machado - publicações científicas - da galáxia de gutenberg à aldeia telemática

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O terna das publicações científicas voltou à baila ultimamente e está provocando uma ruidosa polêrnica, tanto dentro como fora do ambiente acadêmico. A razão desse súbito interesse é o recente aparecimento de um grande número de publicações que convencionamos chamar de "eletrônicas" e que substituem o ("procedimento tradicional da impressão em papel por uma gama bastante variada de novas modalidades de editoração e difusão (disquetes, CD-ROMs, redes telemáticas, etc.). O diretório de publicações eletrônicas da Association of Researches Libraries (gopher://arl.cni.org:70/00IscornrnJedir/edir951) arrola 675 revistas cientí- ARTIGO PUBLICAÇÕES CIENTÍFICAS: DA GALÁXIA DE GUTEMBERG À ALDEIA TELEMÁTICA Arlindo Machado Professor, USP / ECA .. . .. . Resumo·.· .• ............ . . . •. O recente surgimento de alternativas de difusão científico através • · de redes telemáticas está fotçando a comunidade acadêmica a recolocar em . · discussão o sentido mesmo dasp»blicações científicas. ·contras das duas modalidades pode':'seconcIuirque as peS imp prohlemasrel. s.custoselevados das assinaturas;. à mo excessiva· doproeesso de produção e à ausência de recursos. de comunicação ou de debate de idéias. as alternativas· 'casenfrentam problemas rrentesdaconfiahilidade da informação. do controle de qualidade pel ... a falta de políticas específicas de catalogação e arquivamento da produção. Uma vez que onovo paradigma deeditoraçãoparece consUtuir hoje uma realidade irreversível nos ambientes dentífico e tecnológico, se .. ··os dois modelos poderão coexistir; se aprofundarão SUas diferenças ouse um terminará por absorver o outro. . Palavras-eha ve Revista E1etrônica - Pré-Publicação Avaliação dos Pares Redes Telemáticas Arquivamento Eletrônico INFORMARE - Cad. Prog. Pós-Grado Cio lof., Rio de Janeiro, v.2, n. 1, p. 7D-8D,jan.ljun. 1996

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MACHADO - Publicações Científicas - Da Galáxia de Gutenberg à Aldeia Telemática

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Oterna das publicações científicas voltou à baila ultimamente e está provocando uma ruidosa polêrnica,tanto dentro como fora do ambiente acadêmico. A razão desse súbito interesse é o recente aparecimentode um grande número de publicações que convencionamos chamar de "eletrônicas" e que substituem o

("procedimento tradicional da impressão em papel por uma gama bastante variada de novas modalidades deeditoração e difusão (disquetes, CD-ROMs, redes telemáticas, etc.). O diretório de publicações eletrônicas daAssociation of Researches Libraries (gopher://arl.cni.org:70/00IscornrnJedir/edir951) arrola 675 revistas cientí-

70 INFORMARE - Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação

ARTIGO

PUBLICAÇÕES CIENTÍFICAS: DA GALÁXIA DE GUTEMBERG À

ALDEIA TELEMÁTICA

Arlindo MachadoProfessor, USP / ECA

.. . .. . Resumo·.· .•............ . .

. •. O recente surgimentode alternativasde difusão d()pe.n~axnei1tocientíficoatravés •· de redes telemáticas está fotçando a comunidade acadêmica a recolocar em .· discussão o sentido mesmo dasp»blicações científicas. Avaliándoo~ pró~e·contrasdasduasmodalidades pode':'seconcIuirqueaspeS •imp prohlemasrel. s.custoselevados das assinaturas;. àmo excessiva· doproeesso de produção e à ausência de recursos. decomunicação ou de debate de idéias. Já as alternativas· 'casenfrentamproblemas rrentesdaconfiahilidadedainformação. docontroledequalidadepel ...a falta de políticas específicas de catalogação e arquivamento daprodução. Uma vez que onovo paradigma deeditoraçãoparece consUtuir hojeuma realidade irreversível nos ambientesdentífico e tecnológico, restas~berse ..

··os dois modelos poderão coexistir; se aprofundarão SUas diferenças ouse umterminará por absorver o outro. .

Palavras-ehaveRevista E1etrônica - Pré-Publicação

Avaliação dos ParesRedes Telemáticas

Arquivamento Eletrônico

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ficas funcionando nonualmente na Internet, em 1995.Desse total, alguns títulos são simples boletins deassociações de pesquisadores, mas outros são publica­ções acadêmicas no sentido mais restrito do termo, ouseja, revistas arbitradas e dotadas de corpo editorialcomposto por expertos na área, com conteúdos inclu­ídos em índices e serviços de resumos (abstractingservices). Além disso, o mesmo diretório aponta aexistência, na Internet, de cerca de 2.500 grupos dediscussão especificamente acadêmicos. A irrupçãodesse novo modelo de editoração, seja qual for o seudestino, está forçando a comunidade científica arecolocar em discussão o sentido mesmo das publica­ções especializadas, seu verdadeiro papel no interiorda pesquisa científica e tecnológica e seu poder dedefinir mérito e valor nos universos do saber e dainvenção.

Calcula-se que, hoje, uma universidade razoa­velmente atualizada, em qualquer parte do planeta,deve assinar entre 30.000 e 45.000 revistas estrita­mente acadêmicas, se pretende dialogar com o mundocientífico em igualdade de condições. Isso pressupõeum gigantesco mercado editorial, erigido ao redor dasinstituições de pesquisa, com propósitos evidente­mente mais amplos que os puramente acadêmicos. Sónos EUA, onde existem estatísticas confiáveis, essemercado movimenta uma quantia de cerca de doisbilhões de dólares por ano. (LESLIE, J. 1994. p. 68)Verdadeiros impérios foram construídos em tomo dademanda informacional nos âmbitos científico etecnológico, destacando-se megaeditoras como a

.. Mouton Publishers, a The MIT Press e a OxfordUniversity Press, responsáveis, cada uma delas, pormais de uma centena de periódicos, além de um

(,catálogo de livros que chega a ultrapassar o milhar.[orlo pesquisador sabe quais são as revistas de maior

stígio e penetração em sua área de especialidade.abe também que não pode se dar ao luxo de ignorar

debates que acontecem nesses veículos e muitovavelmente vai envidar esforços para divulgar suasprias pesquisas nesses espaços. Mais que isso, a

aliação de mérito, produtividade e qualidade dasquisa é nonualmente realizada, nas universidadesagências governamentais, com base na freqüênciam que cada pesquisador costuma aparecer nessaslicações, através de escritos de seu próprio punho,de citações de seus escritos por colegas.

Ora, o que fez a publicação eletrônica foi intro­. uma grande confusão nesse universo estável e

ônico, legitimado por várias gerações de inegá-

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veis talentos e institucionalmente aceito comoinquestionável. O problema é que a publicação eletrô­nica não é apenas uma forma diferente de apresenta­ção e distribuição do mesmo material que poderiaestar circulando na forma impressa. Uma forma dife­rente acaba introduzindo também valores novos, queantes não eram considerados ou percebidos e quesaltam ao primeiro plano, na mesma medida em queexigem a reavaliação de modelos mais antigos. Eisporque a publicação eletrônica, tímida e modestamen­te num primeiro momento, vem conturbar a estabili­dade das formas anteriores de publicação e recolocaro papel da divulgação, do debate de idéias e da avali­ação de mérito, no interior da pesquisa real.

A publicação impressa nos moldes tradicionais econsagrados tem um calcanhar-de-Aquiles, que é adistância, ogap, o abismo existente entre a redação deum artigo e sua publicação. Essa distância vem cres­cendo exponencialmente, ao mesmo tempo em que osprogressos e as guinadas no pensamento científico sedão de forma cada vez mais rápida. Atualmente, umartigo científico, destinado a uma revista de prestígiointernacional, sofre um atraso de cerca de três anos, atéchegar ao leitor. Sabemos que, depois de redigir seutexto, o(s) autor(es) deve(m) submetê-lo, em primeirolugar, a um editor, e depois, a um corpo editorial, quepodem levar de alguns meses a um ano para chegar àdecisão final. Caso seja selecionado para publicação,o artigo em questão será colocado numa fila e deveráaguardar, dependendo do caso, de alguns meses aalguns anos para tomar forma impressa. Em muitasáreas, esse atraso pode ser fatal. O artigo pode estartratando de temas que já foram absolutamente supera­dos, de hipóteses já confirmadas ou derrubadas, deinvenções e procedimentos que já se vulgarizaram ouque sabidamente não vingaram. Nos ritmos atuais dopensamento científico e tecnológico, três anos repre­sentam uma eternidade, e não há invenção ou desco­berta que possapermanecer inédita todo esse tempo. Oproblema se apresenta ainda mais grave quando sabe­mos que, na maioria das revistas especializadas, umartigo aprovado para publicação não pode mais sermodificado, a menos que seja submetido novamenteao corpo editorial, caso em que seu prazo de publica­ção deverá ser, muito provavelmente, postergado.

Há muitas hipóteses para explicar esse gap dapublicação impressa. Os editores culpam o corpoeditorial pela demora na avaliação dos textos subme­tidos àapreciação. De fato, os membros desses conse­lhos consultivos não são pagos pelo seu trabalho e o

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fazem geralmente nas horas vagas, uma vez que têmsuas próprias obrigações e pesquisas acadêmicas.Ademais, os trabalhos de correção, revisão,diagramação, impressão e encadernação também sãorelevantes para a contagem de tempo. Ao longo deseus três séculos de história, as publicações científicasconstruíram uma reputação de qualidade, que se ba­seou principalmente no esforço dos editores paratornar claras, inteligíveis e bem apresentadas as idéiasdoes) pesquisador(es). Isso sempre implicou um vai-e­vem interminável do texto, que transita do editor ao(s)autor(es) e deste(s) novamente ao editor, até oarredondamento completo da escritura. Mas o proble­ma intransponível da publicação impressa tem sidomesmo a limitação física do próprio volume. Como aimpressão é cara, a revista tem sempre um limiterigoroso de espaço. Desse fato derivam duas conse­qüências: primeiro, os autores são constrangidos aadequar seus artigos a um número cada vez menor depáginas. Além disso, como a quantidade de artigosselecionados, em geral, é maior que a capacidadefísica da revista, parte do material considerado emcondições de publicação deve ser transferido para onúmero seguinte. Disso resulta uma incômoda fila,que tende a crescer de forma implacável.

Aí reside o principal argumento para os defenso­res da publicação eletrônica. Nesta modalidade, umartigo pode estardisponível no instante mesmo em queacabou de ser redigido ou, em certos casos, até mesmoenquanto está sendo escrito. Ele pode também seracessado imediatamente, a qualquer hora do dia ou danoite, bem como transferido para o computador dointeressado e impresso em papel, mal o artigo tenhasido "disponibilizado" na rede. Não é difícil que o(s)autor(es) receba(m) um primeiro comentário de umcolega situado do outro lado do planeta, antes mesmode desligareem) seu computador. Além disso, conside­rando a capacidade dos atuais dispositivos dearmazenamento digital (e a queda de seu preço), ostextos praticamente não sofrem mais limitações deespaço. Enquanto um artigo impresso hoje só conse­gue apresentar as conclusões de uma pesquisa, umartigo eletrônico pode mostrar todos os dados em quese baseia, além de apresentar listas numéricas exaus­tivas e gráficos da mais variada espécie. Isso permiteque outros pesquisadores, de posse desses dados,sejamcapazes de continuaro trabalho no ponto em queeste parou, sem precisar repetir todos os seus passos.

( Em outras palavras, o artigo previsto para veiculaçãona forma eletrônica pode ser exibido com farta docu-

mentação, ficando imediatamente disponível na rede,tão logo sua aprovação seja decidida, não importaquantos outros trabalhos estejam, ao mesmo tempo,sendo aprovados.

Se o gap entre a redação e o oferecimento aoleitor é a marca mais notória das publicações impres­sas, como então pôde progredir o pensamento cientí­fico, sobretudo quando o acesso à Internet ainda não setinha generalizado? Isso só foi possível através demodalidades de divulgação e debate que podemoscaracterizar como improvisadas e informais, comopré-edição, distribuição de fotocópias dos artigos acolegas, correspondência pessoal, constituição de as­sociações de pesquisadores por áreas do saber ou porregiões geográficas, e assim por diante. Para designaressa modalidade de difusão não-oficial, os inglesescriaram, no século XVII, o estimulante conceito deinvisible college, baseado na experiência de um grupode acadêmicos que se reunia regularmente em Oxfordpara trocar experiências, e depois se mantinha emcontato permanente através de cartas. (CRANE, D.1972) A principal forma de difusão, no entanto, temsido mesmo os eventos científicos (congressos e simi­lares), onde os cientistas podem ter uma idéia do"estado da arte" em sua área de investigação, conheceras pesquisas e resultados obtidos por seus colegas e ­o que é mais importante - estabelecer contatos queserão mantidos por correspondência. As vantagensdessas formas de circulação do pensamento científicosão, evidentemente, a rapidez, a atualidade e a comu­nicação em tempo real. Mesmo antes da generalizaçãoda Internet, a comunidade científicajá havia aprendi­do a se organizar em redes de contatos, através dasquais pesquisadores de diferentes centros de pesquisatrocavam seus papers e os resultados de seus traba­lhos, além das vias mais tradicionais, como a carta, otelefone, o fax e o contato tête-à-tête. Aliás, a WorldWide Web, ala avançada da Internet, nasceu justamen­te dessa necessidade de se criar meios cada vez maiseficazes e velozes para viabilizar o intercâmbio deidéias, condição sine qua non do avanço científico.

A verdade é que, dada a complexidade cada vezmaior do conhecimento e a velocidade com que ele setransforma, é praticamente impossível a sobrevivên­cia do pesquisador isolado ou não-conectado, daqueleque depende unicamente das publicações impressas(livros e revistas) para se manter em dia com o queocorre em sua área de especialidade. Essa situação nãoé certamente das mais confortáveis, podendo mesmochegar a ser cruel para os novatos e para aqueles que

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não têm condições de freqüentar eventos científicosou que trabalham em instituições ainda poucoinformatizadas. Enquanto isso, tal situação privilegiaos pesquisadores que estão mais próximos por laços deamizade, que possuem conexão com a Internet oucujos nomes constam nas malas diretas de instituiçõesque desenvolvem pesquisas de ponta. Mas é assim queo mundo científico tende a se organizar daqui para afrente, com a Internet a ocupar uma posição chavenesse concerto de coisas. Em todo caso, estas são asrespostas que a comunidade de pesquisadores dá aogap das publicações impressas, ou seja, à incapacida­de do mercado editorial de intervir com agilidade eurgência na atual produção de pesquisas. Hoje, ocientista temde decidir sobre o rumo de suas pesquisase, muitas vezes, precisa cortar caminho para evitardispêndio inútil de energia em áreas já suficientemen­te exploradas, mas não pode esperar três anos parasaber o que fazem e pensam seus colegas.

Graças às facilidades da informática e àinformalidade do invisible college, um pesquisador'pode, hoje, tomar-se seu próprio editor, tornandodisponíveis seus artigos através de FTP anónimo ou

vés de uma página pessoal na World Wide Web.alquer pesquisador, no mundo inteiro, a qualquerou hora, pode acessar esses artigos (depois de tê­localizado através de ferramentas de busca pornto ou palavra-chave, como o Archie ou o WAIS)

sferí-los para seu computador, imprimí-los emlou simplesmente lê-los na tela. Os textos nãoisam estar restritos à informação verbal: podemacrescentados gráficos tridimensionais, simula­

animadas, trechos de vídeos e sons e outras, de modo a ultrapassar longinquamente as

. ões do papel. Uma equação pode ser automati-nte resolvida e visualizada em forma de gráficos.'cados links de hipertexto podem trazer parade um texto outros textos nele referidos. Stevan

(1995) chama esse processo .de preprintm (fluxo contínuo de pré-edições) e conside-

o mais importante meio de difusão do pensa­científico hoje. Com a expansão desse sistemadose de crença em utopias, pode-se supor que,co tempo, a Internet e a WWW vão se tomarigantesca biblioteca global, onde se pode

'sarrápida e exaustivamente qualquer assun­r a visão mais atualizada possível do estágiouisas em determinada área, e recolher ins­

ente, de casa ou do escritório, os artigosos.

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Isso é apenas parte da discussão. Outro aspectoimportante são os custos de cada alternativa. Hamad,baseado em sua experiência de editar na Inglaterraduas revistas científicas, uma impressa nos moldestradicionais - Behavioral & Brain Sciences - e outrapuramente eletrónica - Psycoloquy - garante que aeconomia proporcionada pela mídia eletrónica situa­se entre 70 e 90%. Outro defensor da alternativaeletrónica, o físico Paul Ginsparg (1996), asseguraque, levando-se em conta os custos atuais dearmazenamento digital, a disponibilidade de artigoscientíficos na rede, mesmo com gráficos e ilustrações,não custa mais que dois centavos de dólar por artigo.Os mais críticos ,como por exemplo Fucks,(1996. p.165-180) contra-argumentam, dizendo que Hamad eGinsparg não incluem nos custos o próprio equipa­mento informático (computadores), o software utili­zado para distribuir informação através da rede, ainfra-estrutura de telecomunicações (redes de fibraóptica), os salários do pessoal especializado paramanter esses sistemas funcionando e tampouco osgastos com treinamento do pessoal de suporte. Mas osdefensores da publicação eletrónica argumentam quetudo estaria funcionando, independentemente da ado­ção ou não pelas universidades de alternativas dedifusão eletrónica, que simplesmente tiram proveitode uma base informática e telemática já instalada.

Ademais, mesmo que todos os custos fossemcomputados, as vantagens económicas da publicaçãoeletrônica sobre a impressa seriam inquestionáveis.Sabe-se que, devido em parte a tiragens limitadas, asassinaturas de revistas impressas têm preçoelevadíssimo, algumas chegando a custar até dez mildólares por ano. Poucas bibliotecas no mundo estãoconseguindo manter as assinaturas de milhares derevistas que mapeiam a situação atual do pensamentocientífico, sobretudo porque os preços aumentam acada ano. Vale considerar que as bibliotecas devemarcar ainda com um custo extra: a crescente demandade mais e mais espaço físico para armazenamento dosvolumes. Do lado da publicação e1etrônica, o queacontece? Embora não saibamos até quando, quasetudo o que se pode obter na Internet é absolutamentegratuito, principalmente em termos de informaçãoacadêmica. E não há nada de espantoso nisso. Naverdade, a Informática permite resolver um paradoxoda publicação impressa. Nesta última, o autor(es) nadarecebe(m) (em alguns casos têm até de pagar) peloartigo que publica(m). Tampouco recebem pagamen­to o corpo editorial e a universidade que financia as

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pesquisas ou paga os salários dos pesquisadores. Noentanto, para ter acesso à massa de informações queeles próprios produzem, a universidade e os pesquisa­dores têm de pagar (e muito caro), sob a forma deassinaturas de revistas. E mais: para que o autor(es)possa(m) gozar do privilégio da publicação, a maioriadas revistas impressas exige, em troca, a cessão aoeditor dos direitos autorais do artigo (copyright), oque, no fim das contas, significa que pesquisadores euniversidades perdem até o direito de usufruir doresultado de seus investimentos. Portanto, não é de seestranhar que, de repente, essa mediação incômoda dacasapublicadora (pelo menos do ponto de vista econô­mico), seja colocada em questão, e se experimentemalternativas mais diretas de gerenciamento da difusãocientífica pela própria comunidade acadêmica.

Quanto ao problema do espaço, um exemplopode ser mais eloqüente que mil palavras. SegundoAndrew Odlyzko (1995. p. 71-101), tudo o que sepublica no mundo, anualmente, na área de matemática(cerca de 50.000 artigos), cabe tranqüilamente numdisco rígido de 2,5 gigabytes, custando menos que aassinatura de uma única revista impressa. Ele vai aindaadiante: no máximo em uma década, poderemos terdiscos rígidos com capacidade de 1.000 gigabytes.Seria, pois, teoricamente possível colocar todo o co­nhecimento matemático acumulado ao longo dos sé­culos dentro de um único microcomputador pessoal.Pergunta ele, então: quem precisaria de bibliotecas?

Qual seria, portanto, a função da publicaçãoimpressa hoje, se ela não tem mais o poder de intervirsobre os reais debates do mundo científico, se chegasempre atrasada - propondo discussões superadas esofrendo limitações de toda espécie - a um preçoproibitivo? Esta é uma boa questão. Cedo ou tarde,quando todos os artigos publicados pelos periódicosespecializados forem obtidos emum simplesdownloadno computador, as inteligências envolvidas em suaprodução vão ter de se manifestar sobre as razõesprofundas para a continuidade ou não dessas publica­ções.

De fato, o periódico científico impresso segundonormas rigorosas continua sendo o indicador maisuniversalmente aceito para a aferição da produtivida­de do pesquisador e da real importância de sua inter­venção no universo da ciência.

Não se conhece outro instrumento mais eficientepara cumpriressa função. Éassim que a excelênciadoscenp-os de pesquisa é avaliada e que instituições uni-

versitárias e órgãos sérios de apoio à pesquisa seleci­onam e mantêm seus quadros de pesquisadores ou debolsistas. Entretanto, Paul Ginsparg (1996) vislumbrao surgimento de mecanismos de avaliação mais coe­rentes com a realidade atual e não mais baseados novolume de trabalhos publicados. Outrossim, a publi­cação impressa cumpre também a função de docu­mentar a produção acadêmica e datá-la, de modo aconstituir uma espécie de memória dos momentosmais importantes de determinado campo do saber. Emgeral, é com base na documentação das revistas que sepode avaliar o pioneirismo de uma pesquisa ou preci­sar o momento em que uma questão foi formulada pelaprimeira vez. As revistas são, nesse sentido, umaimportante fonte de consulta, quando se quer historiara evolução de um problema em ciência ou em tecno­logia. Ademais, não se pode esquecer que o artigoimpresso tem valor legal, por exemplo, na resoluçãode casos de plágio. Uma das fortes razões que movemo(s) autor(es) para o periódico impresso é a necessida­de de documentar a pesquisa, como forma de seresguardarcontrapossíveis casos de roubo intelectual.

São estes,justamente, os pontos que dão à publi­cação impressa alguma vantagem sobre a eletrônica.Sabemos que, por tradição, uma pesquisa científica sópode ser considerada séria depois de passar por umrigoroso mecanismo de gatekeeping, que culminacom o veredicto dapeer review, ou seja, da avaliaçãopelos pares. Apresentar um texto para uma publicaçãocientífica significa, na verdade, submetê-lo ao crivodos especialistas que formam o corpo editorial darevista e que determinarão se o texto é publicável, ouseja, se ele tem ou não valor científico. Muitas institui­ções costumam, inclusive, medir a qualidade de umarevista por sua taxa de rejeição: revistas de prestígioteriam uma taxa de rejeição de cerca de 90%, enquantoem outras, pouco importantes, essa taxa seria bemmenor (entre essas, estão as que aceitam os artigosrejeitados pelas primeiras). Na verdade, a revista aca­dêmica arbitrada praticamente dá legitimidade (àsvezes até mesmo existência legal e institucional) auma área de pesquisa, a um campo de conhecimento.Em geral, considera-se que, sem procedimentos for­mais rigorosos, a ciência pode submergir num "pânta­no" de resultados duvidosos, que resultarão fatais àcredibilidade do próprio mundo científico. Esse "pân­tano" é a imagem dos grupos de discussão que atual­mente superlotam a Internet. Como esses grupos sãogeralmente livres, qualquer um pode neles se inscre­ver e emitir opiniões sobre tudo. Nicholas Negroponte

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(1994. p. 144) observou, por exemplo, que muitosacadêmicos americanos não se dão conta de que seusinterlocutores, do outro lado da Rede - com quemtravam debates apaixonados sobre os rumos da culturacientífica neste final de século - são muitas vezesgarotos dos primeiros anos de faculdade. Malgrado asituação atual da Internet nos dar uma impressão geralde liberdade, democracia e ausência de autoridade, apergunta que muitos cientistas se fazem é se a ciênciatem condições de avançar com segurança sem meca­nismos confiáveis de avaliação, seleção e controle.

Essa é uma questão complicada. Jean-ClaudeGuedon (1994) nos recorda, por exemplo, que boaparte do prestígio e legitimidade de que goza a publi­cação impressa deriva da "internalização" coletiva demodelos de autoridade e de monumentalização a quea forma impressa do saber esteve historicamente asso­ciada. Publicar é um ato de consagração social, en­quanto o arquivamento de um texto na bibliotecarepresenta sua legitimação como parte de um cânone.A publicação científica, naturalmente, herda essespressupostos e com eles opera. Mas as grandes ques­tões que restam intocadas são, de um lado, a autorida­de do editor (seu poder de selar um texto com a rubricade aprovação ou condenação definitiva ao limbo) e, deoutro lado, o filtro determinado pelapeer review. Nãopodemos nos esquecer que dois dos mais decisivosnomes na construção do pensamento crítico contem­porâneo - Walter Benjamin e Mikhail Bakhtin - tive­ram suas teses de doutoramento reprovadas, justa­mente pela avaliação dos pares. Um dos nomes maisimportantes na construção da ciência do caos, o físicoMitchell Feigenbaum, teve seus artigos recusadospela maioria das revistas científicas, que os considera­ram exóticos e pouco rigorosos.

"A essência da teoria [de Feigenbaum] foidivulgada da maneira pela qual a maior parte daciênciaéhoje transmitida-através de conferênciase pré-publicações." (GLEICK, J. 1990. p. 177)

Processos de julgamento podem não ser apenascientíficos e sim visar a conservação de uma compe­tência intelectual já estabelecida, através da promoçãode adeptos e o enterramento de rivais ou subversores.Cientistas - é desnecessário dizer - são também sereshumanos, sujeitos a crises de inveja, rancor e medo demudanças.

Mas, cuidado! Isso não quer dizer que a pesquisacientífica esteja melhor sem julgamento. Se a peerreview tem seus problemas, a ausência dela certamen-

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te teria sido catastrófica para o desenvolvimento daciência e da tecnologia. Os próprios envolvidos napublicação eletrônica, depois de se terem aberto aexperiências de total liberdade, hoje se perguntam sealgum tipo de filtragem não seria necessário paraenxugar a rede de tanto lixo acumulado e para resguar­dar a comunidade científica da ação de aventureiros.Embora algumas publicações eletrônicas já adotem omodelo restrito das impressas (centralização em umeditor, peer review, indexação em órgão dotado decredibilidade), a grande discussão, hoje, no universotelemático é como conservar no meio eletrônico amesma qualidade das publicações impressas, semreproduzir suas restrições. Em outras palavras, há umsentimento geral de que o meio eletrônico, em razãomesmo de suas diferenças e potencialidades, deveinovar no controle de qualidade da matéria científica.Para isso, deve buscar seus próprios instrumentos delegitimação, ter critérios de seleção mais flexíveis,que permitam fazer florescer o debate e a divergência,ao invés de simplesmente importar modelos incompa­tíveis com sua forma de funcionamento.

A rigor, se não levarmos em consideração o puroe simples transporte do modelo impresso para o cibe­respaço, duas alternativas diferenciadas estão sendohoje concretamente experimentadas. A primeira con­sidera que a publicação eletrônica é uma forma privi­legiada, universal e democrática de pré-edição(preprint), além de ambiente para conferências medi­adas por aparelhos. Nessa acepção, as revistas impres­sas continuariam existindo e cumprindo seus papéisbásicos de consagração, atribuição de mérito e arqui­vamento, enquanto as publicações eletrônicas ficari­am livres dessas funções para se tornarem o maiseficiente veículo de comunicação e troca de experiên­cias entre cientistas. Nos ambientes em que predominaesta acepção, não há filtragem do material exposto, oumelhor, a filtragem é feita na prática, através doscomentários, críticas e revisões que os próprios pes­quisadores fazem dos trabalhos dos outros. Na verda­de, trata-se apenas de dar um tratamento informatiza­do a uma dinâmica de trabalho que já é própria doambiente científico.

O grande exemplo, certamente, é o gigantescoarquivo de pré-publicações concernentes à área daFísica das partículas de alta energia, montado por PaulGinsparg no Los Alamos National Laboratory, nosE.U.A. (http://xxx.lanl.gov/). Segundo estatísticas defevereiro de 1996, o arquivo processa uma média de70.000 acessos por dia, e é visitado por 35.000 pesqui-

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venção passa, todavia, pelo crivo de um editor, quedecide se é publicável ou não). Nesse novo modelo, odebate é privilegiado, pois se está lidando com ummeio interativo, no qual a informação circula, aomesmo tempo, nos dois sentidos (do autor ao leitor edo leitor ao autor). Harnad denomina esse procedi­mento scholarly skywriting (literalmente: "sinais defumaça acadêmicos", pelo fato dos sinais de fumaçaconstituírem, entre os índios americanos, uma formade comunicação interativa). Embora também possahaver debates nas revistas impressas, a estrutura des­tas é pouco adequada a uma verdadeira e acaloradadiscussão. Geralmente, as revistas científicas sãoquadrimestrais, o que significa que uma crítica a umartigo só sai, na melhor das hipóteses, quatro mesesdepois, e a tréplica demora outros quatro meses. Nesseínterim, o assunto já terá "esfriado" e o próprio autorjáestará provavelmente envolvido com outras questões.

A idéia que embasa o modelo de Psycoloquy éque, uma vez instituída apeer review (agorarebatizadade peer commentary) - como um mecanismo de pro­moção da qualidade através da crítica permanente (enão como uma simples autoridade seletiva) - os pró­prios autores pensarão duas vezes antes de submete­rem à revista um trabalho vulnerável, ainda imaturo epouco fundamentado. Agora, o risco não é mais otrabalho não ser publicado, mas sim ficar exposto auma crítica fulminante. Assim, o elemento diferencialda publicação eletrônica passa a ser outro: ele não estásimplesmente na difusão mais rápida dos artigos e nafacilidade de busca instantânea (search) em toda aliteratura científica disponível. A essência mesma domeio eletrônico reside nofeedbackimediato, na estru­tura bidirecional e na conseqüente possibilidade dediálogo, ou seja, na potencialidade de comunicação.Se for possível instituir mecanismos de avaliação eseleção fundados no debate e na comunicação, entãoprovavelmente a publicação eletrônica terá encontra­do sua forma de legitimação.

Se existe algo realmente interessante acontecen­do hoje nos meios científicos é esse súbito ressurgi­mento da paixão pelo debate de idéias, que o meioeletrônico mais que estimula, quase que o requer, emdecorrência de seu trajeto de mão dupla. Recentemen­te, pude acompanhar uma agitada polêmica causadapela publicação de um artigo provocativo de MichaelBérubé (1996), na revista eletrônica Alt-X (http://www.altx.com/). de literatura experimental, na qual oautor criticava a esquerda norte-americana por suaincapacidade de produziruma diferença na cultura que

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sadores e/ou outros tantos não-pesquisadores, de 70países. (GINSPARG, P. 1996) Nesse arquivo, estádepositada, indexada (por assunto, autor e resumo) edisponível para acesso gratuito uma infinidade deartigos sobre partículas de alta energia (quase tudo oque se publica no mundo sobre o assunto). Além disso,recebendo uma média de 350 novos artigos por sema­na, esse arquivo serve também de veículo para o(s)físico(s) dar(em) visibilidade e difundir(em) seus pró­prios papers. O sistema não prevê qualquer filtragemdo material recebido. Tanto a submissão de artigoscomo sua classificação e indexação são feitas automa­ticamente por programas específicos, a partir de infor­mações prestadas pelo(s) próprio(s) autor(es). O pro­jeto começou informalmente em 1991, como umasimples lista de distribuição de pré-publicações entreos colegas de Ginsparg, mas logo foi descoberto porfísicos do mundo inteiro, que nele reconheceram umlugar onde ocorriam discussões essenciais. O resulta­do foi um crescimento repentino e uma progressivaampliação do leque de problemas referidos, a ponto dehoje ele já abarcar praticamente todo o universo daFísica.

O segundo exemplo está em Psycoloquy (http://cogsci.ecs.soton.ac.uk/ -harnadlpsyc.htrnl), revistaeletrônica gratuita, dirigida por Stevan Harnad e dedi­cada ao estudo das ciências cognitivas. Ao contráriodo modelo totalmente aberto de Los Alamos,Psycoloquy tem um corpo editorial integrado porvários especialistas em áreas tão diversas como Psico­logia, Neurociências, Filosofia, Lingüística, Compu­tação, etc., estabelecidos em diferentes partes do mun­do e ligados entre si através de correio eletrônico.Todas as propostas de artigos são submetidas a essesespecialistas. Mas a função básica do corpo editorialnão é exatamente selecionar aquilo que apresentavalidade, mas encetar uma discussão com os trabalhosque lhe parecem mais estimulantes para um debate.Quando um trabalho suscita comentários de um oumais membros do corpo editorial, tanto o trabalhoquanto os comentários dos especialistas e, às vezes,até mesmo a resposta do autor - são"disponibilizados"na forma eletrônica.

Eventualmente, isso pode desencadear uma novapolêmica, envolvendo outros autores e demais mem­bros do corpo editorial. Em Psycoloquy, todos osartigos publicados são comentados e expostos a críti­cas (aí reside a nova função da peer review). O autorpode também responder a essas críticas e o próprioleitor é incentivado a participar do debate (sua inter-

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ela critica. O artigo provocou uma avalanche de res­postas, algumas concordantes e outras discordantes. Aesse coro de comentários vieram se somar intelectuaisde respeito, como os críticos de arte e literatura con­temporâneas, Gregory Ulmer e Marjorie Perloff. Se,como neste exemplo, as publicações eletrônicas logra­rem sucesso na tarefa de atrair para suas fileiras osnomes mais importantes e respeitados em cada área deespecialidade; se essas figuras se mostrarem interes­sadas em participar das discussões já em andamentona Rede, contribuindo, inclusive, para a elevação donível da argumentação, certamente as publicaçõeseletrônicas conseguirão se impor como alternativa deescrituracientífica tão legítimaquanto a forma impressa.

A grande e atual discussão no ciberespaço é se a"filtragem" da produção acadêmica deve se dar antesda publicação (pela autoridade de um editor e de umcorpo editorial) ou depois que o artigo ficou disponí­vel para a comunidade científica, através dos comen­tários e críticas de um grupo qualificado de expertos.Na segunda alternativa, o valor de um texto vai apare­cendo aos poucos, à medida que a comunidade cientí­fica manifesta sua reação. Para incentivar o debate, opróprio editor pode solicitar comentários. Nessaestru­tura, o corpo editorial compreenderia um grupo denomes respeitados, cuja função seria produzir comen­tários e críticas dos trabalhos expostos. Quanto aoleitor, se ele se sentir perdido no "oceano" de textos,pode - ao invés de lamentar a ausência de uma autori­dade seletiva - instituir seus próprios "filtros" e criarmecanismos de controle de qualidade que lhe permi­tam calibrar escolhas e leituras. Uma opção poderiaser, por exemplo, ler apenas os textos que tenhamrecebido comentários positivos de, pelo menos, doisintelectuais confiáveis. Ou, então, um programa debusca automática poderia auxiliar no levantamentodos artigos comentados por determinado especialistaou corpo editorial. Nada impede também que se utili­zem métodos semelhantes, para efeito de avaliação dodesempenho do pesquisador, ou decisão sobre umpedido de auxílio. (ODLYZKO, A. 1995. p. 71-101)

Nesse sistema, o autor teria uma vantagem extra:seu texto nunca seria definitivo. Este poderia se bene­ficiar dos comentários, sendo refeito à medida quefosse criticado. Deste modo, o autor poderia submeterà revista eletrônica versões revisadas de seu texto,incorporando produtivamente os comentários recebi­dos. Na verdade, é assim que o pensamento científicotem se constituído desde o seu início, e mesmo quandoa única alternativa de difusão era o volume impresso,

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o autor zeloso sempre teve o cuidado de pedir a algunscolegas para lerseu texto e criticá-lo, antes de submetê­lo a um editor. A diferença é que, agora, as revisõespodem ser feitas mesmodepois do trabalho publicado.A qualquer momento, o autor pode intervir em seuarquivo e modificá-lo, atualizá-lo, melhorá-lo, ad

infinitum. Ao contrário do que ocorre nos meios im­pressos, os textos publicados em forma eletrônica nãosão estáveis, nem dados como prontos. Eles se alimen­tam do diálogo e se transformam permanentemente,emfunção da influênciade outros textos. Sabemos quenenhuma ciência se faz individualmente; ela é antes oresultado de uma interação de talentos e esforços, queocorre num processo coletivo de investigação. A edi­ção eletrônica apenas dá forma dinâmica àquilo que éa natureza mesma do processo de conhecimento.

Nesse sentido, o maior problema que resta àpublicação eletrônica é o da memória. Se as revistasganham forma no ciberespaço, o que vão as bibliote­cas armazenar e conservar? Até aqui, o acesso aoperiódico eletrônico tem sido direto, entre o compu­tador que armazena o arquivo e o computador doleitor. Não se prevê qualquer instância intermediáriade conservação e memória, como seria o caso dabiblioteca. Pressupõe-se, então, que a função de con­servação caiba ao próprio fornecedor, que deve deixardisponíveis, em algum diretório devidamente datado,os textos mais antigos. Mas, como o fornecedor nãotem, como função primeira, o armazenamento deinformações, nada nos garante que ele o fará indefini­damente. Um dia, ele poderá decidir expurgar ostrabalhos mais antigos ou pouco acessados, para, porexemplo, economizar espaço e tornar mais ágil abusca. Ou, então, umsite poderia simplesmente deixarde funcionar por alguma razão específica (mudançasna orientação política de um departamento, crise eco­nômica da universidade, etc.). Na pior das hipóteses,até mesmo um defeito técnico ou um ataque de víruspoderia impossibilitar o acesso aos textos. Então, todoo saber acumulado nesses arquivos se esvaneceria derepente, como fumaça no ar. Se isto acontecer, queprovas de publicação sobrarão para o(s) autor(es)? Ecomo poderia o leitor reencontrar um artigo?

Algumas publicações eletrônicas mais sériasprocuram se resguardar de possíveis problemas, man­tendo cópias (mirrors) permanentemente atualizadasde seus arquivos, num computador situado em outrauniversidade, preferencialmente até em outro país.Psycoloquy, por exemplo, tem seu site originado naPrinceton University, mas mantém mirrors nas uni-

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continuará sendo lido daqui a alguns anos, quando asmáquinas forem outras e diferentes sistemas estive­rem em operação? Deverá, então, o material arquiva­do ser constantemente atualizado (convertido,transcodificado), para que possa ser lido sem proble­mas pelas máquinas mais atualizadas? Se não houverrespostas convincentes a essas perguntas, os textos(pelo menos os mais representativos) deverão conti­nuar a ser impressos em papel durante longo tempo,para que se cumpra a função de memorização daciência.

Esses são problemas de ordem estritamentematerial. Mas existem outros mais complicados, deordemconceituaI. Por exemplo, comocitar um artigodisponível na Rede e como catalogá-lo numa bibliote­ca? Revistas eletrônicas, em geral, não apresentamnúmero de página, de série ou de volume, e sim apenaso endereço de acesso. As normas nesse sentido estãosendo só gradativamente introduzidas pelas entidadesbibliográficas. No entanto, um número cada vez maiorde artigos é editado unicamente em forma eletrônica.Tampouco se pode deles prescindir, quando se estátrabalhando. Há aqui, talvez, um falso problema, jáque a citação bibliográfica deverá, provavelmente,desaparecer do ambiente eletrônico, sendo substituídapelo link direto. Ou seja: numa publicação eletrônica,quando um autor escreve, por exemplo, "Conformeafirma Hamad[ ...]" , nenhuma referência bibliográficaserá necessária, porque a própria palavra "Harnad"será um link e, uma vez clicada, levará o leitor direta­mente ao artigo citado, esteja onde estiver. Assim,mais do que a referência bibliográfica, o leitor terá,diretamente, o próprio texto, o que torna a citaçãoobsoleta. Imagine-se a transformação brutal que deve­rá ocorrer com as publicações de índices e de resumos(abstracts). Cada título indexado já será um link aopróprio artigo, quando não a seus comentários. Assim,enquanto no meio impresso a existência de um títulonão facilita o acesso a ele, no meio eletrônico umíndice ou uma bibliografia já são, em si, bibliotecaspotenciais.

Mas isso simplifica apenas aparentemente ascoisas. É preciso considerar que o texto eletrônico nãotem estabilidade, ele é constantemente revisado, emfunção das críticas que recebe. A citação torna-seentão um problema pois, quando um texto é revisado,a nova versão apaga a anterior e a referida citação podenão mais dizer aquilo que lhe está sendo atribuído. Naverdade, a noção de um texto interminável e infinita­mente passível de revisões, introduzida pela publica-

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versidades de Southampton, Virgínia e Viena. Masisso não resolve todos os problemas. As dificuldadespodem também estar do lado do leitor que, por qual­quer razão, pode ficar de repente sem acesso à Internet.Enfim, a verdade é que as redes telemáticas não nosdão garantia de que os artigos nelas depositados esta­rão pennanentemente disponíveis. E se não estiverem,o que fazer?

Não sejamos, entretanto, tão dramáticos. Umabiblioteca também pode pegar fogo ou ser inundada eperder seu acervo, da noite para o dia. Os livrosarmazenados podem sofrer ataques de traças e papéisácidos podem se decompor, naturalmente, depois dealgum tempo. A recuperação de livros e revistasdeteriorados é uma atividade cara e trabalhosa. Asbibliotecas o fazem, em geral, de forma seletiva,jogando no incinerador títulos que elas julgam inútilrecuperar. Mas uma biblioteca nunca é a fonte única deacesso às publicações. Se algo acontece com umabiblioteca ou publicação, outras poderão contar com omesmo acervo, ou com parte dele. Não é esse exata­mente o caso dossites na Internet. As redes telemáticasconstituem, hoje, uma gigantesca biblioteca global,mas basta que apenas um ponto dessa rede seja supri­mido para que todo o acervo ali depositado se perca emdefinitivoo Isso quer dizer que a informação impressa,convertida em eletrônica, não elimina a intervençãodas bibliotecas ou de qualquer outra instância deconservação e memória da ciência.

Aí começam os problemas. As bibliotecas atu­ais ainda não possuem políticas específicas de arqui­vamento sistemático de publicações eletrônicas. Essamatéria, aliás, é bem mais complicada do que parece,à primeira vista. Inicialmente, há problemas de ordemlegal. Pode uma biblioteca copiar em seus computado­res arquivos originados em outros pontos e torná-losdisponíveis para seus pesquisadores? Mesmo que umarevista eletrônica preveja o pagamento de uma assina­tura, será que o preço abrange a transferência dosarquivos aocomputadordo assinante, pararedistribuiçãoposterior, ou apenas o acesso? Caso esses problemaslegais sejam resolvidos e as bibliotecas autorizadas aarmazenar a informação eletrônica, em que suporte ousistema elas o deveriam fazer?

As tecnologias rapidamente se tomam obsoletase são substituídas por outras não necessariamentecompatíveis com as anteriores. Quais as garantias deque um texto - arquivado eletronicamente, em deter­minados suportes, máquinas e sistemas operacionais -

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çãoeletrônica, é absolutamente subversiva emrelação Casas publicadoras, instituições, editores e de-a todo saber bibliográfico. No caso das bibliotecas, a mais pessoas - comprometidos com publicações cien-forma eletrônica introduz um problema extra, que é tíficas tradicionalmente impressas - perguntam-se,justamente o de saber qual das versões de um texto b .agora, como so reVIver diante da nova situação, quan-deve ser conservada para a posteridade, pois seria do os próprios pesquisadores tomam a iniciativa deinviável guardartodas as versões. (LYNCH, C. 1996. editar eletronicamente seus textos e distribuí-los gra-p. 133-145) tuitamente, sem mediadores, financiamento ou assi-

A publicação impressa nos acostumou a pensar naturas, utilizando os mesmos computadores queotexto como uma unidade discreta, fixada de uma vez empregam em outras tarefas. Para aqueles envolvidospor todas ou, num certo sentido, imutável. Essa é,aliás, com o meio impresso, já está claro que atacar simples-a condição sine qua rwn para sua monumentalização e, mente o novo sistema eletrônico, criar barreiras legaisnesse pressuposto, se baseia também a idéia de con. ou ameaçar os autores que estão na Rede não é oservação. Mas se não há estabilidade, toda citação e melhor caminho. A tendência mais geral, ao contrário,conservação serão sempre arbitrárias, porque no é aderir também ao modelo eletrônico, para não perderinstante seguinte ao corte efetuado, o(s) autor(es) completamente o controle sobre as publicações cien-pode(m) estar pensando e agindo diferentemente, o tíficas. Comumente, os editores tradicionais apostamque nem a citação ou a versão congelada na biblioteca que, após um período de euforia e de utopia, as revistassão capazes de expressar. Se isso gera confusão e eletrônicas acabarão se adequando a um modelo maiscoloca o saber bibliográfico num mar de indefinições, comportado, no qual a viabilização comercial nãoépreciso considerar que correção, revisão, mudança e estará inteiramente descartada. Enquanto isso, assiste-até mesmo contradição fazem parte da dinâmica de se hoje à entrada irrestrita na rede da maioria dostodo pensamento vivo. Portanto, se algo está errado, o grandes editores científicos, que propõem diferenteserro está mais provavelmente ao lado do saber biblio- alternativas. Às vezes, eles oferecem revistas exclusi-gráfico, que tende a sepultar o pensamento numa vamente eletrônicas, de alto nível e gratuitas, exata-forma fixa. Os novos meios de difusão, na verdade, mente como aquelas já oferecidas pela própria comu-nas estão obrigando a enfrentar o desafio de um nidade acadêmica. É o caso, por exemplo, da prestigiosapensamento complexo e a inventar formas mais ade- PostmodernCulture(http://jefferson.village.virginia.edu/quadas de representá-lo, sem simplificá-lo. pmc/contents.all.html), dedicada à crítica da cultura

contemporâneae editadapela Oxford UniversityPress.Naturalmente, é possível tambe'm com'gl'r um Outros apresentam iniciativas ousadas, como a

trabalho impresso, mas neste caso, a nova versão será "disponibilização" gratuitana rede dos artigos aprova-uma nova publicação, devidamente assinalada como dos para publicação (todos ou apenas alguns).

, tal ("segunda edição revisada"), para evitar confusãocom a anterior. Da mesma forma, uma publicação Assim, ao invés de esperar três anos por umeletrônica pode ser indicada pela data em que ocorreu texto, o leitor pode obtê-lo imediatamente, com auma revisão, de modo a permitir que se possa fazer, vantagem de mais tarde ter acesso também à publica-com alguma pertinência, uma citação ou uma conser- ção impressa. Isto ocorre com a importante revista

i vação datada. Assim como é possível uma biblioteca Leonardo (http://www-mitpress.mit.edulLeonardo/catalogar duas edições diferentes de um mesmo livro plaza.html), dedicada às relações entre arte, ciência eda também pode, de tempos em tempos, cotejar seu~ tecnologia, e editada pela The MIT Press. Mas esses

uivos com as fontes originais, para verificar se fatos são experimentais. Como a sobrevivência dasuve mudanças nos textos (programas de computa- editoras depende basicamente de recursos financei-r podem fazer isso automaticamente e em poucos ros, elas estudam alternativas de viabilização econô-. utos). Se a resposta for positiva, a entidade fixa mica. A mais lógica, naturalmente, é a assinatura, com

nova versão dos textos modificados, datando-os a conseqüente restrição do acesso ao não-assinante.vidamente. Neste caso, a biblioteca não teria todas Outros modelos seriam baseados em sistemasyersões de um artigo, mas sim "cortes" esporádicos informacionais computadorizados, como o DIALOGsua evolução, que poderiam dar uma idéia aproxi- ou o STN, que cobram por minuto de acesso ou por

do movimento da pesquisa. byte transferido. De qualquer forma, se o maior volu­me das publicações eletrônicas permanecer acadêmi-co e gratuito, o preço do acesso às revistas eletrônicas

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Bibliografia

Embora uma incógnita, o futuro das publicaçõeseletrônicas (e também o das revistas impressas), comtoda certeza será determinado pelas iniciativas e deci­sões tomadas agora por todos nós, pesquisadores,editores e instituições.

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pagas não deverá ser muito alto pois, do contrário,estas não seriam competitivas (pelo menos, esse preçodeverá ser mais baixo que o das revistas impressas).

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AbstractThere is a fundamental change in the world of scholarly publishing as it shifts from paper-based to electronicformats. Network forums and electronic journals on Internet are now creating tremendous pressures forreconsidering the role of printed periodicals into the field of scientific research. The present debate about thebenefits and disadvantages of both print and electronic publishing focuses on a number of important issues.Journals in the new formats are expected to improve the speed of communication, enhance informal discussionand comment between scholars, reduce costs of published material, and decrease backlogs of acceptedmanuscripts waiting for publication. But for the time being, they lack reliable mechanisms for quality control, peerreview, and specific policies for cataloging and preservation. No matter what our preferences are, we are quitesure that drastic change will be inevitable. What we want to know now is if print and electronic paradigms canlive together, or if traditional printed scholarly journals will disappear sometime.

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