lua adversa 3 eu não existo sem você 40 menininha 40 ... · pdf filequem tivesse...
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1
Lua Adversa ___________________________________________ 3
Inscrição na areia _______________________________________ 3
Timidez _______________________________________________ 3
Romantismo ___________________________________________ 4
A Valsa _______________________________________________ 4
Clara _________________________________________________ 7
Desejo ________________________________________________ 8
Roda Viva _____________________________________________ 9
O que será ____________________________________________ 10
Almanaque ___________________________________________ 10
O padeiro _____________________________________________ 12
FM rebeldia __________________________________________ 13
Quem tem medo da mortadela? ___________________________ 13
Uma imagem de prazer __________________________________ 15
Antes que cases ________________________________________ 16
L.I.V.R.O. ____________________________________________ 35
O Grande Mistério _____________________________________ 36
Soneto de fidelidade ____________________________________ 38
Soneto a quatro mãos ___________________________________ 38
Chega de saudade ______________________________________ 38
Carta ao Tom _________________________________________ 39
Eu não existo sem você _________________________________ 40
Menininha ___________________________________________ 40
Minha namorada ______________________________________ 41
O filho que eu quero ter _________________________________ 41
Mar Português ________________________________________ 42
Vieste _______________________________________________ 42
A Medida Da Paixão ___________________________________ 43
O Silêncio das Estrelas _________________________________ 44
Autopsicografia _______________________________________ 44
Para ser grande, sê inteiro: nada _________________________ 44
Confidência do Itabirano________________________________ 45
Vou-me embora pra Pasárgada ___________________________ 45
Talvez _______________________________________________ 46
Poema Começado no Fim _______________________________ 46
Poema _______________________________________________ 47
Amor é fogo que arde sem se ver __________________________ 47
Alma minha gentil, que te partiste ________________________ 48
Romaria _____________________________________________ 48
Cajuína ______________________________________________ 49
Retrato de família______________________________________ 49
Os retratos ___________________________________________ 51
2
Vermelho _____________________________________________ 51
Alaranjado ___________________________________________ 52
Amarelo ______________________________________________ 52
Verde ________________________________________________ 52
Azul _________________________________________________ 52
Anil _________________________________________________ 53
Roxo ________________________________________________ 53
Canções da Inocência __________________________________ 54
Morte e Vida Severina __________________________________ 54
O poeta ______________________________________________ 55
A estrelinha polar ______________________________________ 56
As perguntas do lago ___________________________________ 56
Escritos do Curso e Sua Virtude – 8 _______________________ 57
Escritos do Curso e Sua Virtude - 68 _______________________ 57
Escritos do Curso e Sua Virtude-76 ________________________ 58
O Silêncio ____________________________________________ 58
O Navio Negreiro, Tragédia no Mar (VI) ___________________ 59
Silêncio, hospital ______________________________________ 59
Romance sonâmbulo ___________________________________ 61
Ser poeta _____________________________________________ 63
Filhos _______________________________________________ 63
Famigerado __________________________________________ 64
A aliança ____________________________________________ 66
Rondó dos Cavalinhos __________________________________ 68
Se eu fosse um padre ___________________________________ 68
A mensagem __________________________________________ 69
Minha Mãe ___________________________________________ 69
Ismália ______________________________________________ 70
À Maneira de Olegário Mariano __________________________ 71
Árias e Canções _______________________________________ 71
Clara ________________________________________________ 72
Meu País _____________________________________________ 72
3
Lua Adversa
Tenho fases, como a lua.
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.
Fases que vão e que vêm
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.
E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...
Cecília Meirelles
http://www.geocities.com/fedrasp/cecilia-meireles.html
Inscrição na areia
O meu amor não tem
importância nenhuma.
Não tem o peso nem
de uma rosa de espuma!
Desfolha-se por quem?
Para quem se perfuma?
O meu amor não tem
importância nenhuma.
Cecília Meirelles
http://www.geocities.com/fedrasp/cecilia-meireles.html
Timidez
Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...
- mas só esse eu não farei.
Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras distantes...
- palavras que não direi.
Para que tu me adivinhes,
4
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponhos vestidos noturnos,
- que amargamente inventei.
E, enquanto não me descobres,
os mundos vão nevegando
nos ares certos do tempo
até não se sabe quando...
- e um dia me acabarei.
Cecília Meirelles http://www.geocities.com/fedrasp/cecilia-meireles.html
Romantismo
Quem tivesse um amor, nesta noite de lua,
para pensar um belo pensamento
e pousá-lo no vento!...
Quem tivesse um amor - longe, certo e impossível -
para se ver chorando, e gostar de chorar,
e adormecer de lágrimas e luar!
Quem tivesse um amor, e, entre o mar e as estrelas,
partisse por nuvens, dormente e acordado,
levitando apenas, pelo amor levado...
Quem tivesse um amor, sem dúvida nem mácula,
sem antes nem depois: verdade e alegoria...
Ah! Quem tivesse... (Mas quem tem? Quem teria?).
Cecília Meirelles
http://www.geocities.com/fedrasp/cecilia-meireles.html
A Valsa
Tu, ontem,
Na dança
Que cansa,
Voavas
Co'as faces
Em rosas
Formosas
De vivo,
Lascivo
Carmim;
Na valsa
Tão falsa,
Corrias,
Fugias,
Ardente,
Contente,
Tranqüila,
Serena,
Sem pena
De mim!
Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
5
Que sintas!...
- Não negues,
Não mintas...
- Eu vi!...
Valsavas:
- Teus belos
Cabelos,
Já soltos,
Revoltos,
Saltavam,
Voavam,
Brincavam
No colo
Que é meu;
E os olhos
Escuros
Tão puros,
Os olhos
Perjuros
Volvias,
Tremias,
Sorrias,
P'ra outro
Não eu!
Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
- Não negues,
Não mintas...
- Eu vi!...
Meu Deus!
Eras bela
Donzela,
Valsando,
Sorrindo,
Fugindo,
Qual silfo
Risonho
Que em sonho
Nos vem!
Mas esse
Sorriso
Tão liso
Que tinhas
Nos lábios
De rosa,
Formosa,
Tu davas,
Mandavas
A quem ?!
Quem dera
6
Que sintas
As dores
De arnores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
- Não negues,
Não mintas,..
- Eu vi!...
Calado,
Sózinho,
Mesquinho,
Em zelos
Ardendo,
Eu vi-te
Correndo
Tão falsa
Na valsa
Veloz!
Eu triste
Vi tudo!
Mas mudo
Não tive
Nas galas
Das salas,
Nem falas,
Nem cantos,
Nem prantos,
Nem voz!
Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
- Não negues
Não mintas...
- Eu vi!
Na valsa
Cansaste;
Ficaste
Prostrada,
Turbada!
Pensavas,
Cismavas,
E estavas
Tão pálida
Então;
Qual pálida
Rosa
Mimosa
No vale
Do vento
Cruento
7
Batida,
Caída
Sem vida.
No chão!
Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
- Não negues,
Não mintas...
Eu vi!
Casimiro de Abreu
http://br.geocities.com/edterranova/casimiropoe.htm
Clara
Não sabes, Clara, que pena
eu teria se — morena
tu fosses em vez de clara!
Talvez... quem sabe... não digo...
mas refletindo comigo
talvez nem tanto te amara!
A tua cor é mimosa,
brilha mais da face a rosa
tem mais graça a boca breve.
O teu sorriso é delírio...
És alva da cor do lírio,
és clara da cor da neve!
A morena é predileta,
mas a clara é do poeta:
assim se pintam arcanjos.
Qualquer, encantos encerra,
mas a morena é da terra
enquanto a clara é dos anjos!
Mulher morena é ardente:
prende o amante demente
nos fios do seu cabelo;
— A clara é sempre mais fria,
mas dá-me licença um dia
que eu vou arder no teu gelo!
A cor morena é bonita,
mas nada, nada te imita
nem mesmo sequer de leve.
— O teu sorriso é delírio...
És alva da cor do lírio,
és clara da cor da neve!
Casimiro de Abreu
http://br.geocities.com/edterranova/casimiropoe.htm
8
Desejo
Se eu soubesse que no mundo
Existia um coração,
Que só por mim palpitasse
De amor em terna expansão;
Do peito calara as mágoas,
Bem feliz eu era então!
Se essa mulher fosse linda
Como os anjos lindos são,
Se tivesse quinze anos,
Se fosse rosa em botão,
Se inda brincasse inocente
Descuidosa no gazão;
Se tivesse a tez morena,
Os olhos com expressão,
Negros, negros, que matassem,
Que morressem de paixão,
Impondo sempre tiranos
Um jugo de sedução;
Se as tranças fossem escuras,
Lá castanhas é que não,
E que caíssem formosas
Ao sopro da viração,
Sobre uns ombros torneados,
Em amável confusão;
Se a fronte pura e serena
Brilhasse d'inspiração,
Se o tronco fosse flexível
Como a rama do chorão,
Se tivesse os lábios rubros,
Pé pequeno e linda mão;
Se a voz fosse harmoniosa
Como d'harpa a vibração,
Suave como a da rola
Que geme na solidão,
Apaixonada e sentida
Como do bardo a canção;
E se o peito lhe ondulasse
Em suave ondulação,
Ocultando em brancas vestes
Na mais branda comoção
Tesouros de seios virgens,
Dois pomos de tentação;
E se essa mulher formosa
Que me aparece em visão,
Possuísse uma alma ardente,
Fosse de amor um vulcão;
Por ela tudo daria...
— A vida, o céu, a razão!
Casimiro de Abreu
http://br.geocities.com/edterranova/casimiropoe.htm
9
Roda Viva
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu...
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino prá lá ...
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira prá lá...
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...
A roda da saia mulata
Não quer mais rodar não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou...
A gente toma a iniciativa
Viola na rua a cantar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a viola prá lá...
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...
O samba, a viola, a roseira
Que um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou...
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a saudade prá lá ...
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas rodas do meu coração...(4x)
Chico Buarque
http://letras.terra.com.br/chico-buarque
10
O que será
O que será, que será?
Que andam suspirando pelas alcovas
Que andam sussurrando em versos e trovas
Que andam combinando no breu das tocas
Que anda nas cabeças anda nas bocas
Que andam acendendo velas nos becos
Que estão falando alto pelos botecos
E gritam nos mercados que com certeza
Está na natureza
Será, que será?
O que não tem certeza nem nunca terá
O que não tem conserto nem nunca terá
O que não tem tamanho...
O que será, que será?
Que vive nas idéias desses amantes
Que cantam os poetas mais delirantes
Que juram os profetas embriagados
Que está na romaria dos mutilados
Que está na fantasia dos infelizes
Que está no dia a dia das meretrizes
No plano dos bandidos dos desvalidos
Em todos os sentidos...
Será, que será?
O que não tem decência nem nunca terá
O que não tem censura nem nunca terá
O que não faz sentido...
O que será, que será?
Que todos os avisos não vão evitar
Por que todos os risos vão desafiar
Por que todos os sinos irão repicar
Por que todos os hinos irão consagrar
E todos os meninos vão desembestar
E todos os destinos irão se encontrar
E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá
Olhando aquele inferno vai abençoar
O que não tem governo nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tem juízo...(2x)
Lá lá lá lá lá……..
Chico Buarque
http://letras.terra.com.br/chico-buarque
Almanaque
Ó menina vai ver nesse almanaque
Como é que tudo isso começou
Diz quem é que marcava o tic-tac
Que a ampulheta do tempo disparou
Se mamava de sabe lá que a teta
O primeiro bezerro que berrou me diz, me diz
Me responde por favor
11
Prá onde vai o meu amor
Quando o amor acaba
Quem penava no sol a vida inteira
Como é que a moleira não rachou me diz, me diz
Quem tapava esse sol com a peneira
E foi que a peneira esfuracou
Me diz, me diz, me diz por favor
Quem pintou a bandeira brasileira
Que tinha tanto lápis de cor me diz, me diz
Me responde por favor
Prá onde vai o meu amor
Quando o amor acaba
Diz quem foi que fez o primeiro teto
Que o projeto não desmoronou
Quem foi esse pedreiro esse arquiteto
E o valente primeiro morador, me diz, me diz
Me diz um morador
Diz quem foi o inventor do analfabeto
E ensinou o alfabeto ao professor me diz, me diz
Me responde por favor
Prá onde vai o meu amor
Quando o amor acaba
Quem é que sabe o signo do capeta
E o ascendente de deus nosso senhor
Nosso senhor
Quem não fez a patente da espoleta
Explodir na gaveta do inventor me diz, me diz
Me diz por favor
Quem tava no volante do planeta
Que o meu continente capotou
Me responde por favor
Prá onde vai o meu amor
Quando o amor acaba
Vê se vê no almanaque, essa menina
Como é que termina um grande amor
Me diz, me diz
Se adianta tomar uma aspirina
Ou se bate na quina aquela dor
Me diz, me diz
Me diz daquela dor
Se é chover o ano inteiro chuva fina
Ou se é como cair do elevador
Me responde por favor
Prá que que tudo começou
Quando tudo acaba...
Chico Buarque
http://letras.terra.com.br/chico-buarque/
12
O padeiro
Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para
fazer café e abro a porta do apartamento - mas não encontro o pão
costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa
nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto não
é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que
suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a
tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem
o que do governo.
Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim
assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem
modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à
porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não
incomodar os moradores, avisava gritando:
- Não é ninguém, é o padeiro!
Interroguei-o uma vez: como tivera a idéia de gritar aquilo?
"Então você não é ninguém?"
Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido.
Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser
atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma
voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa
que o atendera dizer para dentro: "não é ninguém, não senhora, é o
padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém...
Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda
sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com
um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também,
como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que
deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem
pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos
primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina,
como pão saído do forno.
Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava
importante porque no jornal que levava para casa, além de
reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica
ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho
na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de
humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não
é ninguém, é o padeiro!"
E assobiava pelas escadas.
Rubem Braga
Para gostar de ler, Vol I -Crônicas . Carlos Drummond de Andrade,
Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga. 12ª
Edição. Editora Ática . São Paulo.1989. p.63 - 64.
13
FM rebeldia Um dia eu tive um sonho
Que havia começado a grande guerra
Entre o morro e a cidade
E o meu amigo Melodia
Era o Comandante-em-Chefe
Da primeira bateria
Lá do morro de São Carlos
Ele falava, eu entendia
Você precisa escutar a rebeldia
Pantera Negra, FM Rebeldia
Transmitindo da Rocinha
Primeiro comunicado
O pão e circo e o poder da maioria
Um país em harmonia
Com seu povo alimentado
E era um sonho ao som
De um samba tão bonito
Que quase não acredito
Eu não queria acordar
Pantera Negra, FM Rebeldia
Transmitindo da Rocinha
Primeiro comunicado
Um dia desses
Alguém falava, eu entendia
Nós precisamos conviver em harmonia
Ele falava, eu entendia
Você precisa escutar a rebeldia
Pantera Negra, FM Rebeldia
Transmitindo da Rocinha
Primeiro comunicado
O pão e circo e o poder da maioria
O país bem poderia
Ter seu povo alimentado
Alceu Valença
http://letras.terra.com.br/chico-buarque/
Quem tem medo da mortadela?
Modismo é conosco mesmo. O brasileiro adora inventar moda. E
todo mundo vai atrás dela. A última do brasileiro é "primeiro
mundo". Os publicitários nativos inventaram a expressão e agora
tudo que nós queremos tem que ser coisa do "primeiro mundo".
O carro é do primeiro mundo, a bebida é do primeiro mundo, a
mulher é do primeiro mundo. Cineastas querem fazer filme de
primeiro mundo, diretores de teatro trazem a moda lá da Europa. E
os preços, evidentemente, também são de primeiro mundo.
14
Será que não nos bastam os exemplos de Portugal, Espanha, Irlanda
e Grécia, que se debruçaram na mamata da CEE e agora enfrentam
uma séria recessão e desemprego?
Por que essa mania, de repente, de querer virar primeiro mundo? De
terceiro para primeiro? Não seria o caso de fazer um estágio, antes,
no segundo mundo?
Os do primeiro mundo adoram as coisas aqui do terceiro. Por
exemplo, a caipirinha. Alemães, ingleses, americanos, suecos, caem
trôpegos pelas calçadas de Copacabana. Quer coisa mais brasileira,
mais terceiromundista, mais caipira e mais barata? Mas já estão
avacalhando com ela. Agora já tem caipirinha de vodca e, pasmem,
de rum. Caipirinha sempre foi e sempre será cachaça. Coisa de
caipira mesmo. E é esta bebida que os europeus vêm procurar aqui.
Mas já meteram a vodca e o rum nela para ficar com cara de
primeiro mundo. Vamos deixar a caipirinha caipira, brasileiros!
Toda essa introdução para chegar à mortadela. Ou mortandela, como
preferem garçons e padeiros. Quer coisa mais brasileira que a
mortadela? Claro que ela veio lá da Itália. Mas tornou-se, talvez pelo
baixo preço, o petisco do brasileiro. O nome vem de murta, uma
plantinha italiana que lhe valeu o nome. Infelizmente o brasileiro
acha que mortadela é coisa de pobre, de faminto. E o que somos nós,
cara-pálidas?
A cachaça e a mortadela são produtos do Brasil, do nosso querido
terceiro mundo. Mas acontece que há um preconceito dos patrícios
contra a cachaça e a mortadela. Contra a mortadela o caso é mais
grave. Se você oferecer mortadela numa festa, vão te olhar feio.
Você deve estar perto da falência.
Neste Natal e no Reveillon freqüentei várias mesas, e em nenhuma
havia mortadela. Queijos de primeiro mundo, vinho de primeiro
mundo, perfumes de primeiro mundo, até um peru argentino eu
comi. Mas mortadela que é bom, nada. Nem uma fatiazinha.
Quando o brasileiro irá assumir que a mortadela é a melhor entrada
do mundo? Quando você for para a Europa, não adianta pedir dead
her que não vai encontrar. Nem muerta dela.
Mas nem tudo está perdido. No dia 1º do ano almocei com o casal
Annette e Tenório de Oliveira Lima, e lá estava a mortadela,
fresquinha no prato rósea. Um limãozinho em cima, um pedacinho
de pão e viva o terceiro mundo, visto lá de cima do apartamento do
Morumbi.
No mesmo dia, de noite, fui ao peemedebista Bar Nabuco, debaixo
de frondosas sibipirunas da Praça Vilaboim e estava lá, no cardápio,
toda sem-vergonha, a mortadela brasileira. Achei que estava
começando bem o ano. Vai ser um Ano Bom, como se dizia
antigamente. Se os novos-ricos do PMDB estão comendo mortadela,
nem tudo está perdido. No Gargalhada Bar mais para PT, há um
excelente sanduíche de mortadela.
E, nas boas padarias do ramo você ainda encontra a verdadeira
mortadela, aquela que chega no balcão, feita na chapa, sem queimar
muito, servida em pãezinhos saídos do forno.
15
Vamos deixar o primeiro mundo para lá. Vamos, este ano, tomar
cachaça e comer mortadela. É muito mais barato ser pobre.
Deixemos que o primeiro mundo exploda entre eles, mesmo
tomando uísque escocês e comendo queijo fedido.
Por favor senhores brasileiros primeiro-mundistas, vamos deixar de
frescura. Mortadela é o que há. É um barato.
Feliz 94 para todos vocês. Muita cachaça e muita mortadela. Apesar
de tudo, o primeiro mundo é triste e melancólico. Continuemos
felizes e alegres com a nossa cachaça e o nossa gostosa mortadela.
E que os candidatos à presidência deste nosso país do terceiro
mundo não se esqueçam que o Jânio sempre se elegeu comendo
"mortadela" e não caviar do primeiro mundo.
Mário Prata
Filho é bom, mas dura muito. Mário Prata. Editora Maltese. São
Paulo. 1995. p. 157-159
Uma imagem de prazer Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero
eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda. É a visão de
uma floresta, e na floresta vejo a clareira verde, meio escura,
rodeada de alturas, e no meio desse bom escuro estão muitas
borboletas, um leão amarelo sentado, e eu sentada no chão
tricotando. As horas passam como muitos anos, e os anos se passam
realmente, as borboletas cheias de grandes asas e o leão amarelo
com manchas - mas as manchas são apenas para que se veja que ele
é amarelo, pelas manchas se vê como ele seria se não fosse amarelo.
O bom dessa imagem é a penumbra, que não exige mais do que a
capacidade de meus olhos e não ultrapassa minha visão. E ali estou
eu, com borboleta, com leão. Minha clareira tem uns minérios, que
são as cores. Só existe uma ameaça: é saber com apreensão que fora
dali estou perdida, porque nem sequer será floresta (a floresta eu
conheço de antemão, por amor), será um campo vazio (e este eu
conheço de antemão através do medo) - tão vazio que tanto me fará
ir para um lado como para outro, um descampado tão sem tampa e
sem cor de chão que nele eu nem sequer encontraria um bicho para
mim. Ponho apreensão de lado, suspiro para me refazer e fico toda
gostando de minha intimidade com o leão e as borboletas; nenhum
de nós pensa, a gente só gosta. Também eu não sou em preto e
branco; sem que eu me veja, sei que para eles eu sou colorida,
embora sem ultrapassar a capacidade de visão deles (nós não somos
inquietantes). Sou com manchas azuis e verdes só para estas
mostrarem que não sou azul nem verde - olha só o que eu não sou. A
penumbra é de um verde escuro e úmido, eu sei que já disse isso mas
repito por gosto de felicidade; quero a mesma coisa de novo e de
novo. De modo que, como eu ia sentindo e dizendo, lá estamos. E
estamos muito bem. Para falar a verdade, nunca estive tão bem. Por
quê? Não quero saber por quê. Cada um de nós está no seu lugar, eu
me submeto bem ao meu lugar. Vou até repetir um pouco mais
porque está ficando cada vez melhor: o leão amarelo e as borboletas
caladas, eu sentada no chão tricotando, e nós assim cheios de gosto
pela clareira verde. Nós somos contentes.
Clarice Lispector
Para não esquecer. Clarice Lispector. Editora Rocco. Rio de
Janeiro. 1999. p. 36 - 37.
16
Antes que cases I
Era um dia um rapaz de vinte e cinco anos, bonito e
celibatário, não rico, mas vantajosamente empregado. Não tinha
ambições, ou antes tinha uma ambição só; era amar loucamente uma
mulher e casar sensatamente com ela. Até então não se apaixonara
por nenhuma. Estreara algumas afeições que não passaram de
namoricos modestos e prosaicos. O que ele sonhava era outra coisa.
A viveza da imaginação e a leitura de certos livros lhe
desenvolveram o germe que a natureza lhe pusera no coração.
Alfredo Tavares (é o nome do rapaz) povoara o seu espírito de
Julietas e Virgínias, e aspirava noite e dia viver um romance como
só ele o podia imaginar. Em amor a prosa da vida metia-lhe nojo, e
ninguém dirá certamente que ela seja uma coisa inteiramente
agradável; mas a poesia é rara e passageira — a poesia como a
queria Alfredo Tavares, e não viver a prosa, na esperança de uma
poesia incerta, era arriscar-se a não viver absolutamente.
Este raciocínio não o fazia Alfredo. É até duvidoso que ele
raciocinasse alguma vez.
Alfredo devaneava e nada mais. Com a sua imaginação, vivia
às vezes séculos, sobretudo de noite à mesa do chá, que ele ia tomar
no Carceller. Os castelos que ele fabricava entre duas torradas eram
obras-primas de fantasia. Seus sonhos oscilavam entre o alaúde do
trovador e a gôndola veneziana, entre uma castelã da idade média e
uma fidalga da idade dos doges.
Não era isto só; era mais e menos. Alfredo não exigia
especialmente um sangue real; muita vez ia além da castelã, muita
vez vinha aquém da filha dos doges, sonhava com Semíramis e com
Ruth ao mesmo tempo.
O que ele pedia era o poético, o delicioso, o vago; uma
mulher bela e vaporosa, delgada se fosse possível, em todo o caso
vaso de quimeras, com quem iria suspirar uma vida mais do céu que
da terra, à beira de um lago ou entre duas colinas eternamente
verdes. A vida para ele devia ser a cristalização de um sonho. Essa
era nem mais nem menos a sua ambição e o seu desespero.
Alfredo Tavares adorava as mulheres bonitas. Um leitor
menos sagaz achará nisto uma vulgaridade. Não é; admirá-las, amá-
las, que é a regra comum; Alfredo adorava-as literalmente. Não caía
de joelhos porque a razão lhe dizia que seria ridículo; mas se o corpo
ficava de pé, o coração ajoelhava. Elas passavam e ele ficava mais
triste que dantes, até que a imaginação o levasse outra vez nas asas,
além e acima dos paralelepípedos e do Carceller.
Mas se a sua ambição era amar uma mulher, por que razão
não amara uma de tantas que adorava assim de passagem? Leitor,
nenhuma delas lhe tocara o verdadeiro ponto do coração. Sua
admiração era de artista; a bala que o devia matar, ou não estava
fundida, ou não fora disparada. Não seria porém difícil que uma das
que ele simplesmente admirava, lograsse dominar-lhe o coração;
bastava-lhe um quebrar de olhos, um sorriso, um gesto qualquer. A
imaginação dele faria o resto. Do que vai dito até aqui não se
conclua rigorosamente que Alfredo fosse apenas um habitante dos
vastos intermúndios de Epicuro, como dizia o Diniz. Não; Alfredo
não vivia sempre das suas quimeras. A outra viajava muito, mas a
besta comia, passeava, londreava, e até (ó desilusão última!), e até
engordava. Alfredo era refeito e corado devendo ser pálido e magro,
como convinha a um sonhador da sua espécie. Vestia com apuro,
regateava as suas contas, não era raro cear nas noites em que ia ao
teatro, tudo isto sem prejuízo dos seus sentimentos poéticos. Feliz
17
não era, mas também não torcia o nariz às necessidades vulgares da
vida. Casava o devaneio com a prosa.
Tal era Alfredo Tavares. Agora que o leitor o conhece, vou
contar o que lhe aconteceu, por onde verá o leitor como os
acontecimentos humanos dependem de circunstâncias fortuitas e
indiferentes. Chame
a isto acaso ou providência; nem por isso a coisa deixa de existir.
II
Uma noite, era em 1867, subia Alfredo pela Rua do Ouvidor.
Eram oito horas; ia aborrecido, impaciente, com vontade de se
distrair, mas sem vontade de falar a ninguém.
A Rua do Ouvidor oferecia boa distração, mas era um perigo
para quem não queria conversar. Alfredo reconheceu isto mesmo; e
chegando à esquina da Rua da Quitanda parou. Seguiria pela Rua da
Quitanda ou pela Rua do Ouvidor? That was the question.
Depois de hesitar uns dez minutos, e de tomar ora por uma,
ora por outra rua, Alfredo seguiu enfim pela da Quitanda na direção
da de São José. Sua idéia era subir depois por esta, entrar na da
Ajuda, ir pela do Passeio, dobrar a dos Arcos, vir pela do Lavradio
até ao Rocio, descer pela do Rosário até a Direita, onde iria tomar
chá ao Carceller, depois do que se recolheria a casa estafado e com
sono.
Foi neste ponto que interveio o personagem que o leitor pode
chamar Dom Acaso ou madre Providência, como lhe aprouver. Nada
mais fortuito que ir por uma rua em vez de ir por outra, sem
nenhuma necessidade que obrigue a seguir por esta ou por aquela.
Pois este ato assim fortuito é o ponto de partida da aventura de
Alfredo Tavares.
Havia em frente de uma loja, que ficava adiante do extinto
Correio Mercantil, um carro parado. Esta circunstância não chamou
a atenção de Alfredo; ele ia cheio de seu próprio aborrecimento, de
todo alheio ao mundo exterior. Mas uma mulher não é um carro, e a
coisa de seis passos da loja, Alfredo via assomar à porta uma
mulher, vestida de preto, e esperar que um criado lhe abrisse a
portinhola.
Alfredo parou.
A necessidade de esperar que a senhora entrasse no carro,
justificava este ato; mas a razão dele era pura e simplesmente a
admiração, o pasmo, o êxtase em que ficou o nosso Alfredo ao
contemplar, de perfil e à meia luz, um rosto idealmente belo, uma
figura elegantíssima, gravemente envolvida em singelas roupas
pretas, que lhe realçavam mais a alvura dos braços e do rosto. Eu
diria que o rapaz ficara embasbacado, se o permitisse a nobreza dos
seus sentimentos e o asseio do escrito.
A moça desceu a calçada, pôs um pé quase invisível no
estribo do carro e entrou; fechou-se a portinhola, o criado subiu a
almofada e o carro partiu. Alfredo só se moveu quando o carro
começou a andar. A visão desaparecera, mas o rosto dela ficara-lhe
na memória e no coração. O coração palpitava com força. Alfredo
apressou o passo atrás do carro, mas muito antes de chegar à esquina
da Rua da Assembléia, já o carro subia por esta acima.
Quis a sua felicidade que um tílburi viesse atrás dele e vazio.
Alfredo meteu-se no tílburi e mandou tocar atrás do carro. A
aventura sorria-lhe. O fortuito do encontro, a corrida de um veículo
atrás de outro, ainda que não fossem coisas raras, davam-lhe sempre
um ponto de partida para um romance.
Sua imaginação estava já além deste primeiro capítulo. A
moça devia ser uma Lélia perdida na realidade, uma Heloísa ignota
18
da sociedade fluminense, de quem ele seria, salvo algumas
alterações, o apaixonado Abelardo. Neste caminho de invenção
Alfredo tinha já mentalmente escrito muitos capítulos do seu
romance, quando o carro parou em frente de uma casa da Rua de
Mata-cavalos, chamada hoje de Riachuelo.
O tílburi parou a alguns passos.
Não tardou que a moça saísse do carro e entrasse na casa,
cuja aparência indicava certa abastança. O carro voltou depois pelo
mesmo caminho, a passo lento, enquanto o tílburi, também a passo
lento seguia para diante. Alfredo tomou nota da casa, e de novo
mergulhou-se nas suas reflexões.
O cocheiro do tílburi que até então guardara um inexplicável
silêncio, entendeu que devia oferecer os seus bons ofícios ao
freguês.
— V. S. ficou entusiasmado por aquela moça, disse ele com
ar sonso. É bem bonita!
— Parece que sim, respondeu Alfredo; vi-a de relance.
Morará ali mesmo?
— Mora.
— Ah! o senhor já ali foi...
— Duas vezes.
— Foi naturalmente levar o marido.
— É viúva.
— Sabe disso?
— Sei, sim, senhor... Onde pus eu o meu charuto?...
— Tome um.
Alfredo ofereceu um charuto de Havana ao cocheiro, que o
aceitou com muitos sinais de reconhecimento. Aceso o charuto, o
cocheiro continuou.
— Aquela moça é viúva e luxa muito. Muito homem anda aí
mordido por ela, mas parece que ela não quer casar.
— Como sabe disso?
— Eu moro ali na Rua do Resende. Não viu como o cavalo
queria quebrar a esquina?
Alfredo esteve um instante calado.
— Mora só? perguntou ele.
— Mora com uma tia velha e uma irmã mais moça.
— Sozinhas?
— Há também um primo.
— Moço?
— Trinta e tantos anos.
— Solteiro?
— Viúvo.
Alfredo confessou a si mesmo que este primo era carta
desnecessária no baralho.
Palpitou-lhe que seria um obstáculo às suas venturas. Se
fosse um pretendente? Era natural, se não estava morto para as
paixões da terra. Uma prima tão bonita é uma Eva tentada e
tentadora. Alfredo fantasiava já assim um inimigo e as forças dele,
antes de conhecer a disposição da praça.
O cocheiro deu-lhe algumas informações mais. Havia umas
partidas na casa da formosa dama, mas só de mês a mês, as quais
eram freqüentadas por algumas poucas pessoas escolhidas. Ângela,
que assim dizia ele chamar-se a moça, tinha alguns haveres, e viria a
herdar da tia, que já estava muito velha.
Alfredo recolheu carinhosamente as informações todas do
cocheiro, e o nome de Ângela para logo lhe ficou entranhado no
coração. Inquiriu do número do tílburi, o lugar onde estacionava e o
número da cocheira na Rua do Resende, e mandou voltar para baixo.
19
Ao passar em frente à casa de Ângela, Alfredo deitou para lá os
olhos. A sala estava alumiada, mas nenhum vulto de mulher ou de
homem lhe apareceu. Alfredo recostou-se molemente e o tílburi
partiu a todo o galope.
III
Alfredo estava contente consigo e com a fortuna. Depara-lhe
esta uma mulher como aquela senhora, teve ele a idéia de a seguir, as
circunstâncias o ajudaram poderosamente; sabia agora onde morava
a bela, sabia que era livre, e enfim, e mais que tudo, amava.
Amava, sim. Aquela primeira noite foi toda dedicada à
lembrança da visão ausente e passageira. Enquanto ela talvez dormia
no silêncio da sua alcova solitária, Alfredo pensava nela e fazia já de
longe mil castelos no ar. Um pintor não compõe na imaginação o seu
primeiro painel com mais amor do que ele delineava os incidentes da
sua paixão e o feliz desenlace que ela não podia deixar de ter.
Escusado é dizer que não entrava no espírito do solitário amador a
idéia de que Ângela fosse uma mulher vulgar. Era impossível que
uma mulher tão bela não fosse igualmente, em espírito, superior ou,
melhor, uma imaginação etérea, vaporosa, com aspirações análogas
às dele, que eram de viver como se poetisa. Isto devia ser Ângela,
sem o que não se cansaria a natureza a dar-lhe tão aprimorado
invólucro.
Com estas e outras reflexões foi passando a noite, e já a
aurora tingia o horizonte sem que o nosso aventuroso herói tivesse
dormido. Mas era preciso dormir e dormiu. O sol já ia alto quando
ele acordou. Ângela foi ainda o seu primeiro pensamento. Ao
almoço pensou nela, pensou nela durante o trabalho, nela pensou
ainda quando se sentou à mesa do hotel. Era a primeira vez que se
sentia tão fortemente abalado; não tinha que ver; era chegada a sua
hora.
De tarde foi a Mata-cavalos. Não achou ninguém à janela.
Passou três ou quatro vezes por diante da casa sem ver o menor
vestígio da moça. Alfredo era naturalmente impaciente e frenético;
este primeiro revés da fortuna o pôs de mau humor. A noite desse
dia foi pior que a anterior. A tarde seguinte, porém, alguma
compensação lhe deu. Ao avistar a casa deu com um vulto de mulher
à janela. Se não lho dissessem os olhos, dizia-lhe claramente o
coração que a mulher era Ângela. Alfredo ia pelo lado oposto, com
os olhos pregados na moça e tão apaixonados os levava, que se ela
os visse, não deixaria de lhes ler o que andava no coração do pobre
rapaz. Mas a moça, ou porque alguém a chamasse de dentro, ou
porque já estivesse aborrecida de estar à janela, entrou rapidamente,
sem dar fé do nosso herói.
Alfredo nem por isso ficou desconsolado.
Tinha visto outra vez a moça; tinha verificado que era
realmente uma formosura notável; sentia o coração cada vez mais
preso. Isto era o essencial. O resto seria objeto de paciência e de
fortuna.
Como era natural, amiudaram-se os passeios a Mata-cavalos.
A moça ora estava, ora não estava à janela; mas ainda ao cabo de
oito dias não reparara no paciente amador. No nono dia Alfredo foi
visto por Ângela. Não se admirou de que ele já de longe viesse a
olhar para ela, porque isso era o que faziam todos os rapazes que ali
passavam; mas a expressão com que ele olhava é que lhe chamou a
atenção.
Desviou contudo os olhos por não lhe parecer conveniente
que atendia ao desconhecido. Não tardou porém que de novo
20
olhasse; mas como ele não houvesse desviado os seus dela, Ângela
retirou-se.
Alfredo suspirou.
O suspiro de Alfredo tinha dois sentidos.
Era o primeiro uma homenagem do coração.
O segundo era uma confissão de desânimo.
O rapaz via claramente que o coração da bela não fora
tomado de assalto, como ele supunha. Todavia não tardou que
reconhecesse a possibilidade de pôr as coisas em bom
caminho, com o andar do tempo, e bem assim a obrigação que tinha
Ângela de não parecer namoradeira deixando-se ir ao sabor da
ternura que naturalmente havia de ter lido nos olhos dele.
Daí a quatro dias Ângela tornou a ver o rapaz; pareceu
reconhecê-lo, e mais depressa que da primeira vez, deixou a janela.
Alfredo desta vez enfiou. Um monólogo triste e à meia voz entrou a
correr-lhe dos lábios fora, monólogo em que ele acusava a sorte e a
natureza, culpadas de não terem feito e dirigido os corações de modo
que quando um amasse ao outro se afinasse pela mesma corda.
Queria ele dizer na sua que as almas deviam descer aos pares cá a
este mundo. O sistema era excelente, agora que ele amava a bela
viúva; se amasse alguma velha desdentada e tabaquista, o sistema
seria detestável.
Assim vai o mundo.
Cinco ou seis semanas correram assim, ora a vê-la e ela a
fugir-lhe, ora a não vê-la absolutamente e a passar noites atrozes.
Um dia, estando em uma loja na Rua do Ouvidor ou dos Ourives,
não sei bem onde foi, viu-a entrar acompanhada da irmã mais moça,
e estremeceu. Ângela olhou para ele; se o conheceu não o disse no
rosto, que se mostrou impassível. De outra vez indo a uma missa
fúnebre na Lapa, deu com os olhos na formosa esquiva; mas foi o
mesmo que se olhasse para uma pedra; a moça não se moveu; uma
só fibra do rosto não se lhe alterou.
Alfredo não tinha amigos íntimos a quem confiasse estas
coisas de coração. Mas o sentimento era mais forte, e ele sentia a
necessidade de derramar o que sentia no coração de alguém. Deitou
os olhos a um companheiro de passeios, com quem aliás não andava
desde a aventura da Rua da Quitanda. Tibúrcio era o nome do
confidente. Era um sujeito magro e amarelo, que se andasse
naturalmente podia apresentar uma figura sofrivelmente elegante,
mas que tinha o sestro de contrariar a natureza dando-lhe um jeito
particular e perfeitamente ridículo. Votava todas as senhoras
honestas ao maior desprezo; e era muito querido e festejado na roda
das que o não eram. Alfredo reconhecia isto mesmo; mas olhava-lhe
algumas qualidades boas, e sempre o considerara seu amigo. Não
hesitou portanto em dizer tudo a Tibúrcio. O amigo ouviu
lisonjeado a narração.
— É de fato bonita?
— Oh! não sei como a descreva!
— Mas é rica?...
— Não sei se o é... sei que por ora tudo é inútil; pode ser que
ame alguém e esteja até para casar com o tal primo, ou com outro
qualquer. O certo é que eu estou cada vez pior.
— Imagino.
— Que farias tu?
— Eu insistia.
— Mas se nada alcançar?
— Insiste sempre. Já arriscaste uma carta?
— Oh! não!
Tibúrcio refletiu.
21
— Tens razão, disse ele; seria inconveniente. Não sei que te
diga; eu nunca naveguei nesses mares. Ando cá por outros, cujos
parcéis conheço, e cuja bússola é conhecida por todos.
— Se eu pudesse esquecer-me dela, disse Alfredo que
nenhuma atenção prestara às palavras do amigo, já tinha deixado isto
de mão. Às vezes penso que estou fazendo figura ridícula, porque
enfim ela é pessoa de outra sociedade...
— O amor iguala as distâncias, disse sentenciosamente
Tibúrcio.
— Então parece-te?...
— Parece-me que deves continuar como hoje; e se daqui a
algumas semanas mais nada houveres adiantado, fala-me porque eu
terei meio de te dar algum conselho bom.
Alfredo apertou fervorosamente as mãos do amigo.
— Entretanto, continuou este, seria bom que eu a visse;
talvez que, não estando namorado como tu, possa conhecer-lhe o
caráter e saber se é frieza ou soberba o que a faz até agora esquiva.
Interiormente Alfredo fez uma careta. Não lhe parecia conveniente
passar por casa de Ângela acompanhado de outro, o que tiraria ao
seu amor o caráter romântico de um padecimento solitário e discreto.
Era entretanto impossível recusar nada a um amigo que se
interessava por ele. Convieram em que iriam nessa mesma tarde a
Mata-cavalos.
— Acho bom, disse o namorado alegre com uma idéia súbita,
acho bom que não passemos juntos; tu irás adiante e eu um pouco
atrás.
— Pois sim. Mas estará ela à janela hoje?
— Talvez; estes últimos cinco dias tenho-a visto sempre à
janela.
— Oh! isso é já um bom sinal.
— Mas não olha para mim.
— Dissimulação!
— Aquele anjo?
— Eu não creio em anjos, respondeu filosoficamente
Tibúrcio, não creio em anjos naterra. O mais que posso conceder
neste ponto é que os haja no céu; mas é apenas uma hipótese vaga.
IV
Nessa mesma tarde foram os dois a Mata-cavalos, na ordem
convencionada. Ângela estava à janela, acompanhada da tia velha e
da irmã mais moça. Viu de longe o namorado, mas não fitou os
olhos nele; Tibúrcio pela sua parte não desviava os seus da formosa
dama. Alfredo passou como sempre.
Os dois amigos foram reunir-se quando já não podiam estar
ao alcance dos olhos dela.
Tibúrcio fez um elogio à beleza da moça que o amigo ouviu
encantado, como se lhe estivessem a elogiar uma obra sua.
— Oh! hei de ser muito feliz! exclamou ele num acesso de
entusiasmo.
— Sim, concordou Tibúrcio; creio que hás de ser feliz.
— Que me aconselhas?
— Mais alguns dias de luta, uns quinze, por exemplo, e
depois uma carta...
— Já tinha pensado nisso, disse Alfredo; mas receava errar;
precisava da opinião de alguém. Uma carta, assim, sem nenhum
fundamento de esperança, sai fora da norma comum; por isso mesmo
me seduz. Mas como hei de mandar a carta?
— Isto agora é contigo, disse Tibúrcio; vê se tens meio de
travar relações com algum criado da casa, ou...
— Ou o cocheiro do tílburi! exclamou triunfalmente Alfredo
Tavares.
22
Tibúrcio exprimiu com a cara o último limite do assombro ao
ouvir estas palavras de
Alfredo; mas o amigo não se deteve em explicar-lhe que
havia um cocheiro de tílburi meio confidente neste negócio. Tibúrcio
aprovou o cocheiro; ficou assentado que o meio da carta seria
aplicado.
Os dias correram sem incidente notável. Perdão; houve um
notável incidente.
Alfredo passava uma tarde por baixo das janelas de Ângela.
Ela não olhava para ele. De repente Alfredo ouve um pequeno grito
e vê passar-lhe por diante dos olhos alguma coisa parecida com um
lacinho de fita.
Era efetivamente um lacinho de fita que caíra no chão.
Alfredo olhou para cima; já não viu a viúva. Olhou em roda de si,
abaixou-se, apanhou o laço e guardou-o na algibeira.
Dizer o que havia dentro da sua alma naquele venturoso
instante é tarefa que pediria muito tempo e mais adestrado pincel.
Alfredo mal podia conter o coração. A vontade que tinha era beijar
ali mesmo na rua o laço, que ele já considerava uma parte da sua
bela.
Reprimiu-se contudo; foi até o fim da rua; voltou por ela;
mas, contra o costume daqueles últimos dias, a moça não apareceu.
Esta circunstância era suficiente para fazer crer na
Casualidade da queda do laço. Assim pensava Alfredo; ao mesmo
tempo porém perguntava se não era possível que Ângela,
envergonhada da sua audácia, quisesse agora evitar a presença dele e
não menos as vistas curiosas da vizinhança.
— Talvez, dizia ele.
Daí a um instante:
— Não, não é possível tamanha felicidade. O grito que soltou
foi de sincera surpresa. A fita foi casual. Nem por isso a adorarei
menos...
Apenas chegou à casa, Alfredo tirou o laço, que era de fita
azul, e devia ter estado no colo ou no cabelo da viúva. Alfredo
beijou-o cerca de vinte e cinco vezes e, se a natureza o tivesse feito
poeta, é provável que naquela mesma ocasião expectorasse dez ou
doze estrofes em que diria estar naquela fita um pedaço da alma da
bela; a cor da fita serviria para fazer bonitas e adequadas
comparações com o céu.
Não era poeta o nosso Alfredo; contentou-se em beijar o
precioso despojo, e não deixou de referir o episódio ao seu
confidente.
— Na minha opinião, disse este, é chegada a ocasião de
lançar a carta.
— Creio que sim.
— Não sejas mole.
— Há de ser já amanhã.
Alfredo não contava com a instabilidade das coisas humanas.
A amizade na terra, ainda quando o coração a mantenha, está
dependente do fio da vida. O cocheiro do tílburi não se teria
provavelmente esquecido do seu freguês de uma noite; mas tinha
morrido no intervalo daquela noite ao dia em que Alfredo o foi
procurar.
— É demais! exclamou Alfredo; parece que a sorte se
compraz de multiplicar os obstáculos com que eu esbarro a cada
passo! Aposto que esse homem não morria se eu não precisasse dele.
O destino persegue-me... Mas nem por isso hei de curvar a cabeça...
Oh! não!
23
Com esta boa resolução se foi o namorado em busca de outro
meio. A sorte trouxe-lhe um excelente. Vagou a casa contígua à de
Ângela; era uma casa pequena, elegantezinha, própria para um ou
dois rapazes solteiros... Alfredo alugou a casa e foi dizê-lo
triunfalmente ao seu amigo.
— Fizeste muito bem! exclamou este; o golpe é de mestre.
Estando ao pé é impossível que não chegues a algum resultado.
— Tanto mais que ela já me conhece, disse Alfredo; deve ver
nisso uma prova de amor.
— Justamente!
Alfredo não se demorou em fazer a mudança; dali a dois dias
estava na sua casa nova. É escusado dizer que o laço azul não foi em
alguma gaveta ou caixinha; foi na algibeira dele.
V
Tanto a casa de Ângela como a de Alfredo tinham um jardim
no fundo. Alfredo quase morreu de contentamento quando descobriu
esta circunstância.
— É impossível, pensava ele, que aquela moça tão poética,
não goste de passear no jardim. Vê-la-ei desta janela do fundo, ou
por cima da cerca se for baixa. Será?
Alfredo desceu à cerca e verificou que a cerca lhe dava pelo
peito.
— Bom! disse ele. Nem de propósito!
Agradeceu mentalmente à sorte que ainda há poucos dias
amaldiçoava e subiu para pôr os seus objetos em ordem e dar alguns
esclarecimentos ao criado.
Nesse mesmo dia de tarde, estando à janela, viu a moça.
Ângela encarou com ele como quem duvidava do que via; mas
passado esse momento de exame, pareceu não lhe dar atenção.
Alfredo, cuja intenção era cumprimentá-la, com o pretexto da
vizinhança, esqueceu-se completamente da formalidade. Em vão
procurou nova ocasião. A moça parecia alheia à sua pessoa.
— Não faz mal, disse ele consigo; o essencial é que eu esteja
aqui ao pé.
A moça parecia-lhe agora ainda mais bonita. Era uma beleza
que ainda ganhava mais quando examinada de perto. Alfredo
reconheceu que era de todo impossível pensar em outra mulher deste
mundo ainda que aquela devesse fazê-lo desgraçado.
No segundo dia foi mais feliz. Chegou à janela
repentinamente na ocasião em que ela e a tia estavam à sua; Alfredo
cumprimentou-as respeitosamente. Elas corresponderam com um
leve gesto.
O conhecimento estava travado.
Nem por isso adiantou o namoro, porque durante a tarde os
olhos de ambos não se encontraram e a existência de Alfredo parecia
ser a última coisa de que Ângela se lembrava.
Oito dias depois, estando Alfredo à janela, viu chegar a moça
sozinha, com uma flor na mão. Ela olhou para ele; cumprimentaram.
Era a primeira vez que Alfredo alcançava alguma coisa. A
sua alma voou ao sétimo céu.
A moça recostou-se na grade com a flor na mão, a brincar
distraída, não sei se por brincar, se por mostrar a mão ao vizinho. O
certo é que Alfredo não tirava os olhos da mão. A mão era digna
irmã do pé, que Alfredo entrevira na Rua da Quitanda.
O rapaz estava fascinado.
Mas quando ele quase perdeu o juízo foi na ocasião em que
ela, indo retirar-se da janela, encarou outra vez com ele. Não havia
severidade nos lábios; Alfredo viu-lhe até uma sombra de sorriso.
24
— Sou feliz! exclamou Alfredo entrando. Enfim, consegui já
alguma coisa.
Dizendo isto deu alguns passos na sala, agitado, rindo,
mirando-se ao espelho, completamente fora de si. Dez minutos
depois chegou à janela; outros dez minutos depois chegava Ângela.
Olharam-se ainda uma vez.
Era a terceira naquela tarde, depois de tantas semanas da
mais profunda indiferença.
A imaginação de Alfredo não o deixou dormir nessa noite.
Pelos seus cálculos dentro de dois meses iria pedir-lhe a mão.
No dia seguinte não a viu e ficou desesperado com esta
circunstância. Felizmente o criado, que já havia percebido alguma
coisa, achou meio de lhe dizer que a família da casa vizinha saíra de
manhã e não voltara.
Seria uma mudança?
Esta idéia veio fazer da noite de Alfredo uma noite de
angústias. No dia seguinte trabalhou mal. Jantou às pressas e foi para
casa. Ângela estava à janela.
Quando Alfredo apareceu à sua e a cumprimentou, viu que
ela tinha outra flor na mão; era um malmequer.
Alfredo ficou logo embebido a contemplá-la; Ângela
começou a desfolhar o malmequer, como se estivesse consultando
sobre algum problema do coração.
O namorado não se deteve mais; correu a uma gavetinha de
segredo, tirou o laço de fita azul, e veio para a janela com ele.
A moça tinha desfolhado toda a flor; olhou para ele e viu o
lacinho que lhe caíra da cabeça.
Estremeceu e sorriu.
Daqui em diante compreende o leitor que as coisas não
podiam deixar de caminhar.
Alfredo conseguiu vê-la um dia no jardim, assentada dentro
de um caramanchão, e já desta vez o cumprimento foi acompanhado
de um sorriso. No dia seguinte ela já não estava no caramanchão;
passeava. Novo sorriso e três ou quatro olhares.
Alfredo arriscou a primeira carta.
A carta era escrita com fogo; falava de um céu, de um anjo,
de uma vida toda poesia e amor. O moço oferecia-se para morrer a
seus pés se fosse preciso.
A resposta veio com prontidão.
Era menos ardente; direi até que não havia ardor nenhum;
mas simpatia sim, e muita simpatia, entremeada de algumas dúvidas
e receios, e frases bem dispostas para espertar os brios de um
coração que todo se desfazia em sentimento.
Travou-se então um duelo epistolar que durou cerca de um
mês antes da entrevista.
A entrevista verificou-se ao pé da cerca, de noite, pouco
depois das ave-marias, tendo Alfredo mandado o criado ao seu
amigo e confidente Tibúrcio com uma carta em que lhe pedia que
detivesse o portador até às oito horas ou mais.
Convém dizer que esta entrevista era perfeitamente
desnecessária.
Ângela era livre; podia escolher livremente um segundo
marido; não tinha de quem esconder os seus amores.
Por outro lado, não era difícil a Alfredo obter uma
apresentação em casa da viúva, se lhe conviesse entrar
primeiramente assim, antes de lhe pedir a mão.
Todavia, o namorado insistiu na entrevista do jardim, que ela
recusou a princípio. A entrevista entrava no sistema poético de
Alfredo, era uma leve reminiscência da cena de Shakespeare.
25
VI
— Juras então que me amas?
— Juro.
— Até à morte?
— Até à morte.
— Também eu te amo, minha querida Ângela, não de hoje,
mas há muito, apesar dos teus desprezos...
— Oh!
— Não direi desprezos, mas indiferença... Oh! mas tudo lá
vai; agora somos dois corações ligados para sempre.
— Para sempre!
Neste ponto ouviu-se um rumor na casa de Ângela.
— Que é? perguntou Alfredo.
Ângela quis fugir.
— Não fujas!
— Mas...
— Não é nada; algum criado...
— Se dessem por mim aqui!
— Tens medo?
— Vergonha.
A noite encobriu a mortal palidez do namorado.
— Vergonha de amar! exclamou ele.
— Quem te diz isso? Vergonha de me acharem aqui,
expondo-me às calúnias, quando nada impede que tu...
Alfredo reconheceu a justiça.
Nem por isso deixou de meter a mão nos cabelos com um
gesto de aflição trágica, que a noite continuava a encobrir aos olhos
da formosa viúva.
— Olha! o melhor é vires à nossa casa. Autorizo-te a pedir a
minha mão.
Conquanto ela já houvesse indicado isto nas cartas, era a
primeira vez que formalmente o dizia. Alfredo viu-se transportado
ao sétimo céu. Agradeceu a autorização que lhe dava e
respeitosamente beijou-lhe a mão.
— Agora, adeus!
— Ainda não! exclamou Alfredo.
— Que imprudência!
— Um instante mais!
— Ouves? disse ela prestando o ouvido ao rumor que se fazia
na casa.
Alfredo respondeu apaixonada e literariamente:
— Não é a calhandra, é o rouxinol!
— É a voz de minha tia! observou a viúva prosaicamente.
Adeus...
— Uma última coisa te peço antes de ir à tua casa.
— Que é?
— Outra entrevista neste mesmo lugar.
— Alfredo!
— Outra e última.
Ângela não respondeu.
— Sim?
— Não sei, adeus!
E libertando a sua mão das mãos do namorado que a retinha
com força, Ângela correu para casa.
Alfredo ficou triste e alegre ao mesmo tempo.
Ouvira a doce voz de Ângela, tivera nas suas a sua mão alva
e macia como veludo, ouvira jurar que o amava, enfim estava
autorizado a pedir-lhe solenemente a mão.
A preocupação, porém da moça a respeito do que pensaria a
tia afigurou-se-lhe extremamente prosaica. Quisera vê-la toda
26
poética, embebida no seu amor, esquecida do resto do mundo, morta
para tudo o que não fosse o bater do seu coração.
A despedida sobretudo pareceu-lhe repentinamente demais.
O adeus foi antes de medo que de amor, não se despediu, fugiu. Ao
mesmo tempo esse sobressalto era dramático e interessante; mas por
que não conceder-lhe segunda entrevista?
Enquanto ele fazia estas reflexões, Ângela pensava na
impressão que lhe teria deixado e na mágoa que por ventura lhe
ficara da recusa de uma segunda e última entrevista.
Refletiu longo tempo e resolveu remediar o mal, se mal se
podia aquilo chamar.
No dia seguinte, logo cedo, recebeu Alfredo um bilhetinho da
namorada.
Era um protesto de amor, com uma explicação da fuga da
véspera e uma promessa de outra entrevista na seguinte noite, depois
da qual ele iria pedir-lhe oficialmente a mão.
Alfredo exultou.
Nesse dia a natureza pareceu-lhe melhor. O almoço foi
excelente apesar de lhe terem dado um filet tão duro como sola e de
estar o chá frio como água. O patrão nunca lhe pareceu mais amável.
Todas as pessoas que encontrava tinham cara de excelentes amigos.
Enfim, até o criado ganhou com os sentimentos alegres do amo:
Alfredo deu-lhe uma boa molhadura pela habilidade com que lhe
escovara as botas, que, entre parênteses, nem sequer levavam graxa.
Verificou-se a entrevista sem nenhum incidente notável.
Houve os costumados protestos:
— Amo-te muito!
— E eu!
— És um anjo!
— Seremos felizes.
— Deus nos ouça!
— Há de ouvir-nos.
Estas e outras palavras foram o estribilho da entrevista que
durou apenas meia hora.
Nessa ocasião Alfredo desenvolveu o seu sistema de vida, a
maneira por que ele encarava o casamento, os sonhos de amor que
haviam realizar, e mil outros artigos de um programa de namorado,
que a moça ouviu e aplaudiu.
Alfredo despediu-se contente e feliz.
A noite que passou foi a mais deliciosa de todas. O sonho
que ele procurara durante tanto tempo ia enfim realizar-se; amava a
uma mulher como ele a queria e imaginava. Nenhum obstáculo se
oferecia à sua ventura na terra.
No outro dia de manhã entrando no hotel, encontrou o amigo
Tibúrcio; e referiu-lhe tudo.
O confidente felicitou o namorado pelo triunfo que alcançara
e deu-lhe logo um aperto de mão, não podendo dar-lhe, como
quisera, um abraço.
— Se soubesses como vou ser feliz!
— Sei.
— Que mulher! que anjo!
— Sim! é bonita.
— Não é só bonita. Bonitas há muitas. Mas a alma, a alma
que ela tem, a maneira de sentir, tudo isso e mais, eis o que faz uma
criatura superior.
— Quando será o casamento?
— Ela o dirá.
— Há de ser breve.
— Dentro de três a quatro meses.
27
Aqui fez Alfredo um novo hino em louvor das qualidades
eminentes e raras da noiva e pela centésima vez defendeu a vida
romanesca e ideal. Tibúrcio observou gracejando que lhe era
necessário primeiro suprimir o bife que estava comendo, observação
que Alfredoteve a franqueza de achar descabida e um pouco tola.
A conversa, porém, não teve incidente desagradável e os dois
amigos separaram-se como dantes, não sem que o noivo agradecesse
ao confidente a animação que lhe dera nos piores dias do seu amor.
— Enfim, quando a vais pedir?
— Amanhã.
— Coragem!
VII
Não é minha intenção nem vem ao caso referir ao leitor todos
os episódios de Alfredo Tavares.
Até aqui foi necessário contar alguns e resumir outros. Agora
que o namoro chegou ao seu termo e que o período do noivado vai
começar, não quero fatigar a atenção do leitor com uma narração que
nenhuma variedade apresenta. Justamente três meses depois da
segunda entrevista recebiam-se os dois noivos, na igreja da Lapa, em
presença de algumas pessoas íntimas, entre as quais o confidente de
Alfredo, um dos padrinhos. O outro era o primo de Ângela, de quem
falara o cocheiro do tílburi, e que até agora não apareceu nestas
páginas por não ser preciso. Chamava-se Epaminondas e tinha a
habilidade de desmentir o padre que tal nome lhe dera, pregando a
cada instante a sua peta. A circunstância não vem ao caso e por isso
não insisto nela.
Casados os dois namorados foram passar a lua-de-mel na
Tijuca, onde Alfredo escolhera casa adequada às circunstâncias e ao
seu gênio poético.
Durou um mês esta ausência da corte. No trigésimo primeiro
dia, Ângela viu anunciada uma peça nova no Ginásio e pediu ao
marido para virem à cidade.
Alfredo objetou que a melhor comédia deste mundo não valia
o aroma das laranjeiras que estavam florindo e o melancólico som do
repuxo do tanque. Ângela encolheu os ombros e fechou a cara.
— Que tens, meu amor? perguntou-lhe daí a vinte minutos o
marido.
Ângela olhou para ele com um gesto de lástima, ergueu-se e
foi encerrar-se na alcova.
Dois recursos restavam a Alfredo.
1º Coçar a cabeça.
2º Ir ao teatro com a mulher.
Alfredo curvou-se a estas duas necessidades da situação.
Ângela recebeu-o muito alegremente quando ele lhe foi dizer
que iriam ao teatro.
— Nem por isso, acrescentou Alfredo, nem por isso deixo de
sentir algum pesar. Vivemos tão bem estes trinta dias.
— Voltaremos para o ano.
— Para o ano!
— Sim, alugaremos outra casa.
— Mas então esta?...
— Esta acabou. Pois querias viver num desterro?
— Mas eu pensei que era um paraíso, disse o marido com ar
melancólico.
— Paraíso é coisa de romance.
A alma de Alfredo levou um trambolhão. Ângela viu o efeito
produzido no esposo pelo seu reparo e procurou suavizá-lo, dizendo-
lhe algumas coisas bonitas com que ele algum tempo mitigou as suas
penas.
28
— Olha, Ângela, disse Alfredo, o casamento, como eu
imaginei sempre, é uma vida solitária de dois entes que se amam...
Seremos nós assim?
— Por que não?
— Juras então...
— Que seremos felizes.
A resposta era elástica. Alfredo tomou-a ao pé da letra e
abraçou a mulher.
Naquele mesmo dia vieram para a casa da tia e foram ao
teatro.
A nova peça do Ginásio aborreceu tanto o marido quanto
agradou à mulher. Ângela parecia fora de si de contente. Quando
caiu o pano no último ato, disse ela ao esposo:
— Havemos de vir outra vez.
— Gostaste?
— Muito. E tu?
— Não gostei, respondeu Alfredo com evidente mau humor.
Ângela levantou os ombros, com o ar de quem dizia:
— Gostes ou não, hás de cá voltar.
E voltou.
Este foi o primeiro passo de uma carreira que parecia não
acabar mais.
Ângela era um turbilhão.
A vida para ela estava fora de casa. Em casa morava a morte,
sob a figura do aborrecimento. Não havia baile a que faltasse, nem
espetáculo, nem passeio, nem festa célebre, e tudo isto cercado de
muitas rendas, jóias e sedas, que ela comprava todos os dias, como
se o dinheiro nunca devesse acabar.
Alfredo esforçava-se por atrair a mulher à esfera dos seus
sentimentos românticos; mas era esforço vão.
Com um levantar de ombros, Ângela respondia a tudo.
Alfredo detestava principalmente os bailes, porque era
quando a mulher menos lhe pertencia, sobretudo os bailes dados em
casa dele.
Às observações que ele fazia nesse sentido, Ângela respondia
sempre:
— Mas são obrigações da sociedade; se eu quisesse ser freira
metia-me na Ajuda.
— Mas nem todos...
— Nem todos conhecem os seus deveres.
— Oh! a vida solitária, Ângela! a vida para dois!
— A vida não é um jogo de xadrez.
— Nem um arraial.
— Que queres dizer com isso?
— Nada.
— Pareces tolo.
— Ângela...
— Ora!
Levantava os ombros e deixava-o sozinho.
Alfredo era sempre o primeiro a fazer as pazes. A influência
que a mulher exercia nele não podia ser mais decisiva. Toda a
energia estava com ela; ele era literalmente um fâmulo da casa.
Nos bailes a que iam, o suplício além de ser grande em si
mesmo, era aumentado com os louvores que Alfredo ouvia fazer à
mulher.
— Lá está Ângela, dizia um.
— Quem é?
— É aquela de vestido azul.
— A que se casou?
— Pois casou?
29
— Casou, sim.
— Com quem?
— Com um rapaz bonachão.
— Feliz mortal!
— Onde está o marido?
— Caluda! está aqui: é este sujeito triste que está consertando
a gravata...
Estas e outras considerações irritavam profundamente
Alfredo. Ele via que era conhecido por causa da mulher. A pessoa
dele era uma espécie de cifra. Ângela é que era a unidade.
Não havia meio de se recolher cedo. Ângela entrando num
baile só se retirava com as últimas pessoas. Cabia-lhe perfeitamente
a expressão que o marido empregou num dia de mau humor:
— Tu espremes um baile até o bagaço.
Às vezes estava o mísero em casa, descansando e
alegremente conversando com ela, abrindo todo o pano à
imaginação. Ângela, ou por aborrecimento, ou por desejo invencível
de passear, ia vestir-se e convidava o marido a sair. O marido já não
recalcitrava; suspirava e vestia-se. Do passeio voltava ele
aborrecido, e ela alegre, além do mais porque não deixava de
comprar um vestido novo e caro, uma jóia, um enfeite qualquer.
Alfredo não tinha forças para reagir.
O menor desejo de Ângela era para ele uma lei de ferro;
cumpria-a por gosto e por fraqueza.
Nesta situação, Alfredo sentiu necessidade de desabafar com
alguém. Mas esse alguém não aparecia. Não lhe convinha falar ao
Tibúrcio, por não querer confiar a um estranho, embora amigo, as
suas zangas conjugais. A tia de Ângela parecia apoiar a sobrinha em
tudo. Alfredo lembrou-se de pedir conselho a Epaminondas.
VIII
Epaminondas ouviu atentamente as queixas do primo.
Achou-as exageradas, e foi o menos que lhe podia dizer, porque no
seu entender eram verdadeiros despropósitos.
— O que você quer é realmente impossível.
— Impossível?
— Decerto. A prima está moça, quer naturalmente divertir-
se. Por que razão há de viver como freira?
— Mas eu não peço que viva como freira. Quisera vê-la mais
em casa, menos aborrecida quando está só comigo. Lembra-se da
nossa briga do domingo?
— Lembro-me. Você queria ler-lhe uns versos e ela
respondeu que não a aborrecesse.
— Que tal?...
Epaminondas recolheu-se a um eloqüente silêncio.
Alfredo esteve também algum tempo calado. Enfim:
— Estou resolvido a usar da minha autoridade de marido.
— Não caia nessa.
— Mas então devo viver eternamente nisto?
— Eternamente já vê que é impossível, disse Epaminondas
sorrindo. Mas veja bem o risco que corre. Eu tive uma prima que se
vingou do marido por uma dessas. Parece incrível! Cortou a si
mesma o dedo mínimo do pé esquerdo e deu-lhe a comer com
batatas.
— Está brincando...
— Estou falando sério. Chamava-se Lúcia. Quando ele
reconheceu que efetivamente tinha devorado a carne da sua carne,
teve um ataque.
— Imagino.
30
— Dois dias depois expirou de remorsos. Não faça tal; não
irrite uma mulher. Dê tempo ao tempo. A velhice há de curá-la e
trazê-la a costumes pacíficos.
Alfredo fez um gesto de desespero.
— Sossegue. Também eu fui assim. Minha finada mulher...
— Era do mesmo gosto?
— Do mesmíssimo. Quis contrariá-la. Ia-me custando a vida.
— Sim?
— Tenho aqui entre duas costelas uma cicatriz larga; foi uma
canivetada que Margarida me deu estando eu a dormir muito
tranqüilamente.
— Que me diz?
— A verdade. Mal tive tempo de lhe segurar no pulso e
arrojá-la para longe de mim. A porta do quarto estava fechada com o
trinco mas foi tal a força com que a empurrei que a porta se abriu e
ela foi parar ao fim da sala.
— Ah!
Alfredo lembrou-se a tempo do sestro do primo e deixou-o
falar a gosto. Epaminondas engendrou logo ali um ou dois capítulos
de romance sombrio e ensangüentado. Alfredo, aborrecido, deixou-o
só.
Tibúrcio encontrou-o algumas vezes cabisbaixo e
melancólico. Quis saber da causa, mas Alfredo conservou prudente
reserva.
A esposa deu ampla liberdade aos seus caprichos. Fazia
recepções todas as semanas, apesar dos protestos do marido que, no
meio da sua mágoa, exclamava:
— Mas então eu não tenho mulher! tenho uma locomotiva!
Exclamação que Ângela ouvia sorrindo sem lhe dar a mínima
resposta.
Os cabedais da moça eram poucos; as despesas muitas. Com
as mil coisas em que se gastava o dinheiro não era possível que ele
durasse toda a vida. Ao cabo de cinco anos, Alfredo reconheceu que
tudo estava perdido.
A mulher sentiu dolorosamente o que ele lhe contou.
— Sinto isto deveras, acrescentou Alfredo; mas a minha
consciência está tranqüila.
Sempre me opus a despesas loucas...
— Sempre?
— Nem sempre, porque te amava e amo, e doía-me ver que
ficavas triste; mas a maior parte delas opus-me com todas as forças.
— E agora?
— Agora precisamos ser econômicos; viver como pobres.
Ângela curvou a cabeça.
Seguiu-se um grande silêncio.
O primeiro que o rompeu foi ela.
— É impossível!
— Impossível o quê?
— A pobreza.
— Impossível, mas necessária, disse Alfredo com filosófica
tristeza.
— Não é necessária; eu hei de fazer alguma coisa; tenho
pessoas de amizade.
— Ou um Potosí...
Ângela não se explicou mais; Alfredo foi para a casa de
negócio que estabelecera, não descontente com a situação.
— Não estou bem, pensava ele; mas ao menos terei mudado
a minha situação conjugal.
Os quatro dias seguintes passaram sem novidade.
Houve sempre uma novidade.
31
Ângela está muito mais carinhosa com o marido do que até
então. Alfredo atribuía esta mudança às circunstâncias atuais e
agradeceu à boa estrela que tão venturoso o tornara.
No quinto dia Epaminondas foi falar a Alfredo propondo-lhe
ir pedir ao governo uma concessão e privilégio de minas em Mato
Grosso.
— Mas eu não me meto em explorador de minas.
— Perdão; vendemos o privilégio.
— Está certo disso? perguntou Alfredo tentado.
— Certíssimo.
E logo:
— Temos, além disso, outra empresa: uma estrada de ferro
no Piauí. Vende-se a empresa do mesmo modo.
— Tem elementos para ambas as coisas?
— Tenho.
Alfredo refletiu.
— Aceito.
Epaminondas declarou que alcançaria tudo do ministro.
Tantas coisas disse que o primo, sabedor dos carapetões que ele
pregava, começou a desconfiar.
Errava desta vez.
Pela primeira vez Epaminondas falava verdade; tinha
elementos para alcançar as duas empresas.
Ângela não perguntou ao marido a causa da preocupação
com que ele nesse dia entrou em casa. A idéia de Alfredo era tudo
ocultar à mulher, pelo menos enquanto pudesse.
Confiava no resultado dos seus esforços para trazê-la a
melhor caminho.
Os papéis andaram com uma prontidão rara em coisas
análogas. Parece que uma fada benfazeja se encarregava de adiantar
o negócio.
Alfredo conhecia o ministro. Duas vezes fora convidado para
lá tomar chá e tivera além disso a honra de o receber em casa
algumas vezes. Nem por isso julgava ter direito à pronta solução do
negócio. O negócio, porém, corria mais veloz que uma locomotiva.
Não se haviam passado dois meses depois da apresentação do
memorial quando Alfredo, ao entrar em casa, foi surpreendido por
muitos abraços e beijos da mulher.
— Que temos? disse ele todo risonho.
— Vou dar-te um presente.
— Um presente?
— Que dia é hoje?
— Vinte e cinco de março.
— Fazes anos.
— Nem me lembrava.
— Aqui está o meu presente.
Era um papel.
Alfredo abriu o papel.
Era o decreto de privilégio das minas.
Alfredo ficou literalmente embasbacado.
— Mas como veio isto?...
— Quis causar-te esta surpresa. O outro decreto há de vir de
aqui a oito dias.
— Mas então sabia que eu...?
— Sabia tudo.
Quem te disse?...
Ângela titubeou.
— Foi... foi o primo Epaminondas.
32
A explicação satisfez Alfredo durante três dias.
No fim desse tempo abriu um jornal e leu com pasmo esta
mofina:
Mina de caroço, Com que então os cofres públicos já servem
para nutrir o fogo no coração dos ministros? Quem pergunta quer
saber.
Alfredo rasgou o jornal no primeiro ímpeto.
Depois...
IX
— Mas em suma que tens? disse Tibúrcio ao ver que Alfredo
não se atrevia a falar.
— O que tenho? Fui à cata de poesia e acho-me em prosa
chata e baixa. Ah! meu amigo quem me mandou seguir pela Rua da
Quitanda?
Machado de Assis
http://www2.uol.com.br/machadodeassis
A chegada de Lampião ao céu
Foi numa Semana Santa
Tava o céu em oração
São Pedro estava na porta
Refazendo anotação
Daqueles santos faltosos
Quando chegou Lampião.
Pedro pulou da cadeira
Do susto que recebeu
Puxou as cordas do sino
Bem forte nele bateu
Uma legião de santos
Ao seu lado apareceu.
São Jorge chegou na frente
Com sua lança afiada
Lampião baixou os óculos
Vendo aquilo deu risada
Pedro disse: Jorge expulse
Ele da santa morada..
E tocou Jorge a corneta
Chamando sua guarnição
Numa corrente de força
Cada santo em oração
Pra que o santo Pai Celeste
Não ouvisse a confusão.
O pilotão apressado
Ligeiro marcou presença
Pedro disse a Lampião:
Eu lhe peço com licença
Saia já da porta santa
Ou haverá desavença.
Lampião lhe respondeu:
Mas que santo é o senhor?
Não aprendeu com Jesus
Excluir ódio e rancor?...
Trago paz nesta missão
Não precisa ter temor.
Disse Pedro isso é blasfêmia
É bastante astucioso
Pistoleiro e cangaceiro
Esse povo é impiedoso
Não ganharão o perdão
33
Do santo Pai Poderoso
Inda mais tem sua má fama
Vez por outra comentada
Quando há um julgamento
Duma alma tão penada
Porque fora violenta
Em sua vida é baseada.
- Sei que sou um pecador
O meu erro reconheço
Mas eu vivo injustiçado
Um julgamento eu mereço
Pra sanar as injustiças
Que só me causam tropeço.
Mas isso não faz sentido
Falou São Pedro irritado
Por uma tribuna livre
Você aqui foi julgado
E o nosso Onipotente
Deu seu caso encerrado.
- Como fazem julgamento
Sem o réu estar presente?
Sem ouvir sua defesa?
Isso é muito deprimente
Você Pedro está mentindo
Disso nunca esteve ausente.
Sobre o batente da porta
Pedro bateu seu cajado
De raiva deu um suspiro
E falou muito exaltado:
Te excomungo Virgulino
Cangaceiro endiabrado.
Houve um grande rebuliço
Naquele exato momento
São Jorge e seus guerreiros
Cada qual mais violento
Gritaram pega o jagunço
Ele aqui não tem talento.
Lampião vendo o afronto
Naquela santa morada
Disse: Deus não está sabendo
Do que há na santarada
Bateu mão no velho rifle
Deu pra cima uma rajada.
O pipocado de bala
Vomitado pelo cano
Clareou toda a fachada
Do reino do Soberano
A guarnição assombrada
Fez Pedro mudar de plano.
Em um quarto bem acústico
Nosso Senhor repousava
O silêncio era profundo
Que nada estranho notava
Sem dúvida o Pai Celeste
Um cansaço demonstrava.
Pedro já desesperado
Ligeiro chamou São João
Lhe disse sobressaltado:
Vá chamar Cícero Romão
Pra acalmar seu afilhado
34
Que só causa confusão.
Resmungando bem baixinho
Pra raiva poder conter
Falou para Santo Antônio:
Não posso compreender
Este padre não é santo
O que aqui veio fazer?!
Disse Antônio: fale baixo
De José é convidado
Ele aqui ganhou adeptos
Por ser um padre adorado
No Nordeste brasileiro
Onde é ―santificado‖.
Padre Cícero experiente
Recolheu-se ao aposento
Fingindo não saber nada
Um plano traçava atento
Pra salvar seu afilhado
Daquele acontecimento.
Logo João bateu na porta
Lhe transmitindo o recado
Cícero disse: vá na frente
Fique despreocupado
Diga a Pedro que se acalme
Isso já será sanado.
Alguns minutos o padre
Com uma Bíblia na mão
Ao ver Pedro lhe indagou:
O que há para aflição?
Quem lá fora tenta entrar
E também um ser cristão,
São Pedro disse: absurdo
Que terminou de falar
Mas Cícero foi taxativo:
Vim a confusão sanar
Só escute o réu primeiro
Antes de você julgar.
Não precisa ele entrar
Nesta sagrada mansão
O receba na guarita
Onde fica a guarnição
Com certeza há muitos anos
Nos busca aproximação.
Vou abrir esta exceção
Falou Pedro insatisfeito
O nosso reino sagrado
Merece muito respeito
Virou-se para São Paulo:
Vá buscar este sujeito.
Lampião tirou o chapéu
Descalço também ficou
Avistando o seu padrinho
Aos seus pés se ajoelhou
O encontro foi marcante
De emoção Pedro chorou
Ao ver Pedro transformado
Levantou-se e foi dizendo:
Sou um homem injustiçado
E por isso estou sofrendo
Circula em torno de mim
35
Só mesmo o lado ruim
Como herói não estão me vendo.
Sou o Capitão Virgulino
Guerrilheiro do sertão
Defendi o nordestino
Da mais terrível aflição
Por culpa duma polícia
Que promovia malícia
Extorquindo o cidadão.
Por um cruel fazendeiro
Foi meu pai assassinado
Tomaram dele o dinheiro
De duro serviço honrado
Ao vingar a sua morte
O destino em má sorte
Da ―lei‖ me fez um soldado.
Mas o que devo a visita
Pedro fez indagação
Lampião sem bater vista:
Vê padim Ciço Romão
Pra antes do ano novo
Mandar chuva pro meu povo
Você só manda trovão
Pedro disse: é malcriado
Nem o diabo lhe aceitou
Saia já seu excomungado
Sua hora já esgotou
Volte lá pro seu Nordeste
Que só o cabra da peste
Com você se acostumou.
L.I.V.R.O.
Na deixa da virada do milênio, anuncia-se um revolucionário
conceito de tecnologia de informação, chamado de Local de
Informação Variadas, Reutilizáveis e Ordenadas – L.I.V.R.O.
L.I.V.R.O. representa um avanço fantástico na tecnologia:
• Não tem fios, circuitos elétricos, pilhas;
• Não necessita ser conectado a nada, nem ligado;
• É tão fácil de usar que até uma criança pode operá-lo;
• Basta abri-lo! ]
Cada L.I.V.R.O é formado por uma seqüência de páginas
numeradas, feitas de papel reciclável, capazes de conter milhares de
informações. As páginas são unidas por um sistema chamado
lombada, que as mantém automaticamente em sua seqüência correta.
Através do uso intensivo do recurso TPA – Tecnologia do Papel
Opaco – permite que os fabricantes usem as duas faces da folha de
papel. Isso possibilita duplicar a quantidade de dados inseridos e
reduzir os seus custos pela metade!
Especialistas dividem-se quando aos projetos de expansão da
inserção de dados em cada unidade. É que, para se fazer L.I.V.R.O.s
com mais informações, basta se usar mais páginas. Isso porém os
torna mais grossos e mais difíceis de serem transportados, atraindo
criticas dos adeptos da portabilidade do sistema.
Cada página do L.I.V.R.O. deve ser escaneada por meio óptico, e as
informações transferidas diretamente para a CPU do usuário, em seu
cérebro. Lembramos que quando maior e mais complexa a
informação a ser transmitida, maior deverá ser a capacidade de
processamento do usuário.
Outra vantagem do sistema é que, quando em uso, um simples
movimento de dedo permite o acesso instantâneo à próxima página.
Guaipuan Vieira
Vieira, Guaipuran. A
chegada de lampião
ao céu. 8ª Edição:
2005
Gravação: 2005
Repentistas: Antônio
Jocélio e Zé Vicente
High Tech! Alta
Tecnologia! Este é o
Caminho
36
O L.I.V.R.O. pode ser rapidamente retornado a qualquer momento,
basta abri-lo. Ele nuca apresenta: "ERRO GERAL DE
PROTEÇÃO" nem precisa ser reinicializado, embora se torne
inutilizável caso caia no mar, por exemplo.
O comando "browse" permite acessar qualquer página
instantaneamente e avançar ou retroceder com muita facilidade. A
maioria dos modelos à venda já vem com a versão "índice"
instalado, o qual indica a localização exata de grupos de dados
selecionados.
Um acessório opcional, o marca páginas, permite que você acesse o
L.I.V.R.O. exatamente no local em que o deixou na ultima
utilização, mesmo que esteja fechado. A compatibilidade dos
marcadores de página é total, permitindo que funcionem em
qualquer modelo ou marca de L.I.V.R.O., suporta o uso simultâneo
de vários marcadores de página, caso seu usuário deseje manter
selecionados vários trechos ao mesmo tempo. A capacidade máxima
para o uso de marcadores coincide com o número de páginas.
Pode-se ainda personalizar o conteúdo do L.I.V.R.O., através de
anotações em suas margens. Para isso, deve-se utilizar de um
periférico de Linguagem Apagável Portátil de Intercomunicação
Simplificada – L.A.P.I.S.
Portátil, durável e barato, o L.I.V.R.O. vem sendo apontado como o
instrumento de entretenimento e cultura do futuro. Milhares de
programadores desse sistema já disponibilizaram vários títulos e
upgrades utilizando a plataforma L.I.V.R.O.
Millor Fernandes
http://www.facsumare.com.br/textos_leitura/cont_um_pouco_humor
.htm (Indicação do Professor Fernando )
O Grande Mistério Há dias já que buscavam uma explicação para os odores esquisitos
que vinham da sala de visitas. Primeiro houve um erro de
interpretação: o quase imperceptível cheiro foi tomado como sendo
de camarão. No dia em que as pessoas da casa notaram que a sala
fedia, havia um soufflé de camarão para o jantar. Daí...
Mas comeu-se o camarão, que inclusive foi elogiado pelas visitas,
jogaram as sobras na lata do lixo e — coisa estranha — no dia
seguinte a sala cheirava pior.
Talvez alguém não gostasse de camarão e, por cerimônia, embora
isso não se use, jogasse a sua porção debaixo da mesa. Ventilada a
hipótese, os empregados espiaram e encontraram apenas um pedaço
de pão e uma boneca de perna quebrada, que Giselinha esquecera ali.
E como ambos os achados eram inodoros, o mistério persistiu.
Os patrões chamaram a arrumadeira às falas. Que era um absurdo,
que não podia continuar, que isso, que aquilo. Tachada de
desleixada, a arrumadeira caprichou na limpeza. Varreu tudo,
espanou, esfregou e... nada. Vinte e quatro horas depois, a coisa
continuava. Se modificação houvera, fora para um cheiro mais ativo.
À noite, quando o dono da casa chegou, passou uma espinafração
geral e, vitima da leitura dos jornais, que folheara no lotação, chegou
até a citar a Constituição na defesa de seus interesses.
— Se eu pago empregadas para lavar, passar, limpar, cozinhar,
arrumar e ama-secar, tenho o direito de exigir alguma coisa. Não
pretendo que a sala de visitas seja um jasmineiro, mas feder também
não. Ou sai o cheiro ou saem os empregados.
37
Reunida na cozinha, a criadagem confabulava. Os debates eram
apaixonados, mas num ponto todos concordavam: ninguém tinha
culpa. A sala estava um brinco; dava até gosto ver. Mas ver,
somente, porque o cheiro era de morte.
Então alguém propôs encerar. Quem sabe uma passada de cera no
assoalho não iria melhorar a situação?
-- Isso mesmo — aprovou a maioria, satisfeita por ter encontrado
uma fórmula capaz de combater o mal que ameaçava seu salário.
Pela manhã, ainda ninguém se levantara, e já a copeira e o chofer
enceravam sofregamente, a quatro mãos. Quando os patrões
desceram para o café, o assoalho brilhava. O cheiro da cera
predominava, mas o misterioso odor, que há dias intrigava a todos,
persistia, a uma respirada mais forte.
Apenas uma questão de tempo. Com o passar das horas, o cheiro da
cera — como era normal — diminuía, enquanto o outro, o misterioso
— estranhamente, aumentava. Pouco a pouco reinaria novamente,
para desespero geral de empregados e empregadores.
A patroa, enfim, contrariando os seus hábitos, tomou uma atitude:
desceu do alto do seu grã-finismo com as armas de que dispunha, e
com tal espírito de sacrifício que resolveu gastar os seus perfumes.
Quando ela anunciou que derramaria perfume francês no tapete, a
arrumadeira comentou com a copeira:
— Madame apelou para a ignorância.
E salpicada que foi, a sala recendeu. A sorte estava lançada.
Madame esbanjou suas essências com uma altivez digna de uma
rainha a caminho do cadafalso. Seria o prestigio e a experiência de
Carven, Patou, Fath, Schiaparelli, Balenciaga, Piguet e outros
menores, contra a ignóbil catinga.
Na hora do jantar a alegria era geral. Não restavam dúvidas de que o
cheiro enjoativo daquele coquetel de perfumes era impróprio para
uma sala de visitas, mas ninguém poderia deixar de concordar que
aquele era preferível ao outro, finalmente vencido.
Mas eis que o patrão, a horas mortas, acordou com sede. Levantou-
se cauteloso, para não acordar ninguém, e desceu as escadas, rumo à
geladeira. Ia ainda a meio caminho quando sentiu que o exército de
perfumistas franceses fora derrotado. O barulho que fez daria para
acordar um quarteirão, quanto mais os da casa, os pobres moradores
daquela casa, despertados violentamente , e que não precisavam
perguntar nada para perceberem o que se passava. Bastou respirar.
Hoje pela manhã, finalmente, após buscas desesperadas, uma das
empregadas localizou o cheiro. Estava dentro de uma jarra, uma bela
jarra, orgulho da família, pois tratava-se de peça raríssima, da
dinastia Ming.
Apertada pelo interrogatório paterno Giselinha confessou-se culpada
e, na inocência dos seus 3 anos, prometeu não fazer mais.
Não fazer mais na jarra, é lógico.
Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto)
http://www.facsumare.com.br/textos_leitura/cont_um_pouco_humor
.htm
38
Soneto de fidelidade
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa lhe dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
Vinícius de Morais
http://www.viniciusdemoraes.com.br/
Indicação da Professora Nicimara.
Soneto a quatro mãos
Tudo de amor que existe em mim foi dado.
Tudo que fala em mim de amor foi dito.
Do nada em mim o amor fez o infinito
Que por muito tornou-me escravizado.
Tão pródigo de amor fiquei coitado
Tão fácil para amar fiquei proscrito.
Cada voto que fiz ergueu-se em grito
Contra o meu próprio dar demasiado.
Tenho dado de amor mais que coubesse
Nesse meu pobre coração humano
Desse eterno amor meu antes não desse.
Pois se por tanto dar me fiz engano
Melhor fora que desse e recebesse
Para viver da vida o amor sem dano.
Vinícius de Morais e Paulo Mendes Campos
http://www.viniciusdemoraes.com.br/
Chega de saudade
Vai, minha tristeza
E diz a ela que sem ela não pode ser
Diz-lhe numa prece
Que ela regresse
Porque eu não posso mais sofrer
Chega de saudade
A realidade é que sem ela
Não há paz, não há beleza
É só tristeza e a melancolia
Que não sai de mim
Não sai de mim
39
Não sai
Mas se ela voltar
Se ela voltar
Que coisa linda
Que coisa louca
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos que eu darei na sua boca
Dentro dos meus braços os abraços
Hão de ser milhões de abraços
Apertado assim, colado assim, calado assim,
Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim
Que é pra acabar com esse negócio
De você viver sem mim
Não quero mais esse negócio
De você longe de mim...
Vamos deixar desse negócio
De você viver sem mim...
Vinícius de Morais
in Poesia completa e prosa: "Cancioneiro"
Carta ao Tom
Rua Nascimento e Silva, 107
Você ensinando pra Elizete
As canções de Canção do amor demais
Lembra que tempo feliz
Ah, que saudade
Ipanema era só felicidade
Era como se o amor doesse em paz
Nossa famosa garota nem sabia
A que ponto a cidade turvaria
Esse Rio de amor que se perdeu
Mesmo a tristeza da gente era mais bela
E além disso se via da janela
Um cantinho de céu e o Redentor
É, meu amigo, só resta uma certeza
É preciso acabar com essa tristeza
E preciso inventar de novo o amor
Vinícius de Morais
in Poesia completa e prosa: "Cancioneiro"
40
Eu não existo sem você
Eu sei e você sabe, já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo levará você de mim
Eu sei e você sabe que a distância não existe
Que todo grande amor
Só é bem grande se for triste
Por isso, meu amor
Não tenha medo de sofrer
Que todos os caminhos me encaminham pra você
Assim como o oceano
Só é belo com luar
Assim como a canção
Só tem razão se se cantar
Assim como uma nuvem
Só acontece se chover
Assim como o poeta
Só é grande se sofrer
Assim como viver
Sem ter amor não é viver
Não há você sem mim
E eu não existo sem você.
Vinícius de Morais
in Poesia completa e prosa: "Cancioneiro"
Menininha Menininha do meu coração
Eu só quero você
A três palmos do chão
Menininha, não cresça mais não
Fique pequenininha na minha canção
Senhorinha levada
Batendo palminha
Fingindo assustada
Do bicho-papão
Menininha, que graça é você
Uma coisinha assim
Começando a viver
Fique assim, meu amor
Sem crescer
Porque o mundo é ruim, é ruim
E você vai sofrer de repente
Uma desilusão
Porque a vida é somente
Teu bicho-papão
Fique assim, fique assim
Sempre assim
E se lembre de mim
Pelas coisas que eu dei
E também não se esqueça de mim
Quando você souber enfim
De tudo o que eu amei.
Vinícius de Morais in Poesia completa e prosa: "Cancioneiro"
41
Minha namorada
Se você quer ser minha namorada
Ah, que linda namorada
Você poderia ser
Se quiser ser somente minha
Exatamente essa coisinha
Essa coisa toda minha
Que ninguém mais pode ser
Você tem que me fazer um juramento
De só ter um pensamento
Ser só minha até morrer
E também de não perder esse jeitinho
De falar devagarinho
Essas histórias de você
E de repente me fazer muito carinho
E chorar bem de mansinho
Sem ninguém saber por quê
Porém, se mais do que minha namorada
Você quer ser minha amada
Minha amada, mas amada pra valer
Aquela amada pelo amor predestinada
Sem a qual a vida é nada
Sem a qual se quer morrer
Você tem que vir comigo em meu caminho
E talvez o meu caminho seja triste pra você
Os seus olhos têm que ser só dos meus olhos
Os seus braços o meu ninho
No silêncio de depois
E você tem que ser a estrela derradeira
Minha amiga e companheira
No infinito de nós dois
Vinícius de Morais in Poesia completa e prosa: "Cancioneiro"
O filho que eu quero ter
É comum a gente sonhar, eu sei
Quando vem o entardecer
Pois eu também dei de sonhar
Um sonho lindo de morrer
Vejo um berço e nele eu me debruçar
Com o pranto a me correr
E assim, chorando, acalentar
O filho que eu quero ter
Dorme, meu pequenininho
Dorme que a noite já vem
Teu pai está muito sozinho
De tanto amor que ele tem
De repente o vejo se transformar
Num menino igual a mim
Que vem correndo me beijar
Quando eu chegar lá de onde vim
42
Um menino sempre a me perguntar
Um porquê que não tem fim
Um filho a quem só queira bem
E a quem só diga que sim
Dorme, menino levado
Dorme que a vida já vem
Teu pai está muito cansado
De tanta dor que ele tem
Quando a vida enfim me quiser levar
Pelo tanto que me deu
Sentir-lhe a barba me roçar
No derradeiro beijo seu
E ao sentir também sua mão vedar
Meu olhar dos olhos seus
Ouvir-lhe a voz a me embalar
Num acalanto de adeus
Dorme, meu pai, sem cuidado
Dorme que ao entardecer
Teu filho sonha acordado
Com o filho que ele quer ter
Vinícius de Morais
in Poesia completa e prosa: "Cancioneiro"
Mar Português
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Fernando Pessoa
http://www.revista.agulha.nom.br/fpesso03.html
Vieste
Vieste
Na hora exata, com ares de festa
E luas de prata
Vieste
Com encantos, vieste, com beijos silvestres
Colhidos pra mim
Vieste
Com a Natureza, com as mãos camponesas
43
Plantadas em mim
Vieste
Com a cara e a coragem, com malas, viagens
Pra dentro de mim, meu amor
Vieste
À hora e a tempo, soltando meus barcos
E velas ao vento
Vieste
Me dando alento, me olhando por dentro
Velando por mim
Vieste
De olhos fechados, num dia marcado
Sagrado pra mim
Vieste
Com a cara e a coragem, com malas, viagens
Pra dentro de mim, meu amor.
Lenine
http://vagalume.uol.com.br/lenine/vieste.html
A Medida Da Paixão
É como se a gente não soubesse
Pra que lado foi a vida
Por que tanta solidão
E não é a dor que me entristece
É não ter uma saida
Nem medida na paixão
Foi, o amor se foi perdido
Foi tão distraido
Que nem me avisou
Foi, o amor se foi calado
Tão desesperado
Que me machucou
É como se a gente presentisse
Tudo que o amor não disse
Diz agora essa afflição
E ficou o cheiro pelo ar
Ficou o medo de ficar
Vazio demais meu coração
Foi, o amor se foi perdido
Foi tão distraido
Que nem me avisou
Foi, o amor se foi calado
Tão desesperado
Que me maltratou.
Lenine
http://vagalume.uol.com.br/lenine/a-medida-da-paixao.html
44
O Silêncio das Estrelas
Solidão, o silêncio das estrelas, a ilusão
Eu pensei que tinha o mundo em minhas mãos
Como um deus e amanheço mortal
E assim, repetindo os mesmos erros, dói em mim
Ver que toda essa procura não tem fim
E o que é que eu procuro afinal
Um sinal, uma porta pro infinito irreal
O que não pode ser dito, afinal
Ser um homem em busca de mais
Afinal, como estrelas que brilham em paz
Solidão, o silêncio das estrelas, a ilusão
Eu pensei que tinha o mundo em minhas mãos
Como um deus e amanheço mortal
Um sinal, uma porta pro infinito irreal
O que não pode ser dito, afinal
Ser um homem em busca de mais
Afinal, ser um homem em busca de mais.
Lenine
http://vagalume.uol.com.br/lenine/o-silencio-das-estrelas.html
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Fernando Pessoa
http://www.revista.agulha.nom.br/fpesso14.html
Para ser grande, sê inteiro: nada
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Ricardo Reis
http://www.revista.agulha.nom.br/fpesso29.html
45
Confidência do Itabirano
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem
horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
Carlos Drummond de Andrade
http://www.memoriaviva.com.br/drummond/poema014.htm
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que eu nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água.
Pra me contar histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
46
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
Lá sou amigo do rei
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
Manuel Bandeira
http://www.culturabrasil.org/bandeira.htm
Talvez
A esta hora branda d’amargura,
A esta hora triste em que o luar
Anda chorando, Ó minha desventura
Onde estás tu? Onde anda o teu olhar?
A noite é calma e triste… a murmurar
Anda o vento, de leve, na doçura
Ideal do aveludado ar
Onde estrelas palpitam… Noite escura
Dize-me onde ele está o meu amor,
Onde o vosso luar o vai beijar,
Onde as vossas estrelas co fulgor
Do seu brilho de fogo o vão cobrir!
Dize-me onde ele está!… Talvez a olhar
A mesma noite linda a refulgir…
Florbela Espanca http://www.prahoje.com.br/florbela/
Poema Começado no Fim
Um corpo quer outro corpo.
Uma alma quer outra alma e seu corpo.
Este excesso de realidade me confunde.
Jonathan falando:
47
parece que estou num filme.
Se eu lhe dissesse você é estúpido
ele diria sou mesmo.
Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear
eu iria.
As casas baixas, as pessoas pobres,
e o sol da tarde,
imaginai o que era o sol da tarde
sobre a nossa fragilidade.
Vinha com Jonathan
pela rua mais torta da cidade.
O Caminho do Céu.
Adélia Prado
http://www.secrel.com.br/jpoesia/ad01.html#casa
Indicação do Professor Leo.
Poema
A fragrância é almíscar; as faces, rosa,
os dentes, pérola; a saliva, vinho;
a esbelteza, ramo; os quadris, duna;
os cabelos, noite; o rosto, lua cheia.
Anônimo
Livro das mil e uma noites, volume I: ramo sírio/ Anônimo. 2.ed.
São Paulo: Globo, 2005. (Indicação do Professor Leo.)
Amor é fogo que arde sem se ver
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;
É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Luís de Camões
http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/v301.txt
48
Alma minha gentil, que te partiste
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.
Luís de Camões
http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/v348.txt
Romaria
E de sonho e de pó
O destino de um só
feito eu perdido em pensamento
sobre o meu cavalo
É de laço e de nó
De gibeira ou jiló
Dessa vida cumprida a sol
Sou caipira pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura
e funda o trem da minha vida
Sou caipira pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura
e funda o trem da minha vida
O meu pai foi peão
Minha mãe solidão
meus irmãos perderam-se na vida
a custa de aventuras
Descasei, joguei
investi, desisti
Se há sorte eu não sei nunca vi.
Sou caipira pirapora nossa
Senhora de Aparecida
49
Ilumina a mina escura
e funda o trem da minha vida
Sou caipira pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura
e funda o trem da minha vida
Me disseram porém
que eu viesse aqui
pra pedir de romaria e prece
Paz nos desaventos
Como eu não sei rezar
Só queria mostrar
Meu olhar, meu olhar, meu olhar
Sou caipira pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura
e funda o trem da minha vida
Sou caipira pirapora nossa
Senhora de Aparecida
Ilumina a mina escura
e funda o trem da minha vida.
Renato Teixeira
http://vagalume.uol.com.br/elis-regina/romaria.html
Cajuína
Existirmos: a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos intacta retina
A cajuína cristalina em Teresina
Caetano Veloso
http://letras.terra.com.br/caetano-veloso/44704/
Indicação do Professor Leo.
Retrato de família
Este retrato de família
Está um ano empoeirado.
Já não se vê no rosto do pai
Quanto dinheiro ele ganhou.
Nas mãos dos tios não se percebem
As viagens que ambos fizeram.
A avó ficou lisa, amarela,
Sem memórias da monarquia.
50
Os meninos, como estão mudados.
O rosto de Pedro é tranqüilo,
Usou os melhores sonhos.
E João não é mais mentiroso.
O jardim tornou-se fantástico.
As flores são placas cinzentas.
E a areia, sob os pés extintos,
É um oceano de névoa.
No semicírculo de cadeiras
Nota-se certo movimento.
As crianças trocam de lugar,
Mas sem barulho: é um retrato.
Vinte anos é um grande tempo.
Modela qualquer imagem.
Se a figura vai murchando,
Outra, sorrindo, se propõe.
Esses estranhos assentados.
Meus parentes? Não acredito.
São visitas se divertindo
Numa sala que se abre pouco.
Ficaram traços da família
Perdidos no jeito dos corpos.
Bastante para sugerir
Que um corpo é cheio de surpresas.
A moldura deste retrato
Em vão prende suas personagens.
Estão ali voluntariamente,
Saberiam - se preciso - voar.
Poderiam sutilizar-se
No claro escuro do salão,
Ir morar no fundo de móveis
Ou no bolso de velhos coletes.
A casa tem muitas gavetas
E papéis, escadas compridas.
Quem sabe a malícia das coisas,
Quando a matéria se aborrece?
O retrato não me responde,
Ele me fita e se contempla
Nos meus olhos empoeirados.
E no cristal se multiplicam
Os parentes mortos e vivos.
Já não distingo os que se foram
Dos que restaram. Percebo apenas
A estranha idéia de família
Viajando através da carne.
Carlos Drummond de Andrade
Antologia Poética. 36. ed. Rio de Janeiro: Record, 1993.
Indicação do professor Leo.
51
Os retratos
Os antigos retratos de parede
Não conseguem ficar longo tempo abstratos.
Às vezes os seus olhos te fixam, obstinados porque eles nunca se
desumanizam de todo.
Jamais te voltes para trás de repente,
Não, não olhes agora!
O remédio é cantares cantigas loucas e sem fim...
Sem fim e sem sentido...
Dessas que a gente inventava para enganar a solidão dos caminhos
sem lua
Mário Quintana
Melhores Poemas. 10.ed. Editora Global, 1993.
Indicação do professor Leo.
Vermelho
É uma pomba
- parece uma virgem.
De debaixo das plumas, vem o jorro
Enérgico, da foz de uma artéria:
E a mancha transborda, chovendo salpicos,
A cada palpitação.
Cresce, cresce,
Parece que meus olhos a tocam,
E que vem aos meus olhos
Passando por meus dedos,
Viva, tão viva,
Que quase grita...
Ardente e berrante...
Como deve ser quente!...
Mancha farta, crescente, latejante,
Dói-me nos olhos e me irrita...
Cresce, cresce,
Tão depressa,
Que chega a mudar o gosto na minha boca...
Tenho-a agora nos meus olhos,
Quente, quente,
E no entanto a pomba já está fria,
E colorada, como uma grande flor...
João Guimarães Rosa
Magma. Editora Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1997.
Indicação do professor Leo.
52
Alaranjado
No campo seco, a crepitar em brasas,
Dançam as últimas chamas da queimada,
Tão quente, que o sol pende no ocaso,
Bicado
Pelos sanhaços das nuvens,
Para cair, redondo e pesado,
Como uma tangerina temporã madura...
João Guimarães Rosa
Magma. Editora Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1997.
Indicação do professor Leo.
Amarelo Kuang-Ling,
Pintor chinês de máscara de cera,
Feliz de ópio, e ébrio de dragões,
Molha o pincel na água de ocre
Do Huang-Ho,
E, entre lanternas de seda,
Pinta e repinta,
Durante trinta anos,
Sulfúreos e asiáticos girassóis,
Na incrível porcelana
De um jarrão
Dos Ming...
João Guimarães Rosa
Magma. Editora Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1997.
Verde
Na lâmina azinhavrada
Desta água estagnada,
Entre painéis de musgo
E cortinas de avenca,
Bolhas espumejam
Como opalas ocas
Num veio de turmalina:
É uma rã bailarina,
Que ao se ver feia, toda ruguenta,
Pulou, raivosa, quebrando o espelho,
E foi direta ao fundo,
Reenfeitar, como mimo,
Suas roupas de limo...
João Guimarães Rosa
Magma. Editora Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1997.
Indicação do professor Leo.
Azul
Uma vanessa tropical travou na campânula de uma ipoméia
O vôo oscilatório e helicoidal.
Dobra o quimono de franjas sinuosas,
Marchetado e hachureado
Com minérios de cobre:
Aréolas, anéis, jóias concêntricas,
53
Olhos de íris elétrica e de pupila enorme, ocelos de um leque de
pavão.
Sinto o perfume da flor nova,
Com mais dois estames, buliçosos,
E quatro pétalas, de um esmalte raro,
Molhadas nas tintas de céus fundos, e cromadas das lagoas...
João Guimarães Rosa
Magma. Editora Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1997.
Indicação do professor Leo.
Anil
O vôo, quase vertical, da jaçanã fugida
Levantou meu olhar,
No dorso esbelto, de zinco polido,
À calota do céu,
Liso, congelado em calmaria,
E quase sólido, em cobalto líquido.
Pensei que a ave fosse frechar, de cheio,
Para pescar peixinhos escamados de ouro:
As estrelas que mergulham de madrugada...
E que a água longe se abrisse
Nos nove círculos concêntricos
Das nove beatitudes...
Mas o pássaro foi breve no grânulo dissolvido,
Entre nuvens fugindo como flocos de espuma,
Como a paisagem a luzir, no seio de uma bolha,
O sol a se desmanchar, como um sabão redondo,
E o céu todo água, num côncavo de bacia
Onde lavam o dia...
João Guimarães Rosa
Magma. Editora Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1997.
Indicação do professor Leo.
Roxo
Deixa que o levem, agora,
Que a mulher cristã de sala
Já quer ir embora...
Ela desceu dos teus olhos de choro,
Magnética e profunda, como um rastro
De ametistas mortas...
Passou pelas olheiras fundas,
Pousou nos ramalhetes de saudades,
Tocou nas fitas das coroas, longas
Como equimoses...
E agora, vê: vai passeando,
De leve, pelos lábios, pelo rosto,
Pelo corpo,
Pelos dedos, duros, do teu esposo morto...
Ela quer ir embora...
Deixa que o levem, agora...
João Guimarães Rosa
Magma. Editora Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1997.
Indicação do professor Leo.
54
Canções da Inocência
A flautear em vale agreste,
A flautear canção feliz,
Das nuvens uma criança
Vem sorridente e me diz:
―Toca a canção de um Cordeiro!‖
Toquei-a com alegria.
―Flautista, toca de novo.‖
Toquei: a chorar me ouvia.
―Deixa a flauta, a fácil flauta;
Canta os cantos de alegria.‖
Cantei tudo o que tocara:
De gozo a chorar me ouvia.
―Senta-te e escreve, flautista,
Num livro, a que possam ler.‖
E ela sumiu-me da vista;
E um junco então fui colher,
E fiz uma pena rude,
E manchei as águas mansas,
E escrevi minhas canções
Que hão de alegrar as crianças.
William Blake
Poesia e prosa selecionadas. 2.ed. São Paulo: J. C. Ismael, 1984.
Indicação do professor Leo.
Morte e Vida Severina
- O meu nome é Severino,
Não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
Que é santo de romaria,
Deram então de me chamar
Severino de Maria;
Como há muitos Severinos,
Com mães chamadas Maria,
Fiquei sendo o da Maria
Do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
Há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
Ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
Da Maria do Zacarias,
Lá da serra da Costela,
Limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
Se ao menos mais cinco havia
Com o nome de Severino
Filhos de tantas Marias
Mulheres de outros tantos,
Já finados, Zacarias,
55
Vivendo na mesma serra
Magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
Iguais em tudo na vida:
Na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
alguns roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.
O poeta Olhos que recolhem
Só tristeza e adeus
Para que outros olhem
Com amor os seus.
Mãos que só despejam
Silêncios e dúvidas
Para que outras sejam
Das suas, viúvas.
Lábios que desdenham
Coisas mortais
Para que outros tenham
Seu beijo demais.
Palavras que dizem
Sempre um juramento
Para que precisem
Dele, eternamente.
Vinícius de Morais Para viver um grande amor. 11.ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. Indicação do professor Leo.
João Cabral de Melo Neto
Morte e vida severina e
outros poemas para vozes.
47. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1994. -
Indicação do professor Leo.
56
A estrelinha polar
De repente o mar fosforesceu, o navio ficou silente
O firmamento lactesceu todo em poluções vibrantes de astros
E a Estrelinha Polar fez um pipi de prata no atlântico penico.
Vinícius de Morais
Para viver um grande amor. 11.ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1991.
Indicação do professor Leo.
As perguntas do lago
Durante os doze anos que durou seu primeiro exílio, os cinco
irmãos Pandavas e sua única esposa, Draupadi, foram peregrinando
de lugar sagrado em lugar sagrado.
Atravessando uma região baixa e pantanosa, os gêmeos
Pandavas, Nakula e Sahadeva, chegaram a um pequeno lago,
acossados pela sede. Quando iam beber, uma voz pediu que, antes,
respondessem algumas perguntas.
Não resistindo à sede, insistiram em beber e ao fazê-lo,
caíram mortos. Chegando Arjuna ao local, é atacado pela mesma
estranha sede, ouve a voz mas não desiste de beber e também morre
ao fazê-lo.
Depois chega Bhisma e acontece-lhe o mesmo. Finalmente,
Yudishsthira descobriu seus quatro irmãos mortos e sentiu que \"seu
coração o abandonava.\"
O lago reitera suas exigências e o maior dos Pandava faz um
imenso esforço vencendo seu sede:
- Interroga-me - disse ao lago.
E o lago perguntou:
- O que é mas rápido que o vento?
- O pensamento.
- O que é o que pode cobrir a Terra toda?
- A escuridão
- Quem são mais numerosos, os vivos ou os mortos?
- Os vivos, porque os mortos já não são.
- Me dê um exemplo de espaço.
- Minhas duas mãos juntas.
- Um exemplo de pena.
- A ignorância.
- Um exemplo de veneno.
- O desejo.
- Um exemplo de derrota.
- A vitória.
- Qual é o animal mais astuto?
- Aquele que o homem ainda não conseguiu conhecer.
- O que surgiu primeiro: o dia ou a noite?
- O dia, mas somente precedeu a noite por um dia.
- Qual é a causa del mundo?
- O amor.
- Qual é o teu oposto?
- Eu mesmo.
- O que é a loucura?
- Um caminho esquecido.
- E a revolta? Porque se revoltam os homens?
- Para encontrar a beleza, seja na vida, seja na morte.
57
- O que é inevitável para todos nós?
Vyása conta que, antes de responder, Yudishsthira pensou
talvez na longa sucessão de reencarnações, ao final de da qual se
atinge a libertação. Por isso, respondeu:
- A felicidade.
- E qual é a grande maravilha?
- Cada dia a morte ataca ao redor nosso e vivemos como
vivos eternos. Eis a grande maravilha.
Então, o lago disse a Yudishsthira:
- Que teus irmãos voltem à vida, pois eu sou Dharma, teu pai.
Eu sou a retidão, a constância e a ordem do universo.
Jean-Claude Carrière
http://www.yoga.pro.br/artigos.php?cod=263&secao=3046
Indicação do Professor Leo.
Escritos do Curso e Sua Virtude – 8
O bem supremo é como a água
Água... apura as dez-mil-coisas sem disputa habita onde os homens
abominam
Por isso abeira-se ao curso
Morar bom é onde
Coração bom é a profundidade
Doar bom é amor
Falar bom é sinceridade
Governo bom é ordem
Serviço bom é a capacidade
Movimento bom é quando
Eis que só sem disputa não há oposição.
Lao-tsé
Escritos do Curso e sua virtude. Lao-tsé. Série Acadêmica: São
Paulo, 1997. - Indicação do professor Leo.
Escritos do Curso e Sua Virtude - 68
Quem bem sabe fazer o militar
Não é marcial
Quem bem sabe guerrear
Não é colérico
Quem bem sabe vencer o inimigo
Não se faz presente
Quem bem sabe utilizar homens
Fica abaixo deles
Isto se diz: virtude de não competir
Isto se diz: força empregar homens
Isto se diz: o auge das bodas com o céu.
Lao-tsé
Escritos do Curso e sua virtude. Lao-tsé. Série Acadêmica: São
Paulo, 1997.
Indicação do professor Leo.
58
Escritos do Curso e Sua Virtude-76
O nascer do homem é pois suave e fraco
Seu morrer é pois rígido e firme
O nascer na planta é pois suave e tenro
Seu morrer é pois murcho e seco
Portanto
Rigidez e força são adeptos da morte
Suavidade e fraqueza são adeptos da vida
Por isso
Arma é forte então não vence
Árvore é forte então vira arma
Força e grandeza são inferiores
Suavidade e fraqueza são superiores
Lao-tsé
Escritos do Curso e sua virtude. Lao-tsé. Série Acadêmica: São
Paulo, 1997.
Indicação do professor Leo.
O Silêncio
antes de existir computador existia tevê
antes de existir tevê existia luz elétrica
antes de existir luz elétrica existia bicicleta
antes de existir bicicleta existia enciclopédia
antes de existir enciclopédia existia alfabeto
antes de existir alfabeto existia a voz
antes de existir a voz existia o silêncio
o silêncio
foi a primeira coisa que existiu
um silêncio que ninguém ouviu
astro pelo céu em movimento
e o som do gelo derretendo
o barulho do cabelo em crescimento
e a música do vento
e a matéria em decomposição
a barriga digerindo o pão
explosão de semente sob o chão
diamante nascendo do carvão
homem pedra planta bicho flor
luz elétrica tevê computador
batedeira, liquidificador
vamos ouvir esse silêncio meu amor
amplificado no amplificador
do estetoscópio do doutor
no lado esquerdo do peito, esse tambor
Carlinhos Brown / Arnaldo Antunes
Indicação do professor Leo.
59
O Navio Negreiro, Tragédia no Mar (VI)
Existe um povo que a bandeira empresta
Pr'a cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?!...
Silêncio!... Musa! chora, chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto...
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança...
Tu, que da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu na vaga,
Como um íris no pélago profundo!...
...Mas é infâmia de mais... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo...
Andrada! arranca este pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta de teus mares!
Castro Alves- http://www.releituras.com/castroalves_menu.asp
Silêncio, hospital Nos primeiros tempos de casamento ele aparentava uma
saúde de ferro mas, de uns anos pra cá, mostrava-se tão frágil, tão
suscetível às doenças, que Dona Belinha, sua esposa,
intranqüilizava-se cada vez mais.
— Qualquer coisinha o Pirilo hospitaliza-se — choramingava
às amigas. — Tão frágil, tão doentinho...
E assim era. Por um simples sintoma de gripe ou resfriado, o
Pirilo pegava um pijama, escova de dentes, pente e chinelos, metia-
os numa maleta branca e hospitalizava-se.
— O que é que você tem, Pirilo? — perguntava a esposa
preocupada, vendo o marido fazer a mala para mais uma ida à casa
de saúde.
— Nada, minha velha.
— E se não tem nada, por que você vai para o hospital,
Pirilo? — insistia Dona Belinha, mais preocupada do que nunca.
— Com saúde não se facilita. Não tenho nada agora, mas
estou esperando uma gripe de uma hora para outra.
E se internava por quatro, cinco dias. Proibia as visitas e não
aceitava flores ou maçãs. "Se eu morrer, não quero ninguém no
velório. Na doença e na morte, longe os parentes", era a teoria que
defendia e a que a família obedecia.
— Chama-se isso de hipocondria — explicou um médico a
quem Dona Belinha secretamente visitou:
— Hipocondria?
— É uma ansiedade habitual relativa à própria saúde —
decifrava o médico. — É muito comum, um caso assim. Há pessoas
que não vivem sem tomar remédio. Seu marido é um caso desses. Só
que em estado mais grave, porque ele chega a ir para o hospital. Mas
não se preocupe. Os hipocondríacos são os que vivem mais.
60
— Isso pega, doutor? — inquiriu Dona Belinha, quase
desejando que sim, para poder acompanhar o marido, de quem sentia
muita falta, durante os dias de nosocômio.
— Pegar, não digo, mas quem convive com um
hipocondríaco, sendo de espírito fraco, pode-se contagiar por esta
mania.
E ela muito rezava e pedia que lhe fosse dado este contágio.
— Belinha, traz a mala.
— Pra onde você vai, Pirilo?
— Vou-me hospitalizar.
— O que é que você está sentindo?
— Hoje, fazendo as unhas, tirei sangue da cutícula. Isso pode
infeccionar, dar tétano, gangrenar, sei lá. Com saúde não se brinca.
E, de mala branca na mão e infalível chapéu preto à cabeça,
lá ia o Pirilo para o Hospital dos Estrangeiros, onde tinha conta
corrente (pagava por semestre) e apartamento quase fixo.
— O apartamento de sempre, Sr. Pirilo? perguntava a
enfermeira, como se aquilo fosse um hotel.
— Não. Desta vez quero um no terceiro andar, com vista para
a encosta.
E por uma semana, muitas vezes, curtia o seu hospitalzinho,
de camisola e tudo, com exames de pressão arterial, termômetros sob
a axila, colheita de urina, sangue, fezes, escarro, etc. Uma semana
depois, sentindo-se recuperado, voltava ao seio da família, dizendo-
se outro homem.
Ao mesmo tempo em que os filhos cresciam, desenvolvia-se
a hipocondria do Pirilo, que se internou pelos motivos mais
burlescos, de tão banais: furúnculo, cisco no olho, mau jeito no
braço, aerofagia, topada.
A conselho médico a mulher nem tocava mais no assunto,
tentando meter na cabeça do marido que ele não sofria de coisa
alguma ("Isso pode piorar, porque ele fica irritado e..."). Ao ver
Pirilo chegar e entrar em casa sem tirar o chapéu preto, a mulher já
sabia que era caso de hospital. E, por conta própria (disso o médico
não teve culpa), já até colaborava com a hipocondria do marido.
— Não está passando bem, Pirilo?
— Ainda bem que você notou. Hoje arrotei duas vezes,
depois de tomar uma Coca-Cola. Faz a mala.
E o pijama, com pente, chinelo e escova de dentes, era
enfiado na mala branca que Pirilo conduzia ao Hospital dos
Estrangeiros, onde era mais conhecido do que muitos dos médicos
que lá operavam ou davam plantão.
— Terceiro andar, para a encosta?
— Segundo andar, de frente.
— 214 — informava a enfermeira, dando-lhe a chave.
Tantas foram as vezes que Pirilo se internou que,
ultimamente, já ia sozinho da portaria para o quarto. Ir uma
enfermeira com ele para quê, se ele conhecia os corredores e
apartamentos mais do que a maioria delas? De hospital, ele dava
aula. E era um custo para aceitar a alta do médico.
— Pode ir embora hoje, Sr. Pirilo.
— De jeito nenhum. Antes de quinta-feira ninguém me tira
daqui.
— Mas o senhor já está bom. Os gases...
— Os gases acabaram, mas... e essa unhazinha?
— Que tem a unha? — perguntava o médico, segurando-lhe a
falange do pé que Pirilo lhe exibia.
— Repare na unha, veja bem.
— Está bem.
61
— Ora, doutor, enganar ao Pirilinho? A unha está encrava,
não encrava. Antes de quinta-feira eu não saio, a não ser que a unha
se resolva.
De tanto Pirilo se ausentar para os hospitais, apareceu um
arquiteto desquitado com ótimos planos e projetos para Dona
Belinha com os quais ela concordou, de tanta distância que já sentia
do marido hipocondríaco.
Saiu ganhando, pois amava agora um homem formado,
enquanto Pirilo continuava amante de uma ajudante de enfermeira
do Hospital dos Estrangeiros, que um dia dava plantão no terceiro
andar, de frente para a encosta, no outro dia no segundo andar, de
frente para a frente...
Os hipocondríacos merecem cuidados!
Chico Anysio
http://www.releituras.com/canysio_menu.asp
Romance sonâmbulo
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar
e o cavalo na montanha.
Com a sombra pela cintura
ela sonha na varanda,
verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
Por sob a lua gitana,
as coisas estão mirando-a
e ela não pode mirá-las.
Verde que te quero verde.
Grandes estrelas de escarcha
nascem com o peixe de sombra
que rasga o caminho da alva.
A figueira raspa o vento
a lixá-lo com as ramas,
e o monte, gato selvagem,
eriça as piteiras ásperas.
Mas quem virá? E por onde?...
Ela fica na varanda,
verde carne, tranças verdes,
ela sonha na água amarga.
— Compadre, dou meu cavalo
em troca de sua casa,
o arreio por seu espelho,
a faca por sua manta.
Compadre, venho sangrando
desde as passagens de Cabra.
— Se pudesse, meu mocinho,
esse negócio eu fechava.
No entanto eu já não sou eu,
nem a casa é minha casa.
— Compadre, quero morrer
com decência, em minha cama.
62
De ferro, se for possível,
e com lençóis de cambraia.
Não vês que enorme ferida
vai de meu peito à garganta?
— Trezentas rosas morenas
traz tua camisa branca.
Ressuma teu sangue e cheira
em redor de tua faixa.
No entanto eu já não sou eu,
nem a casa é minha casa.
— Que eu possa subir ao menos
até às altas varandas.
Que eu possa subir! que o possa
até às verdes varandas.
As balaustradas da lua
por onde retumba a água.
Já sobem os dois compadres
até às altas varandas.
Deixando um rastro de sangue.
Deixando um rastro de lágrimas.
Tremiam pelos telhados
pequenos faróis de lata.
Mil pandeiros de cristal
feriam a madrugada.
Verde que te quero verde,
verde vento, verdes ramas.
Os dois compadres subiram.
O vasto vento deixava
na boca um gosto esquisito
de menta, fel e alfavaca.
— Que é dela, compadre, dize-me
que é de tua filha amarga?
— Quantas vezes te esperou!
Quantas vezes te esperara,
rosto fresco, negras tranças,
aqui na verde varanda!
Sobre a face da cisterna
balançava-se a gitana.
Verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Ponta gelada de lua
sustenta-a por cima da água.
A noite se fez tão íntima
como uma pequena praça.
Lá fora, à porta, golpeando,
guardas-civis na cachaça.
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar.
E o cavalo na montanha.
Federico García Lorca
http://www.releituras.com/fglorca_sonambulo.asp
63
Ser poeta
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!
E é amar-te, assim perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!
Florbela Espanca
http://www.releituras.com/fespanca_serpoeta.asp
Filhos
Daqui escutei
quando eles
chegaram rindo
e correndo
entraram
na sala
e logo
invadiram também
o escritório
(onde eu trabalhava)
num alvoroço
e rindo e correndo
se foram
com sua alegria
se foram
Só então
me perguntei
por que
não lhes dera
maior
atenção
se há tantos
e tantos
anos
não os via crianças
já que
agora
estão os três
com mais
de trinta anos.
Ferreira Gular
http://www.releituras.com/fgullar_poesias.asp
64
Famigerado
Foi de incerta feita — o evento. Quem pode esperar coisa tão
sem pés nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo
tranqüilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei à janela.
Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro
rente, frente à minha porta, equiparado, exato; e, embolados, de
banda, três homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo.
Tomei-me nos nervos. O cavaleiro esse — o oh-homem-oh — com
cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e
viera, aquele homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto
pesadamente. Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado,
suado. E concebi grande dúvida.
Nenhum se apeava. Os outros, tristes três, mal me haviam
olhado, nem olhassem para nada. Semelhavam a gente receosa, tropa
desbaratada, sopitados, constrangidos coagidos, sim. Isso por isso,
que o cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los: a meio-gesto,
desprezivo, intimara-os de pegarem o lugar onde agora se
encostavam. Dado que a frente da minha casa reentrava, metros, da
linha da rua, e dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali um
encantoável, espécie de resguardo. Valendo-se do que, o homem
obrigara os outros ao ponto donde seriam menos vistos, enquanto
barrava-lhes qualquer fuga; sem contar que, unidos assim, os cavalos
se apertando, não dispunham de rápida mobilidade. Tudo enxergara,
tomando ganho da topografia. Os três seriam seus prisioneiros, não
seus sequazes. Aquele homem, para proceder da forma, só podia ser
um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe. Senti que não
me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não tinha
arma ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no
i, ele me dissolvia. O medo é a extrema ignorância em momento
muito agudo. O medo O. O medo me miava. Convidei-o a
desmontar, a entrar.
Disse de não, conquanto os costumes. Conservava-se de
chapéu. Via-se que passara a descansar na sela — decerto relaxava o
corpo para dar-se mais à ingente tarefa de pensar. Perguntei:
respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita ou
consulta. Sua voz se espaçava, querendo-se calma; a fala de gente de
mais longe, talvez são-franciscano. Sei desse tipo de valentão que
nada alardeia, sem farroma. Mas avessado, estranhão, perverso
brusco, podendo desfechar com algo, de repente, por um és-não-és.
Muito de macio, mentalmente, comecei a me organizar. Ele falou:
"Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada..."
Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a
catadura de canibal. Desfranziu-se, porém, quase que sorriu. Daí,
desceu do cavalo; maneiro, imprevisto. Se por se cumprir do maior
valor de melhores modos; por esperteza? Reteve no pulso a ponta do
cabresto, o alazão era para paz. O chapéu sempre na cabeça. Um
alarve. Mais os ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se:
estava em armas — e de armas alimpadas. Dava para se sentir o peso
da de fogo, no cinturão, que usado baixo, para ela estar-se já ao nível
justo, ademão, tanto que ele se persistia de braço direito pendido,
pronto meneável. Sendo a sela, de notar-se, uma jereba papuda
urucuiana, pouco de se achar, na região, pelo menos de tão boa
feitura. Tudo de gente brava. Aquele propunha sangue, em suas
tenções. Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore.
Sua máxima violência podia ser para cada momento. Tivesse
aceitado de entrar e um café, calmava-me. Assim, porém, banda de
fora, sem a-graças de hóspede nem surdez de paredes, tinha para um
se inquietar, sem medida e sem certeza.
65
— "Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos
Siqueiras... Estou vindo da Serra..."
Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de
estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem
perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de para uns anos
ele se serenara — evitava o de evitar. Fie-se, porém, quem, em tais
tréguas de pantera? Ali, antenasal, de mim a palmo! Continuava:
— "Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se
compareceu um moço do Governo, rapaz meio estrondoso... Saiba
que estou com ele à revelia... Cá eu não quero questão com o
Governo, não estou em saúde nem idade... O rapaz, muitos acham
que ele é de seu tanto esmiolado..."
Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado
assim, de evidente. Contra que aí estava com o fígado em más
margens; pensava, pensava. Cabismeditado. Do que, se resolveu.
Levantou as feições. Se é que se riu: aquela crueldade de dentes.
Encarar, não me encarava, só se fito à meia esguelha. Latejava-lhe
um orgulho indeciso. Redigiu seu monologar.
O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da
Serra, do São Ão, travados assuntos, inseqüentes, como dificultação.
A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de entender-lhe as
mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios. Assim no
fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava: E, pá:
— "Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar
o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-megerado...
falmisgeraldo... familhas-gerado...?
Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com
riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez
primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não
queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso
suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de
atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que
aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a
vexatória satisfação?
— "Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que vim, sem
parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a
pregunta, pelo claro..."
Se sério, se era. Transiu-se-me.
— "Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém
ciente, nem têm o legítimo — o livro que aprende as palavras... É
gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias...
Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles
logo engambelam... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me
fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe
perguntei?"
Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:
— Famigerado?
— "Sim senhor..." — e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim
nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava,
interpelador, intimativo — apertava-me. Tinha eu que descobrir a
cara. — Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia
noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros,
em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:
— "Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra.
Só vieram comigo, pra testemunho..."
Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço:
o verivérbio.
— Famigerado é inóxio, é "célebre", "notório", "notável"...
66
— "Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não
entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar?
Farsância? Nome de ofensa?"
— Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras,
de outros usos...
— "Pois... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de
em dia-de-semana?"
— Famigerado? Bem. É: "importante", que merece louvor,
respeito...
— "Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na
Escritura?"
Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo,
então eu sincero disse:
— Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu
queria uma hora destas era ser famigerado — bem famigerado, o
mais que pudesse!...
— "Ah, bem!..." — soltou, exultante.
Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si,
desagravava-se, num desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles
três: — "Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa
descrição..." — e eles prestes se partiram. Só aí se chegou, beirando-
me a janela, aceitava um copo d'água. Disse: — "Não há como que
as grandezas machas duma pessoa instruída!" Seja que de novo, por
um mero, se torvava? Disse: — "Sei lá, às vezes o melhor mesmo,
pra esse moço do Governo, era ir-se embora, sei não..." Mas mais
sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: — "A gente tem cada
cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... Só pra azedar a
mandioca..." Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria
de entrar em minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão, não
pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o famoso
assunto.
Guimarães Rosa
http://www.releituras.com/guimarosa_famigerado.asp
A aliança
Esta é uma história exemplar, só não está muito claro qual é o
exemplo. De qualquer jeito, mantenha-a longe das crianças. Também
não tem nada a ver com a crise brasileira, o apartheid, a situação na
América Central ou no Oriente Médio ou a grande aventura do
homem sobre a Terra. Situa-se no terreno mais baixo das pequenas
aflições da classe média. Enfim. Aconteceu com um amigo meu.
Fictício, claro.
Ele estava voltando para casa como fazia, com fidelidade
rotineira, todos os dias à mesma hora. Um homem dos seus 40 anos,
naquela idade em que já sabe que nunca será o dono de um cassino
em Samarkand, com diamantes nos dentes, mas ainda pode esperar
algumas surpresas da vida, como ganhar na loto ou furar-lhe um
pneu. Furou-lhe um pneu. Com dificuldade ele encostou o carro no
meio-fio e preparou-se para a batalha contra o macaco, não um dos
grandes macacos que o desafiavam no jângal dos seus sonhos de
infância, mas o macaco do seu carro tamanho médio, que
provavelmente não funcionaria, resignação e reticências...
Conseguiu fazer o macaco funcionar, ergueu o carro, trocou o
pneu e já estava fechando o porta-malas quando a sua aliança
escorregou pelo dedo sujo de óleo e caiu no chão. Ele deu um passo
67
para pegar a aliança do asfalto, mas sem querer a chutou. A aliança
bateu na roda de um carro que passava e voou para um bueiro. Onde
desapareceu diante dos seus olhos, nos quais ele custou a acreditar.
Limpou as mãos o melhor que pôde, entrou no carro e seguiu para
casa. Começou a pensar no que diria para a mulher. Imaginou a
cena. Ele entrando em casa e respondendo às perguntas da mulher
antes de ela fazê-las.
— Você não sabe o que me aconteceu!
— O quê?
— Uma coisa incrível.
— O quê?
— Contando ninguém acredita.
— Conta!
— Você não nota nada de diferente em mim? Não está
faltando nada?
— Não.
— Olhe.
E ele mostraria o dedo da aliança, sem a aliança.
— O que aconteceu?
E ele contaria. Tudo, exatamente como acontecera. O
macaco. O óleo. A aliança no asfalto. O chute involuntário. E a
aliança voando para o bueiro e desaparecendo.
— Que coisa - diria a mulher, calmamente.
— Não é difícil de acreditar?
— Não. É perfeitamente possível.
— Pois é. Eu...
— SEU CRETINO!
— Meu bem...
— Está me achando com cara de boba? De palhaça? Eu sei o
que aconteceu com essa aliança. Você tirou do dedo para namorar. É
ou não é? Para fazer um programa. Chega em casa a esta hora e
ainda tem a cara-de-pau de inventar uma história em que só um
imbecil acreditaria.
— Mas, meu bem...
— Eu sei onde está essa aliança. Perdida no tapete felpudo de
algum motel. Dentro do ralo de alguma banheira redonda. Seu sem-
vergonha!
E ela sairia de casa, com as crianças, sem querer ouvir
explicações. Ele chegou em casa sem dizer nada. Por que o atraso?
Muito trânsito. Por que essa cara? Nada, nada. E, finalmente:
— Que fim levou a sua aliança? E ele disse:
— Tirei para namorar. Para fazer um programa. E perdi no
motel. Pronto. Não tenho desculpas. Se você quiser encerrar nosso
casamento agora, eu compreenderei.
Ela fez cara de choro. Depois correu para o quarto e bateu
com a porta. Dez minutos depois reapareceu. Disse que aquilo
significava uma crise no casamento deles, mas que eles, com bom-
senso, a venceriam.
— O mais importante é que você não mentiu pra mim.
E foi tratar do jantar.
Luis Fernando Veríssimo
Texto extraído do livro "As mentiras que os homens contam",
Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 37.
68
Rondó dos Cavalinhos
Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Tua beleza, Esmeralda,
Acabou me enlouquecendo.
Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
O sol tão claro lá fora
E em minhalma — anoitecendo!
Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Alfonso Reys partindo,
E tanta gente ficando...
Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
A Itália falando grosso,
A Europa se avacalhando...
Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
O Brasil politicando,
Nossa! A poesia morrendo...
O sol tão claro lá fora,
O sol tão claro, Esmeralda,
E em minhalma — anoitecendo!
Manuel Bandeira
http://www.releituras.com/mbandeira_rondo.asp
Se eu fosse um padre
Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
— muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,
não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,
Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!
Porque a poesia purifica a alma
...e um belo poema — ainda que de Deus se aparte —
um belo poema sempre leva a Deus!
Mário Quintana
http://www.releituras.com/mquintana_padre.asp
69
A mensagem
Um amigo nosso, comandante da VASP, conta-me a estranha
mensagem recebida por um piloto americano durante uma
aterrissagem.
O avião da companhia norte-americana sobrevoava a Bahia, a
caminho do Rio, quando um defeito no motor obrigou o piloto a
providenciar uma aterrissagem no aeroporto mais próximo possível.
Na Bahia, justamente na pequena cidade de Barreiras, existe
uma pista de emergência (se é que se pode chamar aquilo de pista)
para os aviões das linhas internacionais. Raramente é usada, mas era
a mais próxima da rota do avião. Assim, o piloto não teve dúvidas. A
situação dele estava muito mais pra urubu do que pra colibri. 0
negócio era mesmo se mandar para Barreiras.
Pediu pouso durante certo tempo, dirigindo-se à Rádio local
em inglês. A resposta demorou um pouco, mas acabou vindo.
Alguém, com forte sotaque nordestino, falando um inglês arrevesado
e misturado com palavras em português, respondia que estava
ouvindo e aconselhava o comandante a procurar outro local para
aterrissagem.
Há dias estava chovendo em Barreiras e a pista se achava em
péssimo estado.
O piloto, sem outra alternativa, insistiu em pousar assim
mesmo, e tornou a pedir instruções, ouvindo-se lá a voz a dizer que
estava bem, mas que não se responsabilizava pelo que desse e viesse.
Acontece porém que isso foi dito com outras palavras, ainda
num misto de português e inglês. Assim:
— Ok. You land. But se der bode, I'il take my body out.
Stanislaw Ponte Preta
(Sérgio Porto)
http://www.releituras.com/spontepreta_menu.asp
Minha Mãe
Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Tenho medo da vida, minha mãe.
Canta a doce cantiga que cantavas
Quando eu corria doido ao teu regaço
Com medo dos fantasmas do telhado.
Nina o meu sono cheio de inquietude
Batendo de levinho no meu braço
Que estou com muito medo, minha mãe.
Repousa a luz amiga dos teus olhos
Nos meus olhos sem luz e sem repouso
Dize à dor que me espera eternamente
Para ir embora. Expulsa a angústia imensa
Do meu ser que não quer e que não pode
Dá-me um beijo na fonte dolorida
Que ela arde de febre, minha mãe.
70
Aninha-me em teu colo como outrora
Dize-me bem baixo assim: — Filho, não temas
Dorme em sossego, que tua mãe não dorme.
Dorme. Os que de há muito te esperavam
Cansados já se foram para longe.
Perto de ti está tua mãezinha
Teu irmão. que o estudo adormeceu
Tuas irmãs pisando de levinho
Para não despertar o sono teu.
Dorme, meu filho, dorme no meu peito
Sonha a felicidade. Velo eu
Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Me apavora a renúncia. Dize que eu fique
Afugenta este espaço que me prende
Afugenta o infinito que me chama
Que eu estou com muito medo, minha mãe.
Vinícius de Morais
"Vinicius de Moraes - Poesia completa e prosa", Editora Nova
Aguilar - Rio de Janeiro, 1998, pág. 186.
Ismália
Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...
E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava longe do céu...
Estava longe do mar...
E como um anjo pendeu
As asas para voar. . .
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma, subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...
Alphonsus de Guimarães
http://www.mundocultural.com.br/index.asp?url=http://www.mundo
cultural.com.br/literatura1/simbolismo/alphonsus.htm
71
À Maneira de Olegário Mariano
Triste flor de milonga ao abandono,
Betsabé, Betsabé, que mal me fazes!
Ontem, a coqueluche dos rapazes,
E agora? pobre pássaro sem dono.
Primavera e verão foram-se. O outono
Chegou. Folhas no chão... Névoas falazes...
E aí vem o inverno... O fim das lindas frases...
O último sonho, e após, o último sono!
As cigarras calaram-se. Era tarde!
E hoje que no teu sangue já não arde
O fogo em que tanta alma se abrasou,
Choras, sem compreenderes que a saudade
É um bem maior do que a felicidade,
Porque é a felicidade que ficou!
Manuel Bandeira
http://blog.sitedepoesias.com.br/poemas/a-maneira-de-olegario-
mariano
Árias e Canções
II
A suave castelã das horas mortas
Assoma à torre do castelo. As portas,
Que o rubro ocaso em onda ensangüentara,
Brilham do luar à luz celeste e clara.
Como em órbitas de fatias caveiras
Olhos que fossem de defuntas freiras,
Os astros morrem pelo céu pressago...
São como círios a tombar num lago.
E o céu, diante de mim, todo escurece...
E eu que nem sei de cor uma só prece!
Pobre alma, que me queres, que me queres?
São assim todas, todas as mulheres.
Alphonsus de Guimarães
http://www.mundocultural.com.br/
72
Clara
Quando a manhã madrugava
clama
alta
clara
clara morria de amor
faca de ponta flor e flor
cambraia branca sob o sol
cravina branca amor
cravina e sonha
a moça chamada clara
água
alma
lava
alva cambraia no sol
galo cantando cor e cor
pássaro preto dor e dor
um marinheiro amor
distante amor
e a moça sonha só
um marinheiro sob o sol
onde andará o meu amor
onde andará o amor
no mar amor
no mar ou sonha
se ainda lembra o meu nome
longe
longe
longe
onde estiver numa onda num bar
numa onda que quer me levar
para um mar de água clara
clara
clara
clara
ouço meu bem me chamar
faca de ponta dor e dor
cravo vermelho no lençol
cravo vermelho amor
vermelho amor
cravina e galos
e a moça chamada clara
clara
clara
clara
alma tranqüila de dor
Caetano Veloso
http://www.casadobruxo.com.br/poesia/c/caetano25.htm
Meu País
Tô vendo tudo, tô vendo tudo
Mas, bico calado, faz de conta que sou mudo
Um país que crianças elimina
Que não ouve o clamor dos esquecidos
Onde nunca os humildes são ouvidos
E uma elite sem deus é quem domina
73
Que permite um estupro em cada esquina
E a certeza da dúvida infeliz
Onde quem tem razão baixa a cerviz
E massacram - se o negro e a mulher
Pode ser o país de quem quiser
Mas não é, com certeza, o meu país
Um país onde as leis são descartáveis
Por ausência de códigos corretos
Com quarenta milhões de analfabetos
E maior multidão de miseráveis
Um país onde os homens confiáveis
Não têm voz, não têm vez, nem diretriz
Mas corruptos têm voz e vez e bis
E o respaldo de estímulo incomum
Pode ser o país de qualquer um
Mas não é com certeza o meu país
Um país que perdeu a identidade
Sepultou o idioma português
Aprendeu a falar pornofonês
Aderindo à global vulgaridade
Um país que não tem capacidade
De saber o que pensa e o que diz
Que não pode esconder a cicatriz
De um povo de bem que vive mal
Pode ser o país do carnaval
Mas não é com certeza o meu país
Um país que seus índios discrimina
E as ciências e as artes não respeita
Um país que ainda morre de maleita
Por atraso geral da medicina
Um país onde escola não ensina
E hospital não dispõe de raio - x
Onde a gente dos morros é feliz
Se tem água de chuva e luz do sol
Pode ser o país do futebol
Mas não é com certeza o meu país
Tô vendo tudo, tô vendo tudo
Mas, bico calado, faz de conta que sou mudo
Um país que é doente e não se cura
Quer ficar sempre no terceiro mundo
Que do poço fatal chegou ao fundo
Sem saber emergir da noite escura
Um país que engoliu a compostura
Atendendo a políticos sutis
Que dividem o Brasil em mil Brasis
Pra melhor assaltar de ponta a ponta
Pode ser o país do faz-de-conta
Mas não é com certeza o meu país
Tô vendo tudo, tô vendo tudo
Mas, bico calado, faz de conta que sou mudo
Zé Ramalho
http://vagalume.uol.com.br/ze-ramalho/o-meu-pais.html