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setembro de 2003 30 Se fosse preparada uma linha do tempo com os marcos da saúde pública no Brasil, certamente o nome do sanitarista Sergio Arouca delimitaria duas épocas distintas: aA (antes de Arouca) e dA (depois de Arouca). Nada mais certo, pois Arouca foi um dos principais articuladores do movimento da reforma sanitária brasileira. Carismático e ousado, aglutinou em torno de si um grupo de pessoas que trouxe para o centro da discussão da vida pública brasileira a necessidade de construção de um siste- ma que garantisse a todos amplo acesso à saúde. Foi essa a meta que perseguiu como pesquisador, professor e presidente da Fundação Oswaldo Cruz, como parlamen- tar, ou ocupando cargos nas três esferas do Executivo. Como bem disse uma mensagem enviada à Fiocruz por ocasião de sua morte, “a cadeira de Arouca na Academia dos Aman- tes do Povo do Brasil, lamentemos, dificilmente será ocu- pada por alguém à altura dele”. Viva Arouca! M E M Ó R I A Se é que Arouca morre... “Sou mais identificado como sanitarista da Fiocruz que como militante político ou deputado, e é como eu me sinto bem”

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Page 1: M EMÓRIA Se é que Arouca morre - Agência Fiocruz de ... · para se fazer um perfil de Sergio Arouca. A idéia de iniciar com ele a seção “Perfis de Manguinhos” sur-giu em

setembro de 200330

Se fosse preparada uma linha do tempo com os marcos dasaúde pública no Brasil, certamente o nome do sanitaristaSergio Arouca delimitaria duas épocas distintas: aA (antesde Arouca) e dA (depois de Arouca). Nada mais certo, poisArouca foi um dos principais articuladores do movimentoda reforma sanitária brasileira.

Carismático e ousado, aglutinou em torno de si um grupode pessoas que trouxe para o centro da discussão da vidapública brasileira a necessidade de construção de um siste-ma que garantisse a todos amplo acesso à saúde.

Foi essa a meta que perseguiu como pesquisador, professore presidente da Fundação Oswaldo Cruz, como parlamen-tar, ou ocupando cargos nas três esferas do Executivo. Comobem disse uma mensagem enviada à Fiocruz por ocasiãode sua morte, “a cadeira de Arouca na Academia dos Aman-tes do Povo do Brasil, lamentemos, dificilmente será ocu-pada por alguém à altura dele”.

Viva Arouca!

M E M Ó R I A

Se é queAroucamorre...

“Sou mais

identificado

como sanitarista

da Fiocruz que

como militante

político ou

deputado, e é

como eu me

sinto bem”

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Momento histórico daFiocruz: Arouca tomaposse como presidenteno dia 3 de maio de 1985Foto: arquivo CCS/Fiocruz

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Umareferênciamundial

“Sempre quis

aplicar na

medicina meus

pensamentos

políticos”

Com Arouca, a Fiocruz entra na rota de visitas de personalidadesestrangeiras, como o ex-presidente de Portugal Mário Soares

Foto: arquivo CCS/Fiocruz

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diretas para a sua diretoria. Moderni-zou a administração, estabelecendomecanismos de gestão colegiada e par-ticipativa e nomeando diretores elei-tos pelas unidades. Criou o ConselhoDeliberativo da Fiocruz como instân-cia máxima de poder.

Em sua gestão, recuperou o pres-tígio da instituição no campo da pes-quisa científica e do desenvolvimentotecnológico, que também se notabili-zou por ter sido a instituição de pontana formulação e discussão da políticade saúde. Arouca presidiu a 8ª Confe-rência Nacional de Saúde, em 1986, aprimeira que conclamou o usuário adebater o tema. Nesse período foramrealizadas pré-conferências em todosos estados. Os resultados da Conferên-cia subsidiaram o texto da saúde naConstituição Federal, em 1988.

Como presidente da Fiocruz re-integrou os dez cientistas cassados peladitadura militar, no episódio conheci-do como “Massacre de Manguinhos”.

Foi também, em 1987, secretá-rio de Estado da Saúde do Rio de Ja-neiro. Foi escolhido por unanimidadepela plenária de entidades de saúdepara apresentar a defesa da emendapopular à Assembléia Nacional Consti-tuinte. Ocupou a Presidência da Fio-cruz até abril de 1988, quando exone-

Arouca nasceu em RibeirãoPreto e formou-se médi-co pela Faculdade deMedicina da Universi-dade de São Paulo

(USP) em 1966. Em sua vida acadê-mica, Arouca buscou vincular-se sem-pre com as propostas de democrati-zação da sociedade brasileira na defesade que todo cidadão tenha direito àsaúde. Saúde não só como assistênciamédica no momento adequado e coma qualidade necessária, mas tambémcomo uma série de condições paraque a população não adoeça - refor-ma agrária, educação, lazer, liberdade,condições de habitação dignas, trans-porte etc.

Como consultor da OrganizaçãoPan-Americana de Saúde (Opas) atuouem vários países: México, Colômbia,Honduras, Costa Rica, Peru e Cuba. Pro-fessor concursado da Escola Nacionalde Saúde Pública (Ensp) da Fiocruz,lecionou alguns anos até ser convida-do a trabalhar com o governo sandinistada Nicarágua.

Nesse período, Arouca iniciouseus laços com o sistema de saúdecubano, assessorando-o tanto na forma-ção de recursos humanos quanto nodesenvolvimento de programas assis-tenciais. Voltou ao Brasil em 1982,quando foi eleito chefe do Departa-mento de Planejamento da Ensp.

Em 1985, foi indicado como can-didato à Presidência da Fiocruz por ummovimento da comunidade de Man-guinhos, por uma frente suprapartidá-ria, reforçada pelo então secretário-geral do Ministério da Saúde, EleutérioRodriguez Neto, e pela médica sanita-rista Fabíola Aguiar Nunes. Esse movi-mento ultrapassou as fronteiras da Fun-dação e tornou-se um movimentonacional, conseguindo a nomeaçãopara presidente da instituição em 3 demaio de 1985.

Democratizaçãoda Fiocruz

Durante a sua gestão, Arouca pre-ocupou-se com a democratização daFiocruz, recuperando a associação defuncionários e promovendo eleições

rou-se, a pedido, para concorrer comovice-presidente da República na cha-pa do PCB, com Roberto Freire. Foiainda candidato a vice-prefeito do Riode Janeiro na chapa de Benedita daSilva. Arouca foi deputado federal poroito anos e ocupou diversos cargos emcomissões de saúde, ciência e tecno-logia, sempre na defesa da moderni-dade e interesse do trabalhador. No iní-cio da atual gestão do prefeito CesarMaia, Arouca foi secretário de Saúdedo Rio de Janeiro.

Arouca foi coordenador do pro-grama de saúde de Ciro Gomes (PPS)na última eleição para Presidência daRepública e no segundo turno se in-corporou à campanha de Lula. Assu-miu em janeiro passado a Secretariade Gestão Participativa do Ministérioda Saúde e foi nomeado para a coor-denação-geral da 12ª Conferência Na-cional de Saúde e para ser o repre-sentante do Brasil na OrganizaçãoMundial de Saúde (OMS).

Arouca era casado com LúciaSouto, médica sanitarista e ex-deputa-da estadual pelo PPS no Rio, e deixouquatro filhos: Pedro, Lara, Nina e Luna.Por toda a sua produção científica e aliderança conquistada na construção doSistema Único de Saúde (SUS), Aroucavirou uma referência mundial.

A revoluçãocubana tambémtocou o coraçãode Arouca. EmHavana, com osmédicos sanita-ristas Eric Rosas(à esquerda) e

EleutérioRodriguez

Foto: Christina Tavares

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ano de 1941 foi brutalcom os que acreditavamem um mundo pacífico.Ventos sombrios sopra-vam da Europa, onde os

exércitos de Hitler marchavam emdireção ao leste, visando invadir a UniãoSoviética. Polônia, Dinamarca, Holanda,Romênia, Bulgária, Hungria, Iugoslávia,Grécia, Bélgica e parte da França havi-am sucumbido ao avanço nazista, cujamáquina militar nada parecia deter. Lon-ge da guerra e igualmente distante daliberdade, o Brasil vivia adormecido soba ditadura do Estado Novo de GetúlioVargas. Apesar das dificuldades, na en-tão pequena Ribeirão Preto uma famí-lia tinha motivos para comemorar: em20 de agosto daquele ano nascia Antô-nio Sergio, o segundo filho de José Pe-reira e Alzira. Um menino que 15 anosdepois, ao ingressar no Partido Comu-nista Brasileiro (PCB), daria início a umatrajetória em favor da população, daética na política e da paz, deixando seunome inscrito na galeria da saúde pú-blica. Curiosamente, este honroso currí-culo que levou o garoto do interiorpaulista a correr o Brasil e o mundo co-meçou quase que por acaso na vida deAntônio Sergio Arouca.

Filho de um funcionário da CaixaEconômica estadual e de uma dona decasa, Antônio Sergio cresceu em um laronde a leitura era incentivada. O paigostava de ler e estimulava o gosto pelaliteratura servindo biscoitos finos comoas obras de, entre outros, Dostoievski,Tolstoi, Jorge Amado, Graciliano Ramose José Lins do Rego – autores que con-tribuíram decisivamente para formar avisão de mundo que guiaria o rapaz vidaafora. No colégio, teve ele a sorte deter como professor de latim um mestre

A entrevista a seguir foi escrita ten-

do como base a primeira de três

conversas originalmente imaginadas

para se fazer um perfil de Sergio

Arouca. A idéia de iniciar com ele

a seção “Perfis de Manguinhos” sur-

giu em março. Mas Arouca só teve

condições de conceder uma única

entrevista à Revista de Manguinhos

para recordar a sua trajetória como

professor, pesquisador e político.

Desta forma, é contra a nossa von-

tade que o texto pára no ano de

1979. Outros dois encontros, em

que ele contaria os anos posterio-

res de sua vida, não ocorreram por-

que Arouca já não podia dar entre-

vistas. Por decisão editorial e por

respeito ao biografado, decidiu-se

não incluir neste texto nada que não

tivesse sido dito pelo homenagea-

do à Revista de Manguinhos. Esta

foi a última entrevista concedida por

Arouca antes de falecer.

A última O

“O maior

inimigo do

pensamento

autoritário é o

pensamento

livre”

Christina Tavares, RicardoValverde e Wagner de Oliveira

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entrevistaque não se limitava a dar aulas e quetinha como missão burilar o intelectodos alunos, criador do chamado “paga-mento estudantil”. A atividade, sempreaos domingos, era um salutar debate deidéias: a cada semana eles discutiamtemas como “o petróleo é nosso”, a li-berdade de imprensa, a situação dosbóias-frias, o êxodo rural e outros as-suntos candentes em meados dos anos50. “E também organizávamos simula-ções de julgamentos, como o deCalabar, depois de muito ler e estudaros acontecimentos. O papel revolucio-nário de Cristo também esteve presen-te em nossos estudos, para os quais con-vidávamos especialistas”, recordouArouca na entrevista à Revista de Man-guinhos.

O encontro do estudante com apolítica partidária ocorreu por conta do“pagamento estudantil”, que em uma desuas edições teve como convidado umjornalista que militava no Partido Comu-nista de Ribeirão Preto e discorreu sobreas tensões provocadas pelas mudançasnas relações de trabalho no campo. Arou-ca imediatamente se identificou comaquele discurso e, junto com outros co-legas de turma, passou a manter contatocom o jornalista. O relacionamento o le-vou a entrar para o PCB aos 15 anos e adesenvolver, para o partido, um traba-lho de militância na área rural do municí-pio. “A partir daí me tornei um comba-tente da causa social”, disse Arouca, queestava perto de tomar uma decisão queditaria o seu futuro.

A faculdade de medicina da Uni-versidade de São Paulo (USP), sonhadae criada por Zeferino Vaz em 1952, cau-sou um grande impacto em RibeirãoPreto e passou a seduzir os jovens ain-da no ginásio. Em 1960, quando Aroucapassou a freqüentar as suas aulas, elaera a única possibilidade de fazer umcurso de nível superior na cidade. O ir-mão mais velho, José Carlos, estudava

direito na capital paulista –e este poderia ter sido omesmo caminho do caçulase tivesse dado ouvidos aoprofessor de química do co-légio, que ao saber da in-tenção do adolescente decursar medicina foi taxativoao afirmar que ele “não te-ria jeito para a coisa”. O mes-tre, que sugeriu a faculda-de de direito, quase acertou.

Arouca entrou em cri-se logo no primeiro ano docurso universitário ao assistiràs aulas do que chamava de“matérias infernais”, comoanatomia e histologia. Cheio de dúvidasquanto aos estudos, ele começou a ques-tionar a vocação e deixou de ir à facul-dade. Liberado do Tiro de Guerra (o ser-viço militar) por ser estudante, saía decasa pela manhã com o caderno debai-xo do braço – mas seu destino era o baronde passava o dia jogando sinuca comos amigos. Com o pensamento divididoentre o bilhar e a medicina, Arouca mer-gulhou em crise profunda e volta e meialhe voltava à mente a discussão com oprofessor de química. Militante comunis-ta, sentindo-se um corpo estranho na fa-culdade, tomou enfim uma decisão: tran-cou matrícula e se dirigiu para São Paulo,

. Na foto domeio, em casa,na Nicarágua,

tendo atrás umareprodução de

uma foto darevolução

mexicana de1910. Ao lado

(segundo àesquerda, empé, de braçoscruzados), na

faculdadede Medicina

da USP

Arouca sema indefectí-vel marca, abarba, emfoto dadécada de 70

Fotos: álbum de família

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“Saúde é o

resultado

do desen-

volvimento

econômico-

social justo”

onde o irmão cursava direito. “E com oque vi no curso de direito voltei corren-do para Ribeirão”, contou Arouca, rindocom a lembrança.

De volta à medicina, o estudan-te logo começou a participar do cen-tro acadêmico. Mesmo cursando a fa-culdade, sua relação com os estudosainda era conflituosa. Arouca queria se-guir um ramo que ocupasse menostempo. “Minha intenção era fazer polí-tica, participar das grandes causas, e oclima da época, com o governo JoãoGoulart, o Centro Popular de Cultura(CPC), a busca por mais liberdade edemocracia, influenciavam bastante. Naminha cabeça, eu me especializaria emradiologia ou anatomia patológica, algoque garantisse o meu sustento e medesse tempo livre para continuar lu-tando pelas reformas que estavam empauta. Assim consegui um estágio emradiologia, mas aí apareceu a medicinapreventiva, que me encantou”.

Um discípulo de Samuel Pessoafora para Ribeirão Preto e conquistaraa cabeça de Arouca. Enquanto ele fa-zia conferências, a esposa panfletavapara o PCB. Surgiu então um núcleoque plantou a medicina preventiva nafaculdade e contribuiu para que o cur-so desse uma guinada, ampliando aconsciência social. O jovem Aroucalogo começou a estagiar no setor e foimandado para Cássia dos Coqueiros, ci-dade da região da Alta Mogiana quepertence à região de Ribeirão Preto efaz divisa com Minas Gerais. A doençade Chagas grassava no município.“Grande parte da população tinha a en-fermidade, as pessoas morriam de re-pente. Os próprios moradores brinca-vam dizendo que um jogo de futeboltinha que começar com 17 ou 18 joga-dores, porque perigava chegar ao finalsem quórum”, recordou Arouca, que vi-sitava as comunidades rurais para de-senvolver estudos sobre a doença ecomo monitor levava outros alunos.

Começava então a militância deArouca na saúde pública. Nos mesesseguintes ele daria plantão em pedia-tria, psiquiatria, ortopedia, trabalharianas emergências do posto de saúdemunicipal e na da Santa Casa. Foi plan-tonista de ginecologia, obstetrícia e che-

O pensador Aroucano Museu Rodin emParis, em 1982 (noalto). Topete ebigodinho, com pintade craque de futebol,no início da décadade 60 (no meio). Sembarba, Arouca exibeo troféu: a cobramorta no quintal decasa, na Nicarágua

Fotos: álbum de família

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gava a dar até 25 plantões por mês.Mas parou na psiquiatria. “Era terrível,porque ainda se usava o eletrochoque.Quando um paciente entrava em criselevava choque, era uma confusão... etinha o pessoal que rezava, porque ainstituição era espírita”. Arouca nãoagüentou e pediu para sair.

E havia a militância política, feitatambém na faculdade. O PCB apostavanas reformas (agrária, universitária etc)e seus partidários as defendiam aguer-ridamente onde quer que estivessem.Não demorou muito para que Aroucatrombasse com Zeferino Vaz, o visioná-rio que plantou a faculdade em Ribei-rão Preto – concretizando uma lei vota-da em 1948 que previa a instalação decursos superiores em cidades do interi-or de São Paulo.

Zeferino, o homem que viabilizouo empreendimento em Ribeirão Preto,correu o mundo contatando especialis-tas – de cujos currículos constasse tam-bém o espírito de aventura – que esti-vessem dispostos a vir morar em casascoloniais no interior de um país tropicalcom tudo ainda por fazer. Entre essesdesbravadores estavam Lucien Lison, umdos pioneiros da histoquímica, FritzKöberle, responsável pela teorianeurogênica da fase crônica da doençade Chagas, Miguel Covian, discípulo deBernardo Houssay (Prêmio Nobel deFisiologia e Medicina em 1947) e umdos pioneiros da neurofisiologia na Amé-rica Latina. O lado brasileiro também ti-nha seus medalhões, como Maurício Ro-cha e Silva, um dos descobridores dabradicinina, considerado então “a maiorexpressão da farmacologia brasileira detodos os tempos”.

O reconhecimento não impedia ocentro acadêmico, no qual Arouca pon-tificava como um dos líderes, de even-tualmente bater de frente com o todo-poderoso diretor da faculdade. Zeferinogastava dinheiro em jardins e não emum restaurante para os alunos? Providen-ciava-se o enterro do diretor. Zeferinoampliava vagas para bolsistas de paísesvizinhos? O CA de medicina fazia greve.“E com isso ele nos chamou de atrasa-dos, ao dizer que não olhávamos para opapel que o Brasil precisava ocupar naAmérica Latina”. Para Arouca, Zeferino,

“com físico de Zé Trindade, gravata bor-boleta, piteira, seguidor de Ademar deBarros”, era brilhante.

Discutir com Zeferino, enterrá-losimbolicamente, fazer greve na facul-dade, tudo isso serviu para formar o mi-litante político, mas seria pouco para en-frentar os anos de chumbo que estavampara chegar ao Brasil. O ano do golpe,1964, quando a democracia foi violen-tada, pegou Arouca como liderança es-tudantil de destaque em Ribeirão Pre-to. Toda a direção do PCB foi presa eele próprio esteve trancafiado por doisdias. Havia uma sensação, ingênua, deque a quartelada provocaria resistênciae não duraria muito. Mas logo nas pri-meiras horas o partido se posicionoucontra pegar em armas para combateros militares e a favor da luta institucio-nal, democrática, ainda que os espaçosestivessem vetados à esquerda.

Com a vida político-partidária na-cional suspensa, Arouca, como tantosoutros, passou a trabalhar em jornal –em uma publicação mantida pelos pa-dres progressistas da cidade. Ele manti-nha uma coluna literária e dava estoca-das nos militares através de artigos (queassinava com o nome de ex-presiden-tes da Confederação Geral dos Traba-lhadores, a CGT) e desenhos. Nos sub-terrâneos, assumiu a presidência do PCBe a secretaria-geral da CGT em Ribei-rão. Em 1966, já formado, se tornouprofessor do Departamento de Medici-na Preventiva e Social da Unicamp, aconvite de Zeferino Vaz – os caminhosde ambos voltaram a se cruzar. O cons-trutor de universidades fazia nascer maisuma, agora em Campinas. Ainda naqueladécada Arouca participaria da criação daLiga Brasileira de Combate à Doençade Chagas e fundaria o Grupo de Ciên-cias Sociais da Saúde da Unicamp.

Em Campinas Arouca desenvol-veu um trabalho inovador nos centrossociais de saúde, já que tinha uma li-berdade que em outras instituições nãoteria. Cursos de marxismo eram orga-nizados e freqüentados por figurascomo Carlos Lessa e Maria da Concei-ção Tavares. O capital, companheirode viagem, era levado debaixo do bra-ço. O departamento ganha dimensãonacional pela abordagem da medicina

preventiva e da questão do coletivo,fazendo uma análise marxista da saú-de. “Todo mundo de esquerda foi praCampinas. Davi Capistrano, Chico Gor-do, Eduardo Freese, todos viraram li-deranças”, lembrou Arouca.

A fase campineira duraria até 1975,quando Arouca precisou sair da cidadedevido à perseguição política, que fe-chava o cerco. A repressão estava de olhono médico comunista e vários de seuscolegas já haviam caído nas garras doarbítrio – e sido surrados, torturados emesmo mortos. Casado e com filhos,Arouca, alertado pelo pai (“acho queestão atrás de você...”), e pelo amigoMarco Antonio Barbieri, que sobreviveuao pau-de-arara, se assustou. O pai deoutro amigo, David Capistrano, é presoe “desaparece”. Ele resolveu então fugirna calada da noite, buscando refúgio comum pintor conhecido que residia emParaty. Na cidade praiana, permaneceucerca de um mês, curtindo o sol e co-mendo peixe frito de frente para o mar,com a mulher, Anamaria, e o filho Pedro.

Depois dessa temporada à beira-mar, Arouca, afastado da universidade,começa a ver a luz no fim do túnel.Pela primeira vez na história um grupode esquerda entra no Ministério da Saú-de (MS), então sob a gestão de Paulode Almeida Machado. Profissionais liga-dos à esquerda católica, da Santa Casade São Paulo, são levados para o MS nogoverno de Ernesto Geisel. Arouca écontratado como funcionário internaci-onal da Organização Pan-americana daSaúde (Opas) e vai trabalhar na toca doleão, em Brasília. “Eu detestava morarem Brasília e ser funcionário internacio-nal, aquilo não tinha nada a ver comigo.Aos poucos a situação foi melhorando,porque companheiros como Mario Ha-milton foram chegando. E passávamoshoras discutindo política nos bares dosubmundo da cidade. Lá ninguém pres-tava atenção em nós”, divertiu-se Arou-ca ao rememorar o fato.

A entrevista de Arouca para a Re-vista de Manguinhos foi interrompidanessa fase de sua vida. Incomodado, sen-tindo dores, Arouca pediu que a equipevoltasse depois. Infelizmente não hou-ve tempo de concluir o trabalho.

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Camarada

“A batalha

sanitária é uma

questão supra-

partidária;

nenhuma pes-

soa, instituição,

partido, agrupa-

mento, categoria

ou entidade

enfrenta sozinha

essa luta”

Acima, Aroucaem quatro tempos.Com o caciqueRaoni, com ocientista cassadoHaity Moussatchée o sanitaristaFrederico SimõesBarbosa, comUlysses Guimarãese com o ex-ministro da SaúdeCarlos Sant’Anna

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Arouca

rouca era um homem múlti-plo, com todas as virtudese as mazelas decorrentesdessa opção. Ora inteiro,nas frentes de batalhadas causas relevantes,

ora fragmentado, nas questões da alma,pois impossível de racionalizar. Inteiroou não era sempre verdadeiro, nas cer-tezas e nas dúvidas. Foi um líder demuitos e de poucos. Foi uma referên-cia a ser preservada na visão da maio-ria, e a ser isolada, segundo uma mino-ria. Talvez esse perfil amplo seja ocaminho para entender uma vida polí-tica tão cheia de aliados inusitados, deadversários condicionais, de alguns ini-migos incompreensíveis e de tantosamigos incondicionais. Arouca era um

homem da ciência, da política e dopartido. Para compreendê-lo,como dizia ele, dependia do mé-todo de análise.

Foi justamente sabendoequilibrar essa frágil equaçãoque ele conseguiu proezas

como ser notavelmente grande nomundo político, nunca tendo deixadode pertencer a um partido de muitosquadros e poucos parlamentares. Nãoforam poucos os amigos e aliados quelhe indicaram outros caminhos partidá-rios e ele optou por manter-se na tri-lha escolhida desde a juventude. Fo-ram muitos os dissabores causados porseu partido, notadamente nos anos maisrecentes, mesmo assim ele continuouseguindo sua consciência.

A trajetória política, consolidadaem atividades no Brasil e no exterior,ganhou impulso após o período na Pre-sidência da Fundação Oswaldo Cruz.Aliás, o binômio Arouca-Fiocruz na po-lítica nacional é um dos mais interes-santes exemplos de identificação posi-tiva para as duas partes. Na fase seguintevieram os dois mandatos de deputadofederal. A Câmara não tornou Aroucamais feliz, era uma missão. Com essavisão, pôs em prática métodos que re-sultaram na aprovação de leis fundamen-tais para o avanço do Sistema Único deSaúde (extinção do Inamps; controle douso do sangue e hemoderivados). Ele

foi o primeiro congressista a ter umaemenda constitucional de sua autoriapromulgada (autorização para contrata-ção de pesquisadores estrangeiros –emenda nº 11). Nada de relevante rela-cionado com a saúde pública e com aciência & tecnologia era tratado no Con-gresso Nacional sem que Arouca fosseconsultado. Por conta dessa peculiari-dade ele sempre teve seu nome relaci-onado entre os “cabeças do Congres-so”, publicação do DepartamentoIntersindical de Assessoria Parlamentar(Diap) que destaca os 100 parlamenta-res mais influentes a cada ano. Era umformulador dos melhores que já passa-ram pelo Congresso. Palavra do Diap.

O nome de Arouca constou devárias listas para ser ministro da Saúde.Foi secretário de Saúde do Estado e doMunicípio do Rio de Janeiro. Nada dis-so o fazia sentir-se maior, ao contrário,sempre o fez mais gente. Gente nos-sa. Axé Arouca.

A

* Fernando Antunes é vice-presiden-te nacional do sindicato dos servido-res da Controladoria Geral da União

Fernando Antunes*

Fotos: arquivo CCS/Fiocruz

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A falta que ama

Entre areia, sol e gramao que se esquiva se dá,enquanto a falta que amaprocura alguém que não há.

Está coberto de terra,forrado de esquecimento.Onde a vista mais se aferra,a dália é toda cimento.

A transparência da horaCorrói ângulos obscuros:cantiga que não imploranem ri, patinando muros.Já nem se escuta a poeiraque o gesto espalha no chão.A vida conta-se, inteira,em letras de conclusão.

Por que é que revoa à toao pensamento, na luz?E por que nunca se escoao tempo, chaga sem pus?

O inseto petrificadona concha ardente do diaune o tédio do passadoa uma futura energia.No solo vira semente?Vai tudo r ecomeçar?É a falta ou ele que senteO sonho do verbo amar?

Carlos Drummond de Andrade

“Darcy Ribeiro,

Chico Buarque,

Ulisses Guima-

rães: a festa de

reintegração foi

um carnaval na

frente do Castelo.

Virei para uma

autoridade e

disse: ‘agora

quero ver demi-

tirem eles’.

Ficaram

até hoje”

O rei do Castelo

Sergio veio para a Fiocruz em 1976. Em

1975 defendera a tese de doutorado em

medicina preventiva quando sua situa-

ção na Unicamp já estava politicamente

insustentável. Depois que David Capis-

trano Filho fora preso no momento em que aten-

dia a uma paciente no centro de saúde em Paulínea

e, fingindo que estava entregando um encaminha-

mento, conseguira avisá-lo de que o cerco estava

se fechando, Sergio “exilou-se” com Anamaria e

Pedro em Paraty. Durante alguns meses foi contra-

tado pela Opas para trabalhar em Brasília, cidade

com a qual não se acostumava a ponto de em to-

dos os fins de semana viajar durante 15, 16 horas

para São Paulo, Campinas ou Ribeirão Preto, e vol-

tar dirigindo outras tantas para trabalhar.

Ao lado, com os quatro filhos e SarahEscorel. Abaixo, cercado de crianças,no lançamento da creche da Fiocruz

Sarah Escorel*

Foto: álbum de família

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Mas, em 1976, surgiu a oportu-nidade de vir trabalhar no Programade Estudos Socioeconômicos em Saú-de (Peses ), “primo pobre” do Peppe,um grande projeto de pesquisas po-pulacionais e epidemiológicas, amboselaborados pela Finep com o objetivode apoiar institucionalmente a pesqui-sa em medicina social e desenvolvi-dos na Ensp. Veio, gostou e ficou.Nunca perdeu o sotaque do interiorde São Paulo mas tinha alma de cario-ca. O Rio de Janeiro era a sua cidade.A Ensp a sua instituição. Cerca de doisanos mais tarde, com o Peses dandofrutos científicos e políticos, prestouconcurso para professor titular no De-partamento de Administração e Pla-nejamento em Saúde (Daps), dispu-tando com um coronel-médico.Narrava o episódio realçando o ver-dadeiro “corredor polonês” formadopor militares uniformizados, com to-das as suas patentes a brilhar, que eranecessário ultrapassar para chegar àsala onde foram realizadas as provas.Passou, brilhantemente, é o que con-tam os que presenciaram o concurso.

Virou o Daps de cabeça para bai-xo. A área de planejamento foi consti-tuída essencialmente pela disciplina dapolítica. E não se tratava do estudo daciência política. Era a política de saúdecomo praxis – conhecimento e ação –no desenvolvimento do que seria cha-mado de saúde coletiva, na formaçãode recursos humanos, no curso básicode saúde pública, nos cursos descen-tralizados, no Cebes, nas pesquisas, nosprojetos como o de Montes Claros, sua“menina dos olhos” durante o tempoque durou.

Sergio era um ser político, viviae respirava política. Mas, não era umpolítico profissional, não se adequavaà máquina partidária – era um insubor-dinado na clandestinidade – e nuncase adaptou ao Parlamento. Vivia e fa-zia com gosto a política na área de saú-de, esse sim seu maior prazer e seumelhor desempenho.

Do Daps afastou-se para viver naNicarágua, trabalhando como assessorda Opas do Ministério da Saúde duran-te a revolução sandinista, e para o Dapsvoltou quando foi a hora de votar, pela

primeira vez depois de muitos anos,para os governos estaduais. Dona ElzaPaim esperava-o para transmitir-lhe achefia do departamento e dona ElzaPastor para voltar a ser sua secretária.Não chegou a completar o mandatode dois anos. Ocorreram o movimentodas Diretas Já!, a frustração da derrotada emenda Dante de Oliveira, a pers-pectiva de vitória de Tancredo Nevesno Colégio Eleitoral e uma sucessão deencontros, reuniões, seminários queprepararam a “plataforma” da saúdepara o governo da Nova República.Sem ter escrito uma linha, sua partici-pação e suas idéias estão contidas emquase todas as 50 páginas do número17 da revista Saúde em debate,publicada em julho de 1985, e que teveuma segunda edição em março de1986, por ocasião da 8ª ConferênciaNacional de Saúde.

Essa participação, sua incontes-tável liderança setorial, sua capacida-de de agregar pessoas e projetos e,nesse movimento, criar algo que eramais do que a soma das partes e doqual não exigia autoria, o levou à Pre-sidência da Fundação Oswaldo Cruz.Éramos um grupo relativamente pe-queno, constituído principalmente porprofessores da Ensp, mas também in-tegrado por pesquisadores de váriasoutras unidades técnicas da Fiocruz(IOC, Bio-Manguinhos, INCQS, IFF) quesaímos junto com ele, conhecendo ocampus e fazendo campanha, nummovimento inédito na instituição. Como telefone e o telegrama como instru-mentos de difusão e pressão, Sergioconseguiu apoio de muitos núcleos desaúde pública, departamentos de me-dicina preventiva, institutos, faculdadese instituições científicas em geral.Tancredo não chegou a assumir o car-go e José Sarney deu posse ao seuMinistério, que intacto aguardou a lon-ga agonia do político mineiro sem semexer. Enquanto isso, choviam telegra-mas e abaixo-assinados no gabinete doministro Carlos Sant’Anna pedindo a no-meação de Sergio Arouca para a Presi-dência da Fiocruz.

Os dias passavam, algumas no-meações começaram a ser feitas esobre a Fiocruz nada. Até que, no dia

30 de abril, recebemos a notícia. Oministro teria dito, quando pressiona-do a manifestar-se sobre a acefalia dainstituição: “para bom entendedormeia palavra basta”. No gabinete dadireção da Ensp comemoramos comuma garrafa de cachaça que alguémsaiu e comprou em uma birosca dafavela de Manguinhos e tiramos umafoto, em que além das caras sorriden-tes e da garrafa de pinga, eu estoucom um cartaz feito pelo ilustradorManoel Caetano Mayrink em que, li-derados por Sergio Arouca, a trupe,ou um de seus numerosos “exércitosde Brancaleone”, como gostava de sereferir aos que embarcavam nos seusdelírios, entrava no Castelo.

Para Sergio a Fiocruz foi mais doque a sua instituição. Na Fiocruz eleencontrou o seu lugar no mundo doqual nunca mais se afastou, nem mes-mo quando, em 1989, saiu da Presi-dência da Fundação para ser candida-to a vice-presidente da República nachapa de Roberto Freire.

Entre 1985 e 1989, muitas coisasaconteceram, muitas histórias para con-tar, detalhes das “mandracarias” que eleinventava rindo e que enlouqueciamos que estavam ao redor e que tinhamque operacionalizar suas idéias. Ou,quando não eram idéias próprias, pro-postas que ele estimulava porque gos-tava de “pensar grande”. Nunca foi afei-to à rotina burocrática, assinavaconversando as pilhas de processos queHermínia (“a poderosa”) lhe trazia.Gostava mesmo era de criar e tinhanas potencialidades da Fiocruz um solomais do que fértil para semear ou cul-tivar as sementes alheias, todas bus-cando a solidez científica, a criatividadee a ética a serviço da saúde e da soci-edade brasileira.

“Eu sei que essa dor não vai pas-sar mais nunca, mas sei também queum dia ela será tão parte de nós quese tornará mais suave e nem lembra-remos de como era viver sem sentiressas saudades”.

* Sarah Escorel é pesquisadorada Escola Nacional de Saúde Pública

Sergio Arouca (Ensp) e foi casada comArouca, com quem teve três filhas.

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ive a sorte e o privilégio deser aluna de Sergio (como euo chamava) desde o iníciodo meu curso de medicinana Unicamp. Chegado de Ri-

beirão Preto, quase recém-formado,magrela, já careca mas sem barba, pare-cia um moleque travesso que, com aque-le narizinho bem talhado, olhar maroto efalar macio, nos convidava, de forma di-vertida e atraente, a visitar novas “for-mas de andar a vida”, de pensá-la e cons-truir novos caminhos. Não prometia nada,ensinava a pensar e a ver a “saúde”, numlugar onde a formação profissional esta-va totalmente orientada para a doença.

Esse foi o professor daqueles tem-pos sombrios – final dos anos 60, dita-dura, repressão. Ao mesmo tempo,anos intensos, agitados e cheios demovimento: jovem ingênua e inexpe-riente, ignorante mesmo, bebi daque-la fonte com curiosidade e avidez e foiquando comecei, tardiamente, a apren-der a importância de “pensar politica-mente”, de exercer a crítica em prolda construção de um mundo melhor,de acreditar que era possível mudar orumo das coisas, de trabalhar para me-lhorar a vida de nossa gente!

Arouca:professor,líder, amigo e‘cumpadre’

“Temos que

discutir a

desmedicaliza-

ção da socieda-

de, ao invés de

ficar só falando

de genéricos e

distribuição

gratuita de

medicamentos”

Célia Almeida*

T

Década de 80: num dos muitos atosem defesa da Fiocruz de que participou Fo

to: arquivo CCS/Fiocruz

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O céu de brigadeiro se tornoumais escuro e ameaçador e andamoszanzando por aí, buscando alternativas,de trabalho e de refúgio, onde pudés-semos continuar nossa “missão (por-que não?) revolucionária”. Cada um porseu lado, ora juntos ora distantes, massempre em contato, chegamos, por dis-tintas formas, até a Escola Nacional deSaúde Pública (Ensp), lá pela segundametade dos 70, na então “desconheci-da” Fiocruz.

Havíamos conhecido a tradicio-nal Ensp por caminhos diferentes, mastínhamos dela a mesma impressão: umedifício feio e esquisito, meio vazio, depassado glorioso, diziam, mas que ha-via sucumbido ao marasmo e ostracis-mo impostos pelos “anos duros”. Ti-

nha uma história digna, mas naquelaépoca, lhe faltava VIDA! Arrastava-sequase agonizante, desprestigiada,encravada numa instituição que outro-ra tivera um lugar de destaque no ce-nário da saúde pública brasileira. Figu-ras interessantes, que tinham muitopara dar, perambulavam por lá, meiodesanimadas, e outras, igualmente qua-lificadas, mais afoitas, tentavamalavancar alguma mudança.

Cheguei para ficar, depois dele,e o burburinho já estava formado: doisgrandes programas de pesquisa sub-vertiam a “calmaria forçada”, até entãoreinante naquele lugar e agrupavamgente de várias crenças, seduziam al-guns “históricos”, alijavam os incrédu-los e os reacionários.

Para ser contratado disputou comum “milico”, aparentemente bem re-lacionado com o poder de então, que,para intimidar, trouxe uma “escolta”que montou um “corredor polonês”por onde todos tinham que passar, eganhou a parada. Sergio contava esseevento de tal forma que morríamosde rir com “nossas” pequenas gran-des vitórias.

Era um negociador exímio e afá-vel, mas veemente quando preciso,capaz de ouvir e compatibilizar diver-gências, sempre apontando a reflexãopara além das querelas comezinhas dodia a dia, assinalando os rumos, mos-trando o projeto comum (utopia?) quedevia nos unir e em torno do qual de-veríamos construir força política: mu-

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dar o sistema de saúde brasileiro – lu-tar contra o predomínio da doença so-bre a saúde, eliminar os privilégios egarantir a inclusão dos excluídos. Emsíntese, influir no conflito em torno dareorientação da política de saúde noBrasil. Na impossibilidade de “fazer arevolução” faríamos a “reforma”, deví-amos lutar, desde nosso campo profis-

sional, contra a opressão e o domíniodos mais fortes sobre os mais fracos.

Mas não era uma reforma qual-quer. E para tal era preciso construirum conhecimento novo, militante naessência, mas reconhecido cientifica-mente. Comprovar que a política desaúde promovida pelo regime militar,além de uma gestão tecnocrática-au-

“A Oitava

Conferência de

Saúde foi um

momento ines-

quecível depois

de anos de

autoritarismo.

Cinco mil pesso-

as de todas as

partes do

país discutiam

a proposta

do SUS”

Com Grande Otelo, num dia de atividades culturais na Fiocruz. A aproxima-ção com a sociedade foi uma das marcas de sua passagem pela Fundação

Foto: arquivo CCS/Fiocruz

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toritária, buscava privilegiar a privati-zação e a medicalização dos proble-mas sociais, menosprezando a saúdepública. Que durante o regime militarimplementou-se a extensão de cober-tura da atenção médica sem expandira rede pública, promovendo-se a or-ganização das empresas médicas pri-vadas e subsidiando o crescimento dosetor médico-hospitalar privado, con-tratado como provedor pelo Estado.Que esse modelo havia aprofundadoas desigualdades e fortalecido um sis-tema de saúde dual e fragmentado,com uma estrutura centralizada. Alémdisso, a escassa participação dos seto-res sociais organizados na determina-ção das políticas setoriais e no contro-le do uso dos recursos agravava essastendências. Devia-se denunciar tam-bém que aumentara a demanda insa-tisfeita dos serviços de saúde, paripassu à piora das condições de vidadas populações, as epidemias se su-cediam e ressurgiam algumas das en-fermidades infeciosas anteriormentecontroladas.

Para mudar este estado de coi-sas, e contra os interventores do regi-me militar, precisávamos nos organi-zar, em nossos locais de trabalho eassociações representativas, em tor-no de um compromisso que servisseàs causas populares e fosse capaz dematerializar uma proposta alternativade política de saúde baseada no prin-cípio da saúde como direito de cida-dania. Era preciso construir um novoprojeto técnico-assistencial, desenvol-ver estratégias que aglutinassem as for-ças políticas, construir um ideário dereforma e conformar um bloco depressão que atuasse organizadamentejunto ao poder constituído, impulsio-nando a mudança.

A contribuição do “Sergio pesqui-sador” à construção do campo da saú-de coletiva – novo conceito cunhadoentão – foi importante. Esse novo con-ceito pretendia institucionalizar umcampo de conhecimento específico euma nova vertente analítica. Constitui-se da negação da prática médica he-gemônica, identificada como operado-ra de um modelo indesejável deatenção à saúde, e da oposição à práti-

ca tradicional da saúde pública, porsuas insuficiências e subordinação àperspectiva médica. Replanteia tam-bém o lugar do público, que não é maisvisto como “estatal”, oposto ao “priva-do”, mas sim como o espaço de ex-pressão, enfrentamento e negociaçãode demandas, sejam elas individuais oucoletivas. Ao mesmo tempo, a práticapolítica dos “militantes” da saúdecoletiva reclamava a “transformaçãosocial” e, para isso, defendia a consti-tuição de um sujeito dotado de “cons-ciência social”, conquistada a partir desua “consciência sanitária”.

Em resumo, os postulados básicosque constituíram a saúde coletiva fo-ram perfilando-se em oposição à dita-dura militar e se afirmaram à sombra doprocesso de transição política, comouma modalidade específica do discursosanitarista, com fundamento epistemo-lógico e registro histórico e conceitualpróprios, ao mesmo tempo em que sepreconizava um projeto político-ideo-lógico profissional militante de reformasanitária, veiculado pelo chamado “Mo-vimento Sanitário”.

Era preciso disseminar esse co-nhecimento, formar “quadros” técnicae politicamente competentes para ela-borar e levar adiante o projeto trans-formador. Sergio então instalou-se noDepartamento de Administração e Pla-nejamento em Saúde (Daps) da Ensp,e aí organizou sua trincheira, trazendoa crítica do método Cendes/OPS, quejá rolava pela América Latina afora, paradentro da normativa e acanhada Esco-la. O planejamento estratégico, comoinstrumento de transformação técnico-política, ganhou fôlego. O Daps cres-ceu, mudou sua estrutura, ampliou seucontingente de profissionais, criou no-vos cursos, formou muita gente. Mas areestruturação não se restringia a essedepartamento, estendendo-se por todaa Escola, transformando-a em mais umcentro de produção crítica e de forma-ção profissional em saúde coletiva, afi-nada com a utopia da mudança e jun-tando-se a outros já existentes eespalhados pelo Brasil afora.

Assim, a Ensp se reinseria ereprojetava institucionalmente, come-çando (de novo) a ganhar visibilidade

no cenário nacional. Realizou concur-so público para absorção de pessoal eampliação de quadros, à revelia da Pre-sidência da Fiocruz, e, depois, brigoupela institucionalização do resultado doconcurso, efetuado rigorosamente se-gundo as normas estabelecidas pelaUnião. E ganhou! Fortalecida, começoutambém a reagir aos ataques represso-res e autoritários da mesma Presidên-cia, que ousava pretender censurar abibliografia utilizada em suas salas deaula. “Não! Aqui, não admitimos maisessa censura”, ela respondeu. De fato,os tempos estavam mudando e umanova era se anunciava.

Sergio era um professor cativantee nos ensinava todas essas coisas deforma suave. Suas aulas de planeja-mento partiam sempre de exemplossimples, cotidianos, que nos faziamacreditar que tínhamos à altura de nos-sas mãos os instrumentos necessáriospara transformar a realidade. Sua eru-dição não vinha apenas dos livros, masde seu saber vasto e variado sobre ascoisas e as pessoas. Sua reflexão eradialética, argumentando sempre coma oposição e reconciliação de contra-dições, lógicas ou históricas. Tornavafacilmente compreensíveis teoriascomplexas ou herméticas. “Fazia” anossa cabeça, no mais puro significa-do da expressão popular. Era um ora-dor brilhante, transparente e cristali-no. Isso para não falar de sua doçura.No fundo, era um maravilhoso conta-dor de histórias que relatava casos, sé-rios ou ridículos, de forma hilária e sá-bia, extraindo deles o aprendizadoessencial, conseguindo transformar asdiferentes percepções em pontos devista complementares, cimentadospelo riso e pela descontração.

Essencialmente “subversivo”,desmontava com facilidade qualquerpré-conceito ou idéia preconcebidasobre o que quer que fosse, concili-ando experiência teórica, prática po-lítica, capacidade de articulação ebom humor. Conjunção rara de quali-dades que o faziam, de alguma ma-neira, tão especial.

Mas tinha também os seus defei-tos, pois ninguém é perfeito, e um de-les era não escrever sistematicamente.

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Talvez porque suas prioridades muda-ram com o tempo, pois sua tese dedoutorado – O dilema preventivista –escrita nos anos 70, é um primor teóri-co, metodológico e mesmo literário,marco fundamental na inflexão que ca-racterizou a produção de conhecimen-to crítico nessa área (e somente agoraserá publicada). Desde então, Sergiopensava, discutia, inovava na reflexão,transmitia suas idéias de forma clara, masnão as registrava no papel. Quem qui-sesse o registro que o fizesse – e al-guns registros foram feitos.

Era aberto para o mundo, masfechado para dentro, sendo poucos osque conseguiam que manifestasse suasaflições, dificuldades ou dores da alma.Essas, guardava a sete chaves, prefe-rindo que o homem público dominas-se a cena, subsumindo o privado. Ob-viamente, isto cobrou o seu preço!

Era ambicioso politicamente, vi-sava o poder, para colocar em práticasuas convicções e experiência. Lem-bro-me que no auge da ebulição polí-tica da transição democrática encon-trei-o nos corredores da Ensp e medisse calmamente: “nós vamos tentarocupar a Presidência da Fiocruz”. Ar-regalei os olhos e perguntei “vocêacha possível?”. “Acho que sim, vamostentar e ver no que vai dar”, respon-deu. E eu, de novo, “você quer isso?”.“Quero”, respondeu sem titubear.“Conta comigo”, respondi, cheia dedúvidas e um pouco incrédula, massucumbida frente tanta determinação.E assim foi. Meses depois ele era opresidente da Fiocruz. Tinha clarezada importância de deter o poder parapoder mudar.

Postulava que era através do Es-tado que se poderiam criar as condi-ções para o exercício da cidadania,deslocando a luta política para dentrodo aparelho de Estado e atuando comose fosse um partido político (o “parti-do sanitário”), uma vez que seria ogrande catalisador e articulador dosanseios de mudança dos diferentes gru-pos sociais. Tinha clareza sobre essaestratégia de “ocupar espaços de po-der”, que foi instrumentalizada medi-ante a ocupação de cargos técnicos nasinstituições do setor capazes de influ-

enciar na política de saúde, nos distin-tos níveis de governo, e viabilizada apartir de uma série de alianças com seg-mentos “publicistas” da tecno-burocra-cia. Mas não desconsiderava a socieda-de civil, os movimentos sociais,setoriais ou não, as experiências ino-vadoras e as demandas da população,canalizadas das mais diversas maneirase que estavam em plena efervescêncianaqueles tempos alvissareiros. Ao con-trário, buscava sempre a aproximaçãoe pregava o aprendizado que essa di-nâmica frutífera certamente traria.

Aliás, Sergio tinha especial habi-lidade para construir “frentes supra-partidárias” que lutassem em prol decausas comuns, independentementede diferenças ideológicas ou distintasfiliações políticas, e, assim, foi um dosprincipais articuladores e liderança des-tacada do “Movimento pela ReformaSanitária Brasileira”. Alentado pelo con-texto da transição democrática e re-sultado da confluência de diversas for-ças sociais e políticas comprometidascom o processo de democratização dasociedade e com a melhoria das con-dições de vida e saúde dos diversosgrupos sociais, esse movimento sur-giu no início dos anos 80. Foi confor-mado e dirigido pela militância pro-fissional de oposição no setor ealimentado tanto pelas lutas corpora-tivas profissionais como pela reativa-ção dos partidos políticos e da organi-zação de diversos setores sociais,logrando, num primeiro momento,“unificar” una posição setorial globalcontra a política de saúde posta emprática pelo governo autoritário. Omovimento alcançou maior visibilida-de nos estertores do regime militar,quando os sanitaristas que o coman-davam passaram a ocupar a direçãode importantes instituições setoriais.

Sem dúvida, ele gostava do po-der, mas não suportava muito ossalamaleques requeridos pelos cargose posições que ocupava, sendo aces-sível e escapando, sempre que pos-sível, dos rigores dos protocolos eposturas tradicionais, sem entretan-to, negar sua importância ou mesmodeixar de cumpri-las. Na realidade,negava os excessos de zelo que cer-

“A questão do

sangue é outro

momento emble-

mático: lá estava

de novo a Fio-

cruz e seus

idealistas, unidos

a gente como o

Betinho, lutando

para “limpar” o

sangue de impu-

rezas que iam

muito além

de vírus e

bactérias”

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cam os detentores do poder, sentin-do-se muito mais confortável entreos “normais”, estabelecendorelações de igual paraigual, com qualquerpessoa que dele seaproximasse,acolhendo-acarinhosamen-te e com a maiorsimplicidade.

Era um amigosensível, atenciosoe leal, sempre dis-ponível a dar a mãoe compreender asaflições alheias. Nun-ca estava sozinho, vi-via cercado de entesqueridos, colaboradores,seguidores e, como é de pra-xe, de alguns bajuladores tam-bém. Mas, generoso, sabia separar ojoio do trigo e dar a cada um o quelhe competia, com enorme magnani-midade, exigindo o retorno também,sempre que necessário.

Enfim, este é o Sergio que tragodentro de mim. Perdoem-me os erroshistóricos ou cronológicos, as omissõese as distorções. Exprimo a importân-cia que teve, na minha formação pro-fissional, esse professor, pesquisadore líder competente e brilhante; na con-formação da minha pessoa, esse ami-go querido e dedicado; na minha es-truturação afetiva, esse “cumpadre”muito especial, que compartilhou co-migo a “sua Luna”. Relato o que vivie senti. Escrevo com o coração e amemória afetiva, amorosa, não é exa-tamente a melhor guardiã dos “fatosreais”. Mas, o que é a realidade senãoa construção subjetiva/objetiva elabo-rada segundo o ponto de vista do lu-gar que ocupamos nela?

Querido professor, líder, amigo e“cumpadre”: espero qualquer dia des-tes tropeçar com teu fantasma benfa-zejo e sorridente, visitando feliz o Cas-telo que foi também tua casa e queseguirá sendo um dos honrosos sím-bolos do teu legado.

A Fiocruz recebeu dezenas decoroas de flores e mensagenslamentando o falecimento. Aospés da pequena jabuticabeira (aolado), plantada na frente doCastelo, foram jogadas as cinzasde Arouca. No mesmo local,será colocado o seu busto

* Célia Almeida é sanitarista epesquisadora da Ensp.

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O meu guru

“Temos que

entrar no cora-

ção desse SUS

desumanizado e

medicalizado e

resgatar a

promoção da

saúde”

“Falar é completamente fácil, quando se tem

palavras em mente que expressam sua opinião.

Difícil é expressar por gestos e atitudes o que

realmente queremos dizer, o quanto queremos

dizer, depois que a pessoa se vai”

Carlos Drummond de Andrade

Grupos de trabalho discutemos destinos da saúde em

1986, durante a 8ª Conferên-cia de Saúde. Ao lado, na rua,onde mais se sentia bem, oentão secretário de saúde

do Rio de Janeiro acompanhao combate ao dengue

Fotos: arquivo CCS/Fiocruz

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Arouca era um sonhadorEm 1985, foi o mensageiro dos

nossos sonhos na Nova República. Ora-dor carismático, ouviu emocionado odiscurso do Arlindo em reunião doPMDB em defesa da sua indicação àPresidência da Fiocruz.

Indicado pelo então ministro daSaúde, Carlos Sant’Anna, nomeado porJosé Sarney, afiançado por Fabíola,Eleutério e toda a comunidade cientí-fica brasileira. A Fiocruz o recebeu napresidência com imensa alegria. Foramdias inesquecíveis.

Comunista desde criancinhaDentro da velha carteira preta,

patuás, medalhinhas, fita do Senhor doBonfim, sementes de romã, além depapeizinhos de pedidos, telefones im-portantes. Morreu com um escapuláriode Nossa Senhora da Paz no pescoço.

Era alucinadoPara realizar sonhos não se inti-

midava com os entraves da lei. Emcaixotes empoeirados, guardados comcarinho pelo primeiro museólogo daFiocruz, Luis Fernando Fernandes Ri-beiro, encontramos a história da cons-trução dos prédios tombados, as notasfiscais, as cartas de Oswaldo Cruz paraMiloquinha, os negativos em lâminasde vidro de J. Pinto.

No nosso restaurante, junto comArlindo e Luiz Fernando Ferreira, o con-teúdo do caixote, classificado, vira aCasa de Oswaldo Cruz. Na mesma li-nha vem o Politécnico, a Creche, oCesteh, a Farmacodinâmica, a prefei-tura do campus, a reintegração dos cas-sados, a democratização da Asfoc e onosso modelo de gestão. Caminhamoscom ele para o primeiro Congresso In-terno, hoje o fórum maior da Fiocruz.

AventureiroConvence o ministro Carlos

Sant’Anna a convocar a 8ª Conferência

Nacional de Saúde com participaçãopopular. O Partido Sanitário enlouque-ce. Sonho antigo, foi viável porque asociedade civil participou.

Tivemos a primeira convocaçãoda 8ª na novela Roque Santeiro, emque o autor, Aguinaldo Silva, ajudou. Amídia veio junto e Arouca se tornouuma liderança popular. Jornalistas detodo o país queriam entrevistá-lo e elerealmente namorava essa aliança tãoimpensada antes.

SedutorSeduzia homens e mulheres.

Gostava do exercício da sedução. Opoder não o intimidava porque jamaisfoi autoritário e tinha a humildade dosjesuítas. O poder pra ele só tinha sen-tido para fazer o que achava justo: oque era possível com uma simplescanetada de presidente ou de secretá-rio da Saúde.

Orador vibranteFez a defesa popular do texto da

saúde que cria o SUS. O plenário aplau-diu de pé. Nesses momentos era vai-doso. Naquele dia, antes do seu pro-nunciamento, no corredor da Câmarados Deputados grampeei a bainha dacalça dele, que estava descosturada.Valente para as causas públicas, ficavapequenininho nas angústias pessoais.

BoêmioDeputado, saía do Congresso

Nacional e ficava até altas horas noOtelo, barzinho da Asa Norte, ouvindoo pianista Daniel e até ousava cantarsua música predileta, Romaria. AryMiranda dizia que Arouca jamais saíado tom porque sequer entrava.

ApaixonadoJogou-se de corpo e alma na luta

pela moralização do sangue. Junto comBetinho e outros valentes companhei-ros, fizemos um dos movimentos maisbonitos do país. Ziraldo aderiu e nova-mente mobilizamos o Brasil inteiro.

“Fácil é analisar a situação alheiae poder aconselhar sobre esta situação.Difícil é vivenciar esta situação e sabero que fazer. Ou ter coragem pra fazer”(Drummond)

Em defesa da Fiocruz e do SUS,Arouca fez movimentos impensáveis.Até mesmo fazer alianças estranhas.

Bem-humoradoRecebeu François Mitterrand

como se fosse rei. Fidel Castro comose fosse um guerrilheiro, Mario Soarescomo um amigo de infância. Transita-va pelos palácios e monumentos deBrasília com a maior intimidade. A pos-tura era igual ao visitar postos de saú-de da Baixada Fluminense. Aceitou der-rotas de campanha sem jamais perdera esperança e a alegria.

MeigoE era aí que pegava todo mundo

e dava um nó no coração da gente.

CarenteCom certeza foi ele quem fun-

dou o Sindicato Nacional dos Carentese a sua carteira era a 001.

InjustoPara os adversários TUDO e para

os amigos sinceros a DURA LEX.

Era um caipira, pira, pora“Fácil é ocupar um lugar na ca-

derneta telefônica. Difícil é ocupar ocoração de alguém. Eterno é tudo aqui-lo que dura uma fração de segundo,mas com tamanha intensidade, que sepetrifica, e nenhuma força jamais oresgata” (Drummond).

Arouca era o meu guru. Do jei-tinho que são os anti-heróis das his-tórias em quadrinhos.

Chefinho, a gente se vê.

* Christina Tavares éjornalista e foi assessora de

Arouca durante 18 anos.

Christina Tavares*