m. delly - alma em flôr

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    Anabela foi criada com rigorosa educao, sem divertimentos, amigos ou religio.Sua av visava torn-la apenas uma moa sem emoes, dcil e exmia nas

    prendas do lar.Quando, por problemas de sade, Anabela obrigada a conviver com outrasmoas, descobre que a vida no s infelicidade e punies; existe amor,compreenso e caridade.

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    Ento, em sua alma, comeam a brotar sentimentos que iro entrar em conflito comos interesses de sua av e colocar prova sua recm nascida determinao de serfeliz.

    Biblioteca das Moas - volume 70

    Do original francs: L Jeune Fille Emmure - 1958Traduo de Paulo de FreitasDireitos para a lngua portuguesa adquiridos pela Companhia Editora NacionalImpresso nos Estados Unidos do Brasil Printed in the United States of Brazil

    Captulo I - CINZAS DO PASSADO

    Caa uma chuva fina, apertada, ininterrupta, que somente deixava penetrar um diaamortecido na grande sala de jantar, de ordinrio um tanto obscura. Uma penumbraenvolvia os aparadores de madeira escura, o buffet macio e guarnecido de velhasfaianas e os quadros de paisagens assinadas por nomes conhecidos, quedecoravam as paredes recobertas de antiga tapearia. Somente uma mesinha,colocada bem perto de uma das janelas, lograva claridade mais ou menossuficiente.A moa que ali se achava sentada, contentava-se com essa luz para trabalhar. Coma cabea abaixada sobre a roupa branca que consertava, no se lhe via mais doque o delgado busto, a alva nuca e os cabelos sedosos, de um louro argnteo,formando um enrodilhado espesso e bem repartido ao meio, na frente. As mos que

    manejavam a agulha eram pequenas e bem feitas, mas atrigueiradas, algoendurecidas, como as de quem dirige uma casa.O silncio, nesta rua parisiense um tanto retirada, era apenas quebrado, de quandoem quando, pela passagem de um carro ou de transeuntes, cujos passos batiam nocho molhado. Dentro do prprio apartamento, nada a perturbava.Contudo, de repente uma porta se abriu e em seu limiar apareceu uma senhora,bem feita de corpo mas um tanto robusta, vestida de seda preta. Os cabelosescuros, ligeiramente grisalhos, estavam repartidos no alto da testa, de uma palidezebrnea, como o rosto, de traos firmes e demasiado acentuados, que denotavam,ao observador, grande energia. Os olhos azuis, de um olhar frio, imperioso, noforam feitos para desmentir esta impresso, que tornava Madame Norand Valentina

    pouco simptica no mundo das letras, onde era considerada como romancista deraro, mas amargo e rspido talento. Anabela!A voz breve, metlica, ressoou no silncio da grande sala. Lentamente a cabealoura se ergueu, e os olhos de um lindo azul-violeta se voltaram para a porta. Anabela, dentro de oito dias partiremos para Maison-Vieille. Trate de aprontar-se.A moa respondeu em morna tranqilidade: Est bem, vov.Depois, novamente abaixou a cabea sobre o trabalho.Madame Norand deixou a sala, fechando a porta com mo firme, mas um tantobrusca. Um minuto depois, silenciosamente a porta se reabriu, para deixar passar

    um vulto delgado e triste que, tal qual uma sombra, deslizou at trabalhadeira.

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    Que tolice, Anabela! Onde se viu consertar roupa num dia como este! Quero crerque no h nenhuma pressa, no?A recm chegada empregava a lngua inglesa. A sua voz era fraca e adequada pessoa, baixinha e magra, ligeiramente contrafeita, com o rostinho mido e de pelelisa, a despeito dos seus cinqenta anos. O olhar inexpressivo revelava a

    insignificncia de misse Steverson e a sua bondade mole, to depressa derivadapara a pusilanimidade.A agulha deteve-se cm seu movimento e um rosto jovem voltou- se para a recmvinda. Era fino e encantador, delicadamente branco, bastante delicado mesmo, poisa moa denotava enfraquecimento de sade e os traos emagrecidos. Um olhartriste e frio pousou na solteirona, enquanto Anabela respondia com a sua vozmorna: Pelo contrrio, tia Graa, estou com muita pressa. Principalmente agora. Com toda a certeza, voc alude partida para Maison-Vieille, no? MadameNorand preveniu-a?Anabela disse que sim, com a cabea. Com as mos cruzadas sobre o trabalho,

    seus olhos seguiam distraidamente os minsculos riachos que serpeavam ao longodas vidraas.Misse Steverson sentou-se perto dela. Ao primeiro golpe de vista, no se descobriasemelhana alguma entre este rosto, de perfil de carneiro, com a mocinha, cujafisionomia era to fina e delicadamente linda. Entretanto, mediante um exame erapossvel descobrir-se, entre uma e outra, alguns traos de pareceria, como, porexemplo, a configurao um pouco comprida do rosto e, ainda, a nuana de cabeloslouros descorados to embaciada na cabea da tia e que na de Anabela, se tornavato deliciosamente argntea. Est contente? Voc gosta mais de Astinac do que de Paris, no verdade?Anabela permaneceu alguns instantes sem responder, com o rosto sempre voltadopara a janela. O crepsculo comeava a envolv-la com melanclica sombra. Porfim, respondeu com aquela mesma voz lenta, um pouco morna: Sim, talvez... Gosto do campo... interrompeu-se e seu olhar frio iluminou-seligeiramente, durante alguns segundos Pois temos o sol, o ar, as flores, enquantoaqui... e apontou a rua, a perspectiva dos tetos sem fim, casas sem carter, e ocu sombrio desta tarde de maio. Sim, l os passeios so mais agradveis. Tambm eu estou contente de ir, poisdecididamente no gosto nem um pouco de Paris... Vamos, largue do trabalho,Anabela. Ento, no pode descansar um pouquinho? No, agora preciso colocar o remendo.

    Voc ter tempo. So sete horas, apenas.Anabela levantou-se. Era bem lanada de corpo, muito embora demasiado delgada,e dobrava-se como um caule frgil sob o peso de algum cansao fsico ou moral,que os seus movimentos lentos, um pouco indolentes, pareciam testemunhar.Ela disps em ordem o seu trabalho e, por um longo corredor, alcanou a cozinha.Uma velha e corpulenta mulher ali cuidava do jantar, repreendendo uma rapariguitaesguedelhada, que batia ovos numa saladeira. Ah! senhorita, venha mexer um bocadinho este molho, enquanto ponho o peixepara cozinhar.Sem dizer palavras, Anabela tomou a colher das mos da velha e se ps a mexerlentamente, com ativa mo, o engordurado e escuro molho.

    A cozinheira no teve uma palavra de agradecimento. Depois disso, pediu um outroservio moa, como coisa habitual e em tom de voz que era quase uma ordem.

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    Mais tarde apareceu um velho criado, este tambm dono de excelentes banhas, quedisse: Senhorita, uma das lmpadas do lustre est queimada. Est bem, Martim, vou ver.Nesse momento, a cozinheira passou uma descompostura na criadinha que

    acabava de lavar copos numa terrina. Desajeitadona! Assim que se lava? Andaria melhor aprendendo a trabalharconvenientemente, do que ficar parada pelas vitrinas, quando sai rua a servio.Anabela, de passagem, volveu um olhar melanclico para plida criaturinha,quarta filha de um pobre artista que possua nove. Ela no tem tantas distraes, a pobre! disse Anabela, a meia voz. Vocdeve perdoar-lhe por isso, Mlanie.A velha resmungou: Distraes! Acaso eu tenho alguma? Qual, histrias!Anabela pensou: "Voc no tem nem quinze anos... nem mesmo dezoito, como eu".Mas no disse palavra. Com o seu passo silencioso, um pouco vagaroso, voltou

    para a sala de jantar. Martim para ali levara uma escadinha. Anabela subiu algunsdegraus e tomou a lmpada que, com uma das mos, o criado lhe estendia,enquanto com a outra segurava uma vela para que a moa enxergasse. Quandoesta substituiu a lmpada, ele foi abrir o interruptor e a grande sala de jantar ficouem parte alumiada, enquanto as extremidades permaneciam numa espcie depenumbra.Nesse instante, soou a campainha. Martim dirigiu-se para a porta da rua. Anabelacontinuou trepada na escadinha, olhando para uma lmpada, cuja luz parecia maisfraca. A exclamao do velho Martim chegou aos seus ouvidos: Ah! O senhor Marnel!Uma voz masculina, sonora e alegre, respondeu: Por certo, meu bom Martim! Quase que sou uma alma do outro mundo, hein?O criado deixara aberta a porta da sala de jantar, de modo que Anabela se achavaem plena luz, diante da entrada do apartamento. Seu olhar indiferente vislumbrou asilhueta do recm chegado, um homenzinho seco, de cabelos grisalhos e ralos.Martim replicou: Diacho, no acreditvamos que o senhor jamais aqui voltasse. Depois de cincoanos que ningum o via... Exatamente, cinco anos, verdade... Voc ainda trabalha, hein, Martim? Penseique j se tivesse aposentado. No, nem to pouco Mlanie. Somos sempre os nicos criados de Madame

    Norand e o senhor poder verificar que o servio ainda continua bem. Ah! Mlanie tambm est a? Tanto melhor, pois espero que ela seja aquelacozinheira fina de outrora.Enquanto falava, o recm chegado voltou os olhos para a sala de jantar. Sentiu-seum tanto surpreso, ao dar com a moa que vestia uma grande blusa dequadradinhos. Quando deparou com aqueles lindos e tranqilos olhos semcuriosidade, o estrangeiro tirou o chapu e com ligeira inclinao de cabea lherespondeu. Entretanto, Martim j abria uma porta, anunciando: O senhor Marnel.Madame Norand, sentada em sua escrivaninha, soltou uma pequena exclamao.Levantou-se e veio ao encontro do visitante, estendendo-lhe ambas as mos:

    Voc, meu amigo? Que surpresa!

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    Notava-se, em sua voz, um vivo contentamento e aquela fisionomia fria iluminou-seum pouco. No verdade, Slvia? Sou sempre o mesmo, gostando de cair,inesperadamente, nas costas dos meus amigos. Mais de uma vez voc mecensurou, mas sou incorrigvel, como v.

    preciso acolh-lo tal como voc , Feliciano. Por isso, no me sinto menos felizde rev-lo. Faz tanto tempo! Depois, so to poucas as notcias que me manda!Mas no as exijo, sabendo que voc detesta escrever. Sente-se, temos tempo deconversar um bocadinho, antes de chegarem os meus convidados, pois hoje omeu jantar hebdomadrio. Ah! bem! E eu que esperava passar uma noite tranqila, a seu lado! Pois vir almoar amanh, ou jantar, como quiser. Esta noite, voc ver o seuvelho amigo Barey, a sua linda inimiga Marie-Qaire Janvier... Qual! Linda ela no mais deve ser, depois de tanto tempo! Voc ver. Viro, tambm, Carlos Berger, Ludo-vic Dorange...Feliciano Marnel sentara-se em confortvel poltrona de veludo, defronte de sua

    hospedeira. Com o olhar, ele vasculhou o grande aposento guarnecido de mveisque datavam do primeiro Imprio, herana de um antepassado de Madame Norand.Tudo, ali, continuava parecido com o que era antigamente. O conjunto era severo,muito frio, sem um bibel. Unicamente, duas rosas se ostentavam num vaso decristal.Na escrivaninha, guarnecida de lindos e antigos cobres, papeis e livros estavamcuidadosamente dispostos. Voc trabalhando sempre, hein, Slvia? Li as suas ltimas obras e, digo semlisonja, achei-as superiores s precedentes, literariamente falando. Mas quedesencantamento nos seus heris! Que ceticismo desesperador! Madame Norandalou levemente os ombros. a vida disse ela friamente. Pelo menos, eu a vejo assim. Uma aparnciade felicidade, por vezes, e depois tanto sofrimento... tanto sofrimento... a vozbreve comoveu-se um pouco e o tmulo, o fim de tudo. Mais nada, mais nada...A boca se crispava num rctus que comunicava, a esta fisionomia de mulher, umaexpresso de infinita amargura.Enternecida surpresa apareceu no olhar de Marnel, um olhar franco e bom dehomem leal, inteligente e fino observador. O que, Silvia, pobre amiga?... A sua alma no encontrou sossego? Sossego? Por que o encontraria? J perdi toda a razo de viver, voc sabe. Mas outrora alimentava certa crena, no? Voc...

    Um gesto seco daquela mo longa e fina interrompeu-o: Nada, nada mais tenho. No falemos mais de mim, meu amigo, mas sim de voc.Est satisfeito com as suas interminveis viagens ao redor do mundo? Encantado, mas um pouco cansado. Sinto o peso dos meus cinqenta anos,Silvia, e creio que desta vez vou cuidar, dos meus molambos, em minha casinha deBellevue. Ah! sinto-me feliz, por isso! Ver-nos-emos continuamente, para compensarmos otempo perdido. Para comear, convido-o a ir passar alguns dias em minha velhapropriedade de Corrze. Parto na semana que vem, e l ficarei at outubro. No lhe digo que no! Sentirei prazer em rever Maison-Vieille, onde outrorativemos timas reunies. Entendamo-nos bem, a respeito dos ruidosos

    passatempos, muito embora quase sempre discutssemos. Por esse tempo, o seucarter j estava inteiramente formado, minha boa amiga, e era difcil obrig-la a

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    ceder quando tivesse decidido qualquer coisa. Lembro-me dos castigos que seu pailhe impunha, e voc teimava em torn-los mais rigorosos em sua resoluo.Enquanto falava, Marnel observava pensativamente aquele rosto de um marfimplido, as rugas nos cantos dos olhos, o vinco amargo da boca. Onde estava a lindaSlvia de outrora, aquela Slvia morena, to viva, to ardente, que se atirava vida

    com tanta alegria? S restava uma envelhecida mulher amargamentedesencantada, mas sempre orgulhosa, como fora a filha, a moa, a jovem esposa,coroada pelo amor, e a .me...A me de Luciana, esta criaturinha amimada e idolatrada. Sim, Silvia, fora uma metolamente idolatra. Viva, aps cruis desiluses conjugais, concentrara todo opoderio do amor nesta nica filha. Os seus caprichos eram uma lei para MadameNorand. Luciana, formosa e acariciada, tornou-se ftil e s procurava o prazer,arrastando a me para todos os recantos mundanos. Depois, apaixonou-se por ummoo ingls, rico, bonito, mas de carter medocre. Contra a vontade de MadameNorand, casaram-se. No demorou que se desiludisse. Entregou-se a uma vidamundana, desregrada, a qual, auxiliada pela delicada sade, alguns anos aps a

    levou para o tmulo.Ausente na ocasio, Marnel nem mesmo pode conjeturar qual poderia ter sido a dorde Silvia. Revendo-a, alguns meses mais tarde, encontrou uma mulher envelhecida,com os traos endurecidos, que desde ento jamais falara da filha desaparecida.Por esse tempo que em suas obras apareceu aquela nota amarga, desencantada,aumentada ainda nos ltimos anos.Madame Norand distraidamente desarrumou alguns papis na escrivaninha. Aevocao dos anos da mocidade, feita pelo amigo de infncia, cavou uma ruga maisprofunda em sua fronte. Marnel notou-a e, com o intuito de mudar de assunto,observou sorrindo: Voc ainda conserva os antigos criados, no? Como conseguem eles ainda fazero servio? Oh! fazem-no mais ou menos. Alis, so auxiliados. De fato, j notei... Vi uma linda moa loura na sala de jantar. dama decompanhia, ou secretria?Ligeira crispao apareceu na boca de Madame Norand. minha neta.A resposta caiu em tom breve, gelado. Ah! sim... a filha daquela pobre Luciana. No me ocorreu... Foi voc que aeducou? Fui eu... Escute, Marnel, uma vez que temos de encontrar-nos muitas vezes,

    porquanto voc partilhar de minha existncia durante algum tempo, em Maison-Vieille, preciso que desde j eu o ponha ao corrente dos fatos.Interrompeu-se por alguns momentos. Seus lbios tremeram ligeiramente. Contudo,com voz firme, prosseguiu: Voc sabe, meu amigo, quanto amei minha filha. Naquela criana concentrei todaa minha alegria. Entretanto, desiludi-me terrivelmente. Na ocasio de seucasamento, ela no me poupou as provas de seu egosmo, de sua ausncia decorao. Todavia, por sua causa tudo suportei, mesmo as piores amarguras.Durante a enfermidade que deveria terminar pela sua morte, um dia ela me disse:"Voc culpada de tudo isto. Se no me mimasse tanto eu seria mais sria e nome teria suicidado nesta existncia de prazeres".

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    Os lbios tremeram mais fortemente, durante alguns segundos. O azul ainda vivodos olhos ensombrou-se, quase que se tornou negro. Em sua voz notava-se umcerto desfalecimento. No vem a propsito lembrar o que me disse depois, para suavizar o efeito depalavras to atrozes Bem que reconheo, eu merecia a censura. Sim, amei-a

    demasiado, mimei-a em excesso e tornei-a um dolo, o meu universo. Mas a terrvellio devia servir-me. Com cinco anos de idade Anabela ficou completamente rf,pois o pai pouco depois morrera num desastre de automvel. Fui eu quem a criou,com o auxlio de uma antiga conhecida, Madame Baury. Lembra-se dela? Sim, a viva de um mdico, mulher seca e desgraciosa, e, alm disso, muitopouco inteligente. Mas bastava para o que dela eu esperava. Isto porque o meu desejo era educarAnabela diferentemente. Uma vez que amei demasiado minha filha, minha neta noteria o direito de fazer-me essa censura. Com esse propsito, bani todosentimentalismo de sua educao. De acordo com as minhas diretrizes, MadameBaury lhe deu uma instruo slida, sem lhe permitir nenhuma leitura de

    imaginao. Ensinou-lhe, principalmente, a arte do amanho da casa, em quedoutrinava excelentemente. Quando Madame Baury faleceu, h dois anospassados, sua obra estava acabada. Anabela que tomou conta de minha casa,que preencheu as lacunas do servio dos meus criados. Ela ignora o mundo, quematou sua me, e desconhecida de. meus amigos. Sua vida to austera, toretirada quanto a de Luciana foi brilhante, alegre, toda exterior. E, Marnel, confesso,no quero nem um pouco minha neta. Jamais pensei em querer-lhe, para no serdesiludida uma segunda vez. Alis, meu corao est morto.Madame Norand fez nova pausa. Marnel escutava-a em silncio, com o coraoapertado por uma piedade que no sabia dizer se provocada pela av ou pela neta. Naturalmente, baniu-se toda religio de sua educao. Madame Baury era ateia,e tambm eu me tornei descrente. No diga, Slvia! Verdade. De resto, para Anabela, tal como eu a queria, o sentimento religiosopoderia constituir-lhe uma fonte de lutas, de conflitos interiores, talvez de aspiraespara um ideal impossvel. Ao contrrio, ns amoldamos de tal modo, que ocorao e a imaginao so contidos nos mais estritos limites, a fim de que tenhapoucos desejos, e nenhum sonho... Mas tolice!Desta vez, Marnel no pode conter-se: rematada tolice! No se enclausura assim uma alma, um esprito, no se pode

    impedir o desabrochar de um corao... Palavras! palavras! A gente faz o que quer de uma criana e assim se prepara amulher. Fui a causadora da desgraa de Luciana, pelo modo por que a eduquei.Preparo filha uma vida tranqila, sem paixes, dirigindo-a num caminho tododiferente. Logo, dentro de alguns meses, sem dvida, cas-la-ei com um dos meusvizinhos do interior, homem srio, de boa moral! Ela ser uma excelente dona decasa e uma esposa bem acomodada. O que voc sabe a esse respeito? Acaso tem o poder de penetrar o fundo doscoraes, saber o que se passa no desta criana... e muito menos o que ali poderpassar-se, mais tarde? Minha amiga, no compreendo que uma mulher com a suainteligncia tenha agido dessa forma! Um dia, esta alma poder despertar. Da cinza

    com que voc a cobriu, poder brotar uma centelha que se inflamar e destruirtodo o seu belo edifcio.

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    Anabela uma natureza fria, indiferente. Nela, a imaginao sempre foiseveramente refreada. Ora, esta tolice do lar entra, em boa parte, nos sofrimentos,nas paixes humanas. As necessidades caseiras, s quais eu a sujeitei, alm dissoso excelentes para impedir o sonho, as preocupaes sentimentais e outras, numcrebro feminino.

    No sei! Nem sempre! Em todo o caso, minha cara amiga, uma prova terrvelque voc est tentando. E pode ter, para esta criana, consequncias que voc nemde longe imagina. A nica consequncia faz-la uma boa esposa, uma boa dona de casa, numaagradvel propriedade agrcola. Conheo-a bem e sei que se sentir bastante feliz,assim... Agora, Marnel, falemos um pouco de suas viagens. Voc deve terconseguido uma quantidade de documentos para seus futuros trabalhos, no?Nesse instante, na sala de jantar, Anabela estendia a mesa. Com gestos calmos,precisos, rapidamente ela fez o servio. Foi at um aparador e dali tirou umacorbelha de flores e voltou para a mesa. Ali chegada, permaneceu imvel por algunsinstantes, com o rosto inclinado sobre as rosas cor de rubi e de aurora plida. Os

    cerrados lbios tremiam-lhe, bem como as louras pestanas, to leves nasextremidades, de plpebras muito brancas. Depois ergueu a cabea, estendeu osbraos e colocou a corbelha no centro de mesa, guarnecido de velha renda. Sob aluz um pouco velada, seu rosto aparecia tranqilo e frio. Modificou alguns detalhesdo estendimento de mesa, apagou a luz e depois encaminhou-se para a cozinha,onde a rechonchuda Mlanie a recebeu com estas palavras: At que enfim a senhora vem ajudar-me!

    Captulo II - DOLOROSO SORRISO

    Debruada na janela de seu quarto, Anabela olhava a torrente que, em baixo,saltava sobre escarpamentos rochosos. A madrugada cinzenta, quase fria, punha-lhe estremees nos ombros magros, apenas agasalhados por leve echarpe de l.Por vezes, o olhar sonhador se levantava at o castanhal que bordejava o riodefronte. Um pouco mais distante, na direo do caminho em que uma velhapontezinha cruzava o rio, elevava-se uma casa cinzenta, guarnecida de roseiras queenvolviam um encantador e florescente jardim. Um co latia naquele lado e elevava-se o canto de um galo, a que respondiam outros, vindos da vila. Afora o murmrioininterrupto da torrente, eram esses os nicos rudos, quela hora da madrugada.

    Anabela afastou-se da janela. Pareceu hesitar um momento e, depois de abrir aporta, saiu num grande e pavimentado corredor, para o qual dava o seu quarto.Desceu a velha escadaria de pedra, ladeou o abobadado vestbulo e abriu a portade carvalho que rangeu levemente. Alm se estendia um ptio, plantado decentenrios castanheiros. Uma simples cerca de pau separava-a do caminho, logoalcanado pela moa.Era uma estrada bem reta, de um lado bordejada por prados, de outro pelo velhomuro que fechava o jardim de Maison-Vieille. Este se estendia ao longo da torrente,at a ponte sobre a qual passava o caminho que ia ter vila de Astinac.Para esse lado que se dirigiu Anabela. Depois de passar a ponte, o seu olharvoltou-se maquinalmente para a casa cinzenta, Vigne-Rouge, como a chamavam

    em toda a regio, por causa dos magnficos ramos de begnias que, no outono,recobriam suas grades e seus muros. H alguns anos Anabela a vira desabitada,

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    abandonada. Mas agora as portas estavam pintadas, as roseiras bem podadas, ojardim otimamente cuidado. Anabela lembrou-se de ter ouvido a velha Josefina,jardineira da Maison-Vieille, dizer sua av: Atualmente, a Vigne-Rouge est habitada, Madame. Foi um doutor de Paris quea comprou. Creio que pessoa da sociedade. vivo e no tem muitos filhos.

    Nenhum interesse, nenhuma curiosidade se discernia na fisionomia de Anabela,enquanto de passagem ela olhava essa residncia de aspecto sedutor, muito maisque a sombria Maison-Vieille. Abandonando o caminho que descia para a cidade,tomou, esquerda, um atalho que subia em meio do castanhal. Fresca umidadesaia do cho, de sob as rvores do prado, molhado pelas chuvas ininterruptas dosdias precedentes. Anabela aconchegou mais a echarpe tremendo um pouco.O atalho, que desembocava fora do castanhal, acabava num promontrio rochoso,cuja extremidade pendia para a torrente. Urzes cobriam o solo. Mas nesta terraestril, uma faia encontrara meio de deitar razes, desenvolver-se suficientementepara cobrir, com sua folhagem, uma antiga capela, dedicada a So Pedro. Estavamais ou menos reduzida a runas e, por suas estreitas e escancaradas janelas, os

    pssaros ali entravam para fazer os seus ninhos.Anabela sentou-se, encostando-se no portal de forma ogival, por onde trepavamcampainhas. No p do promontrio, a torrente, muito estreita, borbotavafuriosamente e. pouco alm formava uma cascata, cujo barulho perturbava o grandesilncio da madrugada. A charneca se estendia na outra margem, e do promontrioa gente a via, descendo na direo de pequenos vales, meio ocultos pelosescarpamentos granticos ou por bosques cerrados. Alm, o terreno se erguia porprados que nos declives apareciam entre castanhais. No horizonte cinzento ebrumoso, desenhava-se o primeiro plano dos montes que, nos dias claros, tomavamdelicadssimos tons de aquarela.Anabela conservava os olhos fixos na gua ruidosa, saltitante. A plida figuraparecia imersa, absorvida em algum estranho sonho. Que procuraria, naquelafugitiva onda, a moa sem sonhos, sem paixes, a respeito de quem MadameNorand conversara com Feliciano Marnel?Acaso revia seus anos de infncia, ao lado de uma terna, mas frvola me, que asmais das vezes a deixava em mos mercenrias? Ou, ento, os que se lhesseguiram, sob a cruel frula de Madame Baury? Anos sem alegria, sem afeies,todos idnticos. Nem um alimento para o corao, para a alma, para o espirito. Istoporque a instruo que aquela governante seca dera criana, foracuidadosamente desprovida de tudo quanto pudesse emocionar ou dar que pensar.Unicamente datas, fatos, frmulas. Acima de tudo, o trabalho manual, obrigado at

    fadiga, para mastrear o esprito, caso este sentisse a tentao de rebelar-se.Aos treze anos, essa fora a vida de Anabela.As gotas d'gua, desprendidas da cascata bem pertinho, chegavam at moa. Elasentia arrepios na cinzenta umidade desta desagradvel madrugada. Mascontinuava imvel, absorta em sua contemplao quela gua estpida eespumante. Mais de uma vez em anos precedentes, viera sentar-se naquele lugar,sempre solitrio. As pessoas da localidade diziam-no freqentado pelo espectro deum eremita, que outrora havia renegado o seu Deus. Mas Anabela ignorava estalenda; soubesse-a, sem dvida teria sacudido os ombros, com aquela indiferenapara todas as coisas que faziam pensar a Madame Norand "Esta pequena no seinteressa por nada, a no ser pelo seu trabalho quotidiano. Magnfico!".

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    Passava o tempo e Anabela ali permanecia, sempre em sua estranha e sonhadoraatitude. No fazia o menor movimento, a no ser, de quando em quando, o gesto deaconchegar um pouco mais a echarpe.Enfim, levantou-se. Seu olhar perdeu-se, por alguns instantes, na charneca suafrente. Depois, voltou-se e deu alguns passos no cho guarnecido de urzes.

    Nesse instante percebeu, perto da capela, um objeto de cor viva. Aproximando-se,abaixou-se e apanhou-o. Era uma bolsinha de trabalho, de seda vermelha, comdesenhos em contas. Misto de surpresa e contrariedade apareceu na fisionomia damoa. Algum ali viera ter, naquele retiro que havia feito para si. Com um gestoligeiramente impaciente, deixou cair a bolsinha, depois continuou o seu caminhonum andar que denotava lassido moral ou fsica.Tocava o "Angelus" no sino de Astinac. Agora, j se ouviam alguns rudos da vidaquotidiana que despertava. A casa cinzenta no era inteiramente silenciosa. Noinstante em que Anabela passava sua frente, abriram-se janelas no primeiro andare uma voz moa exclamou: Que tempo miservel, ainda hoje!

    Anabela, maquinalmente voltando o olhar para esse lado, entreviu uma cabeafeminina de cabelos escuros, um busto vestido de rosa, e braos nus. Depois,passou, continuando o seu caminho na direo de Maison-Vieille.Ali, tudo ainda estava fechado. Mas no vestbulo, Anabela cruzou com Josefina, ajardineira, que descia de seu quarto. Era mulher de idade, que ainda usava a antigatouca da regio. Sua voz alquebrada disse com doura: Bom dia, senhorita. Dormiu bem, esta noite? Muito bem, obrigada.Com esta simples resposta, Anabela chegou at a escada. Josefina voltou-se parasegui-la um instante, com o olhar compadecido. Ela no est com boas cores, a coitada! disse a jardineira entre dentes.Muito trabalho, jamais um prazerzinho...E, sacudindo a cabea, Josefina encaminhou-se para a cozinha.Em seu quarto, Anabela acabou sua toilette. Quando arrumou a cama e terminou oseu servicinho, de novo foi debruar-se janela. No silencioso castanhal, escutava-se um latido. Um co fraldeiro saltava nas bordas da penedia. Depois, uma vozmasculina, vibrante, imperiosa, gritou: Manik!Saindo de sob a fronde de rvores, surgiu um moo. Anabela distinguiu um rostoclaro, uma cabeleira escura e um olhar vivo que cruzara com o seu. Mas nodemorou que este olhar se voltasse discretamente, e o desconhecido, seguido de

    seu co, desapareceu sob o castanhal.A fisionomia de Anabela continuou indiferente. Durante ainda alguns minutos amoa ali permaneceu, oferecendo o rosto frescura mida que vinha da torrente.Por baixo dela se alongava um estreito terrao, para o qual davam os apartamentos.Ali se localizava o quarto de Madame Norand. Anabela, escutando abrir uma porta-janela, afastou-se e ficou por um momento imvel, no meio do quarto. Suafisionomia estava estranhamente endurecida. Em seu olhar havia uma expresso dequase dio. Voltando-se, abriu a porta e desceu para alcanar a cozinha. Mlanieacabava de acomodar-se diante de uma caneca de caf com leite, e Martim cuidavade imit-la. Na profunda chamin de pedra enegrecida, Josefina enfiava lenha,atiando o fogo que diminua.

    Ali a senhora tem gua quase fervendo disse ela, voltando-se para Anabela.

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    Com um breve agradecimento, a moa tomou a chaleira e se dirigiu para a sala dejantar. Este aposento comprido e cheio de lambris de carvalho abria suas trs altasjanelas para um ptio. Perto da mesa, misse Steverson, de p, acendia umaespiriteira para preparar o seu ch e o caf de Madame Norand.A sua situao, ao lado da mulher de letras, era a de secretria. Quase arruinada

    pelo irmo, bem pouco capaz de ganhar a prpria vida, sentiu-se feliz com ooferecimento de Madame Norand, que se contentava com sua medocreinteligncia, contanto que lhe copiasse corretamente os manuscritos e soubesseescrever, sob ditado, a sua correspondncia. J tomou caf, Anabela? perguntou misse Steverson, colocando a chaleirasobre a espiriteira. No, titia. Mas no h pressa. Alis no estou com vontade.Misse Steverson no insistiu. No se preocupava, em absoluto, com a sade de suasobrinha, nem mesmo lhe percebia o emagrecimento e as faces descoradas.Quando o caf estava pronto, Anabela colocou-o numa bandeja com a manteiga efatias de torradas, por ela mesma preparadas, e depois deixou a sala de jantar.

    Atravessando um corredor pavimentado, foi abrir uma velha porta de carvalho eentrou numa galeria, alumiada por quatro janelas largas.Maison-Vieille era uma antiqussima moradia, outrora residncia dos irmos maismoos de poderosa famlia: os bares de Brandires, cujo castelo em runas selevantava ainda sobre um escarpamento, a cavaleiro da vila de Astinac. Os avs deMadame Norand, originrios de Limousin, compraram-na por ocasio de seucasamento. Um pouco desfigurada por algumas modificaes destinadas a torn-lamais confortvel, entretanto continuava a ser um espcime interessante daarquitetura do sculo XIII. Madame Norand somente lhe ocupava uma parte, pois aconstruo era enorme, em comprimento estendendo-se at a margem do torrencialrio. Da galeria, cheia de velhas tapearias e pavimentada de mrmore branco enegro, a romancista fizera o seu gabinete de trabalho. A galeria comunicava-se comum salo que, por uma porta envidraada, abria para um terrao bordejando atorrente.Quando Anabela entrou, Madame Norand, de p e perto de sua escrivaninha,conversava com Josefina que, sem dvida, vinha pedir-lhe instrues a respeito dahorta, pois que lhe respondia: Arranje um outro jardineiro, se for verdade que esse Justino bebe. Conhecealgum? Sim, um homem trabalhador que entende do ofcio. Penso que poder trabalharaqui algumas horas, embora sempre tenha ocupao na Vigne-Rouge. O doutor

    Brennier cuida muito de seu jardim, pelo que vejo... O doutor Brennier? de Paris, voc me disse? Sim, senhora. Conheci, h alguns anos, um mdico com esse nome. Acabava de casar-se denovo e tinha vrios filhos. Esse vivo, pela segunda vez, conforme me disseram. Por causa de sua sade que veio passar no campo alguns meses. As filhas tm o aspecto magnfico deacordo com a sua idade.Anabela silenciosamente disps a taa, a cafeteira e o prato com as fatias detorradas num canto da grande escrivaninha de velho carvalho. Ao entrar,cumprimentara a av com uma inclinao de cabea, qual Madame Norand

    respondera com um ligeiro gesto de mo. Como tencionasse retirar-se, uma vozbreve lhe ordenou:

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    Espere... Josefina, quero que este ano mademoiselle Anabela aprenda como sedeve tratar de galinhas. Encarrego-a disso. Comece logo, esta manh mesmo. Sim, senhora respondeu Josefina. Acompanhe a Josefina at o quintal, Anabela. Mas, antes disso, mande-meGraa.

    Expedida a ordem, Madame Norand sentou-se a sua escrivaninha. Anabela saiu,seguida de Josefina. Esta, depois de fechada a porta, indagou: Agrada-lhe, senhorita, cuidar de galinhas? Se me agrada?Naqueles lbios plidos esboou-se uma espcie de sorriso, um estranho edoloroso sorriso, mais doloroso de se ver do que lgrimas. Isso no vem ao caso. Voc deve saber, Josefina. Sim, eu sei murmurou tristemente a velha jardineira.

    Captulo III-

    UM SONHO

    Durante sua estada em Maison-Vieille, Madame Norand costumava diariamente darum passeiozinho pelos arredores. Assim foi que, oito dias aps a sua chegada, elase encontrou com o doutor Brennier, acompanhado de um de seus filhos, um lindomenino de seis a sete anos. Alguns anos antes j o encontrara, em casa de uma desuas amigas, Madame Blivant, com quem ele era um pouco aparentado. Ambospararam, trocaram um aperto de mo e algumas palavras. O mdico explicou-lheque fora obrigado, por motivo de sade, a deixar uma parte de sua clientela ao filhomais velho, e resolvera passar toda aquela linda estao no campo. Para mim no um sacrifcio acrescentou ele porque gosto imensamentedesta regio onde nasci. Cuidar de jardim coisa que me interessa muito, e, decarro, posso fazer longos passeios. Mas suas filhas, que dizem de tudo isto? Mormente elas, parisienses? Antonieta e Regina, respectivamente a mais velha e a terceira, esto encantadascom esta vida. Danielle, por enquanto no a acha desagradvel, mas certamenteficar contente de voltar, em outubro, a Paris e aos seus estudos de direito... Umavez que somos vizinhos to prximos, Madame, permite que eu v apresentar-lheos meus filhos? Pois no. Com muito prazer irei conhec-los. Bem, doutor, at breve.Com tais palavras, Madame Norand se despediu de seu interlocutor, aps ter

    respondido com um breve "boa tarde, pequeno", ao cumprimento do menino. Essa senhora no nada afvel observou o pequeno. Silncio, Luiz! Voc no deve fazer observaes dessa natureza.Contudo, o mdico pensava consigo mesmo: " No, a sua cara no agrada. Noacredito que sejam freqentes, .entre ns, as visitas".Quando de regresso, ele contou a suas filhas o encontro que teve. Danielle,mocinha morena e viva, de olhos risonhos, exclamou: Ora, papai, essa Madame Norand nada me significa. Por mais eminenteromancista que seja, no me interessa em absoluto conhec-la. O nico livro seuque li, deu-me calafrios. bem provvel que nossas relaes se limitem a essa visita, minha querida filha.

    Mas de jeito algum podemos evit-la, morando to perto dela.

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    At agora ainda no vimos sua neta. voz corrente, na vila, que vive presa e no feliz.Quem assim falava era Regina, a caula. Um pouco mais alta que Danielle, os seustraos eram mais finos, os olhos lindos, negros, francos e alegres. Perto dela,ocupada a dar de comer pequena Michelle, a ltima filha que havia custado a vida

    segunda mulher do doutor, estava Antonieta, a mais velha de todas, perto dostrinta anos. Em seu pensativo semblante, j um pouco gasto, trazia vestgios decuidados, de que fora prdiga sua juventude.Foi ela quem ajuntou, com alguma tristeza na voz: Essas senhoras, ao que parece, no pem os ps na igreja. A est um motivopara no nos aproximarmos muito. Evidentemente no disse o mdico. Assim, repito, as nossas relaes selimitaro a essa visita, qualquer dia destes. Enquanto no chega o dia, vamos passear. Onde est Roberto? Presente! respondeu uma voz sonora e mscula.No limiar de uma porta envidraada estava o homem que Anabela entrevira, na

    manh de sua chegada, beira do castanhal. Escutei que falavam de nossos vizinhos. Apenas cruzei com Madame Norand,em meu caminho, mas a primeira vista ela me pareceu pouco simptica. A neta, queesta manh percebi numa janela, conforme lhes contei, pareceu-me bonita, masbem triste e plida. o que todos dizem na vila. Pobre pequena! Mesmo antes de conhecer essaMadame Norand, j a detesto! disse a impetuosa Danielle. Tambm eu a detesto! declarou gravemente o Luizinho.Roberto ergueu o menino e teve-o, por alguns instantes, em seus braos. Tambm este frango d o seu parecer! Outra vez, esperem que peam, Lulu... Eagora, minhas queridas primas, a caminho!Nesse instante, Anabela se dirigia para a capela de So Pedro. Madame Norandautorizara-a a dar, diariamente, um passeio, com a condio de levar trabalho efaz-lo quando parasse para descansar. Assim que chegou ao promontrio rochoso,sentou-se quase na extremidade, sobre uma pedra chata, e tirou de sua bolsa otric.Naquele dia a gua torrencial cintilava, batida pelo sol vivo de junho. No longnquoazulado, os montes recortavam o seu perfil em ligeiras tintas. Anabela, envolta emluz, todavia conservava seu semblante triste de aborrecimento, de lassido. quelapele fina, de uma delicadssima brancura, o calor no comunicava nenhum rosado.Com os lbios cerrados e o corpo inclinado, fazia o seu tric com um movimento

    regular, maquinal, somente parando, de quando em quando, para segurar o novelode l cinzenta que estava prestes a escorregar pelos seus joelhos.De repente um rudo de voz quebrou o silncio. Vrias eram as vozes e jovens, enumerosos os passos. Anabela levantou a cabea. Seu olhar estava estupefato. Eviu aparecerem no promontrio, duas moas, um moo e um menino. Voltando acabea, de novo se absorveu em seu trabalho. Mas uma ruga de contrariedade sedesenhava no canto de seus lbios. Onde acamparemos, Regina? perguntou o moo. Perto da capela. Ficaremos na sombra.Inclinando-se para as suas primas, Roberto disse em voz baixa: Reparem, l est a neta de Madame Norand.

    Ah! Mas no se pode v-la bem, sentada como est. Disfarce o olhar, Danielle; incomod-la-amos observou Regina.

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    Os excursionistas acomodaram-se na grama que cobria o cho, em redor da capela.As moas tiraram o lanche, auxiliadas pelo primo. Todos conversavam alegrementee suas vozes joviais chegavam at aos ouvidos de Anabela. A cabea loura seabaixava cada vez mais e a delgada figura tornava-se rgida. Sob os cliosabaixados, os olhos tinham uma expresso de pungente amargura, quase de

    revolta.Luizinho, o lindo menino de cabelo escuro e anelado, divertia-se obrigando aslagartixas a sarem de sob as rochas, que emergiam aqui e ali, no solo. Quandocorria em perseguio de uma delas, aproximou-se de Anabela. O animalzinhoincontinente fugiu at a extremidade do promontrio. Luizinho ia cair no abismoquando Anabela, bruscamente estendendo a mo, o segurou pelo brao e atirou-opara trs. Mas, arrastada pelo menino, ela caiu do outro lado. Sua cabea bateunuma rocha, e a moa perdeu os sentidos.Quando voltou a si, notou todas aquelas pessoas estranhas que a olhavam cominquietao. Sua cabea repousava no brao de Regina, ajoelhada a seu lado. Seuolhar cruzou com o do moo, bastante emocionado e visivelmente ansioso.

    Que me aconteceu? indagou Anabela, fracamente. Quase nada. A senhora feriu-se um pouco na cabea, ao salvar o nosso Luizinho respondeu a voz doce de Regina. Vamos fazer-lhe um curativo provisrio elev-la-emos a nossa casa, onde podemos medic-la convenientemente.Passivamente, Anabela deixou-se medicar. Semicerrou os olhos, tamanha a suafadiga. Mas quando Danielle e Roberto pretenderam tom-la nos braos para lev-la, a moa declarou: No, irei andando, quero ir andando. Ento, apoie-se bem em mim, senhorita disse Roberto.Com o auxlio daquele brao forte, que a sustentava to bem, Anabela podealcanar Vigne-Rouge. Como num sonho, ela atravessou o jardim, entrou numvestbulo claro e depois num encantador salo decorado com elegante simplicidade.Antonieta, em duas palavras posta ao corrente do sucedido, fez com que adeitassem num diva. O mdico no demorou; examinou a ferida, que declarou semgravidade. Regina preparou um penso, enquanto Antonieta foi buscar um copo devinho de Espanha, que Anabela bebeu lentamente. Ela conservava aquela atitudepassiva, como que de alquebramento, a qual causou estranheza ao doutor Brennier,pois ele disse ao ouvido do sobrinho: estranha, esta menina! A ferida no nada, mas ela parece singularmenteenfraquecida.Roberto no despregava, da acidentada, o olhar de compadecido interesse. De fato,

    era delicada e linda esta moa. Mas que semblante triste e que tristeza mornanaqueles lindos olhos azuis! Descanse, minha filha. disse o mdico Fique a, bem tranqila. Logo alevarei, de carro, para a casa de sua av. Conheo um pouco Madame Norand.Sem dvida, ela j lhe falou sobre isso, no? No, no me disse nada.A resposta caiu lenta e indiferente dos lbios plidos de Anabela. Ah!... Inda hoje a encontrei e esperava visit-la para apresentar-lhe minhas filhas,num dia qualquer. Mas onde est o Luiz? preciso que ele venha agradecer senhorita, que lhe salvou a vida. Estou aqui, papai.

    O menino adiantou-se, sem despregar de Anabela os olhos tmidos e curiosos.

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    No fosse ela, voc cairia na gua, todo rasgado pelas rochas, e ns, nschoraramos o nosso Lulu. Oh! papai!A criana ergueu para o mdico uns olhos repentinamente cheios de lgrimas. a pura verdade. De modo que voc deve ficar sempre reconhecido, como ns

    estamos, quela que o segurou, com risco da prpria vida, pois voc poderiaarrast-la.Num gesto espontneo e encantador, Luiz precipitou-se na direo de Anabela epousou-lhe numa das faces seus lbios frescos. Muito obrigado, senhorita! disse ele, com a sua voz clara.A fisionomia da moa teve um estremecimento. Um vislumbre de emoo mudou,de repente, o seu olhar, dando-lhe um pouco de vida. Anabela disse, a meia voz: Oh! no foi nada... Sinto-me feliz por t-lo salvo, mas no foi nada. Pensamos de modo diferente, senhorita! Mas vamos deix-la repousando umpouco. Entretanto, meu sobrinho vai buscar o carro e, desde que se sinta um poucomais forte, eu a levarei a Maison-Vieille.

    Todos se retiraram, com exceo de Regina que ficou sentada, no muito longe damoa.No aposento vizinho, Antonieta perguntava: O senhor no a acha bem, papai? No. Sob o ponto de vista da sade, essa pequena no vai bem. Acima de tudo,extremamente anmica. Depois, deve existir qualquer coisa do lado moral. Vouconversar com Madame Norand. Por mais severa que se mostre para com a neta,segundo parece, no pode recusar-se a trat-la, se for preciso.Um quarto de hora mais tarde, Anabela disse que se sentia suficientemente forte e omdico f-la subir no carro, guiado por Roberto.As senhoritas Brennier apertaram aquela mo magra, dizendo-lhe amistosamente:"At logo". Anabela respondeu-lhe com um vago sorriso, doce e triste. E pensava:"At logo?" No, ela no havia de querer.O curto trajeto foi feito num abrir e fechar de olhos. Roberto parou diante doportozinho de Maison-Vieille e saltou em terra, a fim de abri-lo. Ofereceu a mo moa, para ajud-la a descer. De novo, Anabela cruzou com aquele olharcompadecido, de emocionado interesse que inda h pouco notara. Depois, o doutorBrennier segurou-a pelo brao, a fim de que ela pudesse apoiar-se no seu e, compassos fortalecidos, a moa atravessou o ptio e entrou no vestbulo. Quero falar com sua av, minha filha. fcil, senhor. Precisamente a vem o criado... Martim, v anunciar o doutor a

    Madame Norand.Com estas palavras, ela cumprimentou ligeiramente o proprietrio da Vigne-Rouge edirigiu-se para a escada, cujos degraus comeou a subir vagarosamente."Que moa singular!" pensava o doutor Brennier, enquanto seguia o criado que ofizera entrar num salo de teto enxadrezado e paredes recobertas de antigastapearias. Vou avisar Madame disse-lhe Martim.O criado voltou logo e conduziu o visitante galeria vizinha. Madame Norand,sentada perto de sua escrivaninha, estendeu-lhe a mo, enquanto ele lhe explicava: Acabo de trazer sua neta, Madame. Inda h pouco ela salvou da morte o meupequeno Luiz.

    Em poucas palavras, o doutor narrou o acidente. Madame Norand escutava-o, comas sobrancelhas ligeiramente contradas. Por fim, notou, com indiferena:

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    Sinto-me feliz porque a presena de esprito de Anabela lhe evitou essadesgraa. Sempre lhe devotaremos eterna gratido! Quanto ferida na cabea, creio queser coisa de nada. Se a senhora quiser, virei v-la amanh. Pois no, doutor.

    O que me parece inquietador em sua neta um certo estado de fraqueza quelogo verifiquei. Essa menina est muito anmica. A sua fisionomia no boa, mas a sade tima. Hum! No creio. A senhora me permite examin-la, seriamente, e dizer-lhe emseguida o que observei? Pois no, doutor. Deposito inteira confiana em seu valor profissional, que muitasvezes ouvi elogiarem. Ento, voltarei amanh de manh. At l, bom que a menina fique de cama,para melhor passar essa pequena comoo. Farei com que se deite.Com estas palavras, Madame Norand mudou a conversa para outro assunto. O

    doutor Brennier no se demorou, e minutos depois de novo subia no carro, onde oesperava o sobrinho. No parece nem um pouco amorosa, essa av! disse ele, enquanto Robertose punha a caminho Pois acha que a menina tem tima sade! Amanh, hei deprovar-lhe justamente o contrrio! O senhor voltar para ver essa pobre mocinha? perguntou Roberto, cominteresse. Sim! preciso cuidar dela, e no sem tempo, tenho certeza.Em seu quarto, onde penetrava o ar quente deste fim de tarde ensolarada, Anabelaestava sentada numa pequena poltrona antiga, de espaldar direito e com entalhes.O fatigado corpo inclinava-se um pouco e uma das mos apoiava o enlanguescidorosto. Com os olhos semicerrados, revia em pensamento tudo o que acabava de sepassar. Era uma espcie de sonho, a que as vezes se entregava, e do qualdespertava mais amargamente triste, mais secretamente desesperada.Um sonho... Aqueles encantadores desconhecidos, aquelas lindas e felizes moas,este homem de semblante paternal, aquele lindo menino que a beijara... Umsonho... principalmente aqueles olhos escuros, onde vira to doce compaixo, e quea olharam com tanta piedade. Tanta piedade! Sim, certamente ele podiacompreend-la, aquele jovem desconhecido, pois Anabela Steverson h muitotempo padecia seu martrio moral, sem auxlio, sem consolao, sem esperana.Uma lgrima deslizou das plpebras da moa e caiu, pesada, escaldante, em sua

    plida face.

    Captulo IV - ANEMIA FSICA E MORAL

    A anemia pronunciada e o corao est fraco. Mas o que acho inda maisinquietador, uma espcie de atonia moral, de indiferena por todas as coisas.O doutor Brennier, aps ter examinado Anabela, dava parte a Madame Norand doresultado do exame.Esta lhe respondeu friamente:

    Essa indiferena faz parte da natureza de Anabela. Desde que vive comigo,sempre a demonstrou.

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    Verdade? estranho. Mesmo porque essa moa parece triste, singularmentetriste. Triste?Madame Norand olhava o seu interlocutor, com evidente surpresa. Nunca notei isso. Fria e taciturna, sim. de sua natureza.

    Entretanto, tenho a impresso que o moral est to enfermo quanto o fsico. E,mesmo, essa pode ser a causa do enfraquecimento que verifiquei.Madame Norand permaneceu silenciosa por alguns instantes, com as sobrancelhasunidas, os lbios cerrados. Depois, perguntou brevemente: O que acha que devemos fazer? Dar-lhe alguns fortificantes, suprimir todo trabalho fatigante e faz-la respirarbastante ar, isso quanto ao fsico. Quanto ao moral, coisa mais delicada. Antes demais nada, preciso estudar a enferma, encontrar a razo desse estado de apatia.Algumas distraes seriam indispensveis. Distraes tranquilas, naturalmente. De fato, no creio que o senhor v aconselhar "dancing" ou o cinema. Alis, tudoisso seria perfeitamente intil.

    A ironia seca desta resposta impressionou desagradavelmente o doutor Brennier.Mau grado seu, firmou-se num tom de voz inda mais frio para retorquir: O "dancing", no. Quanto ao cinema, se no estivssemos no campo, eu nodiria no, de quando em quando, uma vez que se escolhesse o espetculo. Masno se trata disso. Em compensao, nesta linda estao do ano passeios de carroso indicados. No tenho carro. De muito boa vontade, eu me incumbirei de lev-la a algumas excurses comminhas filhas. Vou pensar nisso. Obrigada, doutor, pela consulta. Sinto-me bastantereconhecida. Eu que me sinto infinitamente grato sua neta, Madame. De modo que estousempre sua disposio.Minutos aps, encontrando-se de novo em meio de suas filhas, que lhe pediramnotcias de Anabela, o doutor declarou: Essa criana no ter muito tempo de vida, se continuar com a existncia queleva. Principalmente do lado moral, como tive ocasio de dizer av, ela me parecemais atacada. Contudo, a mim mesmo pergunto se Madame Norand querercompreender isso. Oh! papai, o senhor cr em tal coisa? indagou Regina Que situaohorrvel!

    O doutor sacudiu a cabea. Essa mulher me d a impresso de uma completa indiferena a respeito da neta.Quanto a esta, pobre criana, me causa d! Interroguei-a um bocadinho, tentei faz-la falar, mas permanece numa reserva glacial. Parece emparedada numaindiferena sob a qual, no entanto, por vrias vezes acreditei sentir um padecimentoque palpitava, que no ousava revelar-se... Sabem onde quero chegar, meus filhos?Em fazer com que vocs sejam amigos daquela pobre criatura, seus bons anjos emeus auxiliares nessa obra de cura, admitindo-se que Madame Norand me autorizea prosseguir. Oh! querido papai, ns nos sentiremos to felizes! disse Antonieta comarrebatamento.

    E suas irms aprovaram-na calorosamente.

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    Naquela manh, aps a partida do doutor, Anabela vestiu-se, depois desceu paraentregar-se aos seus trabalhos habituais. hora do almoo, ela apareceu na salade jantar e, depois de ter cumprimentado a av, foi sentar-se a uma dasextremidades da mesa. Misse Steverson ocupava a outra. De ordinrio, MadameNorand jamais dirigia a palavra neta durante as refeies e parecia ignorar-lhe

    completamente a presena. Mas hoje, desde a entrada, envolveu-a num olharinvestigador, depois continuou a examin-la, enquanto Martim comeava a servir. Por que come to pouco, Anabela? perguntou de repente, vendo-a recusar umpedao de frango que o criado lhe oferecia. No tenho fome, vov.A moa no parecia ter percebido o exame de que fora objeto. Conservava os olhossemi-abaixados e respondeu av sem a olhar.Madame Norand voltou-se para misse Steverson: Graa, apanhe, depois, em minha escrivaninha a receita que o doutor deixou eleve-a ao Louvagne, para que ele mande preparar o remdio numa farmcia.O almoo terminou em silncio. Mas quando Anabela se levantou para sair,

    Madame Norand lhe disse: Autorizo-a a descansar na tarde de hoje. Pegue num trabalho de agulha e vsentar-se no jardim. Amanh, poder levantar-se mais tarde. Sim, senhora, vov.Aquela resposta fria, lacnica, saiu dos lbios apenas entreabertos de Anabela.Enquanto ela deixava a sala de jantar, misse Steverson perguntou timidamente, poisMadame Norand lhe impunha grande respeito: O doutor no a acha bem, Madame? a sua opinio. Contudo, ela no tem bom aspecto, e no comeu quase nada.Mas na sua idade isso no tem importncia. Oh! no, certamente que no tem importncia! apressou-se misse Steverson aconcordar, sempre pronta para aprovar aqueles a quem temia.Na tarde do dia seguinte, Madame Norand foi a Vigne-Rouge. Recebeu-a Antonieta,e s depois o doutor e Regina chegaram. Danielle achava-se, naquele dia, emUzerche, aonde fora ter de bicicleta, para fazer algumas compras. Conforme lhe disse, doutor, refleti bastante. declarou Madame Norand Creio, de fato, que minha neta tem necessidade de ser tratada um poucoseriamente e ficaria satisfeita se o senhor quisesse disso se incumbir. Com o maior prazer. Irei v-la amanh e comearemos adequado tratamento.Para comear, uma srie de injees fortificantes. Algum, em sua casa, sabeaplic-las?

    No, ningum. Nesse caso, se a senhora consentir, uma de minhas filhas se encarregar disso. Como no, mas ser incmodo para essas moas... Em absoluto! disse vivamente Regina Sentir-nos-emos muito felizes de ser-lhe teis, Madame.. e pensava: "Mas principalmente para suavizar um pouco, dolado fsico e talvez ainda mais do lado moral, os padecimentos dessa pobre moa".Regularizando tudo, Madame Norand se entreteve ainda durante algum tempo como pai e as filhas. Apresentaram-lhe Luiz e Michelle, os dois filhos nascidos dosegundo casamento do doutor Brennier. Quando ela deixou Vigne-Rouge, pensoucom satisfao que aquelas moas, que pareciam to srias, boas donas de casa ede modos simples e corretos, no poderiam exercer influncia desfavorvel sobre

    Anabela. Alis, projetava pedir a Regina, diplomada pela Cruz Vermelha, que

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    ensinasse neta a cincia de enfermagem. Seria uma coisa particularmente tilpara uma pessoa destinada a viver no campo.Enfim, um outro ponto havia feito pender a balana para o lado das relaes com osvizinhos da Vigne-Rouge: dos dois filhos mais velhos do doutor, um, alis casado,era mdico em Paris, e o outro, oficial, na ocasio se encontrava num posto

    marroquino. Ora, por pouco disciplinada que fosse a imaginao de Anabela, queparecia um tanto fria, insensvel, Madame Norand achava que era melhor prevenirtodas as surpresas. O futuro da neta por ela lhe fora traado, e dentro de muitopouco tempo Anabela disso seria informada.Quanto a Roberto Arlys, o sobrinho do doutor, estava fora de cogitaes. Faziaalguns dias que ele regressara a Paris, e Madame Norand ignorava que Anabela oconhecesse. Durante a visita que acabava de fazer-lhes, nem o doutor, nem seusfilhos tiveram ocasio de falar-lhe a seu respeito, de modo que nem lhe suspeitava aexistncia.Assim foi que, sem inquietao, ela voltou para casa. misse Steverson, ocupadana mquina de escrever, Madame Norand perguntou:

    Onde est Anabela? No jardim, Madame. V dizer-lhe que o doutor vir amanh de manh. Que fique deitada at que odoutor chegue.Misse Steverson levantou um olhar vagamente inquieto. Verdade, ela est to doente assim?Acaso acredita que, se no tivesse nada, eu me incomodaria? perguntoubruscamente Madame Norand. Sei que o doutor Brennier um homem srio, deelevada conscincia, e que posso confiar nele. Que h, Martim? O senhor Brlard veio h pouco visitar Madame. Disse que voltar mais tarde. Ah! bem! Voc, prepare vinho fino e alguns bolos. A senhorita Anabela que nosservir.Depois, mudando de idia, acrescentou: No, voc mesmo servir. E ela pensava: "Essa pequena agora est com mauaspecto. Melhor que ele a veja quando estiver melhor".

    Captulo V - REPAROS

    Sente-se bem? O ar no a fatiga?Inclinada sobre Anabela, Regina interrogava-a, sorrindo. As duas se encontravamatrs, no assento traseiro do torpedo, guiado por Danielle. Perto desta, estavasentada Antonieta, com Michelle nos joelhos. Entre Anabela e Regina, acocorava-seo Luizinho. Oh! no! Est to agradvel!Vagarosamente, Anabela respirava o ar puro que batia em seu macilento rosto. Odoutor havia prescrito, para esse dia, um passeio depois de quatro dias de repousono quarto, durante os quais Regina viera diariamente fazer injees na enferma.Durante esse tempo no lograra adiantar um passo no conhecimento desta almafechada. Anabela agradecia-lhe polidamente, respondia com laconismo sperguntas discretas que lhe eram feitas sobre suas ocupaes e sobre seus gostos.Percebiam-na emparedada em obstinada reserva. Mas, hoje, algo parecia que nela

    se afrouxava. Aqueles cansados olhos se animavam ligeiramente, ao percorrer apaisagem que se descortinava: riachos espumantes, desfiladeiros enfeitados de

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    verdura, castanhais dourados por um vivo sol que, alis, no os queimava. Luizinhodizia: Olhe, olhe, senhorita, como tudo isto bonito! Repare alm, naquele castelo...Seu dedo apontava para as velhas runas que se levantavam sobre altiva rocha.Anabela dizia, em voz sonhadora:

    Sim, lindssimo... lindssimo...Sua mo, um tanto escaldante, pousava na do menino. Os lindos olhos azuis deLuiz examinavam-na com piedade. Regina havia dito ao irmo: preciso que voc seja bem delicado para aquela pobre moa. Primeiro, porqueela o salvou; depois, porque est doente e infeliz.E o menino, com ingnua graa, tinha certas liberdades que, por vezes, provocavamum leve sorriso naqueles tristes lbios."Conseguiremos conhecer um pouco esta alma, para, benefici-la?" pensavaRegina. "Algum dia ela se abrir para ns?"Mais ou menos s quatro horas, os excursionistas pararam perto de um castanheiroe se acomodaram numa clareira, para lanchar. Anabela sentou-se perto de

    Antonieta, no cho coberto de grama, ao passo que Regina e Danielle se ocupavamcom um cesto de provises. Luiz veio colocar sobre os joelhos de Anabela umpequeno guardanapo e ps a seu lado um copo de alumnio. encantador, o seu irmozinho disse Anabela em voz baixa.Antonieta sorriu. Sim, um bom menino, um excelente corao. Obediente, como poucos. Meupai, s vezes, faz um pouquinho de "enfant gt" com ele. Meu primo Arlys quetem influncia sobre o pequeno. Conhece-o? Estava conosco, quando vocsocorreu o Luiz. Sim. Mora com vocs? . Foi passar quinze dias em Paris, onde o reclamavam seus negcios, pois advogado no frum. Mas voltar logo a Vigne-Rouge, para aqui passar mais algumtempo. Esse nosso primo um carter, uma alma de "elite" e compassiva e aomesmo tempo uma grande inteligncia. J est clebre nos tribunais e por certo farexcelente carreira. Alm disso ocupa-se bastante de obras sociais e um dos maiszelosos jovens animadores catlicos.Anabela tinha entre os dedos uma haste de gramnea, que dobrava distraidamente.Permaneceu por alguns instantes pensativa, e depois perguntou: Vocs so crentes? Sim, sem dvida! E voc? No tenho religio.

    S havia indiferena no tom desta resposta. batizada? No sei. E essa descrena, no lhe parece cruel?... esse vazio na alma?Anabela volveu seus olhos tristes para Antonieta. Esse vazio na alma? Sim, isso... o vazio, o tdio.As palavras caam lentamente, com um tom de sombria dor. No se aborrece, s vezes, Antonieta? Raramente. Tenho muita ocupao. Voc, tambm, tem muito trabalho?Oh! sim, trabalho! Mas s isso... Voc... voc tem seu pai, suas irms, seuirmozinho. E eu, nada.

    E sua av, sua tia?

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    Anabela enrijeceu-se completamente. O olhar tornou-se duro, a voz um poucorouca, ao repetir: Eu, eu no tenho nada.Antonieta no insistiu. Acabava de soerguer o vu e entrever algo dessepadecimento que devia assolar a alma daquela infeliz. Pouco a pouco, sem dvida

    seria possvel tratar daquela pobre alma, cur-la.A palestra jovial e inteligente das filhas do mdico e a alegria de Danielle e deRegina pareciam causar algum efeito em Anabela, e quando ela desceu do carro,em Maison-Vieille, as mas do rosto j no tinham aquela brancura doentia, nemseus olhos aquela expresso de cansao, que fazia com que o doutor Brennierdissesse: Isto no me agrada, nem um pouquinho.Quando as filhas lhe contaram a tarde que passaram, e Antonieta lhe repetiu suacurta palestra com a jovem vizinha, ele declarou: Tudo isso corrobora o meu diagnstico: a alma est mais anmica que o corpo. Avocs que cumpre dar-lhe os necessrios cuidados, minhas filhas; com vocs ela

    se entender melhor do que comigo.Durante o jantar, naquela tarde, Madame Norand perguntou: Anabella, voc saiu a passeio com as filhas do doutor? Sim, vov. So amveis com voc? Muito amveis. Sobre o que conversaram? No sei mais. Como, como no sabe mais? No sei, no me lembro... Elas que falavam. Eu, eu no tenho o hbito...Conforme seu costume, Anabela respondeu num tom de voz cansado, indiferente,sem olhar para a av. Timidez, ou receio de no poder ocultar-lhe o que se agitavaem sua alma, prisioneira de um implacvel sistema de educao?Coisa singular, Madame Norand jamais lhe fizera observao a esse respeito. Elaprpria parecia evitar um encontro com o olhar da neta e, muitas vezes, servia-se demisse Steverson como intermediria. Hoje, entretanto, observou-lhe secamente: Por que abaixa os olhos, desse jeito?Anabela ergueu as azuladas plpebras. Entre os clios louros, os olhos cor devioleta se fixaram, por alguns segundos, nos de Madame Norand. Estesestremeceram ligeiramente, afastaram-se e, com a mo um pouco nervosa,Madame Norand pegou uma fruta na fruteira que Martim acabava de por sua

    frente.Misse Steverson nada notara e tranqilamente continuou a saborear a suasobremesa.

    Captulo VI - DEUS OLHAVA POR ELA

    Quando, dez dias mais tarde, saa de Maison-Vieille para ir a Vigne-Rouge, Anabelacruzou no ptio com o senhor Brlard, o dono da propriedade de Bournizel. Emanos anteriores, por vezes o vira, quando ele vinha fazer uma visita a Madame

    Norand, que o havia conhecido menino. Brlard cumprimentou a moa depassagem, encarando-a com alguma insistncia. Anabela virou o rosto e apressou

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    um pouco o passo. Este rapaz alto e forte, de rosto queimado e espessos cabelosnegros, desagradava-lhe profundamente, sem que ela soubesse a causa dessaantipatia.Atravs do caminho ensolarado, a moa se encaminhava para a casa do doutorBrennier. Quase que diariamente fazia esse percurso. Seu rosto tornara-se menos

    plido, os lbios se tingiam de um leve rosado, as olheiras tendiam a desaparecer.No olhar, havia um pouco mais de vida, quando Anabela se achava entre suasamigas de Vigne-Rouge. Entretanto, ainda no revelara o segredo de sua alma,continuava fria e impenetrvel, salvo quando, s vezes, respondia a um gestoafetuoso do Luiz ou, ento, ao escutar, tocada por Regina ou transmitida pelogramofone, uma dessas obras musicais cuja beleza jamais perece.Quando as filhas do doutor no a levavam a qualquer passeio, ela ficava entre asmoas, ocupada com algum trabalho de agulha. Antonieta lhe ensinara o bordado,que aprendeu com grande facilidade. Regina lia algum livro, escolhendo nas obrasliterrias de fundo moral, o que podia comover, tocar nesta alma secreta. Por vezestentava saber o que Anabela pensava sobre o assunto de tal trabalho. Mas esta se

    limitava a dizer: No estou a par de nada.As moas tinham a impresso de que Anabela no quisesse, nem talvez soubessenelas confiar, pelo longo hbito de recolhimento, de implacvel clausura.Naquela tarde, quando Anabela apareceu no jardim de Vigne-Rouge, Luiz, que aespiava, correu em sua direo. Bom dia, senhorita! Oh! estou to contente!E apresentou-lhe seu rosto, animado, para o beijo do costume. Roberto chegou! Ah! disse Anabela.J ouvira, muitas vezes, suas amigas falarem de Roberto Arlys. Sabia-o rfo desdea infncia, e que encontrara em casa do tio um verdadeiro lar. Quanto s suasqualidades morais, aos seus dons intelectuais, Antonieta, Regina e Danielle oselogiavam, sem reservas. Venha depressa ver as lindas ferramentinhas que ele me trouxe, para eutrabalhar em meu jardim!Luiz pegou na mo da moa e levou-a atrs da casa, na direo da lea arborizada,onde estavam dispostos os bancos e as mesas de jardim. Roberto, que conversavacom Regina, levantou-se ao aparecimento de Anabela e deu alguns passos em suadireo. Fiquei satisfeito de saber, por minhas primas, que a sua ferida e o seu mal-estar

    no tiveram conseqncias aborrecidas

    disse aquela voz vibrante, bem timbrada.- No senhor, nem um pouquinho. Muito ao contrrio.Que havia naqueles olhos de um azul to raro, que se encontravam com o olhar deRoberto? Timidez? Doura um pouco receosa? Um misto de frieza e de vagaemoo? Regina lhe dissera: Essa moa um tanto enigmtica.E Roberto pensou que seria interessante decifr-la. Muito pelo contrrio? repetiu Regina, sorrindo Por que? Porque tive ocasio de conhec-la.Era a primeira vez que Anabela pronunciava uma frase desse gnero,testemunhando que suas relaes com as jovens vizinhas lhe proporcionavam certo

    contentamento.

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    Oh! nesse caso, todas ns estamos de acordo! Minhas irms e eu nos sentimosfelizes por v-la readquirindo sade. De que serve isso?Subitamente, uma sombra cobriu o olhar de Anabela, um vinco de amargura se lhedesenhou no canto dos lbios.

    Como, de que serve isso? Acaso achava agradvel sentir-se fatigada,enlanguescida como estava quando a conhecemos? Isso no poder durar muito tempo disse Anabela em voz baixa.E abaixou um pouco as plpebras, enquanto sua boca tremia ligeiramente.Luiz veio-lhe ao encontro, nesse instante, trazendo as pequenas ferramentas dejardim que desejava faz-la admirar. Depois, Antonieta e Danielle apareceram eanimou-se a conversa, habilmente dirigida por Roberto e por suas primas. Anabelapermanecia silenciosa, respondendo s quando diretamente lhe dirigiam a palavra.Mas escutava com um interesse que comunicava vida nova ao seu olhar. Parece, senhorita, que vo ter um hspede em Maison-Vieille? disse derepente Roberto. Encontrei-me, outro dia, com Feliciano Marnel, o escritor, o

    viajante, que foi condiscpulo e amigo de meu pai. Contou-me que na semanaprxima aquiescer ao convite de Madame Norand e vir passar umas duassemanas em sua companhia. Ah! No sabia. Sua av no lhe disse nada a esse respeito? perguntou Antonieta. No. Dois dias antes da chegada desse senhor, se eu for a encarregada dearranjar-lhe o quarto, ela me dar ordens nesse sentido. assim... De fato, assimque sempre se passa.A voz, a princpio fria, carregou-se de amargura. O olhar tornou-se duro, hostil. Erauma Anabela desconhecida, que assim se revelava.Regina, que estava perto, docemente lhe tomou a mo um pouco crispada. Minha pobre amiga! Compreendemos bem que voc no feliz, que sua av atrata com muita severidade...Os lbios de Anabela crisparam-se, abrindo-se num sorriso de ironia. Oh! no. No vocs que amam, vocs que cuidam de fazer a felicidade dosoutros, no podem compreender o que a minha vida. Minha vida! Sozinha h trezeanos, sempre sozinha. a voz tornou-se surda, tremia um pouco. Em seu rostopalpitante, transparecia dor pungente. Minha pobre amiga! repetiu Regina. E apertou-lhe mais fortemente a mo.Danielle e Antonieta olhavam-na comovidas. Entretanto, ela somente via dois olhoscastanhos, cheios de ardente piedade, duma doura profunda.

    Sua av no lhe tem afeio?

    perguntou Antonieta.Desta vez, era uma espcie de riso selvagem, estranho, que aflorava aos lbios deAnabela. Ela s tem mostrado, por mim, uma alma implacvel, sem piedade. Tambm eu aodeio... odeio-a!Estas ltimas palavras foram pronunciadas com refreada violncia, que por algunsinstantes deixou Roberto e suas primas perplexos. Oh! Anabela exclamou por fim Regina, em tom de censura.Mas os olhos azuis, tornados sombrios, sustentaram seu olhar com desafio. que voc no sabe.. . ningum sabe o que tenho sofrido.Durante um instante Anabela ficou silenciosa, torcendo inconscientemente suas

    finas mos. Depois, comeou a falar em voz baixa, dolorosa. Sua alma enfim seabria, deixando cair o pesado segredo dos prprios padecimentos. Falou de sua

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    infncia sempre solitria, sob o cruel domnio de Madame Baury, a governante quelhe foi escolhida pela av. Mostrou seu corao, seu esprito comprimidos por umaeducao que no deixava lugar para nenhum ideal, nenhuma entreaberta para umbocadinho de sonho. Mocinha, continuou encarcerada numa priso moral. Sua avunicamente lhe demonstrava indiferena e inflexvel frieza. Ningum jamais lhe

    havia querido... E a ela, somente a ela que devo esta existncia. Foi quem destruiu tudo emmim, quem tudo gelou e tudo perdeu.Sua voz elevara-se um pouco, tornara-se dolorosamente arrebatada, para decairnum pungente murmrio de desespero. No, no. Tudo no est destrudo, tudo no est perdido, minha pobre Anabela! exclamou Regina.Regina e suas irms haviam escutado com viva emoo a aflitiva confidncia.Agora, inclinadas para a moa acabrunhada, repetiam: No, no. Nada est perdido! Sua alma e seu corao certamente ainda estobem vivos. Ns a ajudaremos a sair desse tmulo, a afastar essa tirania moral que

    sua av no tem o direito de fazer pesar sobre voc. Para comear, uma vez que jcompletou os dezoito anos, pode dirigir-se ao conselho de famlia a fim de queobtenha a sua emancipao. No , Roberto? Ela pode e deve. impossvel que a senhorita continue nessa situao. Emboramantendo para com sua av a considerao e o respeito que lhe deve, indispensvel, como minhas primas acabam de dizer, que a senhorita se libertedessa prepotncia infinitamente prejudicial sua sade e sua alma.No olhar de Roberto, a compaixo se tornara inda mais doce, mais terna. Anabela,enquanto falava, no deixara de senti-lo interessado, ao escutar-lhe a dolorosanarrao. Ela disse, em voz baixa: muito tarde. Minha av me tomou tudo... tudo. A religio de meus pais, nodeixou que me ensinassem. Madame Baury dizia-me que no mundo s existe amatria e que tudo acaba no tmulo. Assim, minha av me privava dos prazeresdeste mundo e me recusava esta compensao, esse conforto que, parece,encontram os crentes em sua f, na esperana de uma eternidade feliz. Mas essa esperana, essa f, a senhorita pode conquist-las! exclamou a vozemocionada de Roberto. E Madame Norand no mais ter o poder de tir-las.Os olhos dolorosos iluminaram-se um pouco, a boca perdeu seu vinco de amargura.Anabela disse a meia-voz, como se falasse consigo mesma: Se fosse possvel... se fosse possvel... Absolutamente possvel! retorquiu Roberto, com autoridade. Uma vez que o

    senhor Manel aqui estar na prxima semana, conversaremos com ele a esserespeito. um homem de corao, de grande senso. Deve conhecer MadameNorand, pois que seu amigo de infncia. Veremos juntos o melhor meio deatingirmos o nosso objetivo, isto , de libert-la de uma tutela que lhe aniquila aalma, minha pobre criana, e que por reflexo age deploravelmente sobre sua sade. Ns todos cuidaremos disso acrescentou Regina, inclinando-se para depositarum beijo na testa de Anabela. E, agora, preciso mudar um pouco de idias,minha amiga. Roberto, voc vai ler-nos qualquer coisa, hein? Com o maior prazer. Mas o que? Tnhamos comeado a "Vida do Cura de Foucault". Repare, o volume est sobreessa mesa.

    Nos dias anteriores, quando Regina que lia, alis otimamente, Anabela escutavasem aparente interesse. Mas hoje, sua fisionomia deixava transparecer uma sombra

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    de emoo, enquanto a voz grave, bem timbrada do jovem advogado evocava apersonalidade do antigo oficial, que se tornou herico penitente do deserto. Suasmos inativas estavam, hoje, cruzadas sobre os joelhos e a cabea, um poucoinclinada, aureolava-se do reflexo do sol que atravessava entre as folhagens da ruaarborizada. Quando, momentaneamente, Roberto parava de ler, sempre encontrava

    um olhar sonhador, enternecido, atento. Finda a leitura e fechado o livro, Anabelamurmurou: Gostei disso... Eu no sabia nada, acreditava que tudo fosse mau, no mundo. No, no minha boa amiguinha, tudo no mau, tenha a certeza! contraveioafetuosamente Antonieta. Ns lhe provaremos, no tenha receio. Vocs j me provaram.A voz de Anabela se revestira de desacostumado tom de doura. A plida figuraparecia acalmar-se. Luiz, que acabava de aproximar-se, olhava-a com um armeditativo. Depois, o menino disse gravemente: Voc no est to triste hoje. Ao contrrio, parece at mais gentil...Ligeiro sorriso aflorou aos lbios de Anabela. Estendendo as mos, acariciou a

    cabeleira do menino. Voc tem razo, Luizinho. Mas, qual! No est em mim...A frase ficou inacabada. De novo, profunda melancolia apareceu em seu olhar.Regina logo desviou a conversa para outro assunto e Roberto lhe respondeu,enquanto Danielle foi buscar a merenda.Trouxe os bolos feitos por Antonieta, e Anabela comeu com mais apetite que decostume. Vamos dar-lhe faces rosadas e um pouco de alegria comunicativa dissealegremente Regina. Logo, voc ser outra.Anabela sacudiu a cabea. Depois, olhou o relgio-pulseira, um modestssimorelgio de prata. No posso demorar-me. Minha av tem um convidado para o jantar esta tarde, epreciso ajudar Mlanie num prato longamente preparado, um recheio complicadoque um dos seus triunfos. Como sua vista est cansada, sozinha ela no podefaz-lo. E, como quer conservar o seu segredo, de jeito algum deseja que Josefina odescubra. Madame Norand no recebe ningum, quando est aqui, no verdade?perguntou Antonieta. Quase ningum. Esse senhor Brlard, que vai jantar hoje, o dono dapropriedade de Bournizel. No o conhece? Somente de vista. No dos nossos, no s pelo lado poltico, como religioso.

    Em cada ano ele faz duas ou trs visitas a minha av, durante a nossapermanncia em Maison-Vieille. Mas esta a primeira vez que vem jantar conosco.Depois dessas palavras, Anabela despediu-se das amigas e de Roberto. Todos aseguiram com o olhar at desaparecer entre os macios floridos, sob a doce luz dosol poente. Sua silhueta fina, leve, tinha uma graa extrema, como em voz baixanotou Danielle. Sim, encantadora. replicou Regina. Mas que vida, coitadinha! Como suaav tem corao, para trat-la assim? Deve ser uma senhora cruel, orgulhosa. Suafisionomia, alis, d-nos que pensar. No lhe basta aborrecer tantas almas comsuas obras amargas e desesperantes; preciso ainda que experimente arruinar aalma, o corao de sua neta!

    Uma alma, um corao que devem ser muito mais sensveis que a princpiosupusemos observou pensativamente Roberto. Ela nos revelou um bocadinho,

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    hoje. Mas no foi sem tempo que Anabela as conheceu, minhas boas primas.Porquanto suponho que a desgraada criana devia achar-se s bordas dodesespero. Deus olhava por ela disse Regina, cujo olhar se alumiou, durante algunssegundos, por uma luz inda mais viva.

    Captulo VII - PROPSITOS

    Naquela tarde, graas modificao do costume at ento observado, Anabelatomou parte no jantar para o qual fora convidado o proprietrio de Bournizel.Madame Norand transmitiu-lhe essa ordem, por intermdio de misse Steverson,acentuando que deveria escolher o vestido que mais bem lhe assentasse.Foi uma hora de profundo aborrecimento aquela, passada mesa, com asperoraes do senhor Brlard, que era um grande "causeur", um excelente

    esvaziador de copos e um slido garfo. Ele falava principalmente de si mesmo, desuas terras, de suas colheitas, da esperana que alimentava de ser nomeadoconselheiro geral no ano seguinte. Madame Norand escutava-o com pacincia, e dequando em quando lhe oferecia uma rplica, uma reflexo. Anabela, silenciosa,conservava aquela atitude de habitual indiferena. No dava mostras de perceberos olhares interessados que, de onde em onde, lhe volvia Rogrio Brlard. Quandose levantaram da mesa, Madame Norand lhe disse: Sirva os licores na sala de visitas, Anabela e depois pode retirar-se.Havia uma como que pressa febril nos movimentos da moa, de ordinrio tocomedidos, ao preparar os clices e os frascos na bandeja de velho carvalho. Tologo a colocou sobre a mesa, perto de sua av, ela se eclipsou, aps ter respondidocom certa altivez ao cumprimento de Brlard.Desceu rapidamente a antiga escada de pedra enegrecida, entrou em seu quarto e,com um suspiro de alvio, fechou a porta.Enfim, podia estar s e pensar... Mesmo porque, depois de seu regresso da Vigne-Rouge, ainda no tivera um instante de liberdade. Fora-lhe preciso ajudar Mlanie, eem seguida arrumar de novo a mesa, porque Martim, que no enxergava bem,pusera tudo torto. Em seguida, rapidamente teve que passar a ferro o seu vestidode "foulard" azul pontilhado de branco, muito simples e por ela mesma feito,consoante os princpios de Madame Norand. Aps, houve aquele jantar tocomprido, to mortalmente longo, porquanto o convidado honrara os excelentes

    pratos de Mlanie. Todavia, agora se achava a ss. Sentada janela, permaneciaimvel, com os olhos abertos quela noite levemente alumiada por um crescimentofraco da lua.Podia, pois, reviver com o pensamento aquela tarde, no jardim da Vigne-Rouge.Num misto de estupefao e certa confuso, a si mesma perguntava como puderadesvendar os prprios padecimentos queles estranhos.Estranhos? No obstante, que singular confiana lhe inspiravam? Estranha, sim, sua av... mais que estranha, uma inimiga. Estranha, tambm, a tia Graa,insignificante, pusilmine, to pouco afetuosa. Mas aquelas moas, as encantadorasAntonieta, Regina, Danielle... e o prprio Roberto Arlys, a quem pouco conhecia,ainda... No, no lhes podia dar esse qualificativo, pois que ao lado deles sentia

    tanta simpatia verdadeira, bondade eficaz e compaixo que no se manifestava to

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    somente em palavras, porquanto todos eles lhe disseram que a auxiliariam alibertar-se do jugo moral de Madame Norand.A brisa daquela noite de vero banhava de calor a fronte inclinada. Transudavam osperfumes das vegetaes adormecidas de sob as rvores, cansadas do calor dodia. O prprio riacho parecia fatigado, preguioso e o seu rudo se fazia ouvir em

    surdina. No quarto obscuro, em que apenas penetrava o fraco reflexo da luacrescente, a moa, imvel, parecia um fantasma plido.Um por um, ela reviveu todos os menores incidentes daquela tarde: seu secretoprazer quando soube da presena de Roberto Arlys, a discreta amabilidade dojovem advogado, a leitura por ele feita com tanta graa e levemente emocionado...E depois, o grito de seu corao, a confisso irresistvel de sua desgraa e a de seudio contra a av que lhe havia desbaratado a meninice, aniquilado a suainteligncia, vibrado golpe de morte em seu corao.Aniquilado? Vibrado golpe de morte?Anabela ps-se a arquejar, com a mo posta no corao subitamente agitado."Anemia, fraqueza passageira" dissera o doutor Brennier. Mas que importava o

    corao de carne? Um outro nela havia existido, havia outrora palpitado edesesperadamente reclamado, em silncio, um pouco de ternura, um pouco debondade. Depois, sossobrara na atmosfera glacial sustentada por Madame Norand,por Madame Baury. Ningum, ningum deste mundo jamais amara a pequenaAnabela... e nunca ela tivera algum para amar.Agora, era muito tarde. Antonieta e Regina pretendiam que no, diziam que elapoderia ser salva desse terrvel desespero que a levava morte. Mas estavamenganadas, aquelas caridosas amigas. Tudo estava acabado, acabado.Um pssaro da noite piou no bosque, bem perto. Do espumejante riacho subiu umaleve frescura. H j alguns momentos, Anabela, com as plpebras semicerradas,ouvia uma voz profunda, enternecida e revia a fisionomia sria de um homem deolhos castanhos, gravemente ternos. Depois, a seu lado, se desenhava uma cabearecoberta de cabelos negros, um rosto avermelhado, de traos fortes, com o olharsagaz e ardiloso, por momentos falsamente doce e quase sempre atravessado porinquietante dureza.Anabela teve um movimento de repulsa. Detestava, detestava aquele senhorBrlard. Contanto que Madame Norand no tivesse a idia de convid-lo de novo!A moa levantou-se lentamente, deu alguns passos no quarto e depois seaproximou de uma pequena secretria. Ali havia uma gaveta secreta, que ela abriu.E tirou um livrinho elegantemente encadernado, um desses livros de oraes que seoferecem como presente de primeira comunho. Um dia, em certa mala que

    remexera a mandado de Madame Norand, procura de um antigo vestido,encontrara-o bem no fundo, em meio de outros objetos que haviam pertencido suame. Na primeira folha do livrinho estavam escritas estas palavras: " minhaamiguinha Luciana Norand".Anabela levou-o para o seu quarto. Pertencia-lhe, pois que fora dado sua me.Era a "Imitao de Cristo". Abrira-o e percorrera-lhe algumas de suas pginas. Mastudo aquilo lhe parecia incompreensvel, e fechara-o, guardando-o em seu armrio.Todavia, de vez em quando dali o tirava e lia algumas pginas, ao acaso. Umasecreta atrao, em certos dias, fazia-a procur-lo. E ela sentia que uma doutrina depaz, de consolao, de esperana estava contida no livrinho. Achava-se na situaode um pobre diante de uma porta fechada, atrs da qual encontraria calor e

    alimentao, mas que no sabia que palavras empregar para que a abrissem.

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    Com traos leves de lpis sublinhava algumas frases que particularmente lhedespertaram a ateno, acordando em sua alma desamparada a curiosidadedaquela alma crist, de que a desviara sua av. Naquela noite, ela relia: "Os queamam a Jesus por Jesus, e no por si mesmos, abenoam-no em todas asatribulaes e na angstia do corao como nas mais doces consolaes". "Ele s

    deve ser unicamente amado, porque somente Ele o amigo bom, fiel, entre todosos amigos". "Vs sois minha esperana e meu refgio no dia de tribulao".Assim, nas suas provaes, esses crentes podem refugiar-se no amor de um sertodo poderoso do Infinito? Regina, Antonieta, Roberto Arlys utilizavam-se dessesupremo recurso, quando sofriam. Mas ela... Disseram-lhe que a ajudariam alibertar-se de sua priso moral, e que, como eles, havia de conhecer as alegrias daesperana, da f. Eles eram to bons, to delicadamente simpticos... Mas, naverdade, poderiam alguma coisa contra a vontade fria e implacvel de MadameNorand?Sbito desnimo, profunda amargura afastavam a tranquilidade e a esperana queaquela alma dolorosa trouxera dos momentos passados em Vigne-Rouge. Anabela

    pensava: "No, no. Eles nada podero fazer. Tudo est acabado, para mim."Impresso atroz de solido apossou-se da moa. Caindo de joelhos, perto dasecretria, apertava convulsamente entre os dedos o livrinho. Por muito tempo alificou prostrada, quase sem pensamento, sofrendo silenciosamente e estremecendoum pouco quando, pela janela aberta, at ali chegavam as risadas de RogrioBrlard. Quando se levantou para ir para cama, o hspede deveria ter partido, poisque nada mais se ouvia no rs do cho. Anabela deitou-se, mas no pode dormir.Quando se levantou, estava com a fisionomia to desfigurada, que chegou ao pontode not-la, ao pentear-se. Embora de ordinrio nisso no prestasse nenhumaateno, pois tal era o estado de sua alma h muito tempo que de sua sade lheera indiferente, nesse dia ela sentiu um pequeno choque. Aquelas moas vo perguntar-me o que tenho. E o doutor tambm meinterrogar. No irei hoje. Dir-lhes-ei que estive ocupada.O cumprimento dessa resoluo lhe foi cruel. A hospitaleira casa dos Brennier lheoferecia atrao, repentinamente inda mais viva. Mas existia nela uma fora devontade que lhe dominava os ntimos segredos do corao. Mais ou menos s duashoras, com o trabalho na mo, foi sentar-se no jardim. Este se estendia emcomprimento, fechado do lado do riacho por uma balaustrada de pedra gretada, emparte coberto por roseiras pequeninas vermelho-prpura e amarelo desmaiado. Oscanteiros francesa, sob os cuidados de um jardineiro da regio, tinham uma graaum pouco negligente, que agradava a Madame Norand. A sua nica exigncia que

    sempre estivessem cobertos de flores, pouco importando fossem das mais simples,mesmo das mais a toas. Isto porque esta mulher que desdenhava o luxo, assutilezas da "toilette", do mobilirio ou dos servio que sua fortuna lhe poderiaproporcionar, gostava imenso de flores e queria-as sempre a seu lado, tanto emParis, como aqui.Diariamente, ela prpria as colhia, em seu jardim de Maison-Vieille. Por isso mesmo que nessa tarde, ao notar ameaadora tempestade, saiu de casa para apanhar asrosas antes que casse a chuva.Anabela estava sentada perto de um velho teixo, h pouco podado, mas que haviareconquistado a liberdade de crescer como bem entendesse. Madame Norand,passando perto da neta, perguntou-lhe:

    No vai, hoje, a Vigne-Rouge? No, vov.

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    A moa levantou a cabea para responder, e Madame Norand notou palidez em seurosto, os olhos com olheiras, que a olhavam com a sua costumeira e mornaexpresso, longnqua, um pouco glacial. Por que? Preciso acabar estes aventais. Alm disso, no quero impor-me quelas moas.

    Acaso deram a entender que voc as incomoda? Oh! no!O protesto escapou, espontneo, dos lbios de Anabela. Ento? Voc no encontra satisfao ao lado delas?Madame Norand perscrutou a fisionomia calma, que ficou impenetrvel. Por certo que sim, vov. No quero incomod-las, a est. O propsito louvvel. No a censuro, mesmo por que no gosto que vocassiduamente freqente a casa dessas moas. Elas me parecem bem educadas,srias e trabalhadeiras, mas soube ontem, que so fervorosas catlicas. Ora, issono concorda com a educao que voc recebeu. Acaso notou tendnciasreligiosas nessas moas?

    Sim, vov. Isso que a afasta um pouco dos Brennier? No. Elas so livres de pensar como entendam, e as opinies que sustentam nome impedem de estim-las. Seja. Mas preste ateno para no deixar-se influenciar, por elas, nesse ponto.Isso de forma alguma me agradar.Com essa recomendao, Madame Norand continuou o seu caminho, ao longo doscanteiros.Na vspera, Rogrio Brlard lhe contara que os moradores de Vigne-Rouge eram,como ele dizia elegantemente, carolas. Quando, h tempos, Madame Norandencontrara o doutor Brennier em casa de uma de suas amigas, livre-pensadora,meio aparentada com ele, imaginara compreender, no decorrer da palestra, que omdico tinha idias semelhantes s de sua hospedeira. Em todo o caso, pelo jeitoparecia que ele havia mudado desde ento. Suas filhas eram militantes e em Parisocupavam-se de vrias obras catlicas. Em pouco, esse lar representavajustamente o contrrio, pelo menos sob essa denncia secreta, daquilo que foradesejado para Anabela.Mas como afast-la, agora que fora confiada aos cuidados do doutor Brennier? Noera coisa possvel. Entretanto, seria fcil espacejar as visitas. Anabela, alis, poriniciativa prpria parecia a isso disposta. Com sua natureza indiferente, por certoestaria pouco sujeita a ser influenciada pelas opinies religiosas das filhas do

    mdico.A tesoura de poda, manejada por mo um tanto nervosa, fez cair duas rosas cor dencar na cesta de Madame Norand. Esta, alguns passos adiante, parou defronte deuma profuso de penias brancas e ps-se a observ-las distraidamente. Seupensamento estava longe. Cismava: "Essas relaes no persistiro durante muitotempo. Dentro de um ou dois meses, Anabela estar casada, e duvido que Rogrioconsinta que sua mulher mantenha relaes com os moradores de Vigne-Rouge,cujas opinies polticas so inteiramente contrrias s suas."De sorte que no ficou nenhuma inquietao no esprito da av de Anabela,enquanto prosseguia ao longo dos canteiros, procura de flores que lheagradassem.

    Na sombra do velho teixo, a moa sonhava, com o trabalho sobre os joelhos. Umaespcie de sorriso amargo, um tanto irnico, entreabria-lhe os lbios. Um desafio

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    brilhava nos olhos que seguiam a silhueta forte de Madame Norand. A moapensava: "Uma vez que receia a influncia de minhas vizinhas, porque essainfluncia boa para mim. Agora, j no estou sozinha no mundo. E, se eu quiser,ficarei conhecendo essa religio que foi a de minha me, a qual parece proporcionartanta felicidade aos Brennier.

    Uma impresso de desforra lhe aquecia a alma, ao mesmo tempo que lhecomunicava certa tranquilidade, com a deciso que acabava de tomar: "A partir deamanh, voltarei a Vigne-Rouge".

    Captulo VIII - TRANSFORMAES

    O doutor Brennier estava de sada, para o seu quotidiano passeio a p, quandoAnabela, no dia seguinte, transpunha o portozinho de sua casa. Ele parou eestendeu-lhe a mo, examinando cuidadosamente aquele rosto fino, mas um pouco

    alterado. Hum! O seu aspecto no bom, minha filha. Sente-se mais fatigada? Ou entoteve alguma contrariedade? No... como de costume, doutor.A resposta evasiva no satisfez o doutor Brennier, que pensou: "Minhas filhas farocom que ela se abra." Sorrindo, acrescentou em voz alta: Voc encontrar Antonieta na salinha de estar. Regina e Danielle foram granjade Nouzac, para comprar um frango. Acompanhou-as um hspede que nos chegouesta manh, o filho do meu melhor amigo, e amigo de infncia de meu filho maisvelho e de Antonieta, quase da mesma idade : o capito Trzeau.O mdico afastou-se depois de amistosamente ter apertado a mo da moa, semque notasse o vinco que acabava de formar-se em sua fronte.A notcia dessa presena estranha contrariou Anabela, um tanto selvagem emvirtude de sua vida solitria. Suas primeiras relaes com as filhas do mdico lhehaviam custado muito, sem que isso lhe transparecesse. Agora, aquela amizadefranca, discreta, havia de causar-lhe grande falta, se lhe fosse tirada. Quanto aRoberto Arlys, parecia-lhe, coisa estranha, que sempre fora de seu conhecimento.Mas este capito Trzeau...Certa vez Danielle lhe pronunciara o nome na sua frente. Segundo lhe dissera,tratava-se de um rapaz folgazo, de uma amabilidade sem par.Mas Anabela pouco se importava com a alegria, com o riso. A sua alma era

    demasiado pesada, demasiado carregada de fadiga e de angstia.Na salinha de estar, to acolhedora com seus cretones estampados de flores e seusmveis fora da moda, herana de antepassados, Antonieta cosia perto da porta-janela entreaberta. No tapete, brincava a pequena Michelle, que se levantou paraque Anabela a beijasse. Impediram-na de vir ontem, querida amiguinha? indagou Antonieta, apertandodemoradamente a emagrecida mo. Impediram-me, no!A sinceridade arrebatou-a e afastou-lhe o pretexto que havia preparado. Passei por uma terrvel f