mãe de duas crianças em coma após ataque brutal em escola · sábado no recreio da escola...

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9 Mãe de duas crianças em coma após ataque brutal em escola A vítima, popular entre a comunidade, permanece em coma após ter sido encontrada nas instalações de uma escola em Brighton, alvo de um violento ataque. A polícia abriu um inquérito por tentativa de homicídio. Yvonne Whidmore, de 42 anos, foi encontrada na madrugada de sábado no recreio da Escola Preparatória de Plummer, em New Hil- lingdon Road, com sinais de ter sido brutalmente agredida e, segundo fontes policiais, deixada “às portas da morte”. Ainda por explicar está a presença da Sra. Whidmore no interior escola, visto que o estabele- cimento de ensino se encontra encerrado, já que ainda decorrem as férias de verão. Um amigo próximo da família revelou que Trevor Whidmore, de 43 anos, e as filhas do casal, de 8 e 10 anos, não deixaram o quarto do hospital desde que a Sra. Whidmore foi internada. Amigos da estimada dona de casa, nesta foto num elegante ves- tido de gala para um evento escolar que recentemente organizou para a Associação de Pais da Preparatória de Plummer, inundaram a rede social da escola para expressar choque e consternação. “Nem acredito que isto aconteceu… A Yvonne é uma das pessoas mais amorosas à face da Terra. Um grande abraço para o Trev e para as meninas.”

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Mãe de duas crianças em coma após ataque brutal em escola

A vítima, popular entre a comunidade, permanece em coma após ter sido encontrada nas instalações de uma escola em Brighton, alvo de um violento ataque. A polícia abriu um inquérito por tentativa de homicídio.

Yvonne Whidmore, de 42 anos, foi encontrada na madrugada de sábado no recreio da Escola Preparatória de Plummer, em New Hil-lingdon Road, com sinais de ter sido brutalmente agredida e, segundo fontes policiais, deixada “às portas da morte”. Ainda por explicar está a presença da Sra. Whidmore no interior escola, visto que o estabele-cimento de ensino se encontra encerrado, já que ainda decorrem as férias de verão.

Um amigo próximo da família revelou que Trevor Whidmore, de 43 anos, e as filhas do casal, de 8 e 10 anos, não deixaram o quarto do hospital desde que a Sra. Whidmore foi internada.

Amigos da estimada dona de casa, nesta foto num elegante ves-tido de gala para um evento escolar que recentemente organizou para a Associação de Pais da Preparatória de Plummer, inundaram a rede social da escola para expressar choque e consternação.

“Nem acredito que isto aconteceu… A  Yvonne é  uma das pessoas mais amorosas à face da Terra. Um grande abraço para o Trev e para as meninas.”

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“As melhoras, Yvonne. A Preparatória precisa de ti.”“Julgava que esta zona era segura. Que horror!”“Quem é que pode querer mal à Yvonne???!!! Ela é a alma deste sítio,

dá-se bem com toda a gente. Põe-te boa depressa, querida.”

Em declarações ao jornal, a diretora da Preparatória de Plummer garantiu estar, juntamente com outros membros da equipa de gestão da escola privada de elite, a colaborar com a polícia de todas as formas possíveis, mas que este incidente não irá perturbar o funcionamento da instituição dentro dos habituais níveis de excelência.

A  polícia apela a  quem tenha estado nas proximidades, ou pas-sado pela escola, entre as 22h00 de sexta-feira, dia 18, e as 5h00 de sábado, e que possa ter alguma informação útil, que entre de ime-diato em contacto com as autoridades.

Daily News Chronicle, agosto de 2017

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Parte Um

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Segunda-feira

Cece

6h15.– Isto parece a  abertura de uma telenovela  – diz-me o  Sol, do

quarto. – O marido de fato e gravata, a preparar-se para ir para o tra-balho, os miúdos no andar de baixo, a tomar o pequeno-almoço, e a mulher em roupa interior, a correr de cá para lá, tentando organizar tudo.

– Hmm – respondo. – Suponho que sim.Passo a escova dos dentes por água corrente antes de a voltar a en-

fiar no copo de plástico na prateleira de vidro. Demoro-me nestas coisas, porque gosto de estar na casa de banho. É um sítio tranquilo, arejado. Na verdade, as únicas divisões “totalmente funcionais” na nossa nova casa de três pisos, por oposição a “tecnicamente habitá-veis”, são as casas de banho.

Deixo-me desfrutar da calma completude, e evito o caos opres-sivo que é  o quarto. Tem uma cama, há lençóis e  um edredão… e uma enorme montanha de roupa minha no chão, diante da sacada, agradavelmente ladeada por várias caixas de “tralha”. E nem sequer é “tralha” do Sol. De alguma forma, ele arranjou maneira de orga-nizar a “tralha” dele, que está criteriosamente pendurada no quarto de vestir (um atributo que nos convenceu a comprar a casa), com os sapatos cuidadosamente alinhados, as gravatas num cabide especial, a roupa interior guardada em gavetas. Passou os últimos três meses num hotel aqui em Brighton e parece não ter tido qualquer problema em instalar-se na nossa casa nova.

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Junho de 2003– Posso perguntar-lhe uma coisa?O bonitão veio ter comigo quando saíamos da biblioteca. Nos

últimos meses cruzávamo-nos praticamente todos os dias, e depois dos primeiros sorrisos começámos a cumprimentar-nos. Agora, ele, a quem eu chamava O Homem da Biblioteca, estava a meter con-versa comigo.

– Sim, claro. Eu posso, ou não, responder, dependendo do tipo de pergunta – repliquei.

– Porque é que vem à biblioteca todos os dias? Quer dizer, eu venho todos os dias porque estudo, mas não a vejo requisitar livros ou algo do género.

Senti um pequeno arrepio de excitação a percorrer o meu corpo, por alguém ter reparado em mim e não me ter visto como mais uma mãe solteira a ignorar e menosprezar em igual medida.

– São mais de três quilómetros a pé de onde vivo até aqui, e a única forma de conseguir que a minha filha durma durante o dia é passeá--la no carrinho. Ao quilómetro e  meio começa a  cabecear, acorda quando chegamos aqui, e a meio caminho de casa adormece outra vez e dorme umas boas duas horas, o que me permite trabalhar um pouco.

– Certo.– E você? Porque é que está sempre aqui? Quer dizer, acabou de

me dizer que estuda, mas isso certamente não o obriga a ir à biblio-teca todos os dias.

– É um bom sítio para estar no quentinho e estar rodeado gente.– Conhece aquelas coisas que se chamam bares, não conhece? –

disse-lhe eu. – São sítios quentes e secos, e têm gente. Se calhar, até podem lá estar pessoas que conhece do seu curso.

– Ah! Talvez. Mas eu tenho 25 anos, e no meu curso têm quase todos 18 e estão a gozar ao máximo a vida fora de casa pela primeira vez. Sinto-me verdadeiramente velho comparado com eles.

– E que tal ir ao café de vez em quando? – sugeri. – Sabe, só para variar um pouco.

– Talvez me sinta tentado a experimentar um desses “cafés”… se você (e a sua menina, claro) vierem comigo – disse ele.

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– Vou desde que isso não seja um convite para um encontro.– O que é que tem contra convites para encontros? É compro-

metida?– Mais ou menos.– O que é que isso significa?Apontei para a Harmony, a minha pequenita de um ano de idade

com o seu maravilhoso cabelo aos caracóis, olhos quase negros, pele cor de café com leite e um enorme sorriso. Ela pôs a língua de fora e soprou, e depois bateu palmas, divertidíssima.

– Tudo gira em redor das necessidades, estabilidade e bem-estar desta menina. Encontros amorosos só quando ela tiver 18 anos e eu já não tiver de me preocupar com ela.

– Está bem, não será um encontro, então – disse ele com um sor-riso divertido. –  Mas sinto-me no dever de a  avisar que, pelo que a minha família e os meus amigos me dizem, uma pessoa nunca deixa de se preocupar com os filhos, tenham eles a idade que tiverem.

6h17. O Sol aparece por trás de mim na casa de banho, passa-me um braço à volta da cintura e puxa-me para ele. Teve um verão de ginásio e corridas na praia, por isso consigo sentir-lhe nos músculos cada segundo que dedicou ao exercício. Fecho os olhos e sinto-me a  derreter. Há muito tempo que não estávamos assim tão juntos. Sinto mais falta de o  ter perto de mim do que propriamente do sexo. De o abraçar, estar nos braços dele… Ele beija-me o pescoço, aperta-me. Relaxo um pouco mais, o  cheiro dele preenche-me os sentidos. Começou a  usar um aftershave diferente, mas ainda lhe sinto o cheiro natural: ligeiramente salgado, almiscarado, com um toque de doçura. Há algum tempo que não olho para ele com aten-ção, mas continua a ser o Sol de sempre. Aperta-me um pouco mais e  os dedos dele deslizam-me pela barriga e  passam por baixo do elástico das minhas cuecas pretas.

– Pois, não me parece, Sr. estrela da televisão – digo eu, afastando a mão dele. Decididamente, estragou o momento. Afasto-me e atra-vesso o  corredor, na direção do quarto e  do meu “guarda-roupa”. – Estavas a dizer qualquer coisa sobre os miúdos lá em baixo e a mãe às voltas, a tentar organizar as coisas?

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Ele segue-me até ao quarto e para ao meu lado, diante da mon-tanha de roupa.

– Estava mais focado na parte dos trajes menores… LOL.Encaro o meu marido.– “LOL”? Terei ouvido bem? Não preferes rir-te? – pergunto-lhe.

– A sério. Que idade tens? Desde quando é que falas assim?O Sol sobressalta-se e olha de forma fixa para a roupa a monte. Sei

que tem o coração aos saltos, gotículas de suor picam-lhe a raiz dos cabelos. Deve estar a rezar para que a distração da mudança me tenha impedido de apanhar um “descuido” tão óbvio. Uma das razões por que era tão boa no meu emprego anterior era a capacidade que tinha para detetar coisas que passavam ao lado da maioria das pessoas. Por exemplo, o que o Sol acabou de me “dizer” é que tem passado bastante tempo com alguém muito mais jovem do que ele (e eu), certamente uma mulher que usa a expressão tão frequentemente que ele acabou por assimilá-la. O Sol olha para o relógio com gestos exagerados.

– Ui, não percebi que era tão tarde. É melhor despacharmo-nos, não? Estou superatrasado – comenta.

Estudo o meu marido, observo-o enquanto ele evita olhar para mim, recriminando-se mentalmente. Quando arrisca um olhar de soslaio, ergo uma sobrancelha que diz: “LOL? A sério?”

Ele desvia o olhar e não consegue disfarçar um momento de de-sânimo.

– Tenho mesmo de dar corda aos sapatos. Até logo.E com isto desaparece porta fora.– Sim, até logo – respondo. – E não perca os próximos episódios –

sussurro. – Continua…

Julho de 2004– Então, ainda continuas à espera que a Harmony faça 18 anos

para aceitares um convite para um encontro? Eh… É para um amigo que quer saber – perguntou-me o Sol. Estávamos num bar.

Aos nossos cafés durante o  dia seguiram-se passeios a  três du-rante a tarde e brincadeiras no parque, visitas de um dia a parques de diversões e jardins zoológicos. E, algum tempo depois, a minha mãe ficou a tomar conta da Harmony de vez em quando, para podermos

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sair à noite. Como ainda trabalhava como operadora de inserção de dados em regime de teletrabalho, ajustando os meus horários em função dos padrões de sono da Harmony, e ele ainda estava a tirar o curso, éramos uns pés-rapados, e sempre que íamos ao bar não só demorávamos a beber as nossas cervejas, como as aproveitávamos até à última gota.

Pus-me a observá-lo. Passava imenso tempo a observar o Sol por-que… bem, era um prazer observá-lo. Tinha uma pele fresca e suave, da cor do chocolate negro, e  rapava regularmente o  cabelo, o  que lhe expunha a gloriosa linha do crânio e realçava os olhos enormes, quase negros, e os lábios perfeitos. Era também muito fácil estar com ele e sempre que o via admirava-me que se tivesse devotado ao ce-libato durante praticamente um ano por gostar de mim. O Sol não fazia segredo disso, quer fosse com abraços, acariciando-me o cabelo, dando-me beijos demorados na cara ou olhando-me bem nos olhos quando conversávamos. No entanto, era a primeira vez que abordava o assunto.

– Esse amigo, é alguém que conheço? – perguntei.– Sim. Sou eu. Olha, isto está a deixar-me doido. Gosto imenso

de ti e nunca esperei tanto por uma mulher. Posso beijar-te? Rejei-tas-me, se eu te beijar?

Franzi os lábios e observei-o durante uns segundos.– Podes beijar-me, mas só depois de ouvires a história de como

me tornei mãe solteira.– Sem problemas – respondeu ele, sem tirar os olhos da minha

boca. Não estava realmente a ouvir-me. Estava a antecipar a parte que viria a seguir, depois da história, quando poderia finalmente beijar--me. – Mas devo dizer-te que estou a par da biologia, por isso podes saltar essa parte.

– Estou a  falar a  sério, Solomon. Vou contar-te a história toda e só podes beijar-me se conseguires lidar com o que te contar e o que isso diz sobre mim. E se prometeres que nunca a usarás contra mim. Se não fores capaz, não vou levar a mal, mas tens de ser sin-cero comigo e contigo mesmo.

– Agora fiquei um pouco assustado.– Não é caso para menos.

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– Tudo bem. Tudo bem.  – Inspirou e  expirou explosivamente, como um lutador de boxe prestes a entrar no ringue, visivelmente tenso. – Venha ela.

E então contei-lhe: a verdade nua e crua sobre a minha vida antes de ser mãe, como a minha filha foi concebida, o que aconteceu de-pois. Fui brutalmente sincera, como nunca antes o fora. Nunca tinha sentido a necessidade de que alguém soubesse isto sobre mim. Os meus pais tinham aceitado (e adoravam) o facto de terem outra neta para amar e eram uns avós babados, os meus irmãos acrescentaram outro nome às listas de Natal e os meus amigos foram deixando de aparecer quando a festa acabou e a bebé passou a ser a minha prio-ridade. Só revelo a minha história em caso de absoluta necessidade, e o Solomon tinha mesmo de saber. No final, já não olhava para mim com adoração. Parecia meio abstraído, quase em estado de choque depois do que ouvira. Após um minuto ou dois de silêncio, lá conse-guiu recompor-se e encarar-me. Sustive a respiração, numa tentativa fútil de congelar o tempo, antes que pudesse dizer-me que era dema-siado para ele.

O Solomon sorriu-me e a seguir, com mil cuidados, bem deva-gar, beijou-me.

6h25. Reservo para posterior consideração o  “deslize” do Sol sobre com quem tem estado recentemente fora do trabalho, e fito a montanha de roupa no recanto da janela. Tencionava fazer uma escolha e  pendurá-la no sábado de manhã, mas depois cheguei à conclusão de que não me podia dar ao luxo de organizar a roupa quando ainda me faltava organizar o caos na cozinha, para poder voltar a cozinhar, bem como os quartos dos miúdos, de forma a de-sencantar as partes que faltavam dos uniformes escolares. Depois de um fim de semana a organizar tudo o resto, a minha recompensa é esta montanha de roupa, e não sei o que vestir.

Só me apetece refugiar na tranquilidade da casa de banho e es-quecer esta história de ter de me vestir para levar os miúdos à escola. Esquecer esta necessidade de encontrar o conjunto perfeito, nem vis-toso, nem anónimo de mais, que diga a todos os outros pais junto dos portões da escola: “Sou uma simpatia, por favor, vamos ser amigos.”

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Ouço os passos do Sol nas escadas e sorrio, grata e aliviada. Es-tava a ser tonta, o meu marido não tem nada a esconder.

– Ah, Cee, quase me esquecia – diz ele quando chega ao quarto. – É preciso levantar os meus fatos bons na lavandaria. Não fica longe daqui, só tens de seguir pela estrada principal na direção oposta à da escola dos rapazes. Os talões estão no quadro da entrada e podes le-vantá-los a qualquer hora depois das 11h00.

De sobrolho carregado a enrugar-me a testa e olhos semicerra-dos, volto-me lentamente para encarar o meu marido. Ponho um olhar muito, muito duro.

– O que foi? – diz ele, depois de dois minutos de silêncio. (Eu sei porque os contei na minha cabeça.) – Porque é que estás a olhar assim para mim?

– Ai, Sol… – Suspiro. – Olha, eu sei que andas muito ocupado com o trabalho e tudo o mais, mas será uma loucura esperar que dês o devido valor ao sacrifício que fizemos por ti? Por mais pequeno que seja? Quer dizer, os nossos filhos deixaram os amigos e uma vida que adoravam por causa do teu emprego, e tu nem sequer foste capaz de lhes dar uma palavra sobre o assunto, nem durante o fim de semana, nem esta manhã. Como se não bastasse, é a primeira vez que estamos todos juntos em três meses, e mal te pusemos a vista em cima du-rante os últimos dias. Não levantaste um dedo para ajudar a desem-pacotar as coisas deles, não ajudaste com a mobília dos quartos, não foste à loja dos uniformes e até saltaste refeições connosco. Não sei se tens noção disso, mas as aulas começam hoje em novas escolas e a Harmony teve de mudar de escola no início do Secundário. Teria sido o fim do mundo se hoje chegasses um pouco mais tarde ao trabalho, para que a Harmony não fosse sozinha para a escola? Infelizmente, tenho de levar os gémeos e não posso fazer as duas coisas. Nem te ocorreu que ela poderia precisar de ter alguém com ela, pois não? Mas tens a lata de sair de casa praticamente sem dizer adeus a qualquer um de nós e voltas para atrás, quando já estavas no carro, presumo, para me ordenar que vá levantar a tua roupa à lavandaria, como se eu fosse a tua assistente pessoal. Eu já não… – Faltam-me as palavras. Palavras simpáticas, isto é. Em vez disso, agito os braços no ar, frus-trada e desesperada.

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Em resposta, o Sol recua, como se lhe tivessem mostrado a ver-são dele do retrato de Dorian Grey e se sentisse horrorizado com a imagem desagradável e egoísta que passa.

– Não me ocorreu – diz ele, com vergonha e arrependimento em cada sílaba. – Nem me passou pela cabeça. Não pensei.

– Pois, suponho que não – respondo.– Tenho uma reunião e não posso cancelar. É muito importante. –

Esfrega os olhos, aperta a cana do nariz com a ponta dos dedos. – Não que vocês não sejam importantes, mas não posso cancelar tão em cima da hora. Lamento. Se pudesse, cancelava.

– Tudo bem, o que está feito, feito está – digo. – Só não quero que comeces a tomar como certo tudo aquilo a que renunciámos por ti, está bem?

– Fizemos esta mudança por toda a família, não por mim – pro-testa ele.

Não te iludas, Sol, apetece-me dizer-lhe. Foi tudo por ti. Eu não queria mudar-me. Adorava a vida que tinha, a minha carreira, os meus amigos que via de vez em quando. Nunca quis mudar-me. Os miúdos também não queriam. Mas tivemos de o fazer. Por ti.

– O que nós combinámos foi que seria ótimo para eles viverem numa cidade, mas à beira-mar, e agora que temos possibilidades para isso, inscrevê-los em escolas privadas – diz o Sol. – Concordámos que sair de Londres seria bom para todos, não? Foi ou não foi?

– Foi, mas devíamos levar os miúdos à escola. É assim que esta família funciona, lembras-te?

O Sol fica ainda mais desgostoso.– Sinto muito, Cee. Mesmo. – Aproxima-se de mim o suficiente

para me abraçar. – Desculpa – murmura. – Vou melhorar. Prometo--te que vou melhorar.

– Eu sei que vais  – respondo. Deixo-o beijar-me e  até faço um sorriso e um aceno, enquanto ele sai disparado do quarto e corre pelas escadas abaixo para, desta vez, abraçar e despedir-se dos nossos filhos como deve ser, garantindo-lhes que tudo vai correr bem.

Pego num par de calças de ganga lavadas e num top branco sem mangas. Estou sempre a tentar ensinar os miúdos que devem ser fiéis a si próprios e que a seu tempo os amigos a sério, os que gostam deles

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como são, virão até eles. Devia seguir o meu próprio conselho. Não, eu não queria mudar-me para Brighton, mas estou aqui e tenho de fazer isto – à minha maneira – e não é com um conjunto especial que chego lá. O que eu preciso é de mostrar a toda a gente que me sinto confortável comigo mesma.

Além disso, tenho de me despachar.

7h40. Tenho três crianças, todas de uniforme, no passeio à porta de casa, e cinco minutos de tolerância. Vitória. Este é um triunfo al-cançado praticamente sem berros (da minha parte) nem caras feias (da parte deles). Além disso, mostraram-se moderadamente coope-rantes enquanto eu lhes tirava a fotografia da praxe diante da lareira, para assinalar o primeiro dia do regresso às aulas, embora as crianças tenham observado, em diversas alturas, que para todos os outros as aulas já tinham começado há uma semana e, por isso, hoje não é real-mente o primeiro dia.

Olho para os meus filhos, enquanto confiro a minha lista mental antes de sair de casa. A seguir, olho para os rostos deles no ecrã do telemóvel: o gémeo mais novo, o Ore, de queixo no ar, a exibir um sorriso desdentado; o Oscar, o mais velho, a sorrir de boca fechada, com a cabeça ligeiramente inclinada para o lado, como sempre; e a Harmony atrás deles, a olhar diretamente para a lente, deslumbrante e radiante, simplesmente a sorrir. Harmonia.

Volto-me para a minha filha de 15 anos. Detesto que tenha de enfrentar um autocarro cheio de gente que não conhece, atraves-sando sozinha os portões da escola.

– Tens a certeza de que não queres vir comigo deixar os rapazes na escola e eu levo-te de carro um pouco mais tarde? Na verdade, a diferença nem seria assim muita, já que as aulas deles começam às 8h15 – digo-lhe. Tenho-a acompanhado todos os anos no primeiro dia de aulas, chegando mesmo a deixar que os rapazes se atrasem nos últimos três anos para o poder fazer, e ainda nem acredito que este ano não vou estar lá. – Ou então, podíamos…

A Harmony abana a cabeça.– Vai correr tudo bem.

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Com isto, o que ela quer dizer é que conquistou o direito de ir sozinha para a escola.

Se isto fosse realmente uma telenovela, teríamos agora uma montagem com imagens de todos os primeiros dias de escola da Harmony. Todos comigo em lágrimas, a tentar travá-las ou a fingir que não estou a chorar enquanto a abraço com toda a força e sus-surro-lhe, uma e outra vez, o quanto gosto dela. Cada ano mostraria uma Harmony cada vez mais crescida, mas sempre com a mesma expressão: lábios franzidos, olhos postos no céu e a paciência em pessoa enquanto espera que eu me controle.

– Nem acredito que não vou estar lá contigo no teu primeiro dia – digo-lhe. – Ainda para mais numa escola nova.

– Mãe, vá lá… já posso ir sozinha para a escola.– Mas estamos em Brighton. Isto não é Londres. Estamos pratica-

mente no meio de nenhures e tens de apanhar um autocarro sozinha, num uniforme estranho, e eu devia, sei lá, fazer essas coisas contigo.

Os meus olhos enchem-se de lágrimas ao imaginar a  minha pobre filha sem um amparo nesta hora de angústia.

– Não tiveste mais dois filhos para que eu não fosse o único ob-jeto desta paranoia?  – pergunta a  Harmony, com maldisfarçado desdém. – Quer dizer, não é para isso que eles servem? – Volta-se para os irmãos. – Sem ofensa – diz-lhes.

– Isto não fica assim – replica o Oscar, o meu filósofo de 8 anos.– Sim – acrescenta o Ore. – Isto não fica assim.– Desculpem, rapazes, mas nestas alturas é cada um por si. Eu

já passei por isto dez vezes, vocês, só três, por isso não se queixem.– Certo. Bem, se já acabou a manifestação de protesto por me

preocupar tanto convosco, vamos?Antes que a minha filha tenha tempo para reagir, aperto-a nos

braços, beijo-lhe o rosto e a testa e digo-lhe repetidamente que é o meu tesouro e que tenho muito orgulho nela. Se não posso fazê-lo na escola, faço-o aqui.

– Obrigada, mãe – resmunga ela a dada altura, libertando-se dos meus braços, ao mesmo tempo que põe a mochila azul-turquesa ao ombro com uma manobra experiente. – Até logo – diz, e afasta-se. Dá alguns passos, antes de se voltar e correr para os irmãos. – Até

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logo  – despede-se ela, abraçando-os. –  Tenham um primeiro dia fantástico. Contam-me tudo logo à noite, está bem?

– Está bem – respondem simultaneamente os gémeos. Quando a  Harmony se endireita, transparece-lhe no rosto um tremor de nervosismo. Não tinha a intenção de perceber esse trejeito, nenhum de nós tem essa intenção, por isso refreio o impulso de a arrancar dali e começar a ensiná-la em casa. A minha filha esconde os medos atrás da atitude despreocupada que lhe é tão característica, e volta a lançar a mochila por cima do ombro. Ao passar por mim, dá-me um beijo apressado, sem me olhar, e segue adiante, rua abaixo, até virar a esquina, a caminho da paragem do autocarro. Para o resto do mundo pode ter 15 anos e ser mais alta do que eu, mas para mim será sempre uma menina de 5 anos que mal pode dar dois passos sozinha.

8h05. Levámos mais tempo a chegar aos portões da Preparatória de Plummer do que ontem quando viemos a pé. Não sei muito bem porquê. Ontem viemos praticamente em passeio, e hoje os rapazes vieram a voar nas trotinetas, enquanto eu corria atrás deles, carre-gada de mochilas e chapéus, a passar uma vergonha diante de toda a cidade sempre que gritava “cuidado ao atravessar”, “não pisem os cocós” e “não virem a esquina sem mim”, como um vendedor de rua.

O Oscar e o Ore abrandam antes de chegar à escola. Sinto o co-ração a trovejar-me no peito. O Ore para repentinamente e quase tropeço nele. O  Oscar também para e  olha fixamente em frente, com um pé de cada lado da plataforma da trotineta verde. Viram a escola ontem, mas não imaginaram – tal como eu não imaginei – como seria em plena atividade.

À  entrada da escola, o  barulho, a  confusão e  o caos imperam na manhã estranhamente agradável e ensolarada para o mês de se-tembro. Os miúdos são arrebanhados para dentro, a maioria sem grandes despedidas. Outros, receosos de entrarem sozinhos, agar-ram-se aos pais que tentam desesperadamente afastá-los. Aqui e ali veem-se magotes de pais, como fardos de palha que alguém deixou

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à própria sorte, e que acabarão por se dispersar para retomar as ro-tinas do dia a dia. Há vários veículos estacionados em segunda fila, como se as linhas amarelas não se aplicassem a eles. Outros condu-tores param no meio da via, impedindo o trânsito, ligam os quatro piscas e saltam do carro para abrir as portas de trás e lançar os filhos para fora do carro, como dardos numa prova olímpica.

Da primeira vez que vim fazer o reconhecimento do terreno (o Sol estava a trabalhar, por isso não pôde vir comigo), fiquei impres-sionada com o aspeto do edifício: um palacete ocre com uma ampla fachada e planta irregular, colunas brancas a sinalizar uma entrada monumental na interseção de duas vias principais. Tem telhado de laje e janelas de guilhotina pintadas de branco. Parece enorme visto de frente, até entrarmos e descobrirmos que, na realidade, é mega, como diz o  Ore. Há um conjunto de passagens cobertas que for-mam um retângulo com um grande pátio no interior. As passagens conduzem às salas de artes, aos laboratórios de ciências e  à zona de convívio. Ao fundo há três campos de jogos diferentes, dois dos quais contíguos. O terceiro é um campo de críquete, com uma ban-cada de madeira coberta.

Pelo tamanho da escola, já calculava que a afluência seria brutal, com um enorme número de pessoas a chegarem à mesma hora nas manhãs. No entanto, não contava com tamanha agitação e a sensa-ção de pânico que paira no ar. Não esperava ver tantos pais parados à entrada, como se esta fosse a última vez que estarão juntos. Com-portam-se como eu com os meus filhos no primeiro dia de aulas, mas já fazem isto há pelo menos uma semana, já deviam estar vaci-nados. E muitos já fazem isto há anos. Sinto o coração a mirrar-me no peito. Que raio se passa com esta gente?

– Vamos lá, meninos – digo eu, com a voz cheia de animação e expectativa, sem mostrar o terror e a inquietação que realmente sinto. – Não é ótimo?

O  Ore olha para mim como se eu finalmente tivesse perdido o juízo e o Oscar continua a olhar em frente. Nenhum deles dá se-quer um passo na direção dos portões.

– Vá, trotinetas. – Sem perderem as diferentes expressões de ter-ror, os gémeos passam-me as trotinetas e, com um gesto hábil, como

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se estivesse habituada a  fazê-lo, pego nelas com uma mão, ainda a equilibrar as coisas deles, e abro caminho por entre as ilhas de pais que conversam, atentos a quem passa.

À entrada, vejo a Sra. Carpenter, a diretora da escola, imóvel e so-lene, como um membro da guarda real do Palácio de Buckingham, o paradigma da elegância e do autodomínio. Traz um fato roxo com uma camisa verde – as cores do uniforme da Preparatória – e o cabelo acobreado preso num coque executado na perfeição. Sorri e saúda pelo nome cada aluno que entra. É como um farol na barafunda que nos rodeia. Faz um grande sorriso à nossa chegada e acredito que tudo vai correr bem. Sei que se irá encarregar de acolher os rapazes, certificar-se de que são recebidos da melhor forma pelos professores, tornar a transição mais fácil, mais suave.

Quando nos acercamos da Sra. Carpenter, o  burburinho cessa abruptamente, como se alguém tivesse carregado num interruptor para eliminar o ruído de fundo. Desce sobre nós um silêncio sepul-cral. Terei ficado repentinamente surda? Olho à minha volta. Contudo, ainda ouço os pássaros a cantar, o trânsito matinal na estrada adja-cente, os cliques das luzes de emergência, os rapazes a  respirar ao meu lado. Volto a olhar em redor. Estão todos a olhar. Estão todos em silêncio e a olhar… para nós.

O trovejar dentro do meu peito aumenta, esqueço-me de respirar. Se calhar, devia ter sido mais cuidadosa na escolha da roupa ou tra-zido o carro para poder deixar os miúdos antes que reparassem em nós. Olho para os gémeos. O Ore tem um ar determinado, de quem não tolera intimidações, preparado, aparentemente, para responder à altura, se alguém disser alguma coisa. O Oscar não esconde a con-fusão – olha para todo o lado, tentando compreender o que se passa. Por fim, olha para mim e chama baixinho:

– Mãe?Abano a cabeça e encolho os ombros, como quem diz: “Também

estou às aranhas.”Decido ignorar a  cena, não deixar que os rapazes percebam

que estou perplexa, preocupada com a forma como os miúdos irão ser tratados, se os pais se comportam desta maneira. Estou prestes a avançar quando o espaço à minha frente é subitamente ocupado

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por um homem alto, branco. Traz o cabelo castanho despenteado, mas não de propósito, penso eu. O  fato azul-marinho tem um ar desmazelado e a camisa branca está a precisar de outra engomadela, embora o nó da gravata estampada esteja impecável. Vem acompa-nhado de duas meninas louras com uniformes escolares. Parecem lavados, mas como se alguém tivesse tentado passá-los a ferro. Con-tudo, à semelhança da camisa do pai, precisam de outra engoma-dela. É nele, ou melhor, neles, que todos os olhares se concentram.

O  homem repara no silêncio, como não podia deixar de ser, e para diante dos portões da escola. Ignorando o sorriso, agora um tanto forçado, no rosto da diretora, olha para a esquerda e para a di-reita, devolvendo os olhares dos curiosos. Apanhados em flagrante, os outros pais desviam o  olhar, embaraçados por terem sido tão pouco discretos. Depois de ter feito com que se sentissem constran-gidos e ligeiramente envergonhados, o homem continua.

A  Sra. Carpenter parece regressar à  vida e  o sorriso dela rea-cende-se.

– Bom dia, Madison, bom dia, Scarlett. Que bom voltar a ver--vos. Bom dia, Sr. Whidmore.

Em resposta, o Sr. Whidmore faz-lhe um breve aceno, antes de se baixar para abraçar as filhas.

– Tenham um bom dia – diz-lhes baixinho. O barulho e as con-versas recomeçam num tom contido, sombrio, como se tivesse aca-bado de acontecer uma tragédia e ninguém soubesse como reagir. – Passo aqui para vos apanhar depois do vosso clube, está bem?

As pequenas acenam, mas não dizem uma palavra. De mochilas às costas e com os sacos dos livros nas mãos, esperam, muito quietas, que o pai as deixe ir, e a seguir voltam-se simultaneamente e atra-vessam os portões do colégio. Ao chegar à escola, a maior parte dos miúdos dirige-se imediatamente à zona do recreio, mas estas irmãs, a  Madison e  a Scarlett, nem sequer olham para lá, desaparecendo rapidamente no interior do edifício.

O  Sr. Whidmore endireita-se e  encara a  diretora. A  expressão dela parece indagar: Que posso eu fazer para emendar a situação?, ao mesmo tempo que diz:

– Fique descansado, Sr. Whidmore, cuidaremos bem delas.

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– Certifique-se disso – responde ele com um aceno.Ao virar costas, dá comigo e com os gémeos. Fixa-me com um

olhar, concentra-se num ponto atrás de mim, algures acima do meu ombro direito, e vira à esquerda, lançando um último olhar repro-vador a alguém que não vejo. Colocados os pontos nos is, abandona o local. Tal como as filhas, não olha para trás.

Onde diabo vim eu meter os meus filhos?

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Hazel

8h05. De que é que me estou a esquecer?Há sempre qualquer coisa. Fiz uma lista e verifiquei-a duas vezes,

como o Pai Natal faz na música Santa Claus Is Coming to Town, mas creio que me esqueci de pôr qualquer coisa lá. Em abono da verdade, devo ter-me esquecido de mais do que apenas uma coisa. Estou pa-rada à entrada da escola, absorta, riscando mentalmente itens da lista, enquanto espero pelo primeiro toque para arrancar para o trabalho:

• Autorizações para viagens de estudo/atividades/vários conteúdos controversos a incluir nos currículos (visto)

• Meter as referidas autorizações nas mochilas certas (visto)

• Tratar dos uniformes, ajudar os miúdos a vestir os res-petivos uniformes (visto)

• Verificar os equipamentos de Educação Física e  Jogos (porque não é a mesma coisa) e se vão nos sacos certos (visto)

• Gerir a crise existencial pré-adolescente relativa a tele-móvel/cosméticos/pernoitar em casa do pai (visto, visto e visto)

• Chegar a horas à escola (visto)• Estar pronta e vestida para o trabalho (visto)

Há demasiados vistos na lista –  só posso ter deixado qualquer coisa de fora. E  há de ser algo importante. Tão importante que,

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provavelmente, vou dar por mim a pedir desculpa a mais do que uma pessoa, ao mesmo tempo que procuro lembrar-me de que fiquei de me tornar melhor nisto de ser adulta. Sabendo perfeitamente, en-quanto prometo a mim mesma fazer melhor, que nunca vou passar da cepa torta.

Deixo escapar um suspiro. Tenho a certeza de que aquilo que me esqueci de pôr na lista não tardará a vir ao de cima.

O  tempo está quente e  abafado para uma manhã de meados de setembro, mas com algumas nuvens. Tenho sempre a sensação, porém, de que o calor nesta zona vem da energia despendida du-rante a confusão da afluência da manhã, quando surgem todos ao mesmo tempo, apostados em chegar exatamente em cima do toque e com o uniforme tão aprumado quanto possível. Essa energia dis-sipa-se na atmosfera assim que os miúdos atravessam os portões e os pais respiram de alívio por terem conseguido trazê-los a tempo e horas. Depois disso, é a debandada geral.

Antigamente era raro alguém esperar pelo toque e que os miú-dos tivessem entrado para ir embora, mas este ano pouca gente deixa os filhos na escola à pressa. A maioria deixa as crianças e fica à conversa – ou a stressar, que é o que eu faço.

A máquina de lavar roupa? Lembro-me de meter a roupa no tam-bor, de pôr o detergente. Até me lembro de selecionar o programa dos sintéticos, mas será que carreguei no botão para iniciar a  lavagem? Será isso? A máquina de lavar roupa?

Além de stressar, questiono-me… Como é que ainda sou capaz de fazer isto, depois de tudo? Será que devia ter falado com o Walter, por pior que fosse, e tirado os miúdos da escola? Pergunto-me onde seria seguro…

O barulho ensurdecedor cessa abruptamente. As conversas dão lugar à  tensão, à  incerteza, à comiseração, e o silêncio inesperado deixa-me sem fôlego.

Cá está. Era disto que me tinha esquecido.Já não me recordava que hoje era o  dia de o  Trevor começar

a trazer as filhas novamente à escola.Fica tudo parado a olhar, num silêncio atento, enquanto as três

figuras se aproximam dos portões.

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Depois de deixar as miúdas à entrada e de as abraçar, o Trevor franze o sobrolho à Sra. Carpenter, como se a considerasse respon-sável pelo que aconteceu à esposa. A seguir, vira costas e dá de caras com uma mulher negra, com dois filhos, a impedir-lhe o caminho. Continua a percorrer a multidão de espectros que o tratam como uma curiosidade da feira dos horrores, até avistar quem claramente procura. Até me ver. No meio da multidão de espectadores, o olhar dele pousa em mim. Carregado, acusador. Sei muito bem o que fi-zeste, Hazel, parece dizer-me com aquele olhar. Como foste capaz?

Quero desviar o olhar, esconder as lágrimas que me ardem nos olhos, mas não sou capaz. Sou prisioneira dos olhos do Trevor até que ele me liberte. Tento respirar, mas sinto o peito apertado, tento organizar as ideias, mas a minha mente está congelada. Tento sentir qualquer coisa, mas não consigo, não quando a dor deles é tão terrí-vel, tão óbvia e tão indisfarçável.

Quando o olhar acusatório do Trevor se afasta, baixo a cabeça e inspiro algumas vezes, trémula, sem tirar os olhos do chão. É como se ele soubesse. Como se percebesse. Inspiro bem fundo, e sei que ele foi embora quando a atmosfera à minha volta se aligeira e as conver-sas recomeçam pouco a pouco, em tons abafados. Há gente a olhar para mim, pressinto-o. Sabem que eu era amiga dela. Lembram-se de como parecíamos chegadas. Estão a perguntar-se o que poderei ter feito para merecer um olhar daqueles.

O bip do telemóvel faz-me saltar. Tiro-o do bolso e leio a men-sagem.

Temos de falar.

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Maxie

8h05. Nem acredito que passou apenas uma semana. Tenho a sensação de que ando a arrastar-me há semanas e semanas para fora da cama para levar os miúdos à escola. Sinto aquele lento e as-sustador cansaço que se vai vagarosamente entranhando lá mais para o fim do período, quando entrámos na rotina de nos lembrar-mos que saco corresponde a que uniforme e a que dia e, quando damos por ela, já os temos outra vez em casa todo o dia. Só que, como é óbvio, ainda só estamos na segunda semana de aulas.

O Frankie tem vindo sempre a voar à minha frente no caminho para cá. Trago a mochila – cheia e pesada como nunca –, o saco dos livros e o saco de desporto dele, porque ontem à noite convenceu--me de que tinha um jogo de futebol. Normalmente não há jogos à segunda-feira, mas o meu filho consegue ser convincente. E, mui-tas vezes, com razão. Estive quase para entrar no PPA3, o grupo do 3.º ano na rede social da escola, para confirmar. Tinha os dedos no teclado, preparados para escrever uma mensagem simples, mas não fui capaz. A seguir ao… ao acidente da Yvonne, houve uma corrente infindável de mensagens de gente chocada e assustada com o acon-tecimento, de conversas, apreensão e compaixão. Quando o choque se desvaneceu e deixámos de ter informações novas, a maré virou. Começaram as especulações. Não sobre o que teria acontecido, mas sobre o que o Trevor faria.

“Acham que vai tirar as miúdas da escola?”“Se estivesse no lugar dele, era o que eu faria. Tu não?”

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“Nem imagino como seria para eles passar por aquele re-creio todos os dias.”

“Eu cá acho que as deviam tirar da escola. Não é justo para os nossos filhos terem de lidar com esse lembrete todos os dias.”

E assim sucessivamente. Todas muito condoídas, “só a perguntar”. De um mau gosto que só visto, como se quisessem saber os últimos mexericos ou como a decisão do marido da vítima as afetaria. Sem-pre que faziam uma pergunta, marcavam a Anaya, a Hazel e também a mim. As amigas dela.

Estive quase, quase, mortinha por lhes passar uma valente des-compostura, chamar-lhes um bando de bruxas falsas e nojentas e dei-xar o grupo. Mas tive de morder a  língua, porque tenho de as ver todos os dias e o Frankie é amigo dos filhos delas. Tenho de fazer os possíveis por não dar nas vistas mais do que já damos.

O Frankie parece uma agulha verde e roxa a serpentear por entre as mães paradas no passeio, desaparecendo aqui e voltando a surgir mais adiante, como que a uni-las com uma costura invisível. Tenho de andar em ziguezague e, por vezes, de me pôr em bicos de pés para ficar de olho nele.

– Olá, Maxie – diz-me alguém. Sorrio-lhe, dou-lhe uma palma-dinha nas costas e sigo adiante, sem tirar os olhos do Frankie. Sinto uma mão no ombro, em jeito de cumprimento, um sorriso, um aceno, a sugestão de um café para breve, as reações habituais à chegada aos portões, e respondo a tudo da forma apropriada – um sorriso, uma palmadinha nas costas, um gesto para me enviarem uma mensagem para o tal café, um sinal para me ligarem –, enquanto sigo o percurso do meu filho até à escola.

Sou perita em comunicar com outras pessoas sem tirar os olhos do Frankie. Deve sentir-se a criança mais vigiada do planeta, porque raramente tiro os olhos dele. Sei que é normal preocuparmo-nos com os nossos filhos, imaginar, por breves momentos, os piores cenários do que lhes pode acontecer e logo a seguir afugentá-los. E também sei que não é normal estarmos acordados às 5h00 a ver o céu a cla-rear, enquanto passam pela nossa cabeça cenários horripilantes. Para a maioria das pessoas, no entanto, as coisas que me tiram o sono não

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passam de lendas urbanas, histórias interessantes contadas entre ami-gos, enredos da televisão a não perder. Para a maioria das pessoas, aquilo que me preocupa, o que vivi, é apenas ficção.

O Frankie faz uma das suas travagens acrobáticas, salta do skate e  brinda a  Sra. Carpenter com um grande sorriso, antes de tirar o capacete preto. Apareço por trás dele e pego no capacete.

Entre as caras que reconheço há uma mãe que nunca vi antes. Vem de forma informal, de calças de ganga, t-shirt e um casaco de cabedal verde. Tem a mesma pele cor de café da minha mãe, e com rastas negras que lhe dão pelos ombros e uns olhos grandes e expressivos, pouco ou nada lhe falta para ser realmente bonita. Só não sabe disso, a julgar pela roupa que traz e a expressão no rosto, enquanto marcha atrás de dois rapazes (que devem ser da idade do Frankie), carre-gada com as mochilas, os sacos dos livros e os casacos de ambos. Traz o boné verde e roxo de um dos rapazes no topo da cabeça. Quando está quase a chegar aos portões, abate-se sobre a multidão no passeio um silêncio sobrenatural. Até as crianças no recreio param por alguns instantes ao notar que os adultos se calaram repentinamente.

O  meu coração quase se vira do avesso quando o  vejo. Está muito mais pálido do que o normal, tem os olhos encovados e um aspeto desmazelado. Pela aparência deles, é óbvio que era a Yvonne quem fazia tudo em casa. Nunca cheguei a perceber como conse-guia andar sempre tão bem arranjada, dirigir a Associação de Pais (mesmo antes de assumir oficialmente o  cargo) e  assegurar-se de que a  família vestia sempre roupa impecavelmente limpa e  engo-mada. Não, não trabalhava fora de casa, mas há muita gente que não tem emprego e que nem por isso administra uma casa tão bem como a Yvonne o fazia.

Sinto o coração na garganta ao ver a Madison e a Scarlett. Ca-minham lado a lado com o pai, de costas muito direitas e aparente-mente indiferentes ao comportamento dos que as rodeiam. Coitadas das meninas. Devia ter ido visitá-las. Devia tê-las convidado para irem a minha casa. Devia ter feito o que a Yvonne fazia quando al-guma de nós tinha uma crise, tomando as rédeas da situação para manter as coisas tão normais quanto possível para as crianças. Se a  Yvonne aqui estivesse, teria definido uma estratégia, tratado da

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roupa e  da alimentação das miúdas. Ter-se-ia certificado de que a cara-metade da pessoa nunca ficava sozinha.

Eu devia ter feito estas coisas, mas não fiz. Simplesmente não o conseguia fazer.

O  Trevor atravessa os portões da escola, acena cordialmente à Sra. Carpenter e baixa-se para abraçar as filhas. Calculo que esteja a dizer-lhes que virá buscá-las mais tarde, que vai correr tudo bem… que a mãe, a seu tempo, também vai ficar bem. Três semanas depois ainda continua em coma, mas vai ficar bem. Dá para ver, mesmo a esta distância, que ele está a fazer o que todos os pais fazem a certa altura: promessas que não sabemos se podemos cumprir.

O Trevor volta-se e olha novamente para a Sra. Carpenter. É óbvio que falaram por telefone, planearam este regresso e a forma de “gerir” a situação, mas, ao que parece, a conversa não correu lá muito bem. Na verdade, a Sra. Carpenter está com um ar de quem gostaria que isto não estivesse a acontecer. Apesar da forma calorosa como recebeu as meninas, pergunto-me se não terá pedido ao Trevor para ponderar mantê-las em casa por mais algum tempo ou mesmo sugerido que deixassem a escola. Isto foi a pior publicidade que podia ter e, com o número de pais que simplesmente tiraram de lá os filhos (alguns, limitando-se a sugerir que os processassem pelo valor das propinas), pergunto-me se não prefeririam que os Whidmore desaparecessem discretamente.

Ninguém pode ser assim tão cruel. Ninguém pode ver a tensão na postura das pequenas e não sentir culpa. Culpa por ainda termos famílias intactas, ainda num ambiente seguro, ainda totalmente cons-cientes.

Após uma breve troca de palavras, o Trevor volta-se e percorre len-tamente a multidão com o olhar, confrontando uma a uma as pessoas que assistem à cena, provavelmente a acusar-nos em silêncio. Em cada olhar, uma acusação. É óbvio o desprezo que sente por nós. A certa altura, de sobrolho ainda mais carregado, detém-se num ponto para lá dos portões da escola, e pouco depois vê-me. Olhamos um para o outro, e é patente a raiva que sente por mim, pelo que eu fiz.

Sustenho a respiração, o ar comprime, queima-me os pulmões. Será que sabe? Terá descoberto? Não pode. Ele não tinha como saber.

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Mas os olhos dele permanecem em mim, continuam a acusar-me. Mais do que quando amaldiçoou os outros. Muito mais. Está trans-tornado, fora de si, por causa da Yvonne, apavorado e ferido, também. Impossível, ele não tinha forma de saber. Depois de varrer a multidão, o Trevor desvia o olhar reprovador, vira-nos as costas e vai-se embora sem olhar para trás. Quero ficar a vê-lo afastar-se, mas não sou capaz.

O Frankie remexe-se, impaciente. Tenho estado a apertá-lo con-tra mim, provavelmente mais do que o normal. Consegue libertar-se e estende os braços para as coisas da escola, lançando olhares furtivos por cima do ombro, para o recreio, onde os colegas estão a jogar fute-bol. De repente, torna-se insuportável olhar para aquele recreio, onde a encontraram, por trás dos portões habitualmente trancados. Sinto uma vontade súbita de pegar no Frankie, levá-lo para outra escola e fingir que nunca conheci a Yvonne, nem a Hazel e a Anaya, já agora.

– Mãe… até logo – diz o Frankie, indicando que quer as coisas dele e que o estou a atrasar. Relutante, entrego-lhe os pertences e in-clino-me para lhe dar um beijo. Ele dispara a correr, deixando o fim do meu beijo a pairar, como uma folha seca no ar outonal.

Em vez de ir imediatamente embora, tiro o telemóvel do bolso. O ambiente à volta da escola não regressou ao normal, como a cor-rente que retoma o  curso após o  apartar das águas. Continuam todos aqui, a  conversar discretamente. Não costumava ser assim. O carro-patrulha do outro lado da rua, que antes não era uma pre-sença habitual, e a sombra ominosa, esmagadora, que praticamente se pode sentir a pairar acima de nós, servem para nos lembrar todos os dias de que aconteceu algo terrível, e é por isso que agora os pais ficam até ao toque. Ficamos todos no portão (mesmo os que cos-tumavam deixar os filhos à pressa, os que trabalham em Londres e nas cidades vizinhas), como se a nossa simples presença pudesse garantir a segurança deles. Escrevo no telemóvel:

Temos de falar.

E antes que possa mudar de ideias, envio a mensagem.

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Anaya

8h15.– A sério, vocês dois… Porque é que fazemos sempre isto?Viro para a  rua da escola e  percebo de imediato que não vou

conseguir arranjar espaço para estacionar. Há carros estacionados nos dois lados da rua e ao fundo, perto da escola, vejo automóveis parados em segunda fila em ambas as direções. Isto não estaria a acontecer se estes dois não fizessem questão de garantir que nunca saímos de casa a tempo e horas. Por vezes tenho a impressão de que o fazem de propósito, porque é divertido ver a mamã, que em qual-quer outra situação é serena e racional, transformar-se num mons-tro histérico.

– Temos de começar a  sair de casa mais cedo, está bem? Esta pressa não é boa para nenhum de nós. – Enquanto digo isto, estou a sondar os dois lados da rua, em busca de qualquer lugar vago que me permita encostar ao passeio e deixar os miúdos na escola. – Fiz--me entender? – digo-lhes.

– Sim, mamã  – respondem eles em coro, mas provavelmente nem sequer me ouviram. A  Priya continua a  descrever ao Arjun como encestou uma bola no jogo de basquetebol dos rapazes, na semana passada, e como eles ficaram cheios de inveja por não con-seguirem saltar como ela.

Ali está! Um espaço entre um Jeep e  um BMW, perfeito para este monstro que o Sanj me comprou. Carrego levemente no tra-vão, para começar a abrandar, mas depois percebo que afinal é um acesso a uma garagem. Sinceramente… Há cinco anos que faço isto,

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quando é que vou deixar de cair na mesma esparrela? Passo a Pre-paratória e a concentração de pais parados diante dos portões. Ao fim da rua viro à  esquerda, porque por mais atrasada que esteja, não sou capaz de fazer como alguns dos outros e estacionar em se-gunda fila. Não tenho feitio para isso. Vou ter de arranjar um canto qualquer algures aqui perto e levá-los meio a andar, meio a correr, aquilo que tão bem fazemos de manhã. Estou tão cansada disto. Os meus dias não deviam começar desta forma.

– Estou a  falar a  sério, vocês dois  – interrompo. Mesmo esta zona, uma via secundária onde há muito menos trânsito, está api-nhada de carros, pois ainda ninguém deixou as imediações da es-cola. Não há lugares de estacionamento a ficarem vagos. – Isto não pode continuar assim.

– Nós sabemos – dizem eles simultaneamente. Claro que sabem. Esta é a nossa conversa habitual por esta altura: eu a precisar ur-gentemente de uma dose de cafeína e os miúdos a desejar que eu aceite as coisas tal como são e  deixe de bater sempre na mesma tecla. Mas não posso deixar as coisas como estão, não quero que nos conheçam como aqueles que chegam sempre atrasados. Tenho de lhes tentar inculcar a necessidade de sairmos de casa cinco minutos antes. Só esse bocadinho de tempo extra para podermos caminhar até à escola quando estacionamos mais longe, chegarmos tranquilos e relaxados, em vez de afogueados, e eu com a sensação de que a di-retora me vai chamar ao gabinete para me pregar um sermão sobre a  minha falta de sentido de responsabilidade. Além disso, quero chegar a um ponto que me permita fingir que sou a Supermulher, capaz de manter facilmente duas crianças na ordem.

Espreito-os pelo retrovisor, para ver se a  minha conversa sur-tiu algum efeito. A Priya, de 8 anos, está muito direita na cadeiri-nha, com o cabelo negro e luzidio perfeitamente dividido ao meio e preso num rabo de cavalo entrelaçado e baixo; o Arjun, dois anos mais velho, parece estar meio derretido no banco, e o uniforme já está amarrotado, como se tivesse passado um dia inteiro na escola, embora eu tenha tido o cuidado de verificar que trazia roupa limpa e passada a ferro enquanto nos arranjávamos para sair. Não me liga-ram nenhuma, como é óbvio.

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Os meus olhos regressam à estrada e subitamente vejo uma fi-gura corpulenta mesmo diante do carro. Travo a fundo, e a força do atrito lança-nos para a frente. Os pequenos começam a lamuriar-se mesmo antes de regressarmos à posição inicial.

– Está tudo bem aí atrás? – pergunto-lhes– Não – resmunga o Arjun.– Porque é que fazes isso? – questiona a Priya.Volto a olhar para a pessoa que me obrigou a travar, para ver se

tem noção de que pôs os meus filhos em perigo, já para não falar da própria vida.

– Não fiz de propó…É ele. A figura parada no meio da estrada é ele. Não o via desde

que aconteceu aquilo. Não o tenho visto e, creio, não esperava vê-lo. Contava poder evitá-lo por mais tempo. Fica parado no meio da es-trada, a fuzilar-me com os olhos, um azul penetrante que atravessa o para-brisas e fere-me a pele. Abana a cabeça com uma expressão de desdém e vira costas, dirigindo-se ao carro que estacionou do outro lado da estrada.

Estou a tremer. Não só devido à travagem de emergência, mas também devido à  reação dele. O  Trevor odeia-me, odeia-me de morte. E eu sei porquê. Não o censuro, mas é horrível ver um olhar daqueles no rosto de alguém com quem partilhei refeições, com quem bebi, dancei e socializei. Parte-me o coração ver aquele olhar no rosto de um amigo.

As minhas mãos ainda tremem quando passo o pé do travão para o acelerador e arranco novamente. Encontro um lugar para estacio-nar e concentro-me em tirar os miúdos do carro, agarrar nas mochi-las e nos casacos e acompanhá-los até aos portões da escola mesmo a tempo de se meterem nas filas dos respetivos anos para entrar.

Não estabeleço contacto visual com ninguém, nem mesmo com as mães que costumam sorrir para mim. Não quero ver ninguém, tê-los a olhar para mim como o Trevor o fez há pouco. No regresso, só consigo voltar a  respirar livremente ao chegar ao fim da rua. Agora que os miúdos estão a entrar, a multidão começa a dispersar, e quanto mais me afasto dos portões, do recreio onde a encontra-ram, melhor me sinto. Mais livre.

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Aconteceu a mesma coisa na semana passada, quando as aulas recomeçaram. Sempre que me aproximava da escola, deixava de respirar, ficava tensa, tinha de pestanejar para conter as lágrimas.

As outras duas estão à espera junto ao meu carro, de braços cru-zados, tensas e encolhidas. Não conversam, estão simplesmente ali paradas, e pelas expressões nos rostos delas, sentem-se tal como eu: inquietas, assustadas, arrepiadas. A Hazel devia trazer o cabelo cas-tanho preso num coque impecável quando saiu de casa esta manhã, mas agora parece um ouriço desgrenhado; a Maxie tem estado a en-rolar o cabelo à volta do dedo porque, em vez de cachos, tem tufos. Estão as duas a fitar o vazio, com o olhar perdido a meia distância.

Não nos aproximamos desde que aquilo aconteceu. Não trocá-mos mensagens, não nos encontrámos para tomar café na quarta--feira passada, nem estivemos juntas na hora de trazer e vir buscar os miúdos. Era como se mal nos conhecêssemos. Não foi nada pla-neado, mantivemos a  distância por instinto. Nem sequer ligámos umas às outras para comparar notas, ou reunimo-nos apressada-mente, quando a polícia nos interrogou por termos sido as últimas pessoas a vê-la consciente naquela noite. Agora que vimos o Tre-vor, no entanto, as coisas mudaram. Calculo que também o tenham visto, e  que tenham recebido o  mesmo tratamento que eu. Caso contrário, porque estariam como eu?

Paro à frente delas.Parece que agora vamos ter mesmo de discutir o assunto.

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