luis sepÚlveda - fnac-static.com...homens se atiraram à água, munidos de cordas grossas que...
TRANSCRIPT
LUIS SEPÚLVEDA
HISTÓRIA DE UMABALEIA BRANCA
Ilustrações de Paulo Galindro
Tradução de Helena Pitta
Oo
HBBR_20183649_TEXTO_1P.indd 3 10/04/2019 10:48
«E as baleias foramespreitar Deus entreas estrias dançantes das águas.E Deus foi visto pelo olho de uma baleia.»
Homero Aridjis, El ojo de la ballena
«O olho da baleia regista de longe o quevê nos homens. Guarda segredos que nãopodemos conhecer.»
Plínio, o Antigo, História Natural
HBBR_20183649_TEXTO_1P.indd 7 10/04/2019 10:48
11
Numa manhã do verão austral de 2014, muito perto de Puerto Montt, no Chile, uma baleia encalhou na costa de seixos.
Era um cachalote de quinze metros de comprimento e o seu corpo, de uma estranha cor cinzenta, não se movia.
Alguns pescadores acharam que talvez se tratasse de um cetáceo desorientado; outros sugeriram que, provavel-mente, tinha ficado intoxicado com todo o lixo que se atira para o mar. E um silêncio carregado de tristeza foi a home-nagem de todos os que rodeávamos o grande animal mari-nho sob o céu cinzento do Sul do Mundo.
O cachalote ficou ali umas duas horas, embalado sua-vemente pelas ondinhas da baixa-mar, até que uma embar-cação se aproximou, fundeou a pouca distância e alguns
HBBR_20183649_TEXTO_1P.indd 11 10/04/2019 10:48
homens se atiraram à água, munidos de cordas grossas que amarraram à barbatana caudal, ou cauda do animal, e depois, muito lentamente, a embarcação deu a proa a sul, arrastando o corpo sem vida do gigante marinho.
– O que farão com a baleia? – perguntei a um pesca-dor que, com o seu gorro de lã nas mãos, via afastar-se a embarcação.
– Respeitá-la. Quando chegarem ao mar alto, passada a saída sul do golfo, abrem-lhe o corpo, esvaziando-o para que não flutue, e deixam-na afundar-se na escuridão fria do oceano – respondeu em voz baixa o pescador.
Depressa a embarcação e a baleia desapareceram entre o perfil incerto das ilhas, e as pessoas afastaram-se da costa. Mas ficou um menino, a olhar fixamente para o mar.
Aproximei-me dele. Os seus olhos de pupilas escuras perscrutavam o horizonte e duas lágrimas desciam-lhe pelo rosto.
– Eu também estou triste. És daqui? – perguntei, em jeito de cumprimento.
O menino sentou-se na praia de seixos antes de res-ponder, e eu fiz o mesmo.
– Claro. Sou lafkenche. Sabes o que significa? – per-guntou.
– «Gente do mar» – respondi.– E tu, porque estás triste? – quis saber o menino.– Por causa da baleia. Que lhe terá acontecido?– Para ti é uma baleia morta, mas para mim é muito
mais do que isso. A tua tristeza e a minha não são iguais.
HBBR_20183649_TEXTO_1P.indd 12 10/04/2019 10:48
Permanecemos em silêncio durante um tempo medido pelas ondas que iam e vinham, até que ele me ofereceu um objeto maior do que a sua mão.
Era uma concha de loco, um caracol marinho muito apreciado, com uma concha exterior rugosa, pétrea, e o interior branco como uma pérola.
– Encosta-a ao teu ouvido e a baleia falará contigo – disse o pequeno lafkenche, afastando-se com grandes pas-sadas pela praia escura de calhaus.
Foi o que fiz. E, sob o céu cinzento do Sul do Mundo, uma voz falou comigo na velha língua do mar.
HBBR_20183649_TEXTO_1P.indd 15 10/04/2019 10:48