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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
“MÃES PELA DIVERSIDADE”: AS POLÍTICAS DA PARENTALIDADE EM UM GRUPO
ATIVISTA DE MÃES E PAIS DE PESSOAS LGBT
Arthur Leonardo Costa Novo1
Resumo: Explicitar o caráter político das concepções científicas, religiosas e morais sobre família e
parentesco tem sido um empreendimento fundamental dos movimentos feministas e LGBT desde o
século XX. A luta pela legitimidade das “famílias que escolhemos” diante da naturalização dos
laços das “famílias de origem”, as novas tecnologias reprodutivas, as homoconjugalidades e as
homoparentalidades são alguns fenômenos que caracterizam esse cenário de disputa. Formas de
viver o parentesco tornam-se espaços de transformação política, desestabilizando a concepção de
que a família é natural e seus problemas são particulares. Neste contexto, um grupo de ativismo tem
ganhado visibilidade no cenário dos movimentos sociais brasileiros: as “Mães pela Diversidade”,
reunindo mães e pais de pessoas LGBT no combate à discriminação dessa população. Este trabalho
é uma análise de como essas pessoas significam suas vivências de militância e parentalidade,
observando como acionam e atualizam sistemas simbólicos de gênero e parentesco para a
manutenção de relações familiares pelo ativismo. Para tanto, utiliza-se do método de análise de
narrativas, estas produzidas em entrevistas semiestruturadas com integrantes do grupo. Na medida
em que a figura da “mãe” emerge como protagonista deste movimento, busca-se questionar as
continuidades e transformações desta vivência de parentesco politizada.
Palavras-chave: Parentesco. Família. Parentalidade. Ativismo. LGBT.
Notas introdutórias
As reflexões que proponho aqui têm caráter exploratório, objetivando tecer algumas
questões a respeito do que identifico como uma forma de experienciar o parentesco em práticas de
ativismo e de trocas coletivas entre mães e pais de filhos gays, lésbicas, bissexuais e transexuais.
Para tanto, tomo como objeto de escrutínio as práticas e discursos de integrantes do coletivo Mães
pela Diversidade (MPD), entendendo que este tem despontado no cenário nacional como uma
referência para o ativismo de “famílias de LGBT”, para usar uma expressão do vocabulário nativo.
O que desenvolvo a seguir resulta de uma primeira incursão a campo2 realizada em maio recente,
em Natal (RN), e entre os dias 14 e 21 de junho, na cidade de São Paulo, por ocasião da
programação relacionada à Parada do Orgulho LGBT. Em Natal, dialoguei com duas participantes
do MPD e realizei uma primeira entrevista semiestruturada com uma delas. Em São Paulo,
participei de atividades realizadas durante o período mencionado e conversei com diversas pessoas
que participam do MPD em São Paulo e outros estados, chegando a entrevistar uma mãe paulistana.
1Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGAS/UFRN), Natal/RN,
Brasil. 2Aproximei-me do MPD como estratégia para entrada em campo para minha pesquisa de doutorado sobre as
transformações na rede de relações de parentesco quando um parente reivindica o gênero oposto ao designado no
nascimento e investe no complexo de práticas e discursos que constituem o fenômeno da transexualidade.
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O Mães pela Diversidade é um coletivo3 nacional de mães e alguns poucos pais de gays,
lésbicas e transexuais fundado em São Paulo a partir da fragmentação de um grupo vinculado ao
Partido dos Trabalhadores (PT), que também se propunha a fomentar um ativismo de familiares
contra a discriminação dessa população. O afastamento desta atuação partidária visava autonomizar
“a causa” específica que os unia: o combate às diversas formas de violência que pessoas como seus
filhos poderiam sofrer e a demanda para que o Estado reconhecesse os direitos dessa população. Ao
mesmo tempo, objetivavam direcionar a atuação do grupo para o “acolhimento” de mães e pais e
que necessitassem de apoio diante das dificuldades de viver o “se assumir” de um filho, visando
alcançar famílias de diferentes contextos socioculturais, políticos e religiosos.
O MPD ramifica sua atuação em coordenações estaduais pelo Brasil, que se organizam
principalmente a partir de “salas”, grupos fechados no Facebook e no WhatsApp que reúnem
apenas as mães e pais de uma região específica para organizar encontros e atividades presenciais.
Esses espaços de interação virtual coexistem com o Grupo Nacional Mães pela Diversidade no
Facebook. Diferente das “salas”, este é aberto a pessoas de qualquer localidade e é movimentado
por muitas postagens diárias, boa parte delas de autoria de pessoas que não participam das MPD.
Parte das postagens são compartilhamentos de conteúdos de outras páginas contra a discriminação
de gays, lésbicas e transexuais e de valorização e celebração identitária. Outras são pedidos de
ajuda, que variam de busca de conselhos a chamados de socorro para “filhos” que foram expulsos
de casa e precisam de um lugar para ficar por uma noite, para os quais rapidamente são mobilizadas
redes de “marcações” de integrantes do MPD responsáveis pelo “acolhimento” ou apoiadores na
região.
Desde dezembro de 2016, venho acompanhando as atividades de ativismo virtual realizado
por alguns participantes do MPD e as postagens diárias no Grupo Nacional Mães pela Diversidade
no Facebook. Aproximei-me, inicialmente, como alguém simpático à ideia de famílias que lutam
pelos direitos de seus filhos homossexuais e transexuais. A partir do momento em que as Mães se
tornaram um interesse de pesquisa, compreendi que precisaria “estranhar” essas mães, nos termos
de Gilberto Velho (1978), produzindo a necessária relação de alteridade que cria o espaço de
imbricação entre as “teorias nativas” e aquelas da disciplina, este ponto de tensão no qual está
situado o conhecimento antropológico (Fonseca, 1999).
Tal movimento seria o primeiro passo para avançar na questão inicial que me orientava
nesta entrada em campo: quem são as Mães pela Diversidade em termos socioantropológicos, ou
3No período de escrita deste trabalho, o coletivo estava finalizando a documentação para se institucionalizar como uma
associação.
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seja, enquanto um fenômeno cultural, social e político na contemporaneidade brasileira?Esboçarei
de forma ensaística algumas linhas de reflexão para essa indagação descrevendo e analisando as
características das lideranças e integrantes do MPD com quem dialoguei e que entrevistei.
Avançarei, em seguida, para o segundo ponto que orienta este trabalho: aproximar-me dos sistemas
de significados de parentesco e gênero que são acionados pelo MPD nas suas práticas e discursos,
observando como estes são articulados e atualizados para legitimar as escolhas queos tornaram
mães ou pais que valorizam, respeitam e acolhem a “diversidade” de seus filhos.
Famílias fora do armário...?
Alguma iluminação para estes questionamentos foi possível quando estive em São Paulo
acompanhando parte das atividades em que se engajou o Mães pela Diversidade por ocasião da
Parada do Orgulho LGBT de São Paulo de 2017, conforme mencionei anteriormente. Realizei
observação participante na 17ª Feira Cultural da Diversidade, onde o MPD estava com um estande
de venda de artesanato e produtos temáticos com a logo do grupo, e na confraternização que
ocorreu na tarde anterior à Parada. Nesta ocasião reuniram-se lideranças de outros estados, como
Rio de Janeiro, Santa Catarina, Goiás e Pernambuco. Na sequência, descreverei, a partir de minhas
notas e diários de campo, o que pude apreender sobre as pessoas que participam do coletivo a partir
das interações em que me engajei nessas duas ocasiões.
O estande do MPD na Feira Cultural da Diversidade era possivelmente um dos que contava
com o maior número de pessoas para auxiliar, primeiramente, na montagem do espaço, finalizada
pontualmente no horário de abertura da feira pela manhã, e depois no atendimento ao público.
Havia muitos jovens e várias mulheres com a camiseta do grupo organizando a exposição dos
diferentes itens que estavam à venda. Por volta das 11h, houve um burburinho geral com a chegada
do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, acompanhado por uma comitiva de assessores,
repórteres de televisão e fotógrafos. Foi tudo muito rápido: o governador cumprimentou as
coordenadoras nacionais, pronunciou algumas palavras, posou para fotos segurando a camiseta do
grupo e então partiu, não sem que alguém entoasse “fascista!”, o que passou despercebido. Antes,
em uma roda de conversa na qual fui introduzido, contaram-me que em 2016 ocorrera uma situação
muito constrangedora porque uma mãe gritou “ladrão de merenda!”. Explicaram-me que o protesto
era bastante compreensível, mas problemático naquele contexto, já que ele “estava apoiando a
causa”.
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Uma das coordenadoras nacionais, Tatiana4, estava exultante. “Amanhã a gente vai estar em
tudo que é jornal”, comemorava. Aquela foi a minha primeira oportunidade de interagir
pessoalmente com essa que é uma das principais lideranças do MPD. Antes de chegar a São Paulo e
durante minha estada na cidade, tentei por diversas vezes entrevistá-la, mas ela estava sempre muito
ocupada. Vi uma mulher agitada e extrovertida que, entre um cigarro e outro, interagia habilmente
com diferentes pessoas e dialogava com muitos integrantes de outros movimentos LGBT que
estavam presentes no evento, tecendo estratégias sobre como trazer mais pessoas para o MPD. A
um integrante de uma organização LGBT da região do ABCD paulista, Tatiana cobrava estar
esperando as indicações de mães que ele ficara de lhe enviar, orientando-o que queria mães que
“lideram” e são “aglutinadoras”.
Com uma longa trajetória no ativismo das então “famílias de homossexuais”, já articulada
nos tempos de vinculação ao grupo que atuava sob a égide do PT, Tatiana não apenas conhece
como se faz política, mas possui uma extensa rede de contatos em São Paulo, a qual maneja para
articular a inserção do MPD em diferentes espaços. Essa rede, que é também resultado de toda uma
trajetória de “paulistana nascida na Paulista” e que cresceu na Paulista, como ressaltou com
satisfação, é igualmente central para formar os grupos de especialistas que oferecerem
aconselhamento ou atendimento às famílias que buscam o MPD: psicólogos, médicos e advogados
que, em muitos casos, Tatiana já conhecia e foi agregando ao grupo. A qualidade “aglutinadora”,
que Tatiana identificava anteriormente como fundamental para o MPD, deve ser compreendida
como resultado de uma rede de relações e influências de que a própria atuação de Tatiana é
referência.
Dois dias depois, no sábado que antecedeu a Parada do Orgulho LGBT, participei da
confraternização do grupo em uma hamburgueria voltada ao público LGBT na Vila Mariana, zona
sul de São Paulo, região habitada pela classe média paulistana. O encontro estava marcado para as
16h e quando cheguei, às 16h30, já havia um grupo significativo de pessoas ocupando as mesas da
área externa: muitos jovens, algumas mulheres com a camiseta do MPD, um casal de pai e mãe com
o filho, Tatiana, coordenando tudo para que não faltassem mesas, e João, que mais adiante
apresentarei como “o pai” no grupo. Pouco tempo depois, as lideranças mais ativas do MPD de São
Paulo e de outros estados começaram a chegar, recebidas sempre com abraços entusiasmados.
Conheci e conversei com muitas pessoas ao longo do encontro, procurando identificar suas
profissões. Percebi que os jovens eram estudantes universitários. Os adultos, a maioria mulheres
4 Optei por utilizar pseudônimos ao longo do texto visando preservar o anonimato dos interlocutores.
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casadas ou divorciadas, eram pessoas com curso superior em áreas como direito, psicologia e
pedagogia. Enquanto conversava com João, comi um hambúrguer, bebi um suco e mais adiante na
noite comprei uma água, gastando em torno de R$40. A partir dessas observações, um perfil geral
do grupo foi se delineando para mim. Eu estava dialogando com muitas mulheres brancas,
heterossexuais, de classe média, a maioria delas com curso superior e trabalhando na área.
Entretanto, identificar as características majoritárias de gênero, classe social, raça e
escolaridade é insuficiente para compreender por que essas pessoas estão engajadas no MPD, pois
se é verdade que o grupo agrega muitas mães, também é fato que diversas outrascom o mesmo
perfil ou outro diferente sequer o conhecem, ou se conhecem, não o percebem como uma alternativa
possível. Os diferentes contextos socioculturais que circunscrevem as famílias, assim como de
engajamento em práticas de ativismo,impõem desafios para o modelo de atuação que na capital
paulista concedeu ao MPD uma posição de protagonismo junto a outros movimentos sociais LGBT.
Essas diferenças se impõem de tal maneira que mesmo as mães paulistanas encontram dificuldades
para aglutinar mães e pais de municípios da própria região metropolitana de São Paulo.
Antes de ir a São Paulo, conheci e entrevistei uma liderança no Rio Grande do Norte, Marta,
professora universitária que vive e trabalha em Natal há muitos anos, mas nasceu em uma cidade no
interior do estado. Ela me descreveu as dificuldades de articular atividades do MPD na capital
potiguar, onde não consegue mobilizar pessoas a participar do grupo fora do espaço restrito da
“sala” do Rio Grande do Norte. Por outro lado, descreveu-me como conseguiu em Caicó, sua cidade
natal, organizar um encontro com um grupo pequeno de mães, entre mulheres que conhecia de sua
trajetória de ativismo feminista e uma “mãe da periferia” que ouviu a sua entrevista para divulgação
do encontro em um programa de rádio local. Entre as mães de Natal, Marta me indicou que
conversasse também com Josi, uma dona de salão de beleza que é mãe de um filho gay,
considerando-a a mais receptiva para uma possível entrevista. De fato, conversei bastante com Josi
pelo WhatsApp, mas não consegui encontrá-la pessoalmente ou entrevistá-la, pois desmarcou várias
vezes os nossos encontros até que não respondeu minha última mensagem confirmando uma visita
ao seu salão.
Entre Tatiana e Marta há uma similaridade no manejo de redes de influência locais para a
atuação do MPD, assim como um engajamento anterior em atividades de ativismo. Entretanto, se
em São Paulo Tatiana consegue amplificar essa rede, Marta encontra dificuldades que paralisam seu
trabalho em Natal e que o limitam a seus círculos mais próximos em Caicó. Marta identifica dois
problemas que dificultam o engajamento das mães em Natal: a diferença de classe social e de
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escolarização entre ela e grande parte das mães potiguares e a ausência de engajamento de outros
grupos de ativismo LGBT com o MPD. Em São Paulo, uma advogada lésbica que participa do
grupo me ofereceu outra interpretação: para ela, o problema é que “existe mais preconceito no
Nordeste”.
Entre uma e outra teoria nativa para a dificuldade de engajar mais pessoas no ativismo,
penso logo em dois casos para problematizá-las ambas. A teoria sobre um “nordeste
preconceituoso” expressa tanto uma homogeneização estereotipada da região quanto uma
hierarquização Sudeste-Nordeste que é fácil refutar. No próprio MPD há grande admiração pelo
trabalho considerando exemplar realizado pela coordenação de Pernambuco, que tem repercutido na
mídia local de modo semelhante ao MPD de São Paulo. Conheço também movimentos de ativismo
de travestis e transexuais no Ceará e em Sergipe que têm conseguido importantes avanços no
diálogo com o poder público local e despontado lideranças no cenário nacional. Por outro lado, no
Sul, Tereza, uma liderança de Santa Catarina, relatou-me dificuldades muito semelhantes às
descritas por Marta sobre Natal, explicando que em Florianópolis, onde reside, é tão complicado
trazer pessoas para os encontros do grupo que a opção é fazê-lo em Balneário Camboriú, cidade
litorânea há aproximadamente 85 km da capital catarinense. Sou natural de Florianópolis e sei que
não é inexpressiva a atuação do movimento LGBT local. Se a interpretação de Marta estivesse
correta, Tereza não teria dificuldades em Florianópolis e, em São Paulo, Tatiana conseguiria reunir
muitas mães do ABCD paulista.
Numa perspectiva antropológica, a questão que se coloca é esta da relação entre campo de
possibilidades e projetos, ou seja, entre “[...] as alternativas construídas do processo sócio-histórico
[...]”, organizadas pelo sistema cultural, e o investimento em certas opções como “[...] resultado de
complexos processos de negociação e construção que se desenvolvem com e constituem toda a vida
social [...]” (Velho, 2013, p. 123). Se existe Mães pela Diversidade e outros grupos de ativismo para
“famílias de LGBT” em diversas regiões do Brasil, por que este ativismo parece funcionar melhor
em certos contextos? Por que algumas pessoas investem neste projeto e outras não? Não tenho
respostas para essas questões neste momento, mas uma hipótese inicial, ainda a friccionar com mais
dados de campo, que é esta da adesão de mulheres de classe média ao projeto individualista
moderno, processo para o qual há 20 anos apontou Luiz Fernando Dias Duarte (1995).
Duarte (1995) observa que,desde a Segunda Guerra Mundial, o modelo hierárquico que
submetia a esposa ao marido na família e que visava à reprodução de indivíduos masculinos passou
a ser desestabilizado em função de transformações políticas, econômicas e culturais, incluindo a
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entrada de mulheres das camadas médias ao mercado de trabalho e a expansão do feminismo. Um
dado que me trouxe Tereza é a recorrência de divórcios em função do “se assumir” do filho, o que
talvez revele uma “[...] afirmação da consanguinidade uterina” e a “[...] relativa ‘expulsão do
homem’ das novas unidades de reprodução social [...]” (Duarte, 1995, p. 37) entre essas mulheres.
Autossuficientes para sustentar a unidade doméstica se necessário e orientadas a projetos
individuais, encontram em seu campo de possibilidades de relações de parentesco a opção de
privilegiar o vínculo filial ao conjugal. Experienciá-lo a partir de atividades de ativismo pode ser
mais uma forma de se posicionar no espaço público enquanto indivíduos que aderem a um campo
de valores que se opõe ao tradicionalismo: este do apreço às diversidades sexual e de gênero.
As participantes do MPD reiteram recorrentemente a importância de as famílias “saírem do
armário”, evocando com perspicácia uma reflexão de Giancarlo Cornejo (2012) quando este avalia
que, ao contar ser gay para sua mãe, não foi ele que “saiu do armário”, mas ela que “entrou no
armário” com ele. Entretanto, não apenas não são todas as famílias que podem “sair do armário”,
como não são todas as pessoas da família que podem ou que são compelidas a fazer isso. Após esse
período de campo inicial acredito já ser possível traçar em linhas gerais porque não é ao acaso que o
MPD aciona a identidade de “mãe” para nomear e legitimar sua atuação. Na sequência, procurarei
esboçar alguns significados possíveis de maternidade, paternidade, parentesco e gênero que são
acionados e instrumentalizados pelas participantes deste grupo.
“Tire o seu preconceito do caminho, queremos passar com o nosso amor”
O “amor” é o signo mais evocado pelas Mães pela Diversidade. Está em postagens no
Facebook, em palavras de ordem, como as que dão título a este tópico, e no grande coração,
colorido com tons próximos àqueles da bandeira do orgulho LGBT, quesimboliza o grupo. Olhando
com mais atenção, este coração se revela um abraço em que uma figura maiorenvolve
protetoramente uma figura menor. É um abraço entre mãe, caracterizada pela cor rosa, e filho,
caracterizado pela cor azul, evocando, portanto, não qualquer tipo de amor, mas o “amor materno”.
Essa representação explicita que este é o valor central que aproxima as pessoas que participam do
grupo e que legitima a sua atuação.
O “amor materno” pode ser intensamente experienciado como um sentimento, mas o caráter
destede fenômeno social deve ser o ponto de partida para qualquer análise antropológica (Mauss,
1979). Assim, é preciso desnaturalizá-lo, buscando uma contextualização histórica e social que
elucide a construção deste sentimento e sua incorporação na experiência subjetiva de diferentes
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gerações de mulheres. Recorro então a Elisabeth Badinter (1985), que situa a transformação da
indiferença maternal predominante na França no início do século XVIII em um novo modelo de
maternidade centrado na dedicação integral e no “amor materno” como resultado de transformações
políticas, socioeconômicas e culturais oriundas do processo de desenvolvimento do capitalismo na
Europa. Este modelo de maternidade se torna constitutivo da identidade de mulheres enquanto
importante valor que constitui a feminilidade e, nesse sentido, farei o exercício de pensar parentesco
e gênero como um só campo, aderindo à provocação de Sylvia Yanagisako e Jane Collier (1987).
As transformações na maternidade que contextualiza Badinter (1985) ocorreram
concomitantemente à ascensão da família nuclear, concebida como a unidade mínima necessária à
reprodução humana e o lugar privilegiado da intimidade e dos sentimentos nas sociedades
capitalistas. No Brasil, Luiz Fernando Dias Duarte (1995) observa que este modelo defamília
ocidental da Europa moderna, organizado pela tripartiçãopai, mãe e filhos – estes, os novos
indivíduos da modernidade, cuja produção é o centro de todo o investimento familiar – foi melhor
absorvido pelas classes médias, considerando que este é o segmento populacional brasileiro mais
aderente ao individualismo. Nesse sentido, acredito que o modelo de “amor materno” descrito por
Badinter (1985) como constitutivo desta família moderna também está presente entre as mães da
classe média brasileira, entre as quais considero possível situar grande parte daquelas que
participamdo Mães pela Diversidade.
Marta e Cristiane, uma mãe paulistana que integra o grupo de advogadas do
MPD,apresentaram-meinterpretações do que entendem caracterizar o “amor materno”.Quando
entrevistei Cristiane em seu escritório próximo à Avenida Paulista, ela me explicou o motivo de
haver poucos pais participando do grupo, o que considera ser consequência da dificuldade de
homens aceitarem a homossexualidade ou transexualidade de um filho. “Mãe tem um coração
diferente de pai, então isso é bem nítido no grupo”, avaliou. “[É] Cultural, vem de berço. É uma
coisa de educação mesmo, machista” continuou, e mais adiante, esclareceu essas afirmações.
Porque mãe tem um relacionamento com o filho muito diferente de pai, né, ainda. É uma
coisa de, de gerar, e tudo. Por isso que... apesar de que eu vou te dizer que não é unânime.
A gente tem lá os famosos “pães”, que são pais que se comportam como mães. Mas a mãe
realmente tem essa coisa com o filho de gerar, de amamentar. Dá uma proximidade maior e
tem muito mais facilidade em driblar situações, conflitos, doenças, adversidades e tudo.
Mudanças... Então eu vejo que é feminino isso. (Cristiane)
Cristiane trouxe duas linhas argumentativas distintas para me esclarecer as diferentes
relações de pais e mães com os filhos: uma fundamentada na cultura e outra na natureza. A
dificuldade de pais “aceitarem” filhos gays, lésbicas ou transexuais tem uma explicação “cultural”
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na “educação” que é “machista”. Por outro lado, a relação de uma mãe com um filho é diferente
porque os atos de “gerar” e “amamentar” estabelecem uma aproximação maior. Na relação da mãe
com o filho, parece haver a articulação entre um fator sociocultural, que promove a convivência
originadora de uma relação de resiliência materna às adversidades futuras, e outro natural, que
advém da gestação e da amamentação e que é, por sua vez, o ponto primeiro que origina a relação
de proximidade posterior ao nascimento.
Marta trouxe uma interpretação que se aproxima desta oferecida por Cristiane no que se
refere à importância da convivência para solidificar de forma especial a relação entre mãe e
filho.Entretanto, diferencia-se em um ponto fundamental: Marta questiona que este sentimento seja
resultado da gestação, atribuindo-o à construção social de uma relação pela prática do cuidado. Esta
sim origina o “amor materno”.
E é uma coisa muito esquisita de a gente falar isso, porque, a gente, “ah, é o maior amor do
mundo”. [Pausa.] Eu acho que é um grande amor. Não sei se é o maior do mundo. Tem
horas que eu acho que é. Mas também tem horas que eu acho que esse amor maior do
mundo é, é meio que construído, porque... Se você cuida de alguém desde criança, você vai
ter o maior amor do mundo, não é?(Marta)
Acredito ser elucidativo pensar no “amor materno” como uma unidade que compõe o
parentesco enquanto sistema cultural, ou seja, como sistema simbólico que serve à construção de
um mundo inteligível para pessoas que partilham deste repertório (Schneider, 2016). Nesse sentido,
o “amor materno” é um símbolo que se insere em certas relações em um sistema cultural, e não um
sentimento, embora contenha também este significado.Esta reflexão é pertinente para compreender
que “amor materno” suscita interpretações diferentes e é experienciado distintamente pelas mães
que fazem parte das MPD, mas sua inserção em um vocabulário comum de parentesco que o
naturaliza como sentimento inerente à maternidade permite estrategicamente legitimar a atuação do
grupo.
As diferenças entre Marta e Cristiane não estão apenas no que concerne às explicações para
a origem do “amor materno”, mas em como a participação no MPD é articulada a outros campos de
suas vidas e à relação com os filhos. Com uma trajetória de engajamento em coletivos e grupos de
ativismo que começa com a participação em grupos de jovens da igreja católica, estendendo-se
depois ao movimento feminista e estudantil, Marta foi convidada a integrar o MPD como
coordenadora estadual. O MPD é, portanto, mais uma atividade de articulação política a que ela se
dedica.O próprio convite que recebeu de Tatiana é fruto de um reconhecimento desse engajamento
anterior e de sua expertise no campo dos estudos de gênero, ao qual orienta sua carreira acadêmica.
Participar do MPD parece proporcionar mais um elemento para dialogar com a filha lésbica, que em
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si não participa das atividades das Mães, apesar de Marta chamá-la para a importância de colaborar
com o grupo.
[...] hoje eu tava conversando com a minha filha, né. Eu dizendo pra ela "olha, eu acho que
vocês poderiam ajudar mais as Mães, porque assim, o nosso trabalho é de acolhimento, né?
A gente tá fazendo isso pensando muito em vocês. Mas eu acho que vocês poderiam pensar
também, né, nessas famílias e indicar as mães pra vim pra gente, pra nos procurar”. [...]Ela
ajuda muito. Mas as pessoas mais do círculo. (Marta)
Cristiane, por outro lado, ingressou no MPD a convite da pediatra de seus filhos, uma
médica que integra o grupo de especialistas da medicina entre as Mães de São Paulo. A pediatra a
procurou para conversar depois que viu a então “filha” adolescente de Cristiane mudar o perfil no
Facebook para um nome masculino: Heitor. Algum tempo antes disso, Heitor havia postado um
pedido de ajuda no grupo aberto do MPD no Facebook, pois precisava contar para a família que
estava iniciando a transição de gênero. Assim, Cristiane entrou no grupo a partir da proposta de
acolhimento de mães e pais que precisam de auxílio, buscando aconselhamento e suporte. Aos
poucos, passou a participar dos encontros e se tornou também uma das participantes do grupo de
advogadas do MPD. Hoje, há um ano e meio no MPD, é indicada por Tatiana para ministrar
palestras sobre direito voltado à população LGBT e sobre sua experiência como “mãe de menino
trans”. Ela contou também que agora está utilizando o serviço de uma advogada do grupo que faz a
mudança de prenome e sexo no registro civil de pessoas transexuais para a retificação dos
documentos de Heitor.
Cristiane e Marta exemplificam dois perfis de mães que participam do MPD: as mães
“acolhidas” e as mães “ativistas”. Além destes, identifiquei mais um tipo: as mães “observadoras”.
Elas foram apresentadas ao MPD pelos filhos e acompanham o grupo virtualmente, podendo ou não
fazer algum ativismo online no próprio perfil do Facebook e participar ocasionalmente de algumas
atividades presenciais. No estande do MPD na Feira Cultural da Diversidade, aproximei-me de uma
mulher com a camiseta do gru poque de um canto da tenda observava a movimentação dos outros
integrantes. Magra e bem vestida, elegante para meus valores classe média, ela me explicou que
entrou no MPD por insistência do filho gay, que a presenteou com a camiseta que estava vestindo.
Quando contei que minha mãe acompanha o grupo virtualmente, mas se sente pouco confortável
para participar de atividades coletivas, ela abriu um sorriso, me abraçou e disse: “eu sou como a sua
mãe!”.
Ainda que seja um grupo composto majoritariamente por mulheres, também existem
homens, pais, no Mães pela Diversidade. Quem são eles? Que lugar ocupam no MPD? Na minha
experiência de campo, tive contato com apenas dois pais, que são precisamente os mais presentes
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nas atividades e articulações do grupo.Bruno, meu primeiro contato com as Mães, rapidamente me
explicou que está no grupo como filho e como pai, pois é bissexual e tem uma filha também
bissexual. Talvez por sua dupla pertença enquanto filho e pai, não é a ele que as mães se referem
como “o pai” no grupo de mães. Essa posição é concedida a João, com quem tive a oportunidade de
dialogar brevemente na feira e um pouco mais durante a confraternização do grupo.
João é uma liderança no MPD em Goiás e a dramática história do assassinato de seu filho
motivado por homofobia parece ser conhecida por integrantes de todos os estados. Quando
conversávamos durante a confraternização na hamburgueria, observei uma menina chama-lo de
“pai”. Ele já havia me explicado que tinha uma filha adotiva, uma menina lésbica que, há 10 anos,
seu filho pedira para acolher porque fora expulsa de casa. Perguntei se aquela menina que o
cumprimentara era a sua filha, ao que ele riu e me explicou que não, esclarecendo-me que no grupo
todo mundo o chama de “pai” porque ele é o único que “bota a cara no sol”. Portanto, faz o papel de
“pai simbólico”.
Se fosse classificar Bruno e João em um dos perfis que atribuí às mães, o faria no de
“ativistas”, que chegaram ao MPD a partir de uma trajetória anterior em outros movimentos de
militância. Entretanto, Bruno se qualifica também como “filho” e coordena o grupo de “Filhos das
Mães”, que até recentemente existia apenas no WhatsApp. Bruno caracteriza outro perfil de pessoas
que participam do MPD: homossexuais, bissexuais e transexuais que têm filhos e por isso se
engajam no grupo. Como Bruno, conheci um casal lésbico e uma mulher transexual lésbica que me
disse sermãe dos filhos da companheira.
Observei João levantar-se prontamente para ajudar a carregar algumas caixas com camisetas
e outros itens que seriam comercializados durante a confraternização, o que poderia ser interpretado
como um papel tipicamente masculino ou paterno. Logo depois, ele trocou as calças por uma saia
florida, com a qual permaneceu até o fim do encontro. Enquanto um “pai simbólico”, João talvez
atualize alguns significados para a paternidade no sistema simbólico de parentesco, até mesmo
garantindo que em um grupo que legitima a sua atuação pela evocação da “mãe” não falte um “pai”
que complemente a relação parental. Por outro lado, João não se coloca como um “pai” tradicional
quando utiliza um vocabulário gay para se expressar e quando brinca com a sua masculinidade
utilizando uma peça do vestuário feminino.
Talvez seja este um dos mais importantes paradoxos que desafiam as pessoas que participam
do MPD. Ao mesmo tempo em que mulheres subvertem o tradicional lugar atribuído à maternidade
no espaço doméstico, ocupando a esfera pública para fazer ativismo, o fazem em nome do “amor
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materno”, atualizando este atributo de feminilidade que vem sendo refutado há décadas pelos
movimentos feministas. Por sua vez, os homens, para estar entre essas mulheres, também
necessitam se transformar e abdicar de valores estruturantes da masculinidade, mas uma vez que
estão nesse espaço, ocupar o “lugar simbólico” de pai significa atualizar a complementaridade entre
homens e mulheres e, talvez, a própria normatividade heterossexual, esta, possivelmente uma das
maiores barreiras à luta por valorização e respeito às diversidades de gênero e de sexualidade a que
se propõem.
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“Mothers for Diversity”: the politics of parenthood in a group of LGBT parents activism
Abstract: To expose the political issues concerning scientific, religious and moral conceptions of
parenthood and family has been a great concern for LGBT and feminist movements since the 20th
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century. The fight to legitimize the “families we choose” when there is a naturalization of biological
bonds, the new reproductive technologies, the homo-conjugality and the homo-parenthood are some
of the phenomena composing this disputing scenario. Different possibilities for living parenthood
became also possibilities for political change, disestablishing the understanding that family is
natural and its problems are private matters. In this context, a group of activism has been gaining
visibility among Brazilian’s social movements: the “Mothers for Diversity”, gathering mothers and
fathers of LGBT people in the fight against prejudice and discrimination. This research applies the
narrative analysis method over semi-structured interviews with some members of the referred
group. The following work reflects on how these people signify their livings as activists and
parents, observing how they mobilize values of gender and kinship in order to maintain their family
relations through their activism. As the figure of the “mother” emerges as a protagonist above other
families’ members, the question is how this politicized experience of parenthood is as much
maintaining as changing the organization of gender and kinship systems in their lives.
Keywords: Kinship. Family. Parenthood. Activism. LGBT.