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Universidade do Estado do Pará Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Centro de Ciências Sociais e Educação Programa de Pós-Graduação em Educação-Mestrado Madalena Corrêa Pavão Educação Escolar e construção identitária na comunidade quilombola de Abacatal - PA Belém – Pará 2010

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Universidade do Estado do Pará Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Centro de Ciências Sociais e Educação Programa de Pós-Graduação em Educação-Mestrado

Madalena Corrêa Pavão

Educação Escolar e construção identitária na comunidade quilombola de Abacatal - PA

Belém – Pará 2010

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Madalena Corrêa Pavão

Educação Escolar e construção identitária na comunidade quilombola de Abacatal - PA

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do titulo de mestre em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará. Área de concentração: Saberes Culturais e Educação na Amazônia. Orientadora: Profa. Dra. Maria do Perpétuo Socorro Gomes de Souza Avelino de França.

Belém – Pará 2010

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Madalena Corrêa Pavão

Educação Escolar e construção identitária na comunidade quilombola de Abacatal - PA

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do titulo de mestre em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará. Área de concentração: Saberes Culturais e Educação na Amazônia.

Data de aprovação: ___ /___ /____ Banca Examinadora: ______________________________________ - Orientadora Profa. Dra. Maria do Perpétuo Socorro Gomes de Souza Avelino de França. Doutora em Educação - UNICAMP Universidade do Estado do Pará ______________________________________ - Examinador Profor. Dr. Marcio Couto Henrique Doutor em Ciências Sociais - UFPA Universidade Federal do Pará ______________________________________ - Examinadora Profa. Dra. Josebel Akel Fares Doutora em comunicação e Seminário – PUC/SP Universidade do Estado do Pará ______________________________________ - Examinadora Profa. Dra. Ivanilde Apoluceno de Oliveira Doutora em Educação – PUC/SP Universidade do Estado do Pará

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Aos moradores/as de Abacatal que me permitiram partilhar de momentos de suas vidas proporcionando-me momentos ricos de aprendizagens. A Ubaldino, mais que um marido, um companheiro em todos os momentos. A Alex e Junior, meus filhos, meus meninos, meus amores. À Alexia Isadora, minha netinha querida, uma bênção de Deus.

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AGRADECIMENTOS

À memória de minha mãe, dona Arminda. Mulher extraordinária que, no plano

material, foi exemplo de dedicação incondicional aos filhos, hoje é meu anjo guardião que

inspira, em mim, bons pensamentos e confiança para agir com firmeza nos meus propósitos.

Professora Maria do Perpétuo Socorro Gomes de França, sua competência e

sensibilidade me inspiram e ensinam muito. Obrigada pela amizade, paciência e confiança no

meu trabalho.

Aos professores da banca, Josebel Fares, Márcio Henrique e Ivanilde de Oliveira, não

apenas por lerem o texto final, mas pelas valiosas contribuições que deram no processo de

construção da pesquisa.

Aos professores/as do PPGED pela importante contribuição na minha formação como

pesquisadora

Às pessoas que fazem a comunidade e a escola de Abacatal, pelo carinho com que me

receberam, abriram suas casas e cederam parte de seu tempo para as entrevistas tornando-as

agradáveis momentos de conversas.

Ao professor José Mauricio Arruti, pela convivência no grupo de pesquisa na PUC-

Rio, as conversas, sugestões de leituras e, principalmente pelos questionamentos que muito

ajudam a pensar a educação escolar em quilombos.

À professora Ana Tancred, pela amizade, pelo incentivo e pela gentileza de emprestar

livros e textos que contribuíram significativamente com a pesquisa.

À família pela compreensão e companheirismo em todos os momentos.

A Ubaldino, pela paciência, compreensão, apoio incondicional, sem o que a

caminhada seria mais difícil.

Aos colegas do mestrado, em especial à Elizabeth, Joselene e, Adolfo, pelos

momentos ricos de estudo, discussões teóricas, descontração e pelos gestos de solidariedade.

À energia positiva, que também chamo de Deus, pelas graças concedidas. Aos bons

espíritos, executores da vontade de Deus, por iluminar os caminhos, inspirar boas idéias e

acompanhar na caminhada.

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LISTA DE FIGURAS Figura 1: Estrada de acesso à comunidade de Abacatal. ......................................................... 24

Figura 2: Portão de entrada da comunidade de Abacatal. ....................................................... 59

Figura 3: Senhor Benedito Rosa da Conceição. ...................................................................... 61

Figura 4: Senhora Ana Barbosa da Conceição ........................................................................ 62

Figura 5: Maria Santana da Costa Barbosa ............................................................................. 63

Figura 6: Professora Ana Alice Costa Silva ............................................................................ 64

Figura 7: Gestora Maria Onélia Barbosa da Conceição. ......................................................... 65

Figura 8: Professora Luciana Silva da Silva ........................................................................... 66

Figura 9: Professora Ângela Cardoso Silva ............................................................................ 67

Figura 10: O caminho de pedras. ............................................................................................ 70

Figura 11: Novo prédio da escola de Abacatal: Escola municipal Manoel Gregório Rosa

Filho, inaugurado em 04 de janeiro de 2010. ........................................................................... 97

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LISTA DE SIGLAS

ABA Associação Brasileira de Antropologia.

ADCT Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

CEDENPA Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará.

DCNERER

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico- Raciais

EJA Educação de Jovens e Adultos

EMATER-PA Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Pará

FCP Fundação Cultural dos Palmares

INCRA Instituto de Colonização e Reforma Agrária

INEP

Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira

IDH Índice de Desenvolvimento Humano

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia Estatística

LDB Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional

MEC Ministério da Educação

NAEA Núcleo de Altos Estudos Amazônicos

PPP Projeto Político Pedagógico

PFL Partido da Frente Liberal

PIB Produto Interno Bruto

PNUD Programa de Desenvolvimento para a América Latina.

SECAD Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e diversidade

SEDUC Secretaria Estadual de Educação

SEJUDH Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos

SEMED Secretaria Municipal de Educação

UEPA

UNICEF

Universidade do Estado do Pará

Fundo das Nações Unidas para a Infância

UFPA Universidade Federal do Pará.

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RESUMO

PAVAO, Madalena Corrêa. Educação Escolar e construção identitária na comunidade quilombola de Abacatal – PA. 2010 Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Pará. Belém, 2010. O estudo trata da Escola Municipal de Ensino Fundamental Manoel Gregório Rosa Filho, na comunidade remanescente de quilombo de Abacatal, situada no município de Ananindeua, no Pará. Tem por objetivo analisar a educação escolar na comunidade, buscando compreender se e como esta possibilita a construção identitária do grupo, bem como as expectativas dos moradores em relação à escola e as estratégias de mobilização dos quilombolas em relação à preservação de sua cultura. Contamos com sete interlocutores com idades entre 22 e 73 anos sendo: um casal de antigos moradores, uma representante da associação de moradores, três professoras e a gestora da escola. Nossas opções teóricas se delinearam ao longo processo de produção dos dados, nas interações como os/as interlocutores/as, com a comunidade e com o ambiente escolar. Utilizamos procedimentos metodológicos da história oral, observação participante, análise de documentos e registros fotográficos. O texto está dividido em quatro seções: na primeira refletimos sobre os aspectos da disputa e das polemicas em torno das comunidades quilombos na atualidade. Na segunda apresentamos um histórico da formação de quilombos na Amazônia paraense, focando especialmente a comunidade quilombola de Abacatal. Na terceira identificamos as primeiras experiências de alfabetização na comunidade e reconstruímos a história da escola enfocando os conflitos com o poder público local pela criação da escola e pela contratação de professoras da própria localidade. Na quarta, analisamos a escola em sua relação com a família e a comunidade, sua orientação curricular e as práticas docentes, visando entender se o trato com os conhecimentos escolares e os saberes culturais possibilitam a construção da identidade quilombola. Os resultados indicam que Abacatal está à frente de outras comunidades quilombolas do país, pois desde os anos de 1980 já se mobilizava para a manutenção da escola, inclusive contando com professoras da própria localidade. Quanto à educação escolar constatamos que ainda há resquícios da ideologia do branqueamento e um movimento dialético que ora silencia, ora afirma a identidade do grupo: centra-se nos conteúdos previstos nos programas das disciplinas visando uma avaliação através de provas; dá abertura para os saberes culturais e as experiências dos/as próprios/as educandos/as, promovendo, ainda que timidamente, um diálogo entre os conhecimentos escolares e os saberes que circulam na comunidade, o que possibilita o processo de construção e afirmação da identidade quilombola.

Palavras-chave: Educação Escolar. Identidade quilombola. Remanescente de quilombo.

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ABSTRACT

This study concerns the Municipal School for Basic Education Manuel Gregório Rosa Filho, in Abacatal, a remaining quilombo community, stunted in the municipality of Ananindeua, in the State of Pará. It aims to analyze the school education in the community, trying to understand whether and how it enables the identity construction of the group, as well as the expectations of dwellers, related to the school and strategies for the mobilization of quilombo communities concerning to the preservation of the culture. We have seven interlocutors with ages between 22 and 73 years, being a couple of former dwellers, a representative of the dweller’s association, three teachers, and the director of the school. Our theoretical options were designed along the process of data collection, in interactions with the interlocutors, the community and the school environment. We used the methodological procedures of oral history, participative observation, document analysis, and photo shooting records. The text is divided into four sections: in the first one, it explores the aspects of the dispute and the polemic around the quilombo communities, nowadays. In the second, we present a historical account about the formation of those communities in the Amazonian part of Pará, especially focusing Abacatal. In the third, we identify the first experiences of literacy in the community and rebuild the school history, focusing on the conflicts with the local politicians about the creation of the school, and the recruitment of teachers that lived in the settlement. In the fourth part, we analyze the school and its relationship with the families and the community, its curriculum orientation, and the teacher’s practices, in order to understand if the dealings with school knowledge and cultural knowledge allow the construction of the quilombo identity. The outcomes indicate that Abacatal is ahead other communities along the country, for since the 80’s it had already made movements for the maintenance of the school, even counting with local teachers. As the school, we have found that there are still traces of a whitening ideology and a dialectical movement that sometimes hushes. Sometimes declares the identity of the group: it concentrates the contents fixes in the curriculum, aiming to an assessment through tests; it give openness to the cultural knowledge and the experiences of the learners themselves, promoting, even though timidly, a dialog with the school knowledge, which allows the process of construction and affirmation of the quilombo identity.

Key-words: School Education. Quilombo Identity. Remaining quilombo.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 10

1 COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBO: um debate em movimento ............ 33

1.1 REMANESCENTES DE QUILOMBO: processo de ressemantização .......................................... 33

1.2 IMPASSES NA REGULAMENTAÇÃO DO DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL ................... 40

2 QUILOMBOS NA AMAZÔNIA PARAENSE: a singularidade de Abacatal ............................ 51

2.1 QUILOMBOS NO PARÁ ............................................................................................................... 52

2.2 A COMUNIDADE DE ABACATAL: um quilombo diferente porque é terra de herança ............ 58

2.2.1 Abacatal é a colônia mais antiga de Ananindeua ...................................................................... 68

3 PERCURSOS DA EDUCAÇÃO ESCOLAR NA COMUNIDADE DE ABACATAL: da professora que ia ensinar a ler à Escola Manoel Gregório Rosa Filho ........................................... 74

3.1 A IDEOLOGIA DO BRANQUEAMENTO E SEUS REFLEXOS NA EDUCAÇÃO ESCOLAR74

3.2 INICIATIVAS DE ALFABETIZAÇÃO EM ABACATAL ........................................................... 83

3.3 A ESCOLA EM ABACATAL ........................................................................................................ 90

3.4 A ESCOLA MANOEL GREGÓRIO ROSA FILHO ..................................................................... 97

4 EDUCAÇÃO ESCOLAR E IDENTENDADE QUILOMBOLA EM ABACATAL ................ 102

4.1 ESCOLA, FAMÍLIA E COMUNIDADE ..................................................................................... 103

4.1.1 A “serventia” da escola ............................................................................................................ 103

4.1.2 Os pais na escola ....................................................................................................................... 107

4.1.3 O Preconceito Fora e Dentro da Comunidade ....................................................................... 111

4.2 ESCOLA MANOEL GREGÓRIO ROSA FILHO: construção da identidade quilombola .......... 115

4.2.1 Formação das professoras, orientações curriculares e práticas pedagógicas ..................... 115

4.2.2 Família e comunidade: guardiãs de saberes culturais e valores .......................................... 125

4.2.3 As crianças conhecem as histórias de Abacatal ..................................................................... 127

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................... 135

REFERÊNCIAS ................................................................................................................................ 141

APÊNDICES ...................................................................................................................................... 150

ANEXOS ............................................................................................................................................ 154

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INTRODUÇÃO

Neste estudo voltamos nossa atenção para a Escola Municipal de Ensino Fundamental

Manoel Gregório Rosa Filho, na comunidade quilombola de Abacatal, situada no município

de Ananindeua, Região Metropolitana de Belém do Pará (RMB), visando entender se e como

esta escola possibilita a construção e afirmação da identidade do grupo. Sobre comunidades

quilombolas existem muitos estudos apontando o quanto a questão dos territórios é importante

para a sobrevivência e construção da identidade das populações, mas compreendemos que a

educação escolar pode contribuir no processo de construção e afirmação da identidade negra

quilombola. Pois, como demonstra Gomes (2001), no espaço escolar são difundidas as

representações negativas sobre o/a negro/a, mas ao mesmo tempo este é um espaço

privilegiado para questionar e superar tais representações.

Entendemos educação escolar como sinônimo de educação formal, isto é, a educação

oferecida nas escolas com o objetivo de formar o cidadão ativo, desenvolver habilidades e

competências várias (GHON, 2006). Adotamos a expressão educação escolar porque nosso

estudo enfoca os conhecimentos tratados na escola de Ensino Fundamental da Educação

Básica, atentando para a maneira como esta instituição de ensino lida com os saberes culturais

da comunidade. Pensamos aqui a escola como instituição escolar pública, vista como lugar de

dominação, de negação e/ou silenciamento do diverso, mas também como resultado de

confrontos de interesses: de um lado, uma organização oficial do sistema escolar que define

conteúdos e funções, organiza, separa, hierarquiza os espaços; de outro, os sujeitos, os/as

educandos/as, professores/as e funcionários/as, que criam inter-relações fazendo da escola um

processo de permanente construção sociocultural.

Os índices educacionais na Amazônia demonstram uma defasagem em relação às

outras regiões. Hage (2005), estudando a educação no Pará, no atual milênio, apontou que a

taxa de reprovação é de 23,36% enquanto a de evasão chega a 16,31%. Considerando essa

classificação por município, o autor verificou que 82 dos 142 possuem uma taxa de

reprovação maior que 20%, enquanto que em 77 deles, a taxa de evasão é maior que 15%. Em

se tratando das áreas rurais os indicadores apontam situação ainda pior.

Como em outras comunidades rurais, as escolas nas comunidades quilombolas não

apresentam infra-estrutura adequada para atender os/as estudantes das diferentes faixas-

etárias; o transporte escolar, quando existe, é precário; o material didático é escasso e, muitas

vezes, restringe-se a livros didáticos que na maioria das vezes são produzidos fora da região

norte, tomando por base as características sócio-culturais e históricas de outras regiões do

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país, com pouca ou nenhuma referência ao diversificado mundo rural, o que dificulta aos

educandos/as do campo, associar os conteúdos com sua realidade social.

Apesar das legislações relativas à educação apregoarem o desenvolvimento da criança

como cidadã e futuro trabalhador, na Amazônia verifica-se que as políticas governamentais

para educação e os projetos sociais de desenvolvimento humano, não têm conseguido superar

os processos de depredação cultural que historicamente ocorre na região.

O discurso da “Educação para todos”, tão referenciado na Declaração Mundial (1990)

e pontuado na agenda das políticas brasileiras, ao que parece não passou de mais um aspecto

normativo, pois os índices de reprovação e evasão escolar no sistema público de ensino,

especialmente na região Norte, comprovam o fracasso escolar, o que compromete o

desenvolvimento da sócio-cultural da região.

A motivação para estudar quilombos e remanescentes de quilombos na Amazônia e,

investigar a educação escolar na comunidade de Abacatal e sua relação com a construção da

identidade quilombola, advém de nossas experiências de formação e da prática no exercício

da docência. Entre os anos de 2005 e 2006, participamos de uma formação continuada sobre

Educação das Relações Étnico-Raciais, História e Cultura Afro-Brasileira e Africana,

realizada pela Secretaria Municipal de Educação de Belém (SEMEC). Nessa formação

discutimos as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais

(DCNERER) e a Lei 10.639/03, seu processo de elaboração e, as possibilidades e dificuldades

de sua efetivação nas escolas da rede municipal.

A partir dos debates suscitados durante a referida formação organizamos um grupo de

estudos composto por professores/as de História e Geografia, com o objetivo de fazer um

levantamento das produções bibliográficas sobre história e cultura africana e afro-brasileira,

escravidão negra na Amazônia e elaborar projetos pedagógicos para serem desenvolvidos nas

escolas. Infelizmente, não conseguimos manter o grupo, mas os estudos e os debates que

realizamos nos ajudaram a pensar maneiras de levar a temática para a sala de aula.

Na leitura dessas DCNERER voltamos nossa atenção para os princípios nos quais as

ações de combate ao racismo e à discriminação devem se basear, pois verificamos que, para a

realização das ações previstas, as referidas Diretrizes trazem, entres outras recomendações o:

“registro da história não contada dos negros brasileiros, tais como remanescentes de

quilombos, comunidades e territórios negros urbanos e rurais” (Parecer CP/CNE n. 3/2004, p.

13).

O estudo das DCNERER nos levou a refletir sobre as possibilidades de trabalharmos

na disciplina História, com estudantes da escola municipal Florestan Fernandes, na qual

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atuamos como educadora, a história dos quilombos na Amazônia. Decidimos começar o

trabalho com duas turmas de primeiro ano do Ciclo Básico III (5a série) porque já constava no

planejamento uma unidade sobre o período colonial brasileiro, o que nos permitiu trabalhar,

nas sub-unidades, a colonização da Amazônia, o trabalho escravo e as formas de resistência

dos cativos, na região. Para tanto, fizemos um breve levantamento bibliográfico e

encontramos obras que abordam a presença negra na Amazônia, como as de: Salles (2005),

Acevedo Marin e Castro (1998; 2004) e Gomes (1996), as quais subsidiaram nosso trabalho

com as crianças.

Na sala de aula abordamos primeiramente o trabalho escravo no Brasil colonial,

enfocando as relações senhor e escravo, em seguida trabalhamos a colonização da Amazônia,

destacando a entrada e a distribuição de escravos negros na região, os tipos de trabalho,

castigos e as formas de resistência à condição de escravizados. Para nossa satisfação os/as

estudantes demonstraram interesse pelo tema, expondo suas dúvidas e questionamentos.

Diante disso, nos empenhamos para levá-los/las numa comunidade quilombola para que

pudessem conversar com moradores sobre a história do lugar e assim relacionarem as

narrativas das pessoas com os conteúdos trabalhados na escola.

Solicitamos o apoio do Programa Raízes1 para levar as crianças a um quilombo, mas

não especificamos a localidade. Recebemos a orientações para encaminharmos oficio à

Secretaria de Justiça e Direitos Humanos (SEJUDH), solicitando o agendamento de visitas á

comunidade do Abacatal porque está na região metropolitana de Belém, no município de

Ananindeua e o acesso é relativamente viável.

Formalizada a solicitação, a própria SEJUDH agendou nossa visita com a Associação

de Moradores de Abacatal, a qual colocou uma pessoa para nos acompanhar pela comunidade.

A pessoa que nos recebeu nos levou ao caminho de pedras, ao igarapé Uriboquinha e à casa

de farinha e, enquanto caminhávamos, ela falava sobre a história do lugar. Os/as estudantes

ficaram fascinados com tudo que viram e conversaram com alguns moradores, registrando as

informações em seus cadernos. A partir das informações coletas construímos textos que

compuseram um pequeno livro sobre a história da comunidade do Abacatal. A culminância

desse trabalho foi a exposição das produções dos/as estudantes na feira cultural da escola.

Na primeira visita a Abacatal com os/as estudantes, nos alegramos em ver uma escola

municipal dentro da comunidade, pois no caminho, ao considerar a distância e as condições

1 O Programa Raízes foi criado pelo governo do Estado do Pará em 2000, pelo Decreto n. 4.054, com a missão de articular, dentro do governo estadual, o atendimento das demandas dos povos indígenas e das comunidades quilombolas. Em 2008, o Programa foi incorporado à Coordenação Estadual de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (CEPPIR), da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (SEJUDH).

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da estrada, pensávamos na dificuldade que as crianças daquele lugar enfrentavam para irem à

escola. Na segunda vez que fomos à comunidade conversamos sobre a escola com a pessoa

que nos acompanhava e soubemos que a mesma existe há muitos anos e que atende crianças

de primeira à quarta série do Ensino Fundamental. Não foi possível, naquela ocasião, nos

informarmos melhor sobre aquela unidade escolar nem falarmos com as professoras. Ficamos

com algumas perguntas sem respostas: há quanto tempo e em que contexto da história da

comunidade a educação escolar foi implantada? Em que condições a escola funciona? Quem

são os/as professores/as e qual a formação deles/as? Como é sua relação com a comunidade e

o que a educação representa para os moradores?

Esses questionamentos nos motivaram a ingressar no Mestrado em Educação da

Universidade do Estado do Pará (PPGED-UEPA), na linha de pesquisa Saberes Culturais e

Educação na Amazônia, com a intenção de pesquisar a relação da escola com os saberes que

circulam na comunidade. Entretanto, durante o primeiro semestre do mestrado as disciplinas

cursadas e o amadurecimento das leituras sobre quilombos e educação escolar, tivemos o

entendimento de que há uma questão mais significativa para a educação - e para os negros em

particular – que é o combate às práticas racistas, ao preconceito e à discriminação no

ambiente escolar e, a construção da identidade positiva desses sujeitos, visto que a identidade

negativa interfere diretamente no aumento da taxa de analfabetismo, evasão e reprovação da

população negra que freqüenta a escola (CAVALLEIRO, 2001).

Buscando conhecer melhor o tema, realizamos um levantamento das produções

acadêmicas disponíveis, nos sites da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em

Educação (ANPED) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

(CAPES) que abordam educação e/ou identidade em comunidades quilombolas. Verificamos

que além da educação, em outras áreas do conhecimento, como na Antropologia, na História e

na Psicologia, também existem investigações cientificas que enfocam essas comunidades.

Destacamos as produções encontradas que têm maior aproximação com nossa pesquisa.

Silva (2004), no artigo intitulado Memória, tradição oral e a afirmação da identidade

étnica, discute a importância da tradição oral na ressignificação da identidade étnica e na

educação e reeducação de negros/as de Vila Bela da Santíssima Trindade (MT). Esse estudo

identificou em Vila Bela, nas concepções religiosas e artísticas dos negros/as, a memória e a

identidade étnica do grupo, por meio da dança do Congado. Portanto, a voz em Vila Bela é

um exercício de ensino-aprendizagem, onde a comunidade mantém em sua memória as

palavras sagradas dos cantos a São Benedito como princípio de aprendizagem para todos,

desde a infância.

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Na tese: Culturas, família e educação na comunidade negra rural de Mata-Cavalo –

MT, Castilho (2008) investiga a relação da família negra quilombola com a educação escolar

dos filhos. A pesquisadora explora alguns aspectos sócio-culturais e educacionais

característicos da comunidade negra rural Mata-Cavalo (MT). A pesquisa indica que a relação

da família negra com a educação escolar dos filhos está imbricada com as precárias condições

sócio-econômicas em que vivem e com o alto índice de analfabetismo que os atinge, fruto do

processo de exclusão social e racial ao qual foram e continuam sendo submetidos ao longo da

história. Essas condições indicam que as práticas discriminatórias e a violência simbólica2

inerente a uma cultura racista, continuam confinando as populações negras na base da

pirâmide social e, limitando suas possibilidades e oportunidades educacionais.

Souza (2006) pesquisou a comunidade Mumbuca localizada no Baixo Vale

Jequitinhonha/MG. Essa pesquisadora reconstrói o possível percurso realizado pelo fundador

do quilombo até adquirir a posse da terra e a espoliação desta, por um coronel da região, nos

tempos atuais. Faz um paralelo, do cotidiano dos quilombolas em relação aos aspectos da

educação, trabalho e religiosidade entre a primeira e a segunda metade do século XX,

considerando o processo de modernização e industrialização ocorrida neste período. Ao

reconstruir a história do povo da Mumbuca, a autora verifica que havia uma tradição de

transmissão da alfabetização de pai para filho e, descreve a primeira iniciativa de constituir a

escola, a educação das mulheres e a presença do professor itinerante e negro, pertencente à

comunidade, e que lecionava para os filhos dos fazendeiros e coronéis da região.

A questão da construção identitária também é investigada na dissertação de Dinalva de

Jesus Santana Macedo, a qual estuda a influência do currículo escolar na construção da

identidade étnico-racial dos/as educandos/as, em uma escola municipal situada na

comunidade negra rural quilombola Araçá/Cariacá, no município de Bom Jesus da Lapa, na

região do Médio São Francisco, no estado da Bahia. A pesquisa revela que a escola demonstra

desejo e preocupação para trabalhar com a história e a cultura da comunidade, porém não

consegue questionar e transgredir o currículo oficial, para ir além dos conteúdos

tradicionalmente valorizados pelos estabelecimentos de ensino. Assim, a escola não atende às

especificidades étnica e cultural dos/as estudantes, o que dificulta o processo de construção da

identidade étnico-racial e da auto-estima do alunado. As possíveis causas dessas dificuldades

são a falta de material didático-pedagógico e de pesquisa para trabalhar com a diversidade

étnica e cultural e a falta de formação inicial e continuada para trabalhar com a educação das

2 Para Pierre Bourdieu (1975) a violência, mesmo que não seja vista como violência física, pode ser identificada com a mesma carga de representação, frente às graves conseqüências para a sociedade de modo geral.

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relações étnico-raciais. No entanto, a pesquisa aponta iniciativas individuais e pontuais de

trabalho sobre a história da comunidade e a questão da identidade quilombola dos/as

educandos/as, que podem influenciar positivamente em seus processos identitários, bem como

na formação de uma auto-estima positiva.

Entre as pesquisas sobre quilombos e educação na Amazônia, destacamos a de

Valentim (2008), que busca compreender e mapear os saberes quilombolas na comunidade de

Murumuru, no município de Santarém, no Pará, a partir das práticas sociais cotidianas.

Recorre às narrativas de pessoas idosas da comunidade, do gestor e de professores/as das

disciplinas História e Ensino Religioso da escola local; analisa documentos da associação de

moradores e da escola para entender a história da terra e da relação dos saberes locais com os

saberes escolares. O pesquisador aponta que a titulação coletiva da terra é indispensável para

a sobrevivência do grupo étnico e que o processo identitário é fortalecido pela luta do

movimento social negro.

O referido estudo identifica os saberes culturais, quis sejam: os saberes da terra, da

mata, das águas, saberes curativos, alimentares, da religiosidade e afirma que as relações dos

sujeitos com o meio sócio-cultural-ambienal são permeadas por esses saberes. Quanto à

relação dos saberes culturais com os saberes escolares, o autor verificou que os primeiros

ainda não conquistaram lugar de destaque nos espaços formais de ensino e a questão étnico-

racial também não foi efetivada como pauta relevante e obrigatória na agenda da escola local.

Paralelamente a leitura dos resumos dos estudos encontrados no banco de dados da

ANPED e da CAPES, a fundamentação teórica desta pesquisa ancorou-se, entre outros, nos

estudos historiográficos de Gomes (1996; 2006) e Salles (2005), nas pesquisas antropológicas

de Arruti (2006) e Avecedo Marin e Castro (1998; 2004), nas análises de Cavalleiro (2001),

Silva (2004), Gomes (2001; 2005; 2007), sobre as relações raciais no espaço escolar.

Gomes (2006) observa que na historiografia sobre quilombos e comunidades de

senzala raras abordagens tiveram como objetivo perceber os negros escravizados enquanto

sujeitos das transformações históricas ao longo da escravidão. O estudo da escravidão estava

amparado em modelos teóricos que a explicavam somente pela violência e pelo controle

senhoril, relegando aos escravos um papel secundário. O autor analisou os quilombos na

província do Rio de Janeiro no século XIX seguindo linhas interpretativas diferentes das

realizadas pela historiografia brasileira dos anos de 1960 a 1970, o que lhe permitiu constatar

que o quilombo não era um mundo isolado da sociedade escravista, onde habitaram guerreiros

mitificados, heróis sem consciência.

Os quilombolas organizaram uma economia e negociavam com outros grupos locais.

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Essas relações socioeconômicas com pequenos lavradores e vendeiros lhe garantiam certa

proteção das perseguições da polícia da época. Visando compreender o universo criado pelos

quilombolas e as transformações nas relações entre senhores e escravos, Gomes (2006) lança

mãos de uma gama de documento da policia, constituída de correspondências e ofícios

trocados pelas autoridades policiais do Rio de Janeiro.

As argumentações de Gomes são fundamentais para compreender a herança que as

narrativas sobre quilombos no Brasil deixaram no imaginário social. Em que as lutas sociais

no meio rural representam uma das faces desse legado. Finalizando a obra o autor explica que

não vai descrever essas heranças simbólicas sobre a representação de quilombos no Brasil.

Nesse sentido, consideramos que pesquisas como a nossa possibilitam verificar as

permanências e as mudanças na forma de organização dos quilombolas, nas lutas pela terra e

na construção e afirmação da identidade.

Arruti (2006) também trás contribuições significativas para compreender o processo

de identificação de uma comunidade remanescente de quilombo. Para este antropólogo é

necessário reconhecer que há um desacordo entre a história a memória, pois o movimento de

passagem do desconhecimento à constatação por parte dos sujeitos implica um trabalho social

de reinvestimento de significados sobre a própria memória local. Primeiro, rompe-se com o

silêncio ao qual a comunidade havia sido relegada; depois, investe-se de forma produtiva

sobre a comunidade - por meio de várias agências, o Estado, o direito, a academia, o

movimento social – a fim de ganhar progressivamente o estatuto de história. Isto implica

pensar que a identidade de uma comunidade não está pronta, para ser colhida pelo

pesquisador, mas é preciso refletir sobre seu processo identitário.

Nesse sentido, escrever sobre comunidade quilombola no Brasil exige a compreensão

do cenário político, da luta por direito pela terra, da luta sócio-cultural e das reflexões

científicas em processo de formação. O reconhecimento quilombola implica na apropriação

de categorias políticas, jurídicas, e administrativas. Arruti (2006) afirma que o

reconhecimento de uma comunidade como sendo remanescente de quilombo não implica

apenas na inserção de um vocabulário a um universo semântico, mas é preciso que o Direito

exerça e o Estado garanta o reconhecimento de tal nominação ao grupo que se identifica.

Para o autor supracitado a compreensão de comunidade quilombola na

contemporaneidade atrela-se à questão do reconhecimento do grupo no domínio público –

projeção do grupo e de seus conflitos nas esferas públicas, imprensa, sociedade civil – e a

questão relativa à própria auto-identificação do grupo de acordo com o seu enquadramento

categorial, o que significa que uma determinada comunidade em processo de formação

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quilombola passa a reconhecer que o desrespeito ao qual está submetida é parte constituinte

de sua identidade coletiva e fonte de uma identificação moral e de mobilização política válida.

As pesquisas de Acevedo Marin e Castro (1998; 2004) são fundamentais para quem se

interessa por comunidade quilombolas no universo amazônico. Essas autoras demonstram que

os negros, na Amazônia construíram um movimento de resistência amplo, estabeleceram

redes solidarias de apoio ás fugas, visto que as constantes ameaças obrigavam os fugitivos a

se deslocarem para os lugares mais distantes e de difícil acesso. Desse modo, eles construíram

também uma relação de cumplicidade com as matas e as águas, que, de certa forma, lhes

orientava as fugas e lhes proporcionou proteção dos interesses escravistas.

Dos estudos dessas pesquisadoras tem especial importância para o nosso trabalho a

obra O caminho de pedras de Abacatal:experiência social de grupos negros no Pará (2004), a

qual resultou da pesquisa, no formato de laudo antropológico, que despontou como uma

possibilidade de recuperar a memória do grupo, sua história e sua identidade. Iniciou em 1997

com o objetivo de recuperar a história da origem do grupo relacionando-a com resquícios

históricos concretos da historia oral. Essa pesquisa contribuiu para que a comunidade

conseguisse o título da terra como remanescente de quilombo, pelo governo do Estado do

Pará, em 1999.

Nessa obra as autoras traçam um perfil geral da comunidade analisando a forma de

organização social, a produção, o sistema de usos dos recursos naturais. Recuperam a história

do lugar, até então presente apenas na memória dos moradores, encontram vestígios materiais,

que associados aos testemunhos dos velhos guardiões da memória, revelam a ancestralidade

da ocupação do território, o que contribuiu significativamente para o reconhecimento e

titulação do mesmo como remanescente de quilombo.

As pesquisadoras não se detêm em analisar a educação na comunidade, embora

apontem os processos educativos presentes nas relações cotidianas do grupo e demonstram os

saberes que emanam da relação dos comunitários com a floresta, com os rios e igarapés, com

a terra e com a luta pelo direito de permanecerem no lugar que herdaram de seus ancestrais.

Além disso, informam a existência de uma escola e mencionam a insistência dos moradores

para manterem essa unidade escolar no interior da comunidade.

Cavalleiro (2001) não investiga especificamente a educação escolar em quilombos,

mas tem se dedicado a estudar sobre a relação da discriminação racial e o baixo nível de

escolaridade de estudantes negros/as. A autora argumenta que o currículo escolar etnocêntrico

e a ausência de políticas públicas eficazes que atinjam todo o segmento de ensino seja público

ou privado, reforça o aumento das desigualdades entre os grupos raciais na sociedade

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brasileira. Acrescentamos que particularmente para as populações quilombolas a

discriminação racial e seus reflexos são ainda mais acentuados por serem negros do meio

rural e por estarem direta ou indiretamente envolvidos com os conflitos fundiários.

Esses estudos nos permitiram olhar com mais atenção para as populações quilombolas

- especialmente no universo amazônico - deram um norte historiográfico e antropológico à

nossa pesquisa e nos possibilitaram inferir que a compreensão de quilombo, remanescentes de

quilombos e educação escolar em quilombo implica extrapolar a concepção da historiografia

tradicional, de quilombos como locais de isolamento e ignorância e, os currículos escolares

marcados pela ideologia do branqueamento que inculca nos/as estudantes negros/as o

sentimento de inferioridade e atentar para a história, cultura, valores e saberes dos próprios

sujeitos.

O referencial teórico, sem dúvida, foi de fundamental importância para a compreensão

do nosso objeto de pesquisa. Entretanto, nosso convívio na comunidade e na escola,

participando dos momentos significativos de discussão e construção de estratégias para a

busca de benefícios para a comunidade, das atividades na casa de farinha e no cotidiano

escolar e, sobretudo, nossas conversas com os/as interlocutores/as e outros moradores foram

imprescindíveis para construímos este trabalho, bem como para definir as categorias de

análise que emergiram nos diálogos com os sujeitos e os autores de referência. São elas:

�Comunidades quilombolas - são grupos sociais cuja identidade étnica os distingue

do restante da sociedade. A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) define as

comunidades quilombolas, ou remanescentes de quilombos, como grupos que desenvolveram

práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num

determinado lugar. São comunidades que se constituíram a partir de uma grande diversidade

de processos, tanto durante a vigência do sistema escravista, quanto após sua abolição no

século XIX, enfrentando as desigualdades que se estendem ate o século atual (Programa

Brasil Quilombola, 2009).

As comunidades quilombolas se caracterizam pela prática do sistema de uso comum

de suas terras, concebido por elas como um espaço coletivo que é ocupado e explorado por

meio de regas consensuais aos diversos grupos familiares que as compõem, cujas relações são

orientadas pela solidariedade e ajuda mútua.

Pelo Decreto 4887 de 20 de novembro de 2003, em seu artigo 2o:

Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnico-raciais, segundo critério de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais especificas, com presunção de ancestralidade negra, relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

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Portanto, o que caracteriza o quilombo não é o isolamento e a fuga e sim a resistência

e a autonomia. O que define o quilombo é o movimento de transição da condição de escravo

para a de camponês livre. Isso demonstra que a classificação de comunidade como

quilombola não se baseia apenas em provas de um passado de rebelião e isolamento, mas

depende antes de tudo de como aquele grupo se compreende, se define. Por isso a legislação

brasileira adota o conceito de comunidade quilombola e reconhece que a determinação da

condição quilombola advém da auto-identificação. Vale frisar que este reconhecimento se

deve, em grande parte, de uma árdua luta dos quilombolas, representados pelo Movimento

Negro e seus aliados que se opuseram às tentativas do Estado de se atribuir a competência

para definir quais comunidades seriam quilombolas ou não.

� Oralidade – indica ação da voz, como o discurso se propaga às gerações seguintes.

A oralidade, em uma tradição oral como é característica das comunidades quilombolas, pode

ser vista também como processo de produção, conservação e repetição (ZUMTHOR, 1993)

de conteúdos através da voz. Em Abacatal, as famílias se reeducaram e se organizaram de seu

próprio modo e se mantêm no lugar porque conseguiram se alicerçar nos segredos seculares

preservados pela memória coletiva e repassados pela tradição oral. Portanto, é uma

comunidade com predominância da oralidade que deixou a voz ecoar por todo o espaço,

refazendo os planos físicos, psíquicos e sócio-culturais.

� Cultura – este é um termo polissêmico e por isso mesmo difícil de conceituar.

Entendemos cultura na perspectiva de Brandão (1997), ou seja, no plural:

[...] Viver uma cultura é estabelecer em mim e com os meus outros a possibilidade do presente. A cultura configura o mapa da própria possibilidade da vida social. Ela não é a economia e nem o poder em si mesmos, mas o cenário multifacetado e polissêmico em que uma coisa e a outra são possíveis. Ela consiste tanto de valores e imaginários que representam o patrimônio espiritual de um povo, quanto das negociações cotidianas através das quais cada um de nós e todos nós tornamos a vida social possível e significativa (BRANDÃO, 1997, p. 24).

� Cotidiano – trata-se de um elemento importante para compreender a construção

identitária numa comunidade quilombola, pois através dos momentos constitutivos da rotina

do dia-a-dia percebe-se a integração dos sujeitos entre si e com a circunvizinhança. O

conceito de cotidiano que adotamos é o utilizado por Certeau (2007) que, entrelaçado ao

conceito de cultura, dá o sentido em relação às práticas culturais, de resistência e passividade

frente às determinações da sociedade.

Certeau (2007), preocupado com o homem comum no confronto com as

determinações impostas pela ideologia dominante, mediante coação e controle, conformismo

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e resistência, analisa as práticas do “homem ordinário”, e como este se apropria, à sua

maneira, dos códigos que lhe são impostos, incorporando ou subvertendo regras comuns para

inventar novas práticas.

Para este autor essas “maneiras de fazer” ou as micros experiências, como espaços

para a criatividade e a inventividade dos “não letrados”, são também compostas pelas práticas

culturais, como culturas no plural. Nesse sentido, a concepção de cultura se produz numa

contínua relação que se dá tanto de cima para baixo quanto de baixo para cima.

Assim, as “maneiras de fazer” podem ser consideradas como práticas de resistência.

Por sua vez, tais resistências podem ser compreendidas como táticas e estratégias resultantes

dos modos particulares de incorporação das determinações a que os indivíduos estão sujeitos.

� Educação escolar: é a educação que tem reconhecimento oficial, que se orienta

pelas diretrizes nacionais, se organiza em cursos com níveis, programas e currículos.

Pensamos a educação escolar na perspectiva da Educação formal que, segundo Ghon (2006,

p. 29), se desenvolve “nas escolas com conteúdos previamente demarcados [...] pressupõe

ambientes normatizados, com regras e padrões comportamentais definidos previamente”.

Trata com o saber escolar, isto é, o conhecimento historicamente construído e transmitido nas

escolas, principalmente através dos programas e conteúdos das disciplinas. Ressaltamos que

não entendemos a escola como mera transmissora de conhecimentos, mas como espaço que

cria possibilidades para sua construção.

� Identidade cultural – temos a compreensão de que identidade não pode ser tratada

como algo fixo, pronto e acabado, ou interpretada de forma binária, negro/branco, pobre/rico,

homem/mulher, regional/nacional, mas sim de forma híbrida e plural. Hall (2006) e Baumam

(2005) argumentam que as identidades estão em constante processo de construção, em que

marcadores se cruzam, nos mais diversos âmbitos, quer seja de raça, gênero, sexo, idade,

entre tantos outros.

Hall, em “Identidade Cultural e Diáspora”, define as identidade culturais da seguinte

forma:

As identidades culturais são pontos de identificação, os pontos instáveis de identificação ou sutura, feitos no interior dos discursos da cultura e história. Não uma essência, mas um posicionamento. Donde haver sempre uma política da identidade, uma política de posição, que não conta com nenhuma garantia absoluta numa “lei de origem” sem problemas, transcendental (1996, p. 70).

Esta compreensão das identidades culturais como um posicionamento é então um

caminho que não encerra o conceito em uma concepção, não estabelece binarismos, mas

compreende uma relação entre o essencialismo necessário à sobrevivência das comunidades

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imaginadas e o construtivismo que compreende a identidade cultural através da diferença e

em uma relação dialógica e não-definitiva. Temos então duas posições que sempre estão em

jogo na discussão das identidades culturais uma que essencializa as posições identitárias em

um quadro de referência fixo e outra que estabelece uma relação construtivista com o conceito

colocando-o a partir da perspectiva das diferenças.

Outra importante abordagem sobre a discussão do conceito de identidade cultural é a

de Manuel Castells (2002), que traz uma reflexão sobre o caráter múltiplo e fragmentário da

identidade e, empiricamente, identifica que uma identidade, cultural ou individual, pode

sustentar múltiplas identidades. No entanto, este autor faz uma distinção entre identidades e

papéis sociais (trabalhador, mãe, vizinho, militante socialista, sindicalista, jogador de

basquete, freqüentador de uma determinada igreja e fumante, para utilizar os exemplos

citados por ele), no sentido de os últimos estabelecerem uma relação de segunda ordem com

as identidades, já que “a importância relativa desses papéis no ato de influenciar o

comportamento das pessoas depende de negociações e acordos entre indivíduos e essas

instituições e organizações”. Já as identidades “constituem fontes de significados para os

próprios atores” (2002, p. 23).

Partindo dessa premissa, Castells (2002) propõe três categorizações de identidade

construídas a partir de relações de poder: identidade legitimadora, com um caráter

essencialista, instituída pelas instituições dominantes; identidade de resistência, que seriam as

entidades de certa forma essencializadas que representam os grupos contra-hegemônicos e,

identidades de projeto, que é propriamente a perspectiva construtivista das identidades onde

os atores “constroem uma nova identidade, capaz de redefinir sua posição na sociedade.

Vislumbramos que a principal tarefa para a discussão das identidades culturais na

educação será perceber como este conceito pode ser articulado no cotidiano escolar, frente a

um mundo interconectado, onde a perspectiva de uma identidade cultural que seja formada

por diversas outras representações e experiências se torna cada vez mais necessária.

� Quilombola - é o próprio sujeito que se auto-define como tal e adota estratégias

político-organizativas na luta por seus direitos étnicos (ALMEIDA, 2002). A identidade

quilombola se define pela experiência vivida e as versões compartilhadas de sua trajetória

comum e da continuidade enquanto grupo. Trata-se, portanto, de uma referência histórica

comum, construída a partir das vivências e valores partilhados (Programa Brasil Quilombola,

2009).

O processo de auto-identificação dos remanescentes de quilombo toma força na luta

pela posse da terra, para que esses sujeitos continuem livres e assegurem o direito à cidadania;

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é marcado pela resistência e pela constituição de um espaço social alternativo para que esses

sujeitos possam reescrever, como partícipes, a sua história. Portanto, os quilombolas, agregam

e fortalecem as lembranças que rememoram a ancestralidade do grupo, o sentido de pertença e

espaço coletivo. O território torna-se um ente que nutre, une e dinamiza as inter-relações.

Esta memória que surge pela lembrança, garante uma unidade histórica e espacial ao

grupo. Mesmo diante das adversidades que venham a enfrentar, seus componentes saberão

conduzir as mudanças causadoras de rupturas, de regras e normas do grupo. Mesmo frente ao

novo, conserva-se o cerne da memória coletiva como principio da identidade, associada à

posse do território. Vale destacar que o território, mais que base física para as relações entre

indivíduos, encontra-se imbricado de um tecido social, uma organização complexa, feita por

laços que ultrapassam os meros atributos naturais.

Para Costa (2004, p. 01), o que define o território: “em qualquer acepção, tem a ver

com poder, mas apenas ao tradicional “poder público”. Dizendo respeito tanto ao poder no

sentido mais concreto, de dominação, quanto ao poder no sentido mais simbólico, de

apropriação”. O poder simbólico se materializa pela apropriação cotidiana, pelo uso, pelo

vivido.

Em outro sentido, usualmente presente neste texto e com igual vigor ao de território,

partilhamos o conceito de territorialidade. Não é visto aqui sob uma perspectiva instintiva,

mas sim como derivada de uma racionalidade de apropriação, de uma lógica fundamentada na

conquista, no domínio. Sob esta base de interpretação, Sack (1986) concebe territorialidade

como sendo uma estratégia de um individuo ou de um grupo, para atingir, influenciar ou

controlar recursos e pessoas através da delimitação e do controle de lugares específicos: os

territórios.

Sack (1986) coloca como gérmen da conquista as “motivações humanas”, engendradas

pela necessidade frente a uma singular realidade. Não deixando, no entanto, que se perca sua

base de poder. Portanto, a territorialidade adquire caráter impar em cada lugar. Nesse sentido,

quando os quilombolas revelam como se deu a ocupação do território e o processo de

titulação, somada a outras conquistas, o cultivo da mandioca e fabricação de farinha,

demonstram a fundamentação a um sentimento de pertença pautado na posse definitiva do

território, pelos sujeitos do passado, os quais foram repassados aos mais jovens.

Como parte integrante do território e elemento da territorialidade de Abacatal, a escola

tem particularidades pouco comuns a escolas em áreas remanescentes de quilombos: a história

de sua criação e manutenção no interior da comunidade; o tempo de sua existência naquela

localidade – cerca de 40 anos -; seu quadro de professores e funcionários ser composto por

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moradores do lugar. As particularidades da escola somadas ao referencial teórico, às

narrativas dos/as interlocutores/as e às nossas observações do cotidiano escolar e da

comunidade, nos subsidiaram teoricamente para desenvolver a análise da educação escolar e a

construção identitária nessa comunidade. Desse modo, colocamos como problema para este

estudo:

� A educação escolar, na comunidade remanescente de quilombo do Abacatal,

possibilita a construção da identidade quilombola?

Diante desta, emergiram outras questões:

� Como é a relação escola, família e comunidade? Essa relação contribui na

construção da identidade quilombola?

� A escola se apropria dos saberes culturais da comunidade para afirmar a

identidade do grupo?

Essas questões nos permitiram delimitar como objetivo da pesquisa: analisar a

educação escolar na comunidade de Abacatal buscando compreender se e como a escola

possibilita a construção identitária do grupo, bem como as expectativas dos moradores em

relação à educação escolar e as estratégias de mobilização dos quilombolas em relação à

preservação de sua cultura.

A pesquisa compreende o período entre os anos de 1999, ano em que a comunidade

recebeu o titulo de propriedade da terra e 2010, quando o novo prédio da escola foi

inaugurado e esta recebeu um nome em homenagem a um dos antigos moradores: Manoel

Gregório Rosa Filho. Ressaltamos que essa delimitação não impediu os recuos no tempo para

explicitar a história do lugar, da luta pela posse da terra e pela permanência da escola na

comunidade. O trabalho com memórias permite as idas e vindas no tempo. Assim, os/as

interlocutores/as reportam-se a um passado distante ou a um passado próximo e situações

atuais, de acordo com acontecimentos que relatam e das lembranças que têm deles.

O lócus da nossa pesquisa é a escola da comunidade de Abacatal. Trata-se de uma

escola municipal de Ensino Fundamental que recebe crianças da Educação Infantil à quarta

série e que foi criada na década de 1970 por insistência dos moradores que, organizados,

reivindicaram junto ao poder público local e estiveram mobilizados para mantê-la, pois houve

ocasiões em que, por falta de professores/as, a mesma deixou de funcionar.

O povoado de Abacatal formou-se no período da colonização da Amazônia, a partir de

um engenho de cana de açúcar de um nobre português – o conde Coma de Mello – o qual,

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segundo a história guardada na memória dos moradores, teria deixado de herança, para as três

filhas que tivera com uma de suas escravas, as terras que correspondiam ao seu engenho

(MARIN e CASTRO, 2004). Após muitos anos de lutas pela permanência na terra e pelo

título de propriedade, a Comunidade foi titulada em 1999, como remanescente de quilombo.

Figura 1: Estrada de acesso à comunidade de Abacatal.

Foto: Madalena Corrêa Pavão (2009) Os sete quilômetros que separam Abacatal da sede do município de Ananindeua

poderiam ser percorridos em aproximadamente vinte minutos de carro, mas devido às

condições da estrada de acesso, esse percurso pode levar quarenta minutos ou mais. No

período das chuvas, entre os meses de dezembro a maio, como vemos na fotografia, a estrada

chega a ficar intransitável, exigindo que os moradores busquem rotas alternativas para o seu

deslocamento para qualquer outro lugar. Os moradores que vivem da agricultura familiar

ficam bastante prejudicados durante o inverno porque o transporte dos produtos agrícolas para

a feira e a entregar das encomendas torna-se praticamente impossível.

As estruturas sociais e econômicas em Abacatal são organizadas por meio do uso

comum de recursos, sendo o território um domínio coletivo, embora cada família possua seu

lote. A agricultura familiar é a principal fonte de renda dos moradores que são conhecidos na

circunvizinhança como bons produtores de farinha. Nas relações sociais, familiares, nas

práticas cotidianas, no trabalho, nas atividades culturais e religiosas percebemos a existência

de um constante movimento de ensino/aprendizagem, há educação presente nos diferentes

espaços, como argumenta Brandão, mas é a educação escolar, ou melhor, o conhecimento

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transmitido na escola que tem maior valor para os moradores, visto que esta representa a

possibilidade de formação que permita adquirir emprego, ter salário fixo, melhorar de vida, A

partir destas evidências, para a produção de dados utilizamos procedimentos metodológicos

da pesquisa qualitativa que perpassam pela história oral, entrevistas, análise de documentos da

comunidade e da escola, registro fotográfico e observação participante.

A observação participante, segundo Flick (2009), ganha significado na pesquisa de

campo, visto que permite descrever e situar os fatos únicos do cotidiano. Contudo, esse

instrumento tem armadilhas que devem ser evitadas. Sendo assim, é pertinente seguir os

cuidados de Geertz (1973), o qual considera que, no campo, não se imita e nem se transforma

em nativo, mas sim se conversa com ele, visando alargar o universo humano.

Conversar foi o que fizemos desde o inicio da pesquisa, quando receávamos que os

comunitários nos vissem como alguém com a intenção de avaliar a organização social da

comunidade ou o trabalho desenvolvido na escola, por isso procuramos dialogar com

franqueza para dissipar as desconfianças. Com paciência, persistência e respeito ao tempo e

ao ponto de vista dos sujeitos, mas com cuidado para não perder de vista o rigor que o

trabalho cientifico exige, conseguimos inspirar confiança nos/as interlocutores/as.

As primeiras conversas com moradores da comunidade de Abacatal, sobre nossa

pesquisa, aconteceram em março de 2009, quando, levamos uma síntese do projeto para a

diretora da escola e explicitamos para as professoras, o propósito do estudo, deixando claro

que não se tratava de avaliar, julgar ou criticar o trabalho docente nem a escola. Freqüentamos

a comunidade alguns dias dos meses de maio, outubro e dezembro de 2009, sendo que

somente neste último mês que as entrevistas começaram. De janeiro a junho de 2010

passamos a ir uma vez por semana pela manhã, sendo que nos meses de maio e junho fomos

duas vezes à tarde, um sábado e, no mês de julho fomos num domingo, para a festa do

produtor rural. Além disso, algumas vezes recebemos e aceitamos convite para tomar açaí na

casa de moradores, o que reforçou nossa aproximação e contribuiu para a criação de laços de

amizade.

Nossas primeiras tentativas de chegar à comunidade foram mal sucedidas porque a

estrada de acesso estava intrafegável devido às chuvas e à falta de manutenção da mesma.

Então, fomos à feira do produtor, em Ananindeua, pois já sabíamos que os agricultores, aos

sábados, comercializam seus produtos naquela feira. Conversamos com algumas pessoas, que

nos ensinaram um caminho alternativo para chegar à escola.

Seguindo as orientações que as pessoas nos deram na feira, fomos à comunidade para

conhecermos a escola e agendarmos as entrevistas com as docentes. Contudo, as professoras

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estavam com as crianças em sala de aula e não podíamos tomar muito o tempo delas.

Explicamos brevemente em que consiste a pesquisa, entregamos duas cópias impressas da

síntese do projeto e agendamos nosso retorno para explicarmos mais detalhadamente nosso

estudo. Ressalte-se que apesar das dificuldades de acesso e dos desencontros, as primeiras

idas à Abacatal foram significativas para o aprimoramento das estratégias de produção de

dados.

No mês de maio voltamos à escola e soubemos que as professoras haviam discutido

nosso projeto e se dispunham a contribuir conosco, mas não poderiam conceder entrevistas

naquela ocasião porque estavam empenhadas na preparação dos/as estudantes para a segunda

avaliação da aprendizagem. Aproveitamos para caminhar pela comunidade, observando a

organização espacial, a distribuição das casas, os tipos de construção, as áreas de plantio, os

caminhos e veredas abertos na mata.

Em nosso projeto havíamos definido como sujeitos da pesquisa as professores/as, pais

e mães, diretora, o coordenador geral da associação de moradores e antigos moradores, os

quais seriam convidados a colaborar concedendo entrevistas. No diálogo com as professoras

elas nos indicaram as pessoas que conhecem as histórias do lugar. Desse modo, os sujeitos

(interlocutores) são sete pessoas, sendo três professoras, a gestora, uma moradora que compõe

a coordenação da associação de moradores e, um casal de antigos moradores. Vale salientar

que os/as interlocutores/as permitiram, através do uso de um termo de cedência, o uso de suas

narrativas e fotografias e, manifestaram o desejo de serem nominados por seus próprios

nomes, sendo que antes dos nomes do casal de idosos usamos os termos, senhor e dona

porque assim são tratados na comunidade.

Várias vezes estivemos na escola conversando informalmente com as educadoras

sobre os problemas de aprendizagem das crianças e chegamos a colaborar com a construção

de planos de atividades visando incentivar a leitura, mas não conseguíamos efetivamente

entrevistá-las porque estavam sempre envolvidas nas atividades com as crianças. Contudo,

nesses momentos de diálogo elas nos forneciam informações importantes sobre a dinâmica da

escola, suas dificuldades e limitações no trabalho docente.

As entrevistas ocorreram entre outubro de 2009 e abril de 2010, pois precisamos nos

adequar aos horários e à dinâmica de trabalho dos/as interlocutores/as. Mesmo depois de

concluídas as entrevistas, continuamos a freqüentar a comunidade e a escola no intuito de

conhecer melhor o modo de vida dos comunitários, suas interações com os diversos ambientes

(igarapé, roça, mata, casa de farinha, associação de moradores). Nos espaços de vivências

tivemos oportunidade de compartilhar de eventos que compõem o universo da comunidade e

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obter informações pertinentes ao processo de escolarização e construção da identidade que

não se expressavam verbalmente durante as entrevistas.

No trabalho de campo utilizamos um diário de campo, no qual registramos, por

escrito, as observações do cotidiano da comunidade e da escola. Descrevemos os espaços

mais significativos para a comunidade como o caminho de pedras, a roça de mandioca, a casa

de farinha, o igarapé Uriboquinha e a escola; as atividades cotidianas; nossas impressões

sobre os comportamentos, os olhares, os silêncios; os constrangimentos dos/as

interlocutores/as diante de alguma pergunta ou situação. Esses registros no diário de campo e

as entrevistas possibilitaram o armazenamento de dados subsidiários para a descrição do

ambiente dos sujeitos em interação.

Utilizamos o método da história oral para (re)construir a história da comunidade e da

escola, a partir das memórias dos /as interlocutores/as que foram conduzidos por entrevistas

espontâneas, as quais na perspectiva de Yin (2002) permitem tanto a indagação (ao) do

respondente como também a emissão de suas opiniões, aproximando-se da função de

informante.

Foram colhidas informações sobre a origem do lugar, a disputa pela terra, os recursos

naturais anteriormente dispostos no território, o uso social da terra, o processo de

alfabetização e de escolarização, a importância da escola, a relação escola, família e

comunidade, a formação inicial e continuada das docentes, o trato com a questão racial no

espaço escolar e outras. As narrativas nos permitiram identificar os momentos de maior

tensão das lutas pela permanência no lugar e pela titulação do território como remanescente

de quilombo, os saberes que circulam na comunidade e na escola e o processo de

identificação enquanto quilombolas.

A História Oral, segundo Thompson (1992, p.26), permite ao historiador fazer um

julgamento mais imparcial da história, pois as testemunhas podem,

Ser convocadas também entre as classes subalternas, os desprestigiados e os derrotados. Isso propicia uma reconstrução mais realista e mais imparcial do passado, uma contestação ao relato tido como verdadeiro. Ao fazê-lo, a história oral tem um compromisso radical em favor da mensagem social da história como um todo.

Nesse sentido, são pertinentes as argumentações de Freitas (2002) ao afirmar que a

historia oral possibilita dar voz aos indivíduos esquecidos ou “vencidos da história”. Além

disso, essa metodologia permite o diálogo entre o passado e o presente, possibilitando

conhecer diferentes versões sobre um mesmo período ou fato. Versões estas marcadas pela

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posição social das pessoas que viveram os fatos, os buscam em suas memórias e os narram.

As narrativas não são apenas para complementar os documentos, são consideradas

documentos (THOMPSON, 1992).

Sob esta perspectiva, acerca da compreensão e representatividade da memória, Le

Goff (2003, p. 419) considera que “a memória como propriedade de conservar certas

informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às

quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas”. Sendo assim, confrontar

os/as interlocutores/as com a realidade vivida implica em estabelecer um dialogo com o

passado, a partir da vivência atual, permitindo, com isso, presenciar as limitações de recursos

naturais locais, na atualidade e suas conseqüências para a reprodução das estratégias de

sobrevivência do grupo, bem como a dificuldades de comunicação, transporte, continuidade

dos estudos e a auto-identificação como quilombola.

Os/as interlocutores/as desta pesquisa possuem um passado comum, materializado na

memória coletiva. Condição essa que permite associar à construção de um elo entre a

identidade e o sentimento de pertença, em um grupo. A memória coletiva, aqui, é entendida

no sentido analisado por Halbwachs (2006), em que todas as lembranças são construídas no

interior de um grupo e que a memória é uma construção social.

A lembrança “é uma imagem engajada em outras imagens” (HALBWACHS, 2006, p.

76). Com essa assertiva o autor revela que as lembranças do passado podem inclusive ser

criadas a partir das lembranças de outras pessoas. A comunhão do “viver em grupo” permite,

então, que as lembranças (do passado) sejam repassadas ao presente, assim como também

permitem ser reconstruídas através da ótica de outras pessoas, do “ouvir dizer”.

Assim, a memória individual coexiste com a memória coletiva. Nesse sentido, os/as

interlocutores/as de Abacatal podem expor uma memória fruto da memória de outros sujeitos,

em interação direta ou indireta com o narrador.

Uma memória coletiva ressignificada nas experiências da contemporaneidade é fruto

das exigências atuais: é o passado vindo à tona em outras roupagens, em um novo contexto,

de acordo com as novas necessidades e exigências. Até porque o ato de lembrar não

pressupõe a presença corporal, e sim um vínculo de identidade com certa ancestralidade que,

conseqüentemente, prenuncia uma presença real ou imaginária.

Seguindo os preceitos de Halbwachs (2006), voltados para a função social da

memória, Bosi (1994) a associa aos sujeitos que lembram, no caso, aos velhos, de acordo com

o papel que exercem no presente, de acordo com a sua “obrigação social de lembrar” (BOSI,

1994, p. 63), a partir de um trabalho de reconstrução do passado. O refazer, o reconstruir e o

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repensar o passado, a partir do presente, revelam uma íntima interação entre o corpo e o

ambiente, entre o corpo e o contexto presente. Considerando ainda que não existe uma

releitura do passado, mas sim uma nova leitura do mesmo, uma leitura remanejada, agora,

pelo presente.

Nesse sentido, a autora supracitada considera que ao velho é associado o papel de

instrumento evocador primordial da memória, por possuir uma história social desenvolvida,

ao contrário do adulto, que ainda se encontra com a história social em andamento. Não

discordamos deste argumento da autora, porém, entendemos que no caso dos interlocutores/as

adultos/as (na faixa de quarenta anos) que entrevistamos, têm uma etapa importante de sua

história social desenvolvida quando vivenciaram as lutas pela permanência na terra e, o os

velhos, embora possuam maior vivência e mais tempo na comunidade, também estão com sua

história em andamento, visto que participam da vida produtiva da comunidade.

Ainda segundo Bosi (1994), a partir das análises de Bergson e Halbwachs, na

memória, fica o que significa, mas não fica do mesmo modo, tal como se deu na primeira

experiência. Portanto, há uma construção social da memória, na qual o passado é conservado

e reelaborado a partir das perspectivas adotadas no presente.

O lembrar, nesse sentido, pode ser observado com uma forma de conservar o passado

(do sujeito, do grupo) na forma que lhe é adequada. O passado, assim, é trabalhado pelo

sujeito que o evoca, de acordo com suas relações e interações.

A memória descrita por algumas interlocutoras é derivada da experiência de terceiros,

contada por seus avós e repassadas aos seus pais. O que Pollak (1989) diferencia entre os

“acontecimentos vividos pessoalmente” e os “acontecimentos vividos por tabela”. Este último

ilustra a condição da memória do narrador, pois foram fatos vividos por outros sujeitos, mas

que, ainda segundo esse autor, são acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à

qual a pessoa se sente pertencer, mesmo que não esteja no local e no tempo cronológico.

Conforme já mencionamos os/as interlocutores/as narraram suas memórias porque

vivenciaram os fatos, mas também porque viveram os acontecimentos “por tabela”, ou seja,

aprenderam e se identificam com a memória do grupo, transmitida oralmente de geração a

geração.

Em nossa pesquisa provocamos a lembrança dos acontecimentos guardados na

memória dos/as moradores/as através de entrevistas semi-estruturadas que permitem o uso de

perguntas abertas feitas verbalmente ordenadas previamente, mas o pesquisador pode

acrescentar outras de esclarecimento se considerar necessário, possibilitando a obtenção de

dados através da linguagem dos próprios sujeitos, deixando-os livres para falar

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espontaneamente sobre o objeto (LUDKE; ANDRÉ, 1986; TRIVIÑOS, 1997). Esta

flexibilidade não significa o abandono da sistematização de perguntas apoiadas na teoria

levantada para a pesquisa.

Freitas (2002) chama atenção para a importância do roteiro para focar as questões

mais importantes para a pesquisa. Mas a aplicação do roteiro não precise ser feita de forma

rígida, pois muitas vezes no decorrer da entrevista surgem naturalmente questões, essas, por

sua vez, podem suscitar outras. Concordamos com as palavras da autora: “Cada entrevista tem

sua própria dinâmica, e cada entrevistado mostra-nos diferentes interesses na abordagem de

determinadas questões” (FREITAS, 2002, p. 60).

Procurando seguir a interação (pesquisadora-pesquisados), sobretudo com os/as

interlocutores/as selecionados/as, mas também com outros sujeitos da escola e da

comunidade, ao longo das entrevistas, das conversas informais e nos deslocamentos pelos

caminhos observávamos os saberes do manuseio da terra e da fabricação de farinha, dos usos

do igarapé e da mata, dos diferentes espaços da comunidade (barracão da associação de

moradores, campo de futebol, escola, postinho de saúde), atentamos para as manifestações

religiosas, os costumes, os valores e as normas de convivência entre os sujeitos. O registro das

observações tornou-se uma significativa fonte de evidências, possibilitando a leitura e o

reconhecimento da história e da identidade, pelos sujeitos sociais.

As atividades cotidianas, a paisagem e os sujeitos sociais tornaram os registros

fotográficos de grande relevância. Entendemos que a fotografia enriquece a pesquisa, pois

amplia o campo de observação, dispondo de uma variedade de dados, compõe o panorama de

uma leitura visual da comunidade e possibilita a identificação dos sujeitos, como membros de

um grupo étnico e como ocupantes de espaço específico, além de tornar possível reconhecer

as particularidades do ambiente natural.

Para Flick (2004, p. 162) “o material visual para a documentação complementar da

cultura e das práticas analisadas é ativado e contrastado com as apresentações e interpretações

na forma textual, a fim de ampliar as perspectivas integradas sobre o sujeito”. Este autor

considera que quando o pesquisador produz dados visuais nos estudos tem um desejo inicial

de ultrapassar os limites da palavra oral e de relato sobre ações a favor da análise das próprias

ações em sua ocorrência natural. Contudo, nesta dissertação, optamos por utilizar as

fotografias mais para ilustrar do que para complementar o texto escrito.

Dados documentais foram obtidos em fontes escritas como as pesquisas sobre

identidade, educação, movimento dos quilombolas pela titulação dos seus territórios. Também

foram analisados relatórios da associação de moradores de Abacatal, plano de curso de uma

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das professoras, Plano Municipal de Educação (Ananindeua), Proposta curricular para o

Ensino Fundamental de nove anos da rede municipal de educação de Ananindeua. Em sites de

instituições como MEC, IBGE, PNAD, INEP, UNICEF, FCP, SEMED, buscamos por dados

históricos e estatísticos das populações remanescentes de quilombos, das escolas em áreas de

remanescentes de quilombos, matrícula das escolas municipais de Ananindeua e outros.

As gravações das entrevistas foram transcritas e separadas segundo a fala de cada

interlocutor/a. Em seguida, de acordo com as questões que levantamos no início da pesquisa,

as narrativas foram comparadas e analisadas, a partir das categorias que emergiram das falas

dos sujeitos e do referencial teórico que adotamos. As informações obtidas com as

observações registradas no diário de campo ajudaram na interpretação das narrativas e na

análise dos documentos. As fontes documentais obtidas na escola foram analisadas a partir

dos conteúdos, competências e habilidades das áreas do conhecimento Linguístico e

Conhecimento Social, para verificarmos como são tratadas a história da comunidade, os

saberes culturais e a questão étnico-racial na escola.

Os dados produzidos em campo foram analisados em separado com a perspectiva de

verificar como os conceitos foram formulados, de que maneira foram propostos, quais as

regularidades, as contradições, as concordâncias ou discordâncias. Depois analisamos o

conjunto do material coletado, relacionando uns com os outros. A partir das ponderações

teóricas que se depreenderam dos textos que estudamos, com as questões que nortearam a

pesquisa e, principalmente com o eco das falas dos sujeitos em nós, fomos estruturando a

escrita deste texto.

Assim, este estudo está dividido em quatro seções. Na primeira seção tratamos sobre

quem são as comunidades quilombolas, os aspectos da disputa em torno delas e qual a razão

de se fazerem presentes na Constituição Federal (1988) gerando impasses que, nos anos que

se seguiram à aprovação do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

(ADCT), alimentaram polêmicas entre militantes do Movimento Negro e representantes dos

universos jurídico e político.

Na segunda seção apresentamos um histórico da formação de grupos quilombolas na

Amazônia paraense, voltando nossa atenção especialmente para a comunidade quilombola de

Abacatal. A terceira seção inicia com um breve histórico da educação dos/as negros/as no

Brasil, demonstrando que a educação escolar, por muito tempo foi usada como instrumento da

ideologia do branqueamento e negou a presença dos/as negros/as. Percorre a história da

educação escolar na comunidade, mostrando que há muito as famílias se preocupam em

garantir o direito dos/as filhos/as ao acesso e permanência na escola. Enfoca os movimentos

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reivindicatórios dos moradores junto ao poder público local, por sua criação e pela

contratação de pessoas da própria localidade para atuarem como professores/as nesta

instituição escolar.

Na seção quatro analisamos os saberes trabalhados na escola de Abacatal e a relação

destes com os saberes culturais que circulam na comunidade, visando entender se e como a

escola dessa comunidade possibilita a construção da identidade quilombola. Na busca deste

objetivo discutimos a relação escola, família e comunidade; a formação inicial e continuada

das educadoras, a orientação curricular da SEMED e, analisamos a dinâmica escolar e práticas

docentes a partir das nossas observações e das conversas informais com as interlocutoras.

Para encerrar, mas sem colocar um fim à discussão, apresentamos as considerações finais.

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1 COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBO: um debate em movimento

O quilombo representa um instrumento vigoroso no processo de reconhecimento da identidade negra brasileira para uma maior auto-afirmação étnica e nacional. O fato de ter existido como brecha no sistema em que negros estavam moralmente submetidos projeta uma esperança de que instituições semelhantes possam atuar no presente ao lado de várias outras manifestações de reforça à identidade cultural.

Nascimento. apud MEC/SECAD (2006)

Ao iniciarmos a trajetória de nossa pesquisa buscamos compreender o que seriam

comunidades remanescentes de quilombo. Para tanto, fizemos um levantamento bibliográfico

e de pesquisas acadêmicas em diferentes campos científicos, como a antropologia (ARRUTI,

2006; ACEVEDO MARIN e CASTRO, 1998, 2004; LEITE, 2000), a História (GOMES,

1995; 1996; FUNES, 1996; REIS, 1996) e o direito (NUNES, 2000), os quais trazem grandes

contribuições para explicitar quem são os remanescentes de quilombo e demonstram os

debates e as polêmicas que o reconhecimento e titulação dos territórios tradicionalmente

ocupados por essas populações têm gerado na contemporaneidade. A contribuição desses

autores foi importante para nossa análise do processo de construção da identidade no grupo

pesquisado.

Desse modo, iniciamos este texto com uma reflexão sobre quem são as comunidades

quilombolas, os aspectos da disputa em torno delas e qual a razão de se fazerem presentes na

Constituição Federal (1988) gerando impasses que, nos anos que se seguiram à aprovação do

artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), alimentaram

polêmicas entre militantes do Movimento Negro e representantes dos universos jurídico e

político.

1.1 REMANESCENTES DE QUILOMBO: processo de ressemantização

As comunidades remanescentes de quilombo são atualmente, grupos organizados

politicamente em torno da defesa de seus territórios, localizados no meio rural e urbano.

Entretanto, a designação “remanescentes de quilombos” advém do direito reconhecido pelo

artigo 68 do ADCT da Constituição Brasileira de 1988, o qual determina: “aos remanescentes

das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a

propriedades definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos” (BRASIL, 1997).

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Este dispositivo constitucional foi incluído na pauta da Assembléia Constituinte,

embora os proponentes do tema, representantes do Movimento Negro que faziam parte de

Comissão de Índios, Negros e Minorias, na ocasião soubessem dos conflitos fundiários

envolvendo grupos chamados de comunidades negras rurais, porém ainda estavam se

informando sobre as especificidades desses territórios em termos de história, cultura,

ocupação territorial e interações sociais. Apesar disso, como ressalta Arruti (2006, p. 68): “A

decisão teria passado, principalmente, pela avaliação de que seria necessário lançar mão do

‘momento propício’, mesmo que não se soubesse ao certo o que se estava fazendo aprovar”.

O momento propício compreendia uma relativa abertura política para a inclusão de

direitos sociais na Constituição Federal e, para a população negra, o reconhecimento de uma

dívida do Brasil para com os afro-brasileiros pelo regime de escravidão a que foram

submetidos, e que através do artigo 68 seria sanada, de alguma forma. Vale lembrar que, no

período dos debates e inclusão do texto do referido artigo na Constituição, aconteciam as

comemorações do centenário da Abolição da escravidão, de maneira que a reivindicação

expressa no dispositivo constitucional se tornava também uma forma de reparar os danos

decorrentes da escravidão e de uma Abolição que não apresentou qualquer política de

compensação para a população negra (ARRUTI, 2006).

Conhecia-se pouco sobre os grupos a terem o direito expresso no artigo 68, pois por

um lado havia o entendimento de que as comunidades remanescentes de quilombo seriam

“sobras” de antigos quilombos históricos, resultantes da fuga do trabalho escravo, e idealizado

como territórios isolados. Por outro lado existiam realidades sociais explicitadas por pesquisas

acadêmicas que evidenciavam a existência de grupos, denominados de diferentes formas,

vivenciando conflitos em torno da permanência em territórios conquistados durante a

escravidão e fora dela.

A relação dos antigos quilombos com os grupos sociais a serem designados pela

legislação como comunidades remanescentes de quilombo esteve presente no âmbito jurídico

e em setores do Movimento Negro, que procuravam encontrar naqueles grupos sociais

identificados como remanescentes de quilombo, reminiscências de agrupamentos quilombolas

caracterizados pela legislação colonial como territórios de fuga e resistência ao sistema

escravocrata.

De acordo com essa concepção, as comunidades remanescentes de quilombos seriam

“reminiscências” de territórios isolados geográfica e socialmente, esconderijos de negros que

fugiam do trabalho escravo, marcados por uma organização própria que se diferenciaria da

sociedade envolvente, imutáveis no tempo e no espaço. Nas primeiras tentativas de executar o

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artigo 68, juristas e técnicos de órgãos públicos responsáveis pelo processo de titulação dos

territórios quilombolas defendiam que para a condição de remanescentes de quilombo, os

grupos assim identificados deveriam compor uma origem ligada à fuga do trabalho escravo e

à descendência africana passível de comprovação pela identificação de resquícios

arqueológicos e/ou biológicos (GUSMAO, 1996b).

Contudo, Leite (2000) observa que após a implantação da Constituição/88, foi criada

uma nova pauta na política nacional. Houve uma “abertura” para participação de

afrodescendentes, partidos políticos, cientistas e militantes do Movimento Negro nas

discussões sobe o que vem a ser o quilombo e quem são os quilombolas. A Associação

Brasileira de Antropologia (ABA) foi convocada pelo Ministério Público para contribuir com

a elaboração de um novo conceito de remanescente de quilombo. O documento elaborado

pela ABA:

[...] posiciona-se criticamente em relação a uma visão estética do quilombo, evidenciando seu aspecto contemporâneo, organizacional, relacional e dinâmico, bem como a viabilidade das experiências capazes de serem amplamente abarcadas pela ressemantização do quilombo na atualidade. Ou seja, mais do que uma realidade inequívoca, o quilombo deveria ser pensado como um conceito que abarca uma experiência historicamente situada na formação social brasileira (LEITE, 2000, p. 341).

Nesse sentido, os remanescentes de quilombo não são apenas reminiscências dos

antigos quilombos e sua identificação não depende de resquícios arqueológicos ou biológicos,

pois a aquisição e usufruto da terra na escravidão e após a abolição e as relações sociais entre

escravos e homens livres devem ser levadas em consideração. Segundo Gusmão (1995, p. 5-

6), as terras que se enquadrariam no direito estabelecido pelo Artigo 68 remontam:

[...] às doações de terras feitas por antigos senhores a escravos fiéis; resulta da ocupação de terras doadas a santos (“Terras de Santo”) e, em muitas das quais, negros libertos se estabeleceram. Outros núcleos, agrupamentos, comunidades, vilas, bairros [...] resultam da ocupação de áreas devolutas logo após a abolição ou foram terras compradas por antigos escravos, que aí construíam família e organizaram um modo de vida camponês. O mesmo ocorreu com redutos, frutos das conquistas quilombolas – “Terras de Quilombo” – e com terras dadas em pagamento por serviços prestados ao estado, por parte de ex-escravos.

O’Dwyer (1995) também comenta os debates acerca da aplicabilidade do referido

artigo constitucional e as contribuições da ABA, através do Grupo de Trabalho (GT) “Terras

de Quilombo”, nas discussões e na elaboração do documento que abordava a abrangência do

significado do termo quilombo. A autora relata que o documento foi encaminhado para o

Seminário das Comunidades Remanescentes de Quilombo, organizado pela Fundação

Cultural Palmares (FCP) - Ministério da Cultura - onde foi amplamente discutido pelas

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Associações e Comunidades Negras Rurais que estiveram presentes. Segundo esta autora, de

acordo com o documento da ABA:

[...] o termo quilombo tem assumido novos significados na literatura especializada e também para os grupos, indivíduos e organizações. Ainda que tenha um conteúdo histórico, o mesmo vem sendo “ressemantizado” para designar a situação dos segmentos negros em diferentes em diferentes regiões e contextos do Brasil [...] Contemporaneamente, portanto, o termo Quilombo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma, nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram praticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio. A identidade desses grupos também não se define pelo tamanho e numero de seus membros, mas pela experiência vivida e as versões compartilhadas de sua trajetória comum e da continuidade enquanto grupo. Nesse sentido, constituem grupos étnicos conceitualmente definidos pela antropologia como um tipo organizacional que confere pertencimento através de normas e meios empregados para indicar afiliação ou exclusão [...] No que diz respeito à territorialidade desses grupos, a ocupação da terra não é feita em termos de lotes individuais, predominando seu uso comum. A utilização dessas áreas obedece a sazonização das atividades, sejam agrícolas, extrativistas ou outras, caracterizando diferentes formas de uso e ocupação dos elementos essenciais ao ecossistema, que tomam por base laços de parentesco e vizinhança, assentados em relações de solidariedade e reciprocidade (O’DWYER, 1995, p.2).

Assim, a procura de resquícios de um quilombo resultante da fuga, concebido como

território isolado e reprodutor de uma cultura africana, desconsidera que a própria cultura é

um processo dinâmico e em constante (re)construção e, que as comunidades não estão e nunca

estiveram isoladas da sociedade envolvente. Mas a ressemantização do quilombo também foi

acompanhada de um debate sobre o conteúdo do termo “remanescente”. Arruti (2006, p.76)

destaca que durante a apresentação do texto do Artigo 68:

O uso do qualitativo remanescentes está[va] menos relacionado a uma estratégia argumentativa do que a um habitus semântico que emerge da própria linguagem e prática dos aparelhos de Estado e que introduz o tema quilombos contemporâneos em um certo senso prático.

O autor chama a atenção para o fato do termo escolhido pelos legisladores para

compor o artigo 68 ter sido o mesmo utilizado para tratar da situação das comunidades

indígenas do Nordeste, pois no processo de emergência dos índios dessa região empregou-se

o termo “remanescente”, para aquelas populações que reivindicavam a identidade indígena ou

o “status jurídico de índio” e os direitos dele decorrentes, mas que não possuíam mais os

sinais externos comprobatórios dessa auto-atribuição. Por meio do uso do termo

“remanescente” se reconhecia a continuidade do “estado de índio” das populações em questão

a partir de uma narrativa:

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[...] que fala do destino daqueles grupos em um processo evolutivo: do estado de ‘bom selvagem’, puro, natural, até o de civilizado ou, caso não fossem submetidos à tutela que devia orientar e regular essa transição, ao estatuto de degradado, que perde sua cultura e não consegue ser inteiramente absorvido pela civilização, passando a ocupar um espaço dedicado aos excluídos e desajustados (ARRUTI, 2006, p. 81).

Desse modo, o termo “remanescente” representou uma solução para o problema da

continuidade e descontinuidade com o passado histórico desses grupos, ao incluí-los no

mesmo destino de todos os grupos indígenas já identificados e reconhecido pelo Estado. Esse

termo, no caso indígena, serviu para “relativizar o exótico, o isolamento e a continuidade de

uma carga cultural homogênea e autônoma” (ARRUTI, 2006, p. 81).

No que diz respeito às comunidades remanescentes de quilombo, para o referido autor,

embora inicialmente o texto da Carta Magna trouxesse a idéia de que estes grupos seriam

restos ou “sobras” de antigos quilombos, o termo “remanescente” não representa grupos

atrelados às relações arcaicas de produção ou incapazes de militarem em causa própria. Pelo

contrário: “passam a ser reconhecidos como símbolo de uma identidade, de uma cultura e,

sobretudo, de uma modelo de luta e militância negra, dando ao termo uma positividade, que

no caso indígena é apenas concedida” (ARRUTI, 2006, p. 82).

A ressemantização dos termos “remanescente” e “quilombo”, empreendida pela ABA,

possibilitou uma interpretação mais atualizada das realidades que teriam o direito estabelecido

no artigo 68. Assim, os “remanescentes de quilombo” passaram a ser entendidos, a partir de

1995, como organizações sociais mobilizadas politicamente em torno da defesa de suas terras

e da garantia de seus direitos. São grupos políticos que, segundo o texto da ABA, constituem

grupos étnicos, isto é, “[...] um tipo organizacional que confere pertencimento através de

normas e meios empregados para indicar afiliação ou exclusão [...]” (O’DWYER, 1995, p. 1).

A definição das comunidades remanescentes de quilombo como grupos étnicos

representou um novo direcionamento aos trabalhos de identificação dessas comunidades. Seus

pressupostos, fundados nos estudos de Fredrik Barth (1998), propiciaram interpretá-las a

partir de suas realidades, envolvendo a diversidade, complexidade e contemporaneidade

apresentadas até então. Isso foi possível porque a teoria dos grupos étnicos parte de uma

noção de cultura enquanto processo e construção, enquanto trabalho de homens em interação

no tempo e no espaço.

Segundo Barth (1998), ao analisar grupos étnicos é necessário desconstruir a noção de

diversidade cultural como o resultado de um isolamento geográfico e social. Para o autor a

atenção deve estar mais voltada para as fronteiras entre os grupos do que para as

características culturais neles existentes, pois apesar da interação entre grupos diversos

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existem diferenças culturais que se mantêm, permitindo identificar quem pertence a um

determinado grupo. No entanto, as diferenças culturais também não são fixas, suas formas

sofrem os efeitos dos contextos sociais, políticos e econômicos em que são produzidas,

mediante a situação territorial de seus grupos portadores e das interações sociais estabelecidas

entre os outros grupos existentes e a sociedade mais ampla de que participam.

A categoria grupos étnicos também se tornou relevante para a análise das comunidades

remanescentes de quilombo porque afirma que um traço fundamental de tais organizações

sociais é “[...] a característica da auto-atribuição ou a da atribuição por outros a uma categoria

étnica” (BARTH, 1998, p. 193). Este traço fundamental está relacionado à abordagem dos

grupos étnicos como organizações sociais, que assim se constituem a partir de interações

sociais, de modo a se identificarem e serem identificados de acordo com as relações

estabelecidas e os sujeitos participantes.

No que tange às comunidades remanescentes de quilombo, a perspectiva teórica dos

grupos adotada pela ABA para a ressemantização de “remanescentes” e “quilombo” define

que a identificação não seja dada a priori por um conjunto de características baseadas em pré-

noções sobre suas características de organização social, relação com a terra ou manifestações

culturais. Enquanto grupos étnicos, as comunidades devem ser identificadas a partir da auto-

atribuição.

No entanto, conforme afirma Arruti (2006), a abordagem conceitual dada nesses

trabalhos também é influenciada pela transformação da categoria e do seu instrumental

analítico numa norma aplicável no campo jurídico e administrativo visando à consolidação

dos direitos previstos no artigo 68. Como isso, de acordo com este autor, a ressemantização

do quilombo levou à transformação de uma teoria construída durante o trabalho antropológico

numa “definição operacional”, o que pode, caso não sejam tomados os cuidados necessários,

fazer dos critérios construídos num determinado momento da produção cientifica, uma camisa

de força para a realização dos trabalhos de identificação de comunidades remanescentes de

quilombo. Alerta o autor que a teoria dos grupos étnicos, aplicada sem considerações e de

acordo com as realidades analisadas, pode reduzir o trabalho antropológico a um empirismo

ingênuo e espontâneo com a intenção de garantir direitos territoriais às comunidades

quilombolas. A redução pode ocorrer visto que a aplicação estrita do conceito de grupos

étnicos inviabiliza conexões diretas entre o grupo descrito e a categoria jurídico-

administrativa de “remanescente de quilombo”. Pois:

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[...] A categoria de auto-atribuição só pode preencher esse espaço analítico nas situações em que o próprio grupo descrito aderiu politicamente, de forma plenamente assentada pela didática militante – ao menos em seu discurso político – ao rótulo jurídico (ARRUTI, 2006, p. 94).

Para os casos em que não exista a auto-atribuição como remanescente de quilombo, o

autor aponta a “evidencias de alteridade social e cultural” (ARRUTI, 2006, p. 94), como por

exemplo, as que mostram que o grupo foi um quilombo de fuga, poderiam ser consideradas

para a obtenção do direito a terra. Essas evidências seriam constituintes de “listas de

características substantivas” formadas por aspectos como: a relação com a terra, o parentesco,

o apossamento secular e a presença de conflitos.

Mas o recurso às características substantivas, na análise de grupos que não se auto-

atribuem remanescentes de quilombo, segundo Arruti (2006), demanda do pesquisador um

trabalho de ressemantização das auto-atribuições nativas dos grupos, ou seja, as formas

existentes de identificação não diretamente relacionadas ao quilombo. Essa ressemantização

deve ser feita de tal forma que “[...] tanto a simbologia do artigo 68 quanto a simbologia

nativa devam ter seus percursos corrigidos para encontrarem um ponto de convergência”

(ARRUTI, 2006, p. 95).

Há, na verdade uma problemática colocada pela normatização de procedimentos de

identificação. A necessidade de normatizar a identificação pode acarretar às comunidades a

imposição de modelos: modelos de olhar investigativo e modelo de quilombo. Se o trabalho

de identificação de comunidades como remanescentes de quilombo for pautado em critérios

pré-estabelecidos no campo administrativo e jurídico, pode incorrer na imposição da categoria

de grupos étnicos sem refletir sobre seus fundamentos e a relação com a comunidade em

questão. Isso pode negar aos grupos que não se auto-identificam quilombolas um direito

legitimo, ou conceber todo grupo que adere ao rótulo de remanescentes de quilombo como

“sujeito de direito”, enfraquecendo o sentido da aplicação da lei.

Não podemos deixar de enfatizar que no âmbito do Estado, desde a criação do artigo

68 estabeleceu-se um campo de disputas que explicita demandas e impasses em torno da

identificação, do reconhecimento e da titulação das terras das comunidades remanescentes de

quilombo. Um campo que expõe posicionamentos de representantes de setores agrários, do

Movimento Negro e de grupos político-partidários, além de interesses econômicos e políticos

em torno dos direitos territoriais das comunidades remanescentes de quilombo. Reflexões de

Arruti (2006) e Leite (2000) demonstram as tensões e divergências entre os órgãos

responsáveis pela efetivação do direito estabelecido no artigo 68.

Apresentamos em seguida alguns dos impasses que foram criados para a aplicação do

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referido dispositivo legal, visto que é grande o número de comunidades quilombolas a serem

tituladas no Brasil e a titulação dos territórios quilombolas incomoda grupos econômicos e

políticos que entendem o direito dos quilombolas aos seus territórios tradicionais, fere o

direito de propriedade estabelecido na Constituição Brasileira.

1.2 IMPASSES NA REGULAMENTAÇÃO DO DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL

Os desentendimentos entre as instituições públicas responsáveis pelos processos de

titulação das comunidades quilombolas se apresentaram, em 1995, quando a Fundação

Cultural Palmares (FCP) encaminhou uma minuta do decreto presidencial normatizando

administrativamente a execução do Artigo 68. Essa ação da FCP demonstrou a

desconsideração dos debates que vinham se estabelecendo entre representantes de

comunidades remanescentes de quilombo e diferentes órgãos públicos federais e estaduais

(FCP, Institutos de Terras e Instituto de Colonização e Reforma Agrária - INCRA) (ARRUTI,

2006).

O texto do decreto, publicado em 22/08/1995, na Portaria Ministerial de n°. 25,

estabelecia as normas para que a Fundação Cultural Palmares procedesse aos trabalhos

relativos à aplicação do Artigo 68 (identificação, delimitação, titulação e demarcação das

terras), o que ameaçava a continuidade no andamento dos processos que tinham se iniciado

por meio do INCRA.

Na leitura de Arruti (2006), ao normatizar os trabalhos, a FCP deixava uma lacuna no

que se referia às formas de indenização daquelas terras requeridas pelas comunidades que

estivessem em comprovados domínios particulares, o que inviabilizava a plena execução do

Artigo 68, que prevê a titulação das terras das comunidades quilombolas.

Ainda em 1995, o INCRA publicou a Portaria 307 (22/11/1995) normatizando os

procedimentos para a aplicação do Artigo 68 no caso de áreas públicas federais, arrecadadas

ou obtidas por processos de desapropriação que estivessem sob responsabilidade do órgão.

Essas normatizações explicitam a forma como o tema se tornou objeto de disputa entre os

órgãos do Governo Federal, pois o INCRA era um órgão que já vinha atuando em

comunidades tradicionais e no conflito fundiário e detentor de uma ampla estrutura voltada

para a regularização fundiária, o que viabilizaria a execução do Artigo 68. Todavia, a FCP

defendia a criação de condições técnicas para que se procedesse à titulação das terras das

comunidades remanescentes de quilombo.

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Em 2000 a FCP publicou a Portaria no 40 (13/07/2000), estabelecendo normas para os

trabalhos de identificação, reconhecimento, delimitação e demarcação, levantamento cartorial

e titulação das terras ocupadas por remanescentes de quilombos.

Mas foi com o Decreto Presidencial n°. 3.912/2001 (10/09/2001) que ficou clara a

centralização dos trabalhos em torno da execução do Artigo 68 pela Fundação Cultural

Palmares. Essa centralização foi marcada por concepções que viam as comunidades

quilombolas, circunscritas num tempo e espaço que desconsidera a dinamicidade de suas

histórias, as diferentes formas de conquista e ocupação da terra e, as relações historicamente

estabelecidas com a sociedade envolvente durante a escravidão e após ela. De acordo com o

artigo 1° do decreto: “[...] somente pode ser reconhecida a propriedade sobre terras que: I –

eram ocupadas por quilombos em 1888; II – estavam ocupadas por remanescentes das

comunidades dos quilombos em 5 de outubro de 1988” (BRASIL, 2001).

Sabemos que as comunidades que solicitam o reconhecimento possuem diferentes

histórias que muitas vezes não estão necessariamente circunscritas ao sistema escravocrata.

Quando se impõe datar as ocupações até 1888 e, as terras de uso comum possuem

designações que são conseqüência direta do processo escravista, fazem referência aos

quilombos pensados como redutos de fuga (GOMES, 1996; LEITE, 2000; REIS, 1996).

Portanto, restringir a ocupação das terras à data da Abolição (oficial) e pressupor também a

permanência nelas até 1988 demonstram o desconhecimento dos caminhos e das relações

trilhadas pelas comunidades negras rurais no território brasileiro.

Essas prescrições do decreto refletiram no próprio andamento dos processos de

reconhecimento encaminhados e que passaram a ser exclusivamente da competência da

Fundação Cultural Palmares. Como resultado disso os processos em curso, sob a

responsabilidade do INCRA e dos institutos de terras estaduais, ficaram paralisados. Por três

anos (2000 – 2003), os processos de reconhecimento ou regularização fundiárias das áreas

quilombolas não se desenvolveram (ARRUTI, 2009).

O Decreto 3.912/01 gerou debates que apontavam a sua inconstitucionalidade e, em 13

de maio de 2003 foi publicado outro decreto presidencial que institui o Grupo de Trabalho

Interministerial, cuja competência era rever as disposições do decreto anterior e propor uma

nova regulamentação para os trabalhos de execução do Artigo 68. O Grupo propunha: “(...)

ações estratégicas que assegurem [aos remanescentes de quilombo] a sua identidade cultural

de remanescente de quilombos e a sustentabilidade e integração das comunidades quilombolas

no processo de desenvolvimento nacional” (BRASIL, 2003).

Essas ações deveriam atuar enquanto:

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I - os programas e projetos sanitários; II - os programas educacionais; III - os programas culturais da história da população negra que valorizem suas tradições étnicas; IV - os programas de saneamento básico e infra-estrutura das áreas tituladas; - os programas de geração de empregos, renda e incentivo à autogestão; VI - os programas de promoção e igualdade racial; VII - os programas de combate à fome; e VIII - os programas de promoção social e defesa dos direitos humanos (BRASIL, 2003).

Os trabalhos desse Grupo de Trabalho Interministerial resultaram na publicação do

Decreto n°. 4.887/2003 (20/11/2003), o que determinou, na prática, novos caminhos para o

tratamento da temática das comunidades remanescentes de quilombo, voltados para a

identificação e o reconhecimento da condição quilombola das terras e para propostas de

implementação de políticas públicas para estes grupos, em detrimento da regularização

territorial pela titulação.

Esse novo decreto explicita várias discussões feitas em termos conceituais sobre quem

são as comunidades remanescentes de quilombo, revelando a união das abordagens de

reconhecimento desses grupos como representativos de uma luta negra e da luta por direitos

territoriais. Nele as comunidades remanescentes de quilombo são concebidas como grupos

étnicos, os quais formam organizações políticas que lutam pela propriedade de suas terras, e

que se identificam como quilombolas em decorrência das relações estabelecidas com a

sociedade envolvente em diferentes contextos sociais e políticos. O texto do decreto se baseia

na contemporaneidade dos grupos, pois considera que os mesmos não obedecem a modelos de

territorialização, já que suas territorialidades se constituem a partir de dinâmicas contextuais

(ARRUTI, 2006).

Segundo Decreto 4887/03:

Art. 2o consideram-se remanescentes de quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-tribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. § 1º Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades os quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade. § 2º São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural (BRASIL, 2003).

Ao contrário do Decreto anterior (3.912/01), pelo novo Decreto cabe à FCP incluir no

cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades de Quilombos do órgão aquelas

comunidades que, por meio da auto-atribuição, designam-se remanescentes de quilombo, e

emitir os certificados de inclusão nesse Cadastro. Com a emissão dessa Certidão pode a

comunidade requerer o seu reconhecimento junto ao INCRA, órgão que, pelo Decreto de

2003, passa a concentrar os procedimentos de identificação, reconhecimento, delimitação,

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demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos

quilombos.

As mudanças ocorridas até então em torno dos órgãos competentes para tratar das

exigências para a execução da titulação das terras quilombolas demonstram não apenas as

disputas em torno da representação política das comunidades remanescentes de quilombo,

mas também as abordagens que o próprio governo federal se comprometia a dar à questão

(BRASIL, 2003). O conteúdo desse novo decreto, ao deixar algumas lacunas em relação aos

procedimentos a serem adotados para a identificação e reconhecimento dos remanescentes de

quilombo, e dentre elas a relativa à necessidade de realização de laudos antropológicos no

processo, conforme nos relata Arruti (2006, p. 113), aponta para uma “(...) recusa de aferir

importância ao reconhecimento de particularidades culturais no trato de questões estruturais

como a posse da terra (...)”. Segundo o autor, a retirada do monopólio da questão de um órgão

do Ministério da Cultura para o Ministério do Desenvolvimento Agrário:

[...] não significou [...] uma mudança nos termos do problema, mas apenas uma revanche de uma perspectiva sobre outra, fazendo com que o tema deixasse de estar integrado à política cultural do governo [...] para ser lido, ao menos tendencialmente, como aspecto exclusivo da sua política agrária e fundiária [...] (ARRUTI, p. 2006, p. 113).

Os laudos antropológicos por sua rigorosidade fundada na etnografia, viabiliza a

compreensão da multiplicidade e da complexidade dos territórios quilombolas, pois se tornam

instrumentos de garantia, para o discurso jurídico e administrativo, da legitimidade da

reivindicação pleiteada, por grupos étnico-culturais, com fins de garantia da propriedade das

terras. A não explicitação, no texto do decreto, da necessidade desses laudos indica, ainda que

sem a devida clareza, uma falta de compromisso com os processos de reconhecimento, que se

tornam alvos fáceis de contestação e deslegitimação das reivindicações das comunidades. O

próprio critério da auto-atribuição precisa ser considerado sob o respaldo da realização de

estudos técnicos especializados, sob o risco de enfraquecer as lutas das comunidades

quilombolas.

Vale frisar que em 2005, com a Instrução Normativa do INCRA n°. 20 volta a

determinação da necessidade de laudos antropológicos para fundamentar os processos de

reconhecimento das terras das comunidades remanescentes de quilombo.

Mesmo assim as conseqüências da divulgação e das ações do decreto de 2003 fizeram

com que representantes de diversos setores latifundiários, os quais vêem seu monopólio sobre

a terra “ameaçado”, reaparecessem no plano político-legislativo e nos meios de comunicação,

tais como: internet, mídia impressa e televisiva. Também há outras ações que visam,

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inclusive, anular sua aplicação, como a Ação Direta de Inconstitucionalidade n°. 3239, de

autoria do Partido da Frente Liberal, que tramita no Supremo Tribunal Federal.

Através dos veículos de comunicação têm sido disseminados posicionamentos

contrários às conquistas das comunidades quilombolas, distorcendo as realidades a fim de

fundamentarem argumentações em prol de interesses econômicos. As comunidades são

acusadas de ameaçarem o direito de propriedade e são vistas como grupos oportunistas

respaldados pelo INCRA e a Fundação Cultural Palmares. Desse modo, os trabalhos destes

órgãos são deslegitimados e os resultados das discussões em prol da regulamentação do

Artigo 68 são desconsiderados.

Como exemplo podemos citar, o texto do professor Rosenfield, intitulado A criação

dos quilombos publicado no jornal Estadão (2010), o artigo no qual critica o processo de

ressemantização do conceito de quilombo e acusa antropólogos, o Instituto Nacional de

Reforma agrária (INCRA), a Fundação Cultural Palmares (FCP) e a 6a Câmara de

Coordenação e Revisão do Ministério Publico Federal (MPF), de tentarem produzir novas

realidades e sujeitos políticos partindo da legitimação de identidades simbólicas construídas

com base na “comunidade de raça, religião e sentimentos”. O autor considera como único e

verdadeiro conceito aquele expresso no dicionário, segundo o qual o quilombo histórico

corresponderia a uma realidade inquestionável por ter sido testado e aceito pela sociedade

brasileira através das instituições administrativas, portanto seria esta formação social que o

artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias Constitucionais (ADTC) abrangeria.

Escreve o professor:

Foi introduzida, graças a um grupo de antropólogos, uma distinção de cunho ideológico e político entre o quilombo propriamente dito, renomeado “quilombo histórico”, e o quilombo então dito “conceitual”, que seria o “verdadeiro” quilombo. Trata-se de uma oposição entre o que seria o “reconhecimento” de um quilombo pelo estado, num ato oficial, administrativo, político e jurídico de consagração de uma realidade, e o que seria um ato próprio de criação, produto de uma ressemantização, uma nova atribuição de significado à palavra quilombo, um quilombo imaginário (ROSENFIEL, 2010, p.2).

E, mais adiante, na mesma página, reforça seus argumentos criticando severamente os

antropólogos:

[...] são os próprios antropólogos que conferem a símbolos culturais e religiosos uma realidade medida em acres e hectares. Para que a sua finalidade política seja preenchida, uma operação preliminar é condição imprescindível, a da “conversão simbólica”, que deixa para trás, precisamente, o significado da palavra quilombo e, com ela, a própria Constituição.

O autor alega inversão produzida conscientemente por antropólogos com o único

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intuito de conferir a símbolos culturais e religiosos medidas em hectares para forçar o

reconhecimento do Estado e a implantação da nova reforma agrária baseada na raça. Não

considera que o significado das palavras e das próprias instituições pode se alterar com o

tempo. O termo quilombo usado pelas autoridades coloniais não dá conta de descrever um

conjunto de relações travadas no interior do próprio sistema escravista brasileiro.

Estudos de historiadores como Gomes (1995; 1996), Reis (1996) e Funes (1996);

demonstram que os grupos não eram formados exclusivamente por negros escravizados, pois

havia outros sujeitos como negros libertos e índios. Esses grupos se organizavam dentro ou ao

lado de grandes propriedades, em núcleos estáveis onde havia intensa vida social, econômica

e religiosa, com manutenção de relações e laços com a sociedade escravista em vários

aspectos.

Alguns desses núcleos, que congregavam negros fugidos ou não, mantiveram-se

colados a determinados espaços de referência chamados de territórios, uma vez que nesses

espaços puderam se reproduzir em torno de algumas gerações, mas também conseguiram

preencher de sentido sua própria existência, considerando-se e sendo considerados como

integrantes de grupos sociais diferenciados, portadores de identidades peculiares constituídas

em base a uma origem comum. Portanto, trata-se de reconhecer tanto a reprodução material e

física, quanto cultural, simbólica e religiosa de certos grupos com existência contemporânea

inegável, o que o texto do professor não faz.

O trabalho dos antropólogos é fundamental para descrever e revelar os mecanismos

postos em ação pelo conjunto social concreto representado pelas comunidades negras, com

suas práticas, símbolos e representações, tomando por base a auto-atribuição e a

autodefinição, porque são as pessoas que se identificam ou não, pois a assunção de qualquer

identidade não deve ser imposta. Mas o professor critica severamente os antropólogos como

se estes estudiosos impusessem uma identidade aos remanescentes de quilombo e com isso

lhes assegurasse o território.

Ao colocar como único e verdadeiro o quilombo histórico, expresso no dicionário,

Rosenfield (2010) não aceita que o termo quilombo corresponde a uma categoria jurídica cujo

alcance remete a situações sociais concretas e diversas que têm por suposto comum o fato de

terem sido geradas no interior de uma sociedade escravocrata, e que vão muito além dela,

desafiando e atravessando os conceitos patrimonialistas de propriedade e de terra.

O exemplo citado mostra que ainda persiste a concepção de quilombo que o prende a

um passado remoto, incomunicável com a sociedade atual e reaparece trazendo uma carga de

preconceito que contribui, senão para negar, para dificultar a garantia de direitos

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fundamentais dessas populações.

Mesmo lentamente o direito expresso no artigo 68 da Constituição de 1988, está se

consolidando. De acordo com a FCP (2009), existem 185 comunidades remanescentes de

quilombo tituladas no Brasil, apesar de terem sido emitidos 1.193 certidões por esta fundação.

Isto é motivo de preocupação para as populações quilombolas, pois em termos gerais, apenas

o registro garante a defesa de fato da terra e ainda é pequeno o número de comunidades

legalizadas.

A realidade de conflitos, avanços e retrocessos com relação às terras das comunidades

quilombolas evidencia que ao longo dos anos (1988-2010) tem se ampliado o debate sobre a

legislação relativa ao tema, mas ainda é moroso o andamento dos processos de regularização

dos territórios. Isso se deve, em parte, às dificuldades enfrentadas pelos órgãos públicos em

adequar o direito às diferentes formas de apropriação da terra.

O título de propriedade de forma coletiva, ou melhor, em nome de uma comunidade -

particularidade das terras quilombolas – esbarrou numa questão jurídica, visto que expõe

outra forma de propriedade que se contrapõe à vigente, em que a propriedade é caracterizada

como exclusiva e individual. Uma solução para o problema consiste na constituição de uma

associação representada por alguns membros da comunidade, em nome da qual os títulos de

propriedade são expedidos, uma vez que a comunidade passa a se constituir como pessoa

jurídica. A criação de associações está referendada no Decreto 4887/03, que estabelece no

parágrafo único de artigo 17: “as comunidades serão representadas por suas associações

legalmente constituídas, tornando-se obrigatória esta forma de representação”.

Diante da necessidade de efetivar o processo de titulação por meio da criação de

Associações, o Estado reconhece a existência de territórios negros e os nomeia como

comunidades remanescentes de quilombos, portanto, designa grupos étnicos como sujeitos de

direitos, que para obtê-los devem se enquadrar à linguagem dos discursos jurídicos e

administrativos. Para a formação e continuação das associações quilombolas é necessário o

domínio da linguagem escrita para que existam perante os cartórios e dialoguem com as

agências governamentais em suas diferentes instâncias e em prol da obtenção de direitos e

serviços.

No entanto, grande parte dos moradores das comunidades quilombolas possuem baixo

nível de escolaridade e dificuldades para compreender as exigências postas na formação de

associações. Por vezes, a regulação desses instrumentos representativos demanda constantes

anotações em atas de reuniões e Assembléias; respeito a prazos; autenticações e

procedimentos cartoriais que exigem o pagamento de taxas cujos valores comprometem o

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orçamento das famílias. Desse modo, ao mesmo tempo em que a formação da Associação

viabiliza o reconhecimento da propriedade coletiva da terra das comunidades remanescentes

de quilombo, representa um desafio para estes grupos de terem que se adequar a normas que

não levam em conta suas limitações.

Há também que se considerar, no processo de titulação, a modalidade de ocupação das

terras quilombolas, pois demandam do poder público diferentes ações jurídicas. Existem

comunidades ocupando áreas devolutas, áreas de preservação permanente, terras de marinha e

terras de particulares. Comunidades remanescentes de quilombo que estejam ocupando terras

que pertencem ao poder público, da União ou dos Estados brasileiros (terras devolutas), a

emissão dos títulos é considerada menos morosa, embora não represente a garantia do registro

cartorial, importante para a finalização do procedimento de apropriação legal (NUNES,

2000).

Nos casos em que as terras ocupadas pelas comunidades são consideradas de proteção

ambiental ou terras de marinha, Sundfeld (2002) observa que há um confronto entre dois

artigos constitucionais, uma determina que as terras devolutas em área de preservação

ambiental são indisponíveis (artigo 225, parágrafo 5o) outra que confere o direito de

propriedade às comunidades de quilombo (Artigo 68 do ADCT). Em situação dessa natureza,

a propriedade das comunidades remanescentes de quilombo é uma exceção ao artigo 225, o

que torna necessário rever os limites da área de preservação ambiental em prol das

comunidades.

Outra modalidade de ocupação de terras por comunidades remanescentes de quilombo

é a que se insere em áreas particulares. O procedimento de titulação nesses casos é mais

demorado, pois demanda um procedimento de desapropriação que implica em indenizar a

pessoa (física ou jurídica) que pleiteia o direito de propriedade da terra (NUNES, 2000).

Para desapropriar é necessário fazer o levantamento da área em questão e determinar o

valor objeto de indenização. Quando está em jogo o reconhecimento, garantido pela

Constituição Federal, das terras pertencentes às comunidades quilombolas, esta demanda deve

prevalecer sobre qualquer título de domínio de propriedade existente. Nesse tipo de situação o

proprietário desapropriado deve buscar a sua indenização pela perda do imóvel junto ao Poder

Público, e não recorrer à comunidade, pois o seu direito à terra está garantido por uma norma

constitucional.

Com o artigo 68, o Estado brasileiro reconhece que existem terras de comunidades

remanescentes de quilombos e as torna de propriedade definitiva destes grupos, desde que

comprovada a condição de remanescente de quilombo, portanto, não há como questionar esta

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determinação. Contudo, o reconhecimento como remanescentes de quilombo não impede que

as comunidades sofram pressões de setores sociais interessados em suas terras, os quais se

dizem legítimos proprietários. Como o processo para a obtenção dos títulos de propriedade

tem sido demorado, muitas comunidades, mesmo aquelas reconhecidas como remanescentes

de quilombo, mas que não possuem a titulação, sofrem ameaças de despejo, inclusive por

determinação jurídica.

As polêmicas e ações contrárias à execução do artigo 68 demonstram que o

reconhecimento e a titulação das terras das comunidades quilombolas, esbarra na histórica

concentração das terras brasileiras nas mãos de poucos e voltadas para fins especulativos.

Durante décadas as terras ocupadas por estes grupos negros, estiveram marginalizadas e fora

da rota de interesses comerciais ou mesmo de empreendimentos governamentais. A partir do

momento em que as terras são vistas como fontes de investimentos turísticos, descobertas

como áreas de concentração de minérios ou impeditivas de empreendimentos imobiliários e

comerciais, ou ainda de programas de desenvolvimento econômico pelo Estado, surgem

pessoas (físicas e/ou jurídicas) se dizendo proprietárias ou agentes governamentais, tentando

impor a retirada de seus moradores.

Mesmo com limitações e dificuldades, os moradores das comunidades quilombolas, de

várias maneiras, pressionam as autoridades para que suas terras sejam reconhecidas e tituladas

de acordo com a Constituição. Temos a efervescência de um movimento organizado de

resistência negra no campo e fora dele, que há muito já existe, mas que, na atualidade, é de

ordem jurídica e de afirmação de uma identidade étnica que tem o sentido de demarcação de

fronteiras em relação à sociedade envolvente, uma identidade que emerge justamente na luta

pela terra.

Vale frisar que o Artigo 68, fortalecido pelos debates em torno de sua efetivação e da

ressemantização dos termos “remanescente” e “quilombo”, reconhece, e com isso, nomeia

como “comunidades remanescentes de quilombo”, grupos envolvidos durante anos na luta

pela regularização de suas terras, diante das ameaças sofridas. Reconhece e nomeia como

“comunidades remanescentes de quilombo” os territórios negros originados de diferentes

formas, mas fundamentalmente, da sociedade escravocrata e da “realidade agrária brasileira”

(GUSMÃO, 1996b, p. 11). Reconhece e nomeia como “comunidades remanescentes de

quilombo” comunidades negras rurais que não tinham espaços políticos para que suas

relações, baseadas na solidariedade e reciprocidade e no controle coletivo da terra, fossem

valorizadas a ponto de contribuírem para a resolução de seus conflitos fundiários.

Com a possibilidade de que o reconhecimento e a nominação afirmem o direito

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costumeiro das comunidades negras rurais, ou seja, reconheça a história de aquisição da terra,

a maneira de ocupação e de uso; as relações com ela e por meio dela estabelecidas como

legítimas, os grupos se auto-identificam como quilombolas e pleiteiam o reconhecimento do

Estado. Por meio da relação entre suas histórias, memórias e o território que é referência para

a constituição dos sujeitos e o sentido do novo nome que recebem do Estado, as comunidades

negras rurais solicitam o reconhecimento como comunidades remanescentes de quilombo.

Como vimos, a partir do artigo 68 foram ressignificados os modos de vida, as práticas

culturais, a referência a uma ancestralidade, as formas de uso da terra, entre outras referências

simbólicas inerentes aos territórios negros. Com a ressignificação são estabelecidos os sinais

diacríticos responsáveis por compor as diferenças desses grupos em relação à sociedade

envolvente, o que viabiliza compreender e auto-afirmar que constituem comunidades

remanescentes de quilombo.

A partir do reconhecimento como remanescente de quilombo, as comunidades rurais

negras existentes se apoderam de um nome que traz consigo uma série de desafios para a

memória dos grupos, que precisam desconstruir as noções negativas que permeiam o termo

quilombo e compreender seu novo significado em prol da luta pela terra. Os desafios à

memória das comunidades impõem aos seus membros um “trabalho da memória” (BOSI,

1994), em que lembranças doloridas e referidas ao tempo dos sofrimentos da escravidão são

trazidas para o presente em razão da luta maior pela terra.

A memória das comunidades quilombolas envolve o ato de lembrar acontecimentos e

personagens ressignificados no presente, conforme as situações sociais, políticas e culturais

vivenciadas. Assim sendo, constitui um processo educativo e o referencial para ensinar e

aprender o sentido de ser quilombola. O “trabalho da memória” se torna fundamental para que

as comunidades tenham elementos para a compreensão da relação entre presente e passado,

entre o quilombo histórico e seu novo significado, no processo de identificação como

remanescentes de quilombo instaurado em prol da garantia de suas terras.

Diante da diversidade de territórios identificados e reconhecidos como remanescentes

de quilombo, cada grupo constrói, a seu modo e conforme os sujeitos em interação, a

identidade que emerge dessa luta pela terra, pois como afirma Hall (2001, p. 38): “[...] a

identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes,

e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento, [...] Ela é sempre

incompleta, está sempre sendo formada”. O mesmo ocorre com a identidade negra, conforme

observa Gomes (2005, p. 43): “Assim como em outros processos identitários, a identidade

negra se constrói gradativamente, num movimento que envolve inúmeras variáveis, causas e

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efeitos, desde as primeiras relações estabelecidas no grupo social mais íntimo”.

Assim, a experiência da luta das comunidades quilombolas pela titulação das terras -

que difere de acordo com os sujeitos nela envolvidos, sua constituição histórica e a natureza

do conflito - é responsável pela construção de identidades cujos elementos que a informam

são diferentes em cada realidade. Entretanto, a terra, base geográfica, não é condição

exclusiva para a existência e identificação do grupo. Outros fatores como a participação na

vida coletiva, o esforço de consolidação do grupo, a capacidade de auto-organização e o poder

de auto-gestão dos grupos ajudam a identificar e decidir quem é e quem não é um membro da

sua comunidade.

Nessa perspectiva, nos propomos a analisar o processo de construção e afirmação da

identidade quilombola e educação escolar na comunidade quilombola do Abacatal. Antes,

porém, situamos Abacatal no contexto histórico da formação de quilombos na Amazônia e

descrevemos o processo de sua constituição enquanto comunidade remanescente de quilombo.

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2 QUILOMBOS NA AMAZÔNIA PARAENSE: a singularidade de Abacatal

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QUILOMBOS NA AMAZÔNIA PARAENSE: a singularidade de Abacatal

Como descrevemos não primeira seção o termo quilombo, a partir da Constituição

Federal de 1988 passou por um processo de ressignificação e as populações que descendem

dos antigos quilombos são juridicamente consideradas remanescentes de quilombos.

Reforçamos que embora os quilombos expressem resistência à escravidão, busca de

alternativas de vida e liberdade, nem todas as fugas resultavam na formação de quilombos e

esta forma de organização dos negros não contava exclusivamente com escravos fugidos.

Como indicam os estudos de Gomes (1997), Reis (1996), Funes (1996), Salles (2005) e

Acevedo Marin (1998; 2004), os quilombos eram bastante heterogêneos, incluíam negros

fugitivos, índios, homens pobres livres e, na Amazônia, caboclos ribeirinhos.

Conforme demonstram os estudos de Gomes e Reis (1996), as fugas e os quilombos

não eram as únicas formas de resistência dos escravos africanos. Mas desde o inicio do

regime escravista, os negros buscavam escapar do cativeiro. A esse respeito Reis (1996, p. 9-

10) escreve:

Onde houve escravidão, houve resistência. E de vários tipos. Mesmo sob ameaça de chicote, o escravo negociava espaços de autonomia, fazia corpo mole no trabalho, quebrava ferramentas, incendiava plantações, agredia senhores e feitores, rebeleva-se individual e coletivamente. Houve um tipo de resistência que poderíamos considerar a mais típica da escravidão [...] trata-se das fugas e formação de grupos de escravos fugidos [...] essa fuga aconteceu nas Américas e tinha nomes diferentes: na América espanhola: Palenques, Cumbes; na inglesa, Maroons; na francesa, grand marronage [...]; no Brasil, Quilombos e Mocambos e seus membros: Quilombolas, Calhambolas ou Mocambeiros.

Os escravos fugindo do cativeiro formaram quilombos em quase todas as províncias.

Aqui, com base nos estudos dos autores supracitados apresentamos um histórico da formação

de grupos quilombolas na Amazônia paraense, voltando especialmente nossa atenção para a

comunidade quilombola do Abacatal.

2.1 QUILOMBOS NO PARÁ

A coroa portuguesa instituiu o Estado do Maranhão e Grão-Pará, como unidade

administrativa, separada do Brasil e ligada a Lisboa, desde 1621. Até meados do século

XVIII, este correspondia a toda a Amazônia portuguesa e somente na segunda metade do

XVIII houve a separação das áreas do Maranhão e do Grão-Pará em termos de capitanias pela

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administração colonial (FARAGE, 1991). Durante esse período o Estado português implantou

na Amazônia o seu modelo econômico e, embora o sistema de plantation não tenha ocorrido

na região, nas mesmas proporções que fora no nordeste açucareiro, aqui também foi utilizada

a mão-de-obra escrava.

Na história da escravidão na Amazônia estão presentes traços de tradições de

liberdade. Traços estes que podem estar guardados na memória de grupos étnicos indígenas e

negros na região. Funes (1996) discutindo as relações entre os mocambeiros do Baixo

Amazonas e a natureza, recorre às memórias, aos relatos orais dos grupos para entender o

processo de fuga e de reprodução das sociedades quilombolas e mediante as vivências das

comunidades descendentes dos mocambos que se constituíram nos rios e lagos daquela região

ao longo do século XIX. Essas comunidades têm, nas práticas culturais, nas memórias e nas

suas histórias, o sentido de pertença e de legitimidade da posse da terra.

Gomes (1997) reafirma a existência de inúmeros quilombos espalhados por toda a

região amazônica e as investidas das autoridades contra esses povoamentos, atendendo as

reclamações dos colonos. Este autor concentrou suas pesquisas no arquivo público do Pará,

em relatórios de presidente de província, códices, ofícios, cartas régias, mas reconhece a

importância dos relatos orais para a reconstituição da história dos quilombos amazônicos.

Na bibliografia regional sobre quilombos na Amazônia, merece destaque especial a

clássica obra de Vicente Salles, “O Negro no Pará”, a qual demonstra a secular presença

africana na região, desde o final do século XVII, como força de trabalho, como fator étnico e,

nas palavras do próprio autor, como elemento “plasmador da cultura amazônica”. Nesta obra,

Salles utiliza fontes bibliográficas, documentos, relatórios, jornais, revistas e outras fontes

acumuladas ao longo de suas pesquisas historiográficas que o possibilita reescrever a história

de um grupo social e histórico silenciado pela história oficial.

O trabalho de Rosa Acevedo e Edna Castro sobre os negros do Trombetas, no

município de Oriximiná/Pá, contribui significativamente com a reflexão antropológica “de

etnias e territorialidades sob ameaça na Amazônia, decorrentes da implantação de grandes

projetos minerais e hidrelétricos e de novas formas de exclusão, especialmente, aquelas

ancoradas em discursos ideológicos da preservação” (ACEVEDO MARIN; CASTRO, 1998,

p. 27).

As autoras fazem um mapeamento das ações de resistência dos quilombolas,

habitantes da região de Trombetas, procurando identificar, a partir do olhar do próprio grupo,

os campos de conflitos e tensões presentes em sua história, recortada de enfrentamentos;

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inicialmente com a ordem escravista, depois com as relações de patronagem3 e, por último,

com as empresas de mineração e madeireiras.

Na sociedade escravista, os negros do rio Trombetas construíram um movimento de

resistência amplo, criaram redes solidárias de apoio às fugas por meio de codinomes, gestos,

hospedarias, uma cultura marginal, que, sob constantes ameaças, os obrigou a se deslocarem

para os lugares de difícil acesso. Nesses lugares eles também estabeleceram uma relação de

cumplicidade com a floresta, e com as águas. As cachoeiras do Curuá, por exemplo, como

mencionam Acevedo Marin e Castro (1998, p. 43):

[...] Foram a alternativa original para orientar a fuga e, ao mesmo tempo, representaram para os negros um lugar de aprendizado dos segredos da floresta tropical de várzea e de terra firme, o que lhes permitiu progressivamente constituir-se como grupo relativamente isolado e protegido dos interesses escravistas.

Nas relações sociais e com a floresta, os quilombolas criaram uma unidade organizada,

em sintonia com as leis da sobrevivência (material, espiritual e política) do grupo, opondo-se

ao imaginário criado pelo colonizador, que pensava o quilombo como um aglomerado de

palhoças e de pessoas desocupadas, preguiçosas e perigosas.

O rio e o ciclo das águas foram inteiramente incorporados à vida das comunidades

ribeirinhas na Amazônia. No caso dos quilombolas do Trombetas, foi o cenário onde teceram

contínuos laços de cumplicidade com a natureza, reinventaram sua liberdade, fortaleceram

seus traços culturais e “pela via das cachoeiras, decifraram os segredos e o domínio da

complexa rede hidrográfica que garantiria sua vida nos quilombos” (ACEVEDO MARIN E

CASTRO, 1998, p. 165).

As imagens deste cenário natural e do enlace construído cotidianamente pelos negros

estão registradas nas lembranças dos antepassados, como os depoimentos trabalhados pelas

autoras revelam que esse povo aprendeu a seguir criteriosamente as sinalizações da natureza,

constituindo uma sabedoria peculiar àqueles/as que aprenderam/aprendem a conviver com o

rio e a floresta e se manterem livres.

O jeito de se organizar e viver no universo amazônico, respeitando as sinalizações da

natureza rendeu aos negros ribeirinhos o estereótipo de indolentes e preguiçosos, em contraste

com o imaginário expresso nos escritos dos oficiais das expedições colonizadoras, presentes

3 Relação em que os patrões donos dos castanhais pertenciam a famílias que exerciam controle sobre a produção e sobre a terra e sujeitavam os trabalhadores: produtores e consumidores sob sua dependência. Os patrões, coronéis de barranco, proibiam qualquer comercialização da castanha. Os castanheiros recebiam toda a castanha e levavam as mercadorias necessárias como ferramentas, sal, querosene, tecidos e remédios e os trabalhadores eram obrigados a comprar dos próprios patrões. Assim, o castanhal escravizava o negro. (ACEVEDO MARIN e CASTRO, 1998)

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na documentação cartorial, relatórios de presidentes de províncias e viajantes que descreviam

as terras férteis e de riquezas inigualáveis, pouco exploradas pelos nativos e pelos africanos

escravizados (GOMES, 1996).

Para mudar essa percepção e entender melhor a história do negro na Amazônia

acreditamos ser necessário passar essa historia pelo “crivo da crítica”, pois na literatura se

encontram enfoques distorcidos, cheios de preconceitos que negam a forte presença negra na

cultura, na economia, nos movimentos políticos, sociais e étnico-raciais da região. Nesse

sentido, Salles (2005) e, Acevedo Marin e Castro (1998) são importantes referências para o

estudo da questão negra no Pará, particularmente a quem se interessa pelos grupos

quilombolas.

A história da escravatura africana no Pará mostra que até o inicio do século XVIII

ainda era pequena a presença de escravos negros na Amazônia, devido principalmente à falta

de capital para investimento nas lavouras de cana de açúcar e na agricultura de modo geral.

Essa situação começou a mudar no século seguinte.

A partir da segunda metade do XVIII, com a política pombalina4 na região, o tráfico

negreiro para a Amazônia foi incrementado. No governo de Francisco Xavier de Mendonça

Furtado (1751 – 1759) a entrada de africanos, na região amazônica, cresceu rapidamente,

sobretudo com a formação da Companhia Geral do Comércio do Maranhão e Grão-Pará (1755

– 1778). Essa Companhia tinha por objetivos vender escravos africanos em grande escala nas

capitanias do Grão-Pará e Maranhão, desenvolver a agricultura e fomentar o comércio,

recebendo para tanto, diversos privilégios, como o do monopólio por vinte anos do tráfico de

escravos e do transporte naval de outras mercadorias para as referidas capitanias. Ressalte-se

que a população de negros, a partir de então esteve espalhada pela região, podendo estar nas

lavouras, na coleta das drogas do sertão, no transporte das canoas e nas obras de fortificações

militares no Grão-Pará (SALLES, 1988).

A intensificação do comércio negreiro provocou um aumento demográfico nas áreas

urbanas e suas proximidades, agravando problemas sociais já existentes, nos anos finais do

século XVII, como a falta de moradia e de emprego. Esses problemas ocasionaram uma série

de movimentos sociais e políticos de reivindicações por parte dos trabalhadores livres. Nesse

contexto os trabalhadores negros, que viviam em condições muito piores, devido sua situação

de escravos, impedidos de reivindicar melhorias, empreenderam fugas como forma de

4 Segundo Novaes (1979) esta política era marcada pó um esforço de organização administrativa do império português, com objetivos que abarcavam a nacionalização do comércio externo através do estímulo à produção e às industrias manufatureiras no reino e da exploração racional das colônias.

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livrarem-se das humilhações e maus tratos. Nessas fugas, buscando um espaço para viverem

livremente, formaram os quilombos (GOMES, 1996; SALLES, 1988).

Desse modo, os quilombos no Pará, de modo semelhante aos de outras regiões do país,

se espalhavam e aperfeiçoavam suas estratégias de defesa e proteção, estabelecendo, por

exemplo, alianças com índios, vaqueiros, escravos e quilombolas, construindo assim, o que

Gomes (1996) chama de “rede de solidariedade”. Diante disso eram constantes as

reclamações dos colonos, que acusavam os quilombolas de roubo de gado e assaltos às roças

e, cobravam providencias das autoridades, no sentido de combatê-los.

Para atender as reclamações dos colonos, várias expedições foram organizadas para

acabar com os quilombos. Nessas expedições era freqüente a presença de índios para conduzir

os soldados pelas matas, o que gerou conflitos entre negros fugidos e eles. Vale dizer que, na

Amazônia, os contatos e solidariedades entre índios e negros era forte e podiam ter

motivações variadas. Nas áreas produtivas, especialmente nas feitorias, índios e negros

trabalhavam juntos, uma vez que os índios, também escravizados, desenvolviam variadas

atividades: tripular canoas, colheita produtos naturais, serviam de vaqueiros, abriam roças.

Mas, além das experiências de trabalho havia situações de convivência mais intensas, pois nos

quilombos também habitavam índios fugidos dos senhores de engenho.

Esses contatos possibilitavam também uniões consensuais, e até casamentos, mas

diante das circunstâncias um podia denunciar o outro. Os conflitos entre indígenas e

quilombolas, gerados por essas denúncias, segundo Gomes (1997), podem ter sido

promovidos pelas próprias autoridades coloniais.

As tentativas de conter fugas, destruir quilombos e capturar fugitivos, como em outras

regiões do Brasil, obtinham pouco sucesso. De acordo com as pesquisas do autor supracitado,

entre os anos de 1794 - 1798, os moradores de Macapá enviaram várias petições para as

comarcas locais reclamando providências para conter as inúmeras fugas de cativos. As

despesas para persegui-los eram muitas e, como em outras partes do Brasil colonial, as

autoridades e os senhores de escravos discutiam as atribuições de como e quando efetuar as

perseguições, sempre com a preocupação de dividir os gastos e as responsabilidades. Essas

fugas quase sempre resultavam na formação de quilombos.

Portanto, havia quilombos em quase toda a Amazônia colonial, alcançando as

capitanias do Grão-Pará e do Rio Negro. Entre as áreas destacam-se Amapá e Mazagão,

Santarém, Tocantins, as áreas próximas a Belém, Marajó, Tapajós e áreas próximas à

capitania do Maranhão. Em Óbidos e Alenquer, eram protegidos pela geografia da região e

buscavam autonomia, procurando estabelecer suas roças e realizar trocas mercantis. Vale

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pontuar que a roça representou e ainda representa para muitas famílias das áreas rurais e

quilombolas em particular, a principal atividade produtiva. Ela oferece uma variedade de

raízes, frutas, cereais e legumes. A roça mais importante é a de mandioca, pois dessa raiz

deriva produtos bem aceitos no mercado paraense como a farinha, o tucupi e a goma. O

trabalho na roça é também um momento de fortalecimento dos laços de solidariedade, porque

contribui na intensificação das relações intra e interfamiliares devido à própria organização do

trabalho.

Assim organizados os quilombos tornavam-se mais difíceis de serem combatidos. Para

destruí-los as autoridades precisavam de bons guias para conduzir as expedições e um

contingente militar considerável. Na região de Cametá, Baião e Mocajuba, as autoridades

reclamavam de fugas de negros e índios e alegava a falta de recursos para preparar diligências

para combatê-los. Próximo a Vila do Conde, em Barcarena havia notícias de negros fugindo

de canoa pelos rios, construindo uma “rota de fuga” para o Maranhão. Na região do Marajó os

negros também utilizavam os rios para fugir e formavam quilombos nas cabeceiras (GOMES,

1997). Um elemento importantíssimo nas fugas era a canoa e, com ela, sujeito característico e

marcante nos rios amazônicos: os remeiros, na maioria das vezes, indígenas. Sem eles todos

ficavam de mãos atadas, pois eles conheciam como ninguém o curso das águas.

Mas não era somente nas áreas próximas aos rios ou nos municípios mais afastados da

capital paraense que surgiam os quilombos. Nas proximidades de Belém também se

formaram. Muitos mantiveram relações comerciais com as localidades próximas a eles,

vendendo suas mercadorias, tornando-se, de certa forma, concorrentes dos fazendeiros, os

quais passavam a pressionar o Estado a destruir os quilombos, visto que se sentiam

prejudicados pelos quilombolas.

Várias diligências de captura de quilombolas e destruições de quilombos foram

expedidas pelas autoridades. Alguns quilombos foram destruídos; outros tolerados de acordo

com os interesses comerciais da sociedade, que contava com os gêneros agrícolas produzidos

nos quilombos; outros sequer foram descobertos (SALLES, 1988). Funes (1996) afirma que

havia um “jogo de cumplicidade” entre quilombolas e alguns comerciantes, os quais,

interessados em manter uma freguesia que lhes assegurasse lucro, lhes acobertavam quando

iam às vilas, passavam informações sobre os acontecimentos da cidade e os avisavam sobre as

expedições punitivas, com antecedência.

Uma fonte de informações dos quilombolas, na Amazônia, eram os regatões, comércio

realizado nos barcos que iam até as localidades onde trocavam mercadorias como munição,

facões, querosene, sal, chapéus e, roupas por produtos cultivados ou extraídos da natureza

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pelos caboclos ribeirinhos, indígenas e quilombolas. Esse tipo de comércio ainda existe em

alguns lugares da região, embora não seja considerado legal e sofra campanha de descrédito.

Assim, muitos quilombos conseguiram resistir às pressões das autoridades e criaram

estratégias de sobrevivência, mantendo-se distantes dos interesses da sociedade, explorando

os recursos naturais do território. Um exemplo disso é Abacatal, uma comunidade que

conseguiu escapar do controle das autoridades, manteve-se um tanto quanto isolada,

estabelecendo comunicação com Belém através do rio Guamá para comercializar seus

produtos.

2.2 A COMUNIDADE DE ABACATAL: um quilombo diferente porque é terra de herança

O resgate da memória coletiva e da história da comunidade negra não interessa apenas aos alunos de ascendência negra (...). Além disso, essa memória não pertence somente aos negros. Ela pertence a todos, tendo em vista que a cultura da qual nos alimentamos cotidianamente é fruto de todos os segmentos contribuíram cada um de seu modo, na formação da riqueza econômica e social e da identidade nacional. Kabenguele Munanga.

Figura 2: Portão de entrada da comunidade de Abacatal. Foto: Madalena Corrêa Pavão (2009)

Como podemos visualizar na fotografia acima, na entrada de Abacatal existe um

portão e uma guarita onde fica sempre uma pessoa como vigilante, para a qual os visitantes

devem se identificar, comunicar onde deseja ir e/ou com quem quer falar. Esse cuidado é para

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evitar que pessoas estranhas entrem para caçar, extrair madeira e palmito, capturar aves e/ou

outras espécies de animais de forma clandestina, colocando os moradores em situação

delicada junto à Secretaria de Meio Ambiente e, também há uma preocupação com a invasão

do território, visto que, no passado, ocorreram invasões.

A fotografia indica que trata-se de um ambiente rural que já sofreu bastante a

intervenção humana, a exemplo dos postes de iluminação, da fiação elétrica e da ausência de

árvores de grande porte às margens da estrada, onde a vegetação é rasteira. Porém, isso não

significa que houve um grande desmatamento, pois embora para o alargamento da estrada e as

edificações das casas, da sede da associação de moradores, da escola e do posto de saúde

tenham derrubado algumas árvores, boa parte da mata ainda está conservada, inclusive com

espécies que, segundo os moradores, estão ali desde o tempo do antigo engenho do conde.

Os/as interlocutores/as são unânimes em dizer que Abacatal é um quilombo diferente

porque é terra de herança. Prevalece entre eles/as a compreensão de que os quilombos eram

formados apenas por escravos que fugiam das senzalas, por isso consideram Abacatal

diferente, ou melhor, uma exceção entre os remanescentes, por que não foi reduto de cativos

foragidos. Reforçamos, contudo, que o termo quilombo encobre variados contextos de

resistência de africanos e descendentes na formação e defesa de territórios étnicos, surgidos a

partir de terras ocupadas nas ocasiões das fugas de escravos, terras doadas, compradas ou

abandonadas, entre outras origens.

A comunidade remanescente de quilombo do Abacatal está localizada na área rural do

município de Ananindeua e teve sua origem no século XVIII. Às margens do igarapé

Uriboquinha, que desemboca no rio Guamá, esse grupo, constituído por uma população

majoritariamente negra, com uma forte oralidade, sobreviveu por muito tempo, explorando os

recursos da mata, dos rios e praticando uma economia baseada na agricultura e no

extrativismo vegetal. Atualmente é uma comunidade que possui o título de propriedade como

remanescente de quilombo, mas não está livre de problemas gerados pela falta ou pela má

prestação de serviços básicos como transporte, saúde e segurança, motivo pelo qual está

sempre atenta para as possibilidades de efetivação de políticas públicas que atendam suas

demandas sociais.

Para fazer este histórico da comunidade em questão, tomamos como referência a obra

das antropólogas Rosa Acevedo Marin e Edna Castro (2004), O Caminho de Pedras de

Abacatal, a qual resultou das pesquisas para a construção do relatório antropológico da

comunidade, realizadas entre 1996 e 1998 e, que focalizou a etnogênese das famílias, sua

organização social e espacial, as relações sociais e as situações de conflitos em que estão

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imersas. A partir da referida obra, recorremos à memória de moradores da comunidade

visando “recuperar” a voz dos sujeitos que ao rememorarem momentos de suas vidas,

relataram as histórias, que vivenciaram ou que escutaram de seus familiares.

Concordamos com Bosi (1994) que a memória é seletiva e nos faz lembrar

acontecimentos que, por alguma razão, foram significativos e marcaram nossa existência num

determinado período. Para “conhecer” o passado de Abacatal, provocamos as memórias de

alguns moradores, lançando mão da metodologia da história oral, a qual possibilita trazer à

tona e registrar o que há muito as pessoas sabem, falam e vivenciam. Essa possibilidade se dá

por intermédio da história do lugar e das relações estabelecidas com a sociedade envolvente.

Foi nesta perspectiva que buscamos reconstruir o passado de Abacatal, pois a compreensão do

sentido histórico desse grupo social pode revelar as densas redes de relações da sociedade

brasileira e da Amazônia paraense em particular.

Consideramos que a memória é a lembrança do passado sob as representações do

presente. Mas lembrar é também esquecer e o não dito faz parte do processo de memória. Para

conhecer o passado da comunidade e da escola de Abacatal, contamos com as lembranças,

esquecimentos, silêncios dos sujeitos que se dispuseram a narrar suas memórias, os quais

apresentamos a seguir.

� Os/as interlocutores/as

Figura 3: Senhor Benedito Rosa da Conceição. Foto: Madalena Corrêa Pavão (2010)

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O senhor Benedito tem 73 anos de idade. Nasceu e sempre viveu em Abacatal;

enfatiza com satisfação:

Sou da família dos Rosa que vem de uma das filhas da escrava. As três primeiras famílias que deram origem a esse lugar foram a dos Rosa, a dos Barbosa e a dos Costa. Meu avô era o Manuel Gregório Rosa Filho, que era neto da escrava Olímpia. Sou descendente dela também e sempre morei aqui. Já passamos muito sacrifício: antigamente não tinha estrada nem escola porque tudo era pelo rio, mas o pior foi o problema da terra porque queriam nos tirar daqui5.

Senhor Benedito sempre trabalhou na terra e é casado com a senhora Ana que também

vem de uma família de agricultores. Pode ser considerado um guardião da memória da

comunidade, pois é reconhecido pelos moradores como a pessoa que sabe e gosta de contar as

histórias do lugar. Com seu jeito simpático e brincalhão narra sua história de vida

evidenciando sua relação direta com a terra e com a história da comunidade. Ainda menino

aprendeu, com seu pai a trabalhar na roça, fazer farinha, caçar, pescar e navegar pelos rios

Uriboca e Guamá para comercializar seus produtos em Belém ou em outra localidade.

Para os parentes e amigos próximos e da mesma faixa etária o senhor Benedito é o

Bené, os mais jovens o chamam de seu Bené, ou tio Bené e demonstram um respeito não

somente por sua idade, mas por sua experiência de vida e sabedoria. Este senhor é uma

testemunha das lutas de Abacatal, sobretudo as que dizem respeito à defesa de suas moradias,

à titulação da terra e à educação escolar na própria comunidade. Embora não tenha tido a

oportunidade de estudar, dá muito valor ao estudo:

Porque não tinha escola por aqui e meu pai não tinha como me manter na casa de parentes lá fora. Também não dava pra sair porque eu precisava ajudar meu pai na roça. Mas eu valorizo muito o estudo e fiz o que pude para minhas filhas estudarem, porque é preciso ter estudo para não ser enganado e pra ter uma vida melhor.

5 Usamos itálico nos trechos dos relatos dos interlocutores, para diferenciar das citações dos autores aos quais recorremos na construção deste texto.

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Figura 4: Dona Ana Barbosa da Conceição Foto: Madalena Corrêa Pavão (2010)

Dona Ana, é trabalhadora rural aposentada. Está com 71 anos de idade. Nasceu no

município de Acará e passou a morar em Abacatal quando casou com senhor Benedito, no

ano de 1963. Dona Ana desde criança lida com a terra. Aos 12 anos idade já trabalhava na

roça, depois de casada continuou trabalhando na agricultura, na produção da farinha de

mandioca, criação de animais como aves e porcos, além de assumir as tarefas domésticas e os

cuidados/educação das filhas.

Como seu esposo, dona Ana tem pouco estudo, pois não teve oportunidade de

freqüentar a escola, visto que precisava trabalhar:

Naquele tempo os pais pensavam que quem vivia na roça não precisava estudar e mulher menos ainda, mas eu dou grande valor ao estudo. Incentivei minhas filhas a estudarem e hoje faço o mesmo com minhas netas. A escola na comunidade é um ganho muito grande, porque as crianças não precisam sair daqui para estudar. A escola de Abacatal prepara os alunos para prosseguirem os estudos. Muitos adolescentes e jovens ex-alunos da escola estão cursando ou já terminaram o Ensino Médio e isso estimula outros que tinham parado, a voltarem a estudar.

Embora não tenha nascido em Abacatal, dona Ana demonstra se identificar com o

lugar onde construiu sua família, criou e educou suas filhas, ajuda a educar suas netas. Como

moradora também vivenciou os problemas, os conflitos, as lutas e as conquistas da

comunidade.

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Figura 5: Maria Santana da Costa Barbosa Foto: Madalena Corrêa Pavão (2010).

Santana é filha de Francisco da Costa e Rosa Queiroz Cardoso. Nasceu e sempre viveu

na comunidade de Abacattal e garante que nunca teve vontade de viver em outro lugar.

Pertence a sexta geração dos herdeiros das filhas de Olímpia com o conde6. É casada,

trabalhadora rural, tem três filhas e atualmente trabalha como secretária no Sindicato dos

Trabalhadores rurais de Ananindeua. Estudou na escola da comunidade até a quarta série do

Ensino Fundamental. Devido às dificuldades de acesso às escolas “de fora” e a necessidade de

trabalhar, não pôde prosseguir os estudos, o que lamenta muito e reconhece que lhe faz falta.

Revela que não se acomoda, busca sempre aprender por isso participa de cursos, palestras,

oficinas e que nessa busca aprendeu sobre si mesma, sobre sua história, sua descendência:

Eu não tinha identificação com quilombola. Quando casei o juiz perguntou que nome queria deixar e eu escolhi o Costa que é do meu pai. Depois comecei a entender a descendência. O Costa vem de família descendente e o Barbosa, que é do meu marido, também é. Meu nome ficou Maria Santana da Costa Barbosa, eu sou descendente e não tenho nenhum problema de dizer que sou quilombola, eu tenho é orgulho de ser daqui.

Com seu jeito espontâneo de falar demonstra uma grande satisfação de narrar suas

memórias e, à medida que fala, mais os detalhes dos acontecimentos lhes vêm à mente, de

modo que narra como se estivesse vendo/vivenciando, mesmo quando o relato é a partir do

que ouviu de algum familiar mais velho. Emociona-se ao relembrar dos momentos de tensão

6 As filhas da escrava Olímpia com o conde Koma de Melo herdaram as terras que tem passado de geração a geração e constituem o território da comunidade.

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em que presenciou a derrubada de casas, inclusive a sua. Demonstra sua revolta com os

especuladores que tentaram se aproveitar da ingenuidade dos mais velhos para tomar-lhes as

terras e mostra que precisou aprender a lutar por seus direitos, mas também pela coletividade.

Santana já participou de vários encontros e congressos, relacionados às questões dos

trabalhadores rurais, aos problemas e políticas públicas voltadas para quilombolas, bem como

de cursos de capacitação e geração de renda. Enfatiza que tem “vontade de aprender” e já

aprendeu muito, com seu esforço porque gosta de participar dos movimentos e de cursos.

Costuma dizer que valoriza a educação e que sempre incentivou suas filhas a estudarem, pois:

o estudo é importante porque nos ajuda saber sobre nossos direitos.

Figura 6: Professora Ana Alice Costa Silva Foto: Madalena Corrêa Pavão (2010)

Ana Alice, como ela mesma diz é “nascida e criada na comunidade:

Gosto de Abacatal e não tenho vontade de morar em outro lugar. Passei alguns anos em Belém, na casa de parentes, para estudar, mas sempre dava um jeito de visitar a família. Quando conclui o magistério, voltei pra cá, logo comecei a trabalhar na escola e depois voltei a estudar porque quero melhorar meu trabalho.

Ana é casada e tem dois filhos. É criativa, comunicativa e fala de si, da comunidade e

da escola com espontaneidade que, às vezes, dispensa perguntas. Gosta da escola, de seu

trabalho e deseja continuar no exercício da docência, por isso, apesar das dificuldades, voltou

a estudar e está fazendo o curso de pedagogia. Afirma que:

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Não tenho vergonha de dizer que sou de Abacatal, por onde ando me identifico como quilombola. Já participei de encontros, congressos e conferências discutindo as questões quilombola, mas atualmente estou um pouco afastada, pois agora priorizo a escola e meus estudos. Para mim Abacatal, apesar das dificuldades de acesso, é um lugar muito bom para morar e para criar os filhos, por isso não penso em ir para outro lugar.

Ana preocupa-se com o desempenho das crianças da escola e ressente-se da escassez

de material didático para a realização de atividades pedagógicas diversificadas, bem como da

falta de transporte para sair com as crianças e dar-lhes oportunidade de conhecer outros

espaços educativos como museus, bibliotecas, teatros e praças. Diante das limitações, conta

com o apoio das outras professoras e com a criatividade para proporcionar às crianças o

desenvolvimento da aprendizagem.

Figura 7: Gestora Maria Onélia Barbosa da Conceição. Foto: Madalena Corrêa Pavão (2010).

Onélia é educadora e exerce a função de gestora da escola de Abacatal, há cerca de 20

anos. É filha do senhor Benedito e dona Ana:

Sou bisneta de Manuel Gregório Rosa Filho, somos da família dos Rosa, uma das primeiras famílias do lugar. Pertenço à sexta geração dos descendentes. Quando criança, estudei aqui até a quarta série, depois fui morar com meus tios em Belém para poder continuar os estudos. Ao terminar o Ensino Médio (na época, denominado de Segundo Grau), atendendo às solicitações da comunidade, voltei para assumir a escola, porque havia um grave problema de falta de professores/as.

Como assumiu a escola com a função de professora e de gestora, Onélia precisava

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ficar o dia todo envolvida com o trabalho, por isso não pode voltar a estudar e fazer um curso

superior, mas sempre participou de cursos de capacitação oferecidos pela Secretaria

Municipal de Educação (SEMED). Tenta organizar seu horário de trabalho para cursar uma

faculdade, o que ainda não foi possível. Preocupa-se com a permanência da escola na

comunidade, pois sabe que devido à distância das outras escolas, muitos jovens param de

estudar, por isso, faz o que pode para que a SEMED mantenha a escola em Abacatal.

Uma das suas inquietações é a regularização da escola, visto que:

Embora essa escola já exista há muitos anos, ela ainda não é reconhecida oficialmente pelo Conselho Municipal de Educação porque parte dos documentos exigidos foram extraviados e parte ainda precisa ser elaborada. Meu grande desafio tem sido organizar toda a documentação para que a Escola Municipal Manuel Gregório Rosa Filho passe a existir legalmente.

Figura 8: Professora Luciana Silva da Silva Foto: Madalena Corrêa Pavão (2010).

Luciana é pedagoga, trabalha pela manhã como professora em Abacatal e a tarde como

orientadora numa escola estadual, em Ananindeua. É casada e tem um filho, está com 11 anos

no exercício do magistério. Estudou na comunidade até terceira série, depois foi estudar em

Ananindeua e, ao concluiu o Ensino Médio voltou para casa de seus pais. Foi contratada para

trabalhar em Abacatal e logo entrou na faculdade, no curso de Pedagogia. Quando concluiu a

graduação passou a trabalhar pela manhã e no intermediário, com crianças do “Pré” e da

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primeira série, respectivamente. Fez concurso para orientadora pedagógica na Secretaria

Estadual de Educação e para assumir o cargo precisou deixar o turno do intermediário da

escola da comunidade.

Seu tempo é um pouco corrido, pois precisa sair de uma escola para outra, mas

procura se organizar para participar das reuniões com os pais, dos planejamentos e atividades

gerais da escola. Luciana não é “filha de Abacatal”:

Nasci e moro até hoje no sítio Bom Jesus, que fica aqui perto. Tenho uma identificação com o lugar e com a escola porque estudei aqui e depois participei de cursos de artesanato na associação de moradores. Na convivência com as pessoas daqui construí amizades que têm se fortalecido com o tempo. Meu pai também tem uma historia de pertencimento com esse lugar, pois esteve envolvido e contribuiu bastante com as lutas pela titulação da terra. Trabalhar aqui é uma satisfação porque tenho certa familiaridade com as crianças e com os pais. É claro que temos problemas, dificuldade, limitações como nas outras escolas, mas o ambiente de trabalho é bom, há aproximação entre as colegas e comprometimento com a educação; discutimos os problemas, planejamos e desenvolvemos algumas ações juntas. Reconheço que isso deveria ser mais constante na escola, e é uma coisa que me inquieta porque ainda não conseguimos planejar coletivamente as atividades da escola, ou seja, no planejamento e realização das atividades ainda não contamos com toda a comunidade escolar e com os pais. Mesmo assim acredito que podemos criar estratégias que proporcionem maior envolvimento das pessoas, mas isso não é fácil, é preciso até mesmo de um trabalho de convencimento, de sensibilização.

Figura 9: Professora Ângela Cardoso Silva Foto: Madalena Corrêa Pavão (2010).

Ângela é a mais jovem das professoras da escola. Cursa Pedagogia e trabalha com

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crianças há dois anos. Atualmente mora com sua avó, fora de Abacatal como ela mesma

revela:

Nasci e morei aqui até os doze anos e estudei na escola daqui até a terceira série, depois passei a morar com minha avó no bairro do Aurá para continuar os estudos. Conclui o Ensino Fundamental na escola estadual do Aurá e o Ensino Médio, fiz numa escola estadual no bairro do Distrito Industrial, sempre com muita dificuldade, inclusive enfrentando situação de preconceito por ser de Abacatal, que é uma comunidade próxima ao depósito de lixo. Esses problemas não me fizeram desistir, pelo contrário serve de estimulo para ir em frente, buscar melhores condições de vida e ajudar meus irmãos e meus alunos.

Ângela trabalha com uma turma de Educação Infantil, pela manhã e uma de segunda

série à tarde. Declara que gosta da escola porque se identifica com o lugar, também gosta de

trabalhar com crianças e procura conversar com os pais para que acompanhem e dêem

atenção aos trabalhos escolares de seus/as filhos/as, enfatizando a importância da

demonstração de carinho para o desenvolvimento da aprendizagem. Gosta de seu trabalho,

sente liberdade para desenvolver atividades alternativas para suprir a carência de material

didático e para conversar com os pais tanto sobre os problemas de aprendizagem como de

comportamento. Embora more em outro lugar, mantém os laços familiares, de amizade e

profissionais com Abacatal e identifica-se como quilombola.

Como professora da escola de Abacatal sua inquietação é o pouco apoio no

desenvolvimento de projetos educativos envolvendo toda a comunidade escolar, pois:

Na escola não temos um coordenador pedagógico e a elaboração do planejamento raramente conta com a participação de toda a escola e das famílias. Mas, apesar das limitações da escola, vejo que ela já melhorou bastante tanto no aspecto físico quanto no pedagógico. Desejo continuar na docência e acredito que posso ajudar meus alunos e despertar neles a vontade de prosseguirem nos estudos.

2.2.1 Abacatal é a colônia mais antiga de Ananindeua

A comunidade de Abacatal está situada em Ananindeua, às margens do igarapé

Uriboquinha há aproximadamente sete quilômetros da sede do município. É composta por

famílias de agricultores que têm em comum a utilização dos recursos naturais, como forma de

sobrevivência. Segundo Acevedo-Marin e Castro (2004, p.15):

[...] este povoado constitui um núcleo de agricultores, mas singulariza-se por sua história e sua identidade social. As famílias que nele residem têm origem na ocupação dos séculos XVII e XIX e na participação de escravos de origem africana na organização da agricultura comercial que se ligava estreitamente à Belém do Grão Pará.

A memória dos moradores revela a “origem mítica” da localidade, a qual tem como

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protagonistas o Conde Coma de Melo e a escrava Olímpia. O conde, de origem portuguesa,

teria adquirido terras através de sesmarias e construído um engenho, para onde levou escravos

negros para trabalhar na terra. Entre os cativos do conde estava Olímpia que teve três filhas de

seu senhor. Antes de ir embora do Pará o conde reconheceu as filhas com a escrava e lhes

deixou as terras como herança. Para os moradores foram as filhas do conde com a escrava

Olímpia originaram os três troncos familiares que formaram o povoado, hoje reconhecido

como descendente de quilombo.

Durante a pesquisa percebemos que os mais velhos gostam de falar dessa história

mítica. Senhor Benedito demonstrava satisfação em falar das histórias que ouviu muitas vezes

seus avós contarem sobre os primeiros habitantes do lugar:

Meu avô, o Manuel Gregório Rosa Filho, era neto direto da escrava Olímpia. Sou de um desses troncos. Lá dos primeiros negros que povoaram esse lugar. Esse meu avô falava para meu pai sobre as coisas da escravidão que a mãe dele contava. Meu pai dizia que naquele tempo era muito difícil pros pretos. Era só sofrimento mesmo.

Embora não existam documentos oficiais sobre a história transmitida oralmente pelos

moradores, existem vestígios históricos encontrados na comunidade que referendam as

narrativas. Entre esses vestígios estão o caminho de pedras e as ruínas do antigo engenho. O

caminho de pedras tem cem metros de comprimento por um de largura e foi construído pelos

escravos em 1710 ou 1790, por ordem do Conde para que, ao descer da embarcação não

sujasse os pés na lama do caminho até sua residência. As ruínas estão hoje no lado das terras

pertencentes ao Estado e “configuram-se como um lugar mágico, símbolo para os moradores,

de seus elos com o passado e da herança recebida” (ACEVEDO MARIN e CASTRO, 2004,

p. 57).

Os moradores mais antigos consideram o caminho de pedras como uma “prova” da

ancestralidade da ocupação do lugar. É um lugar da memória, pois ao falar dele ou caminhar

por ele lhes surgem lembranças das histórias contadas pelos antigos sobre as condições de

vida e trabalho de seus ancestrais escravos: uma vida de sofrimento e de trabalho pesado,

como diz Santana, relembrando as histórias contadas por seu avô sobre o tempo da

escravidão.

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Figura 10: O caminho de pedras. Foto: Madalena Corrêa Pavão (2009).

O caminho de pedras corta um trecho da mata até a margem do igarapé, sendo que

próximo às pedras a vegetação é rasteira e os comunitários limpam de vez enquanto para

manter as pedras a mostra. Para a comunidade esse caminho é muito mais que uma evidência

histórica, é a história da descendência escrava do lugar e das pessoas, como declara Santana

ao explicitar seu significado:

O caminho de pedras tem um grande significado para a comunidade. Por demonstrar a nossa descendência. O sacrifício dos escravos, naquele tempo. Foi construído a peso de chicote, suor, sangue, humilhação. Carregando o conde no ombro para ele não pisar na lama. Esse caminho é a nossa história. Nossas lutas desde muito tempo.

Vemos que a tradição oral pode ser mapeada na paisagem e nos acontecimentos, em

geral, estão vinculados a lugares e nomes de ancestrais de uma forma que, falar do passado é

como andar pelo território, como faziam algumas vezes, os interlocutores em nossas

conversas – quando diziam onde havia se dado algum fato importante. As marcas territoriais

mais antigas identificadas pelos/as interlocutores/as estão nas estreitas veredas abertas no

meio da mata, como a que lava ao caminho de pedras. São marcas dos locais por onde seus

ancestrais circulavam, onde faziam seus abrigos e trabalhavam como cativos, estendendo-se

por toda a área reivindicada atualmente, justificando sua extensão.

Por um longo período este povoado manteve-se num certo isolamento, mas

estabelecia relações comerciais nos portos de Belém, como conta o senhor Benedito ao

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lembrar de seu avô: meu avô dizia que os antigos iam de barquinho vender a farinha e outras

coisas, em Belém; assim meio escondido né?. No final do século XVIII, a política de

colonização da região Bragantina e a abertura da Estrada de Ferro Belém-Bragança,

provocaram mudanças significativas na região, afetando as formas de organização e

comunicação da comunidade. Nesse período, segundo Marin e Castro (2004), o centro da

comunidade encontrava-se perto do caminho de pedras, a mata era densa e os moradores

sobreviviam da caça, coleta de frutos, fabricação de carvão e das roças de mandioca feitas no

lugar onde antes havia o canavial e essas práticas foram deixando de existir.

Na década de 1960, com a expansão do município de Ananindeua, através da

construção de conjuntos habitacionais pela Companhia de Habitação do Estado do Pará

(COHAB) e com o processo de ocupações populares, as áreas próximas à Abacatal foram

incorporadas ao espaço urbano do município. Em 1974, foi construída uma estrada que liga

Abacatal à Ananindeua, alterando a organização espacial e o modo de vida do lugar. As casas,

antes organizadas em círculo, distribuíram-se ao longo da estrada. A caça e a pesca

diminuíram, visto que a mata foi reduzida e parte do igarapé ficou na área apropriada pela

empresa Pirelli7.

Vale reforçar que o fato de não haver documentos legais comprovando a autenticidade

da história guardada na memória dos antigos moradores, contribuiu para que pessoas físicas e

empresas tentassem se apropriar das terras. Por décadas as famílias precisaram recorrer à

justiça para permanecerem naquele lugar. Um momento de grande tensão foi em 1964,

quando Companhia Transportador Rio Comércio de Castanha Ltda comprou uma parte das

terras e ameaçou despejar as famílias de suas casas. Senhor Benedito relata que nessa ocasião

as famílias contaram com “o apoio do Seminário Pio X e as religiosas da Congregação

Sagrada Família, a Comissão Pastoral de Terra e a Sociedade dos Direitos Humanos” para não

serem despejadas.

Na década de 1970 as famílias moradoras de Abacatal novamente viram-se ameaçadas

de serem expulsa da terra. Desta vez foi um senhor, a quem os/as interlocutores/as chamam de

Luis Mesquita, que conseguiu um título provisório e ilegal correspondente a 240 hectares das

terras. A partir de então esse senhor proibiu a abertura de roça nas suas supostas terras e

passou a forçar os moradores a lhe pagarem uma taxa pela extração de pedras. Santana

recorda bem da reação das famílias diante da ameaça de despejo de suas casas:

7 Esta empresa explorava a borracha (látex), atualmente explora madeira.

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Não desistimos não. Tentamos recuperar as terras e fomos pra justiça. Entramos com um mandato de segurança que resultou na cassação do título do Luis Mesquita, mas ele continuou a agir como se fosse o dono legítimo das terras e os moradores, que não concordavam com o que ele fazia, continuaram lutando por nossos direitos.

Os conflitos incentivaram os moradores a se organizarem para criar uma associação de

moradores para fortalecer suas lutas. Contudo, o clima de tensão continuou muito forte e

chegou ao ponto de policiais e jagunços invadirem a comunidade, derrubarem casas e

ocuparem o prédio da escola. Tal fato foi largamente divulgado na imprensa paraense e sua

repercussão levou a Empresa de Assistência e Extensão Rural (EMATER) a analisar a questão

e confirmar que os moradores tinham direito sobre as terras. Mas enquanto a EMATER não se

posicionava a apreensão dos moradores era grande diante das ameaças. Santana lembra bem

do momento em que o oficial de justiça chegou com uma ordem despejo e policia para retirar

as famílias do lugar:

Chegou aqui um oficial de justiça, com ordem de despejo e já vieram também a policia e os homens do Luis Mesquita com trator. Começaram a derrubar as casas. Iam derrubar minha casa e eu disse o senhor vai derrubar minha casa? Vou derrubar. Então deixe pelo menos eu descer as telhas. O policial falou pra deixar e ele deixou. Depois que descemos as telhas ele derrubou. Foi, derrubou umas cinco casas e derrubou até a escola que já era de alvenaria. Com isso, uns ficaram assustados e foram embora. Mas nós não saímos daqui não. Meu irmão Raimundo sempre dizia: isso aqui é nosso. Nós temos que lutar e nós lutamos.

Entre os anos de 1987 e 1988, enquanto a comunidade enfrentava os graves problemas

fundiários, no Congresso Nacional ocorriam discussões sobre o artigo 68 do Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias (1988), que recomenda a titulação dos territórios

ocupados pelos remanescentes das comunidades de quilombos. Com base neste artigo a

comunidade decidiu solicitar a titulação de suas terras como remanescente de quilombo. Mas

não obteve êxito, visto que não havia registros escritos de sua história, pois a mesma está na

memória de seus moradores só podendo ser apreendida pela linguagem oral. Então a pesquisa

realizada por Acevedo Marin e Castro (1996), no formato de laudo antropológico, despontou

como uma possibilidade de recuperar a memória do grupo, sua história, sua identidade. Esse

estudo contribuiu significativamente com o processo de regularização das terras e o título

definitivo foi entregue a 13 de maio de 1999 pelo governo do estado do Pará.

Vale pontuar que a luta dos moradores de Abacatal não se limita ao título de

propriedade da terra. Antes mesmo de se reconhecerem como remanescentes de quilombo já

cobravam do poder público local solução de problemas como a falta de energia elétrica e de

transporte, a má conservação da estrada de acesso e, principalmente a escola na comunidade.

Por muito tempo Abacatal não teve acesso à educação escolar, devido às dificuldades

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impostas pela distância em relação à área urbana de Ananindeua, as péssimas condições da

estrada e também pela falta de professores/as dispostos/as a irem trabalhar na comunidade.

Mesmo assim, podemos afirmar com base nos relatos dos/as interlocutores, que a comunidade

fazia o possível para, pelo menos, alfabetizar suas crianças.

Na seção seguinte apresentamos as primeiras experiências de alfabetização e a criação

da escola na comunidade bem como as mudanças e permanências na história da educação

escolar em Abacatal.

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3 PERCURSOS DA EDUCAÇÃO ESCOLAR NA COMUNIDADE DE ABACATAL:

da professora que ia ensinar a ler à Escola Manoel Gregório Rosa Filho

Nesta seção apresentamos o percurso da educação escolar em Abacatal, demonstrando

que há muito as famílias se preocupam em garantir o direito dos/as filhos/as ao acesso e

permanência à escola. Fazemos um histórico da escola enfocando os movimentos

reivindicatórios da comunidade junto ao poder público local por sua criação e pela

contratação de pessoas da própria localidade para atuar como professores/as nesta unidade

escola. Antes, porém, tecemos algumas considerações sobre a história da educação dos/as

negros/as no Brasil, para demonstrar que a educação escolar, ao longo do século XX, foi

usada como instrumento da ideologia do branqueamento e negava esses sujeitos. Essa escola

branqueadora foi duramente criticada, principalmente pelo movimento negro8, o qual

contribuiu significativamente com o processo de afirmação da identidade negra.

3.1 A IDEOLOGIA DO BRANQUEAMENTO E SEUS REFLEXOS NA EDUCAÇÃO

ESCOLAR

Na passagem do Império para a República, no Brasil, ocorreram transformações

significativas na ordem política, econômica e social. O grande contingente de trabalhadores/as

escravos/as há pouco tempo deixara de ser escravo e passara a ser considerado livre. No

contexto social, havia a preocupação com a idéia de raça e o entendimento sobre a presença

do negro na formação brasileira. O Brasil estava descrito internacionalmente como uma nação

composta por raças miscigenadas, o que se apresentava como característica particular de sua

imagem e que inquietava a elite brasileira da época.

Esse preconceito era irradiado, sobretudo, pela difusão, no país, de teorias raciais,

amplamente difundidas nos Estados Unidos e na Europa, que se baseavam na presunção da

superioridade branca e na inferioridade do mestiço. A mestiçagem era vista pela elite de duas

formas: como sinônimo de degeneração racial influenciada pelas “teorias alienigenas”; e

como o único processo reconhecido, pelo qual, uns poucos mestiços haviam ascendido na

hierarquia social e política (SKIDMORE, 1976).

Segundo este autor os interesses dos brancos e as obrigações estabelecidas aos

8 Movimento Negro aqui não é entendido como um grupo homogêneo e livre de conflitos e divergências. Nos referimos a uma fração desse movimento, constituídas principalmente por representantes de entidades ou grupos, bem como militantes e intelectuais que abraçam a questão étnico-racial.

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mestiços fundaram-se as bases da “teoria peculiar” brasileira sobre as relações raciais. Esta

teoria afirmava que a miscigenação não produziria degenerados raciais, mas uma população

mestiça capaz de tornar-se cada vez mais branca, tanto cultural quanto fisicamente.

Assim, se estabeleceu uma definição racial clara que utilizava a miscigenação como

um meio do Brasil branquear a grande massa de negros que constituíam o seu contingente

populacional. O ajuste racial desenvolvido no país, naquele contexto, demonstra o interesse da

elite em dar respostas aos desajustes sociais ocasionados pelas diferentes composições raciais

presentes em nossa formação histórica. O “dilema” brasileiro, para Motta Maués (1997),

refletia a necessidade da elite em construir a nacionalidade brasileira, criando uma imagem

positiva para o país. O ideal pretendido era o de um Brasil que branqueasse a população

negra.

Segundo Motta Maués (1997, p. 221):

“ [...] Diante disso a solução brasileira vai ser a formulação da tese do branqueamento, pedra angular de toda a nossa ideologia racial elaborada pelas elites brancas, a qual, de qualquer forma, continua a se manter de pé até hoje, permeando o pensamento, o discurso e o projeto de branco e não-brancos no Brasil.

A tese ou ideologia do branqueamento representou a solução ideal para as elites

brasileiras enfrentarem a grande ameaça ao futuro da nacionalidade brasileira na transição do

século XIX para o XX. O “dilema brasileiro”, ou melhor, a maioria da população formada por

negros e índios ameaçava o futuro do Brasil. Portanto, era preciso consertar ou reverter a

situação, isto é, tornar o Brasil branco.

De acordo com Skidmore (1976), a referida teoria tinha por base a presunção da

superioridade branca e oferecia aos brasileiros uma explicação para o que acreditavam já estar

em curso com a miscigenação em larga escala. Para este autor o branqueamento foi o coração

do ideal racial brasileiro: “[...] o branqueamento foi o objetivo racial de fato da elite e foi

presente tanto no racismo científico predominante antes de 1914 até a filosofia social de

fundo ambientalista predominante depois de 1930” (p. 222).

De uma invenção dos intelectuais da elite, o branqueamento tornou-se uma ideologia

incorporada pelo Estado. A construção de uma nova imagem para a nacionalidade brasileira, a

partir do branqueamento, conferiu ao Estado uma desenfreada política de imigração que

almejava o quadro de desaparecimento progressivo do negro. O programa imigrantista

brasileiro foi uma medida política do projeto do branqueamento, que consistia em resolver a

questão da mestiçagem por meio da imigração européia.

Ressaltamos que entre os anos finais do século XIX e o inicio do XX, no Brasil, foram

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marcados por um momento de efervescência dos discursos em defesa de um ensino público e

universal. O discurso republicano, na década de 1930, primava pela garantia do ensino

primário obrigatório para todos os brasileiros; no entanto, a escola era pensada a partir de

valores e intenções que estavam longe de corresponder às necessidades reais da sociedade,

pois apresentava um modelo de ensino que preservava os interesses da elite aristocrática

brasileira, portanto, não contemplava a igualdade de oportunidades aos negros, uma vez que a

quase totalidade da população negra estava relegada à pobreza.

O desenvolvimento nacional visava consolidar o projeto de nação brasileira, proposto

pelos republicanos. A educação assumia um importante papel no desenvolvimento de nossa

sociedade, uma vez que a escola era um dos meios que se estabeleciam os parâmetros

culturais do branqueamento da população. Assim, a educação pública instituída visava à

afirmação de conformidade social dos negros quando estes podiam dela usufruir. Gonçalves e

Silva (2000) afirmam que o mundo do trabalho, ou mais precisamente, a necessidade de

trabalhar, afastou tanto os homens quanto as mulheres negras da escola no início do século

XX.

Contudo, para serem aceitos no mercado de trabalho, os/as negros/as precisavam

assimilar os códigos e posturas definidos pela elite branca o que levava a educação a ser vista

como um meio de ascensão social e uma maneira do negro ganhar mais respeitabilidade e

reconhecimento na sociedade (GONÇALVES; SILVA, 2000). Isso implica dizer que a lógica

do branqueamento foi apropriada pelos negros, onde branquear-se, significava ser aceito na

sociedade brasileira, conseguir o falso status, poder de se libertar do estigma do escravizado e

gozar dos direitos da cidadania concedida.

Desse modo, as associações negras como a Frente Negra Brasileira, o Teatro

Experimental do Negro e, seus jornais, de certa forma, pensaram um projeto educacional, o

qual, naquele momento, passou a ser visto como um dos meios de alcançar a igualdade

perante o branco e, por isso, combatia ferozmente o analfabetismo e incentivava a educação

dos negros (GONÇALVES; SILVA, 2000).

Nesse contexto o movimento negro via a educação como uma maneira de se obter

instrução, e, dessa forma, concorrer aos postos de trabalho da época. Segundo Gonçalves e

Silva (2000), a idéia da educação como capital cultural9 era uma estratégia contra o

“esmorecimento” da própria população. Ressalte-se que a primeira fase de organização do

9 Para Pierre Bourdieu (2007), a noção de capital cultural impôs-se, inicialmente, como uma hipótese indispensável para dar conta do desempenho escolar de crianças de diferentes classes sociais, relacionando o “sucesso” escolar, isto é, os benefícios específicos que as crianças de diferentes classes e frações de classe podem obter no mercado escolar, à distribuição do capital cultural entre as classes e frações de classe.

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movimento negro, que data da fundação das associações negras e seus respectivos jornais, nas

primeiras décadas do século XX, não discutiam ainda uma revisão nos currículos escolares. O

que estes queriam naquele momento era pelo menos ter acesso à educação escolar.

Os estudos de Pinto (1993a) indicam que as principais bandeiras de luta do movimento

giravam em torno do papel da educação e da cultura para a vida e para a situação negra, bem

como da tentativa de se encontrar saídas para a sua situação educacional naquele momento. A

educação era tida como a única, ou pelo menos, uma das principais oportunidades do/a

negro/a se integrar à vida nacional, combater a miséria em que vivia e os vícios que os

atormentavam.

A escolarização que os negros reivindicavam os colocou diante de um modelo de

escola eugenizado, pensado pela elite branca, onde branqueou-se o negro no intuito de

garantir a sua presença na escola. O discurso da ressocialização foi utilizado com propósitos

de assimilação dos comportamentos corretos das chamadas sociedades civilizadas.

Sem opção o/a negro/a foi levado a freqüentar uma escola que se pautava basicamente

na formação para o trabalho e na transmissão de uma cultura nacional, que via no

aperfeiçoamento da raça a condição necessária para a salvação da formação social brasileira.

Não nos esqueçamos que a educação era vista como um elemento importante na

tentativa de se reverter o quadro de degeneração racial presente. O projeto educacional

revelava uma educação inspirada em noções de nacionalismo, saúde, higiene e educação

física. Isto nos permite perceber como o discurso sobre raça e nacionalidade aos poucos foi

transformado no Brasil.

O discurso sobre raça e nacionalidade sofreu ainda outra transformação tanto quanto

as preocupações de fundo eugenista, mas adotando a razão freyreana para lhe explicar. A

nova rationale para a sociedade multirracial favorecia uma interpretação de que as diferentes

raças componentes – européia, africana e índia – podiam ser vistas como igualmente valiosas.

(SKIDMORE, 1976).

Gilberto Freyre (2004) argumentava que o Brasil era o único que, dentre as sociedades

ocidentais, possuía uma fusão serena dos povos e culturas européias, indígenas e africanas.

Freyre sustentava que a sociedade brasileira estava livre do racismo que afligia o resto do

mundo. O aspecto do nacionalismo brasileiro e a criação de uma cultura nacional

encontraram, neste autor, o status científico, literário e cultural que vigorou no Brasil até pelo

menos a década de 1990. Freyre organizou sua tese em torno de uma interpretação positiva da

história da miscigenação no Brasil.

Aspectos significativos na construção da narrativa da nação brasileira encontraram na

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ideologia da mestiçagem ou na democracia racial, desenvolvida por Freyre - cujos princípios

mais importantes são: a ausência de preconceito e discriminação racial no Brasil e,

conseqüentemente, a existência de oportunidades econômicas e sociais iguais para brancos e

negros -, o processo de constituição do Brasil desde o período colonial, descrevendo cada um

dos grupos formadores (brancos, negros e índios) e suas contribuições à formação do caráter

nacional.

Pelos argumentos do autor não existiram conseqüências danosas da mistura da raça em

si. Esta, por sinal, deixou efetivas contribuições dos diferentes povos para a formação da

sociedade brasileira. A civilização, etnicamente mestiça, na análise de Freyre, contribuiu para

reforçar o valor do africano como representante de uma alta civilização.

Com base nesses argumentos a elite afirmava que o malogro dos brasileiros de pele

escura devia-se a barreiras sociais e não raciais. O branqueamento e a democracia racial são

construções ideológicas que mantiveram os/as negros/as como um grupo social em condição

de inferior, e os impediram de articular uma consciência negra.

A escola não escapa dessa regra da naturalização do fenômeno das diferenças raciais.

Os padrões estéticos e comportamentais aferidos pela escola não dão conta de privilegiar as

diferenças étnicas e raciais da população que dela faz parte. Desse modo, a relação dos negros

com a escola foi constituída por uma mistura de visibilidade, de forma distorcida,

estereotipada pelo livro didático; e a invisibilidade, garantida pelo esquecimento e também

pela negação do reconhecimento às diferenças e da valorização da história de contribuição

desses sujeitos, demonstrando, de certa forma, a imensa complexidade da maneira de pensar

sobre as relações raciais.

Na escola existe uma “ideologia de invisibilidade do negro”, ou do seu “recalque”,

enquanto um dos elementos formadores da sociedade brasileira (SILVA, 1996). A

representação do negro e das mais diversas culturas sempre foi tratada na escola como uma

imagem padronizada da igualdade, marcadas essencialmente pelo caráter monocultural.

Preconceitos e diferentes formas de discriminação sempre estiveram presentes no cotidiano

escolar e, há pouco tempo, começaram a ser problematizados, desvelados ou desnaturalizados.

As instituições de ensino se configuram como espaços privilegiados da produção e da

reprodução da desigualdade e tem entre seus mecanismos de sustentação de poder, a

seletividade dos conteúdos curriculares, o currículo oculto, a invisibilidade e o recalque da

imagem e cultura dos segmentos sem prevalência histórica na nossa sociedade (SILVA,

1996). Mas, a escola também é um espaço potencialmente capaz de transformar o que está

posto e enfrentar as desigualdades raciais, problematizar os preconceitos.

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O currículo escolar ainda reflete os efeitos do processo de branqueamento da

população brasileira; é baseado em uma formação eurocêntrica que representa inúmeros

interesses sociais na forma escolhida de transmitir os conhecimentos. Apple (1982) alerta

sobre os pressupostos ideológicos expressos na organização curricular que fixam, em nosso

universo social, valores e princípios que passam a se constituir como verdades absolutas e,

que de forma surpreendente asseguram a ordem social vigente.

Silva (2002, p. 192) também entende que o currículo é utilizado como agente de

produção e reprodução da desigualdade étnica e racial e afirma: “[...] o curriculo é, sem

dúvida, entre outras coisas, um texto racial”, que omitiu os interesses dos grupos oprimidos

ou discriminados racialmente, desenvolvendo nos negros a dificuldade de assumirem a sua

identidade racial.

Outro instrumento importante do processo de branqueamento é o livro didático, que,

sendo um material pedagógico importante no processo escolar, apresenta uma visão

estereotipada da sociedade e do mundo. Silva (2004), ao analisar livros de língua portuguesa

de Ensino Fundamental, verificou que as “ideologias de inferiorização e do branqueamento”

predominam no livro didático e afirma:

[...] O livro reproduz o ideal da ideologia do branqueamento que prevê, num tempo mínimo, o desaparecimento do povo negro da sociedade brasileira, seja através da miscigenação induzida, seja pela prática da política de abandono e outros processos já mencionados, que objetivam a eliminação da “mancha negra” da sociedade brasileira (SILVA, 2004, p.78).

O livro didático, portador dessa ideologia, ao ser utilizado na escola internaliza, no/a

negro/a e na sociedade em geral, a noção de sua inferioridade, na medida em que promove o

ideal branco como o modelo de humanidade e perfeição. Isso provoca no/a negro/a o

esfacelamento de sua identidade, a rejeição à história do seu povo e o enfraquecimento da

desconstrução do racismo.

A educação escolar, de viés racista e elitista, contribuiu significativamente para

colocar o/a negro/a à margem da sociedade, reforçando a baixa-estima das crianças negras e,

muitas vezes, empurrando-as para o fracasso e à evasão escolar. Nesse sentido, a educação

escolar no Brasil se baseou em um tipo de formação que privilegiava a cultura branca

européia, que dava visibilidade distorcida ao negro, negando o racismo e as discriminações

sofridas pelos negros no processo de escolarização.

Entretanto o modelo de escola e currículo baseados em um padrão eurocêntrico passou

a ser criticado e questionado quando militantes do movimento negro e intelectuais

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comprovaram que tal modelo já não se adequava à realidade brasileira. Estudos como os de

Rosemberg (1987); Hasenbalg (1987); Hasenbalg e Silva (1993), que tratam de relações

raciais e rendimento escolar apontaram inúmeras causas para a situação discrepante que

separava brancos e negros do sucesso escolar.

Rosemberg (1987) constatou que as crianças negras são as que mais repetem bem

como são as que mais sofrem com a exclusão dos sistemas de ensino. A esse respeito, são

valiosas as contribuições de Munanga (2005, p. 16):

[...] Não precisamos ser profetas para compreender que o preconceito incutido na cabeça do professor e sua incapacidade em lidar profissionalmente com a diversidade, somando-se ao conteúdo preconceituoso dos livros e materiais didáticos e às relações preconceituosas entre alunos de diferentes ascendências étnico-raciais, sociais e outras, desestimulam o aluno negro e prejudicam seu aprendizado. O que explica o coeficiente de repetência e evasão escolar altamente elevado do alunado negro, comparativamente ao do alunado branco.

A evasão e a repetência das crianças negras foram os fatores que mais contribuíram

para a crítica à escola brasileira, por parte do movimento negro. Foi do movimento negro ou

de pesquisadores brancos ou negros que procuravam respostas para os efeitos marcantes da

desigualdade entre brancos e negros, que vieram as primeiras denúncias e dados que

comprovariam a escola como embranquecedora, na medida em que não reconhecia a presença

das diversas culturas, em especial da cultura africana e afro-brasileira.

As lutas de pesquisadores do movimento negro, entre outros, pretendiam estabelecer

outra característica para a sociedade, mediada basicamente pela particularidade cultural, onde

se buscava conquistar direitos aos negros. A maior parte das críticas em relação aos efeitos

raciais da educação se concentra nos estudos dos demonstrativos de mobilidade social de

brancos e negros no Brasil. Hasenbalg e Silva (1990) apontaram que as condições de acesso,

mesmo que por meio de políticas universalizantes orientadas pelo Estado, ainda

demonstravam clara diferença de oportunidade para brancos e negros.

A partir da tomada de posição, contrária à educação “embranquecedora” teve inicio

um fenômeno que se tornou cada vez mais presente na lutas dos negros: a luta pela afirmação

da identidade. O/a negro/a não deseja mais apenas se educar, começava a reclamar uma

educação escolar que respeitasse sua cultura e sua história (PINTO, 1993b).

O debate sobre a identidade atravessou várias décadas, sendo reforçado por

organizações negras, porém, Pinto (1993b) afirma que a partir da década de 1970, as

preocupações com as questões dos movimentos de resistência e da participação do negro na

história do Brasil, das figuras negras eminentes, entre outras, ficam mais evidentes no campo

educacional. O debate sobre a inclusão de conteúdos afro-brasileiros e africanos nos

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currículos escolares começara a se destacar a partir desse momento.

A compreensão dos efeitos culturais da educação inseriu o movimento negro na luta

pela afirmação de sua identidade, com a preocupação da sua história e com a maneira pela

qual ela vinha sendo transmitida nas escolas. Esta era a bandeira de luta que, de certa forma,

aparecia nas manifestações das primeiras organizações negras do início e metade do século

XX e, que voltava com mais evidência.

A partir das décadas de 1970 e 1980 o movimento negro adotou uma estratégia mais

politizada de denuncia aberta à discriminação racial e ao racismo na sociedade brasileira e, em

particular, na escola. Neste período, o movimento negro estabeleceu o 20 de novembro como

a data máxima de empenho político dos negros, representando o resgate de sua identidade

étnica a favor da desfolclorização de sua cultura e pelo reconhecimento do legado africano

para a construção do Brasil, para que , desta forma, se efetive a construção de uma sociedade

pluriracial e pluricultural.

Pensar a educação do ponto de vista do povo negro, conforme afirma Gomes (1997, p.

24):

[...] é compreender que o processo de exclusão deste segmento étnico/ racial não acontece somente em nível ideológico, que se faz notar na reprodução de estereótipos racistas nos livros didáticos, na baixa expectativa do professor em relação ao aluno negro, na veiculação de teorias racistas, na folclorização da cultura negra, mas também na existência de um sistema de ensino pautado em uma estrutura rígida e excludente que representa campo fértil para a repetência e a evasão.

Historicamente o movimento negro enfrentou várias batalhas para que os/as negros/as

tivessem garantido o acesso à educação e combater uma identidade estigmatizada, herdada do

período escravista. Além disso, foi preciso enveredar por uma luta bem mais difícil –

construir uma identidade não estigmatizada, necessária para a consolidação de um grupo

étnico no sentido político. Esta afirmação identitária fez com que a luta pela inclusão do

estudo da história e da cultura negras nos currículos escolares possibilitasse a aceitação da

identidade cultural dos/as negros/as.

Nos momentos de maior ou menor expressão, o movimento negro, ainda que não

homogêneo e livre de conflitos internos, não somente apresentou criticas e reivindicações,

mas conseguiu apontar suas propostas educacionais com problematizações teóricas e ênfases

específicas para a educação brasileira (GOMES, 1997).

Mesmo com todo o empenho e organização a partir da década de 1940 os movimentos

negros, caminharam para uma aparente extinção, visto que o discurso racial da época não

oferecia nenhuma perspectiva de reorganização e progresso para a população negra (CUNHA

JR., 1992). De acordo com Gonçalves e Silva (2005), na década de 1950 intelectuais e

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militantes negros, como Roger Bastide e Florestan Fernandes se aproximaram das

organizações negras e iniciaram estudos que denunciavam o nosso paraíso racial. Além disso,

o Teatro Experimental Negro (TEM), liderado por Abdias do Nascimento fez da educação

uma das maiores bandeiras de luta em prol da raça negra.

Na década de 1970 houve uma retomada dos questionamentos do mito da democracia

racial e iniciou a discussão sobre a obrigatoriedade da história e cultura afro-brasileira e

africana nos currículos escolares. O debate sobre os negros e a educação aumentou em 1988,

com o Centenário da Abolição, quando foram desenvolvidos nas diferentes regiões e estados,

vários eventos que punham em debate a problemática da educação dos negros.

Todo o processo de disputas e debates por uma educação escolar que possibilite aos

negros a valorização de sua história, cultura e identidade positiva, bem como o direito de se

reconhecerem na cultura nacional, que começou ainda nas primeiras décadas do século XX,

levou à promulgação da Lei n°. 10.639/2003 e à aprovação das Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura

Afro–Brasileira e Africana (DCNERER), por meio do Parecer 03/2004 e Resolução CNE/CP

01/2004, que visam à divulgação e à produção de conhecimentos e atitudes, posturas e valores

que eduquem cidadãos respeitando igualmente, seus direitos e assim consolidando a

democracia brasileira.

A partir da promulgação da Lei anti-racista, a LDB nº. 9.394/96 passou a vigorar

acrescida dos seguintes artigos:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro- Brasileira. § 1ª - O Conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política, pertinentes à História do Brasil. § 2ª - Os Conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra” (BRASIL, 2003).

O artigo 26ª, mais que a inclusão de novos conteúdos, exige o repensar das relações

étnico-raciais, sociais, pedagógicas e procedimentos de ensino. As DCNERER propõem a

ampliação do foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e

econômica; trazem um novo norte para as ações dos sistemas e estabelecimentos de ensino a

partir dos seguintes princípios: consciência política e história da diversidade, fortalecimento

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de identidade e de direitos, ações educativas de combate ao racismo e à discriminação. Este

último princípio propõe entre os conteúdos do ensino de História Afro-brasileira:

[...] a história dos quilombos, a começar pelo de Palmares, e de remanescentes de quilombos, que têm contribuído para o desenvolvimento de comunidades, bairros, localidades, municípios, regiões (exemplos: associações negras recreativas, culturais, educativas, artísticas, de assistência, de pesquisa, irmandades religiosas, grupos do Movimento Negro) (BRASIL, 2004, p. 12).

Para o trato com esses conteúdos, as DCNERER recomendam que os sistemas de

ensino e instituições de Educação Básica, desde a Educação Infantil ao Ensino Superior,

providenciem: “Registro da História não contada dos negros brasileiros, tais como

remanescentes de quilombos, comunidades e terreiros negros urbanos e rurais” (BRASIL, 2004,

p .13)

Considerando a história de luta dos/as negros/as por uma educação que ofereça aos

estudantes negros/as a possibilidade de questionar e desconstruir os mitos de superioridade e

inferioridade entre os seres humanos, que não reproduza o preconceito e respeite as matrizes

culturais a partir das quais os/as educandos/as constroem sua identidade e, tendo em vista o

principio das ações educativas de combate ao racismo expresso nas DCNERER, centramos

agora nossa análise no processo de escolarização na comunidade do Abacatal no sentido de

verificarmos as primeiras iniciativas de alfabetização na comunidade, em que circunstancias a

escola foi construída no interior de Abacatal e como os moradores contribuem para mantê-la.

3.2 INICIATIVAS DE ALFABETIZAÇÃO EM ABACATAL

Para a população quilombola brasileira o acesso à educação é um direito fundamental

do qual não abre mão e, há muito se organiza para ter essa demanda atendida pelo poder

público. A lei n. 10.639 de 2003 que institui, no currículo escolar, o ensino da “História e

Cultura Afro-Brasileira e Africana”, embora não seja específica para quilombos, apresenta a

possibilidade de se construir propostas de escolarização para quilombolas, pois não se pode

falar de história e cultura afro-brasileira sem abordar a formação dos quilombos.

Os resultados de estudos sobre a educação de negros no Brasil ainda são

desanimadores. O Relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) de 2009

revela que embora o acesso à educação tenha sido ampliado, ainda existem crianças e

adolescentes fora da escola. Os 2,4% excluídos do sistema escolar representam cerca de 680

mil crianças de 7 a 14 anos. As mais atingidas são as oriundas de populações vulneráveis,

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como as negras, indígenas, quilombolas, pobres, sob risco de violência e exploração, e com

deficiência.

Do total de crianças excluídas da escola, cerca de 450 mil são negras e pardas. A

maioria vive no Norte e Nordeste, regiões que apresentam os mais altos índices de pobreza do

país e as menores taxas de escolaridade. Dados do censo escolar 2008 indicam que o número

de escolas localizadas em áreas remanescentes de quilombos cresceu em relação aos anos

anteriores. Mas, segundo o Unicef (2009) a educação oferecida nessas comunidades em geral

é bastante precária. “As escolas freqüentemente estão muito distantes das casas dos alunos,

não apresentam infra-estrutura adequada ao seu funcionamento e poucas conseguem oferecer

o Ensino Fundamental completo”.

� Educação Quilombola: em busca de um caminho próprio

Garantir a educação escolar às populações quilombolas, no lugar onde vivem,

respeitando sua história e suas práticas culturais é um dos pressupostos fundamentais para

uma educação anti-racista. A implementação da Lei 10639/03 não se restringe ao espaço

escolar das comunidades quilombolas, todavia, os esforços para a garantia de uma educação

que contemple as particularidades étnicas, culturais e políticas dessas comunidades é uma das

formas de cumprimento da lei, visto que a sua trajetória histórica constitui o exemplo da

resistência/persistência da cultura afro-brasileira. Portanto, a estruturação e o

acompanhamento da educação quilombola e a efetivação da Lei 10.639/ 03 em todo o sistema

público de ensino devem ser entendidas como ações interdependentes. Há um longo caminho

a percorrer, tanto no sentido de romper o silêncio e a invisibilidade histórica que acompanham

a trajetória dessas comunidades, como reconhecer a importância da cultura afro-brasileira e a

longa história de luta dos afro-brasileiros por dignidade e cidadania.

As populações quilombolas hoje contam com algumas políticas que, em certa medida,

atendem as suas reivindicações. Contudo, o Instituto de estudos Socioeconômicos (Inesc)

concluiu uma pesquisa que revela a baixa execução orçamentária de recursos previstos para a

promoção dos direitos das comunidades quilombolas e afrodescendentes. De acordo com a

pesquisa, metade das verbas federais destinadas para políticas públicas nas comunidades

quilombolas não foi efetivamente utilizada nos últimos anos. A não aplicação dos recursos na

área da educação contribui para manter situações de desrespeito aos direitos dos

remanescentes de quilombo.

Arruti (2009) chama atenção para o fato de que das linhas de Ação do Programa Brasil

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Quilombola (PBQ) de 2006 – que concentrou todo o orçamento federal dirigido a essas

populações – duas são relativas à regularização fundiária, duas ao tema do desenvolvimento

local e sustentável e quatro são relativas à educação. Mas isso não significa que a educação

receba metade dos recursos do programa, visto que os custos relativos à regularização

fundiária e à promoção do desenvolvimento são maiores. A Secretaria de Educação

Continuada Alfabetização e Diversidade (SECAD) organiza as ações dirigidas às

comunidades quilombolas contemplando: (a) apoio à formação de professores de educação

básica; (b) apoio à distribuição de material didático para o ensino fundamental; (c) apoio à

ampliação e melhoria da rede física escolar nas comunidades; (d) a capacitação de agentes

representativos das comunidades. O referido autor observa que a educação está entre as linhas

de ação do PBQ, mas ainda não está claro qual a educação.

Embora ainda não haja uma clara definição do que seja a educação quilombola, os

movimentos negros quilombolas, sobretudo em Pernambuco, no Paraná e em Santarém (PA)

têm questionado a educação desenvolvida nas suas comunidades. Encontros e seminários,

com a participação de docentes, discentes, gestores/as de escolas quilombolas e lideranças das

comunidades vêm ampliando a discussão e apresentando propostas para a educação escolar

que desejam.

Entre os anos de 2007-2008, foram realizados encontros de educadores/as quilombolas

em várias comunidades de Pernambuco, para refletir sobre como deve ser a escola

quilombolas. Os debates resultaram na elaboração da Carta de Princípios da educação escolar

de Pernambuco, devendo a mesma ser aprofundada e ampliada por outras comunidades

daquele Estado e servir de referência para remanescentes de quilombo de outros Estados.

A Carta foi discutida e aprovada em março de 2008, após várias consultas e discussões

nas comunidades e expressa o tipo de escola os grupos quilombolas almejam:

1- Uma educação escolar que forneça e participe da luta pela regularização dos

nossos territórios tradicionais; 2- Que seja presente e participativa na vida da comunidade, reconhecendo e

respeitando todos os espaços onde nossas crianças e jovens aprendem e se educam, como raça, na pescaria, nas festas tradicionais, nas reuniões comunitárias, nos terreiros das casas das pessoas mais velhas;

3- Que reafirme nossa história de resistência, nossa identidade étnica, nossos saberes e nosso jeito próprio de ensinar e aprender;

4- Que os professores e as professoras sejam quilombolas da própria comunidade, engajados na luta e pesquisadores de sua história;

5- Que seja garantida formação especifica e diferenciada para os professores e as professoras quilombolas;

6- Que o currículo seja elaborado pela própria comunidade garantindo os conteúdos específicos de cada quilombo e a interculturalidade;

7- Que eduque para o cuidado com o meio ambiente e com o patrimônio cultural presente em nossos territórios;

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8- Que esteja voltada para o desenvolvimento sustentável de nossas comunidades, para que nossa juventude permaneça em seu território tradicional garantindo a continuidade da nossa existência e das nossas lutas;

9- Que o modelo de gestão e funcionamento seja de acordo com o jeito de ser e de organizar de cada quilombo;

10- Que a merenda seja de acordo com a cultura alimentar de cada quilombo; 11- Que tenha material didático escrito e ilustrado pelo povo quilombola; 12- Estrutura física adequada ao jeito de ser e a geografia da cada quilombo,

observando o cuidado com o meio ambiente; 13- Que seja garantida uma legislação especifica para a educação escolar

quilombola que nos assegure esse direito e principalmente seja elaborada com a participação do movimento quilombola;

14- Que seja garantida a participação dos quilombolas através de suas representações próprias em todos os espaços deliberativos, consultivos e de monitoramento da política publica e de demais temas que nos interessa diretamente, conforme reza a legislação em vigor e a Convençao 169 da OIT;

15- Que qualquer organização, seja governamental ou não respeite a nossa autonomia e nos consulte sobre qualquer projeto, ação, evento que afete diretamente a nossa vida.

O tipo de escola expressa no documento traz uma concepção de educação dialógica,

fundamentada numa compreensão problematizadora do ato de conhecer e a intecionalidade de

mudar o mundo, defendida por Freire (1987). O item 3: “ Que reafirme nossa história de

resistência, nossa identidade étnica, nossos saberes e nosso jeito próprio de ensinar e

aprender”; demonstra uma abordagem de ensino inspirada nas idéias de Freyre (1996), que

coloca como fundamental o respeito à história e aos saberes dos/as educandos/as, o

desenvolvimento da autonomia, a disponibilidade para o diálogo. No item 4, o documento

propõe que os professores sejam da própria comunidade, nesse aspecto, entendemos que

Abacatal esteve a frente de muitas comunidades quilombolas do Brasil, visto que desde a

década de 1980 as professoras são moradoras do lugar, uma conquista que se deve às lutas das

famílias pela educação de suas crianças. Nesse sentido, enfocamos as lutas dos moradores Abacatal para permanecerem na

terra que “herdaram” de seus antepassados, pelo reconhecimento da comunidade como

remanescente de quilombo e pela criação e manutenção da escola na própria localidade. Para

instigar a memória dos sujeitos utilizamos entrevistas de questões abertas e descritivas,

elaboradas a partir de um roteiro cujo corpo compreende a origem da família do intérprete, a

formação histórica do lugar, origem da terra e relações com a com a escola e com a sociedade

circundante, o que nos permitiu optar pela narrativa na tradição oral, pois nas palavras de

Thompson (1992, p.41):

O uso da voz humana, viva, pessoal, peculiar, faz o passado surgir no presente de maneira extraordinariamente imediata. As palavras podem ser emitidas de maneira idiossincráticas, mas, por isso mesmo, são mais expressivas. Elas insuflam a vida na história.

O desafio de um trabalho com fontes orais está na possibilidade de apreender as

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tensões entre grupos sociais e os sujeitos individuais nos contextos em que elas são

produzidas. As fontes orais oferecem potencialmente elementos que permitem apreender as

dinâmicas dos grupos e dos sujeitos em seus afazeres, valores, normas, comportamentos.

Apreender tudo isso, significa trabalhar com a complexidade da realidade social como um

todo e escolar em particular.

A tradição oral ainda constitui um patrimônio predominante na comunidade e há uma

escassez de documentos escritos sobre sua história. Com a pesquisa, nos aproximamos do

grupo e tivemos a oportunidade de conhecer melhor o conjunto de valores sociais, religiosos e

educacionais veiculados por esta oralidade, os momentos significativos da trajetória histórica

dessa comunidade, bem como as formas de transmissão de saberes. E, principalmente como

esse patrimônio tem sido utilizado para construir, manter e ressignificar a identidade deste

grupo quilombola.

� O ensino das “primeiras letras” em Abacatal Os moradores de Abacatal recordam que antes de haver uma escola na comunidade,

estudar era quase impossível porque as escolas mais próximas ficavam, no mínimo, a seis

quilômetros de suas casas e, como ainda não havia a estrada, o acesso era muito mais difícil

do que é atualmente. As famílias se preocupavam com a educação das crianças e, para

alfabetizar seus filhos, contavam com uma professora, que não morava na comunidade, mas

vinha para ensinar a ler e escrever. Santana (2010) evoca a memória de seus pais para falar

sobre a experiência de alfabetização na comunidade antes da criação da escola:

[...] uma professora que dava aulas na casa do senhor Manoel Trindade, lá longe. Ela ensinava a ler e escrever. Era um mês numa casa outro mês noutra. Então quem tinha interesse estudava. Meu pai contava que todos estudavam com ela: meu pai, meu primo que é o Firmino e até meu irmão, o Raimundo, estudava com ela, na casa das pessoas, porque não tinha estrada, só era um caminho e não tinha escola [...] mas sempre teve a professora que ensinou muita gente, meu pai, meu primo e outros. Mamãe conta que meus irmãos iam pelo caminho do igarapezinho para estudarem com ela.

Santana fala a partir do que ouviu de seus pais, mas aponta as dificuldades e limitações

do estudo: a casa de um morador, a professora de fora, o rodízio do lugar onde as aulas

aconteciam, o pouco tempo de estudo. Segundo os depoimentos dos/as interlocutores/as, em

Abacatal, essa situação manteve-se até a década de 1970, quando a prefeitura criou a escola

no interior da comunidade.

As narrativas dos/as interlocutore/as demonstram que há uma memória coletiva

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(HALBWACHS, 2006), pois as lembranças são compartilhadas. Assim, as recordações do

senhor Benedito associam-se às de Santana quando fala da professora que ensinava a ler e

que estudou pouco:

Eu estudei pouco. Não tinha escola aqui, me lembro que era uma professora que vinha, mas eu ia pra roça ajudar meu pai, então quase não estudei. Foi com essa professora. Eu já era grandinho, tinha uns treze anos, aprendi um pouquinho. Meu irmão foi que estou um pouco mais porque foi pra Belém, ficou na casa de uns parentes e lá estudou. Aqui, naquele tempo, pouca gente teve educação porque pra estudar tinha que sair daqui.

Senhor Benedito, ao falar de sua experiência de alfabetização, às vezes, lança um olhar

distante como se estivesse buscando visualizar, ou visualizando mesmo aqueles momentos e

diz: “minha cabeça anda meio ruim, mas eu lembro de muita coisa”. Embora não consiga

precisar os anos dos acontecimentos, pois os situa: “antigamente” ou “naquele tempo” pelas

rememorações do senhor Benedito percebemos que a educação está associada ao estudo, à

leitura e à escrita. O estudo é muito valorizado conforme evidencia Santana (2010) ao fazer

referência ao fato dos moradores terem pouco ou nenhum estudo na época dos conflitos pela

terra:

A escola é super importante. É muito ruim não saber ler. No tempo do Luis Mesquita foi muito difícil ir contra o que ele dizia, porque nós não tínhamos estudo, não tivemos condição de ir lá pra fora para estudar e nós não tínhamos parente lá fora para nos ajudar. Ele falava bonito e os idosos confiavam nele [...] o estudo faz falta. Por isso é muito bom ter a escola aqui dentro. Mas na comunidade ainda tem pessoas que não sabem ler. Passam uma dificuldade e, às vezes, são enganadas.

As conversas com os/as interlocutores/as e as observações que fizemos nos permitem

afirmar que os moradores associam educação ao estudo das letras, isto é, a aprendizagem da

leitura e da escrita, dos conhecimentos escolares. Contudo, verificamos também que

valorizam os saberes que circulam nas práticas cotidianas, em diferentes espaços no interior

de Abacatal, como a roça e a casa de farinha. Dona Ana (2009) ao comentar o trabalho nesses

espaços aponta processos de aprendizagem na produção da farinha de mandioca:

A mandioca tem os meses de plantar e de colher. Não pode arrancar antes do tempo porque não presta pra fazer a farinha. Antes de plantar é preciso preparar a terra, limpar o terreno. Pra fazer a farinha pode ralar ou deixar a mandioca de molho, que faz a farinha d’água que nos chamamos. Deixa de molho e quando tiver bem molinha esfarela, espreme pra tirar o tucupi, passa na peneira e leva pra torrar. O fogo tem que ter cuidado. Não pode deixar ficar muito quente senão queima. É assim: quando o fogo pega, a gente espera um pouco pra esquentar o forno e aquela chapa de cima, depois afasta um pouco os paus que é pro fogo manter o forno aquecido, mas não muito. Espalha a massa e mexe com o rodo. Tem que ficar mexendo com jeito pra não queimar, mas também pra não ficar crua. Por isso que não é qualquer um que torra farinha, tem que saber. Na casa de farinha, trabalha a família. É o pai, a mãe, os filhos e, os filhos casados já levam a mulher. Os pequenos também vão com a mãe, ficam por ali brincando ai já pega uma mandioca pra descascar, vai buscar uma lenha pro fogo e vai vendo as coisas e quando cresce já sabe fazer farinha.

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Outros saberes que circulam na comunidade estão relacionados à mata. Senhor

Benedito destaca os saberes da manipulação de ervas para fazer remédios, quando lembra das

“remedeiras”

Na mata tem plantas usadas pra remédio. Aqui nós já tivemos boas remedeiras. Elas sabiam que folha, que raiz, que casca, que seiva servia para cada doença. Sabe como é aqui tudo é longe e difícil então quando uma pessoa tinha um dor, uma doença, a remedeira ensinava um chá, um emplasto, um purgante, uma coisa assim. Dá certo porque hoje ainda usamos coisas da mata pra remédio. Aquele rapaz que veio com a senhora, ele sabe fazer esses remédios e até vende em Ananindeua. Aprendeu com a mãe dele.

Santana também faz referência a saberes que não se restringem à escola, são os

aprendidos nas vivências na comunidade e fora dela, na militância no movimento quilombola,

na luta pela terra:

É como eu digo, não tenho estudo, mas tenho muita vontade de aprender e já aprendi muito, participando de reuniões, de encontros, congressos. Coisas que não aprendi na escola, mas sim com a vida. Fazendo. Na nossa luta pela terra, eu aprendi que não devemos baixar a cabeça e deixar que nos humilhem. Aprendi também com os missionários, através das escrituras, que a terra é de que vive nela e produz para seu sustento. No domingo, após a missa, faziam reunião para discutir os problemas e decidir os encaminhamentos. Assim fomos aprendendo, abrindo os olhos, tendo esclarecimento através da palavra de Deus e fortalecendo a luta.

Grande parte dos saberes de Santana foram adquiridos nas vivências no interior da

comunidade e nas relações estabelecidas com agentes externos, como “os missionários”. Sua

narrativa revela uma educação que está para além da escola, pois como afirma Brandão

(2004) ninguém escapa da educação. Seja na casa, na rua, na igreja, nos movimentos sociais

ou na escola, homens e mulheres atrelam suas vidas à educação para aprender, ensinar,

aprender-ensinar. A educação está sempre presente na vida do ser humano e mistura-se ao ser

para orientá-lo para saber, fazer, ser e conviver.

Do mesmo modo como não existe uma única representação de homem, também não

existe uma única forma de educação. Para Brandão (2004), há uma diversidade de meios,

lugares e agentes que participam do processo de educação. Cada grupo cria seus modos de

formar seus membros, ou melhor, a formação de uma pessoa deve ser útil à sua inserção no

grupo e dele deve compartilhar seu pertencimento.

Em Abacatal identificamos diferentes espaços e práticas educativas e percebemos que

os moradores têm satisfação em falar dos seus saberes. Entretanto, o estudo representa a

possibilidade de melhoria de vida, de aquisição de um emprego, de comunicação escrita e oral

com o outro, melhorando as relações sociais. E, como os mais velhos não tiveram

oportunidade de estudar, fazem questão que as crianças e os jovens estudem.

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Por isso insistiram tanto para ter a escola na comunidade. As professoras, que iam à

comunidade, ensinavam ler, escrever e contar, mas não era fácil conseguir alguém que

aceitasse fazer esse trabalho e, as famílias desejavam que seus filhos não ficassem somente

com a alfabetização. Queriam a educação escolar num local de fácil acesso a todos. Para

tanto, doaram uma área destinada à construção da escola. Além disso, a escola é uma

conquista política, uma maneira de evitar a dispersão do grupo, visto que os poucos que saiam

para estudar raramente voltavam para a comunidade.

Os depoimentos, em várias ocasiões, reforçam que a história da escola esta

diretamente associada à história da comunidade. Lembram, por exemplo, que no momento de

grande tensão na comunidade que foi durante a derrubada de casas, a escola já existia e,

inclusive foi ocupada por jagunços na primeira tentativa de despejar os moradores. Senhor

Benedito recorda que a escola deixou de funcionar nessa ocasião porque os professores eram

de fora e ficaram amedrontados:

Da primeira vez que teve derruba de casas, tomaram a escola. Os jagunços ficaram lá alojados. Não teve mais aula porque foi aquela confusão toda e eles ficaram lá. Davam tiros para meter medo em nós. A coisa foi feia mesmo! Os professores, que não eram daqui, não vinham porque ficaram amedrontados. Nós ficamos também, mas era preciso enfrentar a situação e nós enfrentamos.

O depoimento de Santana reafirma a ocupação e a derrubada da escola por jagunços:

O Luis Mesquita – o segundo que quis tomar as terras - fez de tudo para nos tirar daqui. Para convencer as pessoas prometeu que ia fazer uma vila, a Vila da Paz, toda organizada, com escola e tudo. Mas isso era só para iludir. Na verdade ele falsificou documento de propriedade e veio um oficial de justiça com a polícia e os homens com trator para nos expulsar daqui. Foram derrubando as casas. Já tinha a escola de alvenaria, com duas salas e a cozinha. E quando foi da derruba das casas eles derrubaram a escola também, mas depois foi construída pela prefeitura.

Para os moradores a derrubada das casas e da escola representava o cumprimento das

ameaças de expulsa-los da terra. Não ter estudo os deixava mais fragilizados visto que não

conheciam os meios para se defender, também por isso insistiram tanto para que a escola

ficasse no interior da comunidade.

3.3 A ESCOLA EM ABACATAL

A historiografia das instituições escolares ganhou novas roupagens nas últimas

décadas, provavelmente em decorrência das mudanças nas abordagens históricas, sobretudo

por influencia do movimento dos Analles. No entanto, é preciso alguns cuidados para não

deixar-se seduzir pelas fontes e não tratá-las adequadamente. Nesse sentido, Buffa e Nosella

(2009) apresentam suas considerações sobre o que justifica as pesquisas sobre instituições

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escolares, ou melhor, por que fazer a História de uma Instituição Escolar? A resposta não é

simples e, segundo esses autores é preciso considerar:

� O diferenciado universo das instituições escolares, pois pertencem a redes de ensino

(publica municipal, estadual e federal; privada) e atuam em diferentes níveis de ensino: da

Educação Infantil ao Ensino Superior;

� a origem, visto que as instituições escolares podem se originar das políticas

educacionais, das conquistas dos movimentos sociais, de iniciativas de grupos empresariais

ou confessionais e outros;

� O público que freqüenta as instituições escolares, pois os sujeitos levam consigo uma

cultura e um conjunto de valores que podem estar muito próximos ou muito distantes da

cultura escolar oficial;

� A maneira como as políticas educacionais entram nas escolas, visto que pode haver

acomodação ou resistência de modo que a materialização das políticas é própria de cada

instituição. Estes são alguns argumentos para se afirmar que uma instituição escolar, que

ocupa um espaço geográfico específico, que se expõe para a sociedade desde sua arquitetura,

tem sua identidade própria, sua singularidade. A singularidade de uma escola torna relevante

a pesquisa sobre ela. Os historiadores das instituições escolares apontam, dentre outras razões,

que suas preocupações não são apenas as de registrar o passado e/ou o presente, por meio de

uma narrativa baseada em fontes, mas de compreender e interpretar a própria educação

praticada em uma dada sociedade e que se utiliza das escolas, como um espaço privilegiado

para executá-la. A singularidade das instituições educativas demonstra como ocorreu e/ou

ocorre o fenômeno educativo escolar de uma sociedade.

Nesse sentido, adentrar o interior de uma Instituição Escolar, ir em busca das suas

origens, seu desenvolvimento no tempo, as alterações arquitetônicas pelas quais passou é ir

em busca da identidade dos sujeitos (professores, gestores, alunos, técnicos e outros) que a

habitaram, das relações sociais que ali se deram, e tentar entender o sentido daquilo que elas

formaram, educaram, instruíram, criaram e fundaram, isto é, entender o sentido da sua

identidade e da sua singularidade (BUFFA; NOSELLA, 2009). Assim, podemos adiantar que

a singularidade da escola de Abacatal é ser uma escola numa comunidade quilombola, que foi

criada pelo poder público e se mantém na localidade em virtude das mobilizações dos

moradores.

Optamos por estudar essa instituição escolar a partir da memória dos sujeitos que

compõe ou que moram na comunidade e tem aproximações com a história do lugar e da

escola. Em Memória e Sociedade - Lembranças de Velhos, Bosi (1994) questiona qual a

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função da memória. Ela responde que a memória não reconstrói o tempo, não o anula

tampouco, mas faz cair uma barreira que separa o presente do passado e do futuro, lançando

uma ponte entre o mundo dos vivos e do além, ao qual retorna tudo o que deixou à luz do sol.

Enfatiza a autora que este trabalho é uma evocação: “o apelo dos vivos à vinda à luz do dia,

por um momento, de um defunto. É também a viagem que o oráculo pode fazer, descendo, ser

vivo, ao país dos mortos para aprender a ver o que quer saber” (...) (BOSI, 1994, p.89).

Portanto, derrubar o muro entre o passado e o presente é uma maneira de eternizar a história

na comunidade e na escola de Abacatal.

Memória, como defende Halbwachs (2006), é coletiva. E, por ser coletiva, envolve

memórias individuais. Assim, os fatos e as noções que temos mais facilidade em lembrar são

de domínio comum, aqueles que também foram comuns a outros elementos do grupo.

Portanto, a memória individual tem sentido no que tem de coletivo, pois a consciência é um

fato social. Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, conforme

pude verificar durante as entrevistas. Os principais acontecimentos da comunidade foram

lembrados e confirmados pela maioria dos entrevistados. Com a somatória das lembranças

individuais é possível entender o significado coletivo, uma vez que é a soma das

individualidades que estabelece o todo, tanto no que diz respeito à história de Abacatal quanto

à escola existente nessa comunidade.

Ao se recordarem do momento de construção da escola os/as interlocutores/as se

reportam para o tempo em que faziam o caminho das águas para se comunicarem com outras

localidades e comercializarem seus produtos e lembram das mudanças ocorridas com a

abertura da estrada.

Por muito tempo o meio de comunicação dos moradores de Abacatal com Belém era o

rio. O ritmo de suas vidas pautava-se pelas marés e luas: “ia numa maré e voltava na outra”

conforme os avós de Santana lhes diziam e ela nos conta. Em suas canoas seguiam pelo rio

Uriboca, depois pelo rio Guamá até Belém, criando situações de contatos, de trocas e relações

comerciais. Esse tempo está no imaginário carregado de bonança, pois como recorda dona

Ana, “tinha muita caça, muito peixe”, na mata encontravam “madeira de lei, muito açaí e

outras frutas”.

A partir de 1908 com a inauguração da Estrada de Ferro Belém-Bragança, Abacatal

teve suas formas de comunicação alteradas, pois passou a utilizar a estrada ferroviária entre

Marituba e Belém. Mas a rota das águas não deixou de ser usada, visto os moradores

navegavam pelo igarapé Uriboquinha e desciam próximo à estação do trem, em Marituba,

caminhavam até a área de comércio, onde negociavam produtos como frutas, peles e carnes

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de caça e carvão e, também aproveitavam a Estrada de Ferro como outra via de acesso a

Belém (ACEVEDO MARIN; CASTRO, 2004).

Na década de 1970, para a extração de pedra e madeira por uma empresa, foi

construída uma estrada ligando Abacatal à Ananindeua. Segundo os/as interlocutores/as, foi

depois da abertura dessa estrada que a prefeitura construiu a escola, na localdade. Contudo,

vale ressaltar que há um discurso recorrente entre os/as moradores/as referente às lutas pelo

direito à educação. Afirmam sempre que a escola é fruto da muita insistência, muita luta. É

uma conquista nossa, que insistimos, cobrando do poder público (Santana). Nem sempre

dizem com precisão o ano de criação da escola na comunidade, indicam o período ao lembrar

que foi na gestão do prefeito Paulo Falcão. Segundo Silva (2003) Paulo Falcão esteve duas

vezes no governo municipal: a primeira, entre 1971 e 1972; a segunda vez entre os anos de

1983 e 1989.

Não tivemos acesso à ata de criação da escola, porque este documento não consta no

arquivo da Secretaria Municipal de Educação de Ananindeua (SEMED). Entretanto,

encontramos um pequeno relatório de 2007, na SEMED, o qual contém informações sobre a

Escola de Abacatal e afirma que esta foi criada no ano de 1971:

Para atender as crianças da comunidade, com turma multissérie, de primeira à quarta série do Primeiro Grau, sendo a professora Antonia Silva Magalhães contratada para ministrar as aulas. Em 1984, passou por uma reforma, sendo dividida em duas salas e construída uma cozinha. Em 1988 foi construída em alvenaria, com duas salas e uma cozinha. Em 2000 foram construídas mais duas salas.

Ressalte-se que nos anos de 1970 foi implantada a Reforma do Ensino de 10 e 20 graus

em todo o país. O estabelecimento da nova ordem educacional deveria se dá segundo a Lei no

5.692/71, obedecendo às peculiaridades regionais e de forma gradativa. Os governos

estaduais, através de suas secretarias de educação deveriam iniciar um processo de expansão

da escolaridade obrigatória e gratuita (de 7 a 14 anos) no primeiro grau. Contudo, a realidade

educacional brasileira nesse período era bastante delicada. A própria Secretaria de 10 e 20

graus do ministério da Educação e Cultura (MEC) apontava os principais problemas em todo

o país: dificuldades de estender o 10 grau a todas as crianças de 7 a 14 anos, inadequação dos

currículos e do material pedagógico, deficiência na formação do professor de primeiro grau

tendo em vista a diversidade da clientela. Foi nesse contexto e com essas limitações que a

escola chegou à comunidade.

Os moradores têm viva a memória do primeiro prédio da escola, construído ao lado da

casa da dona Susana, uma antiga moradora; era de madeira e só tinha uma sala de aula.

Também recordam as reconstruções e reformas pelas quais o prédio da escola passou e

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enfatizam sempre que as melhorias são resultado de suas reivindicações. Sobre a primeira

professora falam com muito carinho e respeito. Onélia (2010) lembra que estudou com ela:

Era boa professora. Não faltava e se dedicava ao ensino. Eu estudei com ela, fui alfabetizada por ela. Minha irmã também foi aluna dela, meus primos e quase todos da minha faixa etária. Todos nós gostávamos dessa professora e até hoje lembramos dela.

As palavras da gestora são reforçadas pelas recordações de Santana, que também

estudou com essa professora e tem boas recordações dela:

A primeira professora foi a Antônia. Uma das melhores professoras que Ananindeua já teve. Naquele tempo, com todas as dificuldades, ela ensinava mesmo, se preocupava, se dedicava mesmo. Ela era muito boa mesmo. Eu ainda estudei com ela e aprendi; eu estudei até a quarta série depois parei.

Depois da professora Antônia vários/as professores/as foram para a escola, porém não

demonstravam mesmo compromisso e dedicação. Poucos deles/as se identificavam com o

lugar e diante da dificuldade de acesso, pediam transferência para outra unidade escolar e

desistiam da escola de Abacatal. Onélia explica que na verdade, muitos desses professores só

aceitavam vir pra cá para conseguir um contrato na prefeitura, depois procuravam outra

escola.

A falta de professor/a se constituiu numa preocupação constante da comunidade por

muitos anos. As atuais professoras falam desse problema com propriedade, pois o

vivenciaram na condição de estudantes. Ana Alice, professora de terceira e quarta série

(multissérie) lembra: passei por isso, ficávamos sem aula por falta de professor. Só melhorou

quando a Onélia foi contratada”. Luciana é professora da primeira série, não nasceu na

comunidade, mas estudou em Abacatal:

Estudei aqui até a segunda série - nessa época as crianças estudavam até a quarta série e paravam - fui morar em Ananindeua, para estudar, depois fui para Belém e continuei os estudos. Creio que escolhi essa profissão porque vivenciei como aluna as dificuldades de estudar, visto que devido à falta de professor muitas vezes tive que voltar para casa sem ter aula.

Os/as moradores/as não se conformavam com a situação. Encaminhavam documentos

à SEMED solicitando professores para a escola. Algumas vezes, representantes da

comunidade iam pessoalmente “cobrar providencias da prefeitura”. Santana relata que a

organização dos moradores nas cobranças, depois de muita insistência, surtiu efeito positivo:

Nós fazíamos documentos solicitando professor ou professora, íamos lá pedindo para falar com o secretário de educação porque vinha um professor, mas não passava um mês, por causa da dificuldade, passava uns quinze dias ia embora. Nós não agüentávamos mais. Ai o prefeito contratou o Ivo, irmão do Alonso, que foi professor. Da minha época, nós estudamos com ele, até hoje a gente chama de

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professor. Como ele era daqui de perto, passou um bocado de tempo. Depois que ele saiu pronto, voltou o problema da falta de professor.

Segundo a gestora, os docentes não eram moradores da comunidade porque não havia,

no lugar, pessoa capacitada para tal função. Em virtude dos graves problemas com a falta de

professores, a escola chegou a fechar. Os pais ficaram preocupados porque não tinham

condições de levar as crianças, todos os dias, para outras escolas. Além disso, não queriam

perder a instituição de ensino que haviam conquistado com tanta luta. Senhor Benedito

lembra que: os pais começaram a reclamar porque as crianças ficavam sem estudar, porque

é difícil sair daqui para estudar. Nas reuniões da associação sempre vinha esse assunto. Os

moradores voltaram a reclamar providências da prefeitura.

Em audiência com na Secretária de educação, expuseram mais uma vez situação da

educação escolar, exigindo uma solução. Para a Secretária o “único jeito era se tivesse alguém

da comunidade para assumir a escola”. Na ocasião, os moradores resolveram retomar as

discussões na associação de moradores e verificar quem poderiam indicar. Senhor Benedito,

lembra bem dessas reuniões na SEMED e a indicação de Onélia para trabalhar na escola :

Disseram isso na secretaria. Então reunimos pra discutir quem tinha estudo que pudesse assumir a escola. Na reunião lembraram: a tua filha Bené, já tem estudo, pode ser ela. A Onélia tava morando em Belém com uma tia porque tinha ido estudar. Ai conversamos com ela, concordamos tudo e fomos de novo na secretaria já pra indicar o nome da Onélia, pra fazer o contrato. Ela ficou sozinha na escola. Era professora e diretora. Depois vieram outros professores.

Onélia reforça os depoimentos de seu pai e fornece mais informações sobre sua

nomeação como professora:

Fui nomeada, verbalmente, sem portaria pelo prefeito de Ananindeua, porque fui referendada pela própria comunidade. Na época, o prefeito escrevia de próprio punho, um bilhete, mandava para a secretaria e pronto. Fiquei como temporária. Vim pra cá de Severina. A escola estava sem professor. Fiquei um ano trabalhando sozinha como professora, diretora, servente, secretária, tudo. No outro ano veio um professor e dividimos as turmas, que eram duas de multissérie. Acho que era o Paulo, tinha o Ensino Médio também. Depois veio o professor Ednilson que tinha o magistério. A partir daí fiquei na direção.

Vale enfatizar que a nomeação de Onélia se deu no ano de 1988, ano da promulgação

da Constituição Brasileira e do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Abacatal,

que já possuía uma experiência de luta, também se organizava, com o apoio do Movimento

Negro, representado pelo Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (CEDENPA), se

fortalecia na busca pelo reconhecimento e pelo título de propriedade de suas terras como

remanescente de quilombo, ao mesmo tempo em que insistia na manutenção da escola em seu

interior e a ampliação do quadro de funcionários com moradores do lugar.

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Mesmo com Onélia na escola, o problema de rodízio de professor continuava, porque

só tinha ela da comunidade e havia duas turmas de estudantes, portanto a escola precisava de

dois professores e os de fora não “duravam muito tempo”. Em 1999, Luciana, que não mora

em Abacatal, mas estudou na comunidade, voltou para a escola como professora. A docente

relata sua contratação pela prefeitura para lecionar na escola local:

Em 1999 fui contratada pela prefeitura de Ananindeua para trabalhar na escola de Abacatal, pela manhã com Educação Infantil, pois na ocasião, havia uma vaga de professor. Comecei a trabalhar no mês de março mesmo sem contrato, em maio fui contratada oficialmente. Nessa época a escola estava como anexo da escola do Aurá e na direção estava o Reinaldo.

Em 2000, segundo relatório da SEMED (2007), o prédio da escola passou por reforma

e foram construídas duas salas de aula, passando a contar, a partir de então com quatro salas,

uma copa-cozinha e dois banheiros. O acréscimo das duas salas veio atender a demanda de

vagas para crianças na escola, sendo que nem todas as salas eram destinadas para as aulas,

pois uma passou a funcionar como secretaria e outra como sala de leitura, portanto, apenas

duas eram salas de aula atendendo crianças e adolescentes, da Educação Infantil à quarta

série, em dois turnos. Pela manhã, duas turmas: uma de Educação Infantil e uma multissérie

(1a e 2a séries) e no intermediário apenas uma turma multissérie (3a e 4a séries).

A demanda de vagas na escola tem aumentado, pois como afirma Onélia: tem nascido

muitas crianças; vão crescendo chegando à idade escolar e a escola precisa atender. Com a

procura é preciso abrir turma e para tanto necessita de docentes. Diante dessas necessidades e

carências outras professoras, nascidas na comunidade, passaram a compor o quadro de

docentes da escola: Ana Alice e Ângela. São elas mesmas que contam sobre o ingresso na

escola de Abacatal.

Ana Alice, nascida na comunidade, é professora da 2a série pela manhã e das classes

multisseriadas (3a e 4a séries) no turno intermediário:

Como eu disse, estudei aqui até a quarta série, depois fui para Belém. Estudei. Fiz o magistério. Quando terminei, voltei pra cá e comecei a trabalhar como professora. Estou na escola há cinco anos. Comecei em 2005. Gosto de morar aqui e de trabalhar nessa escola. Agora estou cursando pedagogia porque quero continuar na área da educação.

Ângela conta como foi contratada pra trabalhar com a educação infantil na escola de

Abacatal:

Em 2008 eu estagiava, numa escola particular, com educação infantil. Nesse ano a Luciana foi aprovada no concurso do Estado e precisou deixar uma turma de 2a série. Como já nos conhecíamos, ela sugeriu à diretora Onélia que eu ficasse com a turma. Onelia foi à SEMED para providenciar o contrato e deu tudo certo. O

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contrato se renova anualmente. Iniciei ano passado (2009). Venho do Aurá de bicicleta. É difícil e no inverno piora, mas eu gosto de trabalhar aqui.

3.4 A ESCOLA MANOEL GREGÓRIO ROSA FILHO

Figura 11: Novo prédio da escola de Abacatal: Escola municipal Manoel Gregório Rosa Filho, inaugurado em 04 de janeiro de 2010. Foto: Madalena Corrêa Pavão (2010)

Até dezembro de 2009 a escola funcionou num pequeno prédio de alvenaria que

continha três salas de aula, uma sala de leitura, uma sala onde funcionava a direção e a

secretaria, uma copa cozinha e dois banheiros. As salas tinham piso de cimento (sem

cerâmica), as paredes da frente, a partir de um metro e meio de altura, eram de tijolos

vazados, o que permitia a entrada dos raios de sol; as janelas de trás tinham apenas uma grade,

o que contribui na iluminação e ventilação; possuíam, além das carteiras, um quadro verde,

uma mesa para as professoras e um pequeno armário. Até então a escola não tinha nome,

chamava-se apenas Escola Municipal de Ensino Fundamental de Abacatal. No início do mês

de janeiro de 2010, foi inaugurado o novo prédio e a escola recebeu um nome: Escola

Municipal de Ensino Fundamental Manuel Gregório Rosa Filho.

A “escola nova” está localizada entre o antigo prédio da escola e o posto de saúde,

numa área que, há muito, foi doada pela associação de moradores para a construção da escola.

Possui quatro salas de aulas amplas e arejadas, sala da diretoria, secretaria, copa-cozinha, sala

dos professores, depósito, laboratório de informática, três banheiros, sendo que um é adaptado

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para portadores de necessidades especiais, um refeitório e um parquinho com balanços,

gangorras, escorregador e carrossel. As salas de aula têm formato hexagonal, piso de

cerâmica; possuem dois ventiladores de teto, um quadro magnético, cadeiras e mesas, tanto

para as professoras como para os estudantes.

O quadro de funcionários é formado por dez pessoas, quase todas moradoras da

comunidade: três professoras, uma secretária, uma gestora, uma merendeira, uma servente e

três vigias. Duas professoras não moram em Abacatal, porém sempre tiveram uma forte

ligação com o lugar porque estudaram na escola e residem próximo à comunidade. Uma delas

nasceu em Abacatal, saiu para dar continuidade aos estudos, mas seus pais e irmãos

continuam na localidade.

Os/as interlocutores/as têm satisfação em explicar como e porque o nome de Manuel

Gregório foi escolhido. Senhor Benedito diz: era meu avô. Neto da escrava. Foi uma pessoa

que incentivou o povo da época dele a ficar aqui, porque já era deles desde os tempos

antigos. Santana relata o processo de escolha do nome da escola: fizemos reuniões para a

escolha do nome. Fomos ver na história do lugar quem tinha sido assim importante e vimos

que “ele” foi um grande incentivador da luta. Onélia conta com mais detalhes como se deu a

escolha do nome:

Era um desejo antigo da comunidade que a escola tivesse um nome. Quando foi aprovado o projeto para a construção desse prédio novo a secretária de educação começou a discutir conosco a escolha do nome. Foi preciso buscar as origens, a história do lugar e verificou-se que os maiores problemas e motivo de tensão, foi assegurar o território. Nessa luta o senhor Manoel Gregório, que era meu bisavô, foi o grande articulador dos moradores para resistirem e buscar seus direitos, apesar ter falecido antes da emissão do título das terras. Em 2008, a ex-secretaria de educação foi eleita vereadora por Ananindeua e retomou a discussão com a comunidade que deu aval ao projeto concordando com o nome Manoel Gregório Rosa Filho, para a escola. O projeto foi aprovado na câmara de vereadores e o processo de legitimação do nome está tramitando. Deve ir para apreciação no MEC e depois para o Conselho Municipal de Educação, para oficializar.

A Escola Municipal de Abacatal, hoje denominada Manoel Gregório Rosa Filho, está

inserida na rede Municipal de Educação do município de Ananindeua. Conforme informações

disponibilizadas no site da SEMED na internet, a estrutura da educação pública no município

é de 54 unidades escolares e 36 anexos. Ao todo são 532 salas de aula, atendendo as seguintes

modalidades da Educação Básica: Educação Infantil, Ensino Fundamental, Educação de

Jovens e Adultos – EJA - e a Educação Especial. Cerca de 80% estão localizadas na zona

urbana e 20% na zona rural. A média de atendimento por salas de aula é: 31% com quatro

salas, 20% de cinco e seis salas, 9% com 7 salas e 4% com nove e dez salas.

Existem duas escolas na zona rural, uma delas situada na região das Ilhas do

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município, atendendo à população ribeirinha das 14 ilhas com cinco salas de aula, sendo um

anexo na Ilha de Maritubinha, com atendimento a 188 alunos na Educação Infantil e Ensino

Fundamental de 1a à 8ª séries, com turmas regulares e multisseriadas. A outra escola rural é a

da colônia de Abacatal, a qual possui quatro salas de aula e atende em média 75 alunos do

Ensino Fundamental de 1a à 4a série e a Educação Infantil, sendo que a faixa etária dos

discentes varia de 5 a 15 anos.

A matrícula inicial de 2009 das escolas de Ananindeua, segundo dados do censo

escolar disponível no site do Inep, está distribuída da seguinte forma: na Educação Infantil,

1.007 nas creches e 7.680 na pré-escola; no Ensino Fundamental 16.107 nos anos iniciais e

6.874 nos anos finais; na EJA fundamental 4.730.

O Plano Municipal de Educação em vigor, embora com alterações na sua aplicação,

foi aprovado em 2005, e a Secretaria já fez várias mudanças, um novo Plano foi elaborado e

aguarda a aprovação do Conselho Municipal de Educação – em consonância com o Plano

Nacional de Educação, visa:

A melhoria da qualidade de ensino; elevação da escolaridade da população em todos os níveis e modalidades; redução das desigualdades sociais; democratização da gestão do ensino público; garantia do acesso e permanência com sucesso e qualidade dos alunos na escola.

Tem como prioridades:

A garantia do Ensino Fundamental obrigatório de oito anos a todas as crianças de 7 a 14 anos, assegurando sua inclusão; a garantia do ensino supletivo aos que não tiveram acesso à escola na idade própria e que não concluíram o ensino fundamental, incluindo a erradicação do analfabetismo através da alfabetização de jovens e adultos; a ampliação do atendimento na educação infantil; a valorização dos profissionais de educação e, a favorecer o desenvolvimento integral da pessoa com necessidades educacionais especiais.

Este Plano foi pensado para “experienciar uma gestão democrática e participativa”

amparada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) /1996, a qual, no

artigo 14, apresenta os princípios que deverão nortear a gestão democrática:

Os sistemas de ensino definirão as normas de gestão democrática do ensino público na Educação Básica de acordo com as suas peculiariedades, conforme os seguintes princípios: I – participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola; II – participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes.

A escola de Abacatal ainda não concluiu o Projeto Político Pedagógico (PPP), porque,

segundo as professoras, sentem a necessidade de orientação pedagógica para a construção e

execução do mesmo. Desse modo, a escola segue o currículo oficial proposto pela SEMED, o

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qual silencia a questão étnico-racial e a educação em quilombo, apesar de haver uma

flexibilidade que possibilita a inclusão de conteúdos e práticas relacionados á história e à

cultura da comunidade. Porém, entendemos que apenas incluir conteúdos não significa que as

questões raciais, a história e os saberes da comunidade sejam sistematicamente incorporados

às práticas pedagógicas no cotidiano escolar de modo geral.

Apple (1982) alerta sobre os pressupostos ideológicos expressos na organização

curricular que fixam, em nosso universo social, valores e princípios que passam a se constituir

como verdades absolutas e asseguram a ordem social vigente. Para Sacristán (1998, p. 108),

ordenar o currículo, portanto, torna-se fundamental para o Estado no exercício da organização

da vida social, afinal, segundo o autor, “[...] ordenar a distribuição do conhecimento através

do sistema educativo é um modo não só de influir na cultura, mas também em toda a

ordenação social e econômica da sociedade”.

Entretanto, o currículo em si, não deriva de alguém, ou de algum grupo em particular,

ele precisa nascer de uma ampla negociação estabelecida no interior de uma cultura, de uma

escola e, desse modo, dentro da estrutura de decisões centralizadas. É, portanto, dentro de um

quadro de contradições e conflitos que ocorrem as negociações pelo que vai ser transmitido e

ensinado nas escolas e o que vai ficar de fora.

As relações de poder são mediatizadas na elaboração de qualquer política curricular.

Silva (1996, p. 91) indica que “[...] o currículo, enquanto definição ‘oficial’ daquilo que conta

como conhecimento válido e importante, expressa os interesses dos grupos e classes

colocados em vantagem em relações de poder”. É necessária apenas a ressalva de que essas

relações dirigem o processo de definição do currículo, no entanto, elas não o esgotam, nem o

realizam na sua totalidade.

O currículo nacional comum, expresso, por exemplo, a partir de diretrizes curriculares

nacionais e dos diferentes instrumentos normativos elaborados, sobretudo, pelo Ministério da

Educação e seu órgão de apoio Conselho Nacional de Educação (CNE) se configura como a

tentativa de estabelecer a política do conhecimento oficial (APPLE, 1994), defendida pelo

governo brasileiro como base nacional comum.

A escola de Abacatal apresenta problemas inerentes às escolas do município como um

todo, com o agravante das dificuldades de comunicação com a SEMED, devido

principalmente às condições da estrada que liga a comunidade à sede do município. Além

disso, as discussões e formações em torno da Lei 10.639 no município, o que forçaria um a

revisão curricular da Rede Municipal de Ensino, tem se limitado a curtos períodos de

formação para debater fundamentos teórico-metodológicos para a elaboração de uma proposta

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curricular que inclua a história e cultura afro-brasileira e africana na educação escolar, ainda

não se efetivou.

Reafirmamos que a história da escola de Abacatal está diretamente relacionada à

história da própria comunidade. Entendemos que ter a escola é uma estratégica para a

comunidade também do ponto de vista político, uma vez que evita a dispersão das famílias.

Contudo, manter a escola na comunidade não é fácil. De acordo com a gestora a SEMED a

considera onerosa tendo em vista o número de estudantes matriculados ser pequeno. Mas os

moradores não concordam. Querem que a escola não só permaneça na comunidade, mas que

amplie o atendimento até a oitava série, visto que a partir da quinta série, os/as educandos/as

precisam ir para escolas fora de Abacatal. Santana, ao falar de sua vontade de voltar a estudar

e da existência de adultos analfabetos na localidade, expressa o desejo das famílias que a

escola ofereça o Ensino Fundamental completo e a Educação de Jovens e Adultos (EJA):

Para nós é fundamental que a escola fique aqui. É um sacrifício para os adolescentes e jovens terem que ir para outra escola. Eu mesma não voltei a estudar porque não da para ir de noite, voltar tarde por essa estrada. É por isso que queremos que o ensino aqui vá até a oitava série e tenha a EJA porque tem muitos adultos como eu que querem estudar e também gente que não sabe ler e não pode ir estudar. .

Como vimos, a escola é resultado das reivindicações dos moradores junto às

autoridades públicas local. À medida que resistem em sair da terra, evidenciam outras

demandas sociais como a educação escolar, e se fortalecem nas lutas, aprendendo a negociar,

buscar parcerias e valorizar suas raízes, sua cultura. Na próxima seção voltamos o olhar para a

escola em sua relação com a família e a comunidade, sua orientação curricular e as práticas

docentes, visando entender se o trato com os conhecimentos escolares e os saberes culturais

possibilitam a construção e afirmação da identidade quilombola.

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4 EDUCAÇÃO ESCOLAR E IDENTENDADE QUILOMBOLA EM ABACATAL

Nesta seção analisamos as narrativas das professoras e da gestora da escola, a Proposta

Curricular para Ensino Fundamental de nove anos do município de Ananindeua e o

planejamento de uma das professoras para o ano letivo de 2010, visando entender se a

educação escolar dessa comunidade possibilita a construção da identidade quilombola. Na

busca deste objetivo discutimos a relação escola, família e comunidade; a formação inicial e

continuada das educadoras, a orientação curricular da SEMED, a dinâmica escolar e práticas

docentes.

Estudos que abordam o tema negro e educação no Brasil, como os de Cavalleiro

(2005), Munanga (2005) e Gomes (2007) indicam que a educação escolar tem contribuído

com o processo de manutenção da desigualdade racial no país e as diferenças de escolaridade

entre brancos e negros ainda se mantêm. O Relatório do Fundo das Nações Unidas para a

Infância (Unicef) de 2009 revela que é grande o número de crianças e adolescentes excluídos

do sistema escolar (2,4%), equivalente a 680 mil, segundo a Pnad (2007), sendo que os mais

atingidos são as oriundos de populações vulneráveis, como as negras, indígenas, quilombolas,

pobres, sob risco de violência e exploração, e com deficiência.

De acordo com o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura

Afrobrasileira e Africana (2009), nas comunidades remanescentes de quilombos, o acesso à

escola para as crianças é difícil, os meios de transporte são insuficientes e inadequados, e o

currículo escolar está longe da realidade dos/as estudantes, que raramente vêem sua história,

sua cultura e as particularidades de sua vida nos programas das disciplinas e nos materiais

pedagógicos. Somam-se a essas dificuldades o fato de os/as poucos/as professores/as que

atendem essa clientela não são capacitados adequadamente, além disso, poucas comunidades

possuem unidades educacionais com o Ensino Fundamental completo.

A escola pública, locus de nossa pesquisa, tem a particularidade de ter sido criada na

comunidade antes mesmo desta ser reconhecida legalmente como remanescente de quilombo

e, é resultado das mobilizações dos moradores na busca da garantia da escolarização de suas

crianças na própria comunidade. Mesmo assim, como outras escolas no Brasil, nesta também

se evidenciam os conflitos e confrontos de interesses. Isso se apresenta em diferentes

situações, inclusive na relação com a família e a comunidade.

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4.1 ESCOLA, FAMÍLIA E COMUNIDADE

Na escola de Abacatal, a maioria dos/as estudantes é filho/a, neto/a ou sobrinho/a dos

moradores que estiveram – e alguns ainda estão – à frente das lutas da comunidade pela terra,

por infra-estrutura, pela escolarização de seus/as filho/as e outros benefícios. Pela satisfação

com que as famílias falam da escola, entendemos que a concebem como da comunidade,

pois como dizem é “uma conquista dos moradores”. Ter a escola no lugar onde moram é

motivo de orgulho para os abacatenses. Assim sendo, analisamos a relação escola, família e

comunidade para perceber se esta relação contribui com a construção e afirmação da

identidade do grupo.

Vale pontuar que em comunidades remanescentes de quilombo, como Abacatal,

família e comunidade estão diretamente relacionadas, ou melhor, são conceitos que se

completam, posto que as relações sociais (ou interpessoais) são marcadas por laços de

consangüinidade. Como dizem os próprios interlocutores, na comunidade do Abacatal tem

muito casamento entre primo; é tudo parente (Ana Alice), tá tudo em família porque a

maioria descende das três famílias-tronco, (Santana). Assim, nosso entendimento de família

está para além dos pais e mães das crianças, visto que as relações consangüíneas formam uma

única família.

4.1.1 A “serventia” da escola

Durante as entrevistas e nas conversas informais, ao falarem da importância da escola,

freqüentemente os interlocutores usavam o termo “serventia”. Atentando para as suas falas e

para o modo como falavam, entendemos que para os interlocutores a unidade escolar na

comunidade é importante porque tem utilidade, ou melhor, “serventias”. As narrativas

indicam serventias um tanto quanto diferentes, mas que convergem para uma valorização dos

conhecimentos historicamente construídos, voltado para “fora”, isto é, que oportuniza o início

da vida escolar e incentiva a continuidade dos estudos para concorrer no mercado de trabalho,

como bem observa Dona Ana:

Ter a escola aqui é muito bom porque não fica criança sem estudar. Antes os pais achavam difícil levar e buscar os filhos e não colocavam para estudar. Essa escola tem uma grande serventia porque ensina as primeiras séries, prepara as crianças para continuar lá fora e ir avançando nos estudos. Começa aqui e vai em frente para fazer um vestibular, para conseguir um emprego, melhorar as condições de vida.

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E dona Ana continua apontando que a escola serve para incentivar a continuidade dos

estudos, pois as professoras são o exemplo de que é possível enfrentar as dificuldades,

conseguir um grau de instrução mais elevado, um emprego que exige menos esforço físico e

garante uma renda fixa. Para ela com o estudo os jovens têm a oportunidade de deixar de

depender só da roça:

As meninas (as professoras) estudaram aqui, continuaram lá fora e conseguiram um pouco mais de estudo e já puderam vir trabalhar na escola. Outros também estudaram na escola daqui, foram enfrentando as dificuldades, conseguiram terminar o segundo grau e hoje já tem um emprego, já não depende só da roça ou da farinha, que é muito pesado e às vezes dá às vezes não. Hoje, muitos jovens que tinham parado de estudar estão voltando e a escola incentiva a continuarem mesmo.

Esse entendimento da “serventia” da escola que dona Ana revela, ressalvadas as

diferenças, pode ser observado em outros sujeitos e contextos da Amazônia paraense. Oliveira

(2003), em pesquisa realizada em três comunidades ribeirinhas do município de São

Domingos do Capim - PA, visando verificar como os alfabetizandos (jovens, adultos e idosos)

desenvolvem suas práticas sociais cotidianas sem o conhecimento da leitura e da escrita da

palavra, demonstra que para os sujeitos entrevistados existem dois tipos de educação:

educação como cuidar e educação como estudo. A “educação como cuidar” é a que está

relacionada às práticas cotidianas das famílias como tratar, dar atenção, orientar e tem como

referência os saberes adquiridos com o tempo, através da oralidade. A “educação como

estudo”, está associada à instrução, ao aprendizado da leitura e da escrita. Essa educação é

específica da escola e representa a possibilidade de melhoria de vida, através de uma

colocação no mercado de trabalho.

Para os/as moradores/as de Abacatal, a educação escolar é a educação do estudo, que

ensina ler, escrever, transmite os conteúdos das disciplinas e, normas de comportamento.

Assim, a principal “serventia” da escola é para o ensino da leitura e da escrita, mas também

serve para disciplinar, educar, tornar “menos bruto” e ainda está associada a benefícios que a

comunidade tem obtido. Senhor Benedito aponta a energia elétrica e o Programa Bolsa

Família como benefícios adquiridos por intermédio da escola:

A escola aqui serve para dar oportunidade para todas as crianças estudarem, porque no meu tempo não tinha essa oportunidade. Tudo era muito mais difícil. Com a escola tem o estudo que não tinha naquele tempo, quando só ensinava malmente a ler e assinar o nome. Hoje tem outros conhecimentos. Com a escola foi bom também porque já veio luz elétrica, manteve a estrada (apesar de não ser boa), veio a Bolsa Família que ajuda aquelas famílias mais necessitadas. Pode não está muito bom, mas já melhorou um bocado.

A escola, associada ao ensino da leitura e da escrita, é importante porque com a

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aprendizagem da leitura aumentam as possibilidades de se conhecer os direitos, de não se

deixar enganar e ser mais independente. As narrativas de Santana expressam bem a

“serventia” da escola na luta para conquistar direitos:

É muito ruim não saber ler. A pessoa fica dependendo dos outros e é fácil de ser enganada, humilhada. A escola aqui dentro é super importante, embora ela seja só até a quarta série. Com o estudo nós vamos conhecendo nossos direitos e descobrindo as maneiras de brigar por eles. Os nossos pais e avós eram analfabetos, não tinham conhecimento e foram iludidos por aqueles que chegaram falando bonito, querendo tomar as terras. Mas deus nos ajudou e não caímos na conversa. Então a escola serve também para isso, para aprendermos a ler e conhecermos nossos direitos.

Santana acrescenta que a escola deve servir para reforçar a história e a identidade do

grupo:

É muito bom ter a escola aqui dentro. Aqui aprende a nossa história, nossa realidade, o convívio com a natureza. Cabe ao professor mostrar a nossa realidade, as coisas que tem aqui mesmo, ensinar que nossas conquistas são motivo de orgulho, fruto da luta de nós moradores, que resistimos para ficar nas terras que nossos antepassados deixaram para nós.

Para Santana é responsabilidade dos/as professores/as, “mostrar a realidade”, ensinar

sobre as lutas e conquistas do grupo. Contudo, vale frisar que a escola não se restringe aos

professores, toda a comunidade escolar é responsável pela formação dos/as educandos/as,

além disso, a educação se realiza em diversos espaços sociais: na família, na comunidade, nos

movimentos sociais (BRANDÃO, 1981). Mesmo assim, não há como negar que no interior da

sala de aula, são os/as professores/as os responsáveis pelo processo de aprendizagem e de

formação, por isso o compromisso maior deve ser deles/as. Portanto, é importante levar em

consideração a formação inicial e contínua dos/as docentes, o que faremos mais adiante.

A relação escola e família tem sido foco de estudo em diversas áreas do conhecimento,

assumindo diferentes desdobramentos. Nogueira, Romanelli e Zago (2000, p. 10) traduzem a

forma como essa questão tem sido abordada na área da educação:

(...) Sobre a rubrica “relação família-escola” abriga-se uma problemática extremamente ampla, suscetível de ser abordada com base em diferentes campos disciplinares e grupos temáticos. Embora nem sempre tratado de forma central, tal objeto constitui, muitas vezes, parte importante de pesquisas desenvolvidas em outras áreas, como, por exemplo, a Antropologia ou a Psicologia Social e Escolar. No campo da Educação, esse tema está presente em diferentes grupos temáticos como Movimentos Sociais e Educação, Educação Infantil, Educação de Jovens e Adultos, para citar alguns eixos com possíveis interfaces. O fato é que uma grande dispersão vem dificultar a realização de um trabalho de organização e classificação dessa produção, de modo que não dispomos de um levantamento, de um “estado da arte” das diferentes tendências temáticas e teórico-metodológicas dos estudos que abordam as relações entre famílias e educação escolar, no Brasil.

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No que diz respeito a esse tema em contextos escolares de comunidades

remanescentes de quilombos, até o momento da escrita dessa dissertação não localizamos

qualquer trabalho que pudéssemos tomar como referência. Contudo, estudo de Caldart (2004)

pode servir de parâmetro visto que traz elementos para a compreensão da relação família–

escola em assentamentos do MST, a qual evidencia uma aproximação das famílias com a

escola no sentido de lutarem pela garantia da educação no próprio lugar em que estão

vivendo. Ao tratar da pedagogia do MST, a autora diz o seguinte sobre a relação das famílias

com a escolarização das crianças:

Na base social que constitui o Movimento encontravam-se muitas famílias que traziam como herança o valor da escola, em geral naquela visão de que ela pode ser a porta de entrada para um futuro melhor, menos sofrido. Exatamente por terem sido excluídas dela não queriam o mesmo destino para seus filhos: se estudarem vão ter mais escolhas, diziam, alguns pensando em escolhas na própria terra que sonhavam conquistar; outros também pensando na alternativa de ir para a cidade procurar um emprego melhor (CALDART, 2004, p. 229).

As considerações da autora supracitada, ressalvadas as diferenças entre a realidade dos

assentamentos e as especificidades dos quilombos contemporâneos, ajudam na compreensão

da relação família–escola em Abacatal, pois ela sinaliza diferentes expectativas frente à

escolarização: estudar para permanecer na terra ou estudar para sair dela.

Uma questão de fundamental importância que a autora pontua é saber até que ponto e

como a participação em uma luta e em uma organização social influencia o modo de vida ou o

jeito de ser da coletividade e das pessoas que a compõem. Ela acredita que as experiências de

luta do MST criaram um novo sujeito do campo, o sujeito sem-terra.

Pensando no caráter educativo dos movimentos sociais, particularmente do movimento

negro quilombola, acreditamos que as experiências somam-se e influenciam a construção

identitária dos sujeitos que por elas passam. Porém, essas experiências são processadas

diferentemente por cada integrante do grupo social. A adesão e a participação no Movimento

não acontecem da mesma maneira e intensidade com todos os seus membros.

Caldart (2004) coloca que a ocupação da escola é uma das experiências educativas

relevantes no processo de formação dos sem-terra. Propõe ainda que existe uma trajetória

histórica da ocupação da escola pelo MST. Há um processo de construção dessa ocupação, e

não um momento isolado na história. Diz a autora:

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Muitas famílias sem-terra convivem com a escola, até porque a relação que tem com ela é anterior à sua entrada no Movimento, mas não chegaram ainda a ocupá-la. A ocupação da escola não é uma decorrência necessária da ocupação da terra, embora tenha sido uma ação produzida no mesmo processo e pelos mesmos sujeitos. Mas, ela se constitui como uma possibilidade histórica para todos os sem-terra que integram o MST ou partilham de sua herança (CALDART, 2004, p. 224).

Buscando compreender o significado da escola para sujeitos da comunidade

quilombola do Abacatal, percebemos a atribuição de um grande valor à escolarização, pois há,

entre os/as interlocutores/as, um entendimento de que, através da educação como estudo, seus

filhos poderão ter uma vida melhor, um futuro mais favorável, o que inclui melhores

trabalhos, melhor remuneração. Foi acreditando nessa e possibilidade que os moradores

lutaram para conseguir a escola para a comunidade.

Diferente da questão da terra para os sem-terra, o território quilombola é secularmente

ocupado pelas gerações de descendentes dos quilombos, portanto a relação desses sujeitos

com a escola é posterior a ocupação da terra. Mesmo assim a luta pela educação escolar não

está separada da luta pelo reconhecimento do território quilombola. Para os/as moradores/as

de Abacatal, a escola é vista como espaço de garantia do aprendizado da leitura e da escrita,

por eles tão valorizados. Vêem na escolarização a possibilidade de superação de sua condição

atual de vida. Não querem para os/as filhos/as a mesma vida que levam, e entendem que uma

melhor condição de vida, é possível através do estudo. Mas eles/as pouco ocuparam a escola,

no sentido de terem uma participação mais ativa na dinâmica escolar.

4.1.2 Os pais na escola

“Os pais só vêm quando são chamados” (professoras)

Nas entrevistas e nas conversas informais com as professoras notamos que a relação

da escola com a família e a comunidade é permeada tanto por conflitos quanto por

manifestações de solidariedade e companheirismo. Existem pais, irmãos, tios e avós de

estudantes que têm alguma função na associação de moradores e/ou são funcionários da

escola, mas escola e família ainda precisam afirmar uma parceria, pois prevalece a idéia de

que de cada uma deve se ocupar apenas de suas atribuições específicas e só eventualmente

uma colabora com a outra. De acordo com a professora Ângela:

Alguns pais só vêm à escola se insistirmos. Mas muitos ajudam. Nas festas, por exemplo, tem uma boa participação com doação de prêmios para os bingos. Eles se unem e fazem coleta para comprar os prêmios. Ajudam também com trabalho na arrumação, na limpeza, na venda dos bingos. Na mudança para cá para o novo prédio, tivemos ajuda deles. Mas quanto às ações pedagógicas, não opinam. Deixam isso conosco.

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A professora Ângela chama atenção também para o distanciamento entre escola e

comunidade:

Observo que há um distanciamento, principalmente entre a comunidade e a escola. Poucas pessoas da associação contribuem com a escola. Tem associado que vem aqui na escola como pai ou como mãe, mas não como membro da comunidade que pode colaborar com a escola. A escola também só procura a comunidade se tiver algum problema grave que precise da Associação para encaminhar. Como isso é muito difícil de acontecer, fica cada um no seu lugar.

Esse distanciamento pode ter diversas razões, entre elas o fato de a escola não ter

criado estratégias para estabelecer um dialogo constante com a família e a comunidade, como

abstraímos da opinião de Ana Alice sobre a necessidade de aproximação da escola com a

família:

Os pais só mandam os filhos para a escola. Mas também noto que a escola é um pouco fechada para a participação dos pais e ouço reclamação sobre isso. Às vezes vou às casas e falo com as mães e muitas ajudam. Elas ajudam nas festinhas, preparando comidas, na decoração, com doação de prêmios para os bingos. Mas é preciso ir falar com os pais, convencê-los de que a participação deles é importante para a educação de seus filhos. Temos que tomar iniciativa mesmo. Um exemplo disso foi um projeto sobre drogas que fizemos ano passado, tomamos a frente e depois houve envolvimento de todos. Conseguimos trazer mães que não podiam vir e, elas participaram. Isso foi uma vitória. Tudo é a gente saber conversar com as pessoas. Ser perseverante e insistente.

A opinião da professora Luciana é semelhante a das outras professoras, pois concorda

que as escolas precisam estreitar relações com a família e a comunidade:

A relação escola, família e comunidade é igual nas escolas públicas como um todo. Vejo que falta, por parte das escolas, ações que favoreçam a aproximação com a família. Aqui em Abacatal, após o curso sobre a lei 10.639/03, houve momentos de encontros com a comunidade e teve boa participação. Porém, aos poucos as pessoas foram se afastando. Hoje há pouca aproximação da comunidade com a escola. Quando a escola precisa, busca a comunidade, depois deixa. Com os pais também é assim. É preciso chamar e mesmo assim tem uns que não vêm. Mas têm umas mães que não precisa chamar, elas aparecem sempre, vem deixar ou buscar a criança e conversam sobre o aprendizado e comportamento do/a filho/a e os problemas gerais da escola. Essas participam mais.

A pouca participação dos pais não significa que estes só se interessaram pela

construção da escola e não se importam com que se passa em seu interior. Se não participam

mais ativamente é porque existem empecilhos que nem sempre se mostram explicitamente. O

espaço escolar, de modo geral, não está isento de conflitos entre gestores/as e professores/as

de um lado e pais de ouro. A participação dos pais volta-se para os aspectos do funcionamento

da escola sobre os quais elas se sentem mais capazes: a limpeza, a ordem, a qualidade da

merenda, o cumprimento dos horários. A escola dá pouco espaço para essa participação, mas

cobra dos pais a assistência aos filhos em seus deveres escolares e a freqüência nas reuniões,

quase sempre marcadas nos horários mais convenientes para os professores (CAMPOS,

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1991).

Entretanto, entendemos que em Abacatal os pais não estão tão distanciados assim da

escola, pois os moradores lutaram pela unidade escolar e todas as vezes em que sentiram que

poderiam perdê-la, se mobilizaram para que o poder público local a mantivesse dentro da

comunidade. A escola está situada num espaço que foi reservado e cedido, pelos

comunitários, especialmente para a sua construção, portanto a comunidade está na escola

assim como a escola está na comunidade. Os moradores demonstram um forte sentimento de

pertença em relação à escola, conforme expressa Santana: essa escola é nossa. É resultado

das lutas da comunidade. Os pais têm baixo grau de escolaridade e não se sentem aptos para

contribuir com as questões pedagógicas ou propor temas para serem trabalhados, mas

colaboram nas questões relacionadas à manutenção e limpeza do espaço, móveis e

equipamentos, realização de eventos. Para que haja maior interação dos pais será necessário

que a escola crie estratégias que possibilitem o desenvolvimento de ações em parceria com as

famílias.

Se atualmente há pouca unidade entre os moradores, nem sempre foi assim. Conforme

afirma Santana, num passado não muito distante, havia mais união na comunidade e o

objetivo comum era garantir a terra, pois:

No momento mais difícil, de maior ameaça, que derrubaram umas casas, ficamos em questão na justiça e ficou proibido reconstruir as casas, tirar pedra, madeira. Tivemos ajuda da Igreja e de movimentos sociais, mas ficamos muito unidos. Nos fortalecemos porque ficamos juntos, lutando pela terra. Foi feita uma grande roça para ajudar na alimentação e cada um colaborava como podia. Para conseguir a escola foi assim também: lutamos juntos. Eu era criança, mas lembro que íamos pra frente da prefeitura, insistíamos para falar com o prefeito sobre o nosso problema para estudar e pedir a escola aqui dentro. Mas parece que depois de garantir a terra, a comunidade foi se acomodando.

E a interlocutora continua:

É difícil se dedicar só para a comunidade, porque tem a vida, tem a família. O trabalho na coordenação da Associação exige muito. Têm os encontros, os fóruns, reuniões e outras coisas. Isso é bom, só que não tem uma renda, um salário e tem família para sustentar, então precisa trabalhar. Quem precisa da venda da farinha, tem que fazer a sua farinha. Se não fizer não vende e não tem a renda e ai fica ruim. Tu perguntas sobre a relação com a escola. Bom, tem coisa que é da escola e tem coisa que é da comunidade (Associação) então cada uma encaminha suas necessidades. A escola, bem dizer é só com a SEMED. A comunidade não. É com a prefeitura, com a SEMA, a Secretaria de Cultura, o sindicato dos produtores rurais, a EMATER e outros órgãos. A comunidade lutou para conseguir a escola, lutou para não deixar fechar e se for preciso vamos lá contribuir, assim também é, se a comunidade precisar da escola. Nas celebrações, nas festas, nas discussões de problemas graves, estamos juntos. Sobre o ensino mesmo não costumamos dá palpite porque é da competência da escola. Então é assim: a relação é boa, mas acaba que cada um faz o seu trabalho.

Em Abacatal, como vimos as lideranças dividem o tempo entre a busca de benefícios

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para a coletividade e o trabalho para o sustento de suas famílias e, muitos moradores que

estiveram envolvidos na luta pela terra e pela educação, após a titulação do território e a

criação da escola, voltaram-se mais para os seus problemas pessoais e deixaram as questões

da comunidade para segundo plano, conforme reforça a professora Ana Alice:

Nós éramos mais unidos, havia mais participação das famílias. Lutamos juntos pela terra. Hoje muitas coisas estão se perdendo. O costume do mutirão acabou. Antes tudo era na base do mutirão, agora cada um dá seu jeito sozinho e, se precisar, paga um trabalhador. Eu e meu marido pagamos serviços de construção, poço e até de capina. Hoje as pessoas pensam mais nos seus problemas individuais, discutem menos as questões da comunidade. Penso que é porque antes tinha o risco de sermos expulsos daqui, então tínhamos que lutar juntos para permanecermos aqui. Depois do título, parece que começamos a nos acomodar. Entre a associação de moradores e a escola existe certo distanciamento. Falta um pouco mais de diálogo para trabalharmos em parceria para resolver problemas como o lixo e as drogas. O ideal seria fazermos um trabalho conjunto, buscando apoio dos órgãos públicos. A SEMED está cobrando da escola uns projetos e, como a questão do lixo é séria aqui, vejo que poderíamos trabalhar juntos nisso. Mas não é tão fácil convencer as pessoas.

Para a docente é preciso “convencer as pessoas” da necessidade de trabalhar em

parceria na busca de solução dos problemas. Isso demonstra que o grau de adesão e

participação varia entre os sujeitos e a identidade quilombola começou a emergir nas disputas

por recursos territoriais (ARRUTI, 2006). O processo de emergência dessa identidade contou

com o Programa Raízes e o CEDENPA, como informa Ana Alice ao recordar dos momentos

em que tiveram palestras sobre a questão quilombola:

Posso dizer que nos vemos como parte da história de Abacatal. Hoje, as crianças se vêem como remanescentes de quilombo. Porém, as pessoas não conseguem dar valor em ser quilombola. As que mais se reconhecem e valorizam são as que, de alguma forma, estiveram envolvidas no movimento pela terra. No começo do processo de titulação da terra, nós tivemos palestras com o pessoal do Programa Raízes e do CEDENPA que nos ajudaram no entendimento de quilombo, de remanescente. Isso nos fortaleceu, mas está faltando para mais pessoas da comunidade e é papel da Associação ir buscar essas parcerias. Para tentar envolver mais os moradores e despertar o sentimento de coletividade, que está faltando. Eu já participei mais. Fui a encontros, conferências e congressos de quilombolas. Hoje, me volto mais para a escola, para os alunos. Porque já tive conflitos por divergências... Não quero brigar com ninguém, então me afastei.

Ressalte-se que essa entrevista com Ana Alice foi realizada no inicio do mês de

janeiro, antes da elaboração do planejamento (2010). No decorrer do primeiro semestre,

verificamos que embora a docente tentasse se afastar das discussões, nas ocasiões em que

eram debatidas as propostas de solução dos problemas que mais afligem a coletividade, como

é o caso da manutenção da estrada e o despejo de lixo próximo à comunidade, ela esteve

presente e ajudou na mobilização dos demais moradores.

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Nessa entrevista a professora atribui à associação a responsabilidade de trabalhar a

“conscientização” e valorização da identidade quilombola. Não cabe aqui qualquer

julgamento do ponto de vista da docente, nem temos essa intenção, porém entendemos que a

valorização da identidade do grupo não depende somente da associação de moradores. É

também atribuição da escola, possibilitar aos sujeitos, a reconquista de uma identidade

positiva, dotada de orgulho próprio, principalmente em se tratando de pessoas muitas vezes

atingidas pelos preconceitos como revela Ângela quando fala de situações que vivenciou:

Percebo muito preconceito conosco. Devido à aproximação com o lixão. Nos chamavam de catadores de lixo. As pessoas pensam que a comunidade é dentro do lixão. Também há preconceito em relação à alimentação: devido à produção de farinha, nos apelidavam de “come xibé10”. Eu vivi esse tipo de situação, menos pela questão de ser negro e muito mais por ser rural, ser do interior, da roça, pois querem dizer que somos atrasados, desinformados.

4.1.3 O Preconceito Fora e Dentro da Comunidade

Antes de adentrarmos na discussão sobre a questão das desigualdades entre negros/as e

brancos/as no espaço escolar, consideramos importante conceituarmos o preconceito, a

discriminação racial e o racismo.

O preconceito é uma opinião preestabelecida de intolerância e aversão com relação a

um grupo ou pessoa, baseando-se num processo de comparação social em que o grupo da

pessoa preconceituosa é considerado um ponto positivo de referência. Normalmente o

preconceito vem acompanhado de atitudes discriminatórias (CAVALLEIRO, 2001).

A discriminação racial é atitude ou ação de distinguir, separar as raças, tendo por base

idéias preconceituosas. A discriminação supervaloriza determinadas culturas, da ao

discriminador a idéia de que é o melhor e desenvolve no discriminado o sentimento de

inferioridade (LOPES, 2005).

O racismo, atualmente se manifesta com mais evidência quando se tenta negar a

humanidade das pessoas negras, comparando-as por seus atributos físicos a coisa e animais e

se transforma as diferenças em desigualdades. Considerando que racismo remete ao termo

raça, ressaltamos que essa categoria – raça – não é utilizada aqui no sentido biológico, nem

pautada na idéia de supremacia racial, mas sim na perspectiva do Movimento Negro, que a

emprega baseado em uma reapropriação social e política, construída pelos próprios negros.

10 Xibé, na linguagem popular paraense, designa a farinha de mandioca molhada com água formando um pirão para ser consumido com camarão seco, charque ou peixe assado na brasa. - VER Raimundo Mario Sobral

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Vale destacar que não identificamos práticas racistas nas relações sociais estabelecidas

no interior da comunidade e da escola e nem abstraímos das falas e comportamentos dos/as

interlocutores/as qualquer manifestação dessa natureza. Mas percebemos o preconceito

expresso nos apelidos que, às vezes, substitui o nome da pessoa, nos risos do cabelo “ruim”

ou da “fala errada”.

Em pesquisa realizada em três escolas da cidade de São Paulo, Cavalleiro (2005)

mostra como a escola configura um espaço de produção de discursos racistas, posturas

discriminatórias e disseminação de preconceitos raciais. A autora relata que, do diálogo com

os profissionais da instituição escolar sobressai a negação do racismo nos mesmos moldes da

sociedade mais ampla, que insiste no mito da democracia racial, embora em observação do

cotidiano escolar constate-se inúmeros episódios em que crianças negras são isoladas de

grupos ou separadas em sala de aula, pelo professor, de acordo com sua pertença racial. Além

disso, os professores, por vezes, silenciam-se ou negligenciam as situações de discriminação

contra as crianças negras, concebendo suas queixas como conseqüência de ciúmes ou

carências afetivas.

Na escola de Abacatal, segundo as professoras, acontece entre os/as estudantes,

situação de preconceito. Há ocasião em que uma criança se recusa brincar ou fazer uma

atividade junto com outra que esteja com roupa suja e mal cheirosa, assim como ocorre de

dizerem apelidos e piadinhas relativos às características fenotípicas, sobretudo, a cor da pele e

o cabelo, como informa a professora Ana Alice (2010):

As crianças, às vezes, são reflexo dos adultos. Na escola o preconceito por ser negro não é tanto, mas tem. O problema maior é com as crianças que vêm sujas, porque os outros dizem logo que não querem sentar perto e não querem nem brincar. É preciso chamar os pais e conversar sobre os cuidados de higiene. Mas acontece de se apelidarem e fazerem brincadeiras uns com os outros devido à cor da pele ou o cabelo. De vez em quando tem que chamar atenção, conversar com eles para não serem preconceituosos.

Cavalleiro (2006) registra que o preconceito às vezes começa em casa onde as relações

estabelecidas reproduzem através de práticas e discursos a idéia de diferença a partir de uma

construção negativa do outro.

O comportamento preconceituoso das crianças no espaço escolar pode ser visto como

a absorção de um modelo ideal de beleza imposto pela sociedade e difundido através da

mídia: homem/mulher, branco/a, rico/a, magro/a, heterossexual; aquele que está fora desse

“modelo” como os grupos sociais e étnico-raciais socialmente marginalizados (negros, índios,

judeus, homossexuais e outros), é induzido a desejar, introjetar e difundir esse modelo

estereotipado, negando a história do seu grupo étnico-racial e dos seus antepassados.

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A visibilidade às relações que se estabelecem na escola é alvo do estudo de Cavalleiro

(2000, p.147), que faz uma abordagem das dinâmicas de socialização de crianças em uma

Escola Municipal de Educação Infantil em São Paulo, na qual a autora enfatiza que, embora

práticas discriminatórias não sejam gestadas na escola, este ambiente as reforça através da

“difusão de valores, crenças, comportamentos e atitudes de hostilidade em relação ao grupo

negro, que comprometem seu reconhecimento e sua aceitação por parte dos que lá estão”.

Gomes (2008) traz importante contribuição a esse debate, pois ao analisar o processo

de construção da identidade negra a partir de atividades estéticas desenvolvidas nos chamados

salões étnicos em Belo Horizonte (MG), faz uma reflexão sobre a questão da busca do belo

como um dado universal do ser humano. Ao discorrer sobre as dinâmicas que destituem os/as

negro/as do lugar da beleza com um foco muito preciso nas principais expressões e suportes

da identidade negra – o cabelo e o corpo –, a autora aponta mecanismos sutis por meio dos

quais as desigualdades se imprimem cotidianamente nas relações sociais que os/as negros/as

estabelecem.

Esta autora afirma que para os sujeitos de sua pesquisa, na sua maioria mulheres

negras jovens e adultas, na faixa dos 20 aos 60 anos, a experiência com o corpo negro e o

cabelo crespo não se reduz ao espaço da família, das amizades, da militância ou dos

relacionamentos afetivos. A trajetória escolar aparece em todos os depoimentos como um

importante momento no processo de construção da identidade negra e, lamentavelmente,

reforçando estereótipos e representações negativas sobre esse segmento étnico/ racial e o seu

padrão estético. O corpo surge, então, nesse contexto, como suporte da identidade negra, e o

cabelo crespo como um forte ícone identitário.

Mas os preconceitos, a discriminação e o racismo não se manifestam somente na

escola. Como diz Munanga (2005) os negros/as são alvo de discriminação e preconceito por

ter sua história de vida associada à escravidão. Os moradores de Abacatal, já vivenciaram e

ainda vivenciam situações de preconceito e discriminação. Às vezes o preconceito não se

mostra de forma explicita, mas de forma sutil, como é possível depreender do comentário de

Ângela sobre a curiosidade das pessoas pela comunidade:

Hoje, a comunidade, por ser reconhecida como remanescente de quilombo, noto que as pessoas têm curiosidade. Querem saber se tem muitos negros, se todos são negros mesmo. Já não ouço tanto os apelidos de catadores de lixo entre as crianças. Quando digo, na Universidade que sou de uma comunidade quilombola, alguns colegas querem saber como é, o que tem aqui e querem vir conhecer.

Como se percebe, o preconceito se manifesta com novas linguagens, novos discursos.

A comunidade quilombola aprece como algo exótico que desperta a curiosidade das pessoas,

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que querem saber “se todos são negros mesmo”. Então o que identifica o quilombola é a cor

da pele somente? Certamente não, embora ainda persista a idéia de que a identidade negra é

determinada pelo fator biológico. A esse respeito Gomes (2001, p. 89) afirma que no Brasil

ser negro “não se restringe a um dado biológico. É uma postura política. É declarar o vínculo

com uma cultura ancestral, com origem africana, recriada e ressignificada em nosso país”.

Sobre a identificação do/a negro/a remanescente de quilombo, Leite (2000) e ODwyer

(2002) registram que as comunidades têm acionado como sinais diacríticos, as expressões

culturais, as relações de parentesco (sangüineo e espiritual) e a cor da pele. Destacamos que o

principal critério de identificação de comunidades quilombolas é a auto-atribuição,

estabelecida pelo Decreto 4.887/2003, o qual, no artigo 2o, caput, dispõe:

Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

Ninguém melhor do que os próprios integrantes, que vivenciaram e vivenciam a

história, as manifestações culturais, os costumes locais, os modos de fazer, para se auto-

atribuírem remanescentes de quilombos. A esse respeito nos estudos antropológicos de

Almeida (2002) consta que:

[...] O importante não é tanto como as agências definem, ou como uma ONG define, ou como um partido político define, e sim como os próprios sujeitos se auto-representam e quais os critérios políticos organizativos que norteiam suas mobilizações e forjam a coesão em torno de uma certa identidade.[...] Os procedimentos de classificação que interessam são aqueles construídos pelos próprios sujeitos a partir dos próprios conflitos, e não necessariamente aqueles que são produtos de classificações externas, muitas vezes estigmatizantes.

Arruti (2006) contribui com o debate sobre o processo de identificação das

comunidades remanescentes de quilombos quando explica que é necessário reconhecer que há

um acordo entre a história e a memória, pois o movimento de passagem do desconhecimento

à constatação por parte de um grupo de sujeitos implica um trabalho social de reinvestimento

de significados sobre a própria memória local. Primeiro rompe-se com o silêncio ao qual a

comunidade havia sido relegada; depois investe-se de forma produtiva sobre a comunidade

através de varias agencias - o Estado, o direito, a academia, o movimento social – visando

ganhar progressivamente o estatuto de história. Isso significa que a identidade de uma

comunidade não está pronta, mas que é preciso refletir sobre seu processo identitário. Em

razão disso, entender as comunidades quilombolas no Brasil implica a compreensão do

cenário político, da luta pelo território, a luta sócio-cultural e das reflexões cientificas em

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processo de formação.

Voltando às situações de preconceito que os moradores de Abacatal experimentam nas

relações que estabelecem com diferentes segmentos da sociedade, abstraímos das declarações

dos/as interlocutores/as que o grau de tensão nessas situações podem variar de acordo com o

lugar que freqüentem e as pessoas com as quais se relacionam. Santana relata acontecimentos

que demonstram maneiras das pessoas expressarem seus preconceitos:

Lá fora tem preconceito por ser negro quilombola, por ser do Abacatal, por chegar sujo de lama. Acredita que já aconteceu de perguntarem o que nós comemos? Pois perguntaram se comemos carne, frango, arroz, assim com admiração e curiosidade! Fiquei aborrecida, porque como é que uma pessoa tem coragem de perguntar isso, assim desse jeito: o que vocês comem lá? Vocês comem carne?! Será que nós não podemos comer carne? Não temos esse direito? Essas coisas que eu vejo como preconceito. Tem lugar que nos tratam como se fôssemos pobres coitados e o pior é que tem gente aqui que se sente coitadinho. Mas nós não somos coitadinhos. Somos trabalhadores, temos direitos. Eu sou descendente, não tenho problema de dizer que sou quilombola e quero meu espaço, quero respeito.

Ressalte-se que Santana, desde criança, acompanha as lutas da comunidade, adquiriu

experiências com o envolvimento nas questões dos trabalhadores rurais e no movimento

quilombola. Estudou até a quarta série do Ensino Fundamental, ressente-se de não ter

continuado os estudos e considera a escola fundamental para aprender a ler e com isso

conhecer os direitos. Contudo, para além do processo de letramento, a educação escolar, deve

estar preparada para romper com o silêncio a que foram relegados/as os/as negros/as na

sociedade brasileira, para que possam construir uma imagem positiva de si mesmos.

4.2 ESCOLA MANOEL GREGÓRIO ROSA FILHO: construção da identidade quilombola

4.2.1 Formação das professoras, orientações curriculares e práticas pedagógicas

Como dissemos antes, o número de escolas e de professores/as não é suficiente para

atender os/as estudantes quilombolas nos lugares onde moram e, os/as educadores/as que

atuam nas escolas das áreas remanescentes de quilombo, em sua maioria, não possui

capacitação para dar conta desse universo cultural. Muitas vezes, uma professora, com o

Ensino Médio, ministra aulas para turmas multisseriadas (Relatório UNICEF, 2009). Essa

realidade compromete a aprendizagem e a formação cidadã dos/as educandos/as, pois embora

os/as docentes não sejam os/as únicos/as agentes do processo educativo, é sobre eles/elas que

recai grande parte da responsabilidade. Para o trato com a questão étnico-racial, há

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necessidade de uma formação docente que dê base para identificar e corrigir os estereótipos e,

combater as práticas racistas e discriminatórias.

Munanga (2000) chama a atenção para a importância da formação de professores

como um meio de reverter posicionamentos equivocados de profissionais que lidam

diretamente com crianças e jovens das mais diversas etnias como negros, brancos, indígenas,

judeus, japoneses, árabes, para que não reproduzam situações de preconceito e discriminação

presentes na sociedade e que acabam sendo reificados no ambiente escolar. O referido autor

escreve:

A educação é problemática porque os educadores, mediadores responsáveis por sua educação e formação, são ainda em sua maioria, vítimas de uma educação preconceituosa eurocêntrica na qual foram socializados e formados e em conseqüência da qual não tiveram preparo para lidar com as questões de diversidade e de preconceito na sala de aula e no espaço da escola. Problemática porque as relações entre educadores e educandos entre alunos brancos e alunos negros são também atravessados pelos preconceitos étnico-raciais (MUNANGA, 2000, p. 242).

O despreparo dos educadores para lidarem com as relações raciais se deve, em grande

parte, ao fato de as instituições de ensino oferecerem uma formação pouco vigorosa,

deficiente, sem darem conta de formarem profissionais capazes de atuarem em práticas plurais

e em condições teóricas de subverter as práticas racistas e discriminatórias no âmbito da

escola. Conforme Coelho (2008, p. 225):

[...] a formação docente é deficiente em relação à questão racial, porque ela se esquiva de assumir-se como um processo de formação profissional. Os cursos de formação de professores não têm se ocupado com a formação de um profissional que trabalhe em acordo com os determinados padrões de comportamento e atuação profissional.

Gomes e Silva (2006, p.25) também contribuem com essa discussão:

[...] os sujeito sociais, sendo históricos, são também culturais. Essa constatação indica que é necessário repensar a nossa escola e os processos de formação docente, rompendo com as práticas seletivas, fragmentadas, corporativistas, sexistas e racistas ainda existentes.

A escola, enquanto instituição voltada para a formação e preparação para o exercício

da cidadania, precisa estar atenta e sensível ao trabalho contra a propagação e disseminação

de qualquer tipo de preconceito e exclusão no seu interior, visto que os/as estudantes serão

elementos fundamentais para questionarem e combaterem essas práticas.

Vale pontuar que algumas medidas têm sido adotadas para minimizar os efeitos

danosos da exclusão, do racismo, da discriminação e dos preconceitos. Entre elas apontamos

o acordo internacional de combate a qualquer forma de discriminação, assumido pelo Brasil

na Conferência Mundial contra Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância

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Correlata em Durban (2001) e, logo em seguida, a criação do Programa Nacional de Direitos

Humanos (2002). Ligado mais diretamente a educação foi sancionada a lei 10.639 (2003)11

que inclui a temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo escolar, reconhecendo

a importância de conteúdos ligados à identidade negra até então excluídos.

Estas medidas tiveram como conseqüência direta, a elaboração pelo Conselho

Nacional de Educação, das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações

Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL,

2004) e das Orientações para a Educação das relações Etnico-Raciais, pela SECAD, isto

evidencia a necessidade de aprofundar a questão das relações raciais em nossa sociedade e na

própria escola. Porém, estudos (CAVALLEIRO, 2001; GOMES, 1997) demonstram que a

efetivação das diretrizes no ambiente escolar ainda tem um longo caminho a percorrer.

Embora seja longo, o caminho começou a ser percorrido, pois verificamos que na

formação continuada de professores/as têm sido oferecidos cursos de capacitação, seminários,

simpósios e cursos de especialização tendo como tema central a educação das relações étnico-

raciais, seja por iniciativa do governo federal através da SECAD, em parcerias com as

secretarias estaduais e municipais de educação ou por iniciativa de universidades, em todo o

país12.

No Pará, a Universidade Federal têm ofertado cursos de especialização em Educação

das Relações Étnico-Raciais e história e cultura afro-brasileira. A Secretaria de Estado de

Educação (SEDUC), desde 2006, realiza formações continuadas com essa temática. Em

Ananindeua, a SEMED realizou uma formação, em 2006, sobre relações étnico-raciais, na

qual foram debatidas: a lei 10.639/03 e as possibilidades de efetivação das DCNERER, nas

escolas do município. As professoras da escola Manoel Gregório Rosa Filho, Ana Alice e

Luciana e a gestora Onélia, participaram dessa formação continuada. Luciana recorda que a

partir dessa formação a escola desenvolveu um projeto que visava trabalhar história e cultura

afro-brasileira e africana:

O curso foi de 120 horas em duas etapas: uma teórica com o estudo das diretrizes e outra com oficinas de elaboração de projetos. No projeto elaborado a idéia era envolver todas as áreas do conhecimento. Em matemática foi trabalhado, por exemplo, a geometria com as pirâmides; em história, a herança histórico-cultural africana; em língua portuguesa, a oralidade e o vocabulário de origem afro. Faltou desenvolver a parte cultural com alguma expressão artística. Depois disso, fomos

11 Em março de 2008, foi sancionada a Lei n. 11.645, a qual altera a Lei 9394/96, modificada pela Lei n. 10.639/03, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional e inclui, no currículo oficial, da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. 12 Entre as universidades que oferecem especializações em educação das relações étnico-raciais podemos citar as federais: do Pará (UFPA), da Bahia (UFBA), de Minas Gerais (UFMG).

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nos envolvendo em outras propostas da secretaria, vimos outras prioridades na escola e fomos deixando de desenvolver trabalhos na perspectiva das relações étnico-raciais.

As professoras avaliam que o projeto elaborado e desenvolvido a partir dessa

formação continuada foi proveitoso, pois houve boa participação dos/as estudantes e da

comunidade escolar. Porém, não houve continuidade porque a escola priorizou outras ações

para melhorar o desempenho dos/as educandos/as na apropriação dos conteúdos específicos

das disciplinas e deixou a questão racial um tanto quanto adormecida. Além disso, as docentes

começaram a participar da formação especifica na área do Conhecimento Linguístico para

desenvolverem projetos de intervenção pedagógica, que visam desenvolver as habilidades de

leitura e escrita dos/as estudantes.

O desenvolvimento desses projetos poderia ter sido uma boa oportunidade de

estabelecer um dialogo sobre a temática étnico-racial e para o estudo da história dos

quilombos, dialogando com a história da própria comunidade, mas a escola, preocupada em

proporcionar aos educandos/as a apropriação dos conteúdos e o desenvolvimento das

habilidades de leitura e escrita, não atentou para essa possibilidade. Sendo assim, a questão

racial não aparece com muita freqüência na escola, sendo mais evidente, em maio, na semana

de aniversário do título de propriedade do território como remanescentes de quilombo, que

coincide com o dia da abolição da escravatura e, em novembro, na semana da consciência

negra.

Provavelmente a questão racial ainda é trabalhada apenas eventualmente na escola

porque faz pouco tempo que, através das formações, as professoras começaram a discutir a

importância de inserir tal questão em suas práticas pedagógicas. Nas entrevistas as docentes

nos revelaram que no curso de magistério nãos tiveram qualquer disciplina que abordasse as

relações étnico-raciais, cultura afro-brasileira, história da África, racismo, preconceito ou

discriminação no ambiente escolar. Ângela e Ana Alice informaram que só agora, na

faculdade, cursando pedagogia, começaram a fazer leituras sobre cultura afro-brasileira e que

precisam obter mais conhecimentos sobre a questão racial para trabalharem com as crianças,

na escola.

Quanto à temática das relações étnico-raciais, as docentes afirmam que trabalham com

a lei 10.639, mas não com freqüência. Para as professoras a maior dificuldade é adquirirem

referenciais teóricos e recursos pedagógicos adequados, pois devido à dinâmica de trabalho na

escola, não podem ir às bibliotecas ou outros espaços para pesquisarem. O acesso a algum

material sobre o assunto é quando participam de seminários e palestras, na faculdade ou nos

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cursos da SEMED.

Este ano de 2010, os planejamentos das escolas da rede municipal de educação

(Ananindeua) passaram a ser norteados pela Proposta Curricular para o Ensino Fundamental

de nove anos13 (2010, p. 4) cujos pressupostos e princípios norteadores estão:

Respaldados nas experiências vivenciadas nas escolas municipais e, do ponto de vista legal, estão de acordo com as orientações da LDB 9.394/96, Lei 11.274/06, Resolução 09/2008-CNE, os Parâmetros Curriculares Nacionais, as Referencias Curriculares Nacionais e o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Não analisamos detalhadamente todo o documento, apenas apresentamos os aspectos

gerais da nova proposta curricular e enfocamos os eixos temáticos, os conteúdos e as

estratégias metodológicas propostos para as áreas do conhecimento Lingüístico e do

Conhecimento Social, porque estão relacionadas às disciplinas Língua Portuguesa e História

que têm, particularmente, a incumbência de desenvolver, em seus conteúdos, o ensino de

História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, conforme estabelece o Parecer CP/CNE no:

3/2004.

Segundo o documento que constitui a Proposta Curricular para o Ensino Fundamental

de nove anos, da SEMED, trata-se de uma proposta construída coletivamente com a

comunidade escolar de Ananindeua e tem como característica a flexibilidade. Portanto, não se

constitui num modelo hegemônico para se sobrepor à competência e autonomia da escola.

Mas “deverá funcionar como eixo norteador das práticas pedagógicas deixando espaço para a

criatividade e dinâmica própria de cada escola e de cada área de conhecimento” (SEMED,

2010, p. 6).

O novo Ensino Fundamental da RMA institui o Período Básico de Alfabetização –

PBA – com o período de três anos iniciais de compromisso coletivo pela alfabetização das

crianças de seis a oito anos de idade. Esse novo currículo adota um modelo pedagógico

respaldado no desenvolvimento de competências e habilidades, na pedagogia de projetos

como prática metodológica e numa perspectiva de avaliação para o sucesso da aprendizagem,

não cabendo espaço para a certificação do fracasso escolar, pois o/a educando/a deve ser visto

como “um ser em formação, com suas particularidades, especificidades, cultura, experiências

de vida” (SEMED, 2010, p. 6).

Desse modo, o novo Ensino Fundamental propõe a substituição de conteúdos

seqüenciados e fragmentados por conteúdos significativos e contextualizados, através dos

quais os saberes da vivência dos/as educandos/as devem ser o ponto de partida do processo de 13 A lei no 11.274/06 altera a redação dos artigos 29, 30, 32 e 87 da LDB 9394/96, dispondo sobre a duração de nove anos para o Ensino Fundamental, com matrícula obrigatória a partir dos seis anos de idade.

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aprendizagem. Nessa perspectiva a escola “deve ser um pólo gerador e irradiador de cultura,

de construção da identidade, conhecimento e de instrumentalização do aluno para a sua

formação cidadã” (SEMED, 2010, p. 16).

Destacamos então, da matriz curricular na área do Conhecimento Lingüístico, para o

PBA (10 ao 30 ano) o eixo temático Linguagem Oral, cujos conteúdos previstos são: escuta,

narração, discussão, entrevista, exposição oral, relatos e, entre as estratégias metodológicas

estão: rodas de conversar e de leitura, narração ou contação de histórias, exposições orais das

crianças, leituras diárias feitas pelo/a professor/a. Observamos que esses conteúdos são

trabalhados pelas professoras de Abacatal, pois em diferentes ocasiões presenciamos rodas de

conversas, narrações e contação de histórias com a participação significativa das crianças. Os

teor das histórias contadas variam entre a origem do lugar, os episódios das tentativas de

expulsar os moradores de suas casas e a reação da comunidade, a conquista do titulo de

propriedade, a construção do novo prédio da escola e, incluem ainda as festas e outras opções

de lazer dos mais antigos como as comemorações do Sagrado Coração de Jesus e os banhos

de igarapé .

Esses conteúdos também fazem parte dos Projetos de Intervenção Pedagógica

desenvolvidos bimestralmente visando desenvolver habilidades de leitura e escrita de forma

lúdica e reforçar os conteúdos das disciplinas. Trata-se na verdade de um conjunto de

atividades pedagógicas, elaboradas por cada professora, de acordo com a clientela (série e

faixa etária), para trabalhar as dificuldades de leitura e escrita. As professoras utilizaram

contos, lendas, narrativas de histórias, leitura dramatizada, e construção de textos. Na

contação de histórias as docentes utilizam, entre outras, as histórias da comunidade, por isso

os estudantes contam o que escutam dos pais e/ou avós sobre Abacatal de “antigamente”, e

sobre as encantarias, como a Matinta Pereira, o Curupira e a mãe d’água.

Percebemos que as crianças se interessam e participam ativamente das atividades, mas

as docentes ainda aproveitam pouco essa estratégia para construir textos, com os estudantes, a

partir das memórias, dos saberes, das vivências que levam para a escola; associar com a

história dos negros e dos quilombos no Brasil, problematizando os conteúdos dos livros

didáticos e contribuindo com a identificação positiva das crianças com a origem histórica e

cultural do grupo do qual faz parte.

No eixo temático apropriação do sistema de escrita os conteúdos são: o alfabeto (letra

maiúscula e minúscula, categorização gráfica e funcional das letras); frases, palavras e

unidades fonológicas; convenções gráficas (alinhamento e direção da escrita, margem e

parágrafo); ortografia. Quanto à escrita observamos que as professoras trabalham os

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conteúdos propostos, mas fazem pouca ou nenhuma relação com os conteúdos da linguagem

oral, isto é, não partem da narração das histórias para a construção de frases, textos ou para o

ensino da ortografia. Para esse trabalho utilizam os livros didáticos.

A matriz de referência curricular na área de Conhecimento Social tem como eixos

temáticos: identidade, grupos sociais e diversidade; história local e do cotidiano; o espaço

físico. No primeiro eixo os conteúdos são: identidade, importância do nome, certidão de

nascimento; história de vida e da família; a família e a vida familiar; árvore genealógica,

noção de geração; tipo de moradia, endereço e vizinhança; os grupos sociais: família, escola e

comunidade e sua importância na construção da identidade do cidadão; a escola: sua história,

suas dependências e funcionários; comunidade: história do lugar onde mora. Alguns desses

conteúdos são desenvolvidos nas aulas, sendo que, com o primeiro ano do PBA, as

professoras trabalham bastante os nomes das crianças e a família. Com as crianças de segundo

e terceiro ano do PBA as docentes, além dos nomes e da família, trabalham a escola e a

comunidade.

Verificamos que ao trabalharem a família, as docentes não se prendem ao modelo

representado nos livros didáticos: pai, mãe e filhos/as. Procuram demonstrar as diferentes

composições de famílias existentes na própria comunidade. Sobre a escola, as professoras

trabalham o espaço físico – salas de aula, secretaria, diretoria, copa, banheiros, deposito e

outros -, as atribuições dos funcionários e a função da escola enquanto instituição responsável

pelo ensino dos conhecimentos historicamente construídos. A abordagem sobre a história e a

importância da escola da comunidade se limita a conversas e aconselhamentos para que os/as

estudantes tenham zelo pelo prédio, pelos móveis e pelos recursos didáticos por se tratar de

patrimônio público.

O eixo temático História Local e do Cotidiano tem como conteúdos: história do

município de Ananindeua; permanências e transformações ocorridas ao longo do tempo;

manifestações culturais do município; meios de transportes e comunicação; as profissões e

sua importância. No eixo Espaço Físico os conteúdos são: lugares de vivência: a casa, a

escola, a rua, o bairro; natureza, o lugar e suas transformações; construção do espaço

geográfico; paisagens naturais e humanizadas. Como estratégias pedagógicas são

apresentadas as seguintes sugestões: visitas e pesquisas em museus, bibliotecas, teatros e

fortes; apresentações teatrais; valorização dos saberes que os alunos já possuem sobre os

temas abordados; conversas dirigidas e informais; construção da árvore genealógica;

elaboração de mapas; produção de textos.

Observamos que para o quarto Período Básico de Alfabetização a docente Ana Alice

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selecionou os seguintes conteúdos: Construção da identidade: Eu, a sociedade e o meio

ambiente; datas comemorativas; respeito às diferenças; direito da criança e do adolescente;

direito da pessoa com deficiência; direito da pessoa idosa; locais públicos e privados; o

município de Ananindeua: histórico de fundação, representantes políticos; o Estado do Pará:

formação histórica, formação étnico-racial, manifestações culturais; o Brasil: o processo de

colonização, a miscigenação étnica, o trabalho no campo: agricultura e pecuária.

Para a professora, trabalhar o “EU” visa ensinar as crianças a valorizar a identidade

quilombola, pois como ela mesma diz “todos sabem que são quilombolas, mas precisam

aprender a valorizar”. Valorizar o “ser quilombola”, é não ter vergonha de dizer que é de

Abacatal, é acreditar que pode melhorar as condições de vida, apesar das dificuldades e, a

possibilidade de melhorar de vida é através da educação para o estudo.

Verificamos que para o ensinamento da valorização do “ser quilombola”, a professora

costuma abordar a origem de Abacatal, as luta pelo território e outras conquistas da

comunidade, nas rodas de conversas. São momentos descontraídos em que os/as estudantes

ficam a vontade para contarem o que sabem e a professora enfatiza a coragem e a persistência

dos moradores que estiveram à frente dos conflitos pela terra, chamando a atenção para o

valor histórico da comunidade.

Entendemos que essa maneira da professora trabalhar a valorização da identidade

quilombola está relacionada à tradição oral, mantida na comunidade. Essa prática tem relação

com a educação como cuidar (OLIVEIRA, 2003), pois através das conversas, da prática de

dar conselhos, são inseridos os ensinamentos de geração em geração. Desse modo, os saberes

culturais da comunidade estão presentes na escola.

A iniciativa da professora é louvável, uma vez que cria um espaço para os saberes e as

vivências dos/as educandos/as na sala de aula e, consciente ou inconscientemente contribui

para reforçar a tradição oral e recuperar a memória do grupo. Entretanto, para trabalhar os

conhecimentos historicamente construídos, previstos nos programas das disciplinas, a docente

escreve no quadro, para que as crianças copiem em seus cadernos, os textos do livro didático

com pequenas adaptações na linguagem, mas com pouca ou nenhuma relação com as histórias

narradas.

Aqui queremos chamar atenção para o uso dos livros didáticos, pois embora não

tenhamos feito análise desse recurso pedagógico, observamos sua utilização pelas professoras.

Segundo Onélia a quantidade de livros não é suficiente para atender o número de crianças:

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O pedido dos livros didáticos é feito a cada quatro anos, mas a entrega atrasa, as coleções vêm incompletas e a quantidade sempre é insuficiente para o número de alunos porque a entrega é feita com base no censo do ano anterior e como as matriculas aumentam a quantidade de livros não dá para todos. Então, recorremos a outras escolas, usamos os das disciplinas que vêm completas.

A quantidade insuficiente desse recurso didático é uma das razões apontadas pelas

professoras para não se prendem aos livros didáticos e elaborem os textos para trabalharem

com os/as estudantes. Ana Alice fala de sua estratégia para construir textos didáticos:

Não nos prendemos nos livros, mesmo porque não têm para todos os alunos. Fazemos adaptações. Procuramos construir os textos a partir de nossas leituras de outros livros, mesmo porque essas coleções não são produzidas aqui, vem de outras regiões do país e raramente trazem conteúdos sobre a nossa região e, sobre nosso município muito menos. Assim, aproveitamos alguns conteúdos e outros não e vamos completando com outros textos.

Luciana diz: “não costumo usar os livros na íntegra, construo cartazes e jogos usando

materiais como: tinta guache, material emborrachado, cola colorida, cartolina e recortes de

revistas e jornais e, elaboro textos”. Para Ângela o livro didático é um problema, pois: “para a

Educação Infantil não tem livro didático e nem da literatura infantil. Sempre precisamos ir à

busca, fazer nosso material, só que isso exige tempo e, no decorrer das aulas não podemos

parar para elaborar material”.

Observamos que os/as educandos/as não fazem uso de livros didáticos e nem levam

para a sala de aula. Geralmente as docentes anotam os conteúdos no quadro e as crianças

copiam em seus cadernos. As adaptações são na linguagem, a fim de torná-la mais

compreensível aos estudantes e, os conteúdos acrescentados são sobre o estado do Pará e o

município de Ananindeua.

Em relação ao respeito às diferenças observamos, nas paredes da sala de aula, cartazes

e desenhos feitos pelas crianças demonstrando pessoas com diferentes características

fenotípicas. Os cartazes em homenagem às mães, por exemplo, continham imagens de

mulheres negras, brancas e com traços indígenas, seguidos das frases: “Minha mãe é assim”;

“Salve o dia das mães”. Os desenhos retratavam as famílias, mostrando as diferenças entre os

seus componentes.

Não sabemos qual foi a orientação das docentes para a construção desses trabalhos.

Contudo, entendemos que para além das diferenças na aparência é necessário criar condições

que possibilitem que as diferenças culturais, religiosas, comportamentais e outras possam ter

espaço no ambiente escolar, criando assim a consciência de que “é na diversidade que se

constrói algo novo” (CAVALLEIRO, 2001, p.102).

No mês de abril de 2010, teve inicio, na escola, uma formação para trabalhar o

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material do kit a Cor da Cultura (MEC), sob a coordenação da equipe do Projeto Ônibus

Biblioteca Anani (SEMED), visando desenvolver, com a comunidade escolar, propostas de

atividades utilizando o material do referido kit pedagógico. Essa formação deverá ocorrer em

encontros mensais ao longo do corrente ano.

Acompanhamos os três primeiros encontros, dos quais participaram as professoras, a

gestora, a secretária, uma mãe e uma representante da comunidade. Foram momentos valiosos

de troca de experiências e saberes em que discutimos as possibilidades de trabalhar, com os

discentes, a história e cultura africana e afro-brasileira, a partir da história e cultura da própria

comunidade. A dinâmica dos encontros incluía atividades lúdicas (danças e brincadeiras);

comentários de vídeos, audição musical, debates e construção de materiais didáticos. Cada

mês a equipe de mediadores priorizou um dos recursos do kit, enfocando os valores

civilizatórios afro-brasileiros como: a oralidade, a memória, a ancestralidade, a corporeidade,

a religiosidade e a musicalidade.

Em um dos encontros, os/as mediadores/as utilizaram vídeos que abordam a

religiosidade afro-brasileira e músicas características de expressões culturais de raiz africana

como o tambor de crioula e o jongo. Durante os debates, um dos mediadores perguntou se

havia na comunidade alguma dança ou manifestação religiosa afro-brasileira. As educadoras

responderam que um tempo houve um grupo de dança folclórica e foi formado um grupo de

capoeira na escola, mas não tinham boa aceitação, pois a comunidade associava com a

“macumba” e não teve continuidade por falta de pessoas para assumirem os ensaios e a

organização grupo. Sobre a religião a resposta foi que Abacatal é uma comunidade católica,

mas tem uma família de evangélicos.

Em nossas observações do cotidiano da escola vimos momentos de oração nas salas de

aula, principalmente nas turmas de Ana Alice. Não existe um horário especifico, pode ser no

inicio da aula, após o recreio ou momentos antes da aula acabar, mas as orações são as

mesmas: um Pai Nosso, uma prece de agradecimento e uma Ave Maria. Todos rezam, e

depois retomam as atividades. Percebemos que outras crenças não são tratadas em sala de

aula, nem nas preces, nem nas aulas, nem nas rodas de conversas. Na escola prevalece a

religião católica. Segundo as professoras, é uma temática muito difícil de abordar, pois os/as

estudantes não tratam com seriedade e os pais não vêem com bons olhos as manifestações

religiosas diferentes da católica e as associam às coisas ruins.

Notamos que após o segundo encontro formativo as professoras começavam a levar os

temas discutidos na formação, para a sala de aulas. A realização dos jogos da copa do mundo,

favoreceu às professoras falarem sobre a África com base, inicialmente, no que as crianças

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assistiam na televisão e depois usando textos e mapas. Na sala de Ana Alice observei que ela

usou o mapa do continente africano para localizar os países onde seriam realizados os jogos e

também chamou a atenção das crianças para a cultura dos povos africanos como os hábitos

alimentares, os ritmos musicais e as crenças. Mas depois dos diálogo, não desenvolveu

atividades.

4.2.2 Família e comunidade: guardiãs de saberes culturais e valores

Quando falamos de saberes estamos nos referindo a um conjunto de conhecimentos e

maneiras de fazer próprios das vivências cotidianas das comunidades e que se expressam em

diferentes espaços (dentro e fora das comunidades), onde se reproduzem práticas culturais

coletivas. Envolvem, entre outras práticas da vida social dos grupos, os rituais de trabalho, da

religiosidade, das festividades (OLIVEIRA, 2003).

Em Abacatal as famílias, sobretudo as mais antigas, são guardiãs dos saberes e dos

valores. A comunidade é conhecida em Ananindeua como produtora dos derivados da

mandioca, especialmente a farinha. Atualmente quatro famílias se revezam na casa de farinha,

como se houvesse uma espécie de agendamento do uso do espaço e dos instrumentos. O

trabalho é dividindo entre: pai, mãe, filhos, genro e/ou nora. Todos vendem o produto na feira

do produtor, em Ananindeua, aos sábados pela manhã, sendo que também produzem por

encomenda e uns já têm cliente certo.

A tradição de transformar a mandioca em goma, tucupi, farinha de tapioca e farinha de

mandioca é repassada através de gerações, conforme demonstra a narrativa do senhor

Benedito sobre seu aprendizado na roça:

Trabalho em roça desde criança. Aprendi fazer farinha, fazendo, ajudando meu pai, que aprendeu com os pais dele e a minha avó aprendeu com o bisavô e assim foi. Aqui quase todos trabalhavam com isso, os tios, os irmãos, os primos e aprendia logo porque desde cedo ia pra casa de farinha e ajudava. Hoje em dia poucos jovens querem essa lida porque não é fácil, é pra quem tem coragem e ai uns procuram fazer outra coisa. Mas tem uma rapaziada nova que enfrenta. As minhas filhas ficaram pouco na lida da farinha porque nós demos jeito delas estudarem pra ter um trabalho melhor.

O desinteresse dos jovens pela produção da farinha é justificado por ser uma atividade

que exige grande esforço físico: ralar a mandioca, extrair o tucupi, peneirar a massa, torrar,

controlar o fogo e tudo de maneira predominantemente manual, pois como argumenta

Santana, não contam com equipamentos que facilite o trabalho:

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Os jovens não querem mais trabalhar no pesado e ganhar pouco e é isso mesmo. Não dá para ficar como na década de oitenta, na base da enxada, queimando. Hoje tem toda a tecnologia, os maquinários para o serviço, mas só que nós não temos acesso. E o jovem vai querer trabalhar como trabalhavam os nossos pais, nossos avós? Não. Não querem trabalhar nisso: roçar, capinar, queimar, fazer farinha na casa de farinha rústica ainda no tipiti. Não. Ninguém quer mais trabalhar assim. Hoje é a prensa, como nas casas de farinha bem equipadas. Aqui não tem e por isso os jovens não querem.

A cultura da mandioca resiste na comunidade, mas as famílias sentem necessidade de

tecnologias que auxiliem na produção. Soma-se à falta de equipamentos, a redução das áreas

de roças de mandioca, devido à divisão dos lotes para a construção de casas das famílias que

vão se formando, o que tem levado alguns produtores a comprar mandioca de agricultores de

outras localidades para poderem fazer uma quantidade razoável de farinha para vender.

Os saberes e os costumes são transmitidos principalmente através da oralidade e das

vivências, como evidenciam as narrativas dos interlocutores e particularmente as do senhor

Benedito a respeito dos hábitos alimentares:

Meu avô e meu pai contavam muitas coisas que eles escutavam dos antigos. Diziam que a comida dos escravos era pouca e eles faziam farinha para comer. Então esse costume de fazer farinha já vem de muito tempo. Quando eu era criança não tinha pão, nosso café era com farinha, com beiju ou tapioca. Hoje tem o pão, tem biscoito, bolacha. Eu gosto de farinha. Esses dias fiz uns exames, deu uns problemas e o médico passou uma dieta ... como é que eu vou tirar a farinha? Desde que eu me entendo por gente que como farinha.

Outros costumes, como o de sentar, a noite, na frente da casa para conversar com os

vizinhos e parentes, também são recordados por Onélia:

Antes de chegar energia elétrica aqui, as famílias se reuniam a noite para conversar. Parentes e amigos faziam fogueiras e conversavam até certa hora da noite. Aos domingos costumávamos fazer um almoço ou um lanche juntos e era divertido. Depois da eletricidade, a televisão foi substituindo as conversas e reuniões de noite. Hoje, poucas pessoas mantêm o costume de sentar na frente de suas casas para conversar.

Santana aponta o respeito aos mais velhos e a solidariedade como importantes valores

da comunidade. Lembra que no seu tempo de criança bastava um olhar dos mais velhos “para

sair, calar, se comportar” e que não mediam esforços para ajudar um parente ou vizinho que

estivesse “passando necessidade” ou com alguma doença.

Durante o período que freqüentamos a comunidade observamos diversas vezes o

costume de pedir a bênção, tanto nas crianças quanto nos adultos e em muitas ocasiões vimos

o pedido da bênção, acompanhado do beijo na mão. Notamos também diferentes gestos de

solidariedade: uma cuia de farinha, a permissão para usar a água do poço, o acompanhamento

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de um vizinho doente até o posto de saúde, o cuidado com os idosos que têm a saúde frágil.

Porém, não podemos pensar que os costumes estão todos preservados e que os gestos

de solidariedade significam ausência de conflitos. Algumas vezes os interlocutores

lamentaram a perda de certos costumes e falaram de desentendimentos entre as famílias,

como relata Ana Alice:

Ocorreram mudanças nos costumes. Hoje muitas coisas estão se perdendo, a produção de paneiro, por exemplo, diminuiu bastante, só algumas pessoas fazem. O costume dos mutirões também acabou. Antes tudo aqui era na base do mutirão, agora bem dizer acabou. [...] os jovens agora têm interesse por outras coisas como as festas fora daqui e, às vezes se envolvem em brigas, confusão. É difícil e triste porque no fundo somos todos parentes e não queremos ver nossos jovens se perdendo. Mas quando alguém chama a atenção os pais ficam com raiva, acham que ninguém deve dar palpite, ai fica difícil mesmo e os adolescentes e os jovens se perdem.

Embora certos costumes se percam e as relações não estejam isentas de conflitos.

Verificamos que a cultura, repassada de geração a geração, através do aprender que incide na

observação e no fazer, seguindo um ritual é uma forma de transmitir valores e saberes que

contribuem na construção da identidade étnica.

4.2.3 As crianças conhecem as histórias de Abacatal

O currículo escolar geralmente não leva em conta as experiências dos/as educando/as

e, ao impor-se como única forma legítima de saber no interior do processo formal de

educação, acaba por esconder sob sua aparência de universalidade, outro currículo, que Apple

(1989), estudioso da ideologia que atravessa o currículo escolar, chama de currículo oculto:

são as cadernetas de freqüência, os sinais de entrada e saída que devem ser obedecidos, a

disciplina imposta na sala de aula, o sistema de recompensas e castigos, e outros pontos, que

não são admitidos como parte do currículo, embora toda a experiência escolar dos alunos, seja

regida pelos rituais que se organizam em torno destas formas de controle.

Por mais que já exista um movimento de mudança curricular pautado nos instrumentos

legais e nas políticas educacionais, ainda predomina no currículo escolar uma formação

eurocêntrica que representa muitos interesses sociais na forma escolhida de transmitir os

conhecimentos. Existem pressupostos ideológicos expressos na organização curricular que

fixam valores e princípios, que passam a se constituir como verdades absolutas e asseguram a

ordem social vigente.

Munanga (2005), Gomes (2001) e Cavalleiro (2001) em seus estudos revelaram o

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envolvimento da escola e do currículo com a reprodução das diferenças raciais e das

desigualdades sociais; seja explicitamente, pela negação do acesso ou pela separação em

diferentes tipos de escola; seja de forma mais velada, pelos critérios de seleção do currículo.

Desse modo, o currículo é utilizado como agente de produção e reprodução da desigualdade e

da subordinação do “outro” (SILVA, 1995, p. 194).

A crítica do etnocentrismo e do racismo, assim como a do machismo, apresenta uma oportunidade concreta aos/às educadores/as para começar a interromper aqueles processos de reprodução e perpetuação de relações de poder num dos locais onde eles se apresentam de forma mais constante e eficaz: na escola e no currículo.

Assim, o currículo está naturalmente no meio do processo de homogeneização social e

cultural da escola. Silva (2002, p. 102) afirma que “[...] o currículo é, sem dúvida, entre outras

coisas, um texto racial”, que omitiu os interesses dos grupos oprimidos ou discriminados

racialmente, desenvolvendo nos negros a dificuldade de assumirem a sua identidade racial.

O currículo de viés eurocêntrico e racista promove, através da repressão e da exclusão

dos valores e práticas culturais dos grupos discriminados, a imponência do padrão branco

ocidental como elemento norteador da cultura universal e que, para Silva (1995) promoveram

uma visão de mundo e de sociedade que vê o diferente construído sempre como déficit,

carência, exotismo e insuficiência em relação à civilização.

No entanto, entendemos com Moura (2005) que há saída, e que é possível escapar do

currículo oficial influenciado pela teoria do branqueamento, pois existe o currículo invisível,

que transmite valores, princípios de condutas e das normas de convívio, isto é, padrões sócio-

culturais inerentes à vida comunitária de maneira informal e não explícita, permitindo uma

afirmação positiva da identidade dos membros de um grupo social. Essa transmissão

internalizada, que se desenvolve de diversas maneiras, proporciona um sentimento de

pertencimento que cresce à medida que se amplia a experiência do educando. Jovens e

crianças reproduzem/recriam, em sua experiência cotidiana, na vida familiar e nas celebrações

grupais, esses valores que são passados de geração a geração.

Nos quilombos contemporâneos, como Abacatal, os saberes culturais, a história, os

valores e as crenças são transmitidos há gerações. Os mais jovens aprendem porque

participam das atividades nas roças, na casa de farinha, na associação de moradores,

escutando e recontando as histórias. Todo o processo é participativo, as crianças e os jovens

acompanham porque isso faz parte da sua vivência e, assim reafirmam a noção de

pertencimento à comunidade.

Essa maneira informal de aprender/ensinar expressa um saber que é transmitido e

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assimilado pouco a pouco, ao mesmo tempo em que proporciona oportunidade de reflexão

sobre a necessidade de mudança. Através das memórias os valores, que a comunidade reputa

essenciais e que condensam esse saber, são constantemente reafirmados e renegociados

constituindo assim um currículo invisível através do qual são transmitidas as normas do

convívio comunitário (MOURA, 2005).

Entendemos que o currículo invisível é desenvolvido sem uma intenção explicita, mas

dá às crianças o conhecimento de suas origens. A memória, a oralidade, o trabalho na terra, o

respeito à família, o casamento dentro do círculo comunitário, são valores que fazem parte de

padrões sociais que marcam as histórias de vida dos atuais moradores bem como dos seus

antepassados. Esses valores constroem e reforçam a identidade do grupo.

Nossa intenção não é discutir a natureza dos valores transmitidos na comunidade, mas

a sua importância para significação positiva na contínua reafirmação dos próprios valores.

Portanto, quando falamos da transmissão de valores que ocorre principalmente por meio da

oralidade, não queremos pôr em questão o repertório valorativo da comunidade; pelo

contrário, estamos chamando atenção para a educação que permeia as relações entre os

moradores e permite que as crianças se identifiquem positivamente com tudo que acontece à

sua volta.

Compreendemos que as crianças de Abacatal realmente aprendem com essa educação

que transmite os saberes e os valores da comunidade através do convívio com os mais velhos.

Charlot (2000, p.72) considera que o saber é uma construção social, portanto, “comporta uma

dimensão relacional, que é parte da dimensão identitária”. Várias vezes as professoras

dizeram que as crianças sabem que Abacatal é uma comunidade quilombola e que conhecem

a história do lugar porque escutam dos mais velhos enquanto os acompanham nas atividades

cotidianas. Ana Alice é enfática ao afirmar que os/as estudantes contam historias da

comunidade na sala de aula :

As crianças sabem muitas histórias da comunidade porque elas escutam na família. Os mais velhos contam, as crianças escutam, aprendem e elas contam aqui na escola. [...] meu avô falava sobre os tempos antigos na comunidade. Agora que ele está doente e não se lembra das coisas. Aqui é assim, de alguma maneira todos sabem que Abacatal é remanescente de quilombo porque as terras vêm da herança das filhas da escrava Olímpia (Ana Alice, 2010).

O relato da docente nos leva a crer que para elas como as histórias de Abacatal são

recorrentes entre os moradores e as crianças conhecem boa parte delas, não há necessidade de

se deterem nesse assunto durante as aulas. Não desprezam o conhecimento dos/as estudantes,

mas também não se apropriam deles para discutir a questão racial, os problemas da própria

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comunidade e relacionar os saberes dos discentes com os conteúdos das disciplinas. Uma das

falas de Luciana expressa bem essa compreensão:

As crianças sabem a história de Abacatal, sabem que é uma comunidade quilombola. Também conhecem as roças, as plantas, sabem como se faz a farinha... Na sala de aula elas contam histórias que escutam na família. Então é uma coisa que trazem para a escola e nós usamos nas aulas quando é possível. Por exemplo: quando vou trabalhar sobre a escola, começo com a nossa escola. No conteúdo sobre o município, falo de Abacatal porque é a colônia mais antiga de Ananindeua.

Assim, não podemos deixar de enfatizar a diferença entre a transmissão dos saberes na

comunidade e na escola. Na comunidade o processo se dá informalmente, de maneira lúdica.

Na escola, o saber é pouco referenciado na experiência dos/as estudantes. A experiência da

comunidade leva em conta os valores de sua própria história, enquanto na escola os valores da

sociedade nacional são impostos com pouca ou nenhuma referência a outras historicidades

vividas e aprendidas pelos/as educandos/as em seu contexto de origem.

Esse distanciamento entre o saber diferenciado que as crianças adquirem da vivência

no meio familiar e comunitário e os saberes escolares não são exclusividade da escola de

Abacatal, Moura (2005, p. 263) pesquisando em comunidades remanescentes de quilombos,

observou que:

A educação formal desagrega e dificulta a construção de um sentimento de identificação, ao criar um sentido de exclusão para o aluno, que não consegue ver relação entre os conteúdos ensinados e sua própria experiência durante o desenvolvimento do currículo, enquanto nas festas quilombolas as crianças se identificam positivamente com tudo o que está acontecendo à sua volta, como condição de um saber que forma para a vida.

Na escola Manoel Gregório Rosa Filho há momentos de resgate da história que

favorecem a construção da identidade positiva dos estudantes. No entanto, ainda não é uma

constante no cotidiano escolar. Entendemos que a escola deve, a partir dos valores

pedagógicos que orientam sua prática, ampliar e aprofundar no/a educando/a o seu processo

de aquisição de conhecimentos. Mas respeitando as matrizes culturais a partir das quais se

constrói a identidade das crianças e jovens, com a atenção voltada para tudo aquilo que vá

resgatar suas origens e sua história, como condição de afirmação de sua dignidade enquanto

pessoa, e da especificidade da herança cultural que carregam (MOURA, 2005).

Vale frisar que respeitar as matrizes culturais dos discentes não significa o desprezo da

cultura universal, patrimônio comum da humanidade, mas sim levar em conta o contexto

cultural onde a escola está inserida, e a partir daí, possibilitar que se amplie o universo da

experiência e a visão de mundo dos/as estudantes, para que estes/as possam ter acesso à

universalização do saber sem perder de vista a dimensão nacional de sua identidade e tenham

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garantido o direito à memória e ao conhecimento de sua história.

Segundo as professoras, na proposta curricular da SEMED, para as séries iniciais, até

o ano de 2009, contida no Plano Municipal de Educação, não constavam orientações

relacionadas à história e cultura afro-brasileira, à história de quilombo, questão racial. Mas

como o programa das disciplinas é flexível, elas sempre tiveram a preocupação de falar de

Abacatal como comunidade quilombola. Ana Alice e Luciana dizem em que momentos

trabalham a história de Abacatal:

Agora com a implantação do Ensino Fundamental de nove anos, a nova proposta curricular traz conteúdos como a História dos quilombos, história do lugar, identidade [ ...]. Antes não apareciam essas temáticas, mas como era flexível, nos incluíamos alguns conteúdos. Sempre tivemos o cuidado de incluir a história de Abacatal para as crianças conhecerem a sua origem e aprenderem a valorizar o lugar onde vivem. Então, por exemplo, quando vamos trabalhar sobre o município de Ananindeua, sobre área rural e área urbana, sobre os bairros, partimos de Abacatal, mostrando as diferenças e semelhanças. As crianças sabem, se tu fores perguntar elas vão te falar.

Sobre incluir conteúdos Gomes (2001) lembra que é preciso que os/as educadores/as

compreendam que o processo educacional também é formado por dimensões como a ética, as

diferentes identidades, a diversidade, a sexualidade, a cultura, as relações raciais, entre outras.

E trabalhar com essas dimensões não significa transformá-las em conteúdos escolares ou

temas transversais, mas ter a sensibilidade para perceber como esses processos constituintes

da nossa formação humana se manifestam na nossa vida e no próprio cotidiano escolar. Dessa

forma, poderemos construir coletivamente novas formas de convivência e de respeito entre

professores, estudantes e comunidade.

Nessa direção podemos pensar também os instrumentos legais como a lei 10.639/03 e

as DCNERE, as quais têm grande relevância, pois restabelecem o diálogo, rompe com o

monólogo até então instituído. Rompe com a idéia de subordinação racial no campo das idéias

e das práticas educacionais, e propõe um novo conceito, pela escola, para o/a negro/a, seus

valores e as relações raciais na educação e na sociedade brasileira. Entretanto, por mais

avançada que seja a lei, é no embate político e no cotidiano que ela pode se legitimar ou não.

A realidade social e educacional sobre a qual uma lei pretende agir é conflituosa, complexa,

contraditória e carente de equidade social e racial. Por isso o texto legal só se transformará em

direito para toda a comunidade escolar se a escola construir práticas concretas que não

permitam a discriminação nem excluam nenhum grupo social e étnico.

Nesse sentido, concordamos com Munanga (2005, p. 17) quando afirma:

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Não existem leis no mundo que sejam capazes de erradicar as atitudes preconceituosas existentes na cabeça das pessoas, atitudes essas provenientes dos sistemas culturais de todas as sociedades humanas. No entanto, cremos que a educação é capaz de oferecer tanto aos jovens como aos adultos a possibilidade de questionar e desconstruir os mitos de superioridade e inferioridade entre os grupos humanos que foram introjetados neles pela cultura racista na qual foram socializados. Apesar da complexidade da luta contra o racismo, que conseqüentemente exige várias frentes de batalhas, não temos dúvida de que a transformação de nossas cabeças de professores é uma tarefa preliminar importantíssima. Essa transformação fará de nós os verdadeiros educadores, capazes de contribuir no processo de construção da democracia brasileira, que não poderá ser plenamente cumprida enquanto perdurar a destruição das individualidades históricas e culturais das populações que formaram a matriz plural do povo e da sociedade brasileira.

As professoras e a gestora da escola de Abacatal não receberam, na formação inicial,

orientações para o trato com as questões raciais e a discussão acerca da Lei 10.639/03 e das

DCNERER é relativamente nova na escola. Entretanto, ao longo de suas vidas, tanto pessoal

como profissional, adquiriram saberes relacionados aos problemas raciais, e dos quilombolas

em particular, em suas experiências no movimento quilombola, participando na associação de

moradores e, no enfrentamento das situações de preconceito dentro e fora da comunidade. Os

saberes das professoras de Abacatal também foram/são construídos na própria prática

docente, pois em nossas conversas elas revelaram que no inicio da docência não possuíam o

conhecimento que têm hoje.

Falar sobre os saberes docentes nos remete a Tardif (2010), pesquisador diretor do

centro de pesquisa sobre profissão docente da universidade de Montreal, compreende o saber

dos professores como saberes que têm como objeto de trabalho, seres humanos e advém de

várias instancias: da família, da escola que o formou, da cultura pessoal, da universidade, das

formações contínuas, da prática do ofício. Para este autor o saber docente é plural, oriundo da

formação profissional (o conjunto de saberes transmitidos pelas instituições de formação de

professores); de saberes disciplinares, os quais correspondem ao diverso campo do

conhecimento e emergem da tradição cultural; curriculares (programas escolares) e

experienciais (do cotidiano do trabalho).

A expressão ‘mobilização de saberes’, utilizada pelo autor supracitado, transmite a

idéia de movimento, de construção, de renovação constante, de valorização de todos os

saberes e não apenas do cognitivo; revela também uma visão de totalidade do ser professor/a.

Essa concepção da amplitude de saberes que formam o saber do/a professor/a é

fundamental para entendermos a atuação de cada um no processo de trabalho coletivo

desenvolvido pela escola, cada docente coloca sua individualidade nas práticas pedagógicas e

isso contribui para ampliar as possibilidades e construção de novos saberes.

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Considerando os relatos das professoras e nossas observações na escola, concordamos

com a teoria de Tardif e entendemos que entre os saberes pessoais das professoras de

Abacatal – principalmente a Onélia e Ana alice - está o saber político adquirido no

engajamento delas nas lutas da comunidade, nos movimentos reivindicatórios, nas discussões

das estratégias de enfrentamentos com o poder instituído. Embora atualmente as docentes

participem menos das ações da associação de moradores, elas carregam consigo os saberes

construídos nessas experiências e consciente ou inconscientemente os utilizam em suas

práticas pedagógicas.

Se as questões raciais não são uma constante nas práticas da escola de Abacatal isso

não significa que seja um tema totalmente silenciado e nem que a escola negue a identidade

quilombola. Estamos considerando que a identidade é um processo em construção na

comunidade. Nas falas das docentes fica evidente o entendimento de que a identidade

quilombola está em construção, uma vez que os/as interlocutores/as foram unânimes em

afirmar que: “todos sabem que a comunidade é remanescente de quilombo, mas nem todos

dão valor em ser quilombola”. Verificamos que o corpo docente e administrativo da escola

não concebe a história de Abacatal, sua cultura, seus saberes e valores como temas prioritários

nos trabalhos com as crianças porque esses temas já fazem parte da vida das crianças, pois

elas “conhecem e sabem contar”.

Verificamos que timidamente as práticas pedagógicas dialogam com os saberes das

crianças, adquiridos nas relações cotidianas na comunidade. Entretanto, a preocupação com o

cumprimento dos conteúdos, previstos nos programas das disciplinas e parte dos conteúdos

selecionados, revelam que a escola em questão, como outras das áreas rurais e urbanas ainda

não conseguiram romper totalmente com a ideologia do branqueamento, formulada no século

XIX e em vigor por muitos anos no século XX, na qual predominam abordagens totalizantes

que intimidam a história dos sujeitos sociais destituídos de poder, de voz, de saber e que ainda

são discriminados pela cor da pele.

Desse modo, entendemos que a escola de Abacatal possibilita a construção da

identidade quilombola, mas precisa enfrentar um desafio que está posto para a educação como

um todo: trabalhar melhor as diferenças raciais, possibilitar o desenvolvimento do potencial

criativo dos sujeitos sociais negros em seus diferentes contextos. Para além de efetivar na

agenda educacional, o ensino de história e cultura afro-brasileira, conforme estabelece a Lei

10.639/03, os sistemas de ensino, as escolas e os educadores precisam perceber que os saberes

construídos nas relações cotidianas das comunidades quilombolas são importantes para

dinamizar as aulas, torná-las mais significativas para os/as estudantes, possibilitando a

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construção e afirmação da identidade positiva. Desse modo, a tarefa mais difícil a ser

realizada é a construção de um processo de ensino-aprendizagem que proporcione transpor

para a sala de aula os saberes locais como parte da história e cultura dos/as negros/as que por

séculos teve negado o acesso aos bens culturais.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa principal preocupação nesta pesquisa foi compreender como a educação escolar

na comunidade remanescente de quilombo de Abacatal possibilita a construção e afirmação

da identidade quilombola, uma vez que nesta comunidade a escola é uma conquista dos

moradores, que se organizaram e lutaram para garantir que suas crianças tivessem acesso à

educação. Sobre remanescentes de quilombos existem muitos estudos que discutem as lutas

pelo título de propriedade e, demonstram a importância do território para a construção da

identidade quilombola. Contudo, compreendemos que educação e identidade também estão

diretamente relacionadas, portanto, pensar a educação escolar numa realidade especifica é

uma maneira de refletirmos sobre a educação e a identidade nacional.

Para falarmos da escola de Abacatal, não poderíamos perder de vista o lugar em que

ela está localizada, pois esta unidade de ensino foi e ainda é uma das principais bandeiras de

luta dos moradores, que primeiro reivindicaram do poder público local que seus/as filhos/as

tivessem o acesso à escola, depois, diante da falta de professores/as para trabalhar na

comunidade, precisaram insistir para que os/as docentes fossem moradores/as do próprio

lugar. Atualmente, há uma preocupação em manter a unidade de ensino na comunidade e o

desejo de que seja ampliado o atendimento até o nono ano do Ensino Fundamental e seja

inserida a Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Escutando as narrativas dos/as interlocutores/as sobre a origem de Abacatal

constatamos que esta comunidade não se formou de insurreições, nem de fugas de escravos e

nunca viveu em total isolamento. O caminho de pedras e o percurso das águas dos rios e

igarapés indicam a comunicação e a interrelação do grupo com a circunvizinhança. Não

existiu, portanto, isolamento de quilombo, pois conforme explica Gomes (1996) nas áreas de

quilombo, havia um tipo de organização de comunidades rurais onde conviviam pessoas

brancas, negras, escravos fugitivos, índios, que estabeleciam relações sociais e econômicas

com outras localidades.

Na luta pelo lugar em que viviam/vivem, os moradores aprenderam a valorizar o

território que sabiam apenas ser “de herança”. Após a aprovação do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias e com a presença de agentes e agências como o pesquisadores do

Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará e do Centro de

Estudos e Defesa do Negro no Pará, técnicos do Programa Raízes e do INCRA, descobriram

outra maneira de lutar pelo território: assumindo-se quilombola. Isso não significa que essa

identidade lhes tenha sido imposta, pois como Gomes (2006) anunciava, dos antigos

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quilombos restariam heranças simbólicas que seriam lembradas para narrarem histórias que

possibilitassem a legitimação da posse da terra. O termo quilombo ainda está associado a

negros/as escravos/as como algo negativo, mas assumir-se quilombola agora está relacionado

à construção de uma identidade positiva dos descendentes de escravos.

Os/as interlocutores/as ao rememorarem as histórias da origem do lugar, afirmam a

ancestralidade escrava negra, o que dá fundamento, mas não determina a identidade

quilombola. Consideramos, conforme Hall (2005) que a identidade está em um processo

contínuo de construção e de reconstrução nas interações sociais dos indivíduos e dos grupos

sociais em seus espaços físicos, pelas relações exteriores estabelecidas no cotidiano por meio

da linguagem e dos sistemas simbólicos representados para classificar o mundo e as relações

construídas para cada sujeito.

Nesse sentido, a construção da identidade quilombola, em Abacatal, é mediada,

também, por processos educativos presentes nos diferentes espaços e tempos. Em todos os

ambientes, nas reuniões familiares, nos momentos de trabalho, nos debates com

pesquisadores, com o movimento quilombola, ou durante o prosseguimento dos trabalhos de

titulação das terras os moradores aprenderam/aprendem entre si ou com “os outros” o

significado de ser quilombola e de morar num quilombo.

Entretanto, essa identidade não é compartilhada de forma harmoniosa no grupo. Há

moradores que se identificam como trabalhadores rurais ou, segundo os/as interlocutores/as,

“só querem ser negros quilombolas quando é para ter algum benefício” como, por exemplo, o

direito a um lote da terra para morar e produzir. No entanto, o não assumir-se quilombola não

corresponde exatamente à negação dessa identidade. Percebemos um movimento de

rejeição/identificação/afirmação: por um lado rejeitam a identidade quilombola porque

persiste a idéia de quilombo como lugar isolado, associado à escravidão, com uma imagem

negativa do/a negro/a e mais, ser negro/a quilombola da área rural é como ser três vezes

negado/a, rejeitado/a, pois a roça é vista pela cidade como lugar de atraso, ignorância,

pobreza. Por outro lado, ao conhecerem sua história e a possibilidade de serem reconhecidos

como sujeitos de direito, como cidadãos, se reconhecem como quilombolas e recorrem à

memória para afirmarem sua identidade.

Essa construção identitária é permeada por uma educação presente no cotidiano da

comunidade. São “situações sociais de aprender-ensinar-aprender” (BRANDAO, 1984, p. 14),

que ocorre em múltiplos espaços, os quais não precisam ser necessariamente predeterminados.

Observamos, na transmissão de saberes e valores entre as famílias e outros sujeitos a presença

de referenciais para a construção identitária. Os valores transmitidos advêm de aprendizagens

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anteriores, recebidas dos antepassados, os quais são lembrados com orgulho e respeito.

Concordamos que a educação não é exclusividade da escola, porém enquanto

instituição social responsável pela organização, transmissão e socialização do conhecimento e

da cultura, a escola tem-se revelado como um dos espaços em que representações negativas

sobre o/a negro/a são difundidas. Por isso mesmo ela também é um importante lugar onde

estas representações podem ser superadas. A educação escolar é um campo privilegiado para

questionar o racismo, o preconceito e a discriminação racial e possibilitar ao/a negro/a

construir e afirmar sua identidade positivamente (GOMES, 2001).

Abacatal esteve à frente de muitas outras comunidades das áreas rurais na Amazônia,

no que diz respeito à luta e conquista da educação escolar em seu interior e a cobrança da

contratação de professores/as da própria comunidade para que as crianças não ficassem sem

aulas devido à falta de docentes. Ressaltamos que, na década de 1970, quando a escola foi

criada pela prefeitura de Ananindeua, em resposta às insistentes solicitações dos/as

moradores/as, não havia, na comunidade uma discussão da questão racial ou o auto-

reconhecimento como quilombola. As famílias queriam assegurar que seus/as filhos/as

tivessem a oportunidade de estudar.

Os pais não querem que seus filhos/as estudem para deixar a comunidade, mas

desejam que tenham uma vida melhor, menos penosa do que a que levam com o trabalho na

roça e os baixos rendimentos. Vêm na escola serventias que ajudam na realização desse

desejo: o aprendizado da leitura e da escrita, o que é de suma importância porque ajuda a

“abrir os olhos, a conhecer os direitos e lutar por eles”, como diz Santana; educa os modos,

pois no dizer de dona Ana “ensina a ser menos bruto”, incentiva a continuar os estudos para

conseguir um emprego, obter uma renda que proporcione viver com mais conforto, mas sem

perder o vínculo com a terra e sem negar sua cultura.

A relação escola, família, comunidade apresenta um caráter doméstico e informal,

permeada de manifestações de solidariedade e companheirismo, mas não está isenta de

conflitos. Verificamos que são poucas as famílias que participam efetivamente das atividades

da escola. A maioria dos pais tem baixo grau de escolaridade e prevalece entre eles/as a idéia

de que cada um tem suas atribuições especificas. Assim, cabe às professoras a

responsabilidade do ensino visto que elas têm estudo para realizar tal tarefa, mas caso ocorra

algum problema que comprometa seriamente o aprendizado das crianças ou implique na

suspensão das aulas ou no risco de fechar a escola, os pais mobilizam a comunidade para

buscar soluções.

No geral a colaboração dos pais é mais expressiva nos momentos festivos, quando

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contribuem com a limpeza, a ornamentação do ambiente, a venda de bingos, comidas e

bebidas. Fora das comemorações diminui a participação das famílias no cotidiano da escola,

e, raramente apresentam sugestões ou questionam qualquer atitude da direção ou das

professoras. Ainda há pouca abertura, por parte da escola, para que os pais participem das

decisões e dos encaminhamentos nas ações pedagógicas. É necessária a criação de estratégias

para manter um diálogo constante com a família e a comunidade, no sentido de estabelecer

uma parceria para discutir e propor maneiras de solucionar problemas de ensino-

aprendizagem, incentivar a valorização da cultura, da memória, da história local e tratar das

questões étnico-raciais.

Mesmo que os pais não tenham uma efetiva participação na dinâmica escolar, eles/as

estão presentes na escola, visto que a colocaram como uma de suas principais demandas

sociais e estão sempre dispostos a lutar por sua manutenção no interior da comunidade.

Entendemos que as relações que se estabelecem entre a escola, os pais e a comunidade,

contribuem com a construção da identidade, visto que, com as famílias, os saberes, os valores

e a memória dos antepassados, entram na sala de aula e passam a fazer parte de um currículo

que se aproxima do que Moura (2005) chama de currículo invisível. A oralidade, um traço

cultural importante das comunidades quilombolas, e a memória ancestral estão presentes nas

aulas, através da contação de histórias. Mas esta ainda não é uma questão prioritária no

processo de ensino.

Na falta de um Projeto Político Pedagógico (PPP) elaborado coletivamente,

considerando a história, a identidade, os saberes, os valores e a cultura da própria

comunidade, a educação escolar está norteada pela Proposta Curricular para o Ensino

Fundamental de nove anos. Conforme pudemos verificar no planejamento da professora Ana

Alice, temas como construção da identidade, história local, respeito às diferenças e formação

étnico-racial de Ananindeua, que antes não constavam, passaram a fazer parte dos conteúdos

das áreas de Conhecimento Lingüístico e Conhecimento Social, este ano de 2010.

A referida docente demonstra uma preocupação com a identidade, pois como ela

mesma afirma, é preciso ensinar a “dar valor em ser quilombola”. Explora nas aulas, as

origens do lugar e as disputas pelo território, enfatizando que a comunidade teve êxito porque

recorreu à sua história, buscou os antepassados. Observamos que essas aulas são marcadas

pela oralidade e que há boa participação dos/as estudantes. Entretanto, não estabelece relação

entre Abacatal e outros quilombos, do passado ou da contemporaneidade, enfocando as

mudanças e permanências e, as estratégias de lutas pelo reconhecimento há uma separação

entre os conteúdos da oralidade e os da escrita, pois para tratar os conhecimentos específicos

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das áreas do Conhecimento Social, por exemplo, são utilizados os textos do livro didático.

A escassa formação continuada, na própria escola para as educadoras e a escassez de

recursos didáticos adequados para tratar a questão étnico-racial, são as principais causas de

uma ação pedagógica pouco reflexiva, mas não são as únicas: o preconceito da sociedade

envolvente que coloca como parâmetro de humanidade a identidade branca, estabelece uma

negatividade em relação à identidade negra e reflete na escola; a falta de representação da

escola e da comunidade nos conselhos e nos fóruns de educação estadual e municipal também

contribui para que a questão ainda não seja tratada de forma superficial.

Aferimos que a educação escolar em Abacatal possui resquícios da ideologia do

branqueamento e um movimento dialético que ora silencia, ora afirma a identidade do grupo:

por um lado centra-se nos conteúdos previstos nos programas das disciplinas e a preocupação

se volta em fazer com que os/as estudantes se apropriem de tais conteúdos porque serão

avaliados através de provas; por outro dá abertura para os saberes culturais e às experiências

dos/as próprios/as educandos/as, promovendo, ainda que timidamente, um diálogo com os

conhecimentos historicamente construídos, o que possibilita o processo de construção e

afirmação da identidade negra quilombola. Sabemos dos limites deste trabalho por isso não temos a pretensão de esgotar as

reflexões em torno da construção da identidade quilombola, queremos sim trazer a tona

discussão de como a educação escolar pode contribuir positivamente com essa questão,

considerando que ela está inserida numa discussão ampla e numa pauta urgente relacionada à

educação quilombola e à perspectiva do quilombo como direito. Além disso, entendemos que

a partir de uma realidade educacional específica podemos refletir sobre a educação no Brasil.

Finalizando nossas considerações, apontamos algumas proposições para a educação

quilombola, não somente em Abacatal ou na Amazônia, mas no Brasil, no sentido de agirmos

para que de fato tenhamos uma escola inclusiva, com múltiplas referências, que respeite e

conviva bem com a diversidade, que desenvolva práticas educacionais orientadas pelo

respeito às identidades e às culturas que é constituinte da condição de ser humano, seja no

Pará, no Brasil ou em qualquer outra parte do mundo.

Há necessidade de se construir na educação escolar, referências de pertencimento, de

identificação. Desenvolver práticas que considerem que a sociedade brasileira é formada por

pessoas que pertencem a grupos étnicos/raciais diferentes entre si, que possuem cultura e

história próprias valiosas, e em conjunto constroem - na nação brasileira - a sua história.

Nesta perspectiva é preciso ter claro que os quilombolas têm especificidades

relacionadas à região, à cultura, à religião, à maneira de se organizar e de se educar que os

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diferenciam entre si e que precisam ser consideradas na formulação das propostas

educacionais. Desenvolver práticas de fortalecimento de identidade étnica, compreendendo

que os quilombolas são iguais na sua condição humana e no direito a ter direito, mas são

diferentes no modo de vida, na expressão da cultura e nas formas de se relacionar com o

outro.

A afirmação da identidade é de suma importância para que os grupos definam o seu

futuro, desenvolvam os seus projetos de vida no território e fortaleçam a sua cultura. É a

identidade que afirma quem somos, onde estamos, o que queremos, de forma a envolver as

pessoas individualmente e o grupo enquanto coletivo. Portanto, o fortalecimento da identidade

é um processo que precisa da participação da escola junto com os(as) quilombolas no

desenvolvimento da escolarização. A (o) educador(a) que se compromete tem mais

possibilidade de obter resultado positivo no desenvolvimento de suas práticas, mas para que

isto se efetive é necessário oferecer condições para que os(as) docentes possam desenvolver

bem o seu trabalho, recebendo formação compatível, com valorização salarial e condições de

trabalho adequadas.

Entendemos que os sistemas de ensino têm condições de pôr em prática o que

determinam as leis e as diretrizes. O desafio é estabelecer o diálogo com os sujeitos

diretamente interessados, de modo a ampliar a participação dos quilombolas nos espaços

deliberativos e na definição dos rumos da educação que contemple as particularidades sociais,

históricas e culturais dessas populações.

Nesse sentido, o recomendável é que a formação educacional quilombola, sem deixar

de oferecer os conhecimentos universais historicamente construídos e as inovações

tecnológicas, contribua para que os grupos continuem nos seus territórios, nos seus lugares

sem deixarem de ser quem são e possam exercer seu modo de vida através dos tempos.

Assim, pensar a educação escolar de quilombolas implica em relacionar a dimensão da

identidade desses grupos, com a educação e a identidade nacionais.

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APÊNDICES

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APÊNDICE A: ROTEIRO PARA ENTREVISTA ABERTA COM INTERLOCUTORS/AS DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE ABACATAL, ANANINDEU-PA Nome: Quando e onde nasceu: Formação / grau de instrução: Profissão/ ocupação: Principal atividade econômica da comunidade: Condições de vida na comunidade Quanto tempo vive na comunidade? Teve oportunidade de sair daqui? Se você saiu como foi a experiência fora daqui? Manteve ou mantém contato com pessoas de outras comunidades remanescentes de quilombos? Que tipo de contato? Tem e/ou teve contato com algum tipo de programa ou política pública? Qual(is)? Como foi estudar em seu tempo de criança? Você freqüentou a escola quando criança? Há quanto tempo tem escola na comunidade? Sempre foi municipal? Se não era, quem a mantinha? Que atividade profissional você já desenvolveu? Como aprendeu? Casou-se com pessoa de fora da comunidade? Observa mudança nos costumes na comunidade? Quais? Para você, o que é remanescente de quilombo? Você se considera quilombola? Você sempre se viu como quilombola?

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APÊNDICE B: ROTEIRO DE ENTREVISTAS COM AS PROFESSORAS DA ESCOLA DE ABACATAL Nome: Idade: Local de nascimento: Formação: Tempo de exercício do magistério: Tempo em que trabalha na escola de Abacatal Fale o que é para você trabalhar nesta escola. Alguma coisa lhe inquieta nesta escola? Por que? Você mudaria alguma coisa na escola? O quê? Você trabalha a história da comunidade com seus alunos? Como? Que materiais didáticos você mais utiliza em suas aulas? Que conteúdos (ou tipo de atividade) os alunos mais gostam? Você trabalha a historia dos quilombos com seus alunos? O quê e como? O que você sabe sobre as leis 10639/03 e 11645/08, que tratam da educação das relações étnico-raciais? Na sua opinião dá para trabalhar essas leis aqui na escola? Por quê? Com que freqüência os pais vêm à escola? Eles reclamam de alguma coisa? Os pais costumam sugerir algum conteúdo ou atividades escolares? Fale sobre a relação entre a escola, a comunidade e a família

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APENDICE C: ROTEIRO PARA A OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE Comentários e/ou situações relativas à identificação como quilombola. Declarações e/ou práticas que confirmem ou contradigam o que foi dito na entrevista. Relação direção/professoras/estudantes (afeto, conflitos, companheirismo) Situações que demonstram conflitos/divergências internas, na comunidade. Práticas docentes que possibilitem a construção da identidade quilombola ou reforcem sua rejeição. Saberes culturais da comunidade na escola. Situações em que aparecem e são utilizadas nas atividades pedagógicas. Entrada e saída das crianças na escola, merenda, recreio, organização da sala de aula, atividades pedagógicas, momentos festivos. Conflitos, divergências, contradições no espaço escolar. Dinâmica das aulas (turma professora Ana Alice) Contradições entre declarações nas entrevistas e práticas pedagógicas. Presença de pais na escola. Relação pais/professoras/direção. Livros didáticos e elaboração dos planos de ensino e de atividades. Avaliação (período/instrumentos/procedimentos)

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ANEXOS