica.

Morgan elege como objeto da antropologia aanálise dos processos de evolução, quecompreendem as ligações entre as relações sociais,jurídicas e políticas. A ligação entre esses diferentesaspectos do campo social estabelece ascaracterísticas de determinado período da históriahumana. No estudo da sociedade arcaica introduzduas novidades: a) primeira: toma as sociedadesarcaicas como objeto de estudo e as reintegra pela

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primeira vez na humanidade inteira e, ao focar odesenvolvimento material dessas sociedades, oconhecimento da história começa a ser posto sobrebases totalmente diferentes das do idealismofilosófico; b) segunda: os elementos da análisecomparativa não são mais costumes consideradosbizarros, e sim redes de interação formando sistemas,termo que utiliza para as relações de parentesco(LAPLATINE, 2006: 73).

Como observa Mello (1982: 213, 218), Morganteve ainda o mérito de distinguir no seu estudo arespeito da organização social (sistemas deparentesco) três aspectos da cultura: a) oequipamento técnico (aspecto material da cultura); b)a organização social; e c) a nomenclatura ouequipamento simbólico. Para Morgan, osequipamentos técnicos constituem o fator dinâmicoque, quando mudado, provoca transformações naprópria organização social e, ato contínuo, nosequipamentos simbólicos. Morgan não desprezou aimportância das ideias como o princípio motor dasmudanças, mas viu no arcabouço tecnológico(invenções e descobertas) o responsável imediatopela organização social e pelo conjunto simbólico.

Morgan foi um dos primeiros a realizar pesquisade campo (etnografia), fato que lhe possibilitouestabelecer o caminho seguido pela organizaçãofamiliar através dos vários estágios de

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desenvolvimento. Nesse sentido, distinguiu trêsperíodos ou estágios de evolução da humanidade: a)selvageria; b) barbárie; e c) civilização. O períodod e n o min a d o selvageria caracteriza-se pelomatrimônio por grupos; nesse período predomina aapropriação de produtos da natureza, prontos paraserem utilizados, e as produções artificiais do homemsão, sobretudo, destinadas a facilitar essaapropriação. O período denominado barbáriecaracteriza-se pelo matrimônio sindiásmico(monogamia apenas para a mulher); nesse períodoaparecem a criação de gado, a agricultura por meiodo trabalho humano, a cerâmica e a fundição doferro. O período denominado civilização caracteriza-se pelo matrimônio monogâmico; nesse período ohomem continua a elaborar os produtos naturais,mas também é o período da indústria propriamentedita e da arte.

2. MORGAN E O MARXISMOMorgan exerceu grande influência nos autores

marxistas, principalmente em Friedrich Engels,quando este escreve A origem da família, dapropriedade e do Estado. No prefácio à primeiraedição (1884) desse livro, Engels (1976: 7) diz queKarl Marx queria expor, pessoalmente, os resultadosdas investigações de Morgan em relação àsconclusões da sua análise materialista da história,

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para esclarecer assim, e somente assim, todo o seualcance. Na América, diz Engels, Morgan descobriu,à sua maneira, a concepção materialista da história –formulada por Marx, quarenta anos antes – e,baseado nela, chegou, contrapondo barbárie ecivilização, aos mesmos resultados essenciais deMarx. No prefácio à quarta edição (1891), Engels dizque o trabalho de Morgan, A sociedade antiga,constitui a base de seu livro A origem da família, dapropriedade e do Estado.

Para Engels, Morgan organiza a investigaçãodas sociedades arcaicas em conformidade com aconcepção materialista, segundo a qual o fatordecisivo na história é, em última instância, aprodução e a reprodução da vida imediata. Issosignifica que a ordem social de uma época estádeterminada por duas espécies de produção: a) pelograu de desenvolvimento do trabalho: quanto menosdesenvolvido é o trabalho, mais restrita é aquantidade dos seus produtos e, por consequência,a riqueza da sociedade; b) pelo grau de influência dafamília: quanto menos desenvolvido é o trabalho,com maior força se manifesta a influência dominantedos laços de parentesco sobre o regime social.

Contudo, no quadro dessa estrutura dasociedade baseada nos laços de parentesco, aprodutividade do trabalho aumenta sem cessar, e,com ela, desenvolvem-se a propriedade privada e as

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trocas, as diferenças de riqueza, a possibilidade deempregar força de trabalho alheia. Surge assim a basedos antagonismos de classe. Os novos elementossociais procuram, no transcurso das gerações,adaptar a velha estrutura da sociedade às novascondições, até que, por fim, a incompatibilidade entreos novos elementos sociais e a velha estrutura dasociedade leva a uma revolução completa. Emconsequência do choque das classes sociais recém-formadas, a sociedade antiga, baseada nas uniõesgentílicas, desagrega-se; dá lugar a uma novasociedade organizada em Estado, cujas unidadesinferiores já não são gentílicas e sim unidadesterritoriais – uma sociedade em que o regime familiarestá completamente submetido às relações depropriedade e na qual têm livre curso as contradiçõesde classe e a luta de classes, que constituem oconteúdo de toda história escrita, até os nossos dias(Engels, 1976: 8, 9).

Para Engels (1976: 41), o grande mérito deMorgan “é o de ter descoberto e restabelecido nosseus traços essenciais esse fundamento pré-histórico da nossa história escrita e o de terencontrado, nas uniões gentílicas dos índios norte-americanos, a chave para decifrar importantíssimosenigmas da história antiga da Grécia, Roma eAlemanha (...). A família – diz Morgan – é o elementoativo; nunca permanece estacionária, mas passa de

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uma forma inferior a uma forma superior, à medidaque a sociedade evolui de um grau mais baixo paraoutro mais elevado. Os sistemas de parentesco, pelocontrário, são passivos; só depois de longosintervalos, registram os progressos feitos pelafamília, e não sofrem uma modificação radical senãoquando a família já se modificou radicalmente (...).Karl Marx acrescenta: ‘O mesmo acontece, em geral,com os sistemas políticos, jurídicos, religiosos efilosóficos’”.

Tomando como ponto de partida as noçõesestabelecidas por Morgan, conforme especificadasna obra de Engels, faz-se, na sequência, uma breveanálise de alguns princípios forjados na aurora dahumanidade (comunidades gentílicas) e suasrepercussões no âmbito do direito.

3. COMUNIDADE GENTÍLICAO primeiro fato histórico que se pode visualizar

na aurora da humanidade é a produção dos meiosnecessários à sobrevivência, que consiste nosuprimento das necessidades básicas e vitais: comer,beber, vestir-se e ter um abrigo. O primeiro fatohistórico é, portanto, a produção da própria vidamaterial.

À medida que as criaturas são incapazes, por simesmas, de garantir a produção da própria vidamaterial, isto conduz à formação de uma horda, um

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grupo familiar. A associação, assim constituída,desenvolve formas de ajuda mútua e mantém-seunida para que todos obtenham os meios desubsistência. Os fatos humanos originários são,portanto, as relações dos homens com a natureza naluta pela sobrevivência, e essas relações são as detrabalho, que dão origem à primeira instituição social,a família. Uma vez satisfeitas as primeirasnecessidades vitais, a ação e os instrumentosutilizados para tal engendram novas necessidades,que vão tornando a organização social maiscomplexa. Daí vem a tese de Marx, segundo a qual oshomens fazem sua própria história, mas não a fazemem condições escolhidas por eles. Sãohistoricamente determinadas pelas condições queproduzem suas vidas.

No primeiro estágio da família primitivapredomina o período de apropriação de produtos danatureza prontos para serem utilizados. Asproduções artificiais do homem são, sobretudo,destinadas a facilitar essa apropriação.Posteriormente, com a invenção do arco e da flecha,os animais caçados tornam-se um alimento regular ea caça uma das ocupações costumeiras. O trabalhocoletivo é realizado no âmbito da família, tendo nelehomens e mulheres a mesma importância. Essetrabalho desenvolve a intercomunicação e permitelevar adiante a realização de tarefas mais complexas,

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como a produção dos próprios alimentos. Surge aagricultura e com ela a criação de animais e o arado.

O primeiro estágio do grupo primordial é a famíliaconsanguínea. Nesta todos os avôs e avós, noslimites da família, são maridos e mulheres entre si. Omesmo ocorre com seus filhos e, assim,sucessivamente. Num segundo estágio ou progressona organização familiar, são excluídos das relaçõessexuais recíprocas os irmãos; essa exclusão acontecegradativamente; começa pela exclusão dos irmãosuterinos até atingir os “irmãos colaterais”, ou seja, osprimos, conforme denominação atual.

“Uma vez proibidas as relações sexuais entretodos os irmãos e irmãs – inclusive os colaterais maisdistantes – por linha materna, o grupo transforma-senum genos, isto é, constitui-se num círculo fechadode parentes consanguíneos por linha feminina, quenão podem casar-se uns com os outros. E, a partir deentão, este círculo consolida-se cada vez mais pormeio de instituições comuns, de ordem social ereligiosa, que o distingue dos outros genos damesma tribo” (ENGELS, 1976: 56).

A comunidade gentílica é, assim, um grupoligado por laços de solidariedade que mantêmorganizada a totalidade da vida social. Com adesagregação da comunidade gentílica, esses laçosde solidariedade se diluem. O rompimento doprincípio da solidariedade significa, portanto, uma

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enorme perda para a organização humana, daí aimportância de investigar a sua formação e posteriordissolução.

3.1. Princípio da solidariedadeA comunidade gentílica (genos) “consiste em

uma forma de associação, em que os membros que acompõem estão unidos pelo vínculo do parentescoou da descendência comum; parentesco edescendência efetiva e real ou simplesmentepresumida e fictícia, interiormente caracterizado poruma estreita solidariedade dos membros entre si”(Vanni, 1916: 112).

N o genos não existe propriedade privada; apropriedade da terra é coletiva. Em virtude dessaestrutura, os vínculos de solidariedade sãofortalecidos. Nesse tipo de organização acomplexidade é bastante reduzida, porque “todas asfunções sociais encontram sua base natural, suasustentação social e sua legitimação na proximidadedo parentesco. Isso é válido para as funçõeseconômicas do auxílio mútuo e da compensação denecessidades. Se a unidade de parentesco extravasao tamanho máximo do convívio familiar, ocorre afragmentação segmentária, principalmente no sentidode formação de outras famílias, cuja coesão em umatribo é mantida com base na ascendência e nahistória comum” (LUHMANN, 1983: 184).

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O poder de estabelecer o equilíbrio social estádominado pelo elemento organizador, fundado noprincípio do parentesco, que se caracteriza pela suaautossuficiência (as pessoas simplesmente sãoparentes) e pela ausência de alternativas (já estãodeterminados o grau e a proximidade ou distânciadesse parentesco). Essa característica limita acomplexidade que não pode ser ampliada, masapenas repetida. Uma organização em que acomplexidade é reduzida, as situações objetivamentedadas são pobres em alternativas, e isso, de certaforma, limita a ação e a criatividade do pensamento,motivo pelo qual as mudanças nas comunidadesgentílicas ocorrem de forma lenta, às vezesimperceptíveis.

A solidariedade representa uma espécie demútuo ou troca que envolve a paz e a defesa. Assim,em toda ofensa ou lesão que tenha recebido um dosmembros do grupo, intervém todo grupo, solidáriocom ele, para obter reparação (VANNI, 1916: 114). Areação coletiva inspira-se na noção segundo a qualos membros do grupo garantem reciprocamente a paze a defesa. Quem pratica um ato perturbador infringea paz e, portanto, deve ser posto fora dela.

Em épocas de guerra, os genos unem-se emgrupos maiores chamados fratias; as fratiasaparentadas formam a tribo. A solidariedade dosgenos, contudo, não está adstrita somente às

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questões militares. A fratia incorpora tambémdireitos e deveres recíprocos, especialmente os queconsistem na comunidade de certos ritos religiosos(cerimônias sacras periódicas).

3.2. Solidariedade e costumeA convivência humana produzida pelo grupo é

geradora de regras, portanto, ao longo de suahistória, o grupo primitivo estabelece regras deconduta e passa a ser organizado conforme elas. “Ofato do repetir constante e uniforme de certos atosconstitui e já implica uma autoridade: a autoridade doprecedente. O costume transmite-se de geração emgeração; a tradição com o correr do tempo se tornamemorável e induz ao respeito e à observância”(VANNI, 1916: 114).

Assim, certos comportamentos e certas maneirasde agir, pela repetição constante, vão-se tornandoregras gerais de conduta. Essas regras passam arepresentar uma ordem sagrada que obriga o homeme a divindade, por isso o comportamento contrárioacarreta uma desilusão muito acentuada àexpectativa consagrada pelas regras. Pertencer a umgrupo social e nele conviver é estar em conformidadecom o direito desse grupo, isto é, em conformidadecom as regras do grupo, que também são as regrasqueridas pela divindade. A ideia de pertinência aogrupo social se fortalece por intermédio dessa

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prática. “O direito do grupo é sentido como o únicodireito possível, até porque o indivíduo não possuinenhum acesso independente de sua parentela aodesencadeamento de outras possibilidades”(LUHMANN, 1983: 187). “No horizonte do direitoarcaico só ha lugar para uma única ordem: aexistente” (FERRAZ JR., 1988: 53).

O direito arcaico perde consistência com afragmentação da comunidade gentílica em famíliasmenores (família monogâmica) e o consequenteaparecimento de formas mais complexas derelacionamento social: propriedade privada, classessociais, escravidão etc. Com a fragmentação dogenos, o princípio do parentesco migra para aorganização menor em processo de construção(família monogâmica), imprimindo-lhe autonomia emrelação ao próprio genos. O processo históricomostra que a evolução da família consiste numaredução constante do círculo de pessoas que acompõe e, com isso, também se reduz o círculo deabrangência do princípio da solidariedade.

Apesar da constante redução do círculo familiarno decorrer do processo histórico, alguns aspectosda comunidade gentílica permanecem na sociedademoderna. Nesse sentido, a ONU reconhece quequando a economia familiar está baseada naagricultura ou noutra atividade própria ao meio rurale existe a tradicional família ampliada, podem-se

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confiar tarefas úteis a todas as pessoas. Porém, àmedida que a agricultura se torna mecanizada e maiscomercializada, que as transações monetáriassubstituem o sistema de trocas e a família ampliadase desintegra, as pessoas abandonam as regiõesrurais e se dirigem aos centros urbanos e passam aconviver com a falta de trabalho. Nos bairros pobresdas cidades a concorrência para conseguir trabalho égrande e, por esse motivo, muitas pessoas residentesnessas zonas veem-se forçadas à inatividade e sãoobrigadas a recorrer à mendicância (PAM/ONU,1982: 27).

É possível perceber que nas comunidadesprimitivas ainda existentes (grupos indígenas) osindivíduos compartilham o mesmo destino, motivopelo qual todos se sentem responsáveis uns pelosoutros. Essa noção de solidariedade forjada naaurora da humanidade e presente em todas ascomunidades parece que ficou em um passadodistante, longínquo, por isso irrecuperável.

4. FIM DA SOLIDARIEDADEA cidade (polis) surge a partir da crise que se

instaura na organização gentílica. A polis representaum domínio político localizado num centro deadministração diferenciado da organização familiar.Com o advento da polis ocorre um aumentoconsiderável da complexidade da vida social e da

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contingência das relações humanas. O mundo setorna mais problemático pela ampliação do horizontede possibilidades, pelo aparecimento de um universomais amplo em alternativas, conflitos e contradições.No âmbito do direito isso significa que um númeromaior de comportamentos mais variados torna-sejuridicamente possível (LUHMANN, 1983: 167).

Rousseau (1973: 241), ao abordar a origem e osfundamentos das desigualdades entre os homens,aponta duas espécies de desigualdades: a) uma queele denomina desigualdade natural ou física, porqueé estabelecida pela natureza e consiste na diferençadas idades, da saúde, das forças corporais e dasqualidades do espírito ou da alma; b) outra que eledenomina desigualdade moral ou política, porqueconsiste nos diferentes privilégios desfrutados poralguns em prejuízo dos demais, como o de seremmais ricos e mais poderosos.

Na comunidade gentílica, a desigualdadenatural ou física é neutralizada pelas relações deparentesco e pelo princípio de solidariedade quevisam à preservação do grupo. Nessa mesmacomunidade a desigualdade moral ou política,quando não é desconhecida, é pouco desenvolvida,porque a estrutura social dessas comunidades éapenas uma extensão da estrutura familiar, em quepredomina o regime de propriedade coletiva dosmeios de produção. A sociedade, portanto, ao

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alcançar um estágio superior de crescimentoeconômico e complexidade social, introduziu umainevitável mazela social: a desigualdade na riqueza.

4.1. Desigualdade econômicaO descobrimento de novas técnicas e invenções

e sua aplicação à agricultura, à criação de gado e aosofícios manuais elevaram a produção a um nívelmaior do que o necessário para o consumo: surge,assim, o excedente. Alguns homens, em virtude dasfunções que exercem no grupo (administram osnegócios comuns e cuidam das funções religiosas),apropriam-se das terras mais férteis econsequentemente do excedente comunal, passam acontrolar o intercâmbio comercial e, aos poucos,acumulam riquezas que lhes permitem impor-se aosdemais membros da comunidade como dirigentes,instaurando a desigualdade econômica no seio dacomunidade gentílica.

Assim, à desintegração do genos segue-se adesigualdade social com o aparecimento de umaoligarquia que congrega grandes proprietários. Essesproprietários passam a exercer o domínio político e,no intuito de acumular mais riquezas, chegam aolimite de reduzir alguns membros do genos àcondição de escravo. A unidade produtiva passa aser o oikos (propriedade privada), uma instituiçãosocial bem menor que o genos, no qual vivem os

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parentes mais afins e os escravos. Essa unidadeprodutiva é dirigida e administrada diretamente pelochefe da família.

As novas condições provocam odesaparecimento das práticas dos velhos costumes;quer dizer, a transformação da base material da vidacomunitária, originada pelo surgimento de novastécnicas e novas formas de produção, provoca umprofundo efeito no âmbito das relações sociais. Naspalavras de Ferraz Jr. (1988: 54): “com odesenvolvimento das sociedades, quer pelo aumentoquantitativo, quer pelo aumento da complexidade dasinterações humanas possíveis, o princípio doparentesco, pela sua pobreza, é, pouco a pouco,diferenciado e substituído como base da organizaçãosocial”.

Na comunidade gentílica, como dito, apropriedade dos meios de produção é coletiva, afamília se confunde com o próprio grupo e todos nogenos consideram-se ligados por laços deparentesco. Com o surgimento da propriedadeprivada, a família, que inicialmente é a única relaçãosocial, transforma-se numa relação subalterna. Issoocorre quando o acréscimo das necessidadesengendra novas relações sociais, e a descoberta ouinvenção de novas técnicas, aliada ao crescimentoda população, dá origem a novas necessidades. Asociedade antiga, baseada nas uniões gentílicas,

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desagrega-se; surge no seu lugar a nova sociedade(polis ou Estado), cujas unidades inferiores já nãosão gentílicas e sim unidades territoriais; umasociedade em que o regime familiar está totalmentesubmetido às relações de propriedade e na qual têmlivre curso as contradições de classe.

O homem, na comunidade gentílica que eragovernado por um complexo de regras costumeirasemanadas da vida coletiva, não tinha outros meioscoercitivos além da “opinião pública”. “Acabava desurgir, no entanto, uma sociedade que, por força dascondições econômicas gerais de sua existência,tivera que se dividir; uma sociedade em que osreferidos antagonismos não só não podiam serconciliados como ainda tinham que ser levados aosseus limites extremos. Uma sociedade desse gênerosó podia subsistir no seio de uma luta aberta eincessante das classes entre si, ou sob o domínio deum terceiro poder que, situado aparentemente porcima das classes em luta, suprimisse os conflitosentre estas e só permitisse a luta de classes nocampo econômico, numa forma dita legal” (ENGELS,1976: 24).

Morgan (in ENGELS, 1976: 236) constata que,“desde o advento da civilização, chegou a ser tãogrande o aumento da riqueza, assumindo formas tãovariadas, de aplicação tão extensa, e tão habilmenteadministrada no interesse de seus possuidores, que

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ela, a riqueza, se transformou numa forçaincontrolável, oposta ao povo. A inteligênciahumana vê-se impotente e desnorteada diante da suaprópria criação”.

Alguns teóricos entendem que não háconhecimento científico possível sem que seconstitua uma teoria servindo de paradigma, isto é,de modelo organizador do saber. A teoria daevolução cumpriu esse papel decisivo, ao imprimirum grande impulso na construção da antropologiacomo saber científico. Não obstante, osantropólogos do século XX introduzirão uma rupturaem relação ao paradigma do evolucionismo, criandonovos modelos de construção do saberantropológico. Um dos primeiros antropólogos a seposicionar contrário ao evolucionismo foi FranzBoas, cujas ideias expõe-se na sequência.

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IX FRANZ BOAS(1858-1942)1. ANTROPOLOGIA NO SÉCULO XX

No século XX concretiza-se o sonho deRousseau. O estudo antropológico põe fim àrepartição de tarefas, até então habitualmentedivididas entre o observador (viajante, missionário,administrador), entregue ao papel subalterno deprovedor de informações, e o pesquisador, que,tendo permanecido na metrópole, recebia, analisava einterpretava essas informações. A profissionalizaçãodo trabalho etnográfico levou o antropólogo para ocampo. Assim, a partir do século XX a etnografiapassa a ser parte inseparável da antropologia, namedida em que o próprio antropólogo toma para si atarefa de colher informações, realizando o que sedenomina pesquisa de campo ou trabalho decampo.

A nova geração de antropólogos (Malinowski,Radcliffe-Brown, Margaret Mead e outros) realizamissões de pesquisas etnográficas com estadiasprolongadas entre as populações do mundo inteiro.Franz Boas é considerado o responsável por essa

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mudança, razão pela qual é tido como o pioneiro daetnografia.

Dentre as contribuições de Franz Boas àantropologia, destacam-se: a) a crítica à noção deestágios; e b) a exigência da união do teórico e doobservador. Boas, ao formular a crítica às noções deorigem e de reconstituição dos estágios, mostra queum costume só tem significado se for relacionado aocontexto particular no qual se insere, portanto, ashistórias locais não se enquadram num padrãouniversal, motivo pelo qual cada sociedade adquire oestatuto de uma totalidade autônoma. Para Boas, oantropólogo deve ser, ao mesmo tempo, o teórico e oobservador, portanto, não pode contentar-se apenasem coletar materiais à maneira do viajante,missionário ou administrador, mas deve procurardetectar o que faz a unidade da cultura que seexpressa através desses diferentes materiais. Poressas razões, acreditava que apenas o antropólogopodia elaborar uma monografia, isto é, o estudocientífico de uma microssociedade, apreendida emsua totalidade e considerada em sua autonomia.

2. ETNOGRAFIANo decorrer do século XIX apareceram na

Europa várias revistas e numerosas associaçõescientíficas que esboçavam algumas preocupações emrelação ao destino das sociedades primitivas. Essas

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revistas e associações colocaram em evidência anecessidade de proteger tais sociedades, porque aação de grupos capitalistas e religiosos representavauma ameaça à cultura daqueles povos e ao próprioobjeto de estudo da antropologia. Vale dizer,algumas pessoas perceberam que a ação capitalista ereligiosa provocaria o desaparecimento das culturasprimitivas e comprometeria, de modo irreversível, osestudos antropológicos.

A preocupação com o desaparecimento dasculturas primitivas fez com que alguns dosantropólogos se empenhassem na tarefa de coletar eregistrar o maior número possível de informações.Esse trabalho, conhecido como etnografia (trabalhode campo), consiste basicamente na descrição doscostumes dos povos. Trata-se de uma tarefaaparentemente de menor importância, porque nãoexige uma elaboração teórica. O trabalho etnográfico,contudo, implica certo revestimento teórico, porqueo registro dos elementos da cultura pesquisadarequer uma sistematização. Esta, por sua vez, exigeuma compreensão do fenômeno cultural, ou seja,uma teoria a respeito da cultura. Franz Boas forneceuos princípios da pesquisa etnológica, que foramaproveitados principalmente pelas escolasantropológicas norte-americanas conhecidas comodifusionismo e configuracionismo.

No campo, ensina Boas, tudo deve ser anotado

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nos mínimos detalhes, desde os materiaisconstitutivos das casas até as notas das melodias.Tudo deve ser objeto de descrição meticulosa. Nessesentido, é preciso anotar detalhadamente asdiferentes versões de um mito, ou os mais diversosingredientes da composição de um alimento. ParaBoas não há objeto nobre nem objeto indigno daciência. As piadas são tão importantes quanto amitologia que expressa o patrimônio metafísico dogrupo. Em especial, deve ser levada em consideraçãoa maneira pela qual as sociedades tradicionais, navoz dos mais humildes entre eles, classificam suasatividades mentais e sociais. Boas foi um dosprimeiros a mostrar não apenas a importância mastambém a necessidade, para o antropólogo, doacesso à língua da cultura na qual trabalha. Astradições que estuda não poderiam ser-lhetraduzidas. Ele próprio deve recolhê-las na língua deseus interlocutores (LAPLATINE, 2006: 77, 78).

2.1. Reconstrução da culturaFranz Boas reconhecia que mesmo o

antropólogo dedicado à pesquisa de campoencontraria dificuldades na coleta, organização einterpretação do material necessário à reconstruçãode determinada cultura. Segundo ele, o material paraa reconstrução de cultura é sempre mais fragmentárioporque os mais amplos e mais importantes aspectos

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de cultura (linguagem, religião, organização social)não deixam traços na terra, desaparecem com a vidade cada geração. Assim, a informação histórica éavaliada apenas através das fases mais recentes davida cultural e é restrita àqueles povos que possuema arte de escrever e cujos registros é possível ler.Mas mesmo essa informação é insuficiente, porquemuitos aspectos da cultura não encontram expressãoem literatura (MELLO, 1982: 231 e 232). Como senota, Franz Boas exige um critério de validadebastante rígido no que diz respeito às reconstruçõeshistóricas das culturas. Vale dizer, os estudosetnográficos não permitem, em muitos casos,estabelecer tais reconstruções.

Para Boas (in LÉVI-STRAUSS, 2003: 22), os fatosnão autorizam nenhuma reconstrução tendente, porexemplo, a afirmar a anterioridade histórica dasinstituições matrilineares sobre as patrilineares.Segundo ele, “tudo o que se pode dizer é quefragmentos de desenvolvimentos históricos arcaicosnão podem deixar de subsistir, mas, se é possível, emesmo provável, que a estabilidade inerente àsinstituições matrilineares as tenha frequentementeconduzido, onde existem, a se transformarem eminstituições patrilineares, disto não resulta denenhuma maneira que, sempre e por toda parte, odireito materno tenha representado a forma primitiva”em relação ao direito paterno.

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Diante dessas dificuldades em estabelecer umpadrão universal, Boas entende que o estudoantropológico deve concentrar-se na abordagem deculturas particulares, cada uma vista como umaunidade singular e como um problema individual,pois a cultura é por demais complexa para permitir umlevantamento histórico completo e de caráteruniversal. Com isso o uso do termo cultura no pluralpassa a identificar a ideia antropológica moderna, ouseja, em vez de cultura, os antropólogos, seguindoBoas, começaram a escrever sobre culturas,reconhecendo que elas não constituem sistemasintegrados.

Boas alerta que a pesquisa, para ser legítima,deve restringir-se a uma pequena região comfronteiras nitidamente definidas; e as comparaçõesnão devem ser estendidas além da área escolhidacomo objeto de estudo. A recorrência de costumesou instituições análogos não pode ser sustentadacomo uma prova de contato entre culturas; para issoé necessário estabelecer uma cadeia contínua defatos do mesmo tipo que permitem ligar os fatosextremos por toda uma série de intermediários. Paracompreender a história, dizia ele, não basta sabercomo são as coisas, mas como chegaram a ser o quesão (in LÉVI-STRAUSS, 2003: 20, 21).

Para Boas, o estudo detalhado dos costumes, ede seu lugar na cultura global da tribo que os pratica,

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acrescido de um inquérito que tenha por objeto suarepartição geográfica entre as tribos vizinhas, talvezpudesse determinar, de uma parte, as causashistóricas que conduziram à sua formação, e, deoutra parte, os processos psíquicos que os tornarampossíveis. Mas, segundo Ruth Benedict (in LÉVI-STRAUSS, 2003: 22), Boas dizia que o problema eradeterminar as relações entre o mundo objetivo e omundo subjetivo do homem tal como se configuranas diferentes sociedades.

De qualquer modo, para Boas, a diversidade deprocessos históricos que constituem as sociedadesimplica estabelecer para a antropologia o estudo econhecimento de grupos sociais localizados noespaço e no tempo. Assim, o conhecimentoantropológico, quando muito, só consegue alcançara história de cada grupo, portanto, uma micro-história, bastante diferente da concepção de história(macro-história) do evolucionismo.

Enfim, as investigações de Boas estabeleceram aquestão de saber se “a análise mais penetrante deuma cultura única, que compreenda a descrição desuas instituições e de suas relações funcionais, e oestudo dos processos dinâmicos pelos quais cadaindivíduo age sobre sua cultura, e a cultura sobre oindivíduo, pode adquirir todo seu sentido sem oconhecimento do desenvolvimento histórico queresultou nas formas atuais” (LÉVI-STRAUSS, 2003:

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23). Essa questão ainda constitui tema polêmico naantropologia, tanto que Lévi-Strauss lembra que aquase totalidade da escola americana contemporânearenunciou-se a compreender a história para fazer, doestudo das culturas, uma análise sincrônica dasrelações entre seus elementos constitutivos nopresente.

3. CULTURA E RAÇAConforme relata Kuper (2002: 32 a 34), Ernst

Haeckel, o mais proeminente darwinista daAlemanha, apresentou argumentos segundo osquais a teoria de Darwin podia ser usada parademonstrar a superioridade da raça prussiana. RudolfVirchow mostrou-se hostil em relação a essedeterminismo racial e ao nacionalismo cultural com oqual estava associado. Para Virchow raças eramcategorias instáveis com fronteiras móveis, e amistura racial era amplamente disseminada, portanto,provavelmente universal. Traços biológicospassavam por cima das classificações raciaisconvencionais, que em todos os casos eraminfluenciados por fatores ambientais locais.Diferença cultural, portanto, não apresentavaindícios de diferença racial. Raça, cultura, língua enacionalidade, dizia Virchow, não coincidemnecessariamente, visto que os refugiadoshuguenotes estão germanizados, assim como os

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numerosos judeus que vieram da Polônia e da Rússiacontribuíram sobremaneira para o progresso dacultura alemã.

Adolf Bastian, colega de Virchow, tentoudemonstrar que, assim como as raças, as culturas sãohíbridas. Não existem culturas puras, distintas epermanentes. Toda cultura recorre a diversas fontes,depende de empréstimo e está em constantemudança. Para Bastian, as diferenças culturais eramcausadas pelo desafio apresentado pelo ambientenatural local e pelo contato entre populações,portanto, o empréstimo é o mecanismo primário damudança cultural. E, como as mudanças culturais sãoresultados de processos locais imprevistos –pressões ambientais, migrações, comércio –,consequentemente, a história não tem um padrão fixode desenvolvimento.

Franz Boas, aluno de Bastian, absorveu as tesesdo seu professor ao afirmar que as mudançasculturais resultavam de contatos casuais ou eramgeradas pela reação criativa de indivíduos diante datradição herdada, estimulada pelo desafio ambiental.Assim, a tese fundamental boasiana consiste emafirmar que a raça não determina a cultura. É a culturaque molda os homens e não a biologia. Os homensse tornam o que são ao crescer em determinadoambiente cultural. Raça não implica condiçõesnaturais imutáveis. Isso quer dizer que o homem

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pode transformar-se em algo melhor e talvezaprendendo a ser tolerante e equilibrado como opovo de Samoa ou de Bali. Nessa trilha, MagarethMead, aluna de Boas, estudando o comportamentodos adolescentes das ilhas Samoa, entendeu queseus estudos deveriam permitir a instauração de umasociedade melhor, e, mais especificamente, aaplicação de uma pedagogia menos frustrante àsociedade americana.

3.1. Cultura e segregaçãoEm outra passagem, Kuper (2002: 14 e 17)

observa que as conclusões de Boas forammanipuladas no sentido de justificar o apartheid,política coercitiva de segregação racial praticada naÁfrica do Sul até o final do século XX. Nesse país asdoutrinas oficiais sobre raça e cultura (apartheid)invocavam autoridade científica com fundamentosnuma teoria antropológica cultural. A antropologia,portanto, poderia justificar uma ordem normativa(jurídica) que estabelecesse a segregação racial.

Essa articulação, no sentido de justificar asegregação por intermédio de uma teoriaantropológica cultural, tem origem na década de1930, quando alguns intelectuais africânderes, entreeles Eiselen, passaram a repudiar os preconceitostorpes disseminados entre os brancos sul-africanos.Para Eiselen não havia provas de que a inteligência

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variava com a raça, tampouco que uma raça ou naçãoprivilegiada deveria conduzir o mundo rumo àcivilização. Não era, segundo Eiselen, a raça, mas sima cultura que constituía a verdadeira base dadiferença entre negros e brancos. As diferençasculturais deveriam ser avaliadas. Se a integridade dasculturas tradicionais fosse minada, haveria umadesintegração social, motivo pelo qual Eiselenachava que o governo deveria estimular uma “culturanegra (banto) mais elevada, e não produzir europeusnegros”. Mais tarde o slogan “desenvolvimentoseparado” passou a ser usado. A segregação,segundo alguns, era o curso adequado para a Áfricado Sul, pois só assim as diferenças culturais seriampreservadas.

Desse modo, os argumentos boasianos segundoos quais raça e cultura são independentes entre si,que a cultura é o que torna as pessoas o que elas sãoe que o respeito pelas diferenças culturais deveriaconstituir a base da sociedade justa, passaram a sermanipulados pela antropologia cultural africândercomo uma justificativa desesperada para manter alegalidade do apartheid.

3.2. Cultura e símbolosPara Lévi-Strauss (2003: 35, 36), cabe a Boas o

mérito de ter, com lucidez admirável, definido anatureza inconsciente dos fenômenos culturais.

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Após ter mostrado que a estrutura da línguapermanece desconhecida daquele que fala até osurgimento de uma gramática científica, e que,mesmo então, ela continua a modelar o discurso forada consciência do sujeito, impondo ao seupensamento quadros conceituais que são tomadospor categorias objetivas, acrescentava: “a diferençaessencial entre os fenômenos linguísticos e outrosfenômenos culturais é que os primeiros jamaisemergem à consciência clara, ao passo que ossegundos, se bem que tendo a mesma origeminconsciente, se elevam frequentemente até o níveldo pensamento consciente, produzindo assimraciocínios secundários e reinterpretações”.

Mas, na opinião de Boas, essa diferença de graunão diminui o valor exemplar do método linguísticopara as pesquisas etnológicas. Ao contrário, ”agrande vantagem da linguística a este respeito é que,no conjunto, as categorias da linguagempermanecem inconscientes; por esta razão, pode-seseguir o processo de sua formação sem queintervenham, de maneira falaz e incômoda, asinterpretações secundárias, tão frequentes emetnologia, que podem obscurecer irremediavelmentea história do desenvolvimento das ideias”. Essasteses, segundo Lévi-Strauss, foram formuladas porFranz Boas oito anos antes da publicação do Cursode linguística geral de Ferdinand de Saussure.

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Segundo Kuper (2002: 89), a partir de 1930, Boaspassa a apresentar oficialmente uma concepçãoantropológica moderna da cultura como um sistemaintegrado de símbolos, ideias e valores.

Cabe anotar que Franz Boas é considerado omentor das escolas antropológicas norte-americanasconhecidas como difusionismo e configuracionismo,às quais se ligam os nomes de Edward Sapir, RuthBenedict e Margaret Mead.

4. DIFUSIONISMOA teoria difusionista preocupa-se em

compreender o processo de transmissão doselementos de uma cultura para outra, motivo peloqual postula a existência de centros de difusão decultura, a qual se transmite por empréstimo. Assim,diante de vários agrupamentos culturais, escolhe omais rico e mais complexo como representando aforma primitiva da sociedade, e consigna sua origemà região do mundo em que se encontra arquitetadode maneira melhor, considerando todas as outrasformas como resultado de migrações ou empréstimoa partir daquele foco comum.

O difusionismo, também denominadohistoricismo, engloba várias tendências daantropologia cultural; podem-se, entretanto, apontaras seguintes características gerais pertinentes a essemovimento (MELLO, 1982: 222 a 224):

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a ) Reação ao evolucionismo: O difusionismo évisto como um movimento de reação à orientaçãoevolucionista dominante na antropologia do séculoXIX. Essa reação atinge não só a orientação geralteórica, mas também os procedimentosmetodológicos. Ele, entretanto, não rejeitacompletamente os conceitos básicos constituídos econstruídos pelo evolucionismo; existem,evidentemente, pontos divergentes, mas tambémpontos convergentes, já que ambos, de certa forma,repousam em bases teóricas comuns. Há, nessesentido, uma preocupação em explicar a cultura comofenômeno universal e humano pela variável tempo,motivo pelo qual ressaltam-se o aspecto diacrônico enão sincrônico da cultura.

b) Interesse pelos traços culturais semelhantes:A teoria difusionista proclama que a essência dosfenômenos da sociedade e da cultura consiste noseu caráter dinâmico e desenvolvimentista. É umateoria da sociedade e da cultura que destaca arealidade humana e o trabalho humano. Busca,sobretudo, uma explicação histórica para entender assemelhanças existentes entre as culturas particulares.Nesse sentido, dá relevo ao fenômeno da difusão edos contatos entre os povos, motivo pelo qualadvoga uma mudança nos métodos da antropologia.

c ) Rigor metodológico: O difusionismopreocupa-se em tornar os métodos da antropologia

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cultural mais rigorosos, mais científicos. Essapreocupação possibilitou o desenvolvimento dapesquisa de campo com intensidade considerável,dando grande impulso à etnografia. Para alguns eraurgente coletar dados e informações sobre os povosprimitivos antes que os mesmos desaparecessem oufossem absorvidos pela civilização; em virtude dissoa coleta de dados tornou-se mais importante do quea explicação do fenômeno cultural.

d) Desenvolvimento de técnicas de pesquisa: Aoelevar a pesquisa de campo como fator fundamentalda pesquisa antropológica, o difusionismodesenvolveu várias técnicas de pesquisa,principalmente, a observação participante, quepossibilitou aos antropólogos aprender váriosidiomas antes desconhecidos. Esse fato favoreceu oincremento da linguística como ramo específico daantropologia.

e ) Interesse pelas culturas particulares: Aabordagem difusionista não só possibilitou umanova interpretação do fenômeno cultural, mastambém deslocou o foco de estudo para associedades particulares. Isso ocorreu principalmentecom a escola norte-americana, que passou a darimportância ao estudo das culturas particulares e nãoà cultura universal. Para essa escola, o importantenão é o estudo da cultura nas suas origens e emtodas as partes, formando uma grande unidade

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comum a todos os povos; mas sim o estudo dasculturas particulares, que permite maior segurançanas informações e conhecimento de fenômenos atéentão desconhecidos.

4.1. Difusionismo norte-americanoComo dito, Franz Boas foi o principal mentor da

escola difusionista norte-americana. Essa escola,além de imprimir uma nova interpretação aofenômeno cultural, passou a se concentrar no estudodas culturas particulares, delimitando o campo deestudo da antropologia.

Para os difusionistas norte-americanos, a culturaé por demais complexa para permitir um levantamentohistórico completo e de caráter universal, motivo porque optam pelo estudo de áreas delimitadas e, depreferência, pequenas, o qual permite interpretar commaior segurança as informações colhidas. Entendemque dessa forma torna-se mais fácil e seguro oestudo histórico-cultural. Foi essa consciência quelevou a um aperfeiçoamento metodológico, dandopreferência às informações colhidas com a pesquisade campo. A delimitação do estudo antropológico,transformando cada povo primitivo (clã, tribo) emunidade de estudo, possibilitou a ampliação e oaprofundamento dos temas a serem investigados,fato que contribui para a valorização, ampliação eintensificação da produção de pesquisas de campo e

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do material coletado (MELLO, 1982: 230, 231).Convém salientar que os representantes dessa

escola perceberam que a difusão não é um processomecânico, pelo contrário, supõe uma elaboraçãocomplexa por parte do povo que adota certos traçosculturais de outros povos. A propósito, Franz Boas(in Mello, 1982: 233) esclarece que “a importância dadifusão foi tão firmemente estabelecida pelainvestigação da cultura material norte-americana,cerimônias, arte, mitologia, assim como pelo estudodas formas culturais africanas e pelo da pré-históriada Europa, que não podemos negar sua existência nodesenvolvimento de qualquer tipo cultural local. Nãosó se provou objetivamente por meio de estudoscomparativos, como também o investigador decampo tem amplas provas das maneiras de atuar dadifusão... A introdução de novas ideias não se devede forma alguma considerar como resultantepuramente mecânica de adições ao padrão cultural,mas ao mesmo tempo como um importante estímulode novos desenvolvimentos internos. Um estudopuramente indutivo dos fenômenos étnicos leva àconclusão de que tipos culturais mescladosgeográfica ou historicamente situados comointermediários entre dois extremos fornecem provasda difusão”.

Segundo Margaret Mead (in KUPER, 2002: 96),Boas “achava que vários trabalhos haviam

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demonstrado que as pessoas faziam empréstimosentre si, que nenhuma sociedade evoluía emisolamento, mas sim que seu desenvolvimento erapermanentemente influenciado por outros povos,outras culturas e outros níveis de tecnologia. Eledecidiu que chegara a hora de enfrentar osproblemas que ligavam o desenvolvimento dosindivíduos aos elementos característicos da culturaem que eles foram criados”. Isso implicaria odesdobramento da tese segundo a qual a cultura nãoé determinada nem pela raça nem pelo meio ambiente.Cultura seria aquilo que Tylor afirmara: a herança nãobiológica das espécies. A cultura, portanto,desenvolve-se principalmente por empréstimodecorrente de contatos casuais. Nesse sentido, asculturas europeias, e, mais ainda, a norte-americanaseriam, em maior proporção do que outras, umcomplexo de traços emprestados, uma configuraçãoque influenciaria os comportamentos dos indivíduos.

Nessa trajetória, alguns alunos de Franz Boas,como Ruth Benedict, Edward Sapir e MargarethMead, desenvolveram uma abordagem antropológicada cultura, que ficou conhecida comoconfiguracionismo, um desdobramento dodifusionismo. Ruth Benedict e Edward Sapirperceberam que um mesmo traço cultural tomado porempréstimo por duas culturas distintas pode sofrertransformações nesse fenômeno de adoção.

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4.1.1. Ruth Benedict (1887 – 1948)Ruth Benedict introduziu a ideia de configuração

cultural na antropologia moderna. Segundo ela, “umacultura é um modelo mais ou menos consistente depensamento e ação. Não é apenas a soma de todasas suas partes, mas o resultado de um único arranjo eúnica inter-relação das partes, do que resultou umanova entidade” (in MARCONI e PRESOTTO, 2006:36). Nessa trilha, a cultura deve ser vista como umtodo, cujas partes estão de tal modo entrelaçadasque a mudança em uma das partes afetará as demais,motivo pelo qual, ao estudar uma cultura, deve-se tervisão conjunta de suas instituições, costumes, usos,normas etc., e suas influências recíprocas. Com essaconcepção, é possível perceber que duas ou maissociedades, com a mesma soma de elementosculturais, podem apresentar configuraçõestotalmente diferentes, dependendo do modo comoesses elementos estão organizados e relacionados.

Uma das características do trabalho de RuthBenedict e a de ter tomado de empréstimo osconceitos de Nietzsche e classificado as culturas emdois tipos principais: a) apolíneo: corresponderiaàquelas culturas extrovertidas, acentuando formasexternas de comportamento, ritualistas, conformistas,desconfiadas do individualismo, evitando excessos,mostrando comedimento; e b) dionisíaco:corresponde às culturas introvertidas, intensamente

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individualistas, agressivas, apreciadoras deexperiências violentas, motivadas mais peloindivíduo do que pelo grupo.

Para Benedict, as culturas têm suas própriaspersonalidades e imprimem nos indivíduos nelascriados os caracteres dessas personalidades. “Ahistória de vida do indivíduo é, sobretudo, umaacomodação aos padrões e modelos tradicionalmentetransmitidos por sua comunidade. Desde seunascimento, os costumes moldam suas experiências esua conduta. Quando começa a falar, ele é umproduto da sua cultura, e, quando cresce e podetomar parte nas atividades coletivas, faz dos hábitosda comunidade os seus hábitos, das crenças dacomunidade as suas crenças e das impossibilidades,as suas impossibilidades” (in KUPER, 2002: 95).

Benedict desenvolve uma espécie dedeterminismo cultural, na medida em que estabeleceque as características dos indivíduos devem seridênticas às características da cultura a quepertencem. Assim como, no indivíduo, não existemseparadamente princípios religiosos, econômicos,políticos, jurídicos etc., mas uma resultante, umaconfiguração de todos os princípios, também, nacultura, existe um todo harmonioso, umaconfiguração, um estilo de ser que dirige e conformao comportamento de todos os membros dedeterminada cultura.

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Em 1951, a pedido da UNESCO, uma comissãocomposta por cinco geneticistas e seis antropólogos,dentre eles Ruth Benedict, elaborou uma declaraçãosobre raças, na qual foram expostos algunsprincípios que merecem destaque. Segundo a citadacomissão: a) não existe nenhuma raça “ariana” ou“nórdica”; b) não há qualquer prova de que raça oudiferenças raciais exerçam algum tipo de influêncianas manifestações culturais ou nas possibilidades dedesenvolvimento da cultura em geral; c) não existemprovas de que os grupos em que pode ser dividido ogênero humano diferem em sua capacidade inata dedesenvolvimento intelectual ou emocional; d)também não existem provas de que as misturasraciais produzam resultados biológicos prejudiciais;e) os estudos científicos mostram que as diferençasgenéticas são insignificantes na determinação dediferenças sociais e culturais entre grupos humanosdiferentes (ABBAGNANO, 2003: 823).

4.1.2. Edward Sapir (1884 – 1939)Sapir ocupou-se do estudo da linguagem e

descobriu que cada língua possui uma maneira deser, uma forma integrada ou uma habilidadecaracterística que lhe permite expressar certas coisasmelhor do que outras. Segundo ele, a cultura tambémforma um todo com uma configuração inconscienteque, geralmente, não é comunicada à mente. Essa

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configuração corresponde a um arranjo que lhe épróprio e lhe fornece uma maneira típica de ser(Mello, 1982: 237).

Para Sapir (KUPER, 93, 94), é difícil definir eexplicar de forma satisfatória o real alcance e sentidodo termo cultura. Talvez por isso, diz ele, aquelesque o usam raramente conseguem dar uma ideiaperfeitamente clara do que eles mesmos entendempor cultura. Embora a cultura seja concebida comoherança de um grupo, refere-se em particular aoselementos tradicionalmente enfatizados peloshumanistas, “os bens espirituais de um grupo”,alguns dos quais são, num sentido espiritual, maisvaliosos, mais característicos e mais significativos doque outros. E como insistiam os grandes humanistas,são esses elementos espirituais que dão significadoà vida dos indivíduos.

Concebida dessa forma, é a cultura que dá adeterminado povo o seu lugar característico nomundo. Ela pode, então, ser definida de modosucinto como civilização, na medida em quecorporifica a capacidade criativa e intelectualnacional. Para Sapir era exatamente essa a visãopopular do significado de cultura, e admitia que essaassociação de cultura e nação poderia suscitarchauvinismo ou racismo.

Sapir, porém, fazia distinção entre culturaautêntica e cultura espúria. Para ele, uma cultura

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autêntica é ricamente variada, porém unificada ecoerente, onde nada é desprovido de sentidocultural. Ela é harmoniosa como a cultura de Atenasna época de Péricles, e não um híbrido espiritual deretalhos contraditórios. A cultura autêntica não estáligada ao progresso técnico, portanto, é uma ilusãopensar que o progresso científico pode ajudar ohomem a alcançar uma vida mais harmoniosa, umacultura mais profunda e mais satisfatória. Lembra queos etnólogos reconhecem a vitalidade das culturas,até mesmo daquelas que possuem tecnologiarudimentar. Além do mais, arte, religião e vidaeconômica estão entrelaçadas nas sociedadesprimitivas. Nas sociedades industriais, os extremosda vida foram fragmentados e as funções separadas.Para Sapir, a cultura autêntica do indivíduo precisacrescer organicamente no solo fértil de uma culturacomunal.

Esse era, segundo ele, o sentido de cultura quedeveria ter-se tornado objeto de estudo daantropologia. Sapir, segundo Kuper, estavapropondo que os etnólogos abandonassem o estudodo que ele denominava civilização, tematradicionalmente abordado por eles, e adotassemuma ideia humanista clássica de cultura.

5. CRÍTICAS AO DIFUSIONISMOAlguns autores destacam as seguintes críticas

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ao difusionismo: a) excesso no tratamento unitário dacultura, relegando os seus aspectos universais; b)manipulação estatística dos traços culturais, levandoa pensar que as distribuições da cultura ocorrem demodo mecânico; c) determinismo cultural, visto queconsidera o indivíduo o elemento passivo no qual acultura, elemento ativo, seria impressa (MARCONI ePRESOTTO, 2006: 255, 256). Além disso, os críticosalertam que o empenho em demasia na pesquisa decampo, dando ênfase ao aspecto meramentedescritivo das informações, pode transformar aantropologia em etnografia.

Lévi-Strauss (2003: 23, 24), ao analisar aorganização dualista nas sociedades primitivas, fazuma critica ao difusionismo. Segundo ele, ainterpretação difusionista da organização dualistaescolhe um dos tipos observados, habitualmente omais rico e complexo, como representando a formaprimitiva da instituição, e consigna sua origem àregião do mundo em que se encontra mais bemilustrado, considerando todas as outras formas comoresultado de migrações e empréstimos a partir de umfoco comum. Com esse procedimento, diz Lévi-Strauss, o difusionismo designa arbitrariamente umtipo, entre todos os fornecidos pela experiência, e fazdesse tipo o modelo, ao qual se experimenta, por ummétodo especulativo, reduzir todos os outros.

Sobre a crítica segundo a qual a escola norte-

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americana se teria tornado uma antropologiameramente descritiva, Mello (1982: 236) alerta que épreciso levar em conta as seguintes considerações.Em primeiro lugar, é plenamente válido o intento dosantropólogos de coletar o máximo de documentação,mesmo em forma predominantemente descritiva;afinal, diz ele, o melhor é coletar material edocumentá-lo bem, sem teorizar, do que teorizar emprofusão sem nenhum dado ou fato à mão. Emsegundo lugar, o fato de muitos estudiosos selançarem à coleta de dados culturais levou-os aapresentá-los de maneira sistemática; isso permitiu, eo tempo encarregou-se de provar, que a escola deFranz Boas fosse, antes de tudo, uma antropologiaestimulante e sugestiva. A coleta intensiva deinformações sobre culturas diferentes fez surgiroutras abordagens e possibilitou a ampliação dasfronteiras do conhecimento.

6. DIFUSIONISMO E DIREITOComo visto, a teoria difusionista preocupa-se

em compreender o processo de transmissão doselementos de uma cultura para outra, portanto,reconhece que qualquer agrupamento social, comraríssimas exceções, jamais está absolutamenteisolado. Os grupos sociais entram em relação comgrupos vizinhos, ou mesmo afastados, geralmente emrazão de necessidades econômicas ou culturais a que

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não podem atender com seus próprios recursos.Esses contatos às vezes ocorrem de modo pacíficomediante trocas comerciais, às vezes resultam deguerras e conquistas. De qualquer modo, quando osgrupos sociais entram em contato, ocorre o processode difusão de cultura. O direito é, indubitavelmente,um dos aspectos da cultura de um grupo social,motivo pelo qual também está submetido a esseprocesso de difusão cultural.

Roma foi, sem dúvida, o grande centro dedifusão da cultura jurídica na Antiguidade. Mesmoapós o desaparecimento do Império, o direito romanocontinuou a ser objeto de estudo por parte dosjuristas medievais. Esse estudo se intensificou apartir do século XI com os glosadores e depois sealastrou por toda a Europa. Nessa trilha, o direitoromano acabou influenciando toda a construção doedifício jurídico da modernidade, ou seja, a culturajurídica moderna, principalmente com o renascimentoda atividade comercial e o advento dos grandesEstados nacionais, constituiu-se com base no direitoromano. Enfim, a cultura jurídica das sociedadesocidentais modernas resultou, em grande parte, dedifusão ou empréstimos da jurisprudência romana.Aliás, os alemães fizeram do direito romano o seudireito até o final do século XIX. Não deixa de sersurpreendente o fato de uma cultura de umasociedade extinta ressurgir com tanta força e vigor,

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influenciando o pensamento jurídico e a organizaçãosocial de toda a Europa continental e suas colônias.

O direito romano sempre foi, portanto, umareferência para os juristas, desde os glosadores daIdade Média, como Arcúsio e Bartolo, responsáveispelo renascimento dos estudos do direito romanonos cursos jurídicos de Bolonha, passando pelosjuristas alemães do século XIX, como Savigny eIhering, até os teóricos contemporâneos comoViehweg, Perelman e Ferraz Jr. O estilo dosjurisconsultos e os conceitos por eles elaboradosinfluenciam até hoje a tecnologia jurídica e asdecisões dos Tribunais. O estilo dos jurisconsultosromanos não foi superado, pelo contrário, tem sidoconstantemente renovado e retorna com todo vigornos tempos atuais, constituindo uma alternativa parasuperar os limites impostos pelo positivismo jurídico.

A cultura jurídica europeia, com suas basesgregas e romanas, difundiu-se para as colônias,motivo pelo qual a cultura jurídica brasileira tem sidoconstruída conforme os parâmetros estabelecidos nodireito europeu. É preciso lembrar também a difusãoda cultura jurídica norte-americana, especialmente noâmbito do direito comercial. Essa difusão é evidentena própria nomenclatura das novas figurascontratuais que emergem do direito empresarialbrasileiro: leasing, factoring, franchising, software,know-how etc.

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6.1. Difusão da tópicaTheodor Viehweg (1979), numa excelente e

inovadora tese, analisa o fenômeno jurídico à luz daexperiência grega e romana. Para ele as teoriasjurídicas exercem uma função social e, para exerceressa função, utilizam-se não de um método, mas deum estilo de pensamento denominado tópico. Atópica é uma técnica de pensar por problemas,desenvolvida pela retórica, que migra da filosofiagrega para a jurisprudência romana e desta para odireito moderno.

Viehweg procura demonstrar as influências datópica grega na jurisprudência romana. Inicia pelaobra de Gian Batista Vico, porque, segundo ele, essefilósofo foi o primeiro a destacar a estruturaprevalecente da cultura antiga que corresponde àtópica. Para Vico, o método científico da Antiguidadeé o método retórico. A característica fundamentaldesse método é ter como ponto de partida o sensuscommunis, que manipula o verossímil, contrapõepontos de vista e, sobretudo, trabalha com uma redede silogismos.

Na sequência de sua tese Viehweg analisa atópica aristotélica. Acentua que ela se localiza noterreno do raciocínio dialético e não do analítico.Observa que, do ponto de vista formal, osraciocínios dialéticos não se distinguem em nada dosanalíticos; a distinção está na índole de suas

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premissas, que são opiniões acreditadas everossímeis que devem contar com a aceitação detodos ou dos mais sábios e ilustres.

No restante da tese, Viehweg analisa a tópica emCícero; examina o ius civile e o mos italicus em seuscaracteres tópicos e mostra a influência renovada datópica na civilística moderna. Para Viehweg, aestrutura da jurisprudência romana corresponde àtópica, porque os juristas romanos partem de umproblema e procuram encontrar os argumentos que aele possam ser aplicados. Movem-se em um espaçocultural que é comum, pelo menos em seusfundamentos, ao dos retóricos. A tópica é esse estilode pensar difundido pelos gregos entre osjurisconsultos romanos.

A tópica, como dito, é uma técnica dopensamento que se orienta para o problema, motivopelo qual possui característica essencialmenteoperacional, e, sem prescindir do sistema, colocaênfase no problema. Problema é uma questão para aqual se busca determinada resposta e sistema é umconjunto normativo previamente dado, a partir doqual se infere uma resposta. Assim, para encontraruma resposta, o problema se articula dentro de umsistema. Há, portanto, um inter-relacionamentonecessário entre problema e sistema. A tópica temcerteza do seu sistema, ainda que não chegue a terdele uma concepção.

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A tópica coleciona pontos de vista (topoi) deconsiderável força persuasiva: interesse público,boa-fé, igualdade de direitos etc. Esses conceitosguardam um sentido vago que somente se determinaem função de problemas a serem decididos. Valedizer, esses conceitos não são formalmente rigorososnem podem ser formulados na forma de axiomaslógicos; são apenas fórmulas, variáveis no tempo eno espaço, de reconhecida força persuasiva ouprincípios com caráter problemático, que assumemsignificações em função de problemas a resolver.

Viehweg assinala que os topoi, em determinadacultura, constituem repertórios mais ou menosorganizados conforme outros topoi. Assim, porexemplo, a noção de interesse permite construir umasérie do tipo: interesse público, interesse privado,interesse legítimo, interesse protegido, interessecoletivo etc. Os topoi, tomados isoladamente,constituem, para a argumentação, o que ele chama detópica de primeiro grau. Quando organizados,formam uma tópica de segundo grau.

A tópica é essencialmente uma técnica dedisputa em que os problemas são postos em funçãodas opiniões, com o fito de ataque e defesa. Adiscussão revela-se, nesse sentido, como umainstância de controle das próprias premissas queserão admitidas ou rechaçadas. Mas, de qualquermodo, será sempre um conjunto de premissas que irá

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presidir a resposta ou decisão. Viehweg demonstra,assim, que um traço da cultura grega influenciou demodo decisivo a construção da jurisprudênciaromana. Esta, a partir do século XII, difundiu-se paraa Europa e depois para as colônias e mantém-se emevidência até os dias atuais.

Conforme observações de Santos (1988), aantropologia do direito reconhece o papel da tópicaretórica no discurso jurídico oficial; reconhece,inclusive, que o processamento oficial dos litígios sóem parte é guiado por normas jurídicas. Santostambém observa que, nas sociedades simples ouprimitivas, as decisões dos conflitos são,comumente, orientadas por topoi. Um discursojurídico dominado pelo uso de topoi énecessariamente um discurso aberto e permeável àsinfluências de discursos afins. É o tipo de discursoque deve funcionar, por exemplo, nos juizadosespeciais, porque neles o que se busca é aconciliação.

6.2. Casos problemáticosAlguns teóricos, com base em pesquisas

antropológicas, recolheram informações sobre asculturas de sociedades primitivas que lhes permitirampropor novas abordagens no estudo do direito.Roscoe Pound (in GOYARD-FABRE, 2002: 167), porexemplo, ao reconhecer a vocação funcional das

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regras jurídicas, utilizou exemplos extraídos dodireito dos cheyennes, para afirmar que o direitoderiva dos esforços para combater a desordem e paraaplanar os distúrbios e as dificuldades, e isso comum mínimo de atritos e de estragos. Também écomum ser destacado o método de estudo de casosproblemáticos ou casos difíceis proposto por N.Llewellyn e E. Adamson Hoebel a partir dasinvestigações que realizaram sobre o “direitocheyenne” (The cheyenne way: conflict and caselaw in primitive jurisprudence), do qual Poundretirou seus exemplos.

O estudo de casos, desenvolvido pelaantropologia jurídica, é um método consideradocomo um dos melhores, principalmente porque umcaso representa o registro detalhado de uma disputaparticular e de sua resolução, constituindo umaunidade de análise em si mesma. Inicialmente oscasos serviam apenas como ilustração, depois foramutilizados para examinar a estrutura interna do direitotribal e suas relações com costumes e crenças.Posteriormente, o método de casos desenvolveu-seem uso específico de casos problemáticos. Foi esseo método proposto por Llewellyn e Hoebel em seuclássico estudo sobre o “direito cheyenne”.

A contribuição de Llewellin e Hoebel àmetodologia e à antropologia jurídica repousa,portanto, na formulação dos casos problemáticos

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inspirada no direito de grupos ditos primitivos. Esseenfoque indica que para ver a lei em ação, paraestudar suas implicações práticas, suasconsequências e as profundas influências doscostumes normativos na mente das pessoas, épreciso investigar os casos problemáticos. Segundoos autores, o método de casos conduz a umajurisprudência realista e permite estabelecer que umanorma que nunca é transgredida não passa de umaregra inoperante ou onipotente.

O s casos problemáticos revelam uma grandequantidade de informações empíricas e possibilitamver a lei ou o direito operando em sua matriz cultural,ou seja, permite ver o direito em ação. A análise doscasos revela as linhas recorrentes da ação, as quaispodem ser chamadas normas reais porqueefetivamente aplicadas. Ademais, o estudo de casosproblemáticos, desde a origem de uma disputa atéque esta seja resolvida, permite a análise doseventos que seguem a qualquer intento deresolução, dos costumes e normas que deveriam serrespeitadas, dos comportamentos dos árbitros oujuízes e das pessoas que são afetadas pelas regras epelas decisões.

Enfim, o método de estudo de casosproblemáticos pode ser aplicado a qualquer sistema,primitivo (simples) ou contemporâneo (complexo),fato que lhe concede características universais.

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Nesse sentido, pode ser apontada a obra Levando osdireitos a sério de Ronald Dworkin, em que o autorinverte a trajetória habitual do pensamento jurídico,acostumado a ir da teoria à prática, ao adotar a linhainterpretativa, que vai da prática jurídica às raízesteóricas que lhe conferem sentido e valor. Já setornou famosa a diferença por ele estabelecida entreprincípios jurídicos e regras de direito. As regrasde direito são determinadas pelo legislador; sãoválidas somente quando aplicadas aos casosconcretos. Já os princípios jurídicos enunciamrazões que agem em favor de uma orientação geral;servem de guia para aplicar tal ou qual regra. Aimportância dos princípios reside justamente naanálise de casos problemáticos ou casos difíceis,porque nestes os princípios aparecem comomotivadores das decisões (sentenças, acórdãos),portanto, de maneira geral, na produção das decisõesjudiciais, os princípios desempenham considerávelpapel.

Os casos problemáticos ou casos difíceis são,assim, exemplos de que a cultura jurídica está emconstante mudança, recorre a diversas fontes,depende de empréstimo de outras culturas, inclusivedas antigas e das primitivas. O empréstimo, conformeo difusionismo, é o mecanismo primário da mudançacultural e, nos exemplos citados (tópica e casosproblemáticos), as teorias jurídicas tomaram de

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empréstimo traços das culturas antigas (tópica) eprimitivas (casos) para construir e operacionalizar odireito das sociedades modernas.

Paralelamente ao difusionismo, outrasorientações estavam sendo desenvolvidas naantropologia com os nomes de funcionalismo eestruturalismo, que também repercutirão nosmodelos da ciência jurídica. Aliás, a análise de casosproblemáticos se enquadra não apenas numaorientação difusionista, mas também numaorientação funcionalista. O nome de destaque dofuncionalismo na antropologia é BronislawMalinowski, cujas contribuições serão analisadas nocapítulo seguinte.

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X BRONISLAWMALINOWSKI (1884-1942)1. FUNCIONALISMO

Malinowski é considerado o fundador daantropologia social e o principal expoente da teoriaantropológica denominada funcionalismo, queimprimiu ao estudo da antropologia uma novaorientação. Ao contrário de outras teoriasantropológicas (evolucionismo, difusionismo) quedefendem a necessidade de uma reconstruçãohistórica da cultura para bem compreendê-la, ofuncionalismo entende dispensável essareconstrução e afirma ser possível o conhecimentode cada cultura através de uma análise de suasituação presente. Assim, enquanto o evolucionismoe o difusionismo preocupam-se com as origens e osproblemas das transformações socioculturais, ofuncionalismo preocupa-se em estudar e explicar ofuncionamento da cultura em dado momento(MELLO, 1982: 237).

Para o funcionalismo, uma sociedade, bem como

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sua cultura, deve ser estudada enquanto umatotalidade, tal como funciona no momento em que éobservada. Nessa trilha, a sociedade e a cultura sãovistas como um todo cujas partes estão intimamenteinterligadas, numa integração funcional, tal como oorganismo biológico e seus respectivos órgãos. Noorganismo não existem órgãos dispensáveis; todostêm uma função a desempenhar. O funcionalismoimprime, portanto, uma visão sistêmica na análise dacultura.

O funcionalismo procura explicar a maneira deser de cada cultura buscando as razões não mais nahistória, mas na lógica do sistema assumido pelacultura em exame, motivo pelo qual entende que oantropólogo deve analisar de forma intensiva econtínua uma sociedade sem se referir a sua história.Assim, do ponto de vista do funcionalismo, oantropólogo não se preocupa em saber como umasociedade chegou a ser o que é. Ele se preocupa emsaber o que é uma sociedade dada em si mesma e oque a torna viável para os que a ela pertencem,observando-a no presente através da interação dosaspectos que a constituem. O funcionalismo,portanto, contrapõe-se: a) à teoria evolucionista,porque esta distingue estágios de desenvolvimentodas sociedades, das formas mais simples para asmais complexas; e b) à teoria difusionista, quepostula a existência de centro de difusão de cultura,

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a qual se transmite por empréstimo.Malinowski, conforme Durham (1978: X), ao

apontar a deficiência das categorias de análise e dosconceitos evolucionistas e difusionistas, propõe umnovo método de ordenação e interpretação daevidência empírica. Para ele a comparação realizadapela antropologia clássica entre sociedades diversasé feita por um desmembramento inicial da realidadeem itens culturais tomados como elementosautônomos; com fragmentos assim obtidos, osautores procedem a um rearranjo arbitrário,agrupando-os de acordo com categorias tomadas desua própria cultura e fabricando com issoinstituições, complexos culturais e estágiosevolutivos que não encontram correspondência emqualquer sociedade real.

A preocupação funcionalista com a adequaçãodas categorias à realidade estudada está estritamenteassociada ao empenho em reconhecer e preservar aespecificidade e particularidade de cada cultura.Assim, para os funcionalistas, os elementos culturaisnão podem ser manipulados e compostosarbitrariamente porque fazem parte de sistemasdefinidos, próprios de cada cultura, e que cabe aoinvestigador descobrir. Essa noção se expressa nopostulado de integração funcional, que assumeimportância fundamental em toda a análisefuncionalista. O conceito de função aparece como o

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instrumento que permite reconstruir, a partir dosdados aparentemente caóticos que se oferecem àobservação de um pesquisador de outra cultura, ossistemas que ordenam e dão sentido aos costumesnos quais se cristaliza o comportamento dos homens.

Segundo Leslie White (in MARCONI ePRESOTTO, 2006: 257), “a essência, a naturezafundamental ou característica do funcionalismo podeser exposta com rapidez e simplicidade: associedades humanas e suas respectivas culturasexistem como todos orgânicos, constituídos departes interdependentes. As partes não podem serplenamente compreendidas separadamente do todo,e o todo deve ser compreendido em termos de suaspartes, suas relações umas com as outras e com osistema sociocultural em conjunto”. Qualquer traçocultural ou costume, qualquer objeto material ouideia que existe no interior das sociedades temfunções específicas e mantém relações com cada umdos outros aspectos da cultura para a manutençãodo seu modo de vida total. Cada costume ésocialmente significativo, já que integra umaestrutura, participando de um sistema organizado deatividades. Uma cultura não é simplesmente umorganismo, mas um sistema.

Para Laplatine (2006: 79, 80), Malinowskidominou incontestavelmente a cena antropológica,de 1922, ano de publicação de sua primeira obra,

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Argonautas do Pacífico Ocidental, até sua morte,em 1942. Além de fundador da antropologia social eexpoente do funcionalismo, é tido como o maismetódico no uso da pesquisa de campo.

2. PESQUISA DE CAMPOMalinowski rompe os contatos com o mundo

europeu, passa a viver com as populações as quaisestuda e a recolher seus materiais de seus idiomas.Faz da alteridade o princípio maior de suaspesquisas, uma vez que ninguém antes dele tinha seesforçado tanto em penetrar na mentalidade doshabitantes das sociedades simples; procura revivernele próprio os sentimentos do outro, interiorizandosuas reações emotivas, ou seja, procura penetrar nacultura que estuda e em compreender de dentro oque sentem os homens e mulheres que pertencem aessa cultura. Escreve: “Um dos refúgios fora dessaprisão mecânica da cultura é o estudo das formasprimitivas da vida humana, tais como existem aindanas sociedades longínquas do globo. Aantropologia, para mim, pelo menos, era uma fugaromântica para longe de nossa cultura uniformizada”(in LAPLATINE, 2006: 51).

Depois de Malinowski, a antropologia apoiou demodo tão decisivo na pesquisa de campo que ficousendo comum, a quantos desejassem enveredar nacarreira acadêmica da antropologia, iniciá-la junto

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aos povos primitivos, numa espécie de estágio. Sóapós esse batismo é que o profissional se sentiaanimado a penetrar no magistério. Malinowski alerta,porém, que o investigador etnográfico não podefazer observações, a menos que saiba o que érelevante e essencial e esteja, desse modo,capacitado a desprezar os acontecimentos fortuitos(MELLO, 1982: 242).

A ênfase no trabalho de campo provoca umaruptura ideológica. Conforme Laplatine (2006: 82, 83),os antropólogos da era vitoriana identificavam-setotalmente com a sua sociedade, isto é, com acivilização industrial europeia. Em relação a esta,os costumes dos povos “primitivos” eram vistoscomo aberrantes. Malinowski inverte essa relação.Para ele a antropologia supõe uma identificação coma alteridade, portanto, a sociedade “primitiva” nãopode ser considerada como forma social anterior àcivilização, e sim como forma contemporânea, capazde mostrar em sua pureza aquilo que faz falta aohomem moderno: a autenticidade. A aberração,portanto, não está mais do lado das sociedades“primitivas” e sim do lado da sociedade ocidental.

A grande inovação de Malinowski no trabalhode campo consistiu na prática de uma técnicadenominada observação participante. Essa técnicaexige longas estadias do observador junto àscomunidades que serão pesquisadas. O fundamento

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dela reside num processo de aculturação doobservador que consiste na assimilação dascategorias inconscientes que ordenam o universocultural investigado. Os princípios fundamentaisdessa prática estão relatados na “Introdução” doliv ro Argonautas do Pacífico Ocidental. Aliás,Boaventura de Sousa Santos reconhece que a suapesquisa (O discurso e o poder), realizada em umafavela do Rio de Janeiro, consiste num trabalho decampo que investiga o pluralismo jurídico segundo ométodo antropológico da observação participante.

3. FATO E TOTALIDADEPaul Mercier (in MELLO, 1982: 254) esclarece

que Malinowski, sem empregar a palavra, utiliza anoção de fato social total, motivo pelo qual foi capazde desenvolver pesquisas muito mais intensas doque as realizadas até então. De acordo com a teoriado fato social total, a cultura deve ser encarada comouma totalidade coerente, e todos os aspectos queapresenta, parentesco, economia, política, religião,direito etc., não podem, de maneira alguma, serinterpretados separadamente. Tudo é significativo enada pode ser desprezado.

Malinowski estabelece a noção segundo a qual épossível mostrar a totalidade de uma cultura, a partirda análise de um único costume, ou mesmo de umúnico objeto aparentemente muito simples (uma

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canoa, por exemplo). Vale dizer, para alcançar atotalidade cultural ou o homem em todas as suasdimensões, é preciso dedicar-se à observação defatos sociais aparentemente minúsculos einsignificantes. Nessa trilha apresentou exemplos,que se tornaram clássicos, sobre a maneira como,analisando o aspecto de uma cultura, chega-se aevocá-la por inteiro. Um desses exemplos são ascanoas trobriandesas. Elas são descritas em relaçãoao grupo que as fabrica e utiliza, ao ritual mágico queas consagra e às regulamentações que definem suaposse. As canoas, transportando de ilha em ilhacolares de conchas vermelhas e pulseiras de conchasbrancas, mostram um processo de troca generalizado(kula), que não pode ser reduzido apenas àdimensão econômica, visto que nele é possívelencontrar significados jurídicos, políticos, mágicos,religiosos e estéticos do grupo inteiro.

Na sua obra mais apreciada, Argonautas doPacífico Ocidental, Malinowski mostra que a partirde uma única instituição (o kula) é possíveldesvendar todos os aspectos de uma cultura.

3.1. “Kula”Malinowski (1978: 71, 72) diz que o kula é um

sistema de comércio e o descreve nos seguintestermos. Trata-se de uma instituição dotada deenorme variedade de aspectos associados a um sem-

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número de atividades. É um fenômeno complexo comramificações e inter-relações. É uma forma de troca etem caráter intertribal bastante amplo; é praticado porcomunidades localizadas num extenso círculo deilhas que formam um circuito fechado do extremooriental da Nova Guiné. Ao longo dessa rota, artigosde dois tipos viajam constantemente em direçõesopostas. No sentido horário movimentam-se oscolares feitos de conchas vermelhas. No sentidooposto, movem-se braceletes feitos de conchasbrancas. Esses artigos, viajando em seu própriosentido no circuito fechado, ao se encontrarem nocaminho são trocados uns pelos outros. Cadamovimento desses artigos, cada detalhe dastransações é fixado e regulado por uma série deregras e convenções tradicionais; alguns dos atosd o kula são acompanhados de elaboradascerimônias públicas e rituais mágicos.

Em cada ilha e em cada aldeia, um número maisou menos restrito de homens participam do kula, ouseja, recebem os artigos, conservam-no consigodurante algum tempo e, por fim, passam-no adiante.Cada um dos participantes recebe periodicamente umou vários braceletes de concha ou colar de conchasque deve entregar a um de seus parceiros, do qualrecebe em troca o artigo oposto. Assim, ninguémjamais conserva nenhum artigo consigo por muitotempo. O fato de que uma transação seja consumada

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não significa o fim da relação estabelecida entre osparceiros: a regra é “uma vez no kula, sempre nokula”.

Nesse sistema de comércio, a troca cerimonialdos artigos um pelo outro é o aspecto fundamental ecentral. Mas, associadas a ele, e realizadas à suasombra, existem numerosas características eatividades secundárias. Vale dizer, paralelamente àtroca ritual dos colares pelos braceletes, os nativosrealizam o comércio comum, indispensável à suaeconomia. Além disso, há outras atividades queprecedem ao kula ou a ele se acham associadascomo, por exemplo, a construção das canoas paranavegação em alto-mar, a prática de certos tipos decerimônias mortuárias de grande pompa, e tabuspreparatórios. O kula é uma instituição enorme eextraordinariamente complexa não só em extensãogeográfica, mas também na multiplicidade de seusobjetivos. Ele vincula um grande número de tribos eabarca um enorme conjunto de atividades inter-relacionadas e interdependentes de modo a formarum todo orgânico.

Segundo Durham (1978, XVI), a escolha daanálise institucional constitui a solução encontradapor Malinowski para reconstituir, na descriçãoetnográfica, a integração e a coerência, ou seja, atotalidade integrada que a técnica de investigaçãolhe havia permitido captar no trabalho de campo.

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Vale dizer, se a cultura constitui uma totalidadeintegrada, não é, entretanto, um todo indiferenciado,mas apresenta núcleos de ordenação e correlaçãoque são as instituições.

4. NATUREZA HUMANA E CULTURAPara Malinowski, a antropologia é uma ciência

da alteridade, voltada para os estudos das lógicas decada cultura. Os costumes dos povos têmsignificação e coerência; são sistemas lógicosperfeitamente conectados e não vestígios de umacultura que não evoluiu. Para explicar essa coerêncialógica interna, Malinowski elabora uma teoria(funcionalista) que tira seu modelo das ciências danatureza e que pode ser assim sintetizada: oindivíduo sente certo número de necessidades, ecada cultura tem precisamente como funçãosatisfazer à sua maneira essas necessidadesfundamentais. Cada cultura realiza essa funçãocriando instituições (jurídicas, econômicas, políticas,educativas), fornecendo respostas coletivasorganizadas, que constituem, cada uma a seu modo,soluções originais que permitem atender àsnecessidades dos indivíduos (LAPLATINE: 1982).

Os seres humanos, segundo Malinowski (1970:42), estão sujeitos a condições elementares que têmde ser atendidas para que possam sobreviver. Asatisfação das necessidades orgânicas ou básicas do

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homem é um conjunto mínimo de condições impostasa cada cultura. Os problemas apresentados por suasnecessidades nutritivas, reprodutivas e higiênicasdevem ser resolvidos, e a solução deles advém daconstrução de um ambiente secundário ou artificial.Esse ambiente secundário, que é a culturapropriamente dita, tem de ser permanentementereproduzido, mantido e administrado. Isso cria umnovo padrão de vida, que depende do nível culturalda comunidade, do ambiente e da eficiência dogrupo.

Um padrão cultural, contudo, significa quenovas necessidades se impõem e novos imperativosou determinantes são inculcados ao comportamentohumano. A tradição cultural tem de ser transmitida degeração para geração. Os métodos e mecanismos decaráter educacional devem existir em toda cultura. Aordem e a lei têm de ser mantidas, uma vez que acooperação é a essência de toda realização cultural.O substrato da cultura tem de ser renovado emantido em condições de funcionamento. Por issoalgumas formas de organização econômica e jurídicasão indispensáveis, mesmo nas culturas maisprimitivas.

4.1. Ambientes: primário e secundárioA teoria funcionalista, conforme Malinowski a

expõe em Uma teoria científica da cultura,

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estabelece como ponto de partida o conceito denatureza humana. A expressão natureza humanasignifica que todos os homens têm, necessariamente,de realizar funções corporais, como comer, beber,respirar, dormir, procriar e eliminar a matéria rejeitadapor seus organismos onde quer que vivam equalquer que seja o tipo de civilização quepratiquem. A expressão natureza humana, portanto,exprime o determinismo biológico que impõe a todosos indivíduos a realização de funções corporais. Asnecessidades orgânicas do homem (alimentaçãoproteção, reprodução) fornecem os imperativosfundamentais que conduzem ao desenvolvimento davida social.

Esse conjunto de necessidades biológicas, queprecisam ser satisfeitas, constitui o ambienteprimário, a situação concreta do ser humano, que é asua natureza humana. As culturas poderão assumiras formas mais diversas, mas deverão,necessariamente, ser aptas a satisfazer asnecessidades biológicas básicas. No esforço paraatender às necessidades decorrentes do ambienteprimário, os homens criam um ambiente secundário.Esse ambiente secundário se denomina cultura.Como os homens só podem satisfazer asnecessidades básicas através da cultura, surgemnecessidades derivadas relacionadas à manutenção,reprodução e transmissão do próprio equipamento

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cultural. Essas necessidades derivadas sãosubdivididas em imperativos instrumentais(organização econômica, legal e educacional dasociedade) e imperativos integrativos (magia,religião, ciência, arte). Assim, com Malinowski, aconcepção de cultura é sempre referida à capacidadede satisfazer os diversos tipos de necessidadeshumanas.

Cultura é, portanto, um ambiente artificial e deveser entendida como um todo vivo e interligado, denatureza dinâmica, em que cada elemento ou traçotem uma função específica a desempenhar noesquema integral. Enfim, o conceito de cultura(ambiente secundário) apoia-se no conceito denatureza humana (ambiente primário). Trata-se dedois ambientes conjugados, um básico e primário,que é sucedido por outro secundário ou derivado.Ambos criam condições de sobrevivência humana.

Na teoria funcionalista de Malinowski estápresente o problema ainda hoje debatido que trata dobinômio natureza e cultura. O homem estáindubitavelmente ligado à natureza, ao mundonatural, pertence a uma espécie animal, portanto, éportador de necessidades biológicas primárias quenão podem ser descartadas. Mas o homem é tambémum animal cultural que produz um mundo artificial. Acultura é um mundo artificial criado pelo homem, masé também uma extensão do mundo natural. Há, assim,

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uma conexão ou relação tão inexorável entre naturezae cultura que não é possível falar em determinismobiológico sem considerar o determinismo (padrão)cultural.

Malinowski, porém, entendia que erapretensioso o projeto da antropologia de estudar ohomem como um todo. Para ele, a antropologia nãodevia ocupar-se do estudo da natureza humana e,por extensão, também da cultura. Entendia que eranecessário delimitar o objeto da antropologia, motivopelo qual considerou a instituição como unidadebásica do estudo antropológico.

5. INSTITUIÇÕESMalinowski (1970: 147) elege a instituição como

unidade básica da sua análise funcionalista. Diz ele:“A unidade funcional que chamei de instituiçãodifere do complexo de cultura ou complexo de traços,quando definido como composto de elementos quenão se situam em qualquer relação necessária. Comefeito, a unidade funcional é concreta, ou seja, podeser observada como um agrupamento socialdefinido”. Segundo Mello (1982: 249), a escolha dainstituição como unidade básica de estudo se deve,acima de tudo, a um procedimento metodológico, ouseja, era necessário criar um modelo concreto deanálise (a instituição) que permitisse servir comoguia na pesquisa de campo.

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Não há, em Malinowski, uma análise de sistemaseconômicos, políticos, religiosos etc. em si mesmos.As instituições, como o kula, representamtotalidades complexas que incluem a multiplicidadedo real. A instituição aparece como uma projeçãoparcial da totalidade da cultura, não como um dosseus aspectos. A descrição sempre as desenvolveno sentido de mostrar, simultaneamente, como ainstituição em apreço permeia toda a cultura e,inversamente, como toda a cultura está presente nainstituição.

Conforme interpretação de Durham (1978: XVII),a instituição é sempre uma unidade multidimensional.Ela compreende uma constituição ou código, queconsiste no sistema de valores em vista dos quais osseres humanos se associam; um grupo humanoorganizado e cujas atividades realizam a instituição.Essas atividades se processam de acordo comnormas e regras, que constituem mais um elementodessa totalidade. Finalmente, ela compreende umequipamento material que o grupo manipula nodesempenho de sua atividade. Esses diferenteselementos definem a estrutura da instituição.

Enfim, mediante análise das atividadesefetivamente desempenhadas pelos membros dosgrupos e de seus resultados, o investigador podeencontrar instrumentos para superar a consciênciarestrita e deformada que os membros de uma

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sociedade possuem de sua própria cultura. Essaanálise permite verificar que os diferentes aspectosda instituição não possuem todos a mesmarelevância explicativa, ou seja, é no comportamentohumano real que se encontra o elementoverdadeiramente sintético que fornece a chave para aapreensão da instituição na totalidade de seusaspectos.

5.1. Instituição e funçãoHá, na teoria funcionalista, uma relação

necessária entre instituição e função, ou seja, ainstituição desprovida de função tende adesaparecer. Por essa razão, Malinowski apresentauma lista de tipos institucionais, cujo critério declassificação se fundamenta no princípio deintegração. Por exemplo: a) o princípio de integraçãofundado na reprodução implica determinados tiposde instituição: família, grupo doméstico extenso, clãetc.; b) o princípio de integração fundado naunidade territorial, implica outros tipos deinstituição: tribo, aldeia, província, cidade etc.

A instituição é composta analiticamente dosseguintes elementos: estatuto, normas, pessoas,aparelhagem material, atividades e função. Assim,para descobrir os vários tipos de instituição ou parasaber se dada realidade social se enquadra ou não nacategoria de instituição basta verificar se ela possui

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todos aqueles elementos. O estatuto corresponde aum conjunto de motivos, a um objetivo comumconsubstanciado na tradição ou concedido pelaautoridade tradicional. O estatuto, nesse sentido,pode ser considerado um conjunto de regras geraisextensivas a todos os grupos. Além disso, o estatutoestabelece ligações entre as diferentes instituiçõesde determinada sociedade. As normas devem serentendidas como regras particulares da instituição,uma espécie de operacionalização das regras geraisdo estatuto. As pessoas, ao mesmo tempo que sesentem premidas a pôr em prática o estatuto,encontram necessidades específicas e concretas asatisfazer e, por isso, como parte dinâmica dainstituição, tendem a elaborar suas normasparticulares (MELLO, 1982: 250, 251).

A família, por exemplo, é considerada umainstituição que tem por princípio de integração areprodução. A família, portanto, deve respeitar oestatuto familiar (casamento institucionalizado comtodas as regras gerais). O marido, a mulher, os filhose outros parentes vivem sob normas concretas quepossibilitam o cumprimento do estatuto e permitem odesempenho da função de fornecer cidadãos àcomunidade. Para tanto, possuem aparelhagemmaterial (ferramentas, utensílios, objetos, bens deconsumo etc.). Na prática essas pessoas vivem ematividade, reproduzindo o seu ambiente, entrando

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em contato com outras famílias, lutando paraconseguir seu objetivo: reprodução e sobrevivênciade novos cidadãos.

O conceito de função envolve primordialmente asatisfação de necessidades básicas e derivadas. Porisso, a abordagem funcionalista consiste numaexplicação teleológica da ação como meio àobjetivação de fins e metas. O esquema teórico dofuncionalismo é baseado nesse pressuposto de quea ação sociocultural é teológica, tem por finalidadealcançar determinados objetivos. Não importa se aação é ou não intencional, consciente ouinconsciente; o fato é que ela está sempredirecionada para satisfação de necessidades. Essetipo de análise funcional, como diz Malinowski (1970:158), está sujeito à acusação de tautologia evulgaridade assim como à crítica de que representaum círculo lógico, pois, obviamente, se definimosfunção como satisfação de uma necessidade, é fácilsuspeitar que a necessidade a ser satisfeita foiapresentada a fim de atender à necessidade desatisfazer uma função.

Com base no estudo de Malinowski, pode-sedizer que as funções básicas ou fundamentais dafamília, encontradas em todos os agrupamentoshumanos, são as seguintes: a) de reprodução: visa àperpetuação por meio da prole; a procriação éregulamentada com normas e sanções que legitimam

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a reprodução; mesmo em sociedades em que háliberdade sexual, a procriação raramente é aprovadafora da família; b) sexual: atende às necessidadessexuais permitidas por meio da institucionalização daunião ou casamento, que estabelece pai legal para osfilhos; c) econômica: assegura o sustento e aproteção da prole; essa obrigação pode serestendida aos parentes; d) educacional: visatransmitir à prole a herança cultural e social (língua,usos, costumes, valores, crenças), principalmentedurante os primeiros anos de vida.

5.2. Disfunção das instituiçõesFunção pode ser entendida como a

correspondência entre uma instituição e asnecessidades de determinada organização social,vale dizer, pode ser entendida como a atividade pelaqual uma instituição contribui para a manutenção doorganismo social. Com esse conceito de função, ateoria funcionalista coloca em evidência o aspectoconservador, a harmonia ou o equilíbrio do sistemasocial. Mas em qualquer sistema social operam-semudanças que implicam o desaparecimento ou osurgimento de instituições. A teoria funcionalistareconhece que a instituição desprovida de funçãotende a desaparecer. Nesse sentido, pode-se dizerque as tribos indígenas tendem a desaparecerquando perdem o seu território, uma vez que o

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princípio de integração de uma tribo está fundado naintegridade territorial.

Em virtude das mudanças a que estão sujeitas asorganizações sociais ou sistemas sociais, a teoriafuncionalista permitiu o desenvolvimento de outrasnoções. Assim, ao lado das funções claras epatentes conhecidas pelos membros do grupo,alguns teóricos levantaram a hipótese de existênciade funções outras menos evidentes e até encobertasque poderiam comprometer a harmonia do sistema oucontinuidade da organização social, daí a introduçãodo conceito de disfunção, ou seja, de perturbaçõesdecorrentes de inovações culturais no sistema.Nesse sentido, a disfunção das instituições colocariaem risco determinada organização social.

6. DIREITO E COSTUMEMalinowski, em Direito e costume na sociedade

primitiva, afirma que os teóricos europeusconsideram o direito e o costume dos povos ditosprimitivos como sendo a mesma coisa, algoindiferenciado na mente dos nativos. Para essesteóricos, não existem regras jurídicas nas sociedadessimples, e por isso enfatizam o apego rígido eautomático dos nativos aos costumes. Nessa trilhaentendem que os direitos e deveres na sociedadeprimitiva estão determinados por aquilo que oscostumes prescrevem. Isso, segundo Malinowski,

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representa uma imagem etnocêntrica da culturaeuropeia que vê a si mesma como juridicamenteevoluída, enquanto a cultura jurídica das sociedadesprimitivas é tida como impregnada de religião emagia.

Para Malinowski, essa postura etnocêntrica dosteóricos europeus influenciou a antropologiajurídica, de tal modo que esta passou a considerarcomo verdadeiras as afirmações segundo as quais nasociedade primitiva há uma submissão automáticaaos costumes e não existe um corpo de regras deobrigações mútuas que possam ser tidas comonormas jurídicas. Ele entende que essas afirmaçõessão destituídas de valor científico, visto que nãoestão fundamentadas na pesquisa de campo. Contratais afirmações, lembra que entre os trobiandesesexistem certos deveres ou compromissos que geramobrigações mútuas, são conscientemente percebidase estão baseadas na satisfação de necessidadesrecíprocas, como é o caso do intercâmbio dealimentos.

Malinowski observa que os trobiandesesconcedem certas quantidades de coisas a pessoasespecíficas, não apenas por generosidade baseadano costume, mas também na expectativa dedevolução dos mesmos favores ou coisas. Isso,segundo ele, significa que tais situações geramobrigações mútuas. Essas obrigações recíprocas

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podem ser diferenciadas de outros costumes edefinidas como um corpo de regras decomportamento socialmente impostas e sancionadasatravés da ação da comunidade sobre as pessoasque as infringem. Como essas regras controlam avida social e facilitam a cooperação mútua,Malinowski ressalta que elas são semelhantes aoconjunto de regras de um Código Civil moderno.

Ele ressalta ainda que, pelo fato de associedades primitivas não possuirem um conjunto deleis que especifiquem sanções aos infratores, oescândalo e o escárnio público, o temor e a ira dochefe e a bruxaria tornaram-se os principais meiosque essas sociedades encontraram para sancionar eforçar o respeito pelas regras de comportamentosocial, as quais comumente são denominadas leisnas sociedades ocidentais. Há, portanto, nasociedade primitiva certo conjunto de regrascostumeiras (legais) que se distingue de outrosconjuntos de regras costumeiras (os costumesreligiosos, as formas de interação social etc.). Assim,as regras legais destacam-se e diferenciam-se dasdemais regras costumeiras pelo fato de estabelecerobrigações para uma pessoa e direitos para outra.

Em Argonautas do Pacífico Ocidental (1978: 23,24), Malinowski afirma que as sociedades nativas(primitivas) têm uma organização bem definida e sãogovernadas por leis, autoridades e ordem em suas

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relações públicas e particulares. De fato, diz ele,podemos constatar nas sociedades nativas aexistência de um entrelaçado de deveres, funções eprivilégios intimamente associados a umaorganização tribal, comunitária e familiar bastantecomplexa. As suas crenças e costumes sãocoerentes, e o conhecimento que os nativos têm domundo exterior é suficiente para guiá-los em suasdiversas atividades e empreendimentos. Por essesmotivos, insiste que apesar de não existir códigos deleis, escritos ou expressos explicitamente, toda atradição tribal e sua estrutura social inteira estãoincorporadas ao mais alusivo dos materiais: o próprioser humano. Segundo ele, os nativos obedecem àsnormas e ordens do código tribal, mas não asentendem, tal qual acontece com os membros maishumildes de qualquer instituição moderna.

Para Malinowski, “deve existir em todas associedades um conjunto de regras demasiadopráticas para serem apoiadas por sanções religiosas,demasiado pesadas para o seu cumprimento serdeixado à boa vontade dos indivíduos, demasiadovitais para as pessoas para serem aplicadas por umaagência abstrata. É esse o domínio das regrasjurídicas e aventuro-me a antecipar que areciprocidade, a incidência sistemática, a publicidadee a ambição virão a ser consideradas os principaisfatores da maquinaria compulsória do direito

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primitivo” (in SANTOS: 70, 71).Malinowski também observou que no direito

primitivo ou tribal existe uma separação entre lei civile lei penal. No direito civil, a lei (obedecida) consisteem um conjunto de obrigações forçadas econsideradas como justas por uns e reconhecidascomo um dever por outros, cujo cumprimento seassegura por um mecanismo específico dereciprocidade e publicidade inerentes à estrutura dasociedade. No direito penal, a lei (desrespeitada) édefinida como as regras fundamentais quesalvaguardam a vida, a propriedade e apersonalidade.

Enfim, com Malinowski a antropologia passou areconhecer o direito como uma instituição por simesma, diferenciada dos costumes, e que requertanta atenção como a que se dedica às relações deparentesco e aos sistemas políticos. Alguns autoresdestacam que a contribuição maior de Malinowski àteoria jurídica antropológica foi a de estabelecer comvigorosa insistência o direito como um aspecto dasociedade e da cultura total; com isso rompeu comos formalismos legais em antropologia e deu umnovo ímpeto aos estudos da antropologia jurídica.

6.1. Mito e direitoMalinowski vê no mito a justificação

retrospectiva dos elementos fundamentais que

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constituem a cultura de um grupo. O mito, para ele,não é uma simples narrativa, nem uma forma deciência, nem um aspecto da arte, nem uma narraçãoexplicativa. O mito, segundo ele, cumpre uma funçãosui generis intimamente ligada à natureza da tradição,à continuidade da cultura e à atitude humana emrelação ao passado. A função do mito é, em resumo,reforçar a tradição e dar-lhe maior valor e prestígio,vinculando-a à mais elevada, melhor e maissobrenatural realidade dos acontecimentos iniciais.Nesse sentido, o mito não se limita ao mundo ou àmentalidade dos primitivos e é indispensável aqualquer cultura. Cada mudança histórica cria suamitologia, que, no entanto, tem relação indireta com ofato histórico.

Embora não sigam especificamente a orientaçãofuncionalista, alguns juristas enxergam a penetraçãodo mito no direito moderno. Nesse sentido, ErosRoberto Grau (2004: 26 a 28) entende que aConstituição, o documento jurídico que funda oEstado, é um mito. Segundo ele, “a Constituiçãoformal, em especial enquanto concebida comomeramente programática – continente de normas quenão são normas jurídicas, na medida em que definedireitos que não garante, na medida em que essesdireitos só assumem eficácia plena quandoimplementados pelo legislador ordinário ou por atodo Executivo –, consubstancia um instrumento

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retórico de dominação. Porque esse seu perfil, ela setransforma em mito”.

Eros Grau aceita a ideia de Warat (Mitos eteorias na interpretação da lei), segundo a qual omito é a forma específica de manifestação doideológico no plano do discurso. Para Grau, odiscurso ideológico e o discurso mítico se aproximamporque ambos instauram um horizonte objetivo paraos comportamentos e atitudes do homem. O mitofunciona como recurso linguístico no discurso dequem tem condições de exercer, através dele,dominação social. Os mitos são descritos comoformas de fé popular que não nasceram da reflexãoracional do povo, mas de sentimentos pré-racionais,emotivos. Desvendados, porém, desnuda-se aracionalidade deles em quem os inventa, o queevidencia não serem senão uma manifestaçãocultural.

Para Grau, o mito não passa de uma invenção(consciente ou inconsciente), cuja finalidade é ainstauração de uma ordem. Nesse sentido, omomento da desmitização da cultura, que pode servisualizado no projeto do iluminismo racionalista,trata-se apenas de um momento de substituição demitos. Assim, os antigos mitos irracionais ouinconscientes são substituídos por novos mitos,estes, porém, conscientes e racionais nos que osinventam – como racionais e conscientes, embora

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hermeticamente, foram aqueles nos que osinventaram.

O mito, diz Grau, é uma nítida invenção dohomem e os mitos modernos são impostos àsociedade, funcionando como instrumentoslinguísticos de dominação que tanto mais prosperamquanto mais sejam acreditados. As Constituiçõesmodernas são, nesse sentido, exemplos de mitosmodernos, porque instalam no seio da coletividade aconvicção de que se vive sob a égide do Estado deDireito apenas porque o documento formal expressaa existência de um Estado de Direito. A Constituiçãoformal, assim, desnuda-se como instrumento dedominação ideológica. É mito que acalentamos,dotado de valor referencial exemplar, na medida emque contribui eficazmente para a preservação daordem que não se pretendia instaurar, mas,simplesmente, manter.

7. INSTITUIÇÃO E DIREITOComo visto, as noções de função e instituição

penetraram na antropologia e contribuíram com aarquitetura da teoria funcionalista. Essas noçõestambém penetraram na ciência do direito e aparecemde forma acentuada em algumas teorias jurídicas. Arecepção dessas noções tanto pela antropologiaquanto pelo direito permite estabelecer algumasconexões entre essas duas áreas do conhecimento.

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Para compreender melhor a recepção dessas noçõesno âmbito do direito, é necessário estabelecer oconceito sociológico de instituição.

Instituições são os modos (tradicionais,habituais, legítimos) estabelecidos que permitem adeterminada sociedade cuidar de seus assuntos. Asinstituições mantêm a organização social comointeração social padronizada. Na sociedade brasileira,são instituições: a família monogâmica, a companhia,a universidade, o Judiciário etc. As instituições são,nesse sentido, padrões desenvolvidos e destinadosa lidar com os problemas sociais. De modo geral, associedades desenvolvem: a) instituições judiciais epolíticas para ajudar a manter a paz entre os atores,proteger a propriedade e decidir conflitos; b)instituições de parentesco para socializar os jovens eregular as relações sexuais; c) instituiçõeseconômicas para coordenar as atividadeseconômicas, incentivar o trabalho, produzir edistribuir bens e até mesmo manter a desigualdadeentre as classes (CHARON, 2000: 122).

As instituições exercem o controle social sobreos indivíduos e garantem as condições de lidareficazmente com os problemas sociais. Nessesentido, as instituições são padrões normativosinstitucionalizados e profundamente arraigados naorganização social, motivo pelo qual são, em geral,consideradas como um padrão natural. Contudo, elas

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mudam com o passar dos tempos e precisam mudarquando já não lidam adequadamente com osproblemas sociais.

Para alguns teóricos o direito é uma instituição,para outros é um conjunto de normas. NorbertoBobbio faz uma tentativa de conciliar essas duasposições.

7.1. Instituição e teoria normativaA teoria funcionalista, como visto, estabelece

uma explicação teleológica da ação, visto que esta éentendida como meio à objetivação de fins e metas.O esquema teórico do funcionalismo é baseado nopressuposto de que a ação sociocultural é teológicae tem por finalidade alcançar determinados objetivos.Esse esquema teórico aparece nas teorias jurídicas,mais especificamente nas teorias da norma jurídica.

Segundo Norberto Bobbio (2005: 23 a 37), ateoria normativa considera o direito como umconjunto de normas, ou regras de conduta. Para ele,a experiência jurídica é uma experiência normativa,portanto, estudar uma cultura do ponto de vista dateoria normativa significa pesquisar, em determinadasociedade, quais ações foram proibidas, quais foramordenadas e quais foram permitidas. Assim,perguntas do gênero “Junto a determinado povo,eram permitidos ou proibidos os sacrifícioshumanos? Era proibida ou permitida a poligamia, a

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propriedade dos bens imóveis, a escravidão? Comoeram reguladas as relações de família e o que erapermitido e o que era proibido ao pai ordenar aofilho? Como era regulado o exercício do poder, equais eram os deveres e os direitos dos súditosdiante do chefe, e quais os deveres e os direitos dochefe diante do súdito?” são perguntas quepressupõem o conhecimento da função que tem osistema normativo de caracterizar dada sociedade; enão podem ser respondidas senão por meio doestudo das regras de conduta que moldaram a vidadaqueles homens e mulheres, distinguindo-a da vidade outros homens e mulheres pertencentes a outrasociedade inserida em outro sistema normativo.

Bobbio, contudo, entende que as normasjurídicas são apenas uma parte da experiêncianormativa. Segundo ele, além de normas jurídicas,existem preceitos religiosos, regras morais, sociais,costumeiras, de etiqueta e boa educação etc. Existem,portanto, normas sociais, que regulam a vida doindivíduo quando ele convive com outrosindivíduos, e normas que regulam as relações dohomem com a divindade, ou ainda do homemconsigo mesmo.Todo indivíduo pertence a diversosgrupos sociais (instituições): à Igreja, ao Estado, àfamília, às associações que têm fins econômicos,políticos, culturais ou simplesmente recreativos.Cada uma dessas associações se constitui e se

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desenvolve através de um conjunto ordenado deregras de conduta. Cada indivíduo, ademais,separado da sociedade a que pertence, formula paraa direção da própria vida programas individuais deação, que também são conjuntos de regras.

Assim, segundo Bobbio, cada grupo humano,cada indivíduo singular, enquanto estipula metas aatingir, estipula também os meios mais adequadospara atingi-las. A relação meio/fim dá, geralmente,origem a regras de conduta do tipo: “Se você queratingir o objetivo A, deve praticar a ação B”. Sãoregras de conduta não apenas os artigos daConstituição e das leis, mas também as regrasreligiosas ou morais, as prescrições do médico, asregras do xadrez, as normas de direito internacional,as regras da gramática, o regulamento de umcondomínio etc. Todas essas regras são muitodiversas pela finalidade que perseguem, peloconteúdo, pelo tipo de obrigação que fazem surgir,pelo âmbito de suas validades, pelos sujeitos a quemse dirigem. Mas todas têm em comum um elementocaracterístico que consiste em ser proposições quetêm a finalidade de influenciar o comportamento dosindivíduos e dos grupos, de dirigir as ações dosindivíduos e dos grupos rumo a certos objetivos emvez de rumo a outros.

Há, contudo, teorias diversas da normativa, queconsideram fatos diversos das regras de conduta

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como elementos característicos da experiênciajurídica. Dentre essas teorias encontra-se a teoria dodireito como instituição, defendida, na Itália, porSanti Romano.

7.2. Teoria institucionalistaSanti Romano, em seu livro O ordenamento

jurídico, elabora uma teoria do direito ondecontrapõe à concepção do direito como norma, aconcepção do direito como instituição (Bobbio, 2005:28 a 30).

De acordo com Romano, os elementosconstitutivos do conceito de direito são três: a) asociedade, como base de fato sobre a qual o direitoganha existência; b) a ordem, como fim a que tende odireito; e c) a organização, como meio para realizar aordem. Só existe direito onde existe uma sociedadeorganizada e ordenada. Essa sociedade é aquilo queRomano chama de instituição.

Segundo Romano, dos três elementosconstitutivos, o mais importante é a organização.Isso significa que o direito nasce no momento emque um grupo social passa de uma fase nãoorganizada (inorgânica) para uma fase organizada(orgânica). Por exemplo, a classe social é uma formade grupo humano, mas, não tendo uma organizaçãoprópria, não exprime um direito próprio, não é umainstituição. Já uma associação de delinquentes, que

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se exprime em uma organização e cria o seu própriodireito (o direito da sociedade de delinquentes), éuma instituição. O fenômeno da passagem da faseinorgânica para a fase orgânica é denominadoinstitucionalização.

Pode-se dizer que um grupo social seinstitucionaliza quando cria a própria organização.Assim, antes de ser norma, o direito é organização,portanto, o direito existe e pode ser observado emqualquer grupo organizado, inclusive nas sociedadesditas primitivas.

7.2.1. Mérito da teoria institucionalistaO grande mérito da teoria institucionalista foi,

segundo Bobbio, ter alargado os horizontes daexperiência jurídica para além das fronteiras daorganização estatal. Ao considerar o fenômeno daorganização como critério fundamental paradistinguir uma sociedade jurídica de uma nãojurídica, a teoria institucionalista rompeu com a teoriapositivista, que considera o direito apenas o direitoestatal e identifica o âmbito do direito com o doEstado.

Para Bobbio, se hoje persiste ainda umatendência em identificar o direito com o direitoestatal, essa é a consequência histórica do processode centralização do poder normativo e coativo quecaracterizou o surgimento do Estado nacional

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moderno. A máxima consagração teórica desseprocesso é a filosofia do direito de Hegel, na qual oEstado é considerado o sujeito último da história,que não reconhece nem abaixo nem acima de siqualquer outro sujeito, e a quem os indivíduos e osgrupos devem obediência incondicional. A teoriainstitucionalista representa uma reação a essa formade proceder.

Bobbio é adepto da teoria normativa, motivopelo qual entende que as normas antecedem aorganização. Com base nisso tece algumas críticas àteoria institucionalista, pelo fato de essa teoriacolocar a organização antes das normas. SegundoBobbio, para que se possa desenvolver o processode institucionalização que transforma um grupoinorgânico em um grupo organizado deve ocorrertrês condições: a) que sejam fixados os fins que ainstituição deverá perseguir; b) que sejamestabelecidos os meios principais que se consideramapropriados para alcançar aqueles fins; c) que sejamat ribu ídas funções específicas dos indivíduoscomponentes do grupo para que cada um colabore,através dos meios previstos, na obtenção do fim.

A determinação dos fins, dos meios e dasfunções só pode ocorrer através de regras, sejam elasescritas ou não, proclamadas solenemente em umestatuto ou aprovadas tacitamente pelos membrosdo grupo. Isso significa que o processo de

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institucionalização e a produção de regras deconduta não podem andar separados e, portanto,onde quer que haja um grupo organizado, é certo quehaverá um complexo de regras de conduta que deramvida àquela organização. Nessa trilha, Bobbioentende que a teoria da instituição não exclui, aocontrário, inclui a teoria normativa do direito.

Ao focar essa inclusão, Bobbio destaca que ooutro grande mérito da teoria da instituição foi o depôr em relevo o fato de que somente se pode falar emdireito onde há um complexo de normas (escritas ounão) formando um ordenamento e, portanto, o direitonão é norma, mas conjunto coordenado de normas;uma norma jurídica não se encontra nunca sozinha,mas é ligada a outras normas com as quais forma umsistema normativo. Segundo ele, graças à teoria dainstituição, a teoria geral do direito pôde evoluir dateoria das normas jurídicas à teoria do ordenamentojurídico, e os problemas que se vêm apresentandoaos teóricos do direito são cada vez mais conexos àformação, à coordenação e à integração de umsistema normativo.

A teoria funcionalista também utilizou a noçãode sistema. Radcliffe-Brown, como se verá nocapítulo seguinte, desenvolve uma teoriafuncionalista na qual o conceito de sistema éfundamental para a compreensão da organizaçãosocial.

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XI RADCLIFFE-BROWN (1881 –1955)1. TEORIA FUNCIONALISTA

Radcliffe-Brown, em Estrutura e função nasociedade primitiva, expõe uma teoria funcionalistaque se aproxima da orientação teórica de EmileDurkheim, especialmente em relação ao métodoutilizado (o das ciências naturais) e ao uso doconceito de função e de integração funcional.Também utiliza como fundamento básico de suateoria o conceito de estrutura, razão pela qual oconceito de função aparece como uma contribuiçãopara a manutenção da continuidade estrutural.Segundo ele, os conceitos de função e estruturapermitem captar o aspecto sistemático e estrutural,isto é, o aspecto totalizador da vida sociocultural.

Radcliffe-Brown posiciona-se contra as teses doevolucionismo ao estabelecer que não é possívelopor sociedades simples e sociedades complexas,sociedades inferiores evoluindo para sociedadessuperiores, sociedades primitivas a caminho da

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civilização. Para ele, as primeiras não são as formasde organização originária das quais as segundasseriam derivadas. Por essas razões, entende que umasociedade deve ser estudada tal como se apresentano momento em que é observada, portanto,independentemente de seu passado, de sua história.

Ao contrário de outros antropólogos, Radcliffe-Brown não entende a antropologia como a ciênciaque estuda a cultura, mas como a ciência que estudaas estruturas sociais em funcionamento. Para ele, aantropologia social trata de fatos observáveis econcretos; ela não se ocupa da cultura porque essapalavra denota uma abstração, não uma realidadeconcreta. Ele define como objetos de estudo daantropologia social a estrutura e o funcionamento dasociedade. Vale dizer, na sociedade, a estrutura (redede relações) não pode ser observada diretamente,mas apenas em seu funcionamento.

1.1. Estrutura e funçãoRadcliffe-Brown (1973: 221) diz que para elucidar

os conceitos de estrutura e função é convenienteempregar uma analogia entre vida social e vidaorgânica.

Nessa trilha analógica, constata inicialmente queo organismo animal é uma aglomeração de célulasdispostas umas em relação com outras não como umagregado, mas como um todo vivo integrado. O

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sistema de relações pelo qual essas unidades serelacionam é a estrutura orgânica. O organismo temuma estrutura, mas não é em si a estrutura; é umacúmulo de unidades (células) dispostas numaestrutura, isto é numa série de relações. A estruturade uma célula é, no mesmo sentido, uma série derelações entre moléculas complexas, e a estrutura deum átomo é uma série de relações entre elétrons eprótons. A estrutura, portanto, deve ser entendidacomo uma série de relações entre unidades. É certoque as moléculas constituintes não permanecem asmesmas, passam por um processo de substituição,mas a disposição estrutural das unidades integrantescontinua a mesma. O processo pelo qual se mantémessa continuidade estrutural do organismo chama-sevida. O processo vital consiste nas atividades einterações das unidades constituintes do organismo:as células e os órgãos nos quais as células estãounidas.

Tal como a estrutura orgânica, a estrutura socialé uma série de relações sociais em que os indivíduosestão relacionados uns com os outros em um todointegrado. O sistema de relações sociais forma aestrutura social. A vida social é o funcionamento daestrutura e a continuidade do funcionamento é fatornecessário para a manutenção e continuidade daestrutura social. O funcionamento se realiza por meiode atividades (processos), executadas por um ou

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mais indivíduos. Assim, a função de um indivíduo éo papel que ele executa na vida social, fato quepermite a manutenção e a continuidade estrutural.Tem-se a unidade funcional quando todas as partesdo sistema social atuam juntas com suficiente graude harmonia ou consistência interna.

A abordagem funcionalista de Malinowski, comovisto, implica uma explicação teleológica na medidaem que enfoca a ação como meio à objetivação defins e metas. Nesse sentido, não importa se a ação éou não intencional, consciente ou inconsciente; oque importa é que ela está sempre voltada para aobtenção de metas ou satisfação de necessidades.Radcliffe-Brown reluta em aceitar esse tipo deexplicação, embora o seu conceito de função tenhatambém uma finalidade, que é a manutenção dacontinuidade estrutural.

Assim, para Radcliffe-Brown (1973: 223, 224), afunção de qualquer atividade periódica, tal como apunição de um crime, ou uma cerimônia fúnebre, éparte que ela desempenha na vida social como umtodo e, portanto, a contribuição que faz para amanutenção da continuidade estrutural. O conceitode função implica, pois, a noção de estruturaconstituída de uma série de relações entre unidades,sendo mantida a continuidade da estrutura por umprocesso vital constituído das atividadesintegrantes. Pela definição dada, função é a

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contribuição que determinada atividade proporcionaà atividade total da qual é parte.

O uso da noção de estrutura permite a Radcliffe-Brown concentrar seu estudo na estrutura social enão na satisfação de necessidades; por esse motivoalguns autores entendem que ele desenvolveu umfuncionalismo diferente do funcionalismo deMalinowski, e uma forma de estruturalismo que nãose confunde com o estruturalismo de Lévi-Strauss.

1.2. Família elementarPara Radcliffe-Brown, família elementar é um

grupo que constitui a unidade de estrutura da qualse constrói um parentesco. A família elementarconsiste em um homem e sua mulher e seu filho(a) oufilhos(as). Segundo ele, a existência da famíliaelementar cria três tipos especiais de relaçõessociais, entre pai (mãe) e filho(a), entre filhos(as) dosmesmos pais (germanos), e entre marido e mulhercomo pais do mesmo filho(a) ou filhos(as). As trêsrelações que existem dentro da família elementarconstituem relações de primeira ordem. Relações desegunda ordem são aquelas que dependem daconexão de duas famílias elementares através de ummembro comum, tal como o pai do pai, o irmão damãe, a irmã da esposa, e assim por diante. Na terceiraordem estão pessoas como o filho do irmão do pai, aesposa do irmão da mãe. Desse modo é possível

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traçar, desde que se tenha informação genealógica,relações de quarta, quinta ou enésima ordem (inLÉVI-STRAUSS, 2003: 68).

Essa passagem expressa a ideia segundo a quala família elementar constitui a base da estruturasocial, em que se originam as relações primárias deparentesco. Não resta dúvida de que esse tipo defamília encontra-se, em quase toda parte, como tipodominante ou como componente de família extensa(unidade composta de duas ou mais famíliaselementares) e composta (unidade formada por trêsou mais cônjuges e seus filhos). É preciso alertar,porém, que a ideia segundo a qual a família biológicaconstitui o ponto a partir do qual toda sociedadeelabora seu sistema de parentesco não é unânimeentre os antropólogos. Alguns observam que, nogeral, não há afinidade biológica entre as pessoas (opai e a mãe) que se unem para formar a famíliaelementar, portanto, a base sobre a qual se ergue osistema de parentesco seria o sistema de alianças.

As conclusões de Radcliffe-Brown sobre afamília elementar colocam em evidência o tema dopatrimônio como herança, que também repercute naesfera jurídica. A ideia de patrimônio vinculado àideia de herança implica que algo deve ser deixadoou transmitido de um indivíduo para outro ou de umageração para outra. Para Radcliffe-Brown, herançasignifica a transferência de status baseada na relação

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existente entre dois membros de um grupo social,entre aquele que transmite e o que recebe. Talrelacionamento é de caráter pessoal e geralmenteocorre entre parentes. Como visto, para ele, “duaspessoas são parentes quando uma descende daoutra, como, por exemplo, um neto descende de umavô, ou quando ambas são descendentes de umantepassado comum”. Assim, segundo seusesquemas, no caso de herança, a transmissão deveocorrer entre parentes, sendo a transferência de paipara filho a mais tradicional.

2. ESTRUTURA SOCIAL E CULTURARadcliffe-Brown foi o primeiro a ocupar a cadeira

de antropologia social na África do Sul, fato queocorreu em 1921. Embora não negasse a existência dediferenças culturais, rejeitava a política desegregação fundado no argumento de que a Áfricado Sul transformara-se numa sociedade única. Paraele as instituições nacionais cruzavam as fronteirasculturais e moldavam opções de vida em todas asaldeias e cidades no país. Todos os indivíduosestavam no mesmo barco. As políticas de baseacerca das diferenças culturais representavam umareceita para o desastre. Entendia que a segregaçãoera algo insuportável, motivo pelo qual afirmava queo nacionalismo sul-africano tinha de ser umnacionalismo que abrangesse negros e brancos

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(KUPER, 2002: 16).Para Radcliffe-Brown não era possível observar

uma cultura, porque essa palavra denota não umarealidade concreta, mas uma abstração, e, da formacomo é usada comumente, uma abstração vaga.Repudiava a opinião de que uma sociedade como aÁfrica do Sul deveria ser estudada como uma arenaem que duas ou mais culturas interagiam. Para ele, oque estava ocorrendo na África do Sul não era ainteração das culturas (britânica, africânder,hotentote, banto e indiana), mas sim a interação deindivíduos e grupos dentro de uma estrutura socialestabelecida que estava em processo de mudança. Oque estava acontecendo numa tribo em Transker, porexemplo, só podia ser descrito reconhecendo-se quea tribo havia sido incorporada em um amplo sistemapolítico-econômico (KUPER, 2002: 16).

3. CRÍTICA AO FUNCIONALISMOPara Lévi-Strauss (2003: 25), os funcionalistas

proclamam que toda pesquisa etnológica deveproceder do estudo minucioso das sociedadesconcretas, de suas instituições e das relações queestas mantêm entre si e com os costumes, crenças etécnicas; relações entre o indivíduo e o grupo, e dosindivíduos entre si no interior do grupo. Com essemodo de proceder, os funcionalistas abandonam ahistória e os mecanismos de difusão cultural, ou seja,

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fecham os olhos a toda informação histórica relativaà sociedade considerada, e a todo dado comparativoemprestado de sociedades vizinhas ou afastadas.

Essa forma de proceder ou de fazer pesquisa,desenvolvida pelos funcionalistas, recebe o nome demétodo monográfico (ou monografia). A respeitodesse método, Lévi-Straus (2003: 26) reconhece quequando se estuda uma única sociedade, pode-sefazer uma obra preciosa; a experiência prova que,geralmente, devem-se as melhores monografias ainvestigadores que viveram e trabalharam uma únicaregião. Mas as conclusões dessas monografias são,para os funcionalistas, próprias daquela sociedade e,portanto, não podem ser estendidas para outrassociedades, motivo pelo qual tais conclusões jamaispodem almejar o caráter de leis universais.

Além disso, prossegue Lévi-Strauss, quandonos limitamos ao instante presente da vida de umasociedade, somos, antes de tudo, vítimas de umailusão: pois tudo é história; o que foi dito ontem éhistória, o que foi dito há um minuto é história. Mas,sobretudo, condenamo-nos a não conhecer essepresente, pois somente o desenvolvimento históricopermite sopesar e avaliar, em suas relaçõesrespectivas, os elementos do presente. Não épossível, por exemplo, analisar o vestuário modernosem reconhecer nele vestígios de formas anteriores.Raciocinar de outro modo é proibir todo meio de

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operar uma distinção essencial: a que existe entrefunção primária (correspondente a uma necessidadeatual do organismo social) e função secundária (quese mantém apenas por causa da resistência do grupoem renunciar a um hábito). Além disso, dizer que umasociedade funciona é um truísmo; mas dizer quetudo, numa sociedade, funciona é um absurdo.

3.1. Problema do métodoRadcliffe-Brown, ao tratar do método da

antropologia, assim se manifesta: (1973: 233):“Concebo a antropologia social como a ciênciateórico-natural da sociedade humana, isto é, ainvestigação dos fenômenos sociais por métodosessencialmente semelhantes aos empregados nasciências físicas e biológicas”.

Alguns teóricos têm-se manifestado a favor deuma posição mais crítica nos estudos da cultura e dasociedade, motivo pelo qual são contrários à tese deque os métodos utilizados pelas ciências naturaisdevem ser utilizados pelas ciências humanas. Odesprestígio do funcionalismo antropológico tambémpode ser medido por sua vinculação, explícita ouimplícita, a essa tradição do positivismo social(Comte, Durkheim), que advoga a adequação perfeitados métodos das ciências naturais às ciênciashumanas.

Ao se vincular a essa vertente teórica que

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consiste em aplicar ao estudo da sociedade e dacultura os princípios epistemológicos emetodológicos que presidem ao estudo das ciênciasnaturais, o funcionalismo aceita o pressuposto queas ciências naturais são uma aplicação ouconcretização de um modelo de conhecimentouniversalmente válido, motivo pelo qual, por maioresque sejam as diferenças entre os fenômenos naturaise os fenômenos sociais e culturais é sempre possívelestudar os últimos como se fossem os primeiros.

Alguns teóricos (Ernest Nagel por exemplo)apontam as seguintes objeções à tendência deaplicar às ciências sociais o modelo das ciênciasnaturais: a) as ciências sociais não podemestabelecer leis universais porque os fenômenossociais são historicamente condicionados eculturalmente determinados; b) as ciências sociaisnão podem produzir previsões confiáveis porque osseres humanos modificam o seu comportamento emfunção do conhecimento que sobre ele adquire; c) osfenômenos sociais são de natureza subjetiva e, comotal, não se deixam captar pela objetividade docomportamento (SANTOS, 1996: 20, 21).

4. SOCIEDADE E DIREITORadcliffe-Brown observa que geralmente na

análise das sociedades primitivas os teóricos incluemno conceito de direito todos ou quase todos os

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processos de controle social. Para ele, o conceito dedireito é mais restrito, por isso estabelece que ocritério fundamental na definição do conceito dedireito são as sanções sociais, administradas poruma sociedade politicamente organizada. Definesanção social como uma reação, por parte de umasociedade ou de um considerável número de seusmembros, a um modo de comportamento que éaprovado ou desaprovado.

O comportamento aprovado implica sançãopositiva e enfatiza o que se deve fazer. A sançãopositiva pode consistir na concessão de títulosnobiliárquicos, honoríficos, fama, prêmios etc. Ocomportamento não aprovado implica sançãonegativa e enfatiza o que não se deve fazer. Assanções negativas podem ser classificadas em duasespécies: a) organizadas: são aquelas que resultamde procedimentos definidos, regulados ereconhecidos, dirigidos contra pessoas cujocomportamento é socialmente desaprovado; e b)difusas: são espontâneas e desorganizadas,consistem na desaprovação geral da comunidade oude uma parte significativa de seus membros egeralmente aparecem na forma de acusação debruxaria, escárnio público etc.

O direito, segundo Radcliffe-Brown, deve serentendido como o conjunto de sanções negativasorganizadas. As sanções prescritas em uma lei penal

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seriam o exemplo típico dessas sanções. Nessaestrutura, o direito aparece como controle social quese exerce mediante a aplicação sistemática desanções negativas com o uso da força da sociedadeorganizada politicamente. O direito tem, nessesentido, como função primordial o estabelecimentoda ordem mediante coação.

Radcliffe-Brown reconhece que não existe direitoem algumas sociedades mais primitivas, porqueessas sociedades não estão politicamenteorganizadas. O conceito de direito, portanto, estárestrito àquelas culturas que possuem umaorganização política mais formalizada. Naquelassociedades primitivas nas quais não se aplica oconceito de direito, os costumes são reforçados porsanções sociais difusas. Assim, em algumascomunidades primitivas, o controle social deve sertomado como um conjunto de sanções negativasdifusas, visto que essas comunidades não possuemum corpo politicamente organizado capaz de fazerrespeitar suas regras.

Enfim, Radcliffe-Brown define direito como ocontrole social através da aplicação sistemática daforça da sociedade politicamente organizada. Deacordo com essa definição conclui que algumassociedades simples não têm direito.

4.1. Funcionalismo e direito

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Radcliffe-Brown, como visto, define sançãocomo uma reação por parte da sociedadepoliticamente organizada a um modo decomportamento que é aprovado ou desaprovado. Ocomportamento aprovado implica sanção positiva eenfatiza o que se deve fazer. O comportamento nãoaprovado implica sanção negativa e enfatiza o quenão se deve fazer. Essa análise combinada com anoção de Malinowski, segundo a qual a abordagemfuncionalista consiste numa explicação teleológicada ação como meio à objetivação de fins e metas, ésemelhante à análise funcionalista que algunsjuristas fazem da ordem jurídica, especialmenteNorberto Bobbio em um trabalho intitulado A funçãopromocional do direito.

A teoria geral do direito, que Bobbio propõe nassuas obras Teoria da norma jurídica e Teoria doordenamento jurídico, segue uma linhaestruturalista. Essa posição, contudo, passa por umarevisão. Assim, em A função promocional dodireito, investiga novas técnicas de controle socialcomo exigência do Estado social contemporâneo.Essas técnicas não são centradas apenas emcomportamentos repudiados pela sociedade,mediante a aplicação de sanções negativas, decaráter punitivo ou repressivo, mas também nasformas de estímulos às condutas desejadas,mediante a aplicação de sanções positivas, de caráter

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promocional.Sob o enfoque funcionalista, a ordem jurídica

pode ser vista não apenas como o reflexo darealidade social subjacente, mas também como fatorcondicionante dessa realidade. Na perspectivafuncionalista, o direito é tido como instrumento degestão da sociedade e abrange a concepçãosegundo a qual as sanções postas pelo ordenamentojurídico têm por finalidade obter dadocomportamento humano que o legislador consideraconveniente ou desejável. Nessa trilha, aparece afunção promocional do direito que implica o aumentode normas de organização e de sanções positivas oupremiais.

No ordenamento jurídico, além das medidasdiretas que almejam as condutas em conformidadecom as prescrições normativas, também seencontram medidas indiretas, que visam dificultarcomportamentos não desejáveis e facilitar osdesejáveis. Desse modo, ao lado das técnicasfundadas na função repressiva e nas sançõesnegativas, há lugar também para técnicas deencorajamento ou promocionais fundadas emsanções positivas que visam promover as condutastidas como desejáveis. O conjunto normativo é,assim, utilizado como meio para alcançardeterminados fins.

Na perspectiva do direito promocional, a adesão

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dos destinatários das normas não seria simplessubmissão, mas decisão, comprometimento eparticipação. Um direito desse tipo não pode,evidentemente, restringir-se ao tema da teoriaestrutural do direito que se concentra nasistematização formal do ordenamento jurídicoconforme a melhor tradição dogmática, mas requer,para apropriada consideração do princípio daefetividade, a análise da conduta dos destinatáriosdas normas. Quer dizer, é necessário verificar sedeterminado conjunto normativo produziu os efeitosesperados, se ele se firmou, se obteve sucesso; porisso mesmo, na análise do efetivo cumprimento dasnormas, tem papel preponderante a análise do seuimpacto persuasivo. Esse tipo de análise permiteenxergar o direito como um sistema aberto aos fatossociais e culturais que o abrangem e circunscrevem.

Alguns juristas entendem que o uso dassanções positivas ou premiais incide sobrecomportamentos permitidos e não sobrecomportamentos obrigatórios. O destinatário é,portanto, livre para se conduzir ou não emconformidade com a norma. Nesse aspecto cresce emimportância a autonomia da vontade, na medida emque o Estado sancionador restringe sua própriaforça, uma vez que não ameaça, mas simplesmenteencoraja. Na verdade, não há ampliação daautonomia da vontade. O que existe efetivamente é

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uma condução sutil da vontade, mediante técnicasde encorajamento. Vale dizer, com as sançõespremiais o Estado desenvolve formas de poder maisamplas, substituindo o mercado e a sociedade nomodo de controlar o comportamento, ao promovercomportamentos através de subsídios, incentivos,isenções etc.

4.2. Direito: funcionalismo e estruturalismoNa teoria geral do direito de inspiração

funcionalista-estruturalista, o conjunto normativoaparece como um instrumento de gestão e controlesocial. Quando predomina o enfoque estruturalista,que enxerga o direito em termos de controle coativo,a ênfase incide na repressão de condutas contráriasàs normas. Quando predomina o enfoquefuncionalista, que enxerga o direito em termos decontrole persuasivo, a ênfase incide no incentivo decondutas tidas como desejadas.

Segundo Alaôr Caffé Alves (in BOBBIO, 2005:18, 19), Bobbio entende que as teorias que enfocam odireito sob o ponto de vista estrutural, portantopautadas na perspectiva protetora ou repressiva dodireito, são próprias dos Estados liberais, e as teoriasque enfocam o direito sob o ângulo funcional,objetivando propiciar as condições jurídicas dapromoção social e econômica, são próprias dosEstados sociais. Assim, a análise funcional do direito

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demanda considerações de conteúdo que, comovisto, traspassa a mera análise formal da estrutura doordenamento. Isso não quer dizer, entretanto, que ojurista italiano tenha substituído o enfoque daanálise estrutural do direito, dominante na primeirafase de suas investigações, pela análise funcional outeleológica. Há, na obra de Bobbio, umaconvergência entre a análise estrutural e a funcional.A análise estrutural, considerada a primeira via dainvestigação, procura responder à pergunta: “de quese compõe o direito?” Essa análise é complementadae aprofundada pela segunda via da pesquisa, a daanálise funcional, que responde à pergunta: “paraque serve o direito?”. A análise funcional investiga,portanto, a relação entre meio e fim, numaperspectiva sociológica.

Aliás, conforme palavras de Bobbio (2005: 19):“Os elementos deste universo (do direito), que sãopostos em evidência pela análise estrutural, sãodiferentes daqueles que podem ser postos emevidência pela análise funcional. Os dois pontos devista não só são perfeitamente compatíveis senãoque se integram mutuamente e de maneira sempreútil. Se o ponto de vista estrutural é predominante emmeus cursos de teoria do direito, isto se deveexclusivamente ao fato de que quando os desenvolviesta era a orientação metodológica dominante emnossos estudos. Se hoje os devesse retomar,

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decididamente não pensaria em substituir a teoriaestruturalista pela funcionalista. Agregaria umasegunda parte sem sacrificar nada da primeira”.

Os antropólogos e juristas costumam destacaras contribuições da escola sociológica francesa aodesenvolvimento e construção dos estudosantropológicos e jurídicos. Nesse sentido,mencionam os nomes de Émile Durkheim e MarcelMauss, cujas contribuições serão analisadas noscapítulos seguintes.

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XII ÉMILEDURKHEIM (1858 –1917)1. AUTONOMIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS

Laplatine (2006: 87, 88) constata que para ospesquisadores da escola francesa de sociologia eranecessário às ciências sociais, para garantir suaautonomia e para alcançar sua elaboração científica,a constituição de um quadro teórico, de conceitos ede modelos que fossem próprios da investigação dosocial, isto é, independentes tanto da explicaçãohistórica (evolucionismo) ou geográfica(difusionismo) quanto da explicação biológica(funcionalismo) ou psicológica (psicologia clássica).Ao se empenharem nessa tarefa os sociólogosfranceses Émile Durkheim e Marcel Maussforneceram à antropologia o quadro teórico e osinstrumentos operacionais que lhe faltavam.

Durkheim, ao escrever as Regras do métodosociológico, desconfia da etnologia ao opor asobservações confusas e rápidas dos viajantes aostextos precisos da história. Contudo, em As formas

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elementares da vida religiosa proclama que “ascivilizações primitivas constituem casosprivilegiados, porque são casos simples. Eis aí porque, em todas as ordens de fatos, as observaçõesdos etnógrafos frequentemente foram verdadeirasrevelações que renovaram os estudos dasinstituições humanas. Nada mais injusto que odesdenho que muitos historiadores têm ainda pelostrabalhos dos etnógrafos. Ao contrário, é certo que aetnografia frequentemente determinou, nosdiferentes setores da sociologia, as mais fecundasrevoluções” (1978b: 209).

Durkheim é considerado o responsável pelaconquista da autonomia da sociologia em relação àsdemais ciências porque estabeleceu o fato socialcomo objeto específico dos estudos sociológicos.Mas, em relação à antropologia, entendeu que estanão era totalmente autônoma na medida em que aconsiderou apenas um ramo da sociologia.

1.1. Fato socialSegundo Durkheim (1974: 1 a 3), há em toda

sociedade um grupo determinado de fenômenos comcaracteres nítidos que se distingue daquelesestudados pelas ciências da natureza. Assim,quando uma pessoa desempenha seus deveres decidadão, de esposo ou de irmão ou quando sedesincumbe de encargos que contraiu, essa pessoa

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pratica deveres que estão definidos no direito. Essedireito, entretanto, não foi a pessoa que o criou,portanto, existe fora dela. Assim também o devoto,ao nascer, encontra prontas as crenças e as práticasda vida religiosa, portanto, essas coisas existem foradele. O mesmo ocorre com o sistema de sinais que apessoa utiliza para exprimir seus pensamentos, osistema de moeda que emprega para pagar asdívidas, os instrumentos de crédito que utiliza nasrelações comerciais, as práticas a seguir na profissão,enfim, todas essas coisas funcionamindependentemente do uso que a pessoa delas faça.

Para Durkheim, esses tipos de conduta ou depensamentos não são apenas exteriores aoindivíduo; são também dotados de um poderimperativo e coercitivo, em virtude do qual se lheimpõem, quer queira, quer não. O indivíduo encontra-se, pois, diante de uma ordem de fatos que apresentacaracteres muitos especiais. São os fatos sociais, osquais consistem na maneira de agir, de pensar e desentir exterior ao indivíduo, dotados de um poder decoerção em virtude do qual se lhe impõe. Porconseguinte, não podem ser confundidos com osfenômenos orgânicos, pois consistem emrepresentações e em ações; nem com os fenômenospsíquicos, que não existem senão na consciênciaindividual e por meio dela. O fato social, portanto: a)é exterior às consciências individuais; b) exerce

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coerção sobre os indivíduos; c) apresentageneralidade no meio do grupo; d) constitui o objetode estudo da sociologia.

Conforme Durkheim (1974: 5, 6), essa definiçãode fato social pode ser confirmada por meio de umaexperiência singela: basta que se observe a maneirapela qual são educadas as crianças. Toda educaçãoconsiste num esforço contínuo para impor àscrianças maneiras de ver, de sentir e de agir às quaiselas não chegariam espontaneamente. A pressão detodos os instantes que sofre a criança é a própriapressão do meio social tendendo a moldá-la à suaimagem, pressão de que tanto os pais quanto osmestres não são senão representantes eintermediários. Também são transmitidos pelaeducação outros fatos sociais, como as regrasjurídicas, morais, religiosas etc.

O estudo sociológico do fato social implica aobservação de três regras básicas: a) os fatos sociaiss ã o coisas que só podem ser explicadas sendorelacionadas a outros fatos sociais; b) na explicaçãodos fatos sociais devem ser afastados todos ospreconceitos e pré-noções; c) é preciso definir comprecisão o objeto da investigação, procurandoagrupar aqueles que manifestam característicascomuns.

2. FORÇA DOS FATOS SOCIAIS

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Para Durkheim (1974: 6, 7), existem certascorrentes de opinião que nos impelem comintensidade desigual, segundo as épocas e ospaíses, ao casamento, ao suicídio ou então a umanatalidade maior ou menor. Tais correntes são fatossociais. À primeira vista, parecem inseparáveis dasformas que tomam nos casos particulares. Mas aestatística oferece-nos o meio de isolá-las. São, comefeito, expressas – e não sem exatidão – pelas taxasde nascimento, casamento, suicídios, isto é, peloalgarismo que se obtém dividindo-se o total médioanual dos casamentos, dos nascimentos, das mortesvoluntárias pelo total médio dos homens em idade decasar, de procriar, de se suicidar. Como cada umdesses números compreende todos os casosparticulares indistintamente, as circunstânciasindividuais que podem desempenhar qualquer papelna produção do fenômeno se neutralizammutuamente e, por conseguinte, não contribuem paradeterminá-lo. O que cada número exprime é certoestado de alma coletiva.

Durkheim interessou-se pelo estudo das taxas desuicídio por julgar que um estudo dessa naturezaseria suficiente para testar a sua teoria e elevar asociologia à categoria de disciplina científica. Assim,em uma obra intitulada O suicídio: um estudosociológico, cuja síntese elaborada por Joel Charon(2000: 33 a 36) expomos na sequência. Durkheim

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analisa a força que os fatos sociais exercem sobre osuicida. Com essa análise pretende demonstrar aimportância dos fatos sociais na determinação daprobabilidade de suicídios.

2.1. Estudo do suicídioO suicídio, segundo Durkheim, sempre será uma

escolha pessoal, e há todo tipo de razõespsicológicas que levarão uma pessoa e não outra adecidir suicidar-se. Contudo, até mesmo nessaescolha extremamente individual atuam fatos sociais,ou seja, a taxa (alta ou baixa) de suicídio numasociedade influencia a probabilidade de suicídio deum indivíduo. Para Durkheim, a causa determinanteda taxa (alta ou baixa) de suicídio é outro fato socialque ele denomina solidariedade social. Assim, emcomunidades com alta solidariedade social a taxa desuicídio deve ser menor do que nas comunidadescom baixa solidariedade social. Para testar sua teoria,Durkheim analisou os registros sobre suicídio devárias províncias europeias.

Durkheim dividiu as províncias em católicas eprotestantes. Como o protestantismo ressalta arelação individual com Deus (baixa solidariedade) e ocatolicismo salienta a Igreja como uma comunidadeintegrada que reverencia Deus em conjunto (altasolidariedade), as províncias protestantes deveriaapresentar taxa de suicídio maior do que as

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províncias católicas. De fato, os registros apontaramque a taxa de suicídio era maior entre osprotestantes. Assim, pode-se afirmar que aprobabilidade de suicídio é maior entre protestantesdo que entre católicos. De acordo com a teoria, naspequenas cidades (alta solidariedade) a taxa desuicídio seria menor do que nas grandes cidades(baixa solidariedade), porque nestas impera aimpessoalidade ou individualismo. Examinando osregistros, constatou-se que efetivamente era o queocorria.

De acordo com a teoria de Durkheim, as pessoascasadas devem ser mais integradas na comunidadedo que as solteiras, as mulheres mais do que oshomens, as pessoas com filhos mais do que as semfilhos, as pessoas sem instrução universitária maisdo que as com formação superior. Assim, segundoele, casamento, família e ausência de educaçãosuperior integram mais a pessoa na comunidade,portanto, implica alta solidariedade. Ao passo queser solteiro, do sexo masculino, sem filhos e tereducação superior implica baixa solidariedade. Osregistros apontaram que a taxa de suicídio, de fato,era maior entre as pessoas solteiras, do sexomasculino, as sem filhos e as com instrução superior.

Durkheim também verificou que em comunidadescom altíssima solidariedade a taxa de suicídioaumentava, portanto, demonstrou que a relação entre

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solidariedade social e taxas de suicídios écurvilinear, isto é, as taxas são mais elevadas nosdois extremos. Também verificou que as taxas desuicídios aumentam em épocas de mudanças sociaise também em épocas de depressão econômica ouperíodos de rápida prosperidade.

Com base nos resultados do seu estudo,Durkheim classificou os seguintes tipos de suicídio:a ) egoístas: ocorrem em virtude da baixasolidariedade social; b) altruístas: ocorrem emvirtude da altíssima solidariedade social; c)anômicos: ocorrem em virtude de mudanças sociais,que levam o indivíduo a um estado de anomia(ausência de regras); d) fatalistas: ocorrem emvirtude de mudança súbita na vida da pessoa:aumento ou diminuição repentina do status. A teoriade Durkheim influenciou todo tipo de análise deestatísticas: taxas de natalidade, mortalidade, aborto,divórcio, casamento etc.

O procedimento com as pesquisas estatísticasmostrou que as representações coletivas são fatosde natureza específica, portanto, diferentes dosfenômenos psicológicos individuais; mostroutambém que é possível determiná-las de maneiradireta e não apenas através dos pensamentos eemoções individuais. Outro método paraconhecimento direto das representações coletivasseria o exame das expressões permanentes dessas

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representações. Nesse sentido, a análise da religião edos sistemas jurídicos, por exemplo, permitiria captaras representações coletivas, tendo em vista que areligião e os sistemas jurídicos consistem emexpressões permanentes dessas representações.

2.2. Antropologia e religiãoDurkheim, em As formas elementares da vida

religiosa, investiga as práticas religiosas dascomunidades ditas primitivas, especialmente osistema totêmico dos povos australianos. Em virtudedas suas investigações sobre o totemismo, osagrado e o profano, Lévi-Straus o considera um dosfundadores da antropologia religiosa.

Para Durkheim (1978b: 209 a 212), as religiõesprimitivas não permitem apenas distinguir oselementos constitutivos da religião; gozam também avantagem muito grande de facilitar sua explicação,porque nas sociedades primitivas os fatos são maissimples e as relações entre os fatos também são maisaparentes. De outra parte, segundo Durkheim, todareligião tem um lado pelo qual ela ultrapassa o círculodas ideias propriamente religiosas e, através disso, oestudo dos fenômenos religiosos fornece um meio derenovar problemas que até então têm sido debatidosapenas entre filósofos. A religião, diz ele, é uma coisaeminentemente social, daí o interesse da sociologia.As representações religiosas são representações

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coletivas que exprimem realidades coletivas; os ritossão maneiras de agir que nascem no seio dos gruposreunidos e são destinados a suscitar, a manter ou arefazer certos estados mentais desses grupos.

“Sabe-se há muito tempo que, até um momentorelativamente avançado da evolução, as regras damoral e do direito não se diferenciavam dasprescrições rituais. Portanto, pode-se dizer,resumindo, que quase todas as grandes instituiçõessociais nasceram da religião. Ora, para que osprincipais aspectos da vida coletiva tenhamcomeçado por aspectos variados da vida religiosa, épreciso evidentemente que a vida religiosa seja aforma eminente e como que uma expressão abreviadada vida coletiva inteira. Se a religião engendrou tudoo que há de essencial na sociedade, é porque a ideiada sociedade é a alma da religião” (DURKHEIM,1978b: 224).

Segundo Durkheim (1978b: 230), toda sociedadesente necessidade de conservar e de reforçar, emintervalos regulares, os sentimentos coletivos e asideias coletivas que garantem a sua unidade epersonalidade. Isso, segundo ele, só pode ser obtidopor meio de reuniões, assembleias, congregaçõesonde os indivíduos, estreitamente ligados uns aosoutros, reafirmam os seus sentimentos comuns.Essas cerimônias, por seu objeto, pelos resultadosque produzem, pelos procedimentos que nelas são

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empregados, não diferem em natureza das cerimôniaspropriamente religiosas.

Na concepção de Durkheim, as religiões seriamapenas uma transposição da sociedade para o planosimbólico. Assim, através do totemismo, porexemplo, os homens cultuam apenas a realidadecoletiva transfigurada.

Totemismo é a crença no totem, ou organizaçãosocial fundada nessa crença. O termo totem foiextraído do idioma dos índios norte-americanos edepois passou a indicar o fenômeno (presente emtodos os povos primitivos) de transformar uma coisa(natural ou artificial) em emblema do grupo social eem garantia de sua solidariedade. O totem é, assim,apenas o símbolo de uma força sagrada e impessoal,emanada do grupo. Durkheim enfatizou esse caráterd o totem, vendo nele a expressão da unidade dogrupo social em sua inteireza e, portanto, nas inter-relações dos clãs em que o grupo se divide.

O totemismo dos Aruntas (tribo australiana) foitomado como a forma mais simples de manifestaçãoreligiosa. A partir dessa manifestação, Durkheimelaborou três hipóteses: a) a vida do grupo é a fontegeradora e a causa da religião; b) as ideias e práticasreligiosas referem-se ao grupo social ou osimbolizam; c) a distinção entre o sagrado e oprofano é universalmente encontrada e temconsequências importantes para a vida social.

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2.2.1. Sagrado e profanoPara Durkheim, a distinção das coisas em

sagradas e profanas constitui um elementoimportante para a compreensão dos fenômenosreligiosos. Estes, segundo ele, colocam-senaturalmente em duas categorias fundamentais: a) ascrenças: são estados de opinião e consistem emrepresentações; e b) os ritos: constituem tiposdeterminados de ação.

Segundo Durkheim, todas as crenças religiosas,simples ou complexas, têm um mesmo caráter comum:pressupõem uma classificação das coisas (reais ouideais) em duas classes ou em dois gêneros opostos.Essas coisas são traduzidas pelas designações deprofano e sagrado. Assim, o caráter distintivo dopensamento religioso consiste na divisão do mundoem dois domínios: a) um que compreende tudo o queé sagrado; e b) outro que compreende tudo o que éprofano. As crenças, os mitos, as lendas sãorepresentações ou sistemas de representações queexprimem a natureza das coisas sacras, as virtudes eos poderes a elas atribuídos, sua história, suasrelações recíprocas e suas relações com as coisasprofanas. Mas por coisas sagradas não é precisoentender apenas aqueles seres pessoais que vêmdenominados deuses ou espíritos: uma rocha, umaárvore, uma fonte, uma pedra, um pedaço de lenha,uma casa, em suma, qualquer coisa pode ser sagrada.

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Durkheim elabora uma distinção entre religião emagia, embora reconheça que ambas possuemmuitos pontos comuns. Para ele, a magia está cheiade religião e a religião está cheia de magia, portanto,é impossível separá-las totalmente e definir uma sema outra. A magia, tal como a religião, também tem osseus ritos e os seus dogmas, que são apenas maisrudimentares porque, perseguindo fins técnicos eutilitários, não se detêm em puras especulações. Masa religião tem uma profunda aversão à magia, quenutre uma profunda hostilidade à religião. A magiadeposita uma espécie de prazer profissional aoprofanar as coisas santas. De sua parte a religião,embora não tendo sempre condenado e proibido osritos mágicos, os vê em geral desfavoravelmente.

Segundo Durkheim, o aspecto coletivo (igreja)representa a diferença mais acentuada entre religião emagia. As crenças religiosas são sempre comuns adeterminada coletividade, que, ao aderir às crenças,pratica os ritos delas emanados. As crenças,portanto, não são admitidas apenas a títuloindividual por todos os membros da coletividade,mas são coisas do grupo e constituem a sua unidade.Os indivíduos que compõem a mesma religiãosentem-se ligados uns aos outros pelo simples fatode terem uma fé comum. Igreja, para Durkheim, é umasociedade na qual os membros são unidos pelo fatode representarem do mesmo modo o mundo sagrado

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e as suas relações com o mundo profano, e detraduzirem essas representações comuns compráticas idênticas. Na história, diz ele, não seencontra nenhuma religião sem igreja.

Não existe uma igreja mágica, ou seja, a magianão possui igreja. Entre o mago e os indivíduos queo consultam, como entre estes últimos, nãosubsistem vínculos duráveis que façam dos membrosum mesmo corpo moral comparável àquele queformam os fiéis de um mesmo Deus, ou os sequazesde um mesmo culto. O mago tem uma clientela, nãouma igreja; e os seus clientes podem perfeitamentenão ter entre si qualquer relacionamento, ao limite deignorar-se um ao outro. Também as relações entreeles são geralmente acidentais e transitórias, de todosemelhante àquelas de um doente com seu médico.

3. DIREITO E SOLIDARIEDADEPara Durkheim (1978a), a sociedade não é uma

simples soma de indivíduos; ela representa umarealidade específica que tem suas característicaspróprias. Segundo ele, nada se poderia produzir decoletivo se as consciências individuais nãoexistissem, mas essa condição, apesar de necessária,não é suficiente. É preciso, portanto, que essasconsciências individuais estejam associadas ecombinadas; é dessa combinação que resulta a vidasocial. Em suma, a sociedade ultrapassa o indivíduo,

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motivo pelo qual está em condições de impormaneiras de agir e de pensar. Mas a vida geral dasociedade não pode ser ampliada sem vida jurídicaque, simultaneamente, abranja os mesmos limites erelações, refletindo-se necessariamente no direitotodas as modalidades essenciais da solidariedadesocial.

“Quanto mais os membros de uma sociedade sãosolidários, tanto mais mantêm relações diversas, sejauns com os outros, seja com o grupo tomadocoletivamente; pois, se seus encontros fossem raros,dependeriam uns dos outros apenas de uma maneiraintermitente e fraca. Por outro lado, o número destasrelações é necessariamente proporcional àquele dasregras jurídicas que as determinam. Com efeito, avida social, em todas as partes em que ela existe deuma maneira durável, tende inevitavelmente a tomaruma forma definida e a organizar-se; o direito não éoutra coisa senão esta organização mesma, no queela tem de mais estável e de mais preciso. A vidageral da sociedade não pode se desenvolver numponto sem que a vida jurídica se estenda ao mesmotempo e na mesma proporção. Portanto, podemosestar certos de encontrar refletidas no direito todasas variedades essenciais da solidariedade social”(1978a: 32).

Solidariedade social é, portanto, uma estruturade relações e de vínculos recíprocos; ela cria entre os

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homens um sistema de direitos e deveres que osligam uns aos outros de maneira durável.Solidariedade é forma de integração social; nessesentido, o direito é um símbolo visível dasolidariedade social. Durkheim distingue dois tiposde solidariedade social: a) solidariedade mecânica:ocorre nas sociedades simples (primitivas ouarcaicas), cuja estrutura social é formada desegmentos similares e elementos homogêneos,fundados na semelhança, ou seja, na uniformidadede comportamento; nessas sociedades os indivíduospartilham dos mesmos valores e sentimentos e odireito preponderante é o penal, que se fazacompanhar de sanções repressivas; b)solidariedade orgânica: ocorre nas sociedadescomplexas (civilizadas ou modernas), constituídaspor um sistema de órgãos diferentes, dos quais cadaum tem um papel especial, sendo eles própriosformados de partes diferenciadas; fundamenta-se nadivisão do trabalho, no qual o direito preponderanteé o dos contratos, que se faz acompanhar de sançõesrestitutivas.

3.1. Direito e sociedade complexaSegundo Durkheim (1978a), as sociedades mais

complexas não podem formar-se sem que a divisãodo trabalho se desenvolva, motivo pelo qual se podeformular a seguinte proposição: o ideal de

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fraternidade humana não pode realizar-se senão namedida em que a divisão do trabalho progride. Adivisão do trabalho produz solidariedade porquecria entre os homens um sistema de direitos edeveres que os liga uns aos outros de maneiradurável. A divisão do trabalho dá origem a regrasque asseguram o concurso pacífico e regular dasfunções divididas. Assim, formam-se as regras cujonúmero cresce à medida que o trabalho se divide ecuja ausência torna a solidariedade orgânicaimpossível ou imperfeita. Na solidariedade orgânicaos indivíduos são agrupados segundo a naturezaparticular da atividade social a que se dedicam. Seumeio natural e necessário é o meio profissional. Oque marca o lugar de cada um na sociedade é afunção que preenche.

O direito repressivo é típico de sociedadesprimitivas ou arcaicas nas quais o indivíduodificilmente é distinguido do grupo a que pertence,ao passo que o direito restitutivo é típico dassociedades complexas ou modernas nas quais oindivíduo se tornou uma pessoa capaz de estabelecerlivremente relações contratuais com outrosindivíduos. Desse modo, o desenvolvimento paralelodo Contrato e do Estado, ambos acompanhados desanções restituitórias, é a manifestação mais exata dofortalecimento da solidariedade orgânica e do direitoque lhe corresponde. Assim, à medida que a

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solidariedade mecânica, pelo influxo da divisão dotrabalho, vai sendo transformada em solidariedadeorgânica, o direito vai abandonando o seu caráterrepressivo (direito penal), para assumirpredominantemente a sanção restitutiva,característica do direito civil, comercial,administrativo e tributário.

4. JUSTIÇA E RETRIBUIÇÃOTercio Sampaio Ferraz Jr., em Estudos de

filosofia do direito (2002: 213 a 229), analisa osmodelos de justiça, em especial a conexão entrejustiça e retribuição, e observa que a aceitação atualda agressão, repressão e violência como base daretribuição parece algo do passado, de sociedadesprimitivas. Mas, segundo ele, é na sociedadedesenvolvida que a pena no sentido criminal recebeboa aceitação.

Aliás, Michel Foucault (1996: 80 a 82) confirmaessas observações ao informar que na Europa doséculo XVIII a pena de morte era a regra, e aexecução era um cerimonial semelhante a espetáculopúblico. Na Inglaterra, por exemplo, a lei penalestabelecia 315 condutas punidas com a morte. Issotornava o sistema penal inglês um dos maisselvagens e sangrentos que a história dascivilizações conheceu. Mesmo os teóricos do direitopenal moderno (Beccaria, Bentham, Brissot), ao

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estabelecerem os tipos possíveis de punição(deportação, trabalho forçado, humilhação), incluírama pena de talião (mata-se quem matou; tomam-se osbens de quem roubou) como forma de retribuiçãoideal e eficaz. Para esses teóricos, o criminoso édefinido como um inimigo social, um inimigo interno,assim, ainda que a lei penal não possa prescreveruma vingança, a retribuição não deixa de ter umaconotação com vingança, fato que pode serobservado entre os adeptos da pena de morte.

A análise de Ferraz Jr. coloca sob suspeita osconceitos de solidariedade mecânica e solidariedadeorgânica elaborados por Durkheim, principalmenteno que diz respeito às conclusões retiradas dessesconceitos, segundo as quais o direito preponderantenas sociedades arcaicas ou primitivas seria o penal,que se faz acompanhar de sanções repressivas, e odireito preponderante nas sociedades modernas seriao dos contratos, que se faz acompanhar de sançõesrestitutivas.

Na sua análise, Ferraz Jr. se serve de um estudode Walter Burkert sobre retribuição, que permite aelaboração de modelos de justiça. Burkert assinalasignificativos casos de retribuição animal, que, naaproximação com o comportamento humano,merecem uma reflexão mais detida. Principia porlembrar observações sobre chimpanzés da Tanzânia,dentre os quais ocorre que algumas fêmeas arrancam

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o filhote da mãe e o devoram. A mãe demonstra medoe procura evitar o ato. Mas o grupo nada faz paraevitá-lo. Não há pena contra as fêmeas. A questãoparece resolver-se quando as fêmeas canibaistornam-se mães.

Burkert contrasta esse caso com uma passagemdo livro de Tânia Blixen (Out of África), em que aautora retrata o comportamento dos kikuyus doQuênia. Para Blixen, parece que estes não teriamnenhum sentido para as noções de justiça e pena, aomenos no sentido ocidental que elas assumem. Paraos africanos, diz ela, só há um meio de sanear umainsanidade cometida: o dano deve ser indenizado,qualquer que ele seja. O assassínio ou a lesãocorporal é seguido de longas deliberações dosanciãos, que, por meio de negociações, buscamdeterminar a indenização correspondente. Blixen,para seu espanto, não encontra entre essesprincípios nenhum “olho por olho, dente por dente”.A autora constata que entre os kikuyus não há penano sentido criminal, mas apenas num sentido civil.

Ferraz Jr. lembra que a autora talvez tivesse seuespanto diminuído se soubesse que, até a alta IdadeMédia, o direito dos povos germânicos retribuía compenas pecuniárias até mesmo os atos criminais maispesados. A pena criminal só aparece entre osséculos XI e XII, não obstante o Velho Testamentoproibir expressamente a indenização pecuniária em

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caso de assassinato.

4.1. Chimpanzés e kikuyusO contraste entre a prescrição bíblica e o direito

germânico faz Burkert retornar aos chimpanzés.Nestes, o observador não deixa de constatarcontrarreações acompanhadas de irritação não sócomo contrapartida direta e imediata, mas mesmoquando algum tempo decorre. Assim, umcomportamento “vingativo” pode ocorrer em face deum comportamento inamistoso, cometido napresença do chimpanzé dominante (Alpha), horasdepois, quando Alpha não está mais presente. Trata-se de reações homeostáticas, que asseguram apermanência de situações ambientais favoráveis aindivíduos e grupos, por meio de compensações eperturbações. O animal, num primeiro momento, foge,mas a fuga não é a estratégia mais eficaz. Daí vem aagressão, a contra-agressão. Na agressão estácontida a explosão de fúria, uma espécie deprogramação biológica que oferece, ainda que curta enão objetiva, uma resistência a forças contrárias.

Ocorre que a agressão, mesmo entre oschimpanzés, parece estar controlada pela presençado chimpanzé Alpha. A agressão é limitada por umaespécie de “hierarquia” grupal. A quebra da“hierarquia”, por sua vez, é “punida”. O Alpha reageà insubordinação, e a essa reação se ligam fortes

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emoções. Às emoções submetidas a controle, dossubordinados, contrapõe-se a emoção sem limite do“chefe”, o que explica as lutas agressivas em disputada posição superior.

Em contraste com o comportamento animal, oskikuyus e os povos germânicos desenvolveram umaespécie de procedimento das reações que, de umlado, permite a socialização dos processos (quecorresponde ao sentido de sanção comoestabelecimento cerimonial da retribuição) e, deoutro, o contato com meios de pagamento quepossibilita a indenização como troca. Ambas, asocialização e a indenização, pressupõem a língua(código significativo) e, com isso, uma homeostasepor meio de um mundo objetivamente estabilizado(criado pela linguagem) no qual ocorremnegociações. Assim, os procedimentos retributivosdos africanos não são primitivos nem desenvolvidos.Primitivismo e desenvolvimento são conceitosimpróprios ao caso. Enfim, quando se trata de serhumano, mesmo a vingança, por meio deprocedimentos com base linguística, torna-seorientada e dirigida, não obstante seu fundamentoemocional.

A partir de observações filológicas, Burkertdistingue dois modelos de retribuição: a) ohorizontal: é o modelo que visa a equiparação deuma pretensão e de uma contraprestação; e b) o

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vertical: é o modelo que se fixa numa hierarquia a serprotegida e mantida. O modelo vertical pareceprolongar um modelo pré-humano, no qualpressupõe hierarquia e retribui agressivamente umaameaça agressiva. Mas os dois modelos podemaparecer numa mesma regra, conforme a estabelecidapor Chilon (um dos sete sábios): “Concilia-te comquem te infligiu um dano (horizontal), vinga-te dequem te ofendeu (vertical)”.

O modelo horizontal parece pertencerexclusivamente ao gênero humano, à medida que seliga à língua e a um mundo objetivamente construído.O estabelecimento da indenização ocorre por meio denegociação que permite a compensação de um dano.A vinculação da emoção à negociação até parecerebaixar o homem, significando sua regressão aoanimalesco (beber o sangue do adversário). Por isso,Burkert entende que, do ponto de vista humano, omodelo horizontal é obviamente um dos universaliaantropológicos, base de um discutido fenômeno, oprincípio da reciprocidade, que se apresenta comoum dar e receber. Lembra, a propósito, o Ensaiosobre o dom, de Marcel Mauss, no qual aqueleprincípio constitui uma forma básica da interaçãosocial.

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XIII MARCELMAUSS (1872 –1950)1. TEORIA DO FATO SOCIAL TOTAL

Marcel Mauss, tal como Durkheim, tambémentende que é necessário estudar os fatos sociaiscomo coisas. Mauss, porém, amplia a noção de fatosocial, pois, para ele, as coisas (objetosmanufaturados, armas, instrumentos, objetos rituais)são, elas mesmas, fatos sociais. Durkheimconsiderava os dados recolhidos pelos etnógrafosnas sociedades primitivas sob o ângulo dasociologia, da qual a antropologia era destinada a setornar um ramo. Mauss, ao contrário, com a teoria dofato social total, proclama que o “lugar” dasociologia é “dentro” da antropologia (Laplatine,2006: 89, 91).

Mauss, no Ensaio sobre o dom ou dádiva,analisa as formas de circulação de bens (trocas edoações) em diferentes sociedades, dando ênfaseaos princípios de solidariedade, de reciprocidade ede rivalidade e suas conexões com as obrigações de

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dar, de receber e de restituir. Essa análise mostra quea economia e a moral do dom penetra nas sociedadescapitalistas modernas, especialmente nos grandessistemas de doações e empréstimos que estão sendocriados para organizar e atender às demandassociais. Os princípios do dom, portanto, não foramsuprimidos pela dinâmica do mercado, motivo peloqual devem ser considerados pela tecnologiajurídica, especialmente na parte que se refere aoscontratos.

Mauss examina as formas de circulação de benssob o enfoque da teoria do fato social total. Deacordo com essa teoria, o social só é real integradoem sistema, motivo pelo qual, para compreender umfenômeno social, é preciso apreendê-lo totalmente,ou seja, os fatos sociais não podem ser redutíveis afragmentos esparsos.

A teoria do fato social total postula, portanto, aintegração dos diferentes aspectos (jurídico,econômico, histórico, religioso, estético)constitutivos de dada realidade social que convémapreender em sua integralidade. Essa totalidade nãosuprime o caráter específico dos fenômenos, quepermanecem, ao mesmo tempo, jurídicos,econômicos, religiosos e até mesmo estéticos emorfológicos. A totalidade consiste, assim, numsistema ou rede de inter-relações funcionais entretodos esses planos, que possibilita apreender as

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condutas humanas em todas as suas dimensões.Isso significa que, ao enxergar o fenômeno social nasua totalidade, o investigador (jurista, antropólogo,sociólogo) estabelece uma exigência epistemológicade caráter interdisciplinar.

Mauss acredita que as trocas (dons econtradons) constituem o núcleo comum de umgrande número de atividades sociais aparentementeheterogêneas; percebe, desse modo, a importânciado regime dos contratos no funcionamento eevolução das sociedades, motivo pelo qual procuraapreendê-lo como um fenômeno social total. Começapor investigar o caráter livre e gratuito, mas aomesmo tempo obrigatório e interessado, dasobrigações de dar, de receber e de restituir que vigemnas sociedades ditas primitivas. Na sequência,procura demonstrar que o encadeamento dessasprestações envolve uma multiplicidade defenômenos (jurídicos, morais, políticos, econômicos,religiosos etc.) ligados aos sistemas de trocas (donse contradons). A circulação de dons e contradons,assim, corresponde a um fato social total porqueengloba e entrelaça os diversos domínios da vidacoletiva.

Sinteticamente, pode-se estabelecer que noregime do dom: a) tem-se um sistema de prestaçõestotais porque abrange dons antagonistas e nãoantagonistas envoltos em ciclos de solidariedade,

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reciprocidade e rivalidade, cujo funcionamento podeser perfeitamente conhecido; b) as prestações sãototais porque englobam, ao mesmo tempo, diversostipos de fenômenos (jurídicos, religiosos,econômicos, morais etc.), que supõem a intervençãodos diversos grupos que dão forma a uma sociedade(famílias, clãs, tribos etc.); c) o fenômeno social datroca de dons é total porque nele combinam-semuitos aspectos das práticas sociais e numerosasinstituições que caracterizam uma sociedade; d)esses fenômenos sociais também são totais porquepermitem que a sociedade se represente e sereproduza como um todo.

A teoria do fato social total tem, assim, apretensão de apreender certas formas universais depensamento e de moralidade a partir do processo detrocas, momento em que a totalidade da sociedade ede suas instituições se manifesta na experiência. Osistema de trocas que implica o dom traspassa todasas sociedades porque o dom existe em todo lugar,embora não seja o mesmo em toda parte. Mauss,entretanto, concentra-se no estudo do sistema detrocas das sociedades primitivas. Essa escolhajustifica-se pelo fato de essas sociedades estarembastante afastadas da sociedade moderna e, por isso,é possível observar nelas esses fatos defuncionamento geral, que têm a vantagem de sermais universais e de possuir mais realidade.

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É preciso ter em conta, porém, que, se associedades primitivas são profundamente marcadaspor “uma economia e uma moral do dom”, associedades capitalistas são marcadas por “umaeconomia e uma moral de mercado e de lucro”. Issonão quer dizer, entretanto, que as sociedadescaracterizadas pelo dom ignoram as trocas mercantisnem que as sociedades capitalistas deixaram depraticar o dom. As relações comerciais coexistem háséculos com as trocas de dons nas sociedadesprimitivas e, inversamente, o dom continua a serlargamente praticado nas economias de mercado.Segundo Godelier (2001: 26), o problema consiste emperceber quais os princípios que prevalecem nassociedades dominadas pelo dom e quais os queprevalecem nas sociedades dominadas pelas trocascomerciais.

O sistema do dom não se confunde, portanto,com o das trocas comerciais, são coisas distintas.Nas sociedades dominadas pelo dom, as coisas sãotratadas e se comportam como sujeitos, e os objetosparecem ocupar o lugar das pessoas. A pessoa nãose separa da coisa, ou seja, a coisa dada não éalienada, pois aquele que a cede continua aconservar direitos sobre o que deu; continua,portanto, a retirar algumas vantagens do seu ato.Nas sociedades dominadas pelas trocas comerciais,os bens são destacados das pessoas que os colocam

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à venda; nas sociedades nas quais impera aconcorrência na venda de bens e serviços e cujoobjetivo é a realização de lucro, as pessoas, até certoponto, são tratadas como coisas.

2. SISTEMA DO DOMBronislaw Malinowski, em Argonautas do

Pacífico Ocidental, publicado em 1922, faz umadescrição meticulosa dos grandes circuitos marítimos(kula), que consistem em transportar, nosarquipélagos melanésios, colares e pulseiras deconchas. Mauss, em Ensaio sobre o dom, publicadoem 1923, faz uma análise do kula e do potlatch, pormeio do qual não apenas visualiza um processogeneralizado de troca simbólica, mas também começaa extrair a existência de leis de reciprocidade (dom econtradom) e de comunicação, que são próprias dacultura em si, e não apenas da cultura melanésia.

Mauss procura esclarecer os fundamentos deuma moral e de uma economia, cujos vínculos entresujeitos são constituídos e reafirmados por meio datroca de objetos. Coloca em destaque a tensão nocaráter voluntário e, ao mesmo tempo, obrigatóriodas prestações que compõem esse sistema de trocas.Segundo ele, “de todos esses temas muito complexoe desta multiplicidade de coisas sociais emmovimento, queremos considerar um único traço,profundo, mas isolado: o caráter voluntário, por

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assim dizer, aparentemente livre e gratuito e, noentanto, imposto e interessado dessas prestações.Elas revestiram quase sempre a forma do presente, daprenda oferecida generosamente mesmo quando,nesse gesto que acompanha a transação, não hásenão ficção, formalismo e mentira social, e quandohá, no fundo, obrigação e interesse econômico”(MAUSS, 1974: 41).

Ao abordar o regime do dom nas sociedadesmelanésias e polinésias, Mauss (1974: 41) confirmaque a “vida material e moral, a troca, funciona nestassociedades sob uma forma desinteressada e aomesmo tempo obrigatória. Além do mais, estaobrigação se exprime de modo mítico, imaginário ou,se assim preferirmos, simbólico e coletivo: elaassume o aspecto do interesse ligado às coisastrocadas – estas nunca ficam completamentedesligadas daqueles que as trocaram; a comunhão ea aliança que estabelecem são relativamenteindissolúveis. Na realidade, este símbolo da vidasocial – a permanência da influência das coisastrocadas – não faz senão traduzir bastantediretamente a maneira como os subgrupos destassociedades segmentadas, de tipo arcaico, estãopermanentemente imbricados uns nos outros esentem tudo dever uns aos outros”.

Mauss (1974: 42) tenta decifrar o regime do domao estabelecer a seguinte pergunta: “Qual a regra de

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direito e de interesse que, nas sociedades ditasprimitivas ou arcaicas, faz com que o presenterecebido seja obrigatoriamente restituído? Que forçahá na coisa dada que faz com que o donatário aretribua?”. Maurice Godelier (2001: 21) entende que aabordagem de Mauss pode ser resumida da seguintefórmula: “O que faz com que em tantas sociedades,em tantas épocas e em contextos tão diferentes osindivíduos se sintam obrigados não somente a darou, quando algo lhes é dado, a receber, mas tambémobrigados, quando recebem, a restituir o que lhes foidado, seja a mesma coisa (ou coisa equivalente), sejaalgo de mais ou de melhor?”.

Para responder a essas questões, Maussprocura demonstrar que a análise de um dom,qualquer que seja ele, exige sempre que se considerea relação entre aquele que dá (doador) e aquele querecebe (donatário). Ao considerar essa relação,verifica que o regime do dom envolve três tipos deobrigações: de dar, de receber e de restituir. Alerta,porém, que, nessas diversas formas de prestações etrocas, há algo mais do que coisas trocadas. Apontapara a existência, no seio das mais diversas formasde trocas e prestações, de uma mesma forçaencarnando-se naquelas três obrigações, queprecipita as pessoas e as coisas em um movimentoque, cedo ou tarde, traz as coisas de volta àspessoas e faz coincidir o ponto de chegada (de todos

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os dons e contra-dons) com seu ponto de partida.Vale dizer, no regime do dom, as coisas

prolongam as pessoas, e as pessoas se identificamcom as coisas que possuem e que trocam. O regimedo dom descreve mundos em que “tudo vai e vem,como se houvesse troca permanente de uma matériaespiritual compreendendo coisas e homens”. ParaMauss, o vínculo por meio das coisas é um vínculoda alma, pois a própria coisa possui uma alma.Assim, uma vez dada, a coisa leva com ela algo daspessoas e se esforça para retornar, cedo ou tarde,para aquela que, pela primeira vez, tinha cedido. Aopartilhar da crença de que a coisa possui um espírito,é possível acreditar na explicação do por que a coisavolta, ou seja, na obrigação de retribuir a coisarecebida. Mas, segundo Godelier (2001: 21, 22), essacrença não explica a obrigação de dar.

2.1. Obrigação de darMauss (1974: 58), para explicar o por que se dá,

estabelece a hipótese segundo a qual o que obriga adar é precisamente o fato de que dar obriga. Paraele, “recusar-se a dar, deixar de convidar ou recusar-se a receber equivale a declarar guerra, é recusar aaliança e a comunhão”.

Conforme especifica Godelier (2001: 156), nassociedades com “uma economia e uma moral dodom”, a troca não é apenas um mecanismo que faz

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circular bens e pessoas. É, também, maisprofundamente, a condição da produção ereprodução das relações sociais que constituem oarcabouço específico de uma sociedade ecaracterizam os laços que se tecem entre osindivíduos e os grupos. A obrigação de dar significa,portanto, produzir uma relação de aliança entreindivíduos e entre grupos, significa criarpossibilidades para continuar a existir. O domínio dodom é constituído por tudo aquilo cuja partilha épossível e pode gerar obrigações e dívidas para ooutro. A coisa dada ultrapassa o universo dosobjetos materiais, porque pode ser uma dança, umamágica, um nome, um ser humano, um apoio em umconflito ou uma guerra.

O dom e o contradom do mesmo objetoconstituem a maneira mais simples, mais direta deproduzir solidariedade e dependência, preservando,ao mesmo tempo, o status das pessoas em um mundoem que a maior parte das relações sociais é produzidae reproduzida pela instituição de laços de pessoa apessoa. O dom seguido do contradom do mesmoobjeto constitui, assim, a molécula elementar dequalquer prática do dom, o deslocamento mínimo queé preciso efetuar para que esta prática adquira algumsentido.

Dar significa que uma pessoa transferevoluntariamente algo que lhe pertence a uma outra

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pessoa, supondo que esta não pode deixar deaceitar. O dom é esse ato voluntário pessoal oucoletivo que pode ou não ter sido solicitado poraquele que o recebe. O dom torna solidários os doisparceiros e, ao mesmo tempo, faz com que um deles(donatário) fique obrigado ao outro (doador). O dominstala o donatário em uma posição socialmenteinferior e dependente enquanto ele não puder dar,por sua vez, mais do que recebeu ou algoequivalente.

Dar institui simultaneamente uma relação duplaentre aquele que dá e aquele que recebe: a) umarelação de solidariedade: quem dá partilha o que tem;e b) uma relação de superioridade: aquele querecebe o dom e o aceita fica em dívida para comaquele que deu. Dar instaura, assim, uma diferença euma desigualdade de status entre doador edonatário, desigualdade que em certascircunstâncias pode transformar-se em hierarquia. Nomesmo ato (dar), portanto, estão contidos doismovimentos opostos: a) o dom aproxima osprotagonistas porque é partilha; e b) o dom afastasocialmente os protagonistas porque transforma umdeles em devedor do outro. O dom é em sua própriaessência uma prática ambivalente que une forçascontrárias. Ele pode ser, ao mesmo tempo, ato degenerosidade ou ato de violência, mas nesse casouma violência disfarçada de gesto desinteressado

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(GODELIER, 2001: 22, 23).Mauss procurou saber por que as sociedades

primitivas são caracterizadas por uma “economia euma moral do dom” e sua resposta é que essassociedades só puderam emergir quando diversascondições se combinaram: a) a primeira: eranecessário que as relações pessoaisdesempenhassem um papel preponderante naprodução das relações sociais que constituíam oarcabouço da sociedade; b) a segunda: era precisotambém que essas relações fossem tais que osindivíduos e os grupos engajados tivessem todo ointeresse, para se reproduzir e para reproduzi-las, emse mostrar desinteressados; c) a terceira: finalmente,era preciso estabelecer que o interesse em dar, emmostrar-se desinteressado residia em um caráterfundamental do dom: o fato de que nessassociedades o que obriga a dar é o fato de que darobriga.

2.2. Obrigação de restituirConforme Godelier (2001: 27, 28), as três

condições do dom, antes indicadas, eram suficientespara explicar por que se dá, mas eram insuficientespara explicar por que se retribui. Isso teria levadoMauss a estabelecer uma quarta condiçãosuplementar, que estaria na crença de que as coisasdadas têm uma alma que as leva a voltar para a

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pessoa que, primeiramente, as possuiu e deu. Assim,para explicar a obrigação de restituir, Mauss invoca aexistência de um espírito na coisa que leva aqueleque recebe a retribuir; tudo se passa como se aexplicação pela existência de uma regra de direito ede interesse seja, a seus olhos, insuficiente e, porisso, necessita acrescentar uma dimensão religiosa.

Como se nota, a solução proposta para aobrigação de restituir está na área dos mecanismosespirituais, das razões morais e religiosas. Nessesentido, diz Mauss (1974: 53): “O mais importanteentre os mecanismos espirituais é evidentementeaquele que obriga a restituir o presente dado. Ora, emnenhum lugar a razão moral e religiosa dessaobrigação é mais aparente do que na Polinésia. Bastaestudá-la mais particularmente e veremos maisdetalhadamente que é a força que leva a restituir acoisa recebida”. A solução, portanto, repousa nascrenças que emprestam às coisas uma alma, umespírito que as leva a voltar a seu lugar denascimento.

Nessa trilha, ao analisar o conceito polinésio dehau, Mauss (2001: 63, 64) faz referência aodepoimento de Tamati Ranaipiri (sábio maori): “Voufalar-lhe do hau... Suponha que o senhor possui umdeterminado artigo (taonga), e que me dê esse artigo:o senhor me dá sem preço fixo. Nós não negociamosa tal propósito. Ora, eu dou esse artigo a uma terceira

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pessoa que, depois de algum tempo, decide daralguma coisa em pagamento (utu), presenteando-mecom alguma coisa (taonga). Ora, esse taonga que eleme dá é o espírito (hau) de taonga que recebi dosenhor e que dei a ele. Os taonga que recebi pores s es taonga (vindos do senhor) tenho que lhedevolver. Não seria justo (tika) de minha parteguardar esses taonga para mim, quer sejamdesejáveis (rawe) ou desagradáveis (kino). Devo dá-los ao senhor, pois são um hau de taonga que osenhor me havia dado. Se eu conservasse essesegundo taonga para mim, isso poderia trazer-me ummal sério, até mesmo a morte. Assim é o hau, o hauda propriedade pessoal, o hau dos taonga, o hau dafloresta”.

Segundo Mauss, o depoimento de TamatiRanaipiri revela a chave que permite desvendar oproblema do hau (espírito das coisas), porqueesclarece que a obrigação de restituir repousa nofato de que a coisa recebida não é inerte. Mesmoabandonada pelo doador, ela ainda é algo dele. Pormeio dela, ele tem ascendência sobre o beneficiário.No fundo, é o hau que quer voltar a seu lugar denascimento, ao santuário da floresta e do clã e aoproprietário. No direito maori, o vínculo de direito,vínculo por meio das coisas, é um vínculo da alma,pois a própria coisa tem uma alma animada e, porcausa disso, ela tende a voltar a seu lar de origem ou

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a reproduzir, para seu clã e para o solo do qual saiu,um equivalente que a substitui. Mauss foi censuradomuitas vezes por se deixar fascinar por essaexplicação mítico-religiosa do fenômeno, por não tertentado reconstruir o fundamento sociológico paraexplicar a obrigação de restituir.

Godelier (2001: 157) observa que as coisas dadasnão se deslocam sozinhas, não se deslocam por elasmesmas, são colocadas em movimento pela vontadedos homens, mas essa vontade é ela mesma animadapor forças subjacentes. Segundo ele, a lógica dohau fica mais evidente quando o dom de uma coisa éseguido por um contradom, que devolve ao doadorinicial a mesma coisa que tinha dado. Essa ida e voltada mesma coisa parece desprovida de sentido,principalmente quando a coisa é devolvidaimediatamente, porque parece que foi trocada pornada. Ocorre que o objeto que retorna a seuproprietário inicial não é devolvido, ele é dado devolta. E, no curso de sua ida e volta, o objeto não sedeslocou por nada. Muitas coisas se passaramgraças ao seu deslocamento. Duas relações sociaisidênticas, mas em sentido inverso, foram produzidas,ligando, assim, dois indivíduos ou dois grupos emuma dupla relação de dependência recíproca.

Enfim, a lógica do hau permitiria perceber queexiste, na coisa dada, uma força que se exerce sobreaquele que a recebe, obrigando-o a restituir. Essa

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noção aparece de forma bastante acentuada naobrigação de fazer dons aos deuses.

2.3. Quarta obrigaçãoMauss (2001: 69) menciona uma quarta

obrigação que desempenha um importante papelnesse sistema de trocas de dons e contradons. Trata-se da obrigação de fazer dons aos deuses e aosespíritos dos mortos. As oferendas e os sacrifíciosconstituem obrigações desse tipo, mas o sacrifíciopossui a força de exercer uma coação maior sobre osdeuses, de fazer com que devolvam mais do quereceberam. Os deuses e os espíritos dos mortos sãoos verdadeiros proprietários das coisas e dos bensdo mundo, motivo pelo qual com eles é maisnecessário trocar e mais perigoso não trocar. Mascom os deuses e os espíritos dos mortos é mais fácile mais seguro trocar.

Mauss (2001, 73) entende que “a destruiçãosacrifical tem como objetivo, precisamente, ser umdonativo necessariamente retribuído”; o sacrifício,portanto, seria um contrato ou aliança entre oshomens e os deuses. Os deuses, ademais, são maisgenerosos do que os homens, porque dão uma coisagrande (a vida, a fertilidade, a abundância) em trocade uma pequena. Assim, aqueles homens que dãomuito, mais do que lhes foi dado, tanto que jamaisserá possível restituir-lhes, elevam-se acima dos

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outros homens e são um pouco como os deuses oupelo menos deles se aproximam.

A prática do dom estende-se, portanto, além domundo humano e torna-se elemento essencial de umaprática religiosa, ou seja, das relações entre oshumanos, os espíritos e os deuses, porque todospovoam o mesmo universo. O imaginário, assim,adquire força porque se torna crença, norma decomportamento e fonte de moral. A crença na almadas coisas amplifica, mas também engrandece aspessoas e as relações sociais, porque as sacralizam.Se as coisas têm uma alma, é porque as potênciassobrenaturais, deuses ou espíritos vivem nelas ecirculam com elas entre os homens, ligando-se ora auns, ora a outros. Há sempre ligações, por meio dascoisas que circulam, entre as pessoas e entre estas eos deuses.

Como se verá adiante, a obrigação de fazer donsaos deuses, mediante a destruição sacrifical,assemelha-se, em certos aspectos, ao potlatch, umaforma evoluída de prestação total.

3. SISTEMA DE PRESTAÇÕES TOTAISConforme Mauss (2001: 55, 56), o sistema de

prestações totais possui as seguintes características:a ) primeira: o contrato é estabelecido não entreindivíduos, mas entre coletividades ou pessoasmorais (clãs, tribos, famílias) que se obrigam

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mutuamente e, eventualmente, defrontam-se, opõem-se e enfrentam-se em grupos ou por intermédio deseus chefes, ou dos dois modos ao mesmo tempo; b)segunda: os objetos das trocas não sãoexclusivamente bens e riquezas, coisaseconomicamente úteis; são, sobretudo, cortesias,festins, ritos, serviços militares, mulheres, crianças,danças, nos quais o mercado é apenas um momentoe a circulação de riquezas somente um dos termos deum contrato mais geral e mais permanente; c)terceira: essas prestações e contraprestações eramcontratadas de uma forma antes voluntária, atravésde dádivas, presentes, embora fossem, no fundo,rigorosamente obrigatórias, sob pena de guerraprivada ou pública.

O sistema de prestações totais é composto deduas categorias de prestações totais: a) nãoantagonista: nessa categoria, os dons e contradonsnão assumem a forma de rivalidade; essa é a formamais antiga e evolui para formas cada vez maiscompetitivas; b) antagonista: é um modo evoluído deprestação total que culmina no potlatch, em quepredominam a rivalidade, a competição e oantagonismo. Mauss toma como modelo dasprestações totais não antagonistas as trocaspraticadas nas sociedades divididas em metadescomplementares, como as tribos australianas e asnorte-americanas, nas quais os ritos, os casamentos,

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as sucessões nos bens, os laços de direito e deinteresse, as categorias militares e sacerdotais, tudoé complementar e supõe a colaboração das duasmetades da tribo. Nessas sociedades, cada metadedepende da outra para sua própria reprodução, ouseja, a reprodução de uma das metades é condiçãoimediata da reprodução da outra.

As formas não antagonistas possuem asseguintes características: a) dons e contradons criamum estado de endividamento e de dependênciamútuo que oferece vantagens para cada uma daspartes; b) a coisa ou a pessoa dada não é alienada; c)dar é transferir uma coisa ou uma pessoa, da qual secede o uso, mas não a propriedade; d) um dom, porisso, cria uma dívida que um contradom equivalentenão pode anular; e) a dívida obriga a dar de volta,mas dar de volta não é restituir, é dar por sua vez.

Para Godelier (2001: 224), Mauss foi o primeiro aressaltar a importância do dom, das trocas de donsno funcionamento das sociedades humanas, antigasou modernas, ocidentais ou não. Foi o primeiro adistinguir claramente dois tipos de dons: os dons econtradons não antagonistas e os donsantagonistas, que batizou com o termo potlatch. Elesugeriu que os dons antagonistas eram uma formatransformada dos dons não antagonistas, uma formaem que a rivalidade, a luta por riquezas predominamsobre o ato de partilha. A seus olhos, o potlatch não

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poderia ter caracterizado as primeiras formas deorganização da sociedade humana; foi umainstituição que se desenvolveu mais tarde, a pontode, às vezes, marcar toda a “economia e a moral” deuma sociedade.

3.1. “Potlatch”Potlatch é uma palavra originária de uma língua

dos índios americanos, que significa dom de carátersagrado que constitui, para quem o recebe, umdesafio a dar um contradom maior ou equivalente. Nopotlatch predomina a rivalidade, a competição e oantagonismo, que, em determinado número de casos,não se trata sequer de dar ou de restituir, mas dedestruir. Nesse sentido, o potlatch assemelha-se aosacrifício (dom aos deuses), porque sacrificar éoferecer destruindo o que se oferece. Em 1884, opotlatch dos índios americanos foi proibido por umalei apresentada como emenda ao Indian Act de 1876,que o considerou uma excessiva ou descontroladadilapidação de bens. Houve protestos por parte dosantropólogos, que viram na proibição uma claramanifestação de etnocentrismo, ou seja, umasupervalorização da cultura europeia e uma totalignorância a respeito da cultura indígena.

O Ensaio sobre o dom é dedicadoessencialmente à análise do potlatch, consideradouma forma evoluída da prestação total, forma do tipo

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antagonista, porque nela predomina o princípio darivalidade. A essência do potlatch é a obrigação dedar. Dar (distribuir, gastar) aparece nessa lógica nãoapenas como forma de adquirir ou aumentar a honrae o prestígio, mas também como uma forma dehumilhar aquele que recebe e não pode restituir. Valedizer, o objetivo do potlatch é colocar aquele querecebe em situação de inferioridade permanente,substituir relações recíprocas instáveis por relaçõeshierárquicas estáveis.

Um chefe deve dar, pois ele só conserva suaautoridade sobre a tribo, só mantém sua posiçãoentre os demais chefes se provar que é visitado efavorecido pelos espíritos e pela fortuna. Mas ele sópode provar essa fortuna gastando-a, distribuindo-ae, com isso, humilhando os outros, colocando-os àsombra de seu nome. É precisamente o ato de dar ede dar mais do que os outros que conta, senão é ofracasso. Como vários chefes aspiram, ao mesmotempo, ao mesmo título ou à mesma posição e comonenhum deles quer nem pode confessar-seimediatamente vencido, cada um tem de se esforçarpara dar mais do que os outros se não quiser perderseu prestígio, sua honra e sua fama.

No potlatch prevalece o princípio da rivalidade,motivo pelo qual nele se dá alguma coisa (dom) para“esmagar” o outro. Por isso, no potlatch se dá muito,para tornar mais difícil ou impossível, para aquele

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que recebe, restituir o que recebeu. Trata-se decolocar o outro em dívida de modo quasepermanente, de fazer com que perca seu prestígiopublicamente. Agindo assim, o doador pode afirmar,pelo máximo de tempo possível, a própriasuperioridade. Por essas razões, Mauss (2001: 57)sublinha que o potlatch é antes de tudo uma guerra,“uma luta dos nobres para garantir uma hierarquiaentre eles, da qual seu clã tirará proveito mais tarde”.

O potlatch é, assim, uma estratégia paraconquistar uma posição, validar um título, manter afama ou o prestígio, provar a fortuna e a nobreza,cujo critério para isso é justamente o ato de dar e dedar mais do que os outros. Dar é, assim, manifestarsuperioridade, e aceitar sem retribuir ou sem retribuirmais é subordinar-se, tornar-se servidor, apequenar-se. No potlatch, paradoxalmente, o ato de darmanifesta a intenção de romper a reciprocidade dosdons, de quebrá-la em proveito próprio. Dessa forma,vai surgindo uma nova hierarquia baseada na riqueza– o indivíduo progride e faz progredir a família naescala social.

Conforme observa Godelier (2001: 223, 224), nassociedades de trocas competitivas de dons econtradons de riquezas, o objetivo declarado épermitir que apenas alguns indivíduos e algunsgrupos tenham acesso a posições, títulos, categoriaspostas em competição. Isso significa que o número

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de títulos, categorias ou posições deve seramplamente inferior ao número de grupos eindivíduos que se enfrentam. Esse fato, a raridaderelativa dos bens políticos em relação ao número departicipantes, tem por consequência que aqueles queentram no jogo com o objetivo de ir até o fim eganhar são socialmente obrigados a dar sempre maisque os outros ou a dar objetos muito mais raros, maispreciosos que os dos outros.

Nesse tipo de sociedade é difícil, talvez atéimpossível, para a maioria dos indivíduos e dosgrupos, não entrar no jogo dos dons e contradonsou sair dele. Só conseguem escapar aqueles que, porsua posição elevada, estão situados acima da arenaou aqueles que, por sua condição inferior ou servil,são excluídos por baixo. Para os outros, quererescapar é perder a honra, a sua e a do grupo querepresentam. O dom encerra assim uma violência quenão é apenas aquela dos indivíduos, pois tem origemalém deles, nas relações sociais que implicam a lutade riqueza pelo poder e pela reputação. O domcontém essa violência no sentido duplo do termo. Elea retém em si e a mantém dentro de certos limites,permitindo, porém, que se manifeste publicamente,politicamente.

3.2. “Kula”Malinowski (1978: 71, 72), como visto, entende

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que o kula é um sistema de comércio dotado de umaenorme variedade de aspectos associados ainúmeras atividades. É um fenômeno complexoporque compreende diversas ramificações e inter-relações. É uma forma de troca bastante amplaporque praticada por comunidades localizadas numextenso círculo de ilhas que formam um circuitofechado do extremo oriental da Nova Guiné. Aolongo dessa rota, artigos de dois tipos viajamconstantemente em direções opostas. No sentidohorário movimentam-se os colares feitos de conchasvermelhas. No sentido oposto, movem-se braceletesfeitos de conchas brancas. Esses artigos, viajandoem seu próprio sentido no circuito fechado, ao seencontrarem no caminho, são trocados uns pelosoutros.

Em cada ilha e em cada aldeia, alguns homensparticipam do kula, ou seja, recebem os artigos,conservam-nos consigo durante algum tempo e, porfim, passam-nos adiante. Cada um dos participantesrecebe periodicamente um ou vários braceletes deconcha ou colar de conchas que devem entregar aum de seus parceiros, do qual recebe em troca oartigo oposto. Assim, ninguém jamais conservanenhum artigo consigo por muito tempo. O fato deque uma transação seja consumada não significa ofim da relação estabelecida entre os parceiros,porque o kula implica um sistema de trocas

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ininterruptas.No kula, coisas e pessoas tomam o lugar umas

das outras e essas transferências produzem, entre osindivíduos e grupos que são seus protagonistas,relações sociais particulares, fontes de um conjuntode direitos e obrigações recíprocos. O interesse daspessoas que praticam o kula não é se encontraremfrente a frente para trocar bens equivalentes, o queelas querem é algo maior, é criar dívidas, e dívidasque durem o maior tempo possível, a fim de acumularprestígio e engrandecer o nome.

Para Mauss (2001: 83), o kula é uma espécie degrande potlatch, um sistema de comércio intertribal eintratribal que associa um grande número desociedades. Esse comércio consiste em trocasaparentemente desinteressadas, mas a serviço dorenome (honra e prestígio) dos doadores, trocas emque reina a rivalidade entre indivíduos sequiosos dereceber como dom o mesmo objeto precioso. Nessesistema de comércio, a troca cerimonial dos artigosuns pelos outros é o aspecto fundamental e central.Associadas a ele, e realizadas à sua sombra, porém,existem numerosas características e atividadessecundárias, como e o caso do comércio comumnecessário à economia tribal.

Mauss enfoca particularmente os braceletes ecolares de conchas porque, a seus olhos, constituemo objeto essencial dessas trocas ou doações. Ele

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resume o princípio que os rege: os braceletescirculam de oeste para leste e os colares de leste paraoeste. A originalidade do jogo é que um braceletenunca pode ser trocado por um bracelete, e um colarpor um colar. Um bracelete é trocado por um colar,um colar por um bracelete, com a condição de que osdois sejam da mesma categoria e de valorequivalente. Os colares (símbolo feminino) e osbraceletes (símbolo masculino) tendem um para ooutro, como o macho para a fêmea.

Godelier (2001: 144) anota que o sistema globaldo kula é um jogo e, para que um indivíduo “ganhe”nesse jogo, é preciso que ele possua um kitoum(objeto) de grande valor e que receba um outroequivalente. Mas seu ganho não está aí. Está, antesde tudo, na reputação que ele ganha, e também nos“presentes”, os dons suplementares que suahabilidade ao negociar angaria. Os objetos do kulanão são, portanto, coisas indiferentes. Como observaMauss (2011: 88), cada um, pelo menos os maisvaliosos e os mais cobiçados, tem um nome, umapersonalidade, uma história ou até mesmo umromance. O objetivo principal dessas troças de donsnão é a acumulação de riqueza, mas o aumento dareputação, do prestígio, o engrandecimento do nomedo doador. A peça é dada com a condição de que ointermediário a transmita para um outro e assimsucessivamente até que chegue ao parceiro distante,

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ao extremo da rota do kula.Segundo Godelier (2001: 142), a coisa dada no

kula não é nem vendida nem comprada, nempenhorada, nem alugada. Ela é, ao mesmo tempo,“propriedade e posse”, mas apenas para os doisparceiros distantes situados nos dois extremos darota e que têm todas as chances de nunca seconhecerem pessoalmente. Eles conhecem um dooutro apenas o nome. Quanto aos parceirosintermediários, a coisa só é recebida com a condiçãode que seja transmitida a um terceiro, e todos nokula sabem que a qualquer momento o doador doobjeto poderá reclamá-lo, quebrando, assim, uma dasrotas do kula.

O que interessa às pessoas, porém, não érecuperar rapidamente o seu objeto, exceto emcircunstâncias excepcionais. Também não ésubstituí-lo rapidamente por outro da mesmacategoria. O objetivo é lançá-lo o mais longe possívele deixá-lo circular o maior tempo possível para queleve com ele o nome de seu doador original, para queo engrandeça e para que o objeto se carregue cadavez mais de vida, de valor, enriquecendo-se de todosos dons e de todas as dívidas que sua circulaçãoengendra ou anula. Assim, quanto mais o objeto éoferecido e reoferecido, mais ele se afasta de seuproprietário de origem e mais o nome deste últimocresce. Não existe o retorno do objeto à origem, pois

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o objetivo é que um objeto de igual categoria, masdiferente, venha a ocupar o seu lugar.

Hoje, diz Godelier (2001: 147), é o europeu quedomina e ao mesmo tempo subverte o kula. Elecompra conchas, transporta-as de barco até o seuateliê para poli-las, usando mão de obra assalariada,e as transforma em objetos de valor (kitoum). Umaparte desses kitoum é vendida aos turistas e aoshabitantes da ilha, mas alguns ele lança no kula,beneficiando-se de todos os dons suplementaresque tradicionalmente acompanham a circulação dosbraceletes e colares. Seu objetivo não é de modoalgum aquele do kula tradicional (busca de prestígioe renome), mas simplesmente a acumulação de lucro,a obtenção de riqueza.

Alguns princípios do kula, como se veráadiante, podem ser reencontrados nos grandescircuitos nacionais e internacionais que envolvemtransferências de objetos valiosos. Esses grandescircuitos aparecem na forma de exposições deobjetos de determinada cultura de um povo, de umaépoca ou lugar. Tal como o kula, esses circuitos têmuma função social extraordinária que consiste emaproximar os povos, promover a paz e evitar a guerra.

4. Dom e guerraMauss (1974: 182, 183) observa que “em todas

as sociedades que nos precederam e que ainda nos

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rodeiam, e mesmo em numerosos costumes de nossamoralidade popular, não existe meio termo: confia-seou desconfia-se inteiramente; depor as armas erenunciar à sua magia, ou dar tudo; desde ahospitalidade fugaz até às filhas e bens. Foi emestado desse gênero que os homens renunciaram aseu ensinamento e aprenderam a empenhar-se em dare retribuir. É que eles não tinham escolha. Quandodois grupos de homens se encontram podem fazerapenas duas coisas: ou afastar-se - e, caso suspeitemum do outro, desafiar e lutar – ou tratar-se bem. Atédireitos bem próximos de nós, até economias nãomuito distanciadas da nossa são sempre estrangeiroscom os quais se “contratam”, mesmo quando sãoaliados (...). É opondo a vontade de paz contrabruscas loucuras que os povos conseguemsubstituir pela aliança, pela dádiva e pelo comércio aguerra, o isolamento e a estagnação”.

Para Mauss (1974: 183), o que funda a sociedadeé o estabelecimento de um sistema de trocas no qualos homens podem “opor-se sem massacrar-se e dar-se sem sacrificarem-se uns aos outros”. O sistema detrocas, portanto, não implicaria uma estrutura desubmissão, mas de reciprocidade. Nessa trilha, aantítese do dom não seria o mercado, mas a ausênciade relações, motivo pelo qual alguns autoresentendem que Mauss não confere à guerra qualquercoeficiente de sociabilidade, por se tratar de um

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fenômeno que implica o isolamento e a estagnação.O sistema de troca implica a construção da vidasocial, mas a troca não implica apenas uma relaçãocontratual; mais que isso, a troca implica uma aliançaque garante a paz.

Segundo Lévi-Strauss (2001), existiria umatransição contínua da guerra às trocas. As trocasrepresentariam um processo ininterrupto de donsrecíprocos, que realiza a passagem da hostilidade àaliança, da angústia à confiança, do medo à amizade.Nessa perspectiva, a guerra e o comércio nãopoderiam ser estudados separadamente, porconstituírem dois aspectos de um mesmo processosocial. As trocas comerciais representariam guerraspotenciais pacificamente resolvidas, enquanto asguerras seriam as consequências de transaçõescomerciais fracassadas.

Para Godelier (2001: 24), “o dom pode se opor àviolência direta, à subordinação física, material esocial, mas também ser um seu substituto. E são maisque abundantes os exemplos de sociedades em queos indivíduos, incapazes de honrar suas dívidas, seveem obrigados a se colocar, ou a colocar seusfilhos, como escravos, acabando por se transformarna propriedade, na coisa daqueles que lhes tinhamconcedido seus dons”.

De qualquer modo, na sociedadecontemporânea, é possível enxergar inúmeras

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práticas que se assemelham ao potlatch, ao kula,aos dons antagonistas e não antagonistas. Mauss(1974: 42), aliás, reconhece que os princípios daeconomia do dom “funcionam ainda nas nossassociedades, de maneira constante e por assim dizersubjacente”. Isso significa que os princípios do domnão foram totalmente erradicados pela dinâmica domercado capitalista; a presença da lógica do dompode ser reconhecida não apenas no âmbito dafilantropia ou do trabalho voluntário, como se veráadiante, mas também no universo das relaçõesmercantis que se estabelecem cotidianamente entreas pessoas físicas ou jurídicas. Essas relações,inicialmente cordiais, podem, porém, resultar norompimento do princípio da reciprocidade e com issoprovocar disputas, como as que ocorrem perante osTribunais, ou até mesmo o estado de guerra entre oscontratantes. Enfim, a troca pacífica podetransformar-se em troca de hostilidades.

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XIV DOM NASOCIEDADECONTEMPORÂNEA

1. DOM: FATO SOCIAL TOTALPara Godelier (2001: 160, 161), o dom, como

prática real, é um elemento essencial da produção-reprodução tanto das relações sociais objetivascomo das relações pessoais subjetivas eintersubjetivas, que são seu modo concreto deexistência. O dom, como prática, faz parte,simultaneamente, da forma e do conteúdo dessasrelações. É nesse contexto que o dom, como ato etambém como objeto, pode representar, significar etotalizar o conjunto das relações sociais, do qual éao mesmo tempo instrumento e símbolo. E como osdons vêm das pessoas e os objetos dados sãoinicialmente ligados, depois desligados para seremoutra vez ligados a pessoas, os dons encarnam tantoas pessoas quanto suas relações. É nesse sentido epor essas razões que o dom é um fato social total,justamente porque contém e une ao mesmo tempoalgo que vem das pessoas e algo que está presente

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em suas relações.Tanto nas sociedades primitivas como nas

sociedades ocidentais, o número das trocas do tipopotlatch é bastante limitado diante dos númerosbastante expressivos de dons e contradonsrecíprocos praticados para fomentar e consolidarsolidariedades, e não para desenvolver rivalidadesentre indivíduos e grupos. Mas, em qualquer tipo detroca, antagonista ou não antagonista, aparecemmanifestações mais ou menos ostensivas dosprincípios da solidariedade, da reciprocidade e darivalidade e, dependendo da situação, um se destacamais do que os outros. Na sociedade ocidental, épossível perceber fragmentos da economia e damoral do dom presentes em outras esferas que não aeconômica, como é o caso do dom entre amigos. Mastambém é possível verificar que o dom nassociedades ocidentais ultrapassa a esfera da vidaprivada e das relações pessoais, principalmentequando se institucionaliza a demanda social do dompor intermédio do Estado e de organizações nãogovernamentais.

1.1. Dons entre amigosMauss inicia o Ensaio sobre o dom com um

poema da Eda escandinava, em que destaca algunsversos que fazem referência ao dom entre amigos:“Com armas e com roupas devem os amigos agraciar-

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se; cada um sabe por si próprio. Os que trocampresentes mutuamente são amigos todo o tempo, seas coisas forem bem encaminhadas. Deve-se seramigo do amigo e dar presente por presente”.

As relações entre amigos, isto é, o dom entreamigos, são bastante valorizadas nas sociedadesocidentais. Entre amigos ajuda-se sem obrigação deretribuir, mas sabendo que haverá reciprocidade,porque os amigos partilham, dão-se uns aos outros.Em suma, a amizade é uma relação entre indivíduosque marcam seus sentimentos por gestos de ajudamútua e através de trocas de dons, de presentes.Entre amigos dá-se desinteressadamente, semesperar retorno imediato e sem se preocupar sequercom um retorno.

Conforme Godelier (2001: 215, 216), os donsentre amigos apenas engajam os indivíduos,portanto, não contribuem para a reprodução dasestruturas de base da sociedade, como ocorre nasrelações de parentesco. Em outras palavras, os dons,a ajuda entre amigos, relacionam-se com a esfera doslaços subjetivos entre indivíduos que se escolhemsem que sua escolha recíproca tenha outro motivo,outra obrigação além da força de seus sentimentos, aatração que suscitam e sentem um pelo outro.

Esses dons permitem entrever uma das razõespelas quais na cultura ocidental os dons entreamigos continuam a existir e a ser valorizados,

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enquanto outros tipos de dons, obrigatórios porquenecessários para reproduzir elementos fundamentaisda sociedade, tais como as relações de parentesco,tendem a desaparecer. O dom entre amigospermanece um paradigma forte na cultura ocidentalindividualista, pois se apresenta como um atoindividual, espontâneo, subjetivo, altruísta, nãoobedecendo a nenhuma obrigação coletiva, anenhuma coação social objetiva, que não serve,portanto, para reproduzir em profundidade asociedade.

Na cultura ocidental o dom entre amigos não éinstitucionalizado, motivo pelo qual o direito tem-semantido distante das relações que envolvem essestipos de dons, embora seja possível enxergar o domvoluntário (não obrigatório) no regime jurídico dasdoações, dos empréstimos e dos testamentos.Recentemente o mundo jurídico foi sensibilizadopelas relações homoafetivas, especialmente naquelescasos em que um dos parceiros falecia em virtude deter contraído o vírus HIV. O dom que o parceirosadio prestou ao doente contribuiu, e muito, paraque o Poder Judiciário, em alguns casos,reconhecesse a existência de uma aliança ou umasociedade de fato entre eles e, assim, viabilizasse aoprimeiro o direito à sucessão ou partilha.

As relações que envolvem parceiros do mesmosexo ainda estão por ser definidas juridicamente,

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mas, indubitavelmente, trata-se de relações que seaproximam das relações de amizade oucompanheirismo, como ocorre com as relaçõesmatrimoniais, regidas não apenas pelo princípio doafeto, mas, sobretudo, pelos princípios dasolidariedade e da reciprocidade, que, às vezes,transmudam-se em princípio de rivalidade e dehostilidade.

O direito reconhece na relação de parentesco umvalor que pode ser traduzido em pecúnia, mas nãoestende esse reconhecimento à relação de amizade.Há também resistência no sentido de estender essereconhecimento à relação entre parceiros do mesmosexo. Desse modo, se uma pessoa falece em acidentecausado por terceiro, seus parentes e cônjuge têmdireito à indenização pecuniária, mas esse direito nãoé extensivo aos amigos ou ao parceiro. Isso pareceilógico porque, muitas vezes, a relação de amizade oua relação homoafetiva é mais estreita, mais recíproca,mais solidária, mais afetiva e mais fraterna do que arelação de parentesco. Vale dizer, muitas vezes osofrimento pela perda é mais forte no amigo ou noparceiro do que nos parentes.

De qualquer modo, na sociedade capitalista, comsuas altas taxas de desemprego e exclusão, os donsvoluntários, gratuitos e desinteressados vão-setornando necessários na equação de problemassociais. Aliás, mesmo os dons gratuitos e

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desinteressados entre pessoas que não se conhecemjá começam a aparecer como uma condição objetiva,socialmente necessária, da reprodução da sociedade.Nesse sentido, ganha força o dom que, na tradiçãocristã, aparece na forma de uma virtude (caritas),considerada a mais importante entre todas asvirtudes, na qual está incluído o dom nãoantagonista, totalmente gratuito e desinteressado.

Na cultura ocidental, portanto, o dom entreamigos toma assento ao lado de um outro dom,fortemente privilegiado pela cultura ocidental cristã:o dom por Cristo, filho de Deus, que dá a própriavida para remir os pecados dos humanos e salvá-losda danação eterna, exemplo supremo do domgratuito, absoluto. Caritas é um desdobramentodesse dom.

1.2. Dom e “caritas”Mauss (2001: 76) observa que a esmola é o fruto

de uma noção moral da dádiva e da fortuna, por umlado, e de uma noção do sacrifício, por outro. Há,nesse sentido, uma noção generalizada entre ospovos segundo a qual os deuses que dão eretribuem estão lá para dar uma coisa grande em vezde uma coisa pequena. Assim, entre diversos povosexiste o hábito de conceder presentes às crianças eaos pobres como forma de agradar os deuses e osespíritos. Trata-se da velha moral da dádiva

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transformada em princípio de justiça, ou seja, osdeuses e os espíritos consentem que as partes quese lhes davam e que eram destruídas em sacrifíciosinúteis sirvam para os pobres e as crianças. Essadoutrina da caridade e da esmola espalhou-se pelomundo com o cristianismo e o islamismo e penetrouno direito das sociedades ocidentais.

A legislação brasileira, por exemplo, estabeleceque o dever jurídico de prestar alimentos aosnecessitados cabe não apenas à família donecessitado, mas também ao Estado e à sociedade.Além disso, a expressão alimentos possui alcance esentido mais amplos que os utilizados no usocotidiano: abrange não só o fornecimento dealimentação, mas também vestuário, habitação,educação, lazer e tratamento médico.

O dever jurídico da sociedade de dar alimentos aquem necessita realiza-se mediante pagamento detributos e contribuições, especialmente os inseridosnas fontes de custeio da Seguridade Social. Há,entretanto, homens e mulheres que, diretamente oupor meio de entidades não governamentais, prestamauxílio ou concedem alimentos aos necessitadosmovidos não por imposições legais, mas por fatoresreligiosos, morais ou éticos.

Quando alguém movido por um dever religiosoou moral presta auxílio ou dá alimento a umnecessitado, esse ato possui um conteúdo ético que

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se liga à noção de justiça como caritas, a virtude queconsiste na realização do preceito cristãofundamental: ama o próximo como a ti mesmo.Caritas é, portanto, amor. O apóstolo Pauloestabelece a superioridade de caritas sobre as outrasvirtudes: “Agora há fé, esperança e caritas (amor),essas três coisas, mas a caritas é a maior de todas”(Cor. I, 13, 7, 13). Caritas, além de ser o vínculo quemantém ligados os membros da comunidade, é aexpressão da amizade dos homens com Deus.

A ideia de justiça como caritas encontra apoiona obra de filósofos como Santo Agostinho e SãoTomás de Aquino. Para esses filósofos, a justiçacorresponde a um ato de amor desinteressado, algosemelhante à criação divina, visto que Deus (justo emisericordioso) criou o mundo não para a sua glória,mas como um ato de amor pela humanidade. Praticara justiça como caritas, como um ato de amordesinteressado, como a manifestação mais pura daautonomia da vontade ou livre-arbítrio constitui umesplendor ético porque prescreve uma ação boa porsi mesma: amai como Deus vos ama.

Para Ferraz Jr. (2002: 222, 223), a conclusão deSanto Agostinho – “dois Amores fizeram duascidades: a terrena, fê-la o amor de si até o desprezode Deus; a celeste, fê-la o amor de Deus até odesprezo de si” – esclarece que o amor-caritas tem osentido de renúncia, uma renúncia que não é

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privação, mas plenitude. O amor cristão não tem,assim, uma compensação no amor do outro, mas naplenitude do amor divino. E a plenitude do amordivino explica que um Deus onipotente ofereça osacrifício de seu Filho pela salvação dos homens.Essa dívida dos homens para com um Deus morto nacruz para salvá-los das consequências de seus atos,da danação eterna é impagável. Como diz SantoTomas de Aquino: “o homem nada pode dar a Deusque já não lhe deva. Ainda assim, ele jamais quitará asua dívida”.

Caritas depende do livre-arbítrio, motivo peloqual a pessoa pode, por sua vontade livre, recusar-sea dar alimento à pessoa que não possui meios deprover a própria manutenção, ou seja, o ato deprestar ou não auxílio aos necessitados vincula-se àautonomia da vontade; advém, portanto, de normasque o sujeito dá a si mesmo. Para que a justiça comocaritas revele um ato de amor, é necessário que o atoseja desinteressado e que estabeleça a sociabilidadedos homens. São Tomás de Aquino entendia, poressa razão, que a justiça como amor só seria possívele realizável à medida que as pessoas fossem capazesde compartilhar suas vidas com outras pessoas.

A justiça como caritas é o dom cristão; trata-sede um dom subjetivo, voluntário e desinteressado.Esse dom mobiliza homens e mulheres de boavontade que, de maneira anônima e desinteressada,

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praticam o amor-caritas por meio da doação ou dotrabalho voluntário e, com isso, promovem ascondutas tidas como convenientes e desejáveis. Ajustiça como amor, embora implique uma retribuiçãodescompensada, encontra na justiça divina a suaretribuição exemplar, afinal, “quem dá aos pobres,empresta a Deus”, algo semelhante à quartaobrigação descrita por Marcel Mauss.

Caritas mostra que, na cultura ocidental, o domtornou-se objetivamente uma operação subjetiva,pessoal, íntima e individual. Ele é a expressão e oinstrumento de relações pessoais situadas além domercado e do Estado, ou seja, o dom continua aderivar de uma ética e de uma lógica que não são asdo mercado e do lucro, pelo contrário, opõem-se eresistem a elas. O dom subjetivo se opõe, é certo, àsrelações comerciais, mas carrega sempre os seusestigmas. Ao idealizar-se, o dom desinteressadofunciona no imaginário como o último refúgio de umasolidariedade, de uma generosidade na partilha queteria caracterizado outras épocas da evolução dahumanidade. O dom torna-se um portador de utopia.Uma forma de utopia que as pessoas parecem nãoquerer ver destruída, pois acalenta esperanças em umfuturo melhor, neste ou em outro mundo.

2. DOM E UTOPIAMaurice Godelier (2001) empreende, como ele

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próprio diz, uma nova análise do dom, de seu papelna produção e reprodução do laço social, de seulugar e de sua importância mutáveis nas diversasformas de sociedade que coexistem hoje nasuperfície da terra ou que se sucederam no decorrerdo tempo. E empreende tal análise por um motivoespecífico: porque o dom existe em todo lugar,embora não seja o mesmo em toda parte. Ele fazalgumas incursões sobre a prática do dom nasociedade contemporânea, especialmente sobre oregime das doações, motivo pelo qual tomamos deempréstimo seus comentários para as articulaçõesseguintes.

Godelier (2001: 309 a 318) se pergunta: Qual é,nessa forma de sociedade capitalista que se imaginaque deve durar eternamente, o lugar das trocas?Ainda existe nessa sociedade algo além da troca?Aparentemente, tudo ou quase tudo está à venda, épassível de troca. E, como tudo o que se compra e sevende se compra e se vende por dinheiro, terdinheiro tornou-se a condição necessária para existirfísica e socialmente. Qual o lugar do dom nessasociedade movida pela troca em dinheiro?

A sociedade capitalista é uma sociedade cujofuncionamento separa os indivíduos uns dos outros,isola-os e apenas os promove opondo-os uns aosoutros. É uma sociedade que libera, como nenhumaoutra o fez, todas as forças, todas as potencialidades

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adormecidas no indivíduo, mas que também levacada indivíduo a dessolidarizar-se dos outros,servindo ao mesmo tempo deles. Essa sociedade sóvive e prospera ao preço de um disfarce permanentede solidariedade. E ela só imagina novassolidariedades se negociadas sob a forma decontrato.

Mas nem tudo é negociável. Uma criança nãoassina um contrato para nascer. Seria uma ideiaabsurda imaginar que isso fosse possível. E seuabsurdo mostra que o primeiro laço entre oshumanos, aquele do nascimento, não é negociadoentre as pessoas que ele envolve. E é sobre essesfatos incontornáveis, no entanto, que a sociedadecapitalista tende a silenciar.

A sociedade capitalista é dotada de uma lógicaque implica acúmulo de excluídos e aumento dedesigualdades sociais. Por causa desse contexto, odom generoso, o dom “sem retorno”, é solicitado denovo, dessa vez com a missão de ajudar a resolverproblemas da sociedade capitalista. O dom de hojepassa não apenas pelas instituições governamentais,mas, principalmente, pelas organizações nãogovernamentais, utiliza a mídia, burocratiza-se, nutre-se, através das imagens da televisão, de todas asdesgraças, de todos os males, conjunturais ouduráveis, que surgem nos quatro cantos do planeta.

Diante da amplidão dos problemas sociais e da

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incapacidade manifesta do mercado e do Estado deresolvê-los, o dom está retornando, voltando a seruma condição objetiva, socialmente necessária, dareprodução da sociedade. Não será o dom recíprocode coisas equivalentes, também não será o dompotlatch, pois aqueles a quem os dons serãodestinados não têm sequer condições de retribuir oque recebe. O dom caritativo está seinstitucionalizando, como forma de conter oesfacelamento da vida social.

Essa institucionalização aparece nos programasdos governos, como é o caso do programa BolsaFamília. Aparece, também, por meio do TerceiroSetor, isto é, das organizações não governamentaisque se dedicam ao combate à pobreza e à prestaçãode serviços na área de saúde, educação e assistênciasocial. Essas organizações multiplicam-se pelomundo inteiro e muitas delas se dedicam à prática dodom caritativo. No Brasil, estima-se que existem cercade 250 mil organizações não governamentais e que 2milhões de pessoas são empregadas por elas. Partedos recursos dessas organizações provém de receitapública, mas a maioria dos recursos se deve àscontribuições de particulares. Nos Estados Unidos, oterceiro setor movimenta mais de 600 bilhões dedólares anualmente e absorve um contingente de 12milhões de trabalhadores remunerados, mais umainfinidade de pessoas que atuam como voluntárias.

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Em países da Europa, como Itália, França eAlemanha, o terceiro setor já movimenta, anualmente,mais de 4% do Produto Interno Bruto (PIB) de cadapaís (Assis, 2004: 324).

Não obstante o acúmulo de riqueza, a sociedadecapitalista não consegue diminuir as imensasdesigualdades sociais. Para evitar catástrofesmaiores, o dom retorna e, dessa vez, para garantir asobrevivência da sociedade capitalista. A caridadeestá de volta, agora de modo mais laico. Não seapresenta apenas como uma virtude cristã, como ogesto de um crente que acredita na virtude cáritas. Acaridade é vivida por crentes e não crentes como umgesto de solidariedade entre seres humanos. Não setrata apenas do sofrimento do próximo, é todo osofrimento do mundo que solicita a dádiva, agenerosidade daqueles que podem praticar o dom.

2.1. Dom e excluídosA sociedade ocidental, desde o século XIX,

trilha um caminho pelo qual se multiplicam osexcluídos de um sistema econômico que, parapermanecer dinâmico e competitivo, deve reduzircustos, aumentar a produtividade e diminuir onúmero de empregados. Essa forma de agirtransformou a sociedade capitalista em umasociedade do desemprego. Um desemprego que seimagina provisório, mas que, para muitos, torna-se

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permanente. Há, ainda, aqueles que nem conseguemempregar-se. O estudo da urbanização mostra que ospobres se dirigem para as grandes cidades naesperança de conseguir um emprego; as chances deconsegui-lo, porém, são bastante remotas. Mesmo otrabalho informal, que, de maneira precária, cuida deincluir os excluídos, vai-se tornando cada vez maisescasso.

A sociedade capitalista é paradoxal, visto que oemprego depende do bom desempenho da economia,mas a economia, para funcionar melhor, precisadesempregar. A substituição do homem pelamáquina é visível em todos os setores da produção,motivo pelo qual o desemprego é um fenômenopresente em todas as sociedades, inclusive as tidascomo mais desenvolvidas. A economia, portanto,acaba sendo a principal fonte de exclusão doindivíduo. Essa exclusão não é apenas do mercadode trabalho, porque o indivíduo perde não apenas oemprego, mas também a dignidade e a cidadania,porque é excluído da própria sociedade, e as chancesde ser incluído novamente são cada vez menores.

O sistema gera uma massa de excluídos e confiaao Estado a tarefa de incluí-los novamente, mas oEstado é incapaz de tal tarefa; cuida, portanto,apenas de reduzir as fraturas mediante programassociais, tendo em vista o controle das perturbaçõessociais. Para isso, o Estado quer mais tributos, os

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empresários, porém, entendem que a carga tributáriajá é excessiva e pretende reduzi-la ainda mais. Osparadoxos e as contradições vão-se acumulando. Éesse nó de paradoxos, contradições e impotênciasque marca o contexto social e exige que se faça apeloao dom cada vez mais e por toda parte. O Estado, nãoraras vezes, estabelece o dom forçado, quando crianovos impostos ditos de solidariedade, obrigando amaioria a partilhar um pouco de suas sobras com osmais necessitados, os desempregados que aeconomia capitalista descartou ou nem sequeraproveitou.

É nesse contexto, no meio de milhões dedesempregados, que se multiplicam os movimentosdos sem terra, dos sem teto, dos sem cidadania,enfim, dos sem nada. Nesse contexto também semultiplicam as organizações que exploram atividadesilícitas. A luta pela sobrevivência induz o homem àutilização de meios violentos. A ineficiência dapolítica social do Estado gera grande desilusão entreos excluídos pela ausência de alternativas oupossibilidades de recolocação pelas viasconsideradas lícitas. O direito estatal vai perdendo oseu sentido e a sua utilidade naqueles territórios(favelas, periferias, zonas de prostituição e decomércio de narcóticos) que concentram osexcluídos.

O processo de exclusão de uma parcela de

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cidadãos gera um processo de inclusão “àsavessas”, que é reprimido pela polícia estatal, namedida em que os excluídos buscam, a qualquercusto, a sua inclusão econômica no exercício deatividades consideradas ilícitas. Nesse sentido, osjovens excluídos buscam a sua inclusão econômicana prostituição, no narcotráfico, no furto, no rouboetc. Vale dizer, o processo de exclusão não criaapenas uma população de pobres, mas também umasociedade paralela, com poder e justiça paralelos,controlados por grupos que não possuem vínculoscom o poder estatal.

É também nesse contexto de milhões dedesempregados que se cristaliza a demanda do dom,a demanda da utopia, na medida em que se generalizao apelo a dar, a partilhar. Aparecem milhares deorganizações não governamentais para organizar ademanda e a oferta do dom. Pede-se a doador empotencial, generoso, solidário, que partilhe nãodiretamente com o necessitado, mas por meio dedoações a essas organizações. Para isso organizam-se bazares, leilões, festas, campanhas, algumas naforma de shows televisionados, como CriançaEsperança, Teletom e O Dia de Fazer a Diferença. Odom, na sociedade contemporânea, extrapola a esferados sujeitos concretos, torna-se um ato entresujeitos abstratos, um doador que ama a humanidadee um donatário que encarna, por alguns dias, o

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tempo de uma campanha de donativos, a miséria domundo. Esses grandes circuitos do dom colocam emoutro patamar o regime jurídico das doações e aprópria capacitação do profissional do direito.

2.1.1. A demanda do domA caridade está de volta e ela ainda é ofensiva

para quem a aceita. Para muitos dos que estãopassando necessidade, é humilhante estender a mão.Por esse motivo, é preciso apelar para asorganizações e figuras públicas, para que peçampelos necessitados, que organizem campanhas eapareçam na mídia. Muitos se aproveitam dessassituações para melhorar suas próprias contas. Nessesentido, já se chegou ao limite de pedir umaComissão Parlamentar de Inquérito (CPI) parainvestigar contas de organizações nãogovernamentais e o Ministério Público tem motivospara desconfiar de alguns dirigentes de organizaçõesreligiosas. Existem, também, aqueles que entendemque muitas figuras públicas se aproveitam dascampanhas para fazer marketing pessoal, paraaumentar o prestígio, a honra e a fama nesse circuitomoderno do dom.

O uso da mídia transformou a caridade em umjogo televisionado, fenômeno que imprime à coletade dons algumas das características do potlatch, namedida em que aparece o apelo a dar cada vez mais,

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uma cidade mais que a outra, uma empresa(sociedade empresária) mais que a outra, e o desejode que o total de donativos supere a cada ano aqueleque foi atingido no ano precedente. Como nopotlatch, proclama-se igualmente o nome daspessoas, das cidades, das empresas que semostraram mais generosas. Diversos programas datelevisão brasileira vivem disso, porque essa formade generosidade melhora os índices de audiência econcede prestígio à rede de televisão e seusapresentadores e participantes. Há até um programasemanal de uma rede de televisão norte-americana emque celebridades (cantores, humoristas, atores etc.),representando associações de caridade, jogam pokerpara recolher donativos.

Nas sociedades contemporâneas em que asrelações entre os indivíduos são cada vez menospessoais, os dons conservam ainda frequentementeum caráter pessoal, mas que, às vezes, não estáligado diretamente àqueles que são doadores eàqueles a quem os dons são destinados. No palco datelevisão, aparecem indivíduos que representamvirtualmente todos aqueles que vão beneficiar-sedos dons: geralmente crianças afetadas por umadoença genética são entrevistadas e suscitam acompaixão e o desejo de ajudar. E, ao lado delas,estão os representantes das instituições, figuraspúblicas ou celebridades que fazem apelo à

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generosidade da população.O dom na sociedade contemporânea, portanto,

ainda mantém algumas características antigasassinaladas por Mauss: a) dons não antagonistas:quando se faz o apelo para doardesinteressadamente, de forma anônima, comocaritas; b) dons antagonistas: em que háconcorrência, competição para arrecadar mais,quando se honra o nome daqueles que deram osmaiores donativos. É óbvio que esses donsantagonistas são protagonizados por pessoas ricas.Mesmo quando uma tragédia (terremoto, enchente)se abate sobre um país classificado comosubdesenvolvido, espera-se que os demais paísesdoem, e aqueles mais ricos devem doar mais e, se nãoo fizerem, perdem o prestígio.

O dom antagonista ou não antagonista aparecesempre como um ato voluntário e pessoal. Ainexistência dessas características transforma o domem outra coisa, em imposto, por exemplo. Talvez issopossa explicar por que muitas pessoas, mesmoconscientes da utilidade dos tributos para osprogramas de assistência social dos governos,clamam pela diminuição da carga tributária. O domforçado descaracteriza o dom, transforma-o emexação.

Enfim, ali, onde o Estado é incapaz de promoverjustiça social e diminuir o número de excluídos, resta

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apenas e tão somente a expectativa do domcaritativo. É difícil explicar por que aqueles que têmtão pouco ainda se movem pelo dom, são levadospor um impulso de que é preciso doar, ainda que seustatus não lhe permita tanto. Talvez porque a coisadada, de algum modo, será restituída pela força doespírito que há nela, ou talvez porque a coisa dada ofoi aos deuses e os deuses recompensam o poucocom o muito. Mas também é difícil explicar por quetantos ricos não conseguem encontrar oureencontrar essa generosidade tão antiga e presenteem todas as sociedades; é difícil explicar como tantosricos se aprisionaram na fria razão do comerciante, dobanqueiro, do capitalista. É comum a essas pessoasentenderem que o fato da exclusão decorre davontade do excluído, daí a resposta fácil, direta,arrogante e estúpida: quem necessita do dom évagabundo. O paradoxo dos paradoxos é que o domrepresenta uma defesa do sistema capitalista contraos próprios capitalistas.

Estamos, assim, inseridos em um mundoparadoxal do excesso e da escassez, que é, ao mesmotempo, barbárie e civilização. A imensa concentraçãode riqueza, além de sustentar o luxo de determinadaclasse social, financia formas catastróficas dedesperdício: as aventuras imperialistas, as guerras, acontaminação ecológica, a destruição da natureza.Mas não podemos sucumbir, porém, a essa realidade.

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Não chegamos ao estágio final da evolução dahumanidade. Essa situação pode não ser apenasestrutural, mas pode ser o prelúdio, o sinal de umagrande mudança, de que certo modo de organizaçãosocial já esgotou todas as suas possibilidades.

2.2. Dom e objeto sagradoMauss, ao analisar os dons dos homens aos

deuses aponta que nem todas as riquezas se trocam.Nesse sentido, distingue duas categorias de objetos:a) alienáveis: aqueles que se devem e se podem darou trocar; e b) inalienáveis: aqueles que não sedevem dar nem trocar. Assim o jogo de dons econtradons, mesmo em uma sociedade com“economia e moral do dom”, não invade toda a esferado social. Nesta, como em outras esferas, há coisasque não se pode dar nem trocar, que é precisoguardar. No geral, essas coisas que precisam serguardadas são objetos sagrados, objetos preciosos.Esses objetos não entram no circuito da troca. Sãobens inalienáveis porque constituem uma parteessencial da identidade da nação, tribo ou clã.

Os objetos sagrados são os mais preciosos;constituem, geralmente, peças de crençasimportantes ou mesmo de algum culto. As pessoasacreditam que esses objetos não apenas produzemriquezas em abundância, mas atraem outras. Eles sãoexcluídos das trocas, mas seus benefícios são dados,

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trocados.Tais objetos são intocáveis, de onde o caráter de

profanação que reveste a venda a estrangeiros,colecionadores ou turistas de máscaras e outrosobjetos sagrados preciosamente conservados nosclãs. Mas sempre se acha um indivíduo capaz deroubá-los do próprio clã e vendê-los em segredo porum punhado de dólares. De onde também aobstinação de missionários em destruir essesobjetos, muitas vezes até o último deles, para“extirpar” a idolatria dos indígenas. Destruiçãopública, que é um outro tipo de profanação destinadaa demonstrar que o deus dos missionários é o maisforte (GODELIER, 2001:207).

Na sociedade contemporânea é possívelperceber grandes circuitos do dom de objetosinalienáveis. Esses circuitos aparecem na forma deexposições de objetos raros, remanescentes dedeterminado período ou de determinada cultura jádesaparecida ou em vias de desaparecer. Os objetossão lançados nesses grandes circuitos parapromover e aumentar o prestígio de seusproprietários; circulam o mundo e, por onde passam,provocam admiração e reconhecimento.Recentemente circularam no Brasil objetos da antigacultura chinesa, cuja exposição recebeu a visitaçãode milhares de pessoas. Esses grandes circuitostambém colocam em outro patamar o regime jurídico

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do contrato de empréstimo e exigem do profissionaldo direito uma tecnologia mais apurada, poisdependem da elaboração de vários contratos decaráter internacional (empréstimo, seguro, transporteetc.). Trata-se de um kula moderno, porque taisobjetos circulam pelo mundo, mas retornam ao seuponto de partida e, por onde passam, engrandecem ahonra, o prestígio e a reputação dos seusproprietários, no exemplo, o povo chinês.

Ocorre, porém, que algumas pessoas e até paísescostumam apossar-se desses objetos inalienáveis,que constituem patrimônio de um povo, tribo ounação. Esses objetos são retirados dos seusproprietários por meio da rapina, do furto e docontrabando; muitos são até negociados nosmercados e leilões dos grandes centros capitalistas.Essa apropriação não ficou adstrita aos tempos docolonialismo; recentemente a curadora de um museueuropeu foi surpreendida ao recepcionar objetosinalienáveis contrabandeados. Daí o retorno dapergunta: Existem limites ao uso do dinheiro nasociedade capitalista?

Em uma sociedade na qual quase tudo pode servendido ou comprado, os próprios indivíduos nãopodem vender-se nem serem vendidos ou compradospor terceiros. Podem-se, contudo, vender partes de simesmo. Além da força de trabalho, é possível vender,por exemplo, o próprio sangue. Esse tipo de comércio

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é praticado legalmente em diversas partes do mundo,inclusive nos países ditos desenvolvidos. Umamulher pode, juridicamente, alugar seu útero e tornar-se mãe de aluguel; essa prática também é permitidaem diversas partes do mundo civilizado. Esseprocesso de dissociação e comercialização de partesdo ser humano pode ir mais longe, haja vista quevárias pessoas já venderam um dos seus rins,inclusive mediante anúncio em jornal.

O corpo de um indivíduo permanece propriedadesua, uma propriedade garantida pela lei e que ele nãopode transformar em mercadoria, mas pode, com ele,praticar o dom. Com outras palavras: um indivíduo,pelas leis brasileiras, não pode comercializar seucorpo ou parte dele, mas não há impedimento paraele doar um rim, uma córnea ou um pulmão. A mídiaaté enaltece, e muito, esse tipo de dom. Não deixa deser paradoxal que, numa sociedade de mercado, umacoisa (um rim, um pulmão) que não pode ser vendidanem comprada possa ser doada.

Godelier entende que, se o indivíduo comopessoa não pode ser transformado em mercadoria, éporque a própria Constituição, que fundamenta odireito, não pertence às relações comerciais. Ela asfundamenta, limita-as, não lhes pertence. AConstituição não é propriedade de nenhum indivíduoenquanto tal, ela é propriedade comum, inalienável,de todos aqueles que a seguem porque a escolheram.

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Da mesma forma que os indivíduos comopessoas são inalienáveis, presentes, ao mesmotempo, dentro e fora da esfera das trocas comerciais,assim também a Constituição é uma realidade social,um bem comum, resultado do corpo coletivo, o corpoconstituinte, motivo pelo qual não pode ser produtode relações comerciais. O direito que funda osdireitos dos indivíduos é, portanto, por essência,coletivo. Ele é propriedade comum de todos aquelesque vivem sob a mesma Constituição e a reconhecemcomo sua propriedade inalienável, situada além daesfera das relações comerciais. É um dom que oshomens e as mulheres livres fazem a si mesmos e quefundamenta não as suas relações íntimas, mas suasrelações sociais públicas.

As Constituições que os povos dão a si mesmosequivalem, de certo modo, aos objetos sagrados queos homens acreditavam ter recebido dos deuses paraajudá-los a viver juntos e viver bem. Daí por que aindignação é maior quando o magistrado vende umasentença ou o político vende uma lei do que quandoum cidadão vende uma parte do seu próprio corpo.Diferentemente do corpo de um indivíduo que,mesmo inalienável, permanece propriedade sua, aConstituição não é propriedade de nenhum indivíduoenquanto tal, ela é propriedade comum, inalienável.

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XVNEOEVOLUCIONISMO

1. EVOLUCIONISMO DO SÉCULO XXO evolucionismo que dominou a antropologia na

segunda metade do século XIX renasce no séculoXX através de uma tendência de orientação marxista,denominada círculo neoevolucionista, à qual se ligamos nomes de Leslie White, Julian Stewart, GordonChilde e Marshal Sahlins.

Segundo os neoevolucionistas, Franz Boashavia desviado a antropologia do seu curso com suaatitude cética em relação à teoria da evolução e suainsistência na particularidade de identidadesculturais. Para eles: a) o estudo da evolução culturalé sinônimo do estudo do processo técnico outecnológico; b) o homem, como todos os animais,explora o meio ambiente para obter uma forma depreservar a vida e garantir a perpetuação da espécie;c) a tarefa da antropologia não seria apenasconstatar a sequência do desenvolvimento, masespecificar os seus fatores determinantes; d) asadaptações evolucionárias locais específicas podemser sintetizadas em narrativas mais abrangentes de

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evolução.

1.1. Leslie Alvin White (1900 – 1975)Seguindo a orientação introduzida por Morgan,

White também entende que a civilização humanaevolui. Para ele, quando mais avançada umasociedade, mais complexa será a sua organização.

White entende que o nível de consumo deenergia fornece uma medida objetiva do avançocultural. Com base nisso, formula a lei básica daevolução cultural vinculada à quantidade de energiaconsumida e/ou utilizada pelo homem, e a enuncianos seguintes termos: “A cultura se desenvolvequando a quantidade de energia de que dispõe ohomem per capita, ou por ano, aumenta; ou namedida em que aumenta a eficácia dos meiostecnológicos para aplicar esta energia ao trabalho;ou ao incrementar-se ambos os fatoressimultaneamente” (in MELLO, 1982: 214). Cabeanotar que o consumo per capita de energia ainda éusado por alguns economistas como referencial paramedir o crescimento econômico dos países e o bem-estar de suas populações.

Os critérios adotados por White para determinaros estágios da evolução são semelhantes àquelesadotados por Morgan, principalmente no que serefere ao desenvolvimento dos equipamentostecnológicos. Aliás, White adota a divisão de

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estágios ou etapas do desenvolvimento culturalproposta por Morgan: selvageria, barbárie ecivilização. Assim, para White: a) o estágio deselvageria: caracteriza-se pelo uso e acesso à energiado próprio corpo e, às vezes, à energia do fogo, dovento e da água; b) o estágio de barbárie: éreconhecido pelo uso de energia na domesticação deanimais, pelo cultivo de plantas e na fabricação e usode instrumentos e ferramentas; c) o estágio decivilização: predomina a energia da descoberta e ouso da máquina a vapor.

White, em seu livro O conceito de cultura,estabelece uma diferença entre comportamento ecultura. Para ele: a) comportamento: está relacionadocom o organismo humano, ocorre “quando coisas eacontecimentos dependentes de simbolização sãoconsiderados e interpretados face à sua relação comorganismos humanos, isto é, em um contextosomático”; b) cultura: é independente do organismohumano, ocorre “quando coisas e acontecimentosdependentes de simbolização são considerados einterpretados num contexto extrassomático, isto é,face à relação que têm entre si, ao invés de com osorganismos humanos”. Dessa forma, estabelece quecomportamento pertence ao campo da psicologia ecultura ao da antropologia. Para White, esseconceito “livra a antropologia cultural dasabstrações intangíveis, imperceptíveis e

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ontologicamente irreais e proporciona-lhe umadisciplina verdadeira, sólida e observável” (inMARCONI e PRESOTTO, 2006: 23).

Segundo White, as coisas e acontecimentos queconstituem a cultura encontram-se no espaço e notempo, e podem ser classificados em: a)intraorgânicos: dentro de organismos humanos(conceitos, crenças, emoções, atitudes); b)interorgânicos: dentro dos processos de interaçãosocial entre os seres humanos; c) extraorgânicos:dentro de objetos materiais (machados, fábricas,ferrovias, vasos de cerâmica) situados fora deorganismos humanos, mas dentro dos padrões deinteração social entre eles. Para White, um itemqualquer – conceito, crença, ato, objeto – deve serconsiderado um elemento da cultura, desde que: a)haja simbolização (representação por meio desímbolos); b) seja analisado em um contextoextrassomático (in MARCONI e PRESOTTO, 2006:24, 25).

1.2. Vere Gordon Childe (1892 – 1957)Para Childe (1971: 29), as variações históricas

podem ser julgadas pelas proporções em queajudaram a espécie humana a sobreviver emultiplicar-se. Trata-se de critério que pode serexpresso em números populacionais. Encontram-se,na história, fatos aos quais esse critério numérico é

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aplicável diretamente. O exemplo mais óbvio é aRevolução Industrial inglesa. A Grã-Bretanha, em1750, possuía uma população de 6.517.035 pessoas,porém, com a Revolução Industrial, em 1801 passapara 16.345.646 e em 1851 para 27.533.755.

Assim, segundo Childe, a Revolução Industrial,ou seja, as profundas modificações na culturamaterial e no equipamento, as novas forças sociaisda produção e a reorganização econômica reagiramcontra a totalidade do povo britânico como nenhumoutro fato religioso ou político. Um dos efeitos foi,segundo ele, tornar possível o aumento gigantesco,em seus números, da população. A julgar pelospadrões acima anotados, a Revolução Industrial foium êxito. Facilitou a sobrevivência e a multiplicaçãoda espécie em questão. Assim, o amentopopulacional é tido como indicador dedesenvolvimento, ou seja, de maior capacitaçãotécnico-cultural.

Alguns antropólogos entendem que White eChilde focaram o aspecto material da cultura por setratar de um elemento mensurável e de fácilconstatação.

2. MARSHALL SAHLINS (1930)Sahlins faz uma síntese dialética entre a ideia

generalizada de evolução progressiva universal e osmodelos que enfatizam os processos locais. Para ele,

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essas duas abordagens não se excluem. Assim, osestudos sobre situações evolucionárias locais eespecíficas podem ser sintetizados em narrativasmais abrangentes de evolução geral.

Nessa exposição do pensamento de Sahlins,tomamos como referência o livro de Adam Kuper(2002), em especial o Capítulo 5: Marshall Sahlins:história como cultura. Kuper entende que a obra deSahlins pode ser dividida em dois períodos: a) oprimeiro, ligado ao neoevolucionismo e àstendências marxistas; b) o segundo, que se inicia nadécada de 1970, reflete certo abandono das tesesmarxistas pelas teses culturalistas e algumasincursões no estruturalismo.

2.1. Primeiro períodoPara Sahlins, toda sociedade deve ser colocada

ao longo de um continuum de desenvolvimento decomunidades familiares igualitárias (ponto departida) baseadas em parentesco, passando pelossistemas de chefias até alcançar o estágio maiselevado, que são os Estados hierárquicos. Em todo omundo, embora não na mesma época, as sociedadespassaram por estágios semelhantes dedesenvolvimento político em consequência doprogresso tecnológico e do acúmulo de recursos nasmãos de poucos.

Essa análise da evolução política é baseada num

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contraste entre dois tipos de economia. Para Sahlins,é possível estabelecer a existência de dois tipos desociedades, cada qual com suas formascaracterísticas de organização econômica: a) umabaseada nas de trocas recíprocas entre parentes:característica das economias de bandos e tribos(grupos primitivos), em que a produção é realizadapelo grupo doméstico, que também é a unidade deconsumo, portanto, não existe divisão de classessociais nem excedentes que possam estabelecergrandes trocas; b) outra baseada na exploração:trata-se das economias avançadas, cada vez maisdiferenciadas e produtivas, em que um pequenogrupo de ricos apropria-se do excedente e oprime agrande população de pobres.

Os princípios da economia avançada, fundadana exploração da força de trabalho, não explicam ofuncionamento da economia dos grupos primitivosainda existentes. Para compreender a economiadesses grupos é necessária uma teoria elaboradaespecialmente para esse fim. Conforme Kuper, KarlPolanyi já havia estabelecido os elementos dessanova teoria, ao anotar que a luta pela sobrevivêncianas sociedades pré-capitalistas não era organizadapor princípios de mercado, porque: a) os atores nãoeram homens de negócios; b) as instituiçõesessenciais não eram de modo algum parecidas comas sociedades empresárias; c) não havia mercado em

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que todos os valores pudessem ser medidos ecomparados; e d) ninguém tinha qualquer concepçãode crescimento agregado.

Polanyi entendia que, na sociedade pré-capitalista, as atividades econômicas estavamembutidas na vida doméstica e familiar e eram regidaspor uma ética de solidariedade de parentesco. Amaior parte das mercadorias era produzida econsumida pela família, embora as trocas com osvizinhos e parentes constituíssem uma garantia paraos tempos difíceis. Apenas uma pequena parte eraproduzida especificamente para trocas. Nos locais emque havia pequenos chefes, eles recebiamdeterminadas mercadorias como tributo, mas asredistribuíam em forma de banquetes. Cadamodalidade de troca era ajustada para expressarrelações de reciprocidade dentro dos grupos e entreeles.

De acordo com Sahlins, esse processoeconômico ainda podia ser observado nassociedades primitivas remanescentes. Havia, porém,uma contradição oculta nesse sistema de economiadoméstica. Vale dizer, esse modo de produçãodoméstico era solapado pelo desenvolvimentoinexorável de uma liderança central. Assim, à medidaque um grande homem transformava a si mesmo numchefe, passava a exigir tributos econômicos àsfamílias, forçando-as a produzir mais do que elas

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necessitavam para a sua subsistência. Esses chefesacabavam repudiando as alegações de parentesco.Esse seria substituído pela classe como o princípiodominante da organização social, e o mododoméstico de produção daria lugar a uma economiade comando.

Sahlins, no final da década de 1960, abandonaabruptamente a posição evolucionista à qual semanteve fiel por quase vinte anos.

2.2. Segundo períodoSahlins, em seu livro Cultura e razão prática, de

1976, explica que os materialistas consideram culturacomo um conjunto de instrumentos, uma tecnologiapara a exploração racional da natureza.Consequentemente, a história da humanidade pode,segundo eles, ser dividida numa sucessão deestágios marcados pelos avanços tecnológicos epelas mudanças resultantes dos modos de produção.Essa era, segundo Sahlins, a concepção do Marx daprimeira fase (humanista e idealista) que teriainfluenciado o evolucionismo do século XIX.Diferente do Marx da segunda fase (positivista,materialista e determinista), que teria influenciado oneoevolucionismo ou determinismo tecnológico deLeslie White.

Na opinião de Sahlins, não havia lugar na análisede sociedades tribais para a clássica oposição

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marxista entre uma base material que sustentava avida de uma sociedade e uma superestrutura deinstituições que dependesse de ideologiasmistificadoras erguidas sobre ela. Nas culturastribais, economia, política, ideologia, religião e ritualnão aparecem como sistemas distintos.

Para Sahlins, existem diferenças entresociedades tribais e modernas, mas essas diferençasnão residem em suas tecnologias ou em suaorganização social. A diferença essencial é que essassociedades compreendem-se em termoscontrastantes. Cada tipo delas é definido por umafonte privilegiada de simbolismo: a) a sociedadetribal baseia-se na metáfora do parentesco, e temcomo foco simbólico das chefias as religiões oficiais;b ) na sociedade ocidental a economia constitui aprimeira área de produção simbólica. “Asingularidade da sociedade burguesa não reside nofato de o sistema econômico fugir à determinaçãosimbólica, mas sim de que o simbolismo econômico éestruturalmente determinante”.

Para confirmar essa hipótese, Sahlins discorresobre “o que os americanos realmente produzem parasatisfazer suas necessidades básicas de alimentaçãoe vestuário”. Necessidades são culturalmenteconstituídas e o que os americanos produzem parasatisfazer essas necessidades culturalmenteespecíficas não são coisas úteis. Mas símbolos. Os

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americana ao introduzir uma nova concepção teóricabaseada em Marx. O Sahlins da segunda fase tentoureparar a deficiência do modelo marxista recorrendoao estruturalismo de Lévi-Strauss.

2.3. MitopráxisO Sahlins do segundo período não abandonou

totalmente as teses evolucionistas porquecontinuava convencido de que tinha havido ummovimento em âmbito mundial de tribos para chefiase destas para Estados. Precisava, contudo, encontraruma explicação nova para esse processo, umaexplicação que identificasse as mudanças maisimportantes no domínio das ideias. Para Sahlins, associedades primitivas (frias) interpretavam oseventos fortuitos como incidentes previsíveis(recorrentes) num padrão cíclico, em que nada podiaacontecer pela primeira vez. Em contrapartida, associedades ocidentais (quentes) acolhem de bomgrado a mudança e concebem a história como umpadrão de modelos em rápida transformação,operando um código aberto em expansão, queresponde à permuta constante de eventos que elamesma encenou. Essas ideias, esboçadas em Culturae razão prática, representam o ponto de partida paraum relato cultural da transformação de chefias emEstado.

Os antropólogos não estão de acordo em

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considerar os mitos como fontes históricas. Algunsacreditam que é impossível esclarecer a história apartir de mitos. Outros os tratam, juntamente comoutros tipos de narrativas, como fonte deconhecimento histórico concernente ao passado decomunidades contemporâneas, ou à difusão deconhecimentos e práticas. Além disso, algunshistoriadores acreditam que as tradições preservadaspelas famílias ou pelas cortes são produtos damemória coletiva e estão relacionadas com eventosque um dia foram testemunhados. De qualquer modo,o reconhecimento do valor histórico dos mitossignifica a possibilidade de estabelecer uma históriapara as culturas frias (sociedades primitivas),especialmente para aquelas que não conheceram aescrita.

Sahlins introduz o mito em sua teoria. Para ele, aspessoas estabelecem novos eventos em tramas jáestabelecidas em sua mitologia. Os mitos tambémpodem oferecer diretrizes para a ação, servindo comoprotótipos sobre os quais as pessoas modelam suaspróprias ações. Para Sahlins, uma mitologia é aessência condensada de uma cosmologia religiosa, eque ela realiza as mesmas funções como religião oucultura de forma mais geral. Os mitos explicam amudança e também ajudam a efetuá-la, oferecendo aomesmo tempo um relato do passado e um guia para aação no futuro.

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Sahlins denominou mitopráxis a recriação demitos em circunstâncias contemporâneas,principalmente naquelas sociedades em que ospersonagens da mitologia estavam ligadosgenealogicamente aos vivos. Em tais sociedades aspessoas acreditam que os chefes são descendentesde deuses e também estão relacionados com seupróprio povo; os chefes se identificam com seusancestrais mitológicos e imitam seus feitos. Amitopráxis, portanto, é uma reproduçãoestereotipada, ou seja, ela não reproduzperfeitamente a estrutura mítica prototípica. Aestrutura, de alguma forma, deixa espaço para osmovimentos tácitos dos indivíduos e para asincursões imprevisíveis de estranhos, ou para aerupção de forças naturais.

A tese central de Sahlins estabelece que osmitos oferecem um modelo para a compreensão doseventos. Além disso, dá às pessoas diretrizes paralidar com novas situações. Mas alguns eventos têmo poder de subverter a estrutura do significado quehomens e mulheres tentam impor. A mitopráxis nãopode absorver todos os choques apresentados a ela;não pode congelar a história. Nos casos maisextremos, haverá mudanças na própria ordemsimbólica. O grande desafio de uma antropologiahistórica, conclui ele, não consiste meramente emsaber como os eventos são ordenados pela cultura,

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mas a forma como, nesse processo, a cultura éreordenada.

Para responder a essa questão, Sahlins realizavários estudos, dentre os quais se destaca o estudosobre as mudanças revolucionárias que ocorreram noHavaí no início do século XIX.

2.4. Revolução cultural havaianaÀ revolução cultural havaiana antecede alguns

acontecimentos que precisam ser relatados: a) oprimeiro diz respeito à visita do Capitão Cook aoHavaí em 1778; b) o segundo diz respeito à aboliçãodo sistema de tabu, após a morte do rei KamehamehaI em 1819.

2.4.1. Visita do Capitão CookA visita do Capitão Cook é um relato do primeiro

contato de europeus com havaianos. Cook chega àsilhas havaianas durante o festival anual em 1778.Segundo os historiadores, o capitão inglês foiidentificado e tratado pelos nativos como umaencarnação de Lono (deus da paz e da fertilidade),tido como deus do Makahiki, festival de ano-novohavaiano, que é celebrado quando a temperatura e asmarés mudam e os primeiros frutos são colhidos. Oresto do ano é governado pelo deus Ku, associadoaos chefes supremos, às guerras e aos sacrifícioshumanos.

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Havia uma crença entre os havaianos, segundo aqual, quando Lono chegou de Kahiki (Taiti), oumelhor, quando os sacerdotes de Lono apresentaramsua imagem, os rituais do templo de Ku foramsuspensos e o culto a Lono tomou seu lugar,acompanhado por novos tabus, incluindo o tabu daguerra. Lono navegou ao redor das ilhasassessorado pelos sacerdotes, acolhido pelaspessoas com sacrifícios e tendo sua passagemsaudada com saturnais. No final do festival, ele foirecebido pelo rei e os dois travaram um combatesimulado. Alguns dias depois, Lono sofreu umamorte ritual e partiu, mais uma vez, numa canoaespecial guarnecida com suprimentos, e só retornariano ano seguinte.

Quando os navios do Capitão Cook apareceram,exatamente no período do festival Makahiki, oshavaianos associaram tal fato com o retorno do deusLono. “As velas dos navios ingleses pareciam abandeira de kapa ligada à imagem de Lono; e a formacom que a esquadra de Cook velejava lentamente aolongo da costa das várias ilhas sugeria o trajeto dodeus ao redor da ilha durante o festival. Assim quedesembarca, acompanhado de alguns oficiais, Cookfoi conduzido pela mão pelos sacerdotes etransformado na figura central de uma cerimôniasofisticada, por meio da qual os sacerdotes queriamreconhecê-lo como a encarnação de Lono; até o

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último dia de sua vida ele foi tratado pelos nativoscom um respeito que chegava à adoração. Não sesabe se Cook percebeu o significado religioso detudo isso” (RAPLH KUYKENDALL in KUPER. 231,232).

Depois de um período em terra, durante o qualembarcou suprimentos e realizou reparos no navio,Cook partiu. Todavia, seu mastro quebrou e ele foiobrigado a retornar. Nesse período começaram aaparecer os conflitos em virtude de alguns roubosque estavam tornando-se comuns. Assim, o roubode algumas ferramentas provocou uma luta em queum chefe foi golpeado com um remo. Em seguidahouve o furto de um pequeno veleiro guarda-costas.Cook tentou fazer o rei como refém até que apropriedade furtada fosse devolvida. Mas oshavaianos ficaram desconfiados. Lono nunca teriavisitado o chefe daquela maneira: armado, escoltadopor soldados e aparentemente hostil. Uma multidãose reuniu, e alguns dos marinheiros entraram empânico e começaram a disparar suas armas. O próprioCook disparou sua arma duas vezes. Na confusão,ele foi derrubado e morto. O corpo foi levado peloshavaianos e tratado como se fosse um grande chefe.Os ingleses se reagruparam e infligiram fortesrepresálias. No final, depois de uma semana, voltou apaz. Alguns ossos de Cook foram levados de voltapara os navios e lançados ao mar. Depois disso, os

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ingleses partiram.Sahlins entende que esses acontecimentos

descrevem um roteiro mitológico. Lono e Ku eramrivais, e a volta de Lono representou um desafio aorei. Todas as dinastias havaianas haviam sidofundadas por chefes invasores. O desafio de Lonoao rei era vencido no ritual que representava o pontoculminante do festival, quando os dois travavam ocombate simulado e Lono, derrotado, partia. Nessecaso, contudo, a sequência foi quebrada. Lonoretorna para conquistar. O retorno de Lonoprecipitou uma série de conflitos sociais, quecolocou em andamento mudanças revolucionárias.

Segundo Sahlins, as relações comerciais eramreguladas por tabus e os marinheiros britânicospersuadiam muitos havaianos a quebrar esses tabuspara fazer comércio com eles. As violações dos tabuseram, portanto, motivadas pela pragmática docomércio, mas seu efeito abalaria as relações entrecategorias de homens e mulheres, chefes e cidadãoscomuns, havaianos e estrangeiros. O resultado foiuma transformação estrutural e uma reorganizaçãodas velhas categorias. Enfim, na sequência dosacontecimentos a elite havaiana passa a se identificarcom a inglesa. Rei e ministros havaianos passam a seespelhar no rei e ministros ingleses, adotam nomesingleses, passam a se vestir numa versãoaristocrático-europeia. Tudo isso contribuiu para

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mudanças nas relações entre chefes e cidadãoscomuns.

2.4.2. Abolição do sistema de tabusConforme relata Kuper, o ponto culminante da

revolução cultural havaiana ocorre em 1819, quandoos nobres havaianos aboliram por completo osistema de tabus. Em maio daquele ano morre o reiKamehameha I, que havia unido pela primeira vez asilhas havaianas sob o domínio de um únicogovernante. Apesar de certa resistência, ele foisucedido por seu filho Liholiho, que se tornou o reiKamehameha II.

O jovem rei era cercado por quatro figuraspoderosas: a esposa favorita de seu pai, a rainha-mãe, o primeiro-ministro e o sumo sacerdote. Juntoseles decidiram abolir o sistema de tabu. Os alvosprincipais eram os tabus que proibiam as mulheres defazerem as refeições junto com os homens e de comerdeterminados alimentos que eram reservados a eles.Esses tabus eram importantes para os havaianos esimbolizavam todo o sistema de restrições. Asinfrações eram sistematicamente punidas com amorte. Em novembro, a corte ofereceu um grandebanquete em que os tabus foram formalmentequebrados. Em seguida, foram expedidas ordens paraque ídolos fossem destruídos, templos fossemprofanados e tabus fossem quebrados. Essa foi uma

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revolução que se deu do topo para a base, em que osumo sacerdote era uma figura de destaque.Entretanto, houve oposição, liderada por um primodo rei que era o próximo na linha de sucessão para osumo sacerdócio. Os conservadores foramderrotados, em grande parte porque o partido do reitinha superioridade em armas. Quando osmissionários chegaram, em 1820, as mudançashaviam sido amplamente aceitas.

Muitas explicações conflitantes foram dadaspara esse evento. Kroeber afirma que a remoção dostabus representou um exemplo de fadiga cultural,um sentimento semelhante ao sentido pelosfranceses após a derrota em 1940, ou pelosamericanos após a quebra da bolsa de valores em1929. Para Kroeber, uma vez que uma atividade dessegênero desenvolve força suficiente, a inovação comotal pode parecer uma virtude e uma benção.

Sahlins explica que existiam dois partidos nocírculo real: o partido dos parentes afins do rei, cujosmembros tinham sido incumbidos de lidar com oseuropeus e se tornou o partido da revolução cultural,e o partido dos parentes colaterais do rei,conservadores que tinham controle sobre os deusesdominantes e sobre o sistema de tabu. O reiequilibrava essas duas forças. Quando o rei morreu,o partido pró-europeu de seus parentes afins subiuao poder. Os conservadores tentaram arregimentar

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apoio em nome dos deuses. Os novos governantesagora tinham de se opor às reivindicaçõesideológicas de seus adversários, e tentaram fazerisso removendo tabus mediante um ato ritual. Com aremoção dos tabus, os governantes impuseram, em1824, um novo código ritual à ilha: o calvinismorigoroso.

3. CRÍTICA AO NEOEVOLUCIONISMOLévi-Strauss (2003: 16) não poupa críticas ao

neoevolucionismo. Entende que a ideia de progressoé uma noção ocidental culturalmente específica, quenão pode ser generalizada. Por essa razão rejeita ocritério de Leslie White de que a quantidade deenergia utilizada por uma cultura fornece uma medidauniversal de progresso. Esse padrão etnocêntrico,segundo ele, “corresponde a um ideal encontrado emdeterminados períodos históricos e é válido paracertos aspectos da civilização ocidental, mas não seaplica à grande maioria das sociedades humanas,para as quais o padrão proposto pareceria sercompletamente destituído de significado”.

Além disso, Lévi-Strauss salienta que algumassociedades consideradas primitivas sobrepujaram emrealizações morais e mesmo em algumas áreastecnológicas as sociedades complexas do ocidente.Nesse sentido, exemplifica que o cultivo de plantassem solo era praticado havia séculos por alguns

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povos da Polinésia, que provavelmente ensinaram aomundo a arte da navegação, mundo este quesubverteram profundamente no século XVIII,revelando-lhes um tipo de vida social e ética maislivre e generosa que os europeus nem sequerpoderiam suspeitar da possibilidade de existência.

Lévi-Strauss (1993: 347, 348) esclarece que, sobo critério da quantidade de energia disponível percapita, a sociedade norte-americana estaria emprimeiro lugar do ranking da evolução, seguida daeuropeia e da japonesa. Mas, se o critério for outro,por exemplo, o grau de aptidão para triunfar sobreambientes hostis, o primeiro lugar seria ocupadopelos esquimós e beduínos. Se o critério fosse umestilo de vida mais livre e generoso, as tribospolinésias certamente ganhariam. Para tudo o que dizrespeito à organização da família e à harmonizaçãodas relações entre grupo familiar e social, osaborígines australianos, atrasados no planoeconômico, ocupam um lugar tão avançado emrelação ao resto da humanidade, que é necessáriopara compreender os sistemas de regras por eleselaborados apelar para certas formas dasmatemáticas modernas. Contribuições de igualimportância podem ser encontradas nas culturasafricanas, melanésias, americanas, egípcias, islâmicasetc.

Nota-se, portanto, que um povo primitivo não é

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um povo ultrapassado ou atrasado; num ou noutrodomínio pode demonstrar um espírito de invenção erealização que deixa muito aquém os êxitos doscivilizados. Não se pode, entretanto, esconder aexpansão da cultura europeia. Alguns falam até dauniversalização da cultura ocidental. Mas é precisoter em conta que a adesão ao gênero de vidaocidental, ou alguns de seus aspectos, está longe deser espontânea quanto os europeus gostariam deacreditar. A aceitação da cultura europeia não foi oresultado de uma decisão livre dos povos; essacultura se impôs pela violência. A Europaestabeleceu seus soldados, suas feitorias e seusmissionários pelas regiões do mundo inteiro:interveio direta ou indiretamente na vida dapopulação local e subverteu profundamente o seumodo tradicional de existência. A populaçãosubjugada não teve outra saída, a não ser aceitar assoluções que lhe foram impostas.

O processo de colonização, por outro lado, crioudiferenciações entre sociedades desenvolvidas esubdesenvolvidas. Conforme observa Marx emAcumulação primitiva, as sociedades quedenominamos atualmente subdesenvolvidas não osão por sua própria causa, e erraríamos em concebê-las como exteriores ao desenvolvimento ocidental oucomo tendo ficado indiferentes diante dele. Naverdade, são essas sociedades que, por sua

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destruição direta ou indireta entre os séculos XVI eXIX, tornaram possível o desenvolvimento domundo ocidental. Entre elas e ele existe uma relaçãode complementaridade. Por conseguinte, jamais odesenvolvimento pode ser considerado comoresultado do impacto de uma cultura mais elevada emais ativa sobre uma cultura mais simples e maispassiva (LÉVI-STRAUSS, 1993: 320).

4. NEOEVOLUCIONISMO E DIREITOO neoevolucionismo é uma tendência

antropológica de inspiração marxista, motivo peloqual associa o estágio de evolução da sociedade aoestágio de desenvolvimento das forças produtivas.Assim, uma sociedade evolui de acordo com oaumento do consumo de energia, o crescimentoindustrial, o aumento da população. Pode-se dizer,então, que a infraestrutura econômica, as relações deprodução, condiciona os diversos aspectos dedeterminada cultura, especialmente as relaçõesjurídicas.

Marx (1957: 4.5) não elabora uma teoria jurídica,mas menciona a relação entre infraestruturaeconômica e superestrutura jurídica como o fiocondutor de seus estudos e que pode ser formuladada seguinte maneira: na produção social de suaexistência, os homens entram em determinadasrelações necessárias, independentes de suas

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vontades, relações de produção que correspondema determinado grau de desenvolvimento das suasforças materiais de produção. O conjunto dessasrelações de produção constitui a infraestruturaeconômica da sociedade, a base concreta sobre aqual se erguem a superestrutura jurídica e asuperestrutura política e às quais correspondemdeterminadas formas de consciência social.

Para Marx, o modo de produção da vida materialcondiciona o processo de vida social, política eintelectual em geral. Não é, portanto, a consciênciados homens que determina o seu ser; é inversamenteseu ser social que determina sua consciência. Acerto estágio de seu desenvolvimento, as forçasprodutivas materiais da sociedade entram emcontradição com as relações de produção existentes,ou – o que não é senão a expressão jurídica domesmo – com as relações de propriedade no seiodas quais moviam até então. De formas dedesenvolvimento de forças produtivas que eram,essas relações tornam-se obstáculos. Abre-se entãouma época de revolução social, quando as u b s e q u e n t e mudança na base econômicatransforma a superestrutura jurídica.

Além da relação infraestrutura econômica esuperestrutura jurídica, Marx visualiza no processohistórico a luta de classes e destaca duas grandesclasses sociais no regime capitalista de produção: a)

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os trabalhadores: proprietários da força de trabalho,que têm como fonte de rendimento o salário; e b) oscapitalistas: proprietários de capital (meios deprodução), que têm como fonte de rendimento olucro (apropriação da mais-valia). A sociedade éformada por um complexo de relações (de produção,de propriedade, de exploração, de dominação),geralmente tensas ou conflituosas, que seestabelecem entre as classes sociais. As relações depropriedade situam-se na infraestrutura como formasde relações de produção e nas superestruturas comoexpressão jurídica dessas relações.

Além dessas conclusões, cabe mencionaralgumas afirmações de Marx, segundo as quais odireito “radica nas condições materiais da vida”, “odireito não tem história independente”, “o direitopositivo pode e deve mudar as suas decisões deacordo com as necessidades do desenvolvimentosocial, isto é, econômico”. Ancorados nessas e emoutras conclusões, alguns teóricos marxistas afirmamque o primeiro princípio de uma teoria marxista dodireito consiste em estabelecer que o direito é umproduto da sociedade e está consequentementesujeito a um processo de adaptação à vida social eparticularmente à economia (PACHUKANIS, 1977:256, 257).

Vários autores abordaram o fenômeno jurídiconuma perspectiva marxista. Nesse sentido, Petr

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Ivanovich Stucka, em seu livro Direito e luta declasses, concebe o direito não como uma estruturanormativa, mas como um sistema de relações sociaisque serve aos interesses da classe dominante(capitalista) e é tutelado pela força organizada dessaclasse. As relações sociais correspondem aoconjunto das relações de produção, de apropriação ede distribuição ou troca. Para Stucka, as relações deprodução e troca são as relações primárias, enquantoas relações de apropriação, isto é, as relaçõesjurídicas, são unicamente relações derivadas. Odireito, portanto, reflete as condições econômicas esociais historicamente determinadas.

Também numa perspectiva marxista, Karl Renner(BOTTOMORE, 1967: 201, 202) examina como asfunções das normas legais que regulam apropriedade, contrato, sucessão e herança semodificam com a evolução da estrutura econômica dasociedade capitalista, sem alterar, porém,necessariamente, a formulação das próprias normaslegais, que assim passam a obscurecer as relaçõessociais significativas do capitalismo desenvolvido.

Dentre outros teóricos, também seguem aorientação marxista Juan-Ramon Capella, UmbertoCerroni, Ralph Miliband, Nicos Poulantzas, LjubomirTadic, além de Friedrich Engels, Karl Kautsky ePachukanis, dos quais estes dois últimosdestacamos na sequência.

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4.1. Friedrich Engels (1820 – 1895) e KarlKautsky (1854 – 1938)

Engels e Kautsky (1991: 30) observam que odesenvolvimento pleno do intercâmbio demercadorias em escala social, por meio da concessãode incentivos e créditos, engendra complicadasrelações contratuais recíprocas e exige regrasuniversalmente válidas (normas jurídicas) que sópoderiam ser estabelecidas pelo Estado. Em virtudedessa complexidade, alguns teóricos imaginaram quetais normas não proviessem dos fatos econômicos,mas dos decretos formais do Estado.

Para Engels e Kautsky, uma vez que a formafundamental das relações entre livres produtores demercadorias (a concorrência) é niveladora aoextremo, a igualdade e a liberdade jurídicas tornaram-se o principal brado de guerra da classe burguesa.Assim, ao relacionar a forma do direito com a formada mercadoria, verificaram que o processogeneralizado de trocas mercantis exige para a suaefetivação o surgimento da subjetividade jurídica edos princípios da liberdade e da igualdade. Valedizer, o operário, ao contrário do servo e do escravo,é reconhecido pelo sistema capitalista comoproprietário de sua força de trabalho, portanto, podedispor (vender) livremente dessa mercadoria. Nessesentido, a relação de produção capitalista expressa,no plano jurídico, a noção de que todos são

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proprietários (igualdade), mas com uma singulardiferença: os trabalhadores são proprietários da forçade trabalho e os capitalistas são proprietários dosmeios de produção.

Naves (1991: 17, 18), ao refletir sobre asconcepções de Engels e Kautsky a respeito daliberdade e da igualdade jurídicas, constata que aemergência da categoria sujeito de direitopossibilitou que o homem circulasse no mercadocomo mercadoria, ou melhor, como proprietário queoferece no mercado a si mesmo. O homem aparece aomesmo tempo na condição de sujeito e objeto de simesmo, na condição de um proprietário que aliena asi próprio. O direito faz funcionar, assim, ascategorias da liberdade e da igualdade, já que ohomem não poderia dispor de si se não fosse livre –a liberdade é essa disposição de si como mercadoria–, nem poderia celebrar um contrato – esse acordo devontade – com outro homem se ambos nãoestivessem em uma condição de equivalência formal.

Engels e Kautsky (1991: 31) lembram que asprimeiras formações partidárias proletárias, assimcomo seus representantes teóricos, mantiveram-seestritamente no campo jurídico, embora construíssempara si um terreno do direito diferente daquele daburguesia. De um lado, a reivindicação de igualdadefoi ampliada, buscando completar a igualdadejurídica com a igualdade social; de outro lado,

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concluiu-se que o trabalho é a fonte de toda ariqueza, por isso o produto do trabalho deveria serdividido de forma mais equitativa entre capitalistas etrabalhadores.

Ocorre, porém, que a reivindicação da igualdade,assim como do produto integral do trabalho, perdia-se em contradições insolúveis, tão logo se buscavaformular seus pormenores jurídicos, e deixava maisou menos intacto o cerne da questão, atransformação do modo de produção. Por essasrazões, Engels e Kautsky (1992: 31, 32) entendem queas duas posições eram igualmente insuficientes,tanto para expressar a situação econômica da classetrabalhadora quanto para estruturar a lutaemancipatória dela decorrente. A concepçãomaterialista da história de Marx, segundo a qualtodas as representações dos homens – jurídicas,políticas, filosóficas, religiosas etc. – derivam, emúltima instância, das condições de vida do própriohomem e do modo de produzir e trocar os produtos,ajudou os partidos dos trabalhadores a compreenderque a única forma de ação possível para a classecujos interesses defendiam estava no campo da lutapolítica, ou melhor, da luta de classes.

A partir dessa compreensão, em vez dereivindicar o “direito dos trabalhadores ao produtointegral do trabalho”, os partidos dos trabalhadorespassariam a reivindicar que os “meios de produção e

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os produtos devam pertencer à coletividadetrabalhadora”. Isso não significa que a classetrabalhadora não deva formular reivindicações denatureza jurídica, pois, como afirmam Engels eKautsky (1991: 65), “toda classe em luta precisa,pois, formular suas reivindicações em um programa,sob a forma de reivindicações jurídicas”.

Enfim, conforme Engels e Kautsky (1991: 49),Marx entendeu que a continuidade da exploraçãosob qualquer forma, em vez de promover odesenvolvimento social, o obstaculiza cada vez maise implica choques crescentemente violentos.

4.2. Evgeni Bronislavovich Pachukanis (1891 –1937)

Pachukanis é um teórico do direito que se inspirano marxismo. No seu livro A teoria geral do direito eo marxismo, diz que, quando as relações humanassão construídas como relações entre sujeitos,surgem as condições para o desenvolvimento deuma superestrutura jurídica, com suas leis formais.Assim, o processo de evolução histórica daeconomia capitalista vai de par com a forma dasuperestrutura jurídica concreta, ou seja, os traçosessenciais do direito privado de uma economiacapitalista são simultaneamente os atributoscaracterísticos da superestrutura jurídica.

Segundo Simone Goyard-Fabre (2002: 171, 172),

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Pachukanis denega ao direito qualquer caráter dedever-ser, qualquer dimensão normativa. Para ele aregulamentação jurídica existe de fato e é necessária,mas só se pode explicá-la pelos mecanismosmaterialistas de natureza social, desencadeados ecomandados pelo voluntarismo político da classedominante. As noções de contrato, de obrigaçãojurídica, de direito subjetivo e de sanção fazem parte,formalmente, dessa unidade estrutural evoluída queo direito positivo constitui; mas essa estruturaformalmente acabada, longe de ser a estrutura idealou geral do direito, é uma estrutura historicamentecausada de uma formação social específica. ParaPachukanis, a causalidade histórica do jurídico é a daeconomia própria da sociedade capitalista.

Pachukanis entende que a relação econômica é,em seu movimento real, a fonte da relação jurídica,motivo pelo qual o direito não tem a especificidadede uma regulação normativa e ideal; trata-se apenasde um conjunto de relações socioeconômicas quetrazem a marca da ideologia da classe dominante.Assim, à medida que a sociedade representa ummercado, a máquina de Estado se realiza efetivamentecomo a vontade geral impessoal, como a autoridadedo direito. No meio social em que se manifesta semcessar o movimento do trabalho, da mercadoria e dodinheiro, o que caracteriza o direito são asdesavenças e os litígios. O poder de Estado confere

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clareza e estabilidade à estrutura jurídica, mas não lhecria premissas, pois elas se enraízam nas relaçõesmateriais, isto é, nas relações de produção.

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XVIESTRUTURALISMO

1. INTRODUÇÃOEntende-se por estruturalismo o método ou o

processo de pesquisa em cuja base encontra-se oconceito de estrutura com o significado de sistema.Foi a linguística do século XX que, ao elaborar umanova concepção de linguagem, estabeleceu as basesconceituais do estruturalismo. Essas bases foramassumidas pelo estruturalismo antropológico e,posteriormente, difundiram-se para todas as áreasdas ciências humanas e sociais, incluindo o direito.

Quando se fala em estrutura pensa-se em regrasde disposição sistemática de elementos. Mas o termoestrutura é vago e ambíguo, portador de váriossignificados; possui, portanto, alcance e sentidosdiferentes que precisam ser especificados.Abbagnano (2003: 376, 377) mostra que o conceito éutilizado às vezes de forma restrita e outras vezes deforma genérica.

1.1. Estrutura: significado restritoEstrutura, em sentido restrito e específico, tem o

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significado de um plano ou sistema de relaçõeshierarquicamente ordenado, ou seja, uma ordemfinalista intrínseca destinada a conservar o máximopossível seu plano ou sistema. A estrutura, portanto,não é constituída simplesmente por um conjunto deelementos relacionados, mas por uma ordemhierárquica que tem o objetivo de garantir o êxito desua função e sua própria conservação.

A forma restrita é, no geral, a que maiscorresponde ao uso do termo na linguagem comum.Nesse sentido, fala-se da estrutura de um edifício eda correlação entre suas partes que assegura aestabilidade dele e lhe permite corresponder ao uso aque é destinado. Em uma organização qualquer,estrutura é o plano de atividades ou de órgãos quemantém a organização e lhe permite realizar seusobjetivos. Nesse sentido fala-se de estrutura de umasociedade empresária com os seus órgãos de poder(assembleia geral, conselho de administração,conselho fiscal, presidência) hierarquicamenteordenados.

1.2. Estrutura: significado genéricoEm sentido lógico, o termo estrutura significa o

plano de uma relação. Nesse sentido, diz-se que duasrelações têm a mesma estrutura quando o mesmoplano vale para ambas, ou seja, quando as relaçõessão análogas tanto quanto um mapa geográfico tem

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analogia com a região que representa. Assim,estrutura é um conceito generalíssimo que equivale aplano, construção, constituição etc. Também naterminologia marxista, estrutura ou infraestrutura éum conceito genérico, visto que significa aconstituição econômica da sociedade em que seincluem as relações de produção, ao passo que asuperestrutura é a constituição jurídica, política,ideológica da própria sociedade.

Marilena Chauí (1980: VI) lembra que a ampliaçãodo termo “estrutura” também se verificou na biologiae na matemática. No sentido biológico, estruturasignifica um conjunto cujos elementos manifestamsolidariedade entre si e dependência mútua. Atotalidade de tal conjunto não consistiriasimplesmente na soma de suas partes, resultaria dasrelações internas existentes entre as partes, relaçõesessas que são necessárias e funcionais. No sentidomatemático, estrutura significa um sistema derelações que descrevem o funcionamento de umfenômeno representado por um modelo. Nesses en t id o , estrutura reduz-se a um sistema deoperações abstratas, e seu significado é o de umacombinatória geral, que assume aspecto particularquando preenchida por um modelo, isto é, pelarepresentação de um fenômeno determinado.Estrutura, nesse sentido, aparece como uma formavazia, cuja matéria é variável, porque depende do

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modelo particular que venha a se encaixar nela.Alerta a autora que esses dois sentidos

(biológico e matemático) não são, contudo,suficientes para se compreender o emprego dapalavra pelas correntes estruturalistas do século XX.Para isso foi decisivo o papel desempenhado porFerdinand de Saussure, que, embora não tenhausado a palavra estrutura explicitamente, elaboroutoda a essência da concepção estrutural, mediante anoção de sistema. O termo estrutura tem osignificado genérico de sistema quando se fala deestrutura como um conjunto de elementossubmetidos a determinadas relações.

2. INFLUÊNCIA DE SAUSSUREA palavra estrutura é, por um lado, sinônimo de

forma; por outro lado, é sinônimo de sistema comoconjunto ou totalidade de relações. Foi neste últimosentido que a palavra passou para a linguística ouestudo da linguagem. Nesse sentido Saussure dizque “a língua é um sistema cujas partes todas devemser consideradas em sua solidariedade sincrônica”.

Conforme análise de Chauí (1980), Saussureestabeleceu para a linguística as seguintes basesconceituais, que inspiraram o estruturalismoantropológico: a) a linguagem é constituída peladistinção entre língua e fala; língua é uma instituiçãosocial e um sistema, ou uma estrutura objetiva que

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existe com suas regras e princípios próprios,enquanto fala (palavra) é o ato individual do uso dalíngua, tendo existência subjetiva por ser o modocomo os sujeitos se apropriam da língua e aempregam; b) a língua é uma totalidade dotada desentido na qual o todo confere sentido às partes, istoé, as partes não existem isoladas nem somadas, masapenas pela posição e função que o todo da língualhes dá e seu sentido vem dessa posição e dessafunção; c) a língua é um sistema convencional, cujaspartes podem e devem ser consideradas em suasolidariedade sincrônica; d) a língua é inconsciente,ou seja, as pessoas falam sem ter consciência da suaestrutura (regras, princípios, funções).

Essas bases conceituais foram capazes depossibilitar uma nova concepção de linguagem eafirmar a propriedade do sistema sobre os elementosque o compõem. É uma grande ilusão, diz Saussure,considerar um termo simplesmente como a união decerto som com certo conceito. Defini-lo assim seriaisolá-lo do sistema de que faz parte; seria crer que sepode começar pelos termos e construir o sistemasomando-os; pelo contrário, deve-se partir do todosolidário para obter, por análise, os elementos queele engloba. Enfim, para Saussure, a língua é umsistema cujos termos são todos solidários e no qualo valor de um termo resulta da presença simultâneade outros.

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Com suas bases conceituais assimestabelecidas, o estruturalismo pôde desenvolver-se,e estendeu-se a todos os domínios das ciênciashumanas. Em sua exigência mais geral, oestruturalismo não só tende a interpretar um campoespecífico de indagação em termos de sistema, comotambém a mostrar que os diversos sistemasespecíficos, verificados em diferentes campos (porexemplo, antropologia, economia, direito, linguística)correspondem-se ou têm características análogas.Lévi-Strauss (2003: 95), por exemplo, julga possívelque uma mesma estrutura possa ser encontrada emtrês níveis de sociedade: a) no sentido de que asnormas de parentesco e de casamento servem paraassegurar a comunicação das mulheres entre osgrupos; b) assim como as normas econômicasservem para assegurar a comunicação de bens e dosserviços; c) e as normas linguísticas servem paraassegurar a comunicação das mensagens.

3. LÉVI-STRAUSS E O ESTRUTURALISMOLévi-Strauss (2003: 306), considerado o mais

célebre representante do estruturalismoantropológico, define estrutura como um sistema deelementos tal que uma modificação qualquer de umelemento implica uma modificação de todos osoutros, considerando-a como um modelo conceitualque deve dar conta dos fatos observados e permitir

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que se preveja de que modo reagirá o conjunto nocaso da modificação de um dos elementos.

Segundo Lévi-Strauss (1980a: 7), para merecer onome de estrutura, os modelos científicos devemexclusivamente satisfazer a quatro condições: a) emprimeiro lugar, o modelo deve oferecer um caráter desistema, isto é, consistir de elementos tais que umamodificação qualquer de um deles acarretemodificação em todos os outros; b) em segundolugar, todo modelo deve pertencer a um grupo detransformação, cada uma das quais corresponda aum modelo da mesma família, de modo que oconjunto dessas transformações constitua um grupode modelos; c) em terceiro lugar, as propriedadesexigidas por essas duas condições devem permitirprever de que modo reagirá o modelo em caso demodificação de um de seus elementos; d) finalmente,é necessário que o modelo seja construído de talmodo que seu funcionamento possa explicar todosos fatos observados.

Para Lévi-Strauss (1993: 121), os adeptos daanálise estrutural em antropologia sãofrequentemente acusados de formalismo. Oestruturalismo, porém, segundo ele, separa-se doformalismo em virtude das atitudes muito diferentesque as duas escolas adotam em relação ao concreto.Ao inverso do formalismo, o estruturalismo recusaopor o concreto ao abstrato, e não reconhece no

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segundo um valor privilegiado. A forma se definepor oposição a uma matéria que lhe é estranha; mas aestrutura não tem conteúdo distinto: ela é o próprioconteúdo, apreendido numa organização lógicaconcebida como propriedade do real.

Chauí (1980: X) anota que, para o estruturalismo,um fato isolado, enquanto tal, jamais possuisignificado. Lévi-Strauss exemplifica esse princípiocom os vocábulos fromage, cheese e queijo. Essestermos, quando isolados da estrutura alimentar queos determina, aparentemente, referem-se à mesmarealidade; o mesmo, contudo, não ocorre quando sãoconsiderados no interior das distintas estruturasalimentares a que pertencem, no caso a cozinhafrancesa, inglesa ou brasileira, nas quais se revelamcompletamente diferentes. Para o francês, fromageconota um gosto picante, enquanto, para o inglês,cheese quase não possui gosto e, para o brasileiro,queijo denota um gosto salgado. Salienta-se assim ocaráter relativo dos elementos da estrutura: o sentidoe o valor de cada elemento advêm, exclusivamente,da posição que ocupem em relação aos demais.

Lévi-Strauss destaca que as estruturas apenasse mostram a uma observação feita de fora. Elepropõe uma noção de estrutura que não se confundecom a realidade estudada, mas deve basear-se nela.Para ele a estrutura seria apenas um modelo deanálise construído a partir da observação da

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realidade social. O princípio fundamental, diz ele, éque a noção de estrutura social não se refere àrealidade empírica, mas aos modelos construídos emconformidade com esta. Assim aparece a diferençaentre duas noções tão vizinhas que foramconfundidas muitas vezes: a de estrutura social e ade relações sociais. As relações sociais são amatéria-prima empregada para a construção dosmodelos que tornam manifesta a própria estruturasocial.

3.1. Estrutura e consciênciaPara Lévi-Strauss (2003), a estrutura é um

sistema de relações, e é de sistemas desse gêneroque a sociedade é construída: sistema de parentesco,sistema de comunicação, sistema de troca etc. Alémdisso, a noção de estrutura social não se referepropriamente à realidade empírica, mas aos modelosconstruídos segundo essa realidade. Os modelospodem ser conscientes ou inconscientes. Naconcepção de Lévi- -Strauss, as estruturas mentaisinconscientes seriam responsáveis, em últimaanalise, pelas formas particulares assumidas em cadacultura. Para ele, com as abordagens tradicionais daantropologia, o máximo que se pode conseguir édetectar os modelos conscientes, isto é, as normas epadrões de comportamento da sociedade. Propõe,então, um método capaz de captar os modelos

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inconscientes responsáveis pelos modelosconscientes que não passam de efeitos deformadosdos primeiros.

Nessa trilha, estabelece que ”os modelosconscientes – que se chamam comumente normas –incluem-se entre os mais pobres que existem, emrazão de sua função, que é de perpetuar as crenças eusos mais do que lhes expor as causas. Assim, aanálise estrutural se choca com uma situaçãoparadoxal, bem conhecida pelo linguista: quanto maisnítida a estrutura aparente, mais difícil torna-seapreender a estrutura profunda, por causa dosmodelos conscientes e deformados que se interpõemcomo obstáculo entre o observador e seu objeto”(LÉVI-STRAUSS, 2003: 318).

Por fim, introduz a noção de que algumassociedades são, em certo sentido, estáticas, razãopela qual são especialmente talhadas para umaanálise estrutural. Há, assim, uma diferença emespécie entre sociedades tribais (frias), cuja história érepetitiva, e sociedades complexas (quentes), queestão num estado de mudança contínua. Associedades primitivas tentam anular a história,relançar eventos como meras repetições de umpadrão cíclico estabelecido. Seu ideal seriapermanecer no estado em que os deuses ou osantepassados as criaram nos primórdios dos tempos.Por esses motivos, é mais fácil detectar as estruturas

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mentais inconscientes básicas a partir de sociedadesimples (culturas frias) do que no seio de sociedadescomplexas (culturas quentes).

Ao observar as sociedades simples, formula aseguinte hipótese: sem reduzir a sociedade ou acultura à língua, é possível estabelecer três formas decomunicação, que são, ao mesmo tempo, formas detrocas matrimoniais, econômicas e linguísticas, entreas quais existem relações manifestas. Assim: a) asregras de parentesco e matrimônio servem paraassegurar a comunicação de mulheres entre osgrupos; b) as regras econômicas garantem acomunicação de bens e serviços; e c) as regraslinguísticas a comunicação de mensagens. Asrelações matrimoniais fazem-se acompanhar deprestações econômicas e a linguagem intervém emtodos os níveis (Lévi-Strauss, 2003: 103, 104).

3.2. Sistemas de culturasPara Lévi-Strauss (1993: 329 a 332), um aspecto

importante da vida da humanidade é que esta não sedesenvolve sob um regime uniforme, mas através demodos diversificados de sociedades e civilizações;essa diversidade (intelectual, estética e sociológica)não está unida por nenhuma relação de causa eefeito. A raça, segundo ele, não determina a culturaporque não existem aptidões raciais inatas, tendo emvista que há muito mais culturas humanas do que

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raças humanas. Além disso, duas culturaselaboradas por homens pertencentes à mesma raçapodem diferir tanto, ou mais, que duas culturasprovenientes de grupos radicalmente afastados.

Ao comentar o alcance e a validade da noção decultura, reconhece que existem culturas diferentes noseio da civilização ocidental. Segundo ele,“denominamos cultura todo o conjunto etnográficoque, do ponto de vista da investigação, apresenta,com relação a outros, afastamentos significativos. Sese procura determinar afastamentos significativosentre a América do Norte e a Europa, tratar-se-ão asduas como culturas diferentes; mas, supondo que ointeresse tenha por objeto afastamentossignificativos entre – digamos – Paris e Marselha,estes dois conjuntos urbanos poderão serprovisoriamente constituídos como duas unidadesculturais. O objeto último das pesquisas estruturaissendo as constantes ligadas a tais afastamentos, vê-se que à noção de cultura pode corresponder umarealidade objetiva, apesar de permanecer função dotipo de pesquisa considerado. Uma mesma coleçãode indivíduos, contanto que seja objetivamente dadano tempo e no espaço, depende simultaneamente devários sistemas de cultura: universal, continental,nacional, provincial, local etc.; e familiar, profissional,confessional, político etc.” (2003: 335).

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3.3. Organização dualistaDesigna-se com o nome de organização dualista

um tipo de estrutura social encontrado na América,Ásia e Oceania, caracterizada pela divisão do gruposocial – tribo, clã ou aldeia – em duas metades cujosmembros mantêm, uns com os outros, relações quepodem ir da colaboração mais íntima à hostilidadelatente, e associando geralmente ambos os tipos decomportamento. A questão é saber onde começa eonde acaba a organização dualista.

Lévi-Strauss (2003: 24, 25) diz que é precisoconstatar, de um lado, que as funções atribuídas àorganização dualista não coincidem; e, por outrolado, que a história de cada grupo social mostra quea divisão em metades procede das origens maisdiversas. Assim, a organização dualista poderesultar, segundo o caso: a) da invasão de umapopulação por um grupo de imigrantes; b) da fusãode dois grupos territorialmente vizinhos; c) dacristalização, sob forma de instituição, de regrasempíricas destinadas a assegurar as trocasmatrimoniais no seio de determinado grupo; d) alémde outras hipóteses que podem ser consideradas.Segundo ele, com essa abordagem a antropologia éconduzida a despedaçar a noção de organizaçãosocial dualista.

Na maioria dos povos primitivos, diz Lévi-Strauss (2003: 29), é muito difícil obter uma

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justificação moral, ou uma explicação racional, de umcostume ou de uma instituição: o indígenainterrogado se contenta em responder que as coisasforam sempre assim, que tal foi a ordem dos deuses,ou os ensinamentos dos ancestrais. Mesmo quandose encontram interpretações, estas têm sempre ocaráter de racionalizações ou elaboraçõessecundárias. As razões inconscientes pelas quais sepratica um costume ou uma crença estão bastanteafastadas das razões que se invocam para justificá-lo. Mesmo em nossa sociedade, as maneiras à mesa,os usos sociais, as regras do vestuário e muitasatitudes morais, políticas e religiosas são observadasescrupulosamente por cada um sem que sua origem efunção reais tenham sido objeto de um examerefletido. As pessoas agem e pensam por hábito, e aresistência espantosa oposta às derrogações provémmais da inércia do que de uma vontade consciente demanter costumes dos quais se compreenderia arazão.

Assim, para Lévi-Strauss, a atividadeinconsciente do espírito consiste em impor formas aum conteúdo, e se as formas são fundamentalmenteas mesmas para todos os espíritos, antigos emodernos, primitivos e civilizados – como o estudoda função simbólica, tal como se exprime nalinguagem, o mostra de maneira tão notável –, épreciso atingir a estrutura inconsciente – subjacente

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a cada instituição ou a cada costume –, para obterum princípio de interpretação válido para outrasinstituições e outros costumes.

Como chegar a essa estrutura do inconsciente?É aqui, segundo Lévi-Strauss (2003: 38), que ométodo etnológico e o método linguístico seencontram. Para compreender essa situação, énecessário retomar o problema da organizaçãodualista. Se o antropólogo não quer ver naorganização dualista nem um estágio universal dodesenvolvimento da sociedade, nem um sistemainventado num único lugar e num único momento; ese, ao mesmo tempo, sente fortemente o que todas asinstituições dualistas têm em comum, resta analisarcada sociedade dualista, para encontrar, por detrásdo caos das regras e costumes, um esquema únicoagindo nos contextos locais e temporais diferentes.Esse esquema se reduz a algumas relações decorrelação e oposição, sem dúvida inconscientes,mesmo para os povos de organização dualista, masque, porque inconscientes, devem estar igualmentepresentes entre aqueles que jamais conhecerem essainstituição.

Prossegue afirmando que na análise dasinstituições e costumes dos povos primitivos, aobservação histórica permite distinguir alguma coisaque se conserva, que são os elementos estruturais.No caso da organização dualista, esses elementos,

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segundo ele, parecem ser em número de três: a)exigência da regra; b) noção de reciprocidade,considerada como uma forma que permite integrarimediatamente a oposição do eu e do outro; e c)caráter sintético do dom. Conclui que esses fatoresse encontram em todas as sociedades consideradas,e explicam práticas e costumes menos diferenciados,mas dos quais se vê assim que, mesmo nos povossem organização dualista, correspondem à mesmafunção que esta.

Assim, a etnologia não pode permanecerindiferente aos processos históricos e às expressõesmais altamente conscientes dos fenômenos sociais.Sua finalidade é atingir, além da imagem consciente esempre diferente que os homens formam de seudevir, um inventário de possibilidades inconscientes,que não existem em número ilimitado e cujorepertório e as relações de compatibilidade ouincompatibilidade que cada uma mantém com todasas outras fornecem uma arquitetura lógica edesenvolvimentos históricos que podem serimprevisíveis, sem nunca ser arbitrários. Nessesentido, a célebre fórmula de Marx –: “Os homensfazem sua própria história, mas não sabem que afazem” – justifica, em seu primeiro termo, a história, e,em seu segundo termo, a etnologia. Ao mesmotempo, ela mostra que os dois procedimentos sãoindissociáveis (LÉVI-STRAUSS, 2003: 39).

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4. ESTRUTURALISMO E DIREITOVárias teorias jurídicas usam as noções de

sistema e estrutura e, por essa razão, sãoclassificadas como estruturalismo jurídico. Oenfoque estruturalista, porém, aparece maisassociado ao positivismo jurídico, cujos principaisexpoentes são Hans Kelsen (Teoria pura do direito )e Norberto Bobbio (Teoria do ordenamentojurídico). Na obra desses dois autores as noções desistema e estrutura assumem posição de destaque.

Para o estruturalismo jurídico o direito é umsistema. O sistema jurídico é um todo, ou seja, umordenamento composto de estrutura e de repertório.O repertório é o conjunto dos elementos (normasjurídicas) do sistema. A estrutura é o conjunto deregras que demonstra as relações existentes entre oselementos do sistema. Diz-se, por isso, que oselementos do sistema jurídico (as normas jurídicas)não desfrutam de autonomia, porque cada normajurídica depende de sua integração e inserção aotodo sistemático.

De acordo com essa orientação teórica, osistema jurídico é, fundamentalmente, um conjuntode normas jurídicas válidas, dispostas numaestrutura hierarquizada. Norma jurídica válida éaquela emanada de uma autoridade que possuicompetência para editar normas. A competência daautoridade é determinada pelas próprias normas

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jurídicas. Hierarquia é um conjunto de relaçõesestabelecidas conforme regras de subordinação ecoordenação. Essas regras não são normas jurídicas,isto é, não fazem parte do repertório, mas daestrutura do sistema. São regras estruturais: a) oprincípio da lei superior: regra segundo a qual anorma que dispõe formal e materialmente sobre aedição de outras normas prevalece sobre estas; b) oprincípio da lei posterior: regra segundo a qual,havendo normas contraditórias, desde que domesmo nível hierárquico, prevalece a que no tempoapareceu por último; c) o princípio da lei especial:regra segundo a qual a norma especial revoga a geralno que dispõe especificamente.

Para o positivismo jurídico, é preciso supor queas normas do ordenamento jurídico estão dispostasnuma ordem sistemática. O sentido de uma normanão está, portanto, somente nos termos queexpressam sua articulação sintática, mas também emsua relação com outras normas do ordenamento. Emoutras palavras, entende-se que o direito é compostopelo conjunto organizado de regras diretoras(denominadas princípios) que presidem o sistema eregras simples que perfazem o todo sistemático. Odireito, portanto, caracteriza-se pela disposiçãoorganizada e hierárquica de princípios e normas.

4.1. Estrutura e hierarquia

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O positivismo jurídico concebe o ordenamentojurídico como uma estrutura escalonada de normas.A imagem da pirâmide ajuda a compreender essaconcepção: no ápice da pirâmide normativa estariamsituadas as normas superiores, tidas comofundamento de validade das normas imediatamenteinferiores, e assim sucessivamente até a base na qualestariam as normas mais inferiores. Com esse escopopode-se dizer que no texto constitucional brasileiroestão as normas jurídicas do mais alto grau. Issoporque a Constituição Federal é o marco inicial detodo o direito do Estado. Ela é a primeira lei posta, aprimeira lei do Estado, motivo pelo qual adquireposição fundamental porque funda a ordem jurídica eadquire posição suprema; porque as normasconstitucionais sobrepõem-se a todas as demais queintegram o ordenamento jurídico.

As normas constitucionais, além de orientar aatividade interpretativa do profissional do direito,orientam a produção e aplicação das normas pelosórgãos jurisdicionais (Legislativo e Judiciário). Dessemodo, a validade da norma só pode ser julgada porsua relação com outras normas; isto é, as normasjurídicas encontram sempre seu fundamento devalidade em outras normas que lhe são superiores.As normas que fundamentam outras normas ganhamuma posição de superioridade, de preeminência,visto que as normas subordinadas não podem

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contrariar as normas de hierarquia superior.Alguns teóricos entendem que é possível

estabelecer uma hierarquia entre as normasconstitucionais; isto é, as normas que compõem otexto constitucional não possuem todas a mesmarelevância. Algumas veiculam simples regras, outrassão verdadeiros princípios. Entende que o sistema éum conjunto de normas inter-relacionadas em tornode princípios fundamentais que fecham o sistemacomo um todo unitário. Assim, os princípiosassumem o sentido de elementos principais efundamentais do sistema, razão pela qual sãoconsiderados normas com âmbito de abrangênciamais amplo que vinculam as demais normas douniverso sistemático.

Nessa trajetória, o intérprete, ao examinar osistema normativo, deve, em primeiro lugar,identificar os princípios e, a partir deles, caminhar emdireção às normas jurídicas inferiores. A norma quese apresenta vaga e ambígua deve ser interpretada eaplicada em sintonia com os princípios que aConstituição acolhe. Os princípios constitucionais,por serem normas qualificadas, são consideradosvetores para soluções interpretativas.

Esse modelo, segundo os seus teóricos, podeser aplicado no estudo e compreensão do direito dequalquer sociedade politicamente organizada.

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XVII CLAUDELÉVI-STRAUSS (1908-2009)

1. SÍMBOLO E SOCIEDADELévi-Strauss entende que a vida social é troca e

que a sociedade é mais bem compreendida seconsiderada como linguagem do que a partir dequalquer outro paradigma. Nessa trilha, desenvolveduas teses que inovam o pensamento antropológico:a) primeira: o parentesco é fundamentalmente trocade mulheres entre os homens; b) segunda: dos doiscomponentes do parentesco, a aliança e adescendência, é a aliança que fornece as chaves paracolocar ordem na diversidade dos sistemas deparentesco, dos mais elementares aos maiscomplexos (GODELIER, 2001: 32, 33).

Para Lévi-Strauss, a vida social constitui umfenômeno que implica um movimento de trocasperpétuas através do qual as palavras, os bens, asmulheres circulam entre os indivíduos e entre os

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grupos. A sociedade, portanto, funda-se sobre atroca e só existe através da combinação de todos ostipos de troca: a) de mulheres: parentesco; b) debens: economia; c) de palavras e de representações:cultura. Assim, propõe uma explicação do conjuntodos fatos sociais que faz do social uma combinaçãode formas de troca, cuja origem profunda deve serbuscada nas estruturas inconscientes do espírito, emsua capacidade de simbolizar.

1.1. Linguística e antropologiaLévi-Strauss (2003: 45 a 55) entende que, no

conjunto das ciências sociais, a linguística ocupa umlugar excepcional em virtude dos progressos querealizou. Para ele a linguística não é uma ciênciasocial como as outras, mas a única que podereivindicar o nome de ciência e que chegou, aomesmo tempo, a formular um método positivo e aconhecer a natureza dos fatos submetidos à suaanálise. A linguística, em especial a fonologia, devedesempenhar, perante as ciências sociais, o mesmopapel renovador que a física nuclear desempenhouno conjunto das ciências exatas.

É possível, segundo Lévi-Strauss, antever essarenovação na pesquisa de N. Trubetzkoy, quandoeste reduz o método fonológico a quatroprocedimentos fundamentais: a) a fonologia passado estudo dos fenômenos linguísticos conscientes

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ao estudo de sua infraestrutura inconsciente; b) afonologia se recusa a tratar os termos comoentidades independentes, tomando, ao contrário,como base de sua análise as relações entre ostermos; c) a fonologia introduz a noção de sistema,mas não se limita a declarar que os fonemas sãosempre membros de um sistema; ela mostra sistemasfonológicos concretos e torna patente sua estrutura;d) a fonologia visa à descoberta de leis gerais,encontradas por indução ou deduzidas logicamente,o que lhes dá um caráter absoluto.

Esses procedimentos, segundo Lévi-Strauss,revelam uma descoberta de tal importância que épreciso verificar suas consequências e sua aplicaçãopossível a fatos de outra ordem. No estudo dosproblemas de parentesco, por exemplo, oantropólogo se vê numa situação semelhante à dofonólogo: a) como os fonemas, os termos deparentesco são elementos de significação e sóadquirem essa significação sob a condição de seintegrarem em sistemas; b) os “sistemas deparentesco”, tal como os “sistemas fonológicos”,são elaborados pelo espírito no estágio dopensamento inconsciente; c) a recorrência, emregiões afastadas do mundo e em sociedadesprofundamente diferentes, de formas de parentesco,regras de casamento, atitudes identicamenteprescritas entre certos tipos de parentes faz crer que,

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em ambos os casos, os fenômenos observáveisresultam do jogo de leis gerais ocultas. O problemapode então se formular da seguinte maneira: numaoutra ordem de realidade, os fenômenos deparentesco são fenômenos do mesmo tipo que osfenômenos linguísticos. .

Há, entretanto, como anota Lévi-Strauss, umadiferença profunda entre o quadro dos fonemas deuma língua e o quadro dos termos de parentesco deuma sociedade. No primeiro caso, não há dúvidaquanto à função: todos sabem que uma linguagemserve para a comunicação. O que o linguista ignoroudurante muito tempo e que somente a fonologia lhepermitiu descobrir é o meio pelo qual a linguagemchega a esse resultado. A função era evidente, mas osistema permanecia desconhecido. A esse respeito, oantropólogo se encontra em situação inversa: todossabem, desde Lewis Morgan, que os termos deparentesco constituem sistemas, mas ignoram paraque uso se destina. O desconhecimento dessasituação inicial reduz a maior parte das análisesestruturais de sistemas de parentesco a merastautologias. Elas demonstram o que é evidente, enegligenciam o que permanece desconhecido ouoculto.

Para Lévi-Strauss, o que se denomina “sistemade parentesco” recobre duas ordens diferentes derealidade: a) sistema terminológico: é o sistema de

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vocabulário, nomenclatura ou termos pelos quais seexprimem os diferentes tipos de relações familiares;b ) sistema de atitudes: significa que o parentesconão se exprime unicamente numa nomenclatura; osindivíduos, ou as classes de indivíduos que utilizamos termos, sentem-se (ou não se sentem, conforme ocaso) obrigados uns em relação aos outros a umaconduta determinada: respeito ou familiaridade,direito ou dever, afeição ou hostilidade. Pode-sedizer que o papel representado pelos sistemas deatitudes é o de assegurar a coesão e o equilíbrio dogrupo, mas a antropologia ainda não compreendeu anatureza das conexões existentes entre as diversasatitudes, e não percebeu sua necessidade.

En t re sistemas terminológicos e sistemas deatitudes há, conforme Lévi-Strauss, uma diferençaprofunda, visto que o sistema de atitudes não éapenas a expressão ou a tradução no plano afetivodo sistema terminológico. Ademais, segundo ele, énecessário sempre distinguir entre dois tipos deatitudes: a) as atitudes difusas: são atitudes nãocristalizadas e desprovidas de caráter institucional;pode-se admitir que, no plano psicológico, são merosreflexos da terminologia; e b) as atitudes estilizadas:são atitudes obrigatórias, sancionadas por tabus ouprivilégios, e que se exprimem através de cerimonialfixo. Longe de refletir automaticamente anomenclatura, essas atitudes aparecem

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frequentemente como elaborações secundáriasdestinadas a resolver contradições e superarinsuficiências inerentes ao sistema terminológico.

Isso, entretanto, não quer dizer que não existauma interdependência entre o sistema terminológicoe o sistema de atitudes, mas essa relação deinterdependência não é uma correspondência termo atermo. Para Lévi-Strauss, o sistema de atitudesconstitui antes uma integração dinâmica do sistematerminológico. Há, assim, uma relação funcional entreos dois sistemas, porém, por razões de método, épossível tratar os problemas aferentes a cada umcomo problemas separados.

1.2. Linguagem e culturaAo investigar as relações entre linguagem e

cultura, Lévi-Strauss (2003: 86 a 89) observa que acivilização europeia trata a linguagem de maneira quepode ser qualificada de imoderada: fala-se demais.Essa maneira de abusar da linguagem não éuniversal; nem mesmo frequente. A maior parte dasculturas primitivas usa a linguagem com parcimônia;não se fala quando se quer e sem motivo. Asmanifestações verbais são aí frequentementelimitadas a circunstâncias prescritas, fora das quaisse poupam as palavras.

Lévi-Strauss reconhece que o problema dasrelações entre linguagem e cultura é um dos mais

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complicados que existem. Pode-se, inicialmente,tratar a linguagem como um produto da cultura: umalíngua reflete a cultura geral da população. Mas numoutro sentido, a linguagem é uma parte da cultura;constitui um de seus elementos, dentre outros. Pode-se também tratar a linguagem como condição dacultura, e por duplo motivo: a) primeiro: porque é,sobretudo, através da linguagem que o indivíduoadquire a cultura de seu grupo; instrui-se, educa acriança pela palavra; ralha com ela, lisonjeia-a compalavras; b) segundo: porque a cultura possui umaarquitetura similar à da linguagem.

Nas relações entre linguagem e cultura sempreaparece essa questão: é a língua que exerce uma açãosobre a cultura ou, ao invés, é a cultura que exerceação sobre a língua? Não se pode esquecer, diz Lévi-Strauss, que língua e cultura são duas modalidadesparalelas de uma atividade mais fundamental: oespírito humano. É possível afirmar que deve existirqualquer relação entre linguagem e cultura. Ambaslevaram vários milênios para se desenvolver, e essaevolução se desenrolou paralelamente nos espíritosdos homens.

Para definir convenientemente as relações entrelinguagem e cultura, Lévi-Strauss entende que énecessário excluir de início duas hipóteses: a)primeira: não pode haver nenhuma relação entrelinguagem e cultura; b) segunda: existe uma

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correlação total em todos os níveis entre linguagem ecultura. É preciso, pois, considerar uma hipótese queimplique uma posição média: certas correlações sãoprovavelmente reveláveis entre certos aspectos ecertos níveis; é preciso encontrar esses aspectos.Mas a principal beneficiária dessas descobertas nãoseria nem a linguística, nem a antropologia tal como éconcebida atualmente; essas descobertas seriamaproveitáveis para uma ciência ao mesmo tempomuito antiga e muito nova, uma antropologiaentendida em sentido mais lato, ou seja, umconhecimento do homem que associe diversosmétodos e diversas disciplinas, e que poderá revelarum dia as molas secretas que movem esse hóspede,presente sem ser convidado aos nossos debates: oespírito humano.

2. SOCIEDADES PRIMITIVASPara que serve o estudo das sociedades

primitivas? Segundo Lévi-Strauss (1993: 35, 36), esseestudo não visa revelar o primitivo por trás docivilizado. Mas, na medida em que essas sociedadesoferecem ao homem uma imagem de sua vida socialem redução (pequeno efetivo demográfico) e emequilíbrio (ausência de classes sociais e repúdio dahistória), elas constituem casos privilegiados; nodomínio dos fatos sociais, permitem perceber omodelo por trás da realidade, ou, mais precisamente,

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construir com menos esforços o modelo a partir darealidade. Também é preciso admitir que a razão finaldesse estudo não é saber o que são, em si mesmas,as sociedades estudadas, mas sim descobrir em quese distinguem umas das outras.

Para Lévi-Strauss, as sociedades primitivasestão na história; o seu passado é tão antigo quantoo das sociedades complexas, uma vez que eleremonta às origens da espécie. No decorrer demilênios, elas passaram por todo tipo detransformações, atravessaram períodos de crise e deprosperidade; conheceram guerras, migrações,aventuras. Mas essas sociedades especializaram-seem setores diferentes daqueles que as sociedadescomplexas escolheram.

Indubitavelmente, as sociedades primitivasestão inseridas na história, mas, parece, conformeconstata Lévi-Strauss, que elas elaboraram e retêmuma sabedoria particular que as incitadesesperadamente a resistir a qualquer modificaçãoem sua estrutura, que permitiria à história irromper emseu seio. Essa sabedoria, segundo Lévi-Strauss,trilha três caminhos: a) primeiro: a maneira como elasexploram o meio garante, ao mesmo tempo, um nívelde vida modesto e a proteção dos recursos naturais;b ) segundo: apesar de sua diversidade, as regras decasamento que aplicam apresentam um carátercomum, qual seja o de limitar ao extremo e de manter

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a taxa de natalidade em nível constante; c) terceiro:uma vida política baseada no consentimento, e nãoadmitindo outras decisões senão as tomadas porunanimidade, parece ter sido concebida para excluir ouso desse motor da vida coletiva que utiliza osdesvios diferenciais entre poder e oposição, maioriae minoria, exploradores e explorados.

Essas sociedades, conforme terminologiaadotada por Lévi-Strauss, podem ser chamadas de“frias”, porque o seu meio interno está próximo dozero de temperatura histórica, distinguem-se, por seuefetivo restrito e por seu modo mecânico defuncionamento, das sociedades “quentes”aparecidas em diversos pontos do mundo após arevolução neolítica, e em que diferenciações entrecastas e classes são solicitadas sem tréguas, comofonte de porvir e energia. O alcance dessa distinçãoé, sobretudo, teórico, pois não há provavelmentenenhuma sociedade concreta que, em sua totalidadee em cada uma de suas partes, correspondaexatamente a um ou outro tipo.

A antropologia social obedece, portanto, a umadupla movimentação: a) retrospectiva, pois osgêneros de vida primitivos estão em vias dedesaparecimento, motivo pelo qual é necessáriorecolher o mais rápido possível todas as lições queessas sociedades podem oferecer; e b) prospectiva,na medida em que, tomando consciência de uma

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evolução cujo ritmo se precipita, sentimo-nos desdejá os “primitivos” das gerações futuras, e na medidaem que procuramos provar nossa validadeaproximando-nos daqueles que foram – e ainda são,por pouco tempo – tais como uma parte de nóspersiste em permanecer.

Quando, após as grandes revoluções neolíticas,as grandes cidades-estados não apenas doMediterrâneo, mas também do Extremo Oriente,impuseram a escravidão, construíram um tipo desociedade (sociedade quente) em que os desviosdiferenciais entre os homens – alguns dominadores;outros dominados – podiam ser utilizados paraproduzir cultura, num ritmo até então inconcebível.Desde então alguns homens procuram libertar ahumanidade dessa maldição milenar, que a obriga aescravizar para que haja progresso.

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XVIII NOVAANTROPOLOGIAAMERICANA

1. CLIFFORD GEERTZ (1926 – 2006)Adam Kuper relata que em 1973 Talcott Parsons

elegeu Clifford Geertz e David Schneider como osantropólogos mais promissores da novaantropologia americana, mas, enquanto Geertz viria ase tornar o antropólogo do establishment, Schneiderpermaneceria sempre um encrenqueiroindisciplinado. A exposição que se apresenta nasequência sobre a noção de cultura proposta poresses dois antropólogos tem como referência aanálise de Adam Kuper em seu livro Cultura: a visãodos antropólogos.

Geertz entende que é necessário dar umadimensão menor ao conceito de cultura paraassegurar, dessa forma, a sua importânciapermanente em vez de enfraquecê-la. Nesse sentido,elabora um conceito estrito, para substituir oconceito amplo elaborado por Tylor e amplamenteaceito pelos antropólogos. O novo conceito de

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cultura tem uma finalidade: é elaborado para seraplicado à análise de casos específicos.

Com esse intento, Geertz apresenta as seguintesdefinições para o conceito de cultura: a) trata-se deum sistema ordenado de significados e símbolos, emcujos termos os indivíduos definem seu mundo,revelam seus achados e fazem seus julgamentos; b) éu m padrão de significados, transmitidoshistoricamente, incorporados em formas simbólicaspor meio das quais os indivíduos comunicam-se,perpetuam-se, desenvolvem seu conhecimento sobrea vida e definem sua atitude em relação a ela; c) é umconjunto de dispositivos simbólicos para o controledo comportamento. Enfim, cultura é um domínio decomunicação simbólica e compreender culturasignifica interpretar os símbolos.

Cultura é um sistema simbólico, portanto, osprocessos culturais devem ser lidos, traduzidos einterpretados. Geertz acredita que o homem é umanimal suspenso por teias de significado que elemesmo teceu. Cultura consiste nessas teias designificados, e sua análise não é uma ciênciaexperimental em busca de leis, mas sim uma ciênciainterpretativa em busca de significados.

Segundo Geertz, as proposições culturaissimbólicas fazem mais do que articular como é omundo; elas também oferecem diretrizes sobre comoagir nele. As proposições culturais fornecem tanto o

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modelo do que elas asseguram representar arealidade como os padrões de comportamento, e écomo um guia de comportamento que elas entram naação social. É essencial, portanto, distinguir entre osaspectos culturais e sociais da vida humana e tratá-los como variáveis independentes, porém fatoresmutuamente interdependentes.

Cultura é o tecido do significado, em cujostermos os seres humanos interpretam sua experiênciae orientam sua ação; estrutura social é a forma que aação assume, a rede de relações sociais querealmente existe. Cultura e estrutura social são,portanto, abstrações distintas do mesmo fenômeno.Geertz elege a religião como a característica principalda cultura e tenta descrever o efeito das concepçõese práticas religiosas sobre determinados processospolíticos, sociais e econômicos.

1.1. Cultura e religiãoGeertz, como visto, define cultura como um

sistema simbólico que fornece tanto um relato domundo como um conjunto de regras para atuar nele.A religião faz o mesmo, mas de forma ainda maiseficiente, descrevendo um cosmo e prescrevendoregras morais. A religião é, assim, uma expressãoelevada da cultura. A religião, portanto, deve sertratada como um sistema cultural, mas deve sertambém reconhecida como um aspecto privilegiado

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da cultura, a cultura elevada a seu ponto mais alto,em seu cerne um agrupamento de símbolos sagrados,urdidos em algum tipo de todo ordenado.

Assim como as culturas, as religiões possuemum caráter dual, porque nos informa o que o mundo ée como devemos agir nele. Os símbolos religiososasseguram que o mundo é ordenado e, porconseguinte, satisfazem uma necessidadefundamental que consiste em escapar dos acasos deum universo absurdo e irracional. Há, ainda queoculto, um significado na perda, no sofrimento, nainjustiça e na morte. Em suma, símbolos religiosos sópodem funcionar dessa forma na medida em que sãoaceitos e absorvidos. A essência da ação religiosaconsiste em impor autoridade sobre um complexo desímbolos, a metafísica que eles formulam e o estilo devida que eles recomendam. Essa é a tarefa do ritual,que ao mesmo tempo apresenta simbolicamente umaimagem de ordem cósmica – uma visão de mundo – einduz predisposições e motivações. O ritual,portanto, funde uma imagem do mundo, um etos eum modelo de comportamento.

1.2. Cultura e ideologiaPara Geertz, em sistemas em equilíbrio, a religião,

a estrutura social, as emoções e as formasconvencionais de ação mesclam-se e reforçam-seentre si. Mas, em períodos de mudança social, os

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símbolos sagrados não podem mais expressar comtanta clareza as realidades sociais. As divisõessociais e políticas podem subverter a intenção doritual, que é a de assegurar que o mundo é ordenadoe que a comunidade está unida. Interessesparticulares insurgem contra interesse nacional e setransformam na base de conflitos políticos.

Geertz, ao refletir sobre os novos Estados quecomeçam a se formar após o processo dedescolonização nas décadas de 1950 e 1960, entendeque esses Estados exigem um líder carismático(weberiano) que possa conceber um novo modelo delegitimidade: uma ideologia, porque esta possui amaioria das características da religião. Assim comouma religião, uma ideologia tem de ser compreendidaculturalmente como um sistema simbólico e,portanto, como uma forma de arte. A ideologia,segundo Geertz, cria novas formas simbólicas eoferece mapas da realidade social problemática;também oferece matrizes para a criação de umaconsciência coletiva.

A ideologia é, assim, uma forma de religiãoadequada a épocas conturbadas e a umamodernidade desencantada. O fenômeno ideológicocaracteriza as sociedades que estão passando pormudanças dolorosas. Lutando para institucionalizarnovas formas de fazer as coisas, os líderes dessesnovos Estados criam símbolos unificadores e

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inventam rituais nacionais. A ideologia sozinha, dizGeertz, não resolve os problemas, mas constitui umingrediente necessário em qualquer solução.

O mundo moderno, segundo Geertz, estádesencantado. A secularização corrói as crençasestabelecidas, e a religião perde seu monopólio comoestrutura para a cosmologia e a moralidade. Umafonte alternativa de significado é o bom-senso,entendido como uma sabedoria prática. Isso é assimporque, na maior parte do tempo, os homens vivemno mundo cotidiano e veem a experiência em termospráticos, realistas. Todavia, embora o bom-sensopossa ser um instrumento necessário para atuar nomercado, lidar com a polícia ou com um vizinho, elenão pode ter a pretensão de responder às grandesquestões filosóficas ou de interferir em assuntos deprincípios morais. Esse é um domínio da religião.Mas com a modernização vem a secularização,trazendo em seu bojo um desafio direto à visãoreligiosa do mundo. O bom-senso, juntamente com aciência, cria a necessidade de algo mais e tambémoferece os materiais para a construção de umaalternativa secular à religião, uma ideologia. Asideologias, portanto, representam modernossubstitutos da religião.

Para Geertz, as crenças ortodoxas não são maistidas como certas, e os clássicos símbolos da religiãojá não são bastante para sustentar uma fé religiosa

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adequada. Esse é um fenômeno disseminado. Asecularização do pensamento implica a ideologizaçãoda religião. Talvez isso explique a expansão que osdiversos fundamentalismos religiosos vêmalcançando nas últimas décadas.

1.3. O métodoGeertz estabelece o método como tema do seu

ensaio mais influente intitulado Descrição densa: poruma teoria interpretativa da cultura. O pressupostomais importante afirma que os dados relevantes daetnografia não são sintetizados a partir de dadosbrutos. As ações das pessoas são levadas emconsideração e processadas através do filtro dainterpretação. Ações são artefatos, sinais cujopropósito é transmitir significados. O etnógrafo sepreocupa, portanto, não tanto com o que as pessoasfazem, mas com o significado do que elas fazem ecom as interpretações que fazem das ações umas dasoutras. A tarefa do etnólogo é explicar explicações,seus instrumentos, interpretações deinterpretações.

No lugar do participante/observador, queaprende a viver em outra sociedade e desejadescobrir como as coisas realmente funcionam,Geertz propõe que o etnógrafo deve proceder damesma forma que um estudioso de textos. Fazeretnografia, diz ele, é como tentar ler, ou melhor,

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interpretar um manuscrito cheio de elipses,incoerências, correções suspeitas e comentáriostendenciosos, porém escrito não com os sinaisconvencionais de som, mas com exemplostransitórios de comportamento comum. Seu exercíciomais famoso nesse gênero é a representação dasbrigas de galo balinesas como um textointerpretado.

1.4. Brigas de galoAo analisar as brigas de galo, Geertz começa

pela noção de jogo profundo. Essa noção advém dasreflexões do filósofo Jeremy Bentham sobre airracionalidade do jogo. Bentham, na linha utilitarista,achava que o jogo com apostas era irracional, econcluiu que as pessoas de mente fraca deveriam serprotegidas contra ele. Geertz sustenta que quando osbalineses se entregam ao que Bentham chama dejogo profundo, fazendo apostas altas, eles estãoexpressando valores comuns que transcendem oscálculos mais elevados de ganhos e perdas materiais.O que estava em jogo nas brigas de galo não eraapenas dinheiro, mas status. Vale dizer, o que a brigade galo expõe de forma mais contundente são asrelações de status, e o que ela revela é que essasrelações são uma questão de vida ou morte.

Os donos dos galos de briga, seus parentes evizinhos fazem apostas altas, mas o dinheiro é

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secundário. Participar dessas disputas representaexpor o próprio self em público. O galo representaseu dono e as pessoas ligadas a ele.Consequentemente é o status que está em jogo. Aanálise de Bentham de jogo profundo fracassaporque ele considera apenas as apostas utilitáriasmundanas. O que dá significado mais profundo àsbrigas de galo balinesas não é o dinheiro em si, maso que elas geram: a migração da hierarquia de statusbalinesa para o cenário da briga de galo, e, quantomais dinheiro estiver envolvido, maior essa migração.

Nessa conjuntura, o que interessa, segundoGeertz, é a interpretação que a plateia dá a toda acena. Sua função é interpretativa: trata-se de umaleitura balinesa da experiência balinesa, uma históriaque eles contam sobre si mesmos. Todo povo amasua própria violência. A briga de galo é a reflexãobalinesa sobre a sua violência.

Geertz retrata uma sociedade cuja vida real égovernada por ideias, expressada por meios desímbolos e representada em rituais. O etnólogo sóprecisa ler os rituais e interpretá-los. Não há nadafora do texto e, se os textos não falarem de política eeconomia, então esses assuntos podem serignorados. Nos seus últimos trabalhos, a noção decultura assumiu um significado de valores quepredominam numa sociedade, incorporados de formamais perfeita nos rituais religiosos e na alta arte da

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elite. Essa mudança mereceu algumas críticas.Alguns afirmam que ele abandonou o verdadeirocaminho quando deixou de se preocupar com históriasocial, mudança econômica e revolução política ecomeçou a tratar a cultura como força motriz dosassuntos humanos e, no final, como um campo deestudo autossuficiente.

De qualquer modo, os antropólogos reconhecemque Geertz introduziu na antropologia umaabordagem hermenêutica sofisticada baseada nainterpretação de textos. Essa interpretação possui aforça de revelar os processos criativos e poéticospelos quais objetos culturais são inventados etratados como significativos. Nesse sentido, aetnografia é tida como um processo de interpretaçãoe não de explicação.

2. DAVID SCHNEIDER (1918 – 1995)Schneider apresenta como tema principal de

seus estudos a análise dos sistemas de parentescoem termos estritamente culturais. Seu trabalho maiscomentado (American Kinship: a Cultural Account)versa sobre o parentesco americano, em que procuraestabelecer algumas teses polêmicas, tais como: a) oato sexual é um símbolo; b) o amor é uma convenção;c) parentesco não é natural, é cultural; d) existeapenas um único sistema de parentesco americano,portanto, uma única cultura americana.

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O parentesco sempre foi tido como o campo emque a antropologia (cultural ou social) podia afirmarter registrado avanços concretos. A antropologiasempre se fundamentou na certeza de que oparentesco constituía a base dos sistemas sociaisprimitivos, portanto, reivindicava como sua a teoriasociológica do parentesco. Schneider realiza umesforço de desconstrução dessa tese ao pretenderprovar que a teoria do parentesco está fundamentadanuma ilusão etnocêntrica, que seus conceitosbásicos – família, descendência, genealogias – sãocriações culturalmente específicas dos europeus edos norte-americanos. Assim, segundo ele, quandoos antropólogos escrevem sobre o parentesco, estãosimplesmente projetando suas próprias obsessõesculturais em outras pessoas.

2.1. Parentesco e culturaSchneider tem por objetivo oferecer uma visão

cultural do parentesco, segundo um sistema desímbolos que representa o parentesco americano.Para isso considera o sistema de símbolos comoautônomo e independente. Por símbolo, diz ele,refiro-me a alguma coisa que representa algo mais,em que não existe uma relação necessária ouintrínseca entre o símbolo e aquilo que ele simboliza.

Segundo Schneider, não apenas os símbolos sãoarbitrários, mas os próprios referentes. As coisas ou

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ideias que eles representam são constructosculturais, portanto, pode ser que não tenha nenhumarealidade objetiva. Como exemplo cita a ideia defantasma. Os informantes podem ter todos os tiposde noções fantásticas sobre fantasmas, mas oetnógrafo não tem meios de saber se eles existem ounão. “Uma vez que é perfeitamente possível formularo constructo cultural de fantasma sem na verdadejamais ter visto sequer um único exemplar, essadeveria ser uma verdade universal e sem referência àobservabilidade ou não de objetos que podemsupostamente referir-se aos constructos culturais.”

Nessa linha de raciocínio, os símbolos deparentesco deveriam ser tratados como se fossemarbitrários. Assim como um símbolo religioso podereferir-se a fantasma, os símbolos de parentescodenotam ideias construídas culturalmente. E, no casodo parentesco americano, para Schneider, o símbolodominante é o ato sexual. “O fato da natureza sobreo qual o constructo cultural da família se fundamentaé o ato sexual. Essa figura fornece todos os símboloscentrais do parentesco americano.”

Para Schneider, a relação sexual entre marido emulher não é apenas um ato que defineespecificamente a relação conjugal, mas constituitambém um sinal de amor. Os pais compartilham umasubstância comum com os filhos, a qual gera outrotipo de amor, o amor de parentes consanguíneos.

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Existem, portanto, dois tipos diferentes de amor, oconjugal e o cognático. O amor erótico estárelacionado com o casamento; o amor cognático,com laços de sangue. O “amor conjugal é erótico,sendo que o ato sexual representa sua encarnaçãoconcreta”. O amor cognático não tem nada deerótico, mas também é simbolizado pelo ato sexual. Éo símbolo do amor que liga o amor conjugal ao amorcognático e relaciona ambos através do símbolo doato sexual.

“O ato sexual é amor e constitui um sinal deamor, e amor representa o ato sexual e é um sinaldele. Os dois tipos diferentes de amor, conjugal ecognático, o primeiro erótico e o outro não, noentanto, são símbolos de união: ser um só, estarjunto, pertencer um ao outro”. “Amor pode sertraduzido livremente como solidariedade difusa eduradoura.”

2.2. Natureza e culturaPara Schneider, os americanos constroem uma

oposição entre natureza e cultura, mas valorizam maisa cultura do que a natureza. A natureza tem algumascaracterísticas boas e outras perigosas, até mesmonocivas, motivo pelo qual deve ser mantida sobcontrole moral e cultural. Os seres humanos são umamistura de natureza e cultura, mas é sua identidadecultural que os torna humanos. A moralidade doma o

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animal sob a pele. A natureza é aprimorada emoralizada pela aplicação da lei. Para Schneider,essas noções americanas sobre a ordem da leiconstituíam algo bastante semelhante à definiçãoantropológica clássica de cultura. “Nos EstadosUnidos, é a ordem da lei, ou seja, a cultura, quedecide as contradições entre homem e natureza, querepresentam contradições dentro da própria cultura.”

Segundo ele, essa oposição entre natureza ecultura é que estrutura o pensamento norte-americano sobre parentesco. Um indivíduo pode serparente por natureza ou por cultura. Existem,portanto, parentes por consanguinidade e porafinidade. “Uma pessoa é parente quando está ligadapor laços de sangue ou por alianças matrimoniais.”Os parentes por natureza nascem parentes; osparentes por afinidade são adquiridos por meio docasamento ou adoção; resulta de uma opção que atépode ser anulada. A relação por afinidade, portanto,é estabelecida por costume e orientada por umcódigo de conduta convencional, uma regra moralque expressa amor. As relações naturais também sãomotivadas por um código de conduta moralapropriado que se baseia no amor, o que implica umaética de solidariedade difusa e duradoura.

2.3. Código de conduta e laços de sangueDe acordo com Schneider, quando os

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americanos falam de forma abreviada de laços desangue eles se referem tanto a uma relação biológicacomo a um código de conduta. Sangue significa essacombinação de substância e código de conduta queaqueles que têm o mesmo sangue, os parentesconsanguíneos, devem ter. Um parenteconsanguíneo é tratado como parente ou não emfunção da distância genealógica (mede a quantidadede sangue) e da distância social, que é determinadaprincipalmente por fatores como dispersãogeográfica e diferença de classe social. Ligaçõesgenealógicas não garantem um parentescoverdadeiro. Apenas alguns parentes que nãopertencem ao círculo familiar mais íntimo são tratadoscomo tal. Por outro lado, o parente famoso, queaparece em muitas genealogias, ilustra o fato de quea distância também pode ser obliterada quandoconvém.

No que diz respeito ao parentesco por afinidade(não estar ligado por laços de sangue), segundoSchneider, esse parentesco flui de um acordo legal(casamento, adoção), mas observa que pessoas quenão são aparentadas podem ser introduzidas nopapel de parentes pela aplicação de um código deconduta apropriado, como no caso de um amigo dafamília que é chamado de tio ou tia. Se o código deconduta for seguido por si só, pode ser suficientepara transformar uma pessoa num parente. Schneider

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conclui que filhos adotivos, sogro, sogra e tiosindiretos são todos o mesmo tipo de parente:parentes por afinidade, pessoas que não estãoligadas por laços de sangue, mas que mesmo assimseguem o código de conduta próprio dos parentes.

Para Schneider, a conexão genealógica nãoconstitui razão suficiente para considerar alguémcomo parente. Os americanos às vezes preferemignorar os parentes distantes, mesmo que estejamconscientes de que existe uma conexão genealógica.Tampouco a conexão genealógica representa umarazão necessária para a identificação de um parente,uma vez que o amigo de minha mãe pode ser meu tio.O fator decisivo é o código de conduta. As pessoassão consideradas parentes porque seguem umcódigo de conduta apropriado.

Com base na noção de código de conduta,Schneider sustentou a hipótese de que havia umúnico sistema simbólico, uma única culturaamericana. As concepções fundamentais de culturasobre laços de sangue, casamento, família,relacionamentos, eram constantes em todas asclasses sociais americanas. Segundo Schneider, osteóricos americanos ainda não tinham conseguidolibertar-se do mesmo erro antiquíssimo: a crença deque a base biológica – os fatos da natureza – estápor trás de todos os sistemas de parentesco.“Despojado de suas bases biológicas, o parentesco

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não é nada.” O parentesco não é uma questão debiologia ou de instituições sociais específicas; ele sópode ser compreendido apenas em termos culturais.

As críticas às teses de Schneider não forampoucas. Para Kuper, não está claro que os valores doparentesco americano se resumam ao ato sexual;tampouco que a relação sexual é melhor entendidacomo um símbolo, muito menos um símbolo arbitrárioque não tem conexão intrínseca com os fatos daprocriação e da paternidade e maternidade. Nãoforam fornecidas evidências que corroborassemessas alegações surpreendentes. Outros estudiososentendem que as evidências indicam que a família eos sistemas de parentesco americanos variam deforma significativa entre grupos étnicos, classessociais e regiões.

3. SÍMBOLO E DIREITOGeertz define cultura como um sistema simbólico

que fornece tanto um relato do mundo como umconjunto de regras para atuar nele. Cultura é, assim,um domínio de comunicação simbólica ecompreender cultura significa interpretar ossímbolos. Schneider, por sua vez, também procuraentender o fenômeno cultural segundo um sistemade símbolos autônomo e independente, motivo peloqual entende o símbolo como alguma coisa querepresenta algo mais, em que não existe uma relação

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necessária ou intrínseca entre o símbolo e aquilo queele simboliza.

O direito sempre teve um grande símbolo que sematerializa em uma balança, com dois pratoscolocados no mesmo nível, em posição perfeita,tanto na horizontal quanto na vertical. A balança ésegurada por uma deusa, Diké (gregos) ou Iustitia(romanos). Às vezes o símbolo da balança apareceacompanhado de outro símbolo, uma espada. Deacordo com Schneider, seria preciso perguntar: o queesses símbolos simbolizam? De acordo com Geertz,poder-se-ia perguntar: como interpretar essessímbolos? Esses símbolos fornecem um relato domundo e um conjunto de regras para atuar nele? Naslinhas seguintes apontamos algumas respostas paraessas perguntas.

No poema O trabalho e os dias, Hesíodo (séculoVII a. C.) elege o trabalho e a justiça como pilares davirtude do homem simples e trabalhador, aquele quenão é aristocrata e tem a sua expressão numa possemoderada de bens. Diké, no poema, é a deusa que seencarrega de trazer o direito do céu para a terra. Atarefa de Diké, entretanto, é perturbada pela deusaHybris. Vernant (1977: 11) entende que o poemaaponta dois tipos de existência humana que sãorigorosamente opostos, simbolizados por Diké(justiça, justa medida) e Hybris (injustiça,desmedida). A oposição diké-hybris seria, portanto,

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o tema central do poema de Hesíodo.A etimologia da palavra diké não é muito clara.

O conceito é originário da linguagem processual econtém uma matriz de igualdade que permanece nopensamento grego através dos tempos. No processoantigo, diz-se que as partes contenciosas “dão erecebem diké”. O culpado “dá diké”, isto significauma reparação, indenização ou compensação. Olesado, cujo direito é reconhecido pelo julgamento,“recebe diké” e o juiz “reparte diké”. Assim, oconceito de justiça (diké) passa a ser fixado naexpressão “dar a cada um o que é seu”. Significa, aomesmo tempo, o processo, a decisão e a reparaçãoou pena. O significado evolui no sentido deexpressar o princípio que garante essa exigência e noqual se pode apoiar quem for prejudicado pelahybris, que corresponde à ação contrária ao direito(Jaeger, 1995, 135).

Hybris, por sua vez, é tudo que ultrapassa amedida, é o excesso ou desmedida. Nas pessoashybris provoca insolência, soberba e presunção.Diké representa o equilíbrio, a medida justa capaz deconter o desequilíbrio provocado pela desmedida epelo excesso. A existência de Diké está condicionadapela existência de Hybris; ou seja, Diké aparece paraconter o excesso e a desmedida dos homens queestão sob o domínio de Hybris.

Ferraz Jr. (1995: 32), ao interpretar o símbolo

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grego (Diké) e o romano (Iustitia), aponta algumasdiferenças que merecem ser anotadas.

Símbolo grego: Na mão esquerda de Diké está abalança com os dois pratos, sem o fiel no meio; namão direita a deusa segura uma espada e com osolhos abertos declara existir o justo quando ospratos estiverem em equilíbrio (íson, donde a palavraisonomia). O justo significa o que é visto como igual.A ideia de justiça, na cultura grega, adquire essaconcepção forte de igualdade. Os olhos abertos dadeusa têm um significado simbólico. Para os antigos,os dois sentidos mais intelectuais são a visão e aaudição. A visão simboliza a contemplação eespeculação, o saber puro; a audição implica ovalorativo, as coisas práticas, o saber agir, aprudência. Assim, os olhos abertos apontam parauma concepção abstrata, que precede em importânciao saber prático. Além disso, o fato de a deusacarregar uma espada mostra que os gregos conectamo conhecimento do direito com a força (bia)necessária para executá-lo. O equilíbrio e a harmonianecessários entre direito (diké) e força (bia), deveprevalecer na cidade.

Símbolo romano: Iustitia tem os olhos vendadose não carrega a espada, segura a balança com os doispratos e o fiel no meio, com as duas mãos. Ela declarao direito (jus) quando o fiel está completamentevertical, perfeitamente reto (derectum). Os olhos

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vendados mostram que a concepção dos romanossobre o direito liga-se a um saber prático, saber agir,um equilíbrio entre a abstração e o concreto. Osjuristas romanos de modo preponderante nãoelaboram teorias abstratas sobre o justo em geral(como os gregos), mas construções operacionais,dando extrema importância à palavra falada, donde aproveniência de lex do verbo legere (ler em voz alta).A atividade precípua do jurisconsulto é o jus dicere,que, para exercê-la, precisa de uma atitude firme:segurar a balança com as duas mãos, sem anecessidade da espada. A ideia de justiça aparece,na cultura romana, com essa concepção forte deordem pacificadora em conexão com a autoridade,que deve ser obedecida sem a necessidade deviolência.

Os símbolos (balança ou espada) significam algomais que os próprios símbolos; também fornecem umrelato do mundo e regras para atuar nele, porque: a)simboliza a justiça como igualdade e retidão; b) relataa existência de um poder (Diké ou Iustitia) que diz odireito e está acima das partes para executá-lo; c)estabelece que justiça é igualdade, reciprocidade etambém ordem pacificadora (pratos em equilíbrio) e,ainda, vingança e castigo (espada na mão). Abalança e a espada simbolizam dois modelos deretribuição ou de reparação do status quo violado: a)a balança simboliza um modelo horizontal: visa à

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equiparação de uma pretensão e de umacontraprestação; e b) a espada simboliza um modelovertical: uma hierarquia a ser protegida e mantida;retribui agressivamente uma ameaça agressiva.

Enfim, os pratos na horizontal simbolizam a justamedida, a virtude do homem moderado que sabe eprecisa controlar seus impulsos e paixões. Esse é oideal ético do homem que pratica a phrónesis(gregos) ou prudentia (romanos), que constitui amais alta qualidade moral a se opor aos excessos, àdesmedida.

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XIX CULTURA

1. CULTURA COMO OBJETO DAANTROPOLOGIA

Para Talcott Parsons, as ciências sociaisdeveriam ser organizadas em áreas funcionais, e aantropologia ficaria encarregada de uma tarefaespecífica, o estudo da cultura. Parsons reconheceque não existe um consenso a respeito da definiçãodo conceito de cultura, motivo pelo qual entende queos antropólogos devem aceitar uma concepção decultura precisa e rigorosamente limitada, definida porsua posição numa trindade de forças que moldam aação: personalidade, relações sociais e ideias evalores. Segundo ele, apenas por meio de umadefinição com esse alcance, a antropologia podealcançar o status de uma ciência empírica analítica,independente da sociologia e da psicologia (KUPER,2002: 80, 81).

Parece estar longe o consenso entre osantropólogos sobre o conceito de cultura, haja vistaque já foram classificadas 164 definições. Dentreestas, 157 foram elaboradas pelos cientistas sociaisnorte-americanos, na maioria antropólogos. Diantedessa quantidade de definições, pode-se dizer que o

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termo cultura é dotado de uma imensa ambiguidade.

1.1. Cultura: termo ambíguoO termo cultura, conforme observações de

Abbagnano (2003: 229), possui, inicialmente, doissignificados básicos. No primeiro e mais antigosignifica formação individual da pessoa humana, ouseja, aquilo que os gregos denominavam paideia(formação do homem) e os romanos humanitas(educação do homem). No segundo significado otermo indica o conjunto de obras humanas, ou seja,o conjunto dos modos de vida criados, adquiridos etransmitidos de uma geração para a outra entre osmembros de determinada comunidade ou sociedade.Nesse significado, cultura não é a formação doindivíduo em sua humanidade, mas é a formaçãocoletiva e anônima de um grupo social nasinstituições que o definem. Esse segundo significadocomeça a aparecer no século XVIII com a filosofiailuminista.

No século XIX o termo cultura passa a indicar oconjunto dos modos de vida de um grupo humanodeterminado, sem referência ao sistema de valorespara os quais estão aqueles. Assim, cultura passa adesignar tanto a sociedade mais progressista quantoas formas de vida social mais rústicas e primitivas.Esse significado neutro tem a vantagem de nãoprivilegiar um modo de vida em relação a outro na

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descrição de um todo cultural. De fato, para umantropólogo, um modo rústico de cozer um alimentoé um produto cultural tanto quanto uma sonata deBeethoven.

Edward Tylor, em seu livro Cultura primitiva, de1871, foi o primeiro a apresentar uma definição para oconceito de cultura. Segundo ele, cultura é todo oconjunto de obras humanas, portanto, trata-se de umtodo complexo que abrange conhecimento, crença,arte, princípios morais, leis, costumes e várias outrasaptidões e hábitos adquiridos pelo homem comomembro de uma comunidade ou sociedade. Paraalguns antropólogos, o problema dessa definição éque ela reúne uma grande quantidade de elementosou traços culturais que permite que uma cultura sejadescrita, mas dificulta ou impede a sua análise(MELLO, 1982: 40).

Após Tylor apareceram outras tantas definições.Cabe mencionar algumas: a) Ralph Linton entendeque a cultura de qualquer sociedade consiste nasoma total de ideias, reações emocionaiscondicionadas a padrões de comportamento habitualque seus membros adquiriram por meio da instruçãoou imitação; b) Franz Boas define cultura como atotalidade das reações e atividades mentais e físicasque caracterizam o comportamento dos indivíduosque compõem um grupo social; c) Malinowski dizque cultura é um composto integral de instituições

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parcialmente autônomas e coordenadas que, em seuconjunto, tende a satisfazer toda a amplitude denecessidades fundamentais, instrumentais eintegrativas do grupo social; d) Parsons definecultura como um discurso simbólico coletivo sobreconhecimentos, crenças e valores; toda comunidadetem sua própria cultura, com seus valoresespecíficos, que a distingue de todas as outras; e)Clifford Geertz entende que cultura é um sistemaordenado de significados e símbolos, em cujostermos os indivíduos definem seu mundo, revelamseus achados, fazem seus julgamentos, comunicam-se e exercem o controle do comportamento.

Valores, leis, práticas, crenças e instituiçõesvariam de formação social para formação social,motivo pelo qual os antropólogos, em geral, falam emculturas, no plural, e não em cultura, no singular. Emsíntese, pode-se dizer que cultura é o modo próprio eespecífico da existência dos seres humanos. É acultura que distingue os homens dos outros animais,por isso se diz que os animais são seres naturais; oshumanos, seres culturais.

1.2. Surgimento da culturaUma preocupação da antropologia consiste em

determinar em que momento e de que maneira osseres humanos se afirmam como diferentes danatureza, fazendo surgir o mundo cultural. A

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antropologia procura uma regra ou norma capaz deestabelecer o momento da separação homem-natureza como instante de surgimento das culturas.Nisso também não há consenso. Algunsantropólogos entendem que essa diferença surge nomomento em que os humanos inventam uma lei que,quando transgredida, implicará a pena de morte dotransgressor, exigida pela comunidade: a lei daproibição do incesto, desconhecida pelos animais.Para outros a diferença é estabelecida quando oshumanos definem uma lei que, se transgredida, causaa ruína da comunidade e do indivíduo: a lei quesepara o cru do cozido, desconhecida dos animais.Há, ainda, aqueles para os quais o que distingue asociedade humana da sociedade animal é a forma decomunicação através da troca de símbolos (CHAUÍ,2002: 294).

1.3. Cultura e valoresKroeber e Kluckhohn (in KUPER, 2002: 85)

entendem que os valores constituem as propriedadesmais características e mais importantes da cultura.Segundo esses teóricos, os valores fornecem a únicabase para a compreensão total da cultura, pois averdadeira organização de todas as culturas ocorrefundamentalmente em termos dos seus valores, eesses valores são variáveis e relativos, e nãopredeterminados e eternos. Para avaliar os valores

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dos outros é preciso adotar uma perspectivarelativista e reconhecer que toda sociedade, porintermédio da sua cultura, busca e, até certo ponto,encontra valores. É esse relativismo que distingue,acima de tudo, a abordagem antropológica da culturadas abordagens mais antigas.

Para Kroeber e Kluckhohn a cultura consiste empadrões, explícitos e implícitos, em comportamentoadquirido e transmitido por símbolos. E o núcleoessencial da cultura consiste em ideias tradicionais e,especificamente, em valores a elas vinculados. Natradição alemã, segundo Kuper (2002:97), a culturaera tratada como um sistema de ideias e valoresexpressados por meio de símbolos e incorporados àreligião e às artes. Ao absorver e adotar os valoresculturais, o indivíduo encontrava um propósito navida e um sentido de identidade. Parsons, conformeobserva Kuper, situou essa ideia dentro da sua teoriageral da ação social. Em seguida convidou osantropólogos a estudá-la, como uma contribuiçãopara o exercício interdisciplinar. Assim, osantropólogos foram estimulados a ignorar a biologia,as instituições sociais e as questões históricas, umavez que elas se tornaram temas de outras disciplinas.

Em 1958 Parsons e Kroeber publicaram ummanifesto intitulado Conceito de cultura e desistema social, no qual estabeleceram: “Achamosconveniente definir o conceito de cultura de forma

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mais restrita do que a tradição antropológica norte-americana tem feito, restringindo sua referência a umconteúdo transmitido e criado e a padrões devalores, ideias e outros sistemas simbólicossignificativos como fatores na formação docomportamento humano e dos produtos dessecomportamento. Por outro lado, sugerimos que otermo sociedade – ou de forma mais geral, sistemasocial – seja usado para designar o sistema relativoespecífico de interação entre indivíduos ecoletividade” (in KUPER, 2002: 98).

Para Parsons, o método apropriado ao estudo dacultura deveria consistir nos procedimentos dainterpretação intuitiva de Weber, caso a culturafosse concebida como um mundo simbólico de ideiase valores.

1.4. Pluralidade de culturasAté o século XIX, movidos pela ideia de uma

história universal das civilizações, alguns teóricosentenderam que haveria uma única grande culturaem desenvolvimento, da qual as diferentes culturasseriam apenas fases ou etapas. No século XX,porém, movidos pela ideia de que a história édescontínua, passou-se a entender que não existeapenas uma cultura, mas culturas diferentes. Existeuma pluralidade de culturas porque os valores, asleis, as crenças, as práticas e as instituições variam

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de formação social para formação social.T. S. Eliot (in KUPER, 2002: 61), ao analisar o

conceito de cultura, assim se expressa: “por culturarefiro-me, primeiramente, ao que os antropólogosquerem dizer: o modo de vida de um determinadopovo que vive junto num mesmo lugar. Essa culturapode ser vista em suas artes, seu sistema social, seushábitos e costumes e sua religião. Mas tudo issojunto não constitui a cultura, uma cultura é mais doque a reunião de artes, costumes e crençasreligiosas. Todas essas coisas agem entre si, e paracompreender verdadeiramente uma é precisocompreender todas”. Em suma, a cultura inclui todasas atividades e interesses característicos de umpovo. Ela não está confinada a uma minoriaprivilegiada, mas abarca o majestoso e o humilde, aelite e o popular, o sagrado e o profano.

Para Eliot é a diversidade de cultura que deve servalorizada. O ideal de uma cultura mundial comum é,segundo ele, uma noção monstruosa. Eliot entendeque uma cultura mundial que fosse simplesmenteuniforme não seria cultura. Uma cultura mundialimplica uma humanidade desumanizada. Devemosaspirar, segundo ele, a uma cultura mundial comum,desde que não diminua a particularidade das partesque a compõem. Ele também alertou para o fato deque variedade cultural provocaria conflito. Em últimaanálise, diz ele, religiões antagônicas significam

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culturas antagônicas; e religiões não podem serconciliadas (KUPER, 2002: 63).

2. CULTURA E DIREITOAlguns antropólogos, como visto, entendem

que as características mais significativas da culturasão os seus valores. Alguns teóricos do direitotambém entendem que os valores são fundamentaispara compreender o fenômeno jurídico. Miguel Reale(1999), por exemplo, entende que o direito é fruto daexperiência e localiza-se no mundo da cultura,portanto, o direito possui uma dimensão valorativaque não pode ser desprezada. Fato, valor e normasão, segundo ele, os elementos constitutivos daexperiência jurídica. Esses elementos sempre seimplicam e se estruturam numa conexão necessária econstituem, assim, uma tridimensionalidade que podeser estática, dinâmica ou de integração.

Reale elabora uma teoria (teoria tridimensional)na qual estabelece que a estrutura do direito étridimensional porque a norma, que disciplina oscomportamentos individuais e coletivos, pressupõedada situação de fato, referida a determinadosvalores. Na medida em que isso se coloca como umproblema para o jurista, surge a necessidade deesclarecer as relações entre fato, valor e norma.Esses elementos integrantes do direito – fato, valor enorma – estão em permanente atração, posto que o

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fato tende a realizar o valor, mediante a norma. Poressa razão, a conexão entre esses elementos édenominada dialética da implicação e da polaridade,ou simplesmente dialética da complementaridade.

A correlação entre fato, valor e norma permiteentender o direito como um sistema aberto,dependente de outros que o abrange e circunscreve.Miguel Reale, porém, adverte que a atitude do juristanão pode ser reduzida ou confundida com a atitudedo sociólogo. A categoria do jurista, segundo ele, é acategoria do dever-ser, pois o direito só compreendeo ser referido ao dever-ser. Enfim, Reale propõe paraa ciência jurídica, nos termos do culturalismo, umametodologia de caráter dialético, capaz de dar aoteórico do direito os instrumentos de análise dofenômeno jurídico, visto como unidade sintética detrês dimensões: normativa, fática e valorativa. Naesfera do valor, Reale afirma que a pessoa humana éo valor-fonte de todos os valores.

O termo cultura, como visto, abriga muitossignificados, mas, em qualquer deles, cultura e direitoaparecem vinculados, porque o fenômeno jurídicoconstitui um dos aspectos da cultura. Cultura é umconceito que pode demonstrar não apenas asconexões do direito com a antropologia, mas tambémque os problemas que as sociedades atualmenteenfrentam envolvem, inexoravelmente, questõesculturais. Aliás, conforme observa Adam Kuper

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(2002: 21, 22), cultura é o termo da moda, visto quenele se insinuam todos os problemas da vidacontemporânea e, apesar de sua ambiguidade ediversidade de uso, parece que todas as pessoasentendem o seu exato alcance e sentido e, portanto,dispensaria explicações.

2.1. Termo “cultura”: uso comumAtualmente todos estão envolvidos com

cultura. Políticos, jornalistas e outros atores sociaisconclamam uma mudança cultural como forma deresolver problemas de pobreza, violência, segurança,ambiente ou competição empresarial. Fala-se dediferenças culturais entre gerações, sexos, religiõese até entre equipes de futebol, agências depropaganda e grupos de jovens. É comum dizer que acultura do índio está ameaçada pela cultura docivilizado. Os fundamentalistas islâmicos entendemque a maior ameaça à sociedade deles é a cultura doOcidente. Até o empresário aproveita para defenderseus interesses econômicos com o argumento dedefender a cultura. Nesse sentido, um empresáriojaponês rebate as alegações de que o Japão deverialiberalizar seus acordos de comércio para permitiruma maior competição de empresas estrangeiras,afirmando que “reciprocidade significaria alterar asleis para aceitar sistemas estrangeiros que podemnão ser adequados à cultura japonesa” (KUPER,

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2002: 21. 22).Talvez por esses motivos alguns teóricos

entendem que as principais fontes ou causas dosconflitos no século XXI serão culturais. Assim, umempresário norte-americano explicou que a invasãodo Iraque não teve como causa principal anecessidade econômica de empresas norte-americanas em explorar e manter o fluxo petrolíferoiraquiano, mas o desejo de levar àquele povo umacultura mais elevada, fundada nos hábitos e valoresocidentais.

Na tentativa de ocultar interesses egoísticos,alguns políticos e empresários apelam para oconceito de cultura e, muitas vezes, manipulam osdiscursos dos antropólogos. Isso ocorre porque,mesmo no âmbito da antropologia, o debate em tornodo conceito de cultura está longe de ser pacífico. Há,nesse sentido, por um lado, os multiculturalistas,que entendem que é preciso preservar as culturasdos diferentes povos (disso se aproveita oempresário japonês), e, por outro lado, osuniculturalistas, que entendem que é precisounificar, na cultura ocidental, as culturas de todos ospovos (disso se aproveita o empresário norte-americano). Talvez no mundo empresarial a palavracultura seja isso mesmo, algo para ser manipuladotendo em vista a finalidade da empresa, que é o lucro,motivo pelo qual é usada sem rigor ou critério.

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Assim, serve até para justificar o fracasso em fusãode empresas (culturas incompatíveis) ou adeportação de imigrantes clandestinos (não seadaptaram à cultura local).

Percebe-se que é bastante elevado o número detemas que evocam o conceito de cultura. Importante,porém, é perceber que em todos eles está latente oaspecto jurídico.

2.2. Fluxo de culturasOs antropólogos, em geral, entendem que toda

cultura é o resultado da mistura de traços culturaisde diversas culturas. Não existe, portanto, umacultura genuína.

A colonização e depois a globalização docomércio e das comunicações provocaram aocidentalização do mundo nos aspectos econômicos,políticos, jurídicos e intelectuais. Esse fenômenofacilitou a presença de europeus e a difusão dacultura europeia em todos os lugares do mundo, masfez com que a Europa ficasse exposta ao fluxo deimigrantes que carregam consigo uma cultura que,embora contenha traços da cultura europeia, parecepossuir uma configuração diferente. Esse fluxoimigratório tornou-se um problema para os governosdos países centrais, especialmente a Europa e osEstados Unidos. O Brasil também está exposto aofluxo imigratório; contudo, até o momento isso não

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tem constituído um problema relevante.O Brasil e os demais países da América Latina

sempre estiveram submetidos à cultura europeia e,no decorrer do século XX, também à cultura norte-americana. As instituições jurídicas e políticasbrasileiras são reproduções dos modelos adotadosnaqueles países. Além disso, o comércio e ascomunicações favorecem os países centrais, nosentido de impor seus hábitos às populações dospaíses periféricos. Diante dessa aculturação deséculos, é possível dizer que não há muita coisa nacultura europeia ou na norte-americana que possacausar estranhamento aos brasileiros. Pelos mesmosmotivos, também é possível dizer que não há muitona cultura brasileira capaz de provocar um radicalestranhamento nos europeus ou nos norte-americanos.

Ocorre, porém, que a mudança do cursoimigratório das populações colocou em evidência oproblema da diversidade de cultura ou diferençasculturais. Não raras vezes essas diferenças têm sidoutilizadas para justificar o controle da imigração.Embora os imigrantes (latino-americanos, asiáticos,africanos) geralmente ocupem na Europa e nosEstados Unidos posições socialmente subalternas ese disponham a viver clandestinos e a aceitarqualquer trabalho por qualquer salário, o fatorelevante é que esse fluxo imigratório parece

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constituir uma ameaça para aqueles países. É difícilestabelecer se tal ameaça é cultural, política oueconômica ou as três coisas ao mesmo tempo.

2.2.1. A imigraçãoO movimento natural das populações é o

deslocamento para regiões que facilitem suasobrevivência de forma menos penosa. As guerras,os conflitos internos, as perseguições religiosas ouétnicas, as esperanças de enriquecimento, anecessidade de manter a administração colonialinduziram o movimento imigratório das metrópolespara as colônias e países periféricos. Essemovimento significava o deslocamento depopulações de regiões mais desenvolvidas pararegiões menos desenvolvidas (colônias ou paísesperiféricos). No mundo contemporâneo o movimentoparece invertido, já que o fluxo imigratório maisintenso parece ser de países mais pobres para paísesmais ricos. Assim, os mesmos motivos(sobrevivência de forma menos penosa) que atraíramos europeus para as colônias e países periféricosprovocam, agora, os movimentos imigratórios para aEuropa e os Estados Unidos. Indubitavelmente, asimigrações têm incomodado os países centrais;prova disso são as decisões desses governos nosentido de restringi-las ao máximo, mediante o uso debarreiras burocráticas, jurídicas ou mesmo de

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concreto, como é o caso dos muros que os EstadosUnidos ergueram na fronteira com o México.

A presença de africanos, asiáticos e latinos naEuropa e nos Estados Unidos é um fato irreversívele, caso se mantenham as condições (sociais,políticas e econômicas) atuais, somente medidasdrásticas poderão conter esse fluxo imigratório. Osimigrantes têm provocado alguns sentimentos napopulação local, motivo pelo qual o tema daimigração é tratado com destaque nos debatespolíticos da Europa e dos Estados Unidos. Ospolíticos de direita, que acalentam tendênciasnazistas ou fascistas, têm utilizado o tema paraexpressar um nacionalismo exacerbado que, emalgumas ocasiões, aparece como a mais puraexpressão de uma doutrina racista. Assim, o tema daimigração, quando tratado por políticosinescrupulosos e oportunistas, pode transformar-seem racismo.

Os antropólogos afirmam que não existem raças,e também não existe cultura genuína; existe,portanto, a mistura de culturas e etnias. Essa misturase tem intensificado com o fenômeno daglobalização, um processo que se inicia no séculoXV com as grandes navegações e a subsequenteexpansão do capitalismo. No século XXI ocapitalismo eletrônico-informático é a força motriz daglobalização. Esse tipo de globalização provoca,

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cada vez mais, a compressão do espaço e do tempo.A internet e a televisão a cabo permitem asimultaneidade de informação e, com isso, provocamo aniquilamento do tempo. Com a internet e atelevisão a cabo o mundo se torna pequeno,submete-se a um processo de encolhimento. Um dosefeitos desse encolhimento é aproximar culturas tidascomo diferentes.

Os indivíduos de culturas diferentes estãocompartilhando cada vez em maior número o mesmoespaço geográfico ou virtual. As sociedades estãopassando por um crescimento imigratório e umdesenvolvimento tecnológico absolutamenteinéditos, que provocam mudanças nas relaçõessociais. Nos Estados Unidos, existe determinadaregião em que as pessoas usam mais de cem línguas.Por esse e outros motivos o termo multiculturalismotem sido substituído por interculturalismo, umaforma de compreender as demandas de indivíduoscom culturas diferentes que vivem em um mesmoespaço geográfico. A construção do direito dependede análises das mutações culturais e sociais emcurso, que atingem não apenas a sociedade norte-americana e europeia, mas todas as sociedades, vistoque o crescimento imigratório e o desenvolvimentotecnológico são fenômenos globalizados.

Assim, o aumento da complexidade dassociedades tem colocado em evidência determinados

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temas que exigem reflexões antropológicas ejurídicas. A maioria desses temas, ainda que nãofossem considerados relevantes, já estava presentenas análises dos teóricos desde o século XVI,quando a descoberta do Novo Mundo colocoufrente a frente indivíduos e culturas diferentes. Dequalquer modo, na atualidade, antropólogos ejuristas têm de lidar com esses antigos problemas eseus novos desdobramentos e, quando o fizerem,talvez possam reivindicar não apenas o direito de serigual, mas também o direito de ser diferente.

3. DIREITO DE SER: IGUAL E DIFERENTEA Constituição Federal garante o direito de ser

igual e o direito de ser diferente. O princípio daigualdade está estabelecido no caput do art. 5o, nosseguintes termos: “todos são iguais perante a lei,sem distinção de qualquer natureza”. O direito de serdiferente está expresso em diversos itens do art. 5o,destacando-se dois: “é inviolável a liberdade deconsciência e crença, sendo assegurado o livreexercício dos cultos religiosos e garantida, na formada lei, a proteção aos locais de culto e a suasliturgias” (inciso VI); “são invioláveis a intimidade, avida privada, a honra e a imagem das pessoas,assegurando o direito à indenização pelo danomaterial ou moral decorrente de sua violação” (incisoX).

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Não raras vezes, o jurista dogmático se atrapalhacom essas garantias constitucionais que implicam odireito de ser igual e de ser diferente. Esses direitosenvolvem direitos das minorias e estão diretamenteligados ao tema antropológico da diversidade deculturas e etnias.

3.1. Direito e cidadaniaCelso Lafer, em A reconstrução dos direitos

humanos, analisa, dentre outras, as noções decidadania (igualdade) e intimidade (diferença) sob oenfoque do pensamento de Hannah Arendt. ParaArendt, a pluralidade humana tem uma característicaontológica dupla: a igualdade e a diferença. Se oshomens não fossem iguais, não poderiam entender-se. Por outro lado, se não fossem diferentes nãoprecisariam de palavras, nem de ação para se fazerementender. É com base nessa dupla característica queela insere a diferença na esfera do privado e aigualdade na esfera do público.

O espaço público é o local de encontro com ooutro, local em que se encontram homens livres eiguais, portanto, no qual deve prevalecer, paraalcançar a democracia, o princípio da igualdade. Essenão é dado, pois as pessoas não nascem iguais e nãosão iguais nas suas vidas. A igualdade resulta daorganização humana, é um construído, portanto, umproduto cultural. Ela é um meio de igualar as

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diferenças através das instituições. Perder o acessoao espaço público significa perder o acesso àigualdade. Aquele que se vê destituído da cidadania,ao ver-se limitado à esfera do privado fica privado dedireitos, pois estes só existem em função dapluralidade de homens, ou seja, da garantia tácita deque os membros de uma comunidade dão-se uns aosoutros.

Cidadania é o direito de ter direitos. Nessesentido, o homem privado de cidadania não temsequer direito de ter direitos. Com base nessadefinição, Celso Lafer analisa o problema doapátrida, mas algumas de suas conclusões podemser estendidas aos imigrantes ilegais e aosrefugiados também espalhados por quase todos ospaíses do mundo.

O drama dos imigrantes ilegais não é apenas ode terem perdido o tecido social em que nasceram eno qual estabeleceram um lugar no mundo. Consisteprincipalmente na perda de um elemento de conexãocom a ordem jurídica interna do país no qual seencontram. O imigrante ilegal vive à margem da lei,sem direito à residência ou ao trabalho,transgredindo a ordem jurídica do país no qual seencontra. Sem cometer crime, está sempre sujeito a irpara a cadeia, pois a sua mera presença ou existêncianaquele território constitui uma anomalia. O únicomodo que o imigrante ilegal tem para estabelecer um

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vínculo com a ordem jurídica nacional é cometer umcrime. Um crime – por exemplo, um pequeno furto –passa a ser uma forma paradoxal de recuperar certaigualdade humana, pois o criminoso, mesmo oimigrante ilegal, vê-se tratado como qualquer outrapessoa nas mesmas condições.

Só como transgressor da lei pode o imigranteilegal ser protegido pela lei. Enquanto durar ojulgamento e o pronunciamento de sua sentença,estará a salvo daquele domínio arbitrário da policia,contra a qual não existem advogados nem apelações.Os imigrantes ilegais não perdem direitos, elessimplesmente não os têm. São elementosindesejáveis que vivem no limbo da sociedade, e porisso supérfluos e descartáveis. Há, nesse sentido,uma imensa distância entre os direitos formalmenteconsagrados nas declarações de direitos humanosfirmadas pelas nações e nas leis internas dos paísese a realidade de fato a que eles se reportam.

A existência de apátridas, imigrantes ilegais erefugiados representa uma ruptura com o princípioda isonomia, na medida em que parece não fazermais sentido falar que todos são iguais perante a lei.Se as leis não são iguais para todos, o princípio deisonomia perde a sua condição de critério deorganização da ordem jurídica estatal.

3.2. Direito e minorias

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Conforme observações de Celso Lafer, oproblema dos apátridas e, por conseguinte, dosimigrantes ilegais e refugiados coloca em evidência aquestão das minorias, que, hoje, tornou-se umproblema universal. A globalização da economia, docomércio e dos meios de comunicação, os conflitosinternos que culminam com a instauração degovernos ditatoriais e também o processo dedescolonização, particularmente na África e na Ásia,todos esses fatos, além de outros, fazem aparecer deforma mais visível o problema das minorias. Minoriassão grupos numericamente inferiores ao resto dapopulação de um Estado e numa posição nãodominante num país, mas que possuemobjetivamente características étnicas, religiosas oulinguísticas distintas do resto da população, e quesubjetivamente desejam preservar a sua cultura, assuas tradições, a sua religião e a sua língua.

Apenas para situar a universalidade doproblema, eis alguns exemplos de minorias que seformaram a partir de conflitos ou guerras: a) naÁfrica, os conflitos políticos e as guerras internas,especialmente entre Etiópia e Somália, provocaram oaparecimento de mais de seis milhões de refugiados;b) os refugiados palestinos representam umapopulação superior a dois milhões de pessoas; c) ARevolução cubana deu origem a mais de um milhãode refugiados; d) o mesmo vale para a guerra do

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Vietnã, do Laos, do Camboja, do Afeganistão; e) asditaduras na América Latina provocaram e êxodo demais de um milhão de pessoas; f) o processo dedescolonização provocou o êxodo nas antigascolônias. Uma parte desse contingente foi paraEuropa e Estados Unidos.

Também merece destaque o problema deminorias em seus próprios países: a) a África do Sulainda se encontra às voltas com o problema doapartheid, que parece mais profundo do que seimaginava, na medida em que envolve diversasetnias; b) os demais Estados africanos sãocompostos por comunidades étnicas, linguísticas ereligiosas diferenciadas; c) na Nigéria, por exemplo,diferenças étnicas e linguísticas levaram à guerracivil, no bojo da qual dramaticamente desapareceu aproposta de um novo Estado: Biafra; d) na Ásiainseriram-se, igualmente, na vida da população dosnovos Estados relevantes diferenças étnicas,linguísticas e religiosas; e) diferenças religiosaslevaram a Índia colonial inglesa a dividir-se em doisEstados: Paquistão e Índia, cuja tensão pelo controleda região de fronteira (Caximira) permanece até hoje;f) diferenças entre católicos e muçulmanos mantêmviva a eclosão de outra guerra civil no Líbano; g) noIraque, a ocupação norte-americana colocou emevidência a pretensão dos curdos (minoria étnica) defundar um país independente; h) o Chipre enfrenta o

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problema das relações entre a maioria grega e aminoria turca; i) a Sérvia não aceita a independênciado Kosovo; j) o Tibet não aceita a dominaçãochinesa etc.

Todos os eventos antes destacados provocamimigrações porque é penoso viver em zonas deconflito. Parece que a causa principal do movimentoimigratório não é simplesmente a busca de um bomemprego, mas a fuga da guerra, dos conflitosarmados, das perseguições. Quando se retira o véuda ignorância, é possível enxergar nesses eventos(guerras, conflitos, perseguições) a presençaostensiva justamente daqueles governos que seposicionam contra as imigrações. O movimentoimigratório tem, portanto, estreitas ligações com adesordem mundial, cujos principais protagonistassão os países líderes.

Celso Lafer observa que, em virtude dessesproblemas, os direitos das minorias não foramcontemplados nem na Carta das Nações Unidas, nemna Declaração Universal dos Direitos do Homem, quecuida apenas do direito à igualdade e do direito à nãodiscriminação. Os direitos das minorias foramconsagrados posteriormente no art. 27 do PactoInternacional sobre Direitos Civis e Políticos, com ointuito de promover medidas especiais em prol deminorias étnicas, religiosas e linguísticas para queestas possam ter a sua própria vida cultural,

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professar e praticar a sua própria religião e empregaro seu idioma. Essas medidas não podem ser vistascomo uma ameaça à unidade nacional.

Celso Lafer também lembra as medidas deproteção contidas no Estatuto dos Refugiados de1951 e no seu Protocolo Adicional de 1966, queestabelece a qualificação de qualquer pessoa comorefugiado em virtude da existência de um fundadoreceio de perseguição por motivos de raça, religião,nacionalidade, participação em determinado gruposocial ou convicções políticas. Por esses motivos,em certas regiões os refugiados chegam a alcançar oíndice de 15% do total da população.

Diante dessa complexidade mundial, cabemencionar o pensamento de Stephen J. Pollak sobreo Expatriation Act, de 1954, e suas repercussõessobre a Suprema Corte norte-americana. Conformerelata Celso Lafer, Pollak, em artigo de 1955, analisa osignificado mais amplo do Expatriation Act, que, nocontexto do anticomunismo prevalecente nosEstados Unidos, contemplava a desnacionalizaçãode indivíduos como pena para a subversão, ou seja,autorizava o Judiciário a condenar cidadão norte-americano à pena da perda de sua nacionalidade. Emsíntese Pollak argumenta que a perda danacionalidade representa uma privação do direito deter direitos e conclui pela inconstitucionalidade dacitada lei.

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Inicialmente, a reflexão de Pollak marcou o votominoritário discordante do Chief Justice Warren, daSuprema Corte, voto este acompanhado pelosministros Black e Douglas, no caso Perez v.Brownell. No seu voto Warren afirma: “a cidadania éo direito básico do homem, uma vez que é nadamenos do que o direito a ter direitos”. O ponto devista de Warren acabou sendo vitorioso em Trop v.Dulles, também decidido em 1958. No seu voto,subscrito pelos ministros Black, Douglas eWhittaker, Warren afirma: “a cidadania não é umalicença que expira com a má conduta. A cidadanianão se perde a cada vez que um dever de cidadania éesquivado. E a privação da cidadania não é uma armaque o governo pode usar para expressar seudescontentamento com a conduta de um cidadão,por mais repreensível que esta conduta possa ser”.Em virtude dessa e de outras decisões, parece que odireito a ter direitos foi consagrado na jurisprudêncianorte-americana, fato que pode representar umaesperança para os imigrantes clandestinos naquelepaís.

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XX PROCESSOCULTURAL

1. MUDANÇA CULTURALMudança cultural é qualquer alteração na

cultura. Pode ocorrer com maior ou menor facilidade,dependendo do grau de resistência ou aceitação. Amudança pode surgir em consequência de fatoresinternos (descoberta, invenção, conflito) ou externos(difusão cultural, imigração). As culturas tambémresistem às tentativas de mudanças, tendem a seestabilizar; a educação e as sanções sociais sãoformas de estabilizar uma cultura. Tanto associedades complexas como as sociedades simplesestão submetidas a processos culturais, isto é, àsmaneiras conscientes ou inconscientes pelas quaisas culturas se formam, se mantêm ou se transformam.

As sociedades simples, também denominadassociedades primitivas ou sociedades frias, sãogrupos pequenos (indígenas, aborígines) nos quaisas pessoas se conhecem, compartilham os mesmossentimentos e ideias e têm um destino comum. Otempo nessas sociedades possui um ritmo lento, astransformações são raras e, em geral, causadas por

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um acontecimento externo que as afeta. Associedades simples baseiam-se em mitos fundadoresou em narrativas que explicam suas origens. Os mitoscapturam o tempo e oferecem explicaçõessatisfatórias para todos sobre o presente, passado efuturo. Nessas sociedades todos os seus membrosparticipam da mesma cultura.

As sociedades complexas, também denominadassociedades civilizadas ou sociedades quentes, sãointernamente divididas em grupos e classes sociais enas quais há indivíduos isolados uns dos outros.Cada classe social é antagônica à outra ou às outras,com valores e sentimentos diferentes e mesmoopostos. Nessas sociedades as relações não sãopessoais, mas sociais, isto é, os indivíduos, grupos eclasses se relacionam pela mediação de instituiçõessociais como a escola, a empresa, o comércio, apolícia, o Judiciário. As sociedades complexas sãohistóricas, ou seja, para elas as transformações sãoconstantes e velozes.

Em ritmo lento ou rápido, o fato é que as culturasmudam continuamente, assimilam novos traços ouabandonam os antigos por meio de transmissão,difusão, invenção, aculturação, etc. Todas asculturas, simples ou complexas, possuem os seusaspectos sincrônicos (estabilização da cultura) ediacrônicos (mudanças na cultura).

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1.1. Aspectos sincrônicosO processo cultural, no seu aspecto sincrônico,

tende a estabilizar ou cristalizar o padrão (valores,ideias, hábitos, costumes) de determinada cultura.

Vilfredo Pareto (in MELLO, 1982: 85), ao analisaras causas do equilíbrio social, atribui um papelsignificativo ao domínio do inconsciente, motivopelo qual entende que a estabilidade social decorrede uma lógica de sentimentos que teria um papelrelevante na manutenção da ordem sociocultural. Nasua teoria do equilíbrio social, estabelece a hipótesede uma espécie de inércia social, que levaria osistema social a manter certo estado de coisas. Nahipótese de uma mudança nesse sistema surgiriamforças contrárias que permitiriam voltar ao estadoanterior. A razão desse comportamento seria decunho psicológico, atendendo aos sentimentos.

Outros teóricos entendem que a estabilidadesociocultural das populações decorre de umcomplexo normativo garantido por sanções sociais.As normas sociais são impostas aos membros dasociedade e sanciona os seus infratores. Nessesentido, pode-se concluir que a função primordial dacultura é o controle social. Assim, a cultura pode servista como responsável pela manutenção dasociedade ou do convívio social suportável. Épossível constatar, pela observação dos usos,costumes, leis, linguagem, simbologia, o caráter

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institucional, padronizado, repetitivo e relativamentefixo das culturas. As populações possuem modosconsagrados de agir e de dizer as coisas quecontribuem para a manutenção do padrão decomportamento (MELLO, 1982: 84). Esse padrão égarantido e reforçado pelas instituições sociais.

A s instituições sociais são os modostradicionais, habituais e legítimos que permitem adeterminada sociedade cuidar de seus problemas. Asinstituições (família, escola, empresa, polícia,Judiciário) têm a função precípua de estabilizar acultura por intermédio do controle social; elasexistem para transmitir e garantir os valores, ideias ecostumes de determinada cultura. Nesse sentido, asinstituições, além de garantir a estabilidade dainteração social padronizada, são padrõesnormativos institucionalizados e profundamentearraigados na organização social, motivo pelo qualsão, em geral, consideradas como padrões naturais.Contudo, as instituições mudam com o passar dostempos e precisam fazê-lo quando já não lidamadequadamente com os problemas sociais.

1.1.1. EndoculturaçãoOs antropólogos usam o termo endoculturação

para designar o processo de aprendizagem eeducação em uma cultura; também significa oprocesso que estrutura o condicionamento da

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conduta, dando estabilidade à cultura. Aendoculturação é, nesse sentido, um aspectosincrônico importante, na medida em que possibilitaa manutenção do padrão cultural de uma sociedade.

Herskovits (1963: 55) usa o termoendoculturação para designar o processo deajustamento de respostas individuais aos padrões dacultura de uma sociedade. Segundo ele, “os aspectosda experiência de aprendizagem que distinguem ohomem das outras criaturas, e por meio dos quais,inicialmente, e mais tarde, na vida consegue sercompetente em sua cultura, pode chamar-seendoculturação. Constitui essencialmente umprocesso de consciente ou inconscientecondicionamento que se efetua dentro dos limitessancionados por determinado aspecto de costume.Por esse processo não só se consegue todaadaptação à vida social, como também todas aquelassatisfações, que, embora fazendo naturalmente parteda experiência social, derivam mais da expressãoindividual que da associação com outros no grupo”.

A endoculturação é, assim, o processo culturalresponsável principalmente pela padronização docomportamento humano através da transmissão devalores. A endoculturação se estende por toda avida do indivíduo e, dessa forma, modela suapersonalidade e garante a continuidade da cultura.Assim, nos primeiros anos de vida, quando ocorrem

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as primeiras experiências e contatos com a cultura, acriança absorve, porque lhe são impostos, oscondicionamentos fundamentais da cultura, comohábitos de comer, falar, agir, pensar. Porém, à medidaque passam os anos, o indivíduo pode, de formaconsciente, aceitar ou repudiar os valores culturaisque lhe foram impostos pelo processo deendoculturação. Conforme Herskovits (1963: 56), “aendoculturação do indivíduo nos primeiros anos devida é o mecanismo dominante para a formação desua estabilidade cultural, ao passo que o processotal como se opera em gente mais madura é muitoimportante na produção da mudança”.

O processo de endoculturação pode desaguarno etnocentrismo, ou seja, a atitude dos gruposhumanos de supervalorizar seus próprios valores,sua própria cultura. O etnocentrismo denota certoorgulho pela superioridade e credibilidade da própriacultura. A crença exacerbada na superioridade daprópria cultura implica, muitas vezes, julgamentospreconceituosos, e até mesmo racistas, queconsistem em ridicularizar valores, costumes ehábitos de outros povos.

1.2. Aspectos diacrônicosO processo cultural, no seu aspecto diacrônico,

significa que as culturas estão sempre emmovimento, isto é, em constante mudança. Os

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antropólogos entendem que a mudança cultural nãopassa de um aceleramento no ritmo de mudançacontínua pela qual todas as culturas estão passando.Os sociólogos costumam destacar que os conflitossociais, especialmente a luta de classes, constituem aprincipal causa ou motor das mudanças sociais eculturais. Ralf Dahrendorf, por exemplo, defende aposição sociológica típica ao estabelecer que “tudoo que é criatividade, inovação e desenvolvimento navida do indivíduo, de seu grupo e de sua sociedadedeve-se, em grande medida, à ação de conflitos” (inCHARON, 2000: 203).

Os antropólogos, de modo geral, preferemdestacar a descoberta, a invenção e a difusão comofenômenos que promovem mudanças etransformações culturais. Nesse sentido, dizem quehá mudança cultural quando: a) novos elementos sãoagregados ou os velhos aperfeiçoados por meio dedescobertas e invenções; b) novos elementos sãotomados de empréstimo de outras sociedades; c)elementos culturais, inadequados ao meio ambiente,são abandonados ou substituídos; d) algunselementos, por falta de transmissão de geração emgeração, se perdem.

A descoberta (aquisição de elemento novo:eletricidade, vapor) e a invenção (aplicação dadescoberta: lâmpada, máquina) implicam novosconhecimentos e novas aplicações de

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conhecimentos introduzidos em determinada culturae que migra (difusão) para outras culturas,promovendo mudanças em todas elas. Para LeslieSpier (in MELLO, 1982: 97), as invenções nãoconsistem apenas em engenhos mecânicos; as ideiastambém podem ser consideradas invenções. Aliás, aideia nova é a essência mesma da invenção,enquanto a máquina em si, o engenho e seuscomponentes são apenas partes do mundo físicoarranjados conforme a ideia nova. Por essas razões, ainvenção é tida pelo direito como propriedadeimaterial, bem incorpóreo de considerável valoreconômico.

1.2.1. InvençãoA invenção é um processo cultural de caráter

universal porque pode ser observada em todos ospovos e em todas as sociedades.

Conforme Ruth Benedict (in MELLO, 1982: 98), ohomem da idade da pedra já havia iniciado oprocesso essencialmente humano de inventar etransmitir suas invenções a seus semelhantes. Emmeados da idade da pedra, por exemplo, tinhadominado o fogo. Segundo ela, jamais se saberá oque levou alguns homens e mulheres a fazer usodoméstico, pela primeira vez, dessa força terrível edestruidora. Também jamais se saberão quais ascircunstâncias que os levaram a ferver a água sobre

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o fogo e como descobriram que podiam produzirfogo friccionando dois pedaços de madeira. Sejacomo for, em meados da idade da pedra, na Europa, ohomem já tinha aprendido essas coisas;transformara-as em parte da sua cultura transmitida.Aprenderam a acender e conservar o fogo e podiamusá-lo para aquecer-se quando fizesse frio, e paracozinhar e preservar seus alimentos. Era umainvenção complexa a prenunciar a interminávelcarreira do homem como grande inventor.

A invenção, ainda que não seja aceita deimediato pela sociedade, não deixa de estarassociada à cultura da sociedade do inventor. Linton(1971: 324, 325) reconhece que o conhecimentoincorporado numa invenção nova provém em partede uma descoberta recente, mas provém sempre e emsua maior parte da cultura da sociedade do inventor.O inventor constrói a sua invenção sobre opatrimônio de conhecimentos previamenteadquiridos; tudo o que é novo provém diretamentede outras coisas preexistentes. A cultura não sóproporciona ao inventor os instrumentos que ele temde usar para inventar, mas também controla, emgrande extensão, a direção de seu interesse.

Na sociedade capitalista as invenções tornaram-se propriedade valiosa, motivo pelo qual as grandessociedades empresárias apoderam-se delas mediantea remuneração da força de trabalho e da criatividade

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do inventor. Uma vez patenteada a invenção, asociedade empresária adquire o direito de explorareconomicamente e com inteira exclusividade o objetoda patente. No Brasil esse direito, tambémdenominado direito industrial, é concedido peloEstado, através de uma autarquia federal, o InstitutoNacional da Propriedade Industrial (INPI). Assim,ninguém pode reivindicar o direito de exploraçãoeconômica com exclusividade de qualquer invençãose não obteve do INPI a correspondente concessão.

1.2.2. Difusão e aculturaçãoDifusão e aculturação são palavras utilizadas

pelos antropólogos para significar o estudo sobre atransmissão da cultura. Alguns antropólogos usam otermo difusão para o estudo da transmissão culturaljá consumada e o termo aculturação para o estudoda transmissão cultural em marcha. O termoaculturação também é utilizado para o estudo dafusão de culturas diferentes.

Difusão cultural é um processo em que oselementos ou complexos culturais se difundem deuma sociedade a outra. As culturas, quandovigorosas, tendem a se estender a outras regiões,sob a forma de empréstimo mais ou menosconsistente. A difusão de um elemento da culturapode realizar-se por imitação ou por estímulo,dependendo das condições sociais, favoráveis ou

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não, à difusão. O tipo mais significativo de difusão éo das relações pacíficas entre os povos, numa trocacontínua de pensamentos e invenções. Nem tudo,porém, é aceito em sua totalidade. Quase sempreocorre uma modificação no traço de uma culturatomada de empréstimo pela outra, havendoreinterpretação posterior pela sociedade que oadotou. Um traço vindo de outra cultura através doempréstimo pode sofrer reformulações quanto àforma, à aplicação, ao significado e à função.

Aculturação, para alguns antropólogos, é afusão de duas culturas diferentes que, entrando emcontato contínuo, originam mudanças nos padrõesda cultura de ambos os grupos. Pode abrangernumerosos traços culturais, apesar de, na trocarecíproca entre as duas culturas, um grupo dar mais ereceber menos. Dos contatos íntimos e contínuosentre culturas e sociedades diferentes resulta umintercâmbio de elementos culturais. Com o passar dotempo essas culturas fundem-se para formar umasociedade e uma cultura nova. Os antropólogostambém falam em transculturação para significar atroca de elementos culturais entre sociedadesdiferentes.

A invenção, como visto, é um instrumento quepermite a difusão ou transmissão da cultura. Hoje, ainvenção, como propriedade, é protegidamundialmente porque considerada um objeto de

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comércio, uma mercadoria, portanto, pressupõe aimediata exploração e difusão em quase todas asculturas. A invenção é, nesse sentido, uminstrumento inconteste de difusão cultural. Aglobalização dos mercados intensificou de talmaneira a difusão das invenções que produziu certauniformização das culturas. Esse fenômeno adquiriuproporções mundiais, motivo pelo qual osantropólogos afirmam que não existe, hoje, culturaalguma que deva mais de dez por cento de seuselementos totais a invenções feitas pelos membrosde sua própria sociedade.

Com as conquistas coloniais e, maisrecentemente, com a globalização das comunicações,ocorre uma difusão cultural bastante intensa dospaíses centrais para os países periféricos. Aliás, oselementos da cultura brasileira foram tomados deempréstimo de outras culturas, especialmente as dospovos europeus, africanos e indígenas.

Em síntese, a invenção, por intermédio dadifusão: a) modifica as culturas; b) faz surgir novasculturas pela fusão de elementos de duas ou maisculturas; c) faz desaparecer determinadas culturas.

2. CULTURA E AMBIENTEO ambiente influencia o comportamento humano

e contribui para a formação de determinada cultura. Oestudo de comunidades primitivas mostra que toda

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cultura é influenciada pelo ambiente geográfico, que,portanto, constitui fator de construção, manutençãoe mudança cultural. Não se pode, contudo,estabelecer um determinismo geográfico, ou seja, quea configuração total de determinada cultura derivaexclusivamente do ambiente geográfico em quevivem os homens, visto que existem diferençasfundamentais de culturas que se desenvolvem umaapós outra no mesmo ambiente geográfico.

Os antropólogos reconhecem que há umintercâmbio entre ambiente e cultura, motivo peloqual existe, hoje, uma grande preocupação com asmudanças climáticas provocadas pelo crescimentodas forças produtivas e os efeitos que essasmudanças podem provocar nas culturas. Oaquecimento global certamente provocará odesaparecimento de forma mais rápida de muitos dosaspectos da cultura esquimó, mas também podeprovocar mudanças, talvez até radicais, em todas asculturas existentes.

2.1. Ambiente e direitoCom a intensificação do desenvolvimento das

forças produtivas a partir da instauração do modo deprodução capitalista, a complexidade da vida socialaumentou de forma considerável e com ela acontingência das relações humanas. Em outraspalavras, com o modo de produção capitalista o

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mundo se tornou mais problemático pela ampliaçãodo horizonte de possibilidades e pelo aparecimentode um universo mais amplo em alternativas. Noâmbito do direito isso significa que um número maiorde relações ou comportamentos mais variados torna-se juridicamente possível. O desenvolvimento dasforças produtivas coloca em evidência e em umpatamar mais complexo a relação homem/natureza,sobretudo no que diz respeito à exploração daatividade econômica e seu impacto no ambiente enas culturas. Vale dizer, a exploração da atividadeeconômica coloca em risco a saúde da natureza epode provocar profundas mudanças culturais.

De outra parte, a expansão do sistema capitalistaimpôs ao Estado nacional a função de produzir umalegislação compatível com as expectativas nãoapenas do empresário e do consumidor nacionais,mas, sobretudo, do empresário multinacional e dosconsumidores espalhados pelo mundo inteiro.

Com essa visão, pode-se afirmar que a legislaçãodo Estado nacional se submete a um duploimperativo socioeconômico. O primeiro visa garantira segurança e a expectativa do empresário(neutralização dos riscos) e atender, dessa maneira,as necessidades do cálculo econômico fundadonuma economia capitalista em expansão (maximizaçãodos resultados). O segundo visa fornecer ao Estado,através da legislação, um instrumento de intervenção

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na vida empresária, impondo determinadasalternativas e excluindo outras. Situações quepermitem afirmar o papel do direito como instrumentode gestão da sociedade, vinculado aos interessesempresariais, mas submetido à pressão social difusaque exige respeito a determinados valoressocialmente prevalecentes, como é o caso daexigência de um ambiente sadio.

Conforme aumenta a complexidade, o Estadoamplia ainda mais suas atribuições, tendo em vista oseu papel primordial: planejar, regulamentar,controlar e fiscalizar a atividade econômica para dargarantias e segurança aos investimentos e aosnegócios do empresário. Para a consecução dessesobjetivos, o Estado dispõe de mecanismos jurídicosque lhe possibilitam intervir diretamente naprodução, no consumo, no mercado, nos camposmonetário, tributário e fiscal. O Estado, portanto,assume cada vez mais o papel primordial de planejar,fiscalizar e estimular a exploração da atividadeeconômica e para isso utiliza um sistema de estímulose uma imensa máquina administrativa que concentramilhares de funcionários.

A atividade empresária se submete,primordialmente, à relação custo/benefício, portanto,depende de um cálculo econômico. Mas esse cálculodepende, em larga medida, do ordenamento jurídicoestatal, motivo pelo qual é necessário ter em conta as

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conexões que envolvem a relação exploração daatividade econômica/preservação do ambiente doponto de vista constitucional como forma deperceber as premissas que permitem ao Estadointervir na exploração da atividade econômica, comfundamento no exercício dos poderes de gestão.

2.2. Atividade econômica x defesa do ambienteA Constituição Federal (art. 170) estabelece que

a ordem econômica, fundada na valorização dotrabalho humano e na livre-iniciativa, tem por fimassegurar, a todos, existência digna, conforme osditames da justiça social, observado algunsprincípios, dentre os quais se destacam: a) oprincípio da soberania nacional: significa quenenhuma vontade pode impor-se de fora do pactoconstitucional (princípio que tem sido desprestigiadoem virtude da globalização dos mercados); b) oprincípio da propriedade privada: tido comocondição inerente à livre-iniciativa e lugar de suaexpansão (o princípio da função social dapropriedade aparece como um limite a esseprincípio); c) o princípio da livre concorrência:significa que a livre-iniciativa é para todos, semexclusões ou discriminações (esse princípio élimitado pela repressão ao abuso do podereconômico); d) o princípio da defesa do meioambiente: estabelece que uma natureza sadia é um

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limite à atividade econômica e também condição deseu exercício; e) o princípio da defesa do consumidor:significa que a produção deve estar a serviço doconsumo e não este a serviço daquela; f) o princípioda busca do pleno emprego: uma utopia no sistemacapitalista, daí a necessidade da expansão do dom.

Percebe-se que nas últimas décadas algunsprincípios foram fortalecidos (defesa do ambiente,defesa do consumidor, busca do pleno emprego) eoutros enfraquecidos (soberania nacional,propriedade privada, livre concorrência). Está emcurso, portanto, um movimento de reinterpretação dodireito.

A Constituição Federal atribui à iniciativaprivada (empresários) o papel primordial naexploração da atividade econômica ao proclamar oprincípio da livre-iniciativa como fundamento daordem econômica. Assim, a livre-iniciativa constitui abase sobre a qual se constrói a ordem econômica, eao Estado cabe apenas uma função supletiva. Comefeito, a Constituição Federal estabelece que aexploração direta da atividade econômica peloEstado só será permitida quando necessária aosimperativos da segurança nacional ou a relevantesinteresses coletivos. No caso da segurança nacional,são monopólios da União a pesquisa, a lavra, oenriquecimento, o reprocessamento, aindustrialização e o comércio de minérios e minerais

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nucleares e seus derivados. Afora essas hipóteses,todo o resto pode ser explorado pela iniciativaprivada diretamente ou por concessão estatal.

A Constituição não repudia o intervencionismoestatal na economia; pelo contrário, determina que oEstado é o agente normativo e regulador da atividadeeconômica, devendo exercer as funções de incentivo,fiscalização e planejamento. Tais funções assinalamas formas de intervenção do Estado na exploração daatividade econômica. Mas, como agente normativo eregulador, o Estado não substitui o mercado naconfiguração estrutural da economia. Ointervencionismo estatal, como já exposto, é umfenômeno típico da economia capitalista que nãopode prescindir do direito como instrumento degestão.

O intervencionismo refere-se ao exercício, porparte do Estado, de uma ação sistemática sobre aeconomia, exigindo-se desta uma otimização deresultados que se traduz por mais produção, maisconsumo, mais exportação e mais emprego, dadosque compõem um quadro de estatísticasconsideradas para medir o desempenho da economia.O intervencionismo expresso nos princípiosconstitucionais não consiste em um fenômeno quenega ou cerceia o acesso à livre-iniciativa; pelocontrário, o Estado deve assegurá-la e estimulá-laatravés de ações sistemáticas fundadas na lei. O

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intervencionismo não se faz contra o mercado, mas aseu favor. O mercado como mecanismo decoordenação e organização do processo econômicoe que pressupõe o reconhecimento do direito depropriedade dos bens de produção e a liberdade deiniciativa é mantido no intervencionismo como oprincípio regulador da economia.

A livre-iniciativa, contudo, encontra limites emoutros princípios constitucionais que autoriza oEstado a reprimir o abuso do poder econômico, aconcorrência desleal, a poluição da natureza, odesmatamento não autorizado etc. Dado que aexploração da atividade econômica, no aspecto dalivre-iniciativa, é regida por um cálculo econômicofundado na relação custo/benefício, esta relaçãoparece ser o caminho que permite esclarecer acontraposição exploração da atividade econômicax defesa do ambiente.

2.3. Relação custo/benefícioA exploração da atividade econômica gera

custos não apenas para o empresário que a explora,mas também para a sociedade: polui o ambiente,esgota fontes de matéria-prima, contribui para oaquecimento do planeta, reclama investimentospúblicos e infraestrutura. Esses custos sociaispodem ou não ser compensados com os benefíciossociais que a mesma atividade econômica propicia

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para a sociedade: aumento da produção e consumo,criação de novos negócios e geração de empregos.A equação entre custos sociais e benefícios sociaisnem sempre é equilibrada, ensejando o que sedenomina externalidade.

Externalidade é todo efeito (negativo oupositivo) que um agente econômico produz sobre aatividade econômica, a renda ou o bem-estar deoutros, sem compensar os prejuízos que causa e semser compensado pelo benefício que traz.

A relevância da externalidade guarda relaçãocom o crescimento da atividade econômica. Assim, aacentuada agressão de determinada atividadeeconômica ao ambiente transforma-se numaexternalidade relevante negativa que exige respostamediante a escolha de alternativas: interditar aatividade poluidora ou controlar a poluição. O direitoambiental não tem respondido a essa transformaçãocom a interdição das atividades poluidoras, e simmediante mecanismos mais ou menos eficientes docontrole de produção de poluentes.

Não há como eliminar, na exploração deatividades econômicas, determinada margem deprodução de efeitos negativos ou positivos nãocompensáveis. Uma vez conferida relevância a certosefeitos produzidos pela atividade econômica, cabedefinir os mecanismos de compensação(internalização das externalidades), através da

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imputação de obrigações aos empresários pelosefeitos considerados negativos, e doreconhecimento de direitos em relação aos reputadospositivos.

Alguns teóricos entendem que as externalidadesdevem ser realizadas por meio de mecanismos dedireito tributário. Em síntese, diante da exploração dedeterminada atividade econômica devem-secontrapor os efeitos negativos e positivos para asociedade. A preponderância de efeitos negativosimplicaria uma carga tributária maior e oreconhecimento de preponderância de efeitospositivos implicaria isenções tributárias. Outrosteóricos entendem que as externalidades refletemsituações conflitantes que devem ser solucionadaspelos próprios interessados. No sistema capitalistaessas duas concepções não se excluem.

Mas, com o avanço das teses ambientalistas, oprincípio da preservação do ambiente passa a ser umlimite à atividade econômica e também sua condiçãode exercício.

2.4. Urgência do problemaPreocupados com a destruição que a exploração

da atividade econômica tem provocado, algunsgovernos propõe a hipótese do desenvolvimentoeconômico sustentável, com um mínimo de agressãoao ambiente. Alguns ambientalistas estabelecem um

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referencial teórico fundado na concepção de umaTerra viva, organizada, autossuficiente e plena desabedoria, tendo em vista, especialmente areconciliação do ser humano com a natureza, cujacisão foi provocada pelo racionalismo moderno. Essareconciliação permitiria apontar respostas para oproblema da exploração da atividade econômica e aproteção do ambiente.

Há, de outra parte, uma preocupação mundial nosentido de encontrar respostas que possibilitemcompatibilizar a exploração da atividade econômicacom a preservação do ambiente, que significariaestabelecer uma conexão inexorável entre direitoambiental e direito empresarial. Com outras palavras,é preciso estabelecer regras que façam prevalecer oprincípio segundo o qual uma natureza sadia é umlimite à atividade econômica e também a suacondição de exercício.

Para alguns ambientalistas, a relação queenvolve “exploração da atividade econômica eproteção do ambiente” não pode ser tratada comouma questão local, circunscrita apenas ao territóriodo Estado nacional; deve ser tratada como umaquestão mundial. Em virtude disso, o tema provocaquestionamentos sobre a noção de soberania quelegitima e convalida o direito positivo emanado dosórgãos estatais com competência para legislar. Há ummovimento internacional apoiado por alguns países e

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várias organizações internacionais no sentido deestabelecer uma legislação de cunho internacional,com regras claras sobre a exploração da atividadeeconômica e a preservação do ambiente.

O tema, portanto, transcende as fronteiras dosEstados nacionais e se insere no contexto mundial,motivo pelo qual se tem insistido na necessidade deuma política ambiental globalizada. De outra parte, hátambém pressões sobre a Organização Mundial doComércio (OMC) no sentido de fixar algum tipo devinculação entre acordos comerciais e proteção aoambiente. Enfim, o tema é motivo de preocupaçãomundial e já provoca perturbações sociais, visto queas manifestações de grupos organizados estãosendo reprimidas com o uso da força.

De outra parte, é preciso considerar que o tema“exploração da atividade econômica e a proteção doambiente” repercute em diversas áreas doconhecimento. Trata-se, indubitavelmente, de umproblema interdisciplinar que evoca a contribuiçãode diversas áreas do saber. As diferentes áreas dosaber, ao tratar do ambiente, progridem ao encontroumas das outras. A reflexão sobre o referido temamostra, de forma cabal, a convergência e ainterligação entre direito e antropologia.

É preciso, contudo, considerar que o empresárioé a figura de destaque no direito contemporâneo. Éfato que aqueles que pretendem explorar uma

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atividade econômica nutrem expectativas de lucros.Vale dizer, os investimentos do empresário liga-se àneutralização dos riscos e à maximização dosresultados. A lógica do sistema capitalista implica aconcentração e aumento de riquezas, portanto, aspessoas investem dinheiro em determinada atividadeeconômica para auferir lucros e não movidos peloamor à humanidade ou pela prática do dom. Omovimento do empresário se submete à influênciadecisiva da razão instrumental que orienta o cálculoeconômico na elaboração da equaçãocusto/benefício. Sob a tutela da razão instrumentalcorrem soltas a agressão e a destruição do ambienteao privilegiar o fim da exploração da atividadeeconômica, que é o lucro.

Conciliar esse problema não é tarefa simples. Há,por um lado, as externalidades positivas decorrentesda exploração da atividade econômica (otimização daeconomia) e, por outro lado, as externalidadesnegativas (o dano ambiental). Algo, porém, é certo:as coisas não podem ficar como estão, as mudançassão necessárias e inadiáveis. Algo também é certo,independentemente do teor dessas mudanças, elasdeverão ser organizadas juridicamente.

A alta complexidade que envolve as relações nomundo contemporâneo demonstra de forma cabalque o direito é algo inacabado, em processo deconstrução. A adaptação dos profissionais do direito

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a essa nova realidade implica romper com oparadigma dominante: o positivismo jurídico. Expõe-se, no capítulo seguinte, o perfil desse modeloteórico dominante, fazendo-lhe as devidas críticas eapontando o perfil de um modelo emergente.

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XXI CIÊNCIAJURÍDICA

1. MODELO TEÓRICO DOMINANTEAo longo do século XX predominou nas

Faculdades de Direito o modelo teórico denominadopositivismo jurídico, motivo pelo qual o ensinojurídico tem negligenciado as contribuições daantropologia e de outras áreas do conhecimento.Para compreender os motivos desse afastamento, énecessário expor, ainda que de forma abreviada, oscontornos do positivismo jurídico na sua forma maiselaborada.

Hans Kelsen é o teórico que eleva o positivismojurídico ao seu patamar mais alto. Em 1934 publica aTeoria pura do direito , na qual retoma as teses dopositivismo jurídico do século XIX. Nessa obra elegea autonomia da ciência jurídica como o problemafundamental da sua tese e confere-lhe método eobjeto próprios, capazes de assegurar ao jurista oconhecimento científico do direito. Para issoestabelece um princípio metodológico, o princípioda pureza, com o qual pretende reduzir acomplexidade do objeto do direito ao afastar da

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ciência jurídica as ingerências intrusas,potencialmente perturbadoras, de ordemepistemológica e axiológica. Para Kelsen, o objeto daciência jurídica consiste em normas jurídicas, e atarefa do jurista (cientista do direito) consiste emdescrever e sistematizar esse objeto medianteproposições.

De acordo com Kelsen, o conhecimento jurídico,para ser científico, deve ser neutro. Não cabe aojurista fazer julgamentos nem avaliações sobre asnormas. No exercício da sua atividade, o jurista deveafastar tanto as dimensões axiológicas, que implicaproferir juízos de valor a respeito das normas, comoas dimensões epistemológicas, que implicammotivações específicas de outras ciências, como aantropologia, a sociologia, a economia, a política, apsicologia etc. Essas dimensões comprometeriam averdade das proposições que o cientista enunciasobre as normas. Vale dizer, o raciocínio jurídico nãodeve versar sobre o que é certo ou errado, adequadoou inadequado, justo ou injusto, virtuoso ou vicioso,conveniente ou inconveniente, mas sim sobre o lícitoe o ilícito, o legal (constitucional) e o ilegal(inconstitucional), o válido e o inválido, a eficácia e aineficácia. Desse modo, é sempre possível que umanorma, indubitavelmente injusta, inadequada einconveniente, quando submetida ao modelo teóricopositivista, possa ser considerada legal, válida, lícita

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e eficaz.

1.1. Sistema de normasPara garantir a racionalidade da ordem jurídica,

tem-se na Teoria pura a noção de norma hipotéticafundamental, no sentido de primeira normatranscendental. É uma norma suposta, vale dizer, nãoé editada por um ato de autoridade, não possui umconteúdo, é uma exigência lógica, apenas uma ficçãoque sustenta o fundamento de validade da ordemjurídica, evitando uma regressão ao infinito ou adiscussão política sobre a legitimidade do poderoriginário. À norma hipotética fundamental que ésuposta segue-se a primeira norma posta, que, nocaso do Brasil, corresponde ao conjunto normativoda Constituição Federal.

A primeira norma posta e as demais que lhesucedem derivam de atos de vontade do podersoberano, e esse poder deve garantir a efetividade daordem normativa. Vale dizer, a norma é válida se foreditada pela autoridade competente e possuir ummínimo de eficácia. A validade da norma repousa nacompetência normativa de seu editor, que é conferidapor outra norma e assim, sucessivamente, numa sériefinita que culmina na norma fundamental. Essaestrutura possibilita ao jurista organizar o sistemadinâmico de normas relacionando-as a partir deregras de competência, reguladoras da produção

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normativa. A mesma estrutura possibilita organizar osistema estático, relacionando as normas a partir deseus conteúdos. A norma emanada de quem possuicompetência para editá-la deve manter conteúdocompatível com a norma que lhe é imediatamentesuperior.

Assim, uma norma sempre se fundamenta emuma outra que lhe é superior, no que diz respeitotanto à competência quanto ao conteúdo. Uma dastarefas do jurista consiste em elaborar oencadeamento hierárquico de normas, medianteproposições, tanto na perspectiva do sistemadinâmico quanto na do sistema estático. Nessaestrutura, uma norma vale não porque é justa, masporque está em conformidade com uma normasuperior na qual se fundamenta. Todo o universonormativo vale e é legítimo em função dessahierarquia, ou seja, em função desse encadeamentológico. Da norma fundamental não se pode exigir queseja justa. Mesmo uma norma fundamentalconsiderada injusta valida e legitima o direito quedela decorre.

O direito é, desse modo, uma ordem coativa, umconjunto de normas que prescrevem sanções. Aconduta contrária à norma é considerada ilícita e aconduta em conformidade com a norma éconsiderada um dever jurídico. O Estado seconfunde com o direito porque nessa estrutura ele

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nada mais é do que o conjunto das normas queestabelece competência e prescreve sanções deforma organizada. Como se nota, esse modelo teóriconão permite estabelecer conexões entre direito eantropologia, isso fica mais evidente pela análise doobjeto que tal modelo considera como o da ciênciajurídica (normas jurídicas) e o resultado da produçãodo jurista (proposições jurídicas).

1.2. Norma e proposiçãoPara o positivismo jurídico, a norma é um dever-

ser que confere ao comportamento humano umsentido prescritivo. Assim, o fato ou a condutahumana possui o significado jurídico que a norma lheatribui. Por esse motivo, a ciência jurídica éfundamentalmente diferente das outras ciências.Estas operam com o princípio da causalidade (dadoA é B), relacionam fatos, sendo um causa e o outroefeito, atuam no mundo do ser (mundo natural). Aciência jurídica atua no mundo do dever-ser (mundocultural), opera com o princípio da imputação (dadoA, deve ser B). Esse princípio prevê determinadasanção (B) que deve ser imputada a uma condutaconsiderada pelo direito como ilícita (A). O jurista(cientista do direito) estabelece, na proposiçãojurídica que descreve a norma jurídica, ligações entreum antecedente (conduta ilícita) e um consequente(sanção).

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Norma e proposição enunciam um dever-ser. Há,entretanto, diferenças essenciais entre uma e outra.O enunciado da norma é prescritivo porque resultade um ato de vontade; nesse sentido, a norma éválida quando emana de uma autoridade competenteou inválida em caso contrário. O enunciado daproposição é descritivo porque resulta de um ato deconhecimento do cientista do direito; nesse sentido,a proposição é verdadeira quando o seu enunciadoestiver em conformidade com a norma ou falsa nocaso contrário. A veracidade e a falsidade sãoatributos da proposição, enquanto a norma apenaspode ser válida ou inválida.

As normas que perfazem o ordenamento jurídiconão aparecem sistematizadas nos instrumentosjurídicos. Vale dizer, o sistema jurídico não possuilógica interna. A alta complexidade social exige dasautoridades competentes uma produção contínua eininterrupta de normas, de modo que as normas maisparecem peças de um gigantesco quebra-cabeçadesmontado, cujas peças espalhadas (naConstituição, nas leis, nos decretos, nas portarias,nas instruções normativas) devem ser reorganizadasconforme as regras estabelecidas nos sistemasdinâmico e estático de normas. O “sistema denormas” adquire contornos lógicos de uma formaderivativa, por intermédio do sistema de proposiçõeselaborado pelo jurista.

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A racionalidade da ordem jurídica implicaenxergar o direito como sistema unitário e hierárquicode normas. Essa racionalização, entretanto, provocaalgumas separações entre: direito e ação política,direito e antropologia, direito e sociologia, direito eética e culmina na purificação do direito ou nareificação da norma jurídica. Exige-se que o juristaparta do pressuposto segundo o qual as normasadvêm de um legislador racional, possuem vidaprópria e são capazes de condicionarcomportamentos sem serem condicionadas por eles.Assim, o direito aparece separado da cultura, da vidasocial, da história e dos homens responsáveis pelasua criação e aplicação.

1.3. Norma e interpretaçãoNo que diz respeito à interpretação da norma

jurídica, isto é, à determinação do seu real alcance esentido, a teoria pura entende que de uma mesmanorma podem-se extrair diversos significados. Aprimeira norma posta não determina de modoexaustivo todas as situações, de modo que sempreresta uma margem de indeterminação. Além disso, asnormas são genéricas (textura aberta), nãocircunscrevem exatamente os objetos a que sereferem e por isso permitem interpretaçõesdivergentes. Junte-se a isso o fato de que as normasestão expressas na linguagem natural, cujas palavras

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são sempre vagas e ambíguas e, por isso, denotam econotam diversos significados. Por essas razões, ateoria pura nega a possibilidade de uma interpretaçãoverdadeira, mas distingue a interpretação autênticada não autêntica.

Interpretação não autêntica (doutrina) é arealizada pelo cientista do direito, que, mediante atocognitivo, deve fixar os diversos significadospossíveis da norma jurídica. A autêntica(jurisprudência) é a realizada pelo órgão jurisdicional,que, no exercício da competência jurídica, decideconflito com base em um ato de vontade, que podeestar ou não em conformidade com um dossignificados oferecidos pela doutrina. Vale dizer, ojuiz, quando decide, não realiza ato de conhecimento,manifesta sua vontade. Isso é assim porque a teoriapura considera a sentença uma norma jurídicaindividual, emanada de uma autoridade competenteque estabelece uma sanção.

Nesse sentido, a sentença passa a compor oconjunto de normas jurídicas que constituem oobjeto da ciência jurídica. Sobre ela incide, portanto,o princípio da pureza, que implica a neutralidade docientista. Mesmo que o conteúdo da sentença sejavisivelmente injusto ou ilegal, não cabe ao cientistado direito qualquer manifestação valorativa sobre adecisão. A sentença é uma norma jurídica e, como tal,não é justa nem injusta, apenas vale.

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Desse modo, a teoria pura protege a vontadenormativa (do Congresso ou do Tribunal) dequalquer crítica do cientista do direito. Com issodesqualifica tanto as qualidades do sujeito doconhecimento como as do objeto a ser conhecido. Ocientista do direito (sujeito do conhecimento) deveser neutro, porque a norma (objeto a ser conhecido),embora seja tida como um produto da vontadehumana, não pode ser valorada ou qualificada.Paradoxalmente, o positivismo jurídico estabelece aideia segundo a qual a solução para qualquerproblema jurídico já está dada, a priori, no sistemade normas.

Enfim, na perspectiva da teoria pura, o juristacuida de proposições normativas e não de fatos. Nãose pode olvidar, porém, que a experiência jurídicapressupõe uma referência das proposiçõesnormativas a comportamentos reais. Na medida emque isso se coloca como problema para o jurista,surge a necessidade de esclarecer as relações entrefato e norma. A correlação entre fato e norma permiteentender o direito como sistema aberto, dependentede outros que o abrangem e circunscrevem. Esseantiformalismo resulta do contraste entre direitoposto e direito aplicado, da imensa distância queexiste entre o direito formalmente válido e a realidadesocial a que se reporta. Daí a necessidade dodeslocamento da análise para o momento em que a

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norma produz impacto e atua na realidade social.

2. MODELO TEÓRICO EMERGENTEInfluenciado pelo positivismo, o saber jurídico

se tornou um saber dogmático, visto que o sistemade normas aparece como um dado, o ponto departida de qualquer investigação, que os juristasaceitam e não negam. As normas são mantidas comodogmas inatacáveis, são assumidas comoinsubstituíveis e inquestionáveis. O sistema denormas constitui uma espécie de limitação, umaprisão que tolhe a liberdade do jurista no trato com aexperiência normativa. Essa limitação teórica conduza exageros, motivo pelo qual há quem faça do estudodo direito um estudo voltado para um conhecimentomuito restrito, legalista e cego para a realidade comoum fenômeno social.

Esse tipo de estudo, fechado e formalista, éimplementado na maioria das Faculdades de Direito.Essas instituições de ensino passam a formarprofissionais que não questionam os pontos departida (dogmas) e, com isso, as normas sãoconsideradas convenientes, adequadas, justas eirrepreensíveis. As disciplinas que poderiamprovocar o questionamento crítico (antropologia,filosofia, sociologia), não raras vezes, sãodesignadas pelos especialistas por “perfumariasjurídicas”.

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2.1. Zetética jurídicaHá, segundo Ferraz Jr. (1995: 39 e s.), duas

possibilidades de proceder à investigação de umproblema jurídico: acentuando o enfoque dogmáticoou o enfoque zetético. Os dois enfoques não seexcluem, estão correlacionados, mas o predomínio deum deles revela consequências diferentes. O enfoquedogmático, como visto, não questiona os dogmas(normas), portanto, diante de um problema, consideraque a solução já está previamente dada oupressuposta no sistema de normas (dogmas).

Ao contrário do enfoque dogmático, o zetéticoproblematiza as próprias normas (dogmas). Estas,portanto, ficam abertas à dúvida, conservam o seucaráter hipotético e problemático, permanecemabertas à crítica e à criatividade. As normas servem,de um lado, para delimitar o horizonte dos problemasa serem tematizados e decididos, mas, ao mesmotempo, ampliam esses horizontes. Assim, o enfoquezetético revela-se como um saber especulativo, semcompromissos imediatos com a ação, que envolvequestionamentos extraídos de diversas áreas doconhecimento.

Sob o enfoque zetético, as normas comportampesquisas de ordem antropológica, filosófica,sociológica, histórica, política etc. Nessa perspectivao investigador preocupa-se em ampliar as dimensõesdo fenômeno, sem se limitar aos problemas relativos

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às decisões dos conflitos. Pode encaminhar suainvestigação para os fatores reais do poder queregem uma comunidade, para as bases econômicas eos reflexos na vida cultural ou social e política, para olevantamento dos valores que orientam a ordemconstitucional, para uma crítica ideológica do atualestágio dos diversos ramos do direito: ambiental,empresarial, penal, civil, tributário etc.

A investigação zetética não exerce exatamenteum papel apaziguador, no sentido de conceder totalsegurança à construção e à interpretação jurídica.Mais do que fornecer uma resposta para determinadotema, cuida mais da tarefa de problematizá-lo. Assimocorre com os temas ou problemas enunciados deforma mais genérica, por exemplo, a questão dajustiça, da liberdade, da igualdade, do ambiente, dafunção social da propriedade, dos direitos humanose sociais. Assim ocorre também com os temas ouproblemas enunciados de forma mais específica,porque referentes a um conjunto de situaçõesaparentemente menos abrangentes e complexas,como, por exemplo: institucionalização ou legalizaçãoda tortura, inseminação homóloga, reprodução invitro, clonagem, alimentos transgênicos, pesquisacom célula tronco, contrato de gestação, eutanásia,união estável de pessoas do mesmo sexo, adoçãopor casal do mesmo sexo, aborto, penas alternativas,abandono clínico de crianças portadoras de

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deficiências, pena de morte, crimes hediondos etc.

2.2. Zetética e dogmáticaNuma investigação dogmática, as normas

constituem pontos de partida, que não podem sernegados. As normas são, contudo, expressas empalavras, e estas são sempre vagas e ambíguas, fatoque exige interpretação. As normas são um produtoabstrato e as regras de interpretação (dogmas quedizem como devem ser entendidas as normas) sãotambém produtos abstratos. Tem-se, desse modo,uma dupla abstração, que consiste em isolar normase regras de seus condicionamentos zetéticos(antropológicos, econômicos, políticos, sociais,históricos, filosóficos). Essa dupla abstraçãoprovoca o distanciamento progressivo dacompreensão do direito da própria realidade social.

É certo que a dogmática, depende do princípioda inegabilidade dos pontos de partida, mas não sereduz a ele. Ao interpretar a norma, o jurista criacondições para se libertar dos pontos de partida,visto que é possível extrair de uma mesma normavários significados. O ato interpretativo queacompanha a resposta ou decisão dificilmentereproduz o sentido imediato da norma; geralmentelhe confere um sentido mais abrangente ou adverso.A decisão ou resposta, embora possa parecer, não seenclausura totalmente nas normas. Nesse sentido, a

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dogmática jurídica, em vez de ser considerada umaprisão para o espírito, permite o aumento daliberdade no trato com a experiência normativa. Valedizer, a dogmática jurídica não se exaure na afirmaçãodo dogma estabelecido, mas interpreta sua própriavinculação, fato que permite ao jurista certamanipulação no ato interpretativo.

Visto desse ângulo, percebe-se que oconhecimento dogmático dos juristas, emboradependa dos pontos de partida (os dogmas), gira emtorno de incertezas. Essas incertezas são justamenteaquelas que, na sociedade, foram aparentementeeliminadas (ou inicialmente delimitadas) pelosdogmas. Por exemplo, diante da incerteza a respeitode se é possível a união estável entre pessoas domesmo sexo, e o Poder Judiciário edita uma decisãoreconhecendo o direito do parceiro sobrevivente departicipar do espólio do parceiro falecido, cabe aosaber dogmático retomar a incerteza primitiva,indagando, por exemplo: a) Que é família? b) Que éunião estável? c) É possível união estável entrepessoas do mesmo sexo? d) Qual o período mínimopara estabelecer a existência de união estável? e) Asociedade aceita a união estável ou casamento depessoas do mesmo sexo? e) No atual estágio dasociedade, é comum união estável de pessoas domesmo sexo? f) Qual o meio juridicamente aceito paraestabelecer a existência de união estável? O mesmo

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movimento vale para outras incertezas, como oaborto, a eutanásia, a tortura, o abandono clínico, opreconceito etc. Com isso o jurista retoma a incertezaprimitiva, ampliando-a, mas de maneira controlada,isto é, aumentando-a a um grau de suportabilidadesocial, de modo a tornar decidíveis os eventuaisproblemas e conflitos.

Para a dogmática, o tema ou o fato da uniãohomoafetiva (e outros temas, como mudança de sexo,eutanásia, institucionalização da tortura, clonagem,abandono clínico, guarda conjunta, reproduçãoassistida, concepção in vitro, abandono clínico decrianças portadoras de deficiência, pesquisa comcélula tronco) representa um ponto de partida queexige respostas ou decisões jurídicas. Nesse sentido,podem-se apontar as relações do tema da uniãohomoafetiva (do preconceito, da mudança de sexo,da institucionalização da tortura, do aborto, da penade morte etc.) com o direito à vida, à propriedade, àliberdade de escolha, à igualdade de oportunidades,às condições de inserção no campo profissional, àdignidade do ser humano etc. Para a zetética, ostemas antes anotados, implicam a questão anterior decomo, em nossa sociedade, esses temas antes seconstituíram como fatos ou problemas, ou seja,surgem perguntas sobre as experiências culturais ehistóricas que permitiram o surgimento dos própriostemas. Se para a dogmática a noção de união

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homoafetiva constitui ponto de partida de umaconstrução teórica com vistas à decisão de conflitos,para a zetética o ponto de partida é a construçãodessa noção, que se apresenta como dado e comoportadora de uma realidade objetiva.

Por influência do positivismo jurídico a ciênciajurídica configurou-se como saber dogmático. Éóbvio que o estudo do direito não se reduz a essesaber. Assim, embora o jurista seja um especialistaem questões dogmáticas, é também, em certa medida,um especialista em questões zetéticas, visto que,diante da alta complexidade que o mundocontemporâneo imprimiu aos problemas jurídicos,muitas vezes, precisa abordar e enquadrar o tema nãoapenas nos seus aspectos jurídicos, mas também nosseus aspectos antropológicos, econômicos,sociológicos, políticos, filosóficos, éticos, históricosetc.

Hoje, o debate sobre temas jurídicos maispolêmicos, como o imigrante ilegal, o aborto, a uniãohomossexual, a deficiência, a eutanásia, ademarcação das terras dos índios, o reconhecimentodos quilombos, as ações afirmativas etc., requeralgumas incursões na antropologia. Um debate sériosobre esses temas exige a consideração do princípioda alteridade, que implica colocar-se na posição dooutro: do imigrante, da mulher, do homossexual, dodeficiente, do doente terminal, do índio, do negro etc.

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Além da alteridade, a discussão jurídica dessestemas exige dos atores o domínio de algunsconceitos antropológicos, especialmente o decultura, que, como visto, é bastante complexo e dedifícil definição.

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