machado, m - sobre a visão em paralaxe

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    IEK, Slavoj.A viso em paralaxe. So Paulo:

    Boitempo, 2008.

    Henrique Campos Monnerat. Minibiografia, pensamento poltico,

    filosfico, artstico. A viso em paralaxe, breve resenha.

    Introduo O materialismo dialtico bate porta (p. 13). I. A

    paralaxe estelar: as armadilhas da diferena ontolgica (p. 29) 1.

    O sujeito, esse judeu circuncidado interiormente (p. 31)

    Christian Dunker. O mais rico trabalho terico do filsofo esloveno

    Slavoj iek, classificado pelo prprio autor como sua obra prima.A

    partir da noo de paralaxe um efeito de aparente deslocamento do

    objeto observado devido modificao na posio do observador ,

    iek desenvolve trs campos de reflexo que se articulam. Na

    filosofia, iek faz um apanhado terico de seus livros anteriores,

    relacionando conceitos de Lacan, Hegel e Marx. No campo da cincia, o

    esloveno enfatiza questes levantadas pela neurologia e as cinciascognitivas, alm de aprofundar suas reflexes sobre a estrutura do

    sujeito a partir de seus estudos de psicanlise. E em relao

    poltica, iek desenvolve a idia de que o reconhecimento de

    antagonismos na ordem social constitui tarefa maior de nossos tempos.

    Um dos objetivos do livro empreender uma reabilitao do

    materialismo dialtico. iek entende a crise do marxismo no s como

    resultado das derrotas sociopolticas sofridas por seus movimentos,

    mas tambm pelo declnio do materialismo dialtico como base

    filosfica. Nesse sentido, sua obra oferece um quadro amplo dos

    debates acadmicos sobre os rumos de uma nova esquerda, dialogando com

    autores como Giorgio Agamben, Toni Negri, Michael Hardt, Ernesto

    Laclau, e no se furtando a abordar questes complexas como oantissemitismo e o fundamentalismo. Anlises filosficas so

    entremeadas por leituras detalhadas sobre literatura, cinema e msica,

    no deixando de lado o talento de iek para a crtica da cultura.

    Produtos da cultura pop como Guerra nas estrelas, o filme infantil

    Procurando Nemo, entre outros, so observados por ngulos diversos

    paralaxe e relacionados aos mais complexos fenmenos de maneira no

    mnimo original. A viso em paralaxe, terceiro livro de Slavoj iek

    publicado pela Boitempo Editorial, no s expande a aproximao

    lacaniana-hegeliana do filsofo para novos domnios, como tambm prov

    a sistemtica exposio da estrutura conceitual que sustenta seu

    trabalho. Orelha de.

    Luciana Goiana Barbosa. 2. Os tijolos da teologia materialista (p.

    99). Interldio 1: A escolha de Kate, ou o materialismo de Henry

    James (p. 171). ***

    Cassiana Lima Cardoso. II. A paralaxe solar: a leveza insuportvel

    de no ser ningum (p. 197). 3. O peso insuportvel de ser merda

    divina (p. 199). 4. O circuito da liberdade (p. 271) ***

    O vdeo OHIO IMPROMPTU,de Samuel Beckett, de 1980. As instrues deBeckett exigem que os dois personagens paream iguais tanto quanto

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    possvel, alimentando a sensao de que so elementos de um s homem.

    Neste vdeo, contudo, Jeremy Irons quem faz os papis de Leitor e

    Ouvinte. No texto original, a dupla deve encarar diretamente um ao

    outro apenas no final, mas, nesta verso, os dois mantm essa

    constante e intrigante comunicao visual. No teatro, no h esse

    recurso da cmera para guiar o olhar do espectador, por isso Beckettfaz essa exigncia; preciso haver algum instrumento dentro da

    prpria encenao para evidenciar essa lacuna, essa no coincidncia

    do um consigo mesmo.1

    Esta MINHA EPGRAFE, a paralaxe nesse pequeno improviso (p. 498)

    Mnica Machado. Interldio 2: Objeto aem vnculos sociais, ou os

    impasses do anti-antissemitismo. III. A paralaxe lunar: rumo

    poltica da subtrao. 5. Da mais-valia ao mais-poder. 6. O n

    obsceno da ideologia e como desat-lo

    Coube a mim a terceira paralaxe, em que esto tratadas, as questes

    relativas aos vnculos sociais, aos sistemas polticos e econmicos,

    ao poder e s mquinas ideolgicas atuais, talvez sejam as mais

    prementes questes do discurso de iek e as mais prximas de ns,

    leitores.

    HOUAISS, Antnio. Verbete Paralaxe. In Dicionrio Houaiss da Lngua

    Portuguesa. 1. Deslocamento aparente de um objeto quando se muda o

    ponto de observao. [] Etimolog. Ao de alternar, donde movimento

    alternativo; mudana, modificao, [e dentre esses, o que mais gostei]

    perturbao da razo.

    Ainda na Introduo de A viso em paralaxe, iek (2008) j

    estabelecida quais seriam as lacunas paralcticas formuladas neste

    livro da filosofia, em torno da diferena ontolgica e a realidade

    ntica; das cincias cognitivas, entre a relao fenomenal do sujeito

    consigo mesmo e a realidade biofsica do crebro; da poltica, entre

    antagonismos propriamente ditos e a realidade socioeconmica. Para

    alm desses dualismos, a tenso no texto de iek se referia ainda a

    uma diferena mnima que os gera (p. 23). E aqui iek, apesar de suas

    diferenas com o desconstrutivismo, faz uma concesso a Derrida e

    diffrance, que em algum aspecto coincide com seu conceito de

    diferena mnima. Na diffrance, postulada como um jogo entre os

    significados de "postergar e adiar" tanto quanto "diferir", h duas

    caractersticas heterogneas e determinantes do significado textual; a

    1Dirigido por Charles Sturridge, interpretado por Jeremy Irons. Inicia com dois homens vestidos de preto, numcenrio noturno; mantendo o rosto meio baixo, sob cabelos brancos, sentados em cadeiras brancas, debruados sobreuma mesa tambm branca, so o Leitor e o Ouvinte. Resta pouco a dizer, a fala introdutria do leitor, em umaenigmtica leitura da mensagem de algum muito amado pelo Ouvinte, que talvez j esteja morto. O Leitor l umlivro que conta a histria do Ouvinte de luto. O Ouvinte no fala, mas no ouve apenas; marca a leitura batendo namesa com os ns dos dedos, no que parece uma tentativa de assegurar que aquela no seria a ltima leitura, no que

    parece um gesto de resistncia em texto, espera do amanhecer. Trocam olhares emocionados e constrangidos, at oltimo momento, quando a histria contada pela ltima vez e o Leitor anuncia: "No h mais nada a dizer".

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    primeira delas est posta em relao ao adiamento e exprime a noo de

    que palavras e signos no podem nunca evocar exatamente o que

    significam, que precisam apelar a palavras adicionais e diferentes

    para minimamente definir-se; essa indefinio est presa a um

    significado que adiado ou postergado, sempre e seguidamente. A

    segunda caracterstica determinante do significado relativa diferena (ou ao "espaamento", que novamente parece lacunar) e se

    refere a uma fora diferenciadora de elementos em atuao que

    engendram oposies binrias e hierarquias em sustentao ao prprio

    significado; essa noo tambm resulta em um processo sem fim.2

    Entretanto, est na organizao do livro uma prtica de pensamento

    que, alm de formular problemas e fluir respostas, integra um

    compromisso com o pensamento renovado, sem esquecer as longas razes

    de uma viso crtica do mundo; essa metfora da paralaxe. Slavoj

    iek adota o modo de paralaxe, de perturbao do ponto de vista fixo

    para provocar no leitor uma mudana na razo, para incitar no leitor

    uma noo de diferena que semanticamente afetada por duas

    categorias medidoras: o tempo (da diffranceno sentido de adiamento)

    e o espao (da diffranceno sentido de distanciamento). Grosso modo,

    para a paralaxe lunar, com lugar-observador da Terra, os dois pontos

    extremos da rotao da Terra em seu prprio eixo daro a medida, o

    objeto-observado pode ser qualquer coisa, at a Terra, a Lua e as

    estrelas; essa medida precisa de um dia inteiro para ser completa. 3A

    cada vez, desde o captulo I., passando por II. e, enfim, chegando ao

    III. A paralaxe lunar: rumo poltica da subtrao (p. 359), iek

    sorrateiramente aproxima o observador-leitor do contedo poltico deseu discurso, e cada vez mais recente o tempo dessa observao.

    ***

    a soluo// daqui a cem anos/ todos os nossos problemas/ nos tero

    resolvido Horcio Ddimo, na Antologia de poeminhas reais.

    5. Da mais-valia ao mais-poder (p. 361)

    iek (2008, p. 361) inicia o discurso Errncia ntica, verdade

    ontolgicasituando nossa leitura no pensamento de Heidegger sobre afinitude como constituinte positivo de ser-humano, e em completar a

    2H um alerta de iek sobre os pensamentos sempre em futuro, circulares, que no levam a nada, e sobre os estilosobscuros e ilegveis e, principalmente, sobre A proibio de pensar (Luis Carlos Lopes, artigo publicado em 25 de

    julho de 2009, na Carta Maior).3Grosso modo, para a paralaxe estelar, com lugar-observador na Terra, os dois pontos extremos de nossa rbitadaro a medida da lacuna, o objeto-observado ser uma estrela e o fundo-cenrio ser a esfera celeste; essa medida

    precisa de um ano para ser completa. Para a paralaxe solar, com lugar observador ainda na Terra, os dois pontosextremos de sua rbita daro a medida, o objeto-observado ainda pode ser uma estrela, mas desta vez estar emrelao com a distncia da Terra e do Sol; essa medida demora seis meses. Para a paralaxe lunar, ainda no mesmolugar-observador, os dois pontos extremos da rotao da Terra em seu prprio eixo daro a medida, o objeto-observado pode ser qualquer coisa, at a Terra, a Lua e as estrelas; essa medida precisa de um dia inteiro para sercompleta.

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    revoluo filosfica de Kant, de que a finitude a chave da dimenso

    transcendental, mas a finitude que torna impossvel a intuio

    intelectual, de que todo entendimento uma projetao contingente de

    um vnculo por cima de uma lacuna, no uma aproximao direta; a

    condio de possibilidade transcendental o anverso da condio de

    impossibilidade do ser humano de intuir diretamente a realidade; oprprio fracasso [] que constitui a abertura do mundo ao seu

    horizonte (p. 362).Quando Heidegger insiste repetidamente que quem

    trata da verdade ontolgica erra necessariamente no nvel ntico, ele

    reconhece assim a lacuna paralctica irredutvel entre o ontolgico e

    o ntico (p. 363); reconhece que as cincias no pensam e longe de

    ser uma limitao, essa sua fora, a razo pela qual so to

    produtivas (p. 364). Ainda nessa paralaxe entre o ntico e o

    ontolgico, iek destaca que exatamente por participar do nazismo e

    do fascismo, por estar l, vivendo os extremos da subjetividade

    moderna, que pde formular sua verdade (p. 365)

    ; e o sacrifcio

    um dos modos de por em ao a verdade , alm do pensamento, da poesia

    e da criao de Estados. H aqui uma passagem da deciso autntica do

    Dasein individual [de morte e finitude] para a deciso comunal [da

    aceitao do destino, e da condenao do capital] que atende a uma

    necessidade precisa, cuja resoluo est num conceito puramente

    formal: no se refere ao QUE se faz, mas a COMO se faz.

    Gelassenheit? No, obrigada. iek trata da fase misteriosa [1928-

    1936, 1938] do pensamento de Heidegger, e torna indistinta a passagem

    do decisionismo da fase um (assumir heroicamente o prprio destino) e

    a receptividade passiva da fase dois (escutar com humildade a vozdestinal do ser).4 iek vai buscar a terceira perspectiva, em Lvi-

    Strauss (p. 372), O lugar da verdade no a maneira como as coisas

    so realmente em si, para alm de suas dimenses perspectivas, mas a

    prpria lacuna, a passagem que separa um ponto de vista de outro, a

    lacuna que torna os dois pontos de vista radicalmente incomensurveis

    (p. 372). A liberdade no um estado neutro e bem-aventurado de

    harmonia e equilibro, mas o prprio ato violento que perturba esse

    equilbrio (p. 373). Trs caminhos sacrificiais heideggerianos so o

    prprio oposto da resistncia [] o caminho da salvao [] e a

    Gelassenheit, afastar-se do engajamento (p. 376).

    5

    Hoje, para iek, atarefa no a sntese [essa a vingana de Hegel contra Marx], mas a

    separao, a distino: no reunir lei e violncia, mas separ-las

    inteiramente, desfazer seu n (p. 396). Na definio de mais-poder:

    somos instrumentos da jouissancedo Outro (a Matrix) que suga nossa

    substncia vivida como se fssemos baterias (p. 413). O que leva ao

    impasse [na maioria dos seres humanos em escravido do Capital e da

    4O inimigo, para Heidegger (p. 370). A paz real de Nietzsche (p. 371). A paz real de Nietzsche (p. 371).5 Rumo teoria do musical stalinista (p. 381). Oposio entre stalinismo e nazismo (p. 381-386). A paralaxe

    biopoltica (p. 391). Os trs caminhos da psicanlise e o quarto caminho, a afirmao de que, ao contrrio, s hojeencontramos na vida cotidiana, o impasse libidinal bsico em torno do qual gira a psicanlise a felicidade daautorrealizao e do autocontrole (p. 393).

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    jouissance] que num curto-circuito ideolgico, a Matrix

    [globalizao, capitalismo, sistemas sociais] funciona como uma dupla

    alegoria: do Capital (as mquinas sugando nossa energia) e do Outro, a

    ordem simblica como tal (p. 417). O que impede o questionamento

    radical do prprio capitalismo exatamente a crena na forma

    democrtica da luta contra o capitalismo (p. 420), temos de romper oencanto do capitalismo global mas a interveno deveria ser

    propriamente poltica, e no econmica (p. 421). Entre Badiou e

    Hannah Arendt, iek sustenta a liberdade em oposio ao domnio da

    proviso de bens e servios, da manuteno das famlias e do exerccio

    da administrao, que no pertence poltica propriamente dita: o

    nico lugar de liberdade o espao poltico comunal (p. 429).

    6. O n obsceno da ideologia e como desat-lo (p. 433)

    O n obsceno da ideologia e como desat-lo (p. 433) comea por

    explicitar o grande n que iek considera impeditivo ao pensamento. Ojovem amish criado no ambiente religioso extremamente restritivo

    exemplar para iek: aos 16 anos, esse jovem liberado da cultura em

    que foi educado, recebe permisso e at encorajado a sair, conhecer

    e experimentar todos os costumes do mundo ingls, numa atividade de

    rumspringa, esse jovem deve saltar de seu lugar de conforto e conhecer

    a fundo a devassido; a partir da poder escolher que vida ter.

    Tambm as mulheres muulmanas que usam o vu por escolha prpria, no

    por exigncia de suas famlias; o fazendeiro chins que come comida

    chinesa porque em sua aldeia assim desde tempos imemoriais e o

    cidado da megalpole ocidental que decide comer num restaurantechins so casos exemplares das dificuldades inerentes livre

    escolha. A crtica de iek a de que as condies em que

    inicialmente se encontram essas pessoas no tornam essa escolha livre.

    Essa escolha ser sempre uma meta-escolha, uma escolha da

    modalidade da prpria escolha (p. 434). O sujeitoda livre-escolha

    s pode surgir como resultado de um processo extremamente violento de

    ser arrancado de seu mundo vivido especfico, de ter suas razes

    cortadas (p. 434). Em O problema da hegemonia, Simon Critchley

    destaca que a constante complexidade das posies de classe nos

    aprisiona; digamos que por mal, estamos presos ao Estado, assim como

    estamos presos ao capitalismo. A questo agora colocada saber qual

    deve ser nossa estratgia poltica em relao ao Estado.

    Especificamente, para iek a verdadeira democracia encenada, ou

    simulada, a principal ambiguidade dessa rumspringa de se lanar ao

    mundo sem limites - est num estranho nonsequitur: se o Estado est

    aqui para ficar, se impossvel abolir o Estado (e o capitalismo),

    por que agir distncia do Estado? (p. 435) a segunda ambigidade

    est em dizer que o Estado est a para ficar, e acreditar nessa

    assero manter uma afirmativa especfica sobre a situao poltico-

    histrica atual ou uma limitao transcendental condicionada pela

    finitude humana?(p. 436). Para Critchley a principal fora motriz deinterveno poltica deve ser a vivncia da injustia, da

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    inaceitabilidade tica desse estado de coisas, porque uma revolta que

    no representa nenhuma ameaa efetiva j endossa com antecedncia a

    lgica da provocao histrica, bombardeando o poder com exigncias

    impossveis, exigncias que no visam ser atendidas (p. 436).

    iek considera essa ao prtica local e modesta, e sugere a tese

    provocadora de Badiou: melhor no fazer nada do que contribuir paraa inveno de maneiras formais de tornar visvel o que o Imprio j

    reconhece como existente (p. 437).

    A ameaa hoje no a passividade, mas a pseudoatividade, a nsia

    de ser ativo, de participar, de mascarar a Nulidade do que acontece

    []; todos intervm o tempo todo, fazem alguma coisa [mas de fato

    tudo se mantm exatamente como sempre foi, estamos em uma rumspringa

    enganadora, que nos d a sensao de livre-escolha, mas ficamos apenas

    com a sensao], a verdadeira dificuldade dar um passo atrs e se

    afastar disso tudo (p. 437). O impasse da resistncia nos leva de

    volta questo da paralaxe: s se precisa de uma leve mudana de

    ponto de vista e toda a atividade do resistir, de bombardear os que

    esto no poder com exigncias subversivas impossveis (ecolgicas,

    feministas, antirracistas, antiglobalistas), parece um processo

    interno de alimentar a mquina do poder, de lhe dar material para

    continuar funcionando. A lgica dessa mudana deveria ser

    universalizada: a ciso entre a Lei pblica e seu complemento

    superegico obsceno nos faz confrontar o prprio mago da paralaxe

    poltico-ideolgica: a Lei pblica e seu complemento superegico no

    so duas partes diferentes do edifcio legal, SO o mesmo e nico

    contedo. (p. 437)

    A representao poltica outro fator contribuinte para a manuteno

    das ideologias, principalmente por nunca espelhar a estrutura social.

    O nico denominador comum das elites polticas representantes o que

    iek chama de excesso excrementcio (p. 439): as no classes, as

    populaes rejeitadas em todas as classes, que acabam por formar a

    classe dos abjetos sociais, uma classe de gente que no pode se

    representar e que, portanto, s pode ser representada; s pode

    participar de qualquer poder se entreg-lo a um indivduo outro,

    necessariamente superior o que iek afirma como paradoxo baseado

    no excesso constitutivo da representao para alm do representado

    (p. 440), por essas representaes superiores que se expressa o

    pensamento do Poder, as leis na verdade no me restringem, posso

    fazer com vocs o que eu quiser, posso trat-los como culpados se

    assim decidir, posso destru-los se assim quiser (p. 440).

    Os direitos humanos versus os direitos do inumano um subttulo

    dedicado s catstrofes do sculo XX, capazes de despertar expresses

    de violncia sem precedentes; o principal argumento contra as

    intervenes polticas que visam a transformao global so essas

    catstrofes (p. 440). A brutalidade irracional da violncia superada, reduzida a uma mancha que contribui para a harmonia geral

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    do sistema (p. 441). Segundo as idias de Hannah Arendt, o Poder

    sempre tem de se basear numa mancha obscena de violncia (p. 442). H

    o exemplo de Sarajevo, a cosmtica interveno humanitria sobre um

    conflito poltico-militar (p. 443). O exemplo do Iraque, a ideologia

    do intervencionismo militar que serve a objetivos poltico-econmicos

    especficos (p. 443). Esto em jogo os Direitos humanos universais(pr-polticos) contra os direitos polticos especficos do cidado.

    iek cita Hannah Arendt, sobre o conceito de direitos humanos que

    desmoronou quando houve o primeiro confronto com seres que haviam

    perdido todas as qualidades e relaes especficas, exceto a de serem

    humanos (p. 444). iek cita Agamben, e o ser humano reduzido vida

    nua (p. 444). Na dialtica paradoxal hegeliana, exatamente quando o

    ser humano privado de sua identidade sociopoltica particular, da

    base de sua cidadania, que num nico e mesmo movimento esse ser humano

    no mais reconhecido nem tratado como ser humano, estar reduzido

    inumanidade (p. 444).iek cita

    Foucault,s h sexo pela mirade

    das prticas sexualizadas; e apresenta a proposta fundamental sobre

    os direitos humanos: enquanto os direitos humanos no puderem ser

    postulados como um alm essencialista e anistrico em contraste com a

    esfera contingente das lutas polticas, como direitos naturais dos

    homens universais, isentos de histria, tambm no devem ser

    descartados como fetiche reificado resultante de processos histricos

    do cidado (p. 445). O paradoxo bastante preciso e simtrico a este,

    no mesmo momento em que tentamos conceberos direitos polticos dos

    cidados sem fazer referncia aos direitos humanos universais

    metapolticos, perdemos a prpria poltica: reduzimos a poltica a

    um jogo ps-poltico de negociao de interesses especficos.

    Os direitos do inumano so resultantes de uma inverso, sugerida por

    Rancire, doamos os direitos inteis para os pobres, junto com roupas

    e remdios, assim os transformamos em direitos humanitrios, os

    direitos de seres humanos nus, sujeitos represso inumana e a

    condies de vida inumana, so os direitos das vtimas da negao

    absoluta de direitos. Esses no podem praticar os direitos humanos,

    ento outro algum herda esse posto e assume o papel de interferncia

    humanitria, em suposto benefcio das populaes vitimizadas. Um

    exemplo Gandhi, pela mudana emancipatria, no espere, gere amudana, jogue-se nela, seja a mudana, assuma o risco de encen-la

    diretamente em voc (p. 447). A poltica de Bartleby, para os

    simbolicamente mortos e biologicamente vivos, [] os excludos da

    ordem sociossimblica, s resta a agressividade passiva, a sabotagem

    passiva; o gesto poltico radical adequado [] verdadeiramente crtico

    [porque agressivo, violento] recuar para a passividade, recusar-se a

    participar o preferiria no de Bartleby o primeiro passo

    necessrio que limpa o terreno, inaugura o lugar para a atividade

    verdadeira, para o ato que realmente mudar as coordenadas dessa

    constelaoideolgica (p. 448), que mudar as relaes com a famlia

    mquina ideolgica monstruosa que nos cega para os crimes mais

    horrendos que cometemos (p. 452), que mudar a ordem simblica, no

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    domnio da autoridade-Lei simblica pura. O monstro inumano Odradek,

    de Kafka, nos apresenta a questo, pode algum parecer imvel, intil,

    um traste e em sua passividade, ainda se configurar como um sujeito

    incomdo?6

    Somos obrigados a fazer o que fazemos, de modo que a escolha hoje entre duas opes foradas (p. 455). A primeira parte de THE PERVERT'S

    GUIDE TO CINEMAnos apresenta Morpheus propondo a Neo, ainda na Matrix,

    uma escolha entre os mundos possveis h duas opes a plula azul

    restaura Neo vida normal, sem os acontecimentos e percepes

    radicais que o puseram em contato com as rachaduras do sistema que

    comanda a todos, Neo voltaria a acreditar no que quisesse acreditar; a

    plula vermelha o manter no Pas das Maravilhase [Morpheus vai lhe]

    mostrar quo profunda a Toca do Coelho. Neo hesita, e quem responde

    a Morpheus iek: mas a escolha entre a plula vermelha e a azul

    no realmente uma escolha entre a iluso e a realidade, claro que a

    Matrix uma mquina de fices, mas h nela fices estruturantes de

    nossa realidade. Se retirarmos da realidade as fices simblicas que

    a regulam, perderemos a prpria realidade. Quero uma terceira plula!

    Ento, qual seria a terceira plula? No ser um plula transcendental

    que permita uma fastexperincia pseudo religiosa, tambm no ser

    6No subcaptulo, a ignorncia da galinha, iek destaca um trecho de The second coming, poema de WilliamButler Yeats: A mar nublada de sangue se soltou e por toda parte/ a cerimnia da inocncia se afoga;/ falta aosmelhores toda convico, enquanto os piores/ esto cheios de apaixonada intensidade (p. 452). A 1 lioapreendida est na recusa em aceitar o Real em toda a sua idiotia, de desmenti-lo e buscar o Outro Mundo por trsdele, em aceitar que a constelao ideolgica atual determinada pela oposio entre o populismo fundamentalista

    neoconservador (de apaixonada intensidade) e o multiculturalismo liberal (falta inocncia simblica), ambosparasitando-se entre si. Entretanto, se derrubamos a mscara da luta ideolgica atual, os adversrios oficiaisdescobrem sua solidariedade mais profunda, e comeam a compartilhar temores, no h mais conservadores e

    progressistas, totalitrios e democratas, legalistas e populistas, fundamentalistas e liberais [] s haver ns e eles.A segunda lio de Yeats trata da condio das fices simblicas Por que literatura?

    TURNING and turning in the widening gyreThe falcon cannot hear the falconer;Things fall apart; the centre cannot hold;Mere anarchy is loosed upon the world,The blood-dimmed tide is loosed, and everywhereThe ceremony of innocence is drowned;The best lack all conviction, while the worst

    Are full of passionate intensity.

    Surely some revelation is at hand;Surely the Second Coming is at hand.The Second Coming! Hardly are those words outWhen a vast image out of Spiritus MundiTroubles my sight: somewhere in sands of the desertA shape with lion body and the head of a man,A gaze blank and pitiless as the sun,Is moving its slow thighs, while all about itReel shadows of the indignant desert birds.The darkness drops again; but now I knowThat twenty centuries of stony sleep

    Were vexed to nightmare by a rocking cradle,And what rough beast, its hour come round at last,Slouches towards Bethlehem to be born?

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    uma que me permita perceber a realidade por trs da iluso, mas a

    realidade na prpria iluso. Se quisermos definir as coordenadas da

    realidade, precisamos ficcionalizara realidade

    POST SCRIPTUM,POR QUE LITERATURA?(P.456)

    H alguma sugesto de que a fico [cinema, teatro e literatura assimcomo fatos histricos, anedotas e boatos todos entendidos como

    realidade ficcional] seja a grande matria de retrato e reflexo sobre

    as coisas do mundo, para alm da realidade, o real existente

    ficcional e a matria psicanalizanda de Zizek. Na pagina 265,

    iek j nos trazia uma analogia de Rancire entre a fico e o

    documentrio, que aqui retorna: A verdade tem a estrutura da fico

    (p. 456). A imagem e a histria de desenhos animados contadas pela

    fico, se fossem documentais seriam descartadas ou censuradas por

    serem ridculas ou excessivamente pessimistas (p. 456) a noo aceita

    que fugimos para a fico quando o confronto direto com a realidade traumtico demais para ser suportado (p. 456). Entretanto,

    conseguimos assistir documentrios sobre guerras e desastres; o

    destino das representaes artsticas do [horror] corroboram uma

    posio contrria [] por mais horrveis que sejam, assim como

    assistimos Noite e bruma (1955), de Alan Resnais. iek defende aqui

    uma correo a Adorno: no a poesia, mas sim a prosa que

    impossvel depois de Auschwitz o realismo documental, portanto,

    para os que no agentam a fico que no suportam o excesso de

    fantasia que atua em toda fico narrativa A prosa realista que

    fracassa; j a evocao potica da atmosfera insuportvel num campo de

    concentrao acerta muito melhor o alvo (p. 457). A declarao de

    Adorno transvalorada na paralaxe, a impossibilidade da poesia na

    verdade capacitante: a poesia, por definio, sempre sobre algo

    que no pode ser abordado diretamente, s por aluses (p. 457). iek

    d um passo adiante e cita [como crtica] o velho ditado de que a

    msica entra quando as palavras saem []. nesse momento que

    precisamos voltar ao sorriso de Bartleby, de Melville; lembrar a

    escolha de Kate, de Henry James; lembrar o estranho Odradek, de Kafka,

    livre do ciclo de geraes, imortal, fora da finitude, fora do tempo,

    a jouissance encarnada (p. 158). Livre da ideologia, livre da f,

    alguma parte da fico, notadamente a ironia, seria hoje a principalforma de crtica da ideologia a ironia no sentido mozartiano estrito

    de tomar as afirmativas mais a srio do que os prprios sujeitos que

    as proferem! (p. 462)Na definio de Lacan, sobre a comunicao bem

    sucedida, recebo do outro minha prpria mensagem em sua forma

    invertida, isto , verdadeira (p. 475). Acheronta movebo (p. 477), o

    verdadeiro ato intervir nesse domnio subterrneo obsceno,

    transformando-o (p. 478). O preferiria no de Bartleby deve ser

    entendido de modo literal, ele diz preferiria no, no o mesmo que

    dizer prefiro no(no me importo) e voltamos distino de Kant

    entre o juzo negativo e o juzo infinito. Ao recusar a ordem domestre-ideologia, Bartleby no nega o predicador, antes disso, afirma

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    um no predicado []; assim que passamos da poltica de resistncia

    ou de protesto [] a uma poltica que cria um novo espao fora da

    proposio hegemnica e de sua negao parasitria. [] Esse o gesto

    de subtrao mais puro, a reduo de todas as diferenas qualitativas

    a uma diferena mnima puramente formal (p. 497-498). A mudana

    paralctica que est no gesto de Bartleby o que resta do complementoda Lei quando seu lugar esvaziado de todo o contedo superegico

    obsceno; da prpria diferena ontolgica, entre o fsico e o

    metafsico, entre o emprico e o transcendental; uma reduo

    diferena mnima, entre algo e nada, no algo mais elevado. A recusa

    de Bartleby reduz a diferena entre a realidade material e outra

    realidade mais elevada diferena (evidencia a lacuna imanente)

    entre essa realidade e seu prprio vazio. Bartleby provoca o mesmo

    movimento redutor na paralaxe da economia poltica, a lacuna entre a

    realidade da vida social material cotidiana e o Real da dana

    especulativa do Capital, seu movimento autopropelido que parece

    desconectado da realidade ordinria (p. 499) [] e do budismo

    ocidental, Bartleby poderia dizer que preferiria no doar para

    instituies de caridade nem ajudar um rfo negro na frica,

    preferiria no me envolver na luta para impedir a extrao de petrleo

    num pntano selvagem, no enviar livros para imbuir as mulheres no

    Afeganisto de nosso esprito liberal e feminista (p. 500). O

    preferiria node Bartleby um significante transformado em objeto,

    um significante reduzido a uma mancha inerte que representa o colapso

    da ordem simblica (p. 501). Em O artista da fome, Kafka nos

    apresenta um homem que no se alimentar, ao final do conto sabemos,

    porque nada que lhe era apresentado poderia lhe servir de alimento.

    BARTLEBY, O ESCRIVO conto de Herman Melville (1819-1891), do livro

    The Piazza Tales, publicado em 1856. Um advogado j idoso comanda um

    confortvel negcio de tabelionato, lida com hipotecas, aes, ttulos

    de renda, escrituras e com o ntimo contato com um grupo de homens

    interessantes e um tanto singulares, os amanuenses, seus empregados.

    O ingls baixo e gordo, Turkey (peru), durante a manh um

    subordinado de rosto rosado, calmo, corts, afvel, diligente e

    eficiente, mas sofre de indigesto crnica e, tarde, torna-se como

    uma lareira de carves em brasa, obsessivo, frentico, estranho,intenso, irrequieto, descuidado e, s vezes, barulhento, irascvel

    Outro escrivo Nippers (torqus), de manh plido, barbudo,

    aparentemente vtima de duas foras malignas, ambio e indigesto,

    era impaciente, mal-humorado, nervoso, jamais se entendia com sua mesa

    e tinha uma inclinao a receber pessoas de aparncia suspeita e

    trajes andrajosos, a quem chamava clientes; mas, tarde, recuperado,

    tornava-se um subordinado distinto, elegante o que at se refletia em

    crdito para o escritrio. Ginger-nut, o mensageiro, era um menino de

    doze anos, estudante das leis, garoto de recados, faxineiro e

    varredor, fornecia-lhes bolos de gengibre e mas. O escritrio

    sobrevive em relativo equilbrio. Um aumento na carga de trabalho

    fora o velho advogado a contratar mais um funcionrio, apresenta-se

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Office_boyhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Office_boy
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    um jovem imvel [], palidamente delicado, lamentavelmente

    respeitvel, irremediavelmente desamparado, era Bartleby. O velho se

    satisfaz com ter entre os copistas um homem de aparncia to sbria e

    serena, acredita que poderia exercer uma influncia benfica sobre o

    temperamento arrebatado de Turkey e o fogoso de Nippers. A princpio

    Bartleby escrevia numa quantidade espantosa, como se estivesse famintode coisas para copiar, parecia deleitar-se com os documentos,

    trabalhava dia e noite, luz do sol e luz de vela; mas no era

    jovial, escrevia em silncio, apaticamente, mecanicamente [] At

    quando foi solicitado a conferir junto com o velho advogado um

    documento. Bartleby, respondeu, sem deixar sua privacidade, em voz

    singularmente suave e firme: Preferiria no faz-lo. Desde essa

    resposta, sem qualquer vestgio de agitao, sem inquietao, ira,

    impacincia ou impertinncia em sua atitude sem que houvesse nele

    qualquer reao normalmente humana Bartleby entrou em um processo de

    isolamento, cada vez mais, o velho advogado enxergava em Bartleby algo

    que no apenas o desarmava, mas de uma maneira maravilhosa o comovia e

    desconcertava. Est decidido a no atender ao meu pedido um pedido

    formulado de acordo com o costume e o bom senso? Bartleby deu a

    entender que sim, sua deciso era irreversvel. No raro acontecer

    que um homem a quem se contradiz, de maneira inteiramente sem

    precedentes e totalmente inslita e irracional, comece abruptamente a

    duvidar de suas convices mais elementares. Passa a pressupor

    vagamente, por mais estranho que possa parecer, que toda justia e

    razo esto do outro lado. [] Nada irrita tanto uma pessoa ansiosa

    quanto uma resistncia passiva. Se o indivduo a quem se resiste no

    inumano e aquele que resiste perfeitamente inofensivo em suapassividade, ento o primeiro, em seus momentos de melhor nimo, vai

    se empenhar caridosamente para que sua imaginao interprete o que

    impossvel esclarecer por seu julgamento. [E se coloca como vtima de

    Bartleby] Como era possvel que uma criatura humana, com as falhas

    comuns de nossa natureza, se abstivesse de protestar amargamente

    contra tanta perversidade contra tamanha irracionalidade? [] Pela

    primeira vez na vida fui dominado por um sentimento de melancolia

    opressivo e angustiante (p. 42). Se esta pequena narrativa o

    interessou, a ponto de despertar sua curiosidade sobre quem foi

    Bartleby [] recomendo a leitura do livrinho.

    Slavoj iek, nessa viso em paralaxe, mostra a ns leitores alguma

    coisa que vai um pouco alm da paralaxe das questes filosficas,

    cognitivas e polticas. Para alm do real que nos parece parecer,

    iek no s entende a potncia da literatura em tratar esse real,

    como tambm, sem temores nos apresenta seus pensamentos e seus

    fundamentos! Principalmente, mesmo discordante de um ou outro caminho

    intelectual, iek enfatiza neste ou naquele trao conceitual uma

    possibilidade de compreenso que ultrapassa correntes e vertentes

    acadmicas. Sua viso em paralaxe, certamente me foi uma abertura.

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    Interldio 2: Objeto a em vnculos sociais, ou os impasses do anti-antissemitismo (p. 335)

    Os vnculos sociais neste outro lado da modernidade em que passamos da

    dinmica capitalista para o poder do Estado moderno; de como estamos

    longe do totalitarismo, e aproximados a uma identificao constitutivada democracia so primeiro demonstrados por iek; logo vem,

    entretanto, a crtica: de como o potencial autntico da democracia

    vem perdendo terreno, hoje, para a ascenso de um novo capitalismo

    autoritrio.7 Na viso em paralaxe, a propsito do ensasta Jean

    Claude Milner,8iek destaca como essa nossa democracia se baseia

    num curto-circuito entre a maioria e o todo: em que o vencedor leva

    tudo, tem todo o poder, mesmo que sua maioria seja de algumas centenas

    de votos entre milhes (p. 335). [E d um exemplo de Stlin, que na

    Histria dos PCUS bolcheviques, descreve um boletim de votao, em

    que, com uma grande maioria, os delegados aprovaram por unanimidade a

    resoluo proposta pelo Comit Central]. Nesse contexto, questo da

    mudana paralctica seria: onde foi parar a minoria? (p.335)

    Esse estatuto paradoxal da minoria como algo que conta como nada nos

    permite discernir em que sentido exato o demos [povo], ao qual se

    refere, a democracia oscila entre o todo e o no todo [de modo que]

    uma ambiguidade estrutural se inscreve na prpria noo de demos, que

    designa tanto o no todo de um conjunto infinito (todos esto

    includos, no h exceo, s uma multido inconsciente) como [que

    designa] o uno do povo que tem de ser delimitado em relao a seus

    inimigos. A predominncia de um ou de outro aspecto define a oposioentre as democracias norte-americana [em que a maioria silenciosa,

    quando fala uma espcie de minoria, que conta como nada] e europia

    [a Europa unificada] constituda sobre o apagamento progressivo de

    legitimaes e tradies histricas, [no que seria um] apagamento da

    histria e da memria histrica (p. 336).

    Para iek, o revisionismo histrico do Holocausto um dos sintomas

    desse apagamento em que todos os limites so potencialmente apagados

    em nome do sofrimento abstrato e da vitimizao. [Ocorre uma

    equalizao moral das vtimas: alemes, ingleses e russos sofreram

    igualmente sob o bombardeio inimigo; assim como ficam equilibrados o

    sofrimento dos judeus, vtimas do genocdio, e dos nazistas, mortos

    pelos russos.] No imaginrio ideolgico europeu a noo de judeu o

    que impede a paz e a unificao, que tem de ser aniquilado para a

    Europa se unir; por isso os judeus, para esse iderio obsceno europeu,

    so sempre um problema que exige uma soluo. O antissemitismo no

    mudou o foco, antes mirava o grupo tnico judeu que no final do sculo

    XIX era visto como cosmopolita, como um intruso corrosivo que

    7Esmiuado no artigo Democracia corrompida, Revista Cult,n 137, Dossi, em 30 de maro de 2010.

    8 Linguiste, philosophe et essayiste franais, d'origine juive de Lituanie et d'une mre alsacienne de traditionprotestante. Il est clibataire, sans enfant.

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    obstculo para a paz. Hoje, so os muulmanos, e no os judeus, que

    so percebidos como ameaa globalizao; lugar-comum na imprensa

    ressaltar que todas as grandes religies do mundo encontraram um meio

    de conviver com o capitalismo, menos o islamismo; [so estes

    indesejveis e primordiais objetos a] os obstculos atuais

    liberdade.9

    A psicanlise lacaniana identifica o objeto acomo o desejo alimentar-

    afetivo materno afastado de ns pela Lei paterna; esse objeto ausente

    participa da formao do sujeito e, na aplicao da psicanlise

    sociedade, iek defende que Longe de serem opostos que se excluem,

    os dois esto ligados por um vnculo secreto, uma ambiguidade

    necessria em defesa da identidade multicultural e multirracial, ainda

    que seja pela liquefao de todas as identidades. A psicanlise,

    nesse contexto, trata o sujeito como nico, que no pode ser reduzido

    a um diagnstico comum, mas socialmente o psicanalista desejado como

    substituto de um antepassado, assegurador da transmisso de valores e

    da continuidade entre as geraes (p. 344). Para iek, tudo indica

    que a sade mental uma aposta poltica no futuro. A

    destradicionalizao, a perda da orientao, a desordem das

    identificaes, a desumanizao do desejo, a violncia na comunidade,

    o suicdio entre os jovens, as passage lact dos mentalmente

    enfermos e mal monitorados por causa do estado de penria que a

    psiquiatria tem de suportar [so restaurados pela] psicanlise [que

    cumprindo esse papel] reconstitutiva dos laos sociais (p. 345),

    Nesse cenrio de misria intelectual, o psicanalista que oferece um

    papel de acolchoado compassivo o que mais lucra com a desordemdas identificaes [] quanto mais grave a crise, mais negcios eles

    tm! (p. 345). A crticade iek certeira, h situaes em que o

    dever dos analistas no participar de debates, na medida em que essa

    participao, ainda que se pretenda crtica, significa que foram

    aceitas as coordenadas bsicas da maneira como a ideologia dominante

    formula o problema (p. 346) E nesse sentido de reformular o

    problema que iek fala a propsito de Michael Hardt10e Antonio Negri11

    cujos trabalhos Imprio e Multido revigoram a reflexo terica a

    respeito do movimento global real de resistncia anticapitalista, cujo

    denominador comum seria a democracia (p. 346). Segundo Hardt e Negri,a nica resposta s questes incmodas de nosso tempo, [] a nica

    maneira de sair de nosso estado de conflito e de guerra permanentes,

    seria pelo surgimento da multido no corao do capitalismo [que]

    torna a democracia possvel pela primeira vez (p. 347). Entretanto,

    9Um dos discursos mais comuns sobre os acontecimentos da Revoluo rabe declama a impossibilidade de umareal democracia rabe, porque, ideologicamente, os muulmanos j esto identificados como fascistas islmicos(IEK, Slavoj.Por que temer o esprito revolucionrio rabe? Traduo de Idelber Avelar. In Carta Capital, de3 de fevereiro de 2011. So Paulo. Disponvel em http://www.cartacapital.com.br/internacional/por-que-temer-o-espirito-revolucionario-arabe-por-slavoj-iek,acessado em 25 de maro de 2011.)10

    Washington, 1960 um terico literrio e filsofo poltico estadunidense.11Pdua, 1 de agosto de 1933 um filsofo poltico marxista italiano.

    http://www.cartacapital.com.br/internacional/por-que-temer-o-espirito-revolucionario-arabe-por-slavoj-zizekhttp://www.cartacapital.com.br/internacional/por-que-temer-o-espirito-revolucionario-arabe-por-slavoj-zizekhttp://www.cartacapital.com.br/internacional/por-que-temer-o-espirito-revolucionario-arabe-por-slavoj-zizekhttp://www.cartacapital.com.br/internacional/por-que-temer-o-espirito-revolucionario-arabe-por-slavoj-zizekhttp://www.cartacapital.com.br/internacional/por-que-temer-o-espirito-revolucionario-arabe-por-slavoj-zizekhttp://www.cartacapital.com.br/internacional/por-que-temer-o-espirito-revolucionario-arabe-por-slavoj-zizek
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    partindo do trabalho industrial mecnico, automatizado e organizado

    de forma centralizada e hierrquica em Marx, Hardt e Negri consideram

    possvel uma inverso revolucionria pela ascenso do trabalho

    imaterial, [uma extenso] entre os dois plos do trabalho (simblico)

    intelectual (criador de idias, cdigos, textos, programas, imagens,

    escritores) e do trabalho afetivo (mdicos, babs, aeromoas). ParaHardt e Negri, a multido produz cooperao, comunicao, formas de

    vida e relaes sociais [] em um domnio vasto e novo: o comum,

    constitudo de conhecimento, formas de cooperao e de comunicao

    compartilhados. No mais compreendidos como propriedade privada (p.

    347), os produtos do trabalho imaterial estabelecem e catalizam as

    novas relaes sociais, so diretamente biopoltica, so produo de

    vida social (p. 348). O caminho abre-se para a democracia absoluta,

    para os produtores regulamentarem diretamente suas relaes sociais,

    sem passarem sequer pelo desvio da representao democrtica (p. 348)

    A crtica de iek a Hardt e Negri, pauta-se sobre o recuo filosofia

    exatamente quando pensvamos encontrar uma determinao de ruptura,

    uma descrio do salto qualitativo, da passagem das multides que

    resistem ao poder soberano para as que se governam diretamente (p.

    350). Esse recuo acontece na trade composta ainda por Hardt e Negri

    que percebem a resistncia ao poder como se preparasse o terreno para

    um salto milagroso para a democracia absoluta , em Giorgio Agamben12

    focado na redeno libertadora, sustentado pela esperana messinica

    utpica de rompimento desse crculo vicioso entre o poder legal e a

    violncia divina e Ernesto Laclau13 sobre a nica maneira de

    elaborar e praticar solues polticas particulares e suportveis, queseria admitir o impasse global a priori, [] no h universalidade

    verdadeira direta, toda universalidade est sempre-j presa na luta

    hegemnica; uma forma vazia preenchida por algum contedo particular

    que funciona como substituto de si mesmo (p. 352). iek retorna

    intuio de Marx em que o maior limite do capitalismo (da

    produtividade capitalista autopropelida) o prprio Capital [] que a

    dana louca da espiral incondicional de produtividade no passa de

    fuga desesperada para escapar a sua prpria contradio inerente e

    debilitante. E iek destaca um erro, o que Marx deixou de lado foi

    que esse antagonismo ao mesmo tempo um condio de possibilidade(p. 353). O obstculo ausncia do objeto, objeto a cuja existncia

    garante a no realizao do impulso totalmente livre da produtividade

    finalmente liberta de seu impedimento. Se perdemos o objeto a, da

    perderemos exatamente essa produtividade que parecia gerada e ao mesmo

    12Roma, 1942 filsofo italiano, autor de vrias obras, que percorrem temas que vo da esttica poltica. Seus

    trabalhos mais conhecidos incluem sua investigao sobre os conceitos de estado de exceo e homo sacer.13Buenos Aires, 1935; an Argentine political theorist often described as post-Marxist.

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    tempo frustrada pelo capitalismo; se retirarmos o obstculo, o prprio

    potencial frustrado pelo obstculo se dissipa (p. 353).14

    iek ainda destaca lugares factuais onde se mantm um potencial

    revolucionrio: o das redes sem escala em que ns e vnculos so

    igualmente importantes e se formam [como as redes sociais] de modoespontneo. A competio permanece [uns tm mais ns e vnculos que

    outros], mas a distribuio geral contnua e os ns superiores mudam

    o tempo todo. A Microsoft exemplo de ultrapassagem de um patamar

    crucial: quando acontece de um n agarrar todos os vnculos, no

    deixar nada para os outros. As grandes perguntas estruturais so: o

    que define esse patamar?, que redes tendem a ultrapassar o patamar

    alm do qual a competio acaba e o vencedor leva tudo? (p. 354).

    Exemplos de ns potenciais, candidatos a n cruciais: so os

    palestinos (objetos a dos judeus, que por sua vez so objetos a dos

    nazistas e europeus), dos prisioneiros de Guantnamo (objetos a dos

    norte-americanos aterrorizados) e um lugar privilegiado, os favelados

    do Terceiro Mundo das capitais latino-americanas, da Cidade do Mxico,

    de Lagos (na Nigria), da ndia, da China, das Filipinas, da Indonsia

    (todos objetos ada globalizao). iek supe que as favelas no so

    fenmeno marginal j que a populao urbana ser cada vez maior que

    a rural, e que a maioria da populao urbana de favelados ;

    estamos testemunhando o crescimento rpido de uma populao fora do

    controle do estado [!], que vive em condies meio fora da lei, com

    necessidade urgente de formas mnimas de autoorganizao [] que se

    incorpora de vrias formas economia global e [] que so o

    verdadeiro sintoma de lemas como o desenvolvimento, amodernizao e o mercadomundial; as favelas no so um acidente

    infeliz, mas o produto necessrio da lgica interna do capitalismo

    global. [As favelas] so os lugares factuais candidatos a cruciais,

    [os favelados] so os que no fazem parte de parte alguma, os

    elementos excedentes na sociedade (p. 355). O favelado, muito mais

    que o refugiado, o homo sacer, o morto-vivo gerado de modo

    sistmico no capitalismo global. [] Slavoj iek acredita que

    deveramos procurar os sinais das novas formas de conscincia social

    que surgiro dos coletivos das favelas: elas sero as sementes do

    futuro (p. 357). Discordo de iek, e lembro Machado de Assis, emMemrias pstumas de Brs Cubas, que conta a histria do escravo

    Prudncio, que antes era cavalinho do menino Brs Cubas e que,

    depois de comprada a alforria, compra tambm um escravo que lhe sirva

    de cavalinho.

    14As identidades especulativas (p. 479-489) geram, como primeira conseqncia, as teorias da conspirao []hoje, a principal ideologia a rejeio crtico-ideolgica e autocomplacente das conspiraes como meras fantasias(p. 489). A segunda conseqncia gerada a tolerncia multicultural, o esprito e a prtica; nas acusaes [] defundamentalismo, o Mal costuma residir no prprio olhar que percebe esse Mal (p. 490).