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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

SHREK, DO CONTO AO FILME:

um “reino” não tão distante.

EDVÂNEA MARIA DA SILVA

João Pessoa - PB

2007

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EDVÂNEA MARIA DA SILVA

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA E CULTURA

LINHA DE PESQUISA: LEITURAS DO TEXTO LITERÁRIO

SHREK, DO CONTO AO FILME:

um “reino” não tão distante.

Dissertação de Mestrado apresentada ao Colegiado do Programa de Pós-graduação em Letras do Centro de Ciências Humanas Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras.

Área de concentração: Literatura e Cultura

Orientadora: Profª Drª Genilda Azerêdo

João Pessoa - PB

2007

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Os contos de fadas são verdadeiros.

Ítalo Calvino

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... Muitos cavaleiros falharam ao tentar libertá-la da prisão.Ela ficou aguardando no quarto mais alto da mais alta torre por seu verdadeiro amor e pelo beijo dele. Como se isso acontecesse. Quanta...

“Minina, pára de ler. Vai estudar!” Eu tinha 12 anos e essa era/ é a voz de

minha mãe, Marinalva Augusta, a quem, ao longo desses anos, em alguns momentos eu

(des-) obedeci.

A Marinete Vasconcelos, minha tia-fiandeira, que despertou em mim o prazer

em ouvir/ ler o conto maravilhoso.

Aos meus irmãos e sobrinhos, ótimos espectadores-torcedores.

Aos meus alunos, co-responsáveis por meu constante aprendizado.

A Adriana Paiva, Andréa Bühler, Carol Araújo, Ednalva Silva, Fanka Santos,

Gilvan de Melo, Jacinto Santos, Kátia Simone, Luis Diniz, Marcos de Andrade, Mário

Sérgio, Nivaldo Tenório, Rosângela da Silva, Rosanne Bezerra e Zonda (Geyzon Dantas),

amigos generosos que ouviram/ leram essa história (Dissertação) quando ela, muitas vezes,

não passava de uma narrativa tão tão distante.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade

Federal da Paraíba, especialmente, à Profª Drª Genilda Azerêdo, minha orientadora, pelo

constante incentivo, sensibilidade, guiando-me, serenamente, pelo reino da Literatura e do

Cinema nos momentos de maior inquietação em minha pesquisa.

A Lúcia Gaspar, da Biblioteca Central Blanche Knopf da Fundação Joaquim

Nabuco.

E, é claro, a ele, Shrek, esse ogro irreverente que não apenas reforçou o meu

encantamento pelos contos de fadas, mas também estreitou a minha relação com a Sétima

Arte, o que tem contribuído para a minha prática em sala de aula.

...meus sinceros agradecimentos e até a próxima adaptação!

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Resumo A presente dissertação tem como objetivo investigar a crítica à sociedade contemporânea

presente no espaço social do conto Shrek! (2001), de William Steig, e do filme Shrek 2

(2004), adaptado por Andrew Adamson (DreamWorks). Para tal, mesclamos reflexões

acerca do contexto sócio-cultural em que livro e filme foram produzidos com análise

intertextual. Observamos ainda como autor e cineasta utilizam-se da paródia aos contos

de fadas tradicionais não só para confirmar a perenidade dessas narrativas, mas também

para nos proporcionar uma leitura crítica de nossa sociedade. Nesse sentido, a inserção

dos símbolos do poder capitalista na construção do espaço social da adaptação fílmica é

um recurso eficaz, uma vez que amplia os significados do texto literário.

Palavras-chave: Shrek. Contos de fada. Paródia. Adaptação fílmica. Espaço social

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Abstract

The present dissertation aims at investigating how our contemporary society is criticized

through social space in Shrek! (2001), a fairy tale by William Steig, and the movie Shrek 2

(2004), adapted by Andrew Adamson (DreamWorks). For this purpose we mixed

reflections about the socio-cultural context in which the book and the movie have been

produced with an intertextual analysis. We also observed how the author and the director

make parodies of the traditional fairy tales not only to confirm the perennial property of

these narratives, but also to provide readers and spectators with a critical reading of our

society. In this sense, the insertion of symbols revealing of capitalist power in the

construction of the filmic social space constitutes an effective resource once it enlarges

the meanings of the literary text.

Key-words: Shrek. Fairy tales. Parody. Filmic adaptation. Social space.

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Sumário

1 – Era uma vez um projeto de pesquisa... (Introdução) 10

2 – No reino de Perrault, La Fontaine, Grimm, Andersen: Breve história da boa idade dos contos de fadas. 14

2.1 - No reino de Steig e Andrews: a história do moderno conto de fadas na literatura e no cinema. 27

3 – Literatura e Cinema: sobre ogros, cebolas e adaptações. 38

3.1 –- Do Buraco negro ao castelo maluco: o herói moderno desnuda o espaço social do conto Shrek!, de William Steig. 52

3.2 – Far Far Away: uma alegoria da sociedade contemporânea. 69

4 – De Shrek! a Shrek 2: um “reino” não tão distante 91

4.1 – Far Far Away: o não-lugar é o melhor lugar. 108

5 – E eles viverão horríveis ( e felizes) até a próxima adaptação...

(Conclusão) 120

6 – Créditos finais (Referências) 125

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1 - Era uma vez um projeto de pesquisa... (Introdução)

A experiência que anda de boca em boca é a fonte onde beberam todos os narradores.

Walter Benjamin

Minha gente, se acomode, que agora eu vou contar uma história bem bonita pra móde vos entreter, pra móde vos agradar. Quando a gente fala assim e começa: “era uma vez”, não tem quem não se interesse, nem quem não queira escutar. A criançada se achega e gente grande com estresse que foi menino também se aquieta, vem, sossega, senta ou deita, se aconchega, se prepara pra sonhar. E então tudo é possível e se pode acreditar quando se é bom ouvinte; tudo pode ser verdade e tudo se pode inventar. Ouçam a história seguinte:1 [...]

1 Uma delirante confusão fabulística, versos de Maria Luiza Newlands Silveira para Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, Carnaval de 2005. Disponível em http://liesa.globo.com/2007/por/ 18-outroscarnavais /carnaval05 / enredos /imperatriz/imperatriz_meio.htm. Acesso 13 set. 2006.

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A “contação” de histórias, quer seja do texto literário, quer seja do texto

fílmico, costuma exigir todo um ritual. No caso do texto verbal, é necessária a presença

do (a) narrador (a), de um público ouvinte, de um local adequado (quarto, sala, cozinha,

calçada, quintal). Com o texto fílmico não é (muito) diferente: espectadores, narrador

cinemático (às vezes, aliado a uma voz-over ou off), sala de projeção e, é claro, em ambos

os casos, a história a ser contada.

Tecida para “prender” o leitor/ espectador, uma narrativa como o conto de

fada, a partir do Era uma vez, cria expectativas em seu público que deseja conhecer seus

personagens (geralmente, príncipes e princesas), vilões (bruxas e ogros), conflitos e reinos;

torcendo, para que seu (sua) herói/ heroína seja venturoso (a) em sua luta e que tudo

termine com um “feliz (es) para sempre”.

Situação análoga ocorre em um projeto de pesquisa. Após a introdução de

“praxe”, Este projeto se propõe a analisar as relações entre ..., o narrador-pesquisador deseja contar

mais sobre o seu protagonista (objeto de estudo) e como ele se relaciona no reino (linha

de pesquisa) por onde transita. Definidas essas questões, o narrador inicia uma narrativa

que busca convencer o leitor de que essa “história” (dissertação) pode ser tão reveladora

como um conto de fada.

Nesse sentido, “Leituras do texto literário” é uma linha de pesquisa que nos

permite investigar de que forma a Literatura dialoga com outras áreas, como o Cinema. O

diálogo/ namoro entre as linguagens verbal e audiovisual se dá através do viés da

adaptação, que, no caso específico dessa pesquisa, será considerada como diálogo ativo

entre filme e texto-fonte.

Considerando que o texto literário e o texto fílmico, quando narrativas

lineares, possuem os mesmos elementos constituintes -- narrador, personagem, espaço e

tempo --, dentre esses elementos, elegemos como tópico de análise o espaço social do

filme (o reino Tão Tão Distante), uma vez que este cenário, inexistente no texto literário,

amplia os significados do texto adaptado.

Inconscientemente, talvez seduzidos pelas características dos contos de fadas

em que a narrativa, geralmente, se passa num reino distante, numa época imprecisa e com

personagens nem sempre nomeados, optamos pela não rigidez na estrutura dissertativa,

situando-nos num vaivém entre teoria, análise e interpretação, não necessariamente nessa

ordem.

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O texto escolhido não poderia ser outro que não um conto de fadas, ainda que

moderno. Trata-se da animação Shrek 2, de Andrews Adamson, uma adaptação do conto

de fada Shrek!, de William Steig. Ao longo deste trabalho, mesclamos reflexões acerca do

contexto sócio-cultural em que livro e filme foram produzidos com análise intertextual,

bem como uma análise paratextual; nesse caso, a relação que o texto mantém com o seu

título.

Na história do ogro-herói, Steig e Adamson, na literatura e no cinema,

utilizam-se da paródia não só para homenagear essas narrativas (infantis, juvenis, adultas),

mas também para criticar a sociedade em que vivemos. Vale ressaltar que livro e filme não

se digladiam. A adaptação, ainda que de maneira indireta, tem o mérito de levar o público

em geral a ter acesso ao texto literário.

A fim de melhor discutir essas questões, dividimos nosso trabalho em três

capítulos: 2 – No reino de Perrault, La Fontaine, Grimm, Andersen: Breve história da boa idade

dos contos de fadas; 3 – Literatura e Cinema: sobre ogros, cebolas e adaptações; 4 – De

Shrek! a Shrek 2: um “reino” não tão distante.

No primeiro capítulo, analisamos a importância dos “primeiros” narradores

para a perenidade dos contos de fadas e das fábulas, bem como a relação dessas narrativas

com o contexto sócio-cultural e econômico em que foram adaptadas. Também

observamos como a história do ogro, quer seja na literatura, quer seja no cinema,

confirma a boa idade dessas narrativas tradicionais, uma vez que, embora às avessas,

recorrem à sua morfologia; falando, como fizeram essas histórias, a públicos diferentes.

O segundo capítulo trata das questões envolvidas no processo de adaptação de

um texto literário, bem como de que maneira certos elementos constituintes da narrativa

são traduzidos e/ ou dilatados na transposição do texto à tela. Discutimos, também, a

relevância do nome e da “figura” do protagonista e por que Shrek! e Shrek 2 são textos

paródicos e satíricos.

Ainda nesse capítulo, procuramos analisar o personagem ogro, à luz da

gramática do monstruoso, e sua relação com o espaço social do texto literário. Quanto ao

texto fílmico, entendemos o espaço social como representação da sociedade

contemporânea. Nesse sentido, os estudos de Adorno e Horkheimer acerca da Indústria

Cultural são uma contribuição valiosa.

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O terceiro capítulo propõe um cotejo entre o texto literário e o fílmico

procurando diferenciar o que é análise e o que é interpretação. Como Shrek 2 é uma

animação, um parêntese sobre 3D2 precede a análise do filme a fim de esclarecer como os

recursos técnicos utilizados são relevantes para a interpretação do texto adaptado. São

colocadas, também, reflexões sobre as intervenções que o texto literário sofreu; como

exemplo, citamos a mudança no perfil psicológico do protagonista já no primeiro filme,

Shrek. Esse fato é importante para o conflito que o personagem terá com o espaço social

em Shrek 2.

A leitura que fazemos desse conflito leva-nos a interpretar o espaço social da

narrativa fílmica como um não-lugar do personagem. Tal interpretação ganha espaço a

partir de estudos da Geografia (humanística) e da Antropologia.

Com este trabalho, esperamos poder comprovar que a inserção dos símbolos

do poder capitalista na construção do espaço social da adaptação fílmica, Shrek 2, amplia

os significados do conto de fadas Shrek!, mas também que a linguagem fílmica utilizada

na adaptação de Shrek 2, através do recurso da paródia, promove a reflexão crítica acerca

da homogeneização da cultura na formação do modo de vida contemporâneo.

Esses argumentos (outrora hipóteses), a nosso ver, justificam a adaptação

desse moderno conto de fada. Ademais, esta história (a do ogro, não a nossa) pode

despertar o interesse naqueles que, pouco afeitos aos contos de fada, ainda não conhecem

os textos de Steig e de Adamson.

2 Terceira dimensão.

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2 - No reino de Perrault, La Fontaine, Grimm, Andersen: Breve

história da boa idade dos contos de fadas.

Et conter pour conter me semble peu d'affaire3

La Fontaine

O ato de contar histórias começou nos primórdios da humanidade, percorreu

o trajeto da oralidade à escritura; das lavanderias e salas de fiar às ruelles4; do feminino ao

masculino. Em sua forma oral, coube às mulheres o papel de fiandeiras dos contos

maravilhosos5. Para Liborel (2005, p. 370), as fiandeiras “alimentam em nós a inesgotável

compreensão do desenrolar de toda existência, enquadrada pelo nascimento e pela

morte”. Travestidas de Sherazades, avós, amas e criadas teciam histórias sobre reinos

distantes, príncipes encantados, fadas e/ou bruxas, profecias, obstáculos, ameaças,

auxiliares, dentre outras funções dos personagens apresentadas na Morfologia do conto

maravilhoso (PROPP, 1984).

Essas histórias, contos de fadas ou contos maravilhosos, resistiram por toda

Idade Média e, como a teoria da onda, metáfora para disseminação dos contos, estão

presentes em todas as culturas.

3 E contar por contar me parece algo irrelevante. (Tradução nossa) 4 Na segunda metade do século XVII, a marquesa de Rambouillet, por achar rústica demais a corte de Luís XIII, passou a receber seus convidados em sua alcova, deitada em seu lit parade (leito de gala), enquanto aqueles se sentavam na ruelle -- “ruela” (espaço entre a cama e a parede) e contavam-lhe histórias reais e imaginárias [...] Cf. WARNER, 1999, p. 76. 5 Vladimir Propp prefere a expressão “conto maravilhoso” a “conto de fada”, mas optamos por usar a expressão “conto de fada”, uma vez que, apesar de pertencerem ao universo do maravilhoso, ambas as narrativas “apresentam diferenças essenciais, quando analisadas em função da problemática que lhes serve de fundamento. Grosso modo, pode-se dizer que o conto maravilhoso tem raízes orientais e gira em torno de uma problemática material/social/sensorial – a busca de riquezas; a conquista de poder; a satisfação do corpo etc. -, ligada basicamente à realização socioeconômica do indivíduo em seu meio. Ex: Aladim e a lâmpada maravilhosa; O Gato de Botas; O Pescador e o Gênio; Simbad, o Marujo. [...] Quanto ao conto de fadas de raízes celtas, gira em torno de uma problemática espiritual/ética/existencial, ligada à realização interior do indivíduo, basicamente por intermédio do Amor. [...] Ex: Rapunzel, O Pássaro Azul, A Bela Adormecida, Branca de Neve e os Sete Anões, A Bela e a Fera. Cf. COELHO, 2003, p. 79.

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Acerca da propagação dos contos de fadas, Warner (p. 21) observa que

Os teóricos de hoje em dia preferem visualizar modelos de disseminação dos contos de fadas tomando emprestadas metáforas da ciência: a teoria da onda oferece a imagem de uma pedra atirada num lago, provocando sobre a superfície círculos que podem se encontrar com outros círculos, dessa forma se unindo por reverberação com outras pedras, lançadas em outros oceanos da história.

Para Benjamin (p. 62), “Narrar histórias é sempre a arte de as continuar

contando e esta se perde quando as histórias já não são mais retidas”; em outras palavras,

cabe à memória a perenidade dessas histórias. Imaginar uma narrativa contada às crianças

e/ou aos adultos que será transmitida aos seus descendentes, os quais darão continuidade

ao ofício da fiandeira, herdado de seus pais, avós e tios, num incansável jogo de “atirar

pedras no lago”, é entender a teoria da onda, metáfora emprestada da Física. Nesse

sentido, a transmissão dos contos de fada às gerações vindouras, muitos deles adaptados a

uma nova audiência por razões que discutiremos mais adiante, evita que as “ondas”

(histórias) percam sua “força” ao se afastar dos “círculos concêntricos” (época/ lugar em

que foram narradas).

Em sua forma escrita, essas histórias foram coletadas (e adaptadas) por

Perrault (séc. XVII), Irmãos Grimm (séc. XVIII) e Andersen (séc. XIX). De acordo com

Warner (1999, p. 43), os contos maravilhosos “freqüentemente eram transmitidos por

mulheres no ambiente íntimo ou doméstico”. Dois argumentos corroboram sua assertiva:

As mulheres que inauguraram em Paris a moda de escrever contos de fadas, no final do século XVIII, afirmaram consistentemente que haviam sido amas e criadas que lhes contaram as histórias que relatavam [...] A coleção de Perrault, datada de 1697, tinha como título alternativo Contes de ma Mère l’Oye6; num prefácio anterior para o conto “Peau d’Ane”7, Perrault também situou sua obra na tradição milésia de sátira amorosa, como a fábula de “Eros e Psique”, mas acrescentou que transmitia “uma história totalmente inventada e um conto de velhas senhoras”, tal como as amas os contavam desde tempos imemoriais para as crianças (p. 43).

Em sua forma mais bruta, o conteúdo desses contos assemelha-se ao dos

mexericos. Estes surgiam metamorfoseados nos contos de fadas que eram ouvidos pelas

crianças, independente de sua classe social. Todavia, ambos os textos tendiam “a ser

praticados pelos membros menos favorecidos da sociedade” (WARNER, 1999, p. 76).

Apesar do epíteto pejorativo, o mexerico

6 Contos da Mamãe Gansa. 7 Pele de Asno.

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passa informações vitais sobre os valores e crenças da comunidade em que crescem – ensina-lhes em quem se deve confiar, o que é considerado louvável, o que é condenado, fala de alianças e inimizades, esperanças e perigos. [...] Paradoxalmente, o mexerico era um dos campos de batalha onde elas [as mulheres] combatiam seus inimigos, uma das armas que empunhavam (WARNER, p. 76).

A importação do ofício das fiandeiras (leiam-se narradoras/ mexeriqueiras)

pelos freqüentadores das ruelles promoveu os mexericos a histórias lúdicas e pedagógicas.

E, embora algumas características se mantivessem, como a do noivo predatório, “as

histórias eram elaboradas para divertir e instruir; os relacionamentos eram definidos e

refinados através de diálogos de intensidade íntima, mas de decoro imaculado”

(WARNER, p. 77). A (re-) elaboração desses contos implica movimento, uma vez que “O

texto oral pode ser diferente a cada vez que for narrado, pois a recriação e a invenção

fazem parte dele” (CALDIN, 2002, p. 4).

Capinha Vermelha, versão oral de Chapeuzinho vermelho, remonta a, pelo menos,

seis séculos antes da adaptação de Perrault para a linguagem escrita. Os elementos básicos

dessa narrativa, menina com capuz vermelho e lobo mau que devora criancinhas, estão

presentes em várias versões; dentre elas, há aquelas que exacerbam a caracterização do

lobo.

Vale ressaltar que, enquanto a escrita não vinha, a oralidade cumpria o seu

papel de salvaguardar a memória do povo e de preservar o mito (CALDIN, p. 2). O

registro desses contos folclóricos permite-nos compreender os costumes, as tradições e a

realidade sócio-econômica de uma determinada época; o que não quer dizer que essas

narrativas estejam senis. Antes, gozam de uma jovialidade invejável porque lidam “com

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conteúdos da sabedoria popular, com conteúdos essenciais da condição humana”

(ABRAMOVICH apud CALDIN, p. 9).

“Existirmos: a que será que se destina?”8 Segundo Bettelheim (p. 59), os

contos de fadas respondem a questões eternas como essa. A esse respeito, Coelho é

categórica: “A verdade é que, desde sempre, o homem preocupou-se com o enigma das

origens e, não podendo explicá-lo pela lógica, projeta-o no mistério” (p. 65). Para

Benjamin (1980, p. 69), o conto de fadas “ainda hoje é primeiro conselheiro das crianças”

e observa que isso ocorre “porque foi outrora o primeiro da humanidade”; ademais,

“permanece vivo, em segredo, na narrativa”.

Darnton (1986, p. 26), por sua vez, vê os contos de fadas como documentos

históricos. Em O grande massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa, explica

que os contos possuem uma origem remota e “sofreram diferentes transformações, em

diferentes tradições culturais”. Contrário ao pensamento de Bettelheim, Darnton observa

que essas histórias não expressam as imutáveis operações do ser interno do homem”; o

que elas fazem é sugerir que “as próprias mentalidades mudaram”. A fim de ilustrar seu

pensamento, Darnton comenta que, à época do Ancien Régime9, devido à situação de

miséria em que viviam os camponeses, era comum os pais abandonarem seus filhos nas

florestas. Esse fato está presente no tradicional conto de fada João e Maria.

Os camponeses, no início da França moderna, habitavam um mundo de madrastas e órfãos, de labuta inexorável e interminável, e de emoções brutais, tanto aparentes como reprimidas. A condição humana mudou tanto, desde então, que mal podemos imaginar como era, para pessoas com vidas realmente desagradáveis, grosseiras e curtas. É por isso que precisamos reler Mamãe Ganso. (DARNTON, 47)

A França, assim como outros países desenvolvidos, vive uma nova era. Mas, o

ser humano não. A nosso ver, a (re-) leitura de O Pequeno Polegar, um dos contos da

Mamãe Gansa, permite-nos não só compreender o contexto social da França do séc.

XVII - “período em que a peste e a fome dizimavam a população”, “os pobres comiam

carniça atirada nas ruas por curtidores” e “as mães “expunham” os bebês que não podiam

alimentar, para eles adoecerem e morrerem” (DARNTON, p. 49), mas também

comprovar a atualidade dos contos de fadas, uma vez que essas histórias transmitem uma

verdade importante, desagradável e, acrescentamos, atemporal: “a pobreza e a privação

8 Primeiro verso da canção Cajuína (1979), de Caetano Veloso. 9 Do fr. Antigo Regime, trata-se do período histórico anterior à Revolução Francesa.

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não melhoram o caráter do homem, mas, sim, o tornam mais egoísta e menos sensível aos

sofrimentos dos outros, e assim sujeito a empreender feitos malvados” (BETTELHEIM,

p. 195). Vejamos:

O lobo e o cordeiro

A razão do mais forte é a que vence no final (nem sempre o Bem derrota o Mal).

Um cordeiro a sede matava nas águas limpas de um regato.

Eis que se avista um lobo que por lá passava em forçado jejum, aventureiro inato, e lhe diz irritado: - "Que ousadia a tua, de turvar, em pleno dia,

a água que bebo! Hei de castigar-te!" - "Majestade, permiti-me um aparte" -

diz o cordeiro. - "Vede que estou matando a sede

água a jusante, bem uns vinte passos adiante

de onde vos encontrais. Assim, por conseguinte, para mim seria impossível

cometer tão grosseiro acinte." - "Mas turvas, e ainda mais horrível

foi que falaste mal de mim no ano passado. - "Mas como poderia" - pergunta assustado

o cordeiro -, "se eu não era nascido?" - "Ah, não? Então deve ter sido teu irmão." - "Peço-vos perdão

mais uma vez, mas deve ser engano, pois eu não tenho mano."

- "Então, algum parente: teus tios, teus pais. . . Cordeiros, cães, pastores, vós não me poupais;

por isso, hei de vingar-me" - e o leva até o recesso da mata, onde o esquarteja e come sem processo. (La Fontaine)10

Crescemos (ou será que voltamos à infância?) com essas narrativas. Quem não

conhece a história de uma linda garota, maltratada por sua madrasta e filhas, que recebe a

ajuda de sua fada madrinha para ir ao baile real, onde conhece o príncipe, que a tira do

borralho, e os dois vivem felizes para sempre? Ou a história do patinho que, por ser

grande e feio, causava vergonha aos seus irmãos? E, um dia, quando nadava, passou por

dois cisnes que não o enxotaram. O “patinho” estranhou tal atitude. Viu sua imagem

refletida no lago e descobriu que havia se transformado num belo cisne, causando

admiração, inclusive, em seus “irmãos”.

10 Cf. http://www.metaforas.com.br/infantis/oloboeocordeiro.htm

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Ambas as narrativas encerram o elemento mágico de forma natural. O Patinho

Feio, de Hans Christian Andersen (1805-1875), contudo, aproxima-se mais da fábula, uma

vez que apresenta, como personagens, animais que falam, pensam e sofrem como se

fossem seres humanos. Além do mais, a moral desse conto, “as aparências enganam”,

remete-nos à fábula O Leão e o Rato, de Esopo11 reescrita, no século XVII, por La

Fontaine. Nessa fábula, o leão “poupa” a vida do ratinho que, apesar do desdém do rei da

floresta, promete retribuir tal bondade. Não demora muito e o rato salva o leão das redes

dos caçadores. Contos maravilhosos ou fábulas, essas narrativas têm desempenhado um

papel lúdico-pedagógico, desde tempos imemoriais, que começou com a oralidade e

chegou ao texto escrito.

Observando os momentos de mutações e a crise do Ensino que aportou há um século

em nossa sociedade, Coelho (2003, p. 121, grifo da autora) chama a atenção para algo

muito mais profundo que as “metodologias, estratégias didáticas ou instrumental de

transmissão de informações [...]: trata-se, como sabemos, de uma mudança de visão de mundo

ou de paradigmas”. Os contos de fadas têm um papel fundamental nessa tarefa, pois lidam

com dois importantes ingredientes: a existência humana e a palavra. O primeiro é sua

matéria-prima; o segundo, seu meio transmissor (p. 122).

Apesar de todos os avanços tecnológicos e de diferentes áreas de pesquisas, o

homem busca o EU, mas “consciente de sua relação substancial com o OUTRO”

(COELHO, p. 122). Em seu papel pedagógico, os contos de fadas possibilitam ao

homem ordenar o mundo, harmonizando passado e presente. (p. 121). Além disso, a

consciência de si mesmo e do outro, do passado e do presente, ou seja, a apreensão do

real, é possível graças à linguagem simbólica dessas narrativas.

No último capítulo de O conto de fadas: símbolos mitos arquétipos (2003, p. 125-

126), Coelho conta-nos “Uma narrativa ancestral”. Trata-se da história de um médico que

foi designado pelo imperador Cosroe Anchiran para encontrar ervas milagrosas em certas

montanhas da Índia. Quase desistindo de sua busca, o médico encontra um sábio que lhe

dá o seguinte ensinamento:

A história que ouviste é verdadeira. Mas deves apreender seu sentido real, velado por símbolos. As montanhas são os sábios. As ervas milagrosas são suas palavras. Os mortos são os ignorantes. Os sábios transformam a mente dos ignorantes, com seus

11 Fabulista grego que viveu por volta do século VI a.C. foi o primeiro criador/ divulgador de fábulas, “seguido em Roma pelo grande fabulista Fedro (séc. I d. C.)”. Cf. COELHO, 2003, p. 133.

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conceitos e sua sabedoria, como se estivessem ressuscitando os mortos. A sabedoria dá imortalidade aos que a possuem e a transmitem aos outros.

Assim como faz a fábula, esse conto de fada, através do lúdico, veicula o

pedagógico, enfatizado pela moral que o encerra. Longe de se aposentar, fábula e conto

gozam de uma boa idade que nasceu adulta, já foi criança e hoje, indiferente à faixa etária,

transita pelo universo do humano. Isso posto, convém definir esses contos fabulosos e

sua morfologia; (re-) conhecer seus mais famosos narradores; cabe, ainda, o

reconhecimento do conto de fadas como gênero de protesto.

No que diz respeito à sua nomenclatura, embora contenham o substantivo

“fada”, muitos contos não apresentam essa personagem. Nesse caso, o vocábulo deve ser

entendido no sentido etimológico da palavra a fim de caracterizar essas narrativas.

Segundo Cunha, A. (2001, p. 347), fada vem do “lat. fāta, pl. de fātum ‘destino’”. Para

Warner (p. 49, grifo nosso),

Os contos de fadas são histórias que, nas mais antigas menções de sua existência, incluem o círculo de ouvintes, o público; enquanto apontam para possíveis destinos, possíveis finais felizes, envolvem com sucesso os ouvintes ou leitores ao levá-los a se identificarem com os protagonistas, com seus infortúnios e triunfos.

Era uma vez, uma pequena meiga menina da qual todo mundo passava a gostar assim que

a conhecia. Mas ninguém a amava tanto quanto sua vovozinha, que não sabia mais o que fazer para

agradá-la. Certo dia deu a ela um chapeuzinho de veludo vermelho. [...] Um dia sua Mãe lhe chamou e

disse:

- Chapeuzinho, leve este bolo e essa garrafa de vinho para a vovozinha, pois ela está doente

e fraca, e isto lhe fará muito bem. Vá logo. [...] Não se desvie da estrada, senão você poderá cair, quebrar

a garrafa e estragar o bolo, e assim a pobre vovozinha não receberá nada. [...] "Se eu levar um ramalhete

de flores para a vovó, ela ficará muito contente; ainda é bem cedo e eu chegarei a tempo." [...] “Nunca

mais sairei da estrada e penetrarei na floresta, quando isso for proibido por minha mãe”. (GRIMM,

1987, p. 4 et seq.)

Chapeuzinho vermelho é uma das muitas histórias que, apesar de não apresentar

uma fada, aponta um destino, um final feliz. Contudo, o destino desses enredos, no

processo de escritura, nem sempre percorreu um mesmo caminho. Em “O condão

cognitivo: passe de mágica como metonímia” (2005, p. 7), Rocha observa que Cinderela, de

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Perrault, baseado no conto popular A Gata Borralheira, possui uma versão diferente da dos

Irmãos Grimm:

Na Cinderela de Charles Perrault, uma fada madrinha aparece para ajudar a moça ir ao baile. Com sua varinha, a fada transforma as pobres roupas da jovem num belo vestido, seus sapatos em sapatos de cristal, uma abóbora em carruagem, dois ratos em cavalos e um cachorro em cocheiro.

No conto dos Irmãos Grimm, dois passes de mágica chamam atenção. Em um deles, a madrasta lança desafios a Cinderela. Se cumpridos, a moça poderia ir ao baile no palácio. Primeiramente, a madrasta manda a enteada catar, em duas horas, um tacho de lentilhas despejado nas cinzas do fogão. Cinderela evoca os pássaros para lhe ajudar: “Mansas pombinhas e rolinhas! Passarinhos do céu inteiro! Venham me ajudar a catar lentilhas! As boas vão para o tacho! As ruins para o seu papo!”

Mais do que o resgate da literatura guardada na memória popular,

entretenimento ou simples alteração do meio mágico12 - substituição da fada madrinha

pelas intervenções mágicas dos pássaros – a coletânea dessas narrativas pelos Irmãos

Grimm atendia a um contexto político-social. De acordo com Volobuef (1993, p. 103),

“na Alemanha ocupada pelos exércitos de Napoleão havia um sentido nacionalista e de

resistência ao poder estrangeiro na busca e preservação das tradições populares

(representantes do espírito da nação alemã)”. Vale ressaltar ainda que, influenciados pelo

ideário cristão, os Grimm lançaram mão de uma estratégia já utilizada por Perrault:

suavizaram a crueldade dos contos de fadas.

Embora não saibamos que versão (oral) influenciou Perrault na escritura de

Chapeuzinho Vermelho -- há versões em que “o lobo faz Capinha Vermelha comer a carne

da avó e beber seu sangue, apesar de vozes advertirem-na do contrário” (BETTELHEIM,

1980, 205) – e mesmo tendo excluído o canibalismo de Capinha Vermelha, sua

Chapeuzinho tem um final infeliz: “é engolida e vai para dentro do corpo do lobo junto

com a avó, e de lá não volta a emergir” (WARNER, p. 214). Coube aos Grimm

introduzirem um caçador que teria a tarefa de abrir a barriga do lobo e salvar a vovó e sua

netinha. Ao mudar o curso da história, Jacob e Wilhelm evitam ferir “os valores culturais

e morais” da família classe média alemã do séc. XVIII (VOLOBUEF, p. 104).

12 O meio mágico é um auxiliar do herói e corresponde a uma das funções do personagem. Cf. PROPP, 1984, p. 44.

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Como as amas negras no “Abrasileiramento da língua portuguesa”13, Perrault e

os Grimm tiraram as espinhas e as durezas de Chapeuzinho vermelho. Além do mais, o final

incomum para a doce capuchinho e sua avó corresponderia à parte da epígrafe deste

capítulo (contar por contar), se Perrault, contemporâneo de La Fontaine, não acreditasse

ser essa uma tarefa de muita seriedade e relevância. Ao sair impune, o lobo de Perrault dá

margem a outras interpretações.

Não é incomum descobrir em Perrault que suas moralités introduzem uma ironia: aqui o lobo já não representa o ambiente selvagem, mas sim os enganos da cidade e dos homens que nela exercem a autoridade. Ele abertamente vira a identidade costumeira do lobo de cabeça para baixo e o situa próximo de si, em vez de distante e como Outro (WARNER, p. 215).

Embora suas narrativas divertissem a aristocracia francesa de Luís XIV, a

biografia de Charles Perrault revela o seu engajamento na “Querela dos Antigos e

Modernos”, polêmica cujo objetivo era a valorização da língua francesa como oficial em

detrimento do latim (COELHO, p. 75). Um século mais tarde, os Grimm trilharam um

caminho parecido ao registrar, em língua oficial alemã, as narrativas ancestrais “colhidas”

ao pé do fogo (COELHO, p. 99).

Benjamin apresenta um argumento que, a nosso ver, também justifica a

suavização/ re-elaboração dos contos de fadas. Para o autor de “O narrador. Observações

sobre a obra de Nikolai Leskow” (p. 62-63),

A narrativa [...] é ela própria algo parecido a uma forma de comunicação. Não pretende transmitir o puro “em si” da coisa, como uma informação ou um relatório. Mergulha a coisa na vida de quem relata, a fim de extraí-la outra vez dela. É assim que adere à narrativa a marca de quem narra, como a tigela de barro a marca das mãos do oleiro.

Se não faltaram razões a Perrault e aos Grimm que influenciassem na (re-)

escritura dessas histórias, com Andersen não foi diferente. Segundo Coelho (p. 24), no

início do séc. XIX, a Dinamarca viveu sob o domínio napoleônico e o progresso

industrial aprofundou o fosso entre a abundância e a miséria. Isso se refletiu em suas

histórias que carregam um tom nostálgico com finais, geralmente, tristes ou trágicos. O

que não impediu, contudo, que o autor passasse à história “como a primeira voz

autenticamente “romântica” a contar história para as crianças e a sugerir-lhes padrões de

13 Parte do título de um excerto de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, adaptado para a prova de Língua Portuguesa da UFPE-UFRPE/2001. Embora não tenhamos encontrado a expressão (exata) em Freyre, a nosso ver, ela corresponde ao pensamento do Mestre de Apipucos. Cf. FREYRE, 2004, p. 413-415.

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comportamento a serem adotados pela nova sociedade que naquele momento se

organizava” (p. 25).

Por outro lado, suas histórias (contos ou fábulas) “mostram à saciedade as

injustiças que estão na base da sociedade, mas, ao mesmo tempo, oferecem o caminho

para neutralizá-las: a fé religiosa” (p. 25). Dentre os valores ideológicos, identificados na

obra de Andersen e citados por Coelho, destacamos “a valorização do indivíduo por suas

qualidades próprias e não por seus privilégios ou atributos sociais (O Patinho Feio, A

Pequena Vendedora de Fósforos)” (p. 25).

Essas considerações iniciais buscam desencorajar qualquer tentativa de rotular

o conto de fadas como uma narrativa simplória que começa com um Era uma vez, termina

com um felizes para sempre e no meio aparecem proibições e auxiliares mágicos ao herói. O conto

de fadas “é falsamente simples” (PITTA, 2002, p. 180). Warner o vê como “um gênero

essencialmente moralizante”, de “disfarce denso” que vai “na contramão da ética

comum” (p. 51). Moralizantes e densas são características que se aplicam, também, às

fábulas.

Por moralizante entendemos infundir idéias sadias como “Os pequenos

amigos podem se revelar grandes aliados”, moral presente na fábula O Leão e o Rato, ou,

como em uma das acepções do verbo moralizar, “conformar aos princípios de uma

determinada moral” (FERREIRA, A., p. 504). A questão é: que moral? Dos dominantes

ou dos dominados? Em O lobo e o cordeiro, La Fontaine encerra a narrativa com “A razão

do mais forte é a que vence no final” ratificando o que diz Coelho (p. 22), acerca de essas

narrativas simbólicas serem “verdadeiros textos cifrados que denunciavam as intrigas, os

desequilíbrios ou as injustiças entre o povo”.

Contemporâneo de Perrault, Jean de La Fontaine resgatou as fábulas não

apenas da memória popular, mas também de “fontes documentais da Antigüidade: Grécia

(Fábulas de Esopo); Roma (Fábulas de Fedro); parábolas bíblicas, coletâneas orientais e

narrativas medievais ou renascentistas” (COELHO, p. 22). Acerca da origem das fábulas,

Lucena e Oliveira (2004, p. 114) afirmam que elas são “tão velhas quanto o próprio

mundo, foram passando de geração em geração, sofrendo interferências impostas pelas

crenças, pelos valores, pelos costumes dos povos dos lugares por onde percorriam [...]”.

Definir a fábula como narrativa curta, alegórica, que tem, geralmente, animais

como protagonistas é reduzir a importância desse gênero literário. Segundo Lucena e

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Oliveira, a fábula já foi considerada por vários autores como o “estudo da natureza

humana”. La Fontaine (apud Lucena e Oliveira, p. 114) é enfático: “Le fables ne sont pas

ce qu'elles semblent être”14 Essas narrativas “pueris” atravessaram os séculos

denunciando e criticando as injustiças sociais. Elas são, como bem lembram Lucena e

Oliveira, “pequenos repositórios de sabedoria que têm instruído e encantado povos das

mais diversas nações” e atribuem ao seu caráter mitológico a responsabilidade de tirá-las

“do vulgar, do lugar comum” (p. 114).

Era uma vez... Moral da história... Contos de fadas ou fábulas? Mitos. De acordo

com Fiker (2000, p. 39), “o mito se dá originalmente a partir da narrativa oral, não

dispondo em si mesmo de “forma literária”. Esta lhe é dada a posteriori, ao ser escrito ou

anotado”. Assim, sendo filhos da oralidade, os contos de fadas e as fábulas são mitos.

Explicando a origem do termo, Fiker observa que uma das acepções da palavra “mito”

(Do gr, mithos) refere-se a uma “narrativa qualquer” (p. 40). Weinrich (apud Fiker, p. 41)

aponta alguns sinais (a presença de todos não é obrigatória) que caracterizam a narrativa

como mito, dentre eles: sinais situacionais, vários ouvintes reunidos em torno de um

narrador; e sinais textuais persistentes, fórmulas de introdução como “Era uma vez...”15.

Acerca do “parentesco” entre conto de fada e mito – este aqui interpretado

como fábula – Bernadette Bricout (2005, p. 192) observa que ambas as narrativas orais

têm origem na memória coletiva e são contadas “por um grande locutor anônimo de

contornos indecisos”. A inscrição do conto de fada na tradição, contudo, parece revelar as

limitações do narrador. Em outras palavras, o narrador (fiandeira-Sherazade), através de

motivos (Aarne-Thompson) ou das funções dos personagens (Propp) apodera-se do

modelo da tradição oral – foi assim com Perrault, Grimm, Steig e Adamson, conforme

veremos mais adiante – e dá à sua narração uma palavra nova, muitas vezes, em

consonância com o contexto sócio-político-cultural de sua platéia.

O Leão e o Rato, O Lobo e o Cordeiro, Cinderela, Chapeuzinho vermelho - fábulas e

contos de fadas – essas histórias nasceram adultas. De acordo com Mário Corso16, não é

de hoje que o conto de fadas é uma história para todos. Corso cita como exemplo O

Patinho Feio, de Andersen. Trata-se de uma história que não só traduz o desamparo

14

As fábulas não são o que parecem ser (Tradução nossa). 15 Essas informações são dadas na nota de rodapé. Cf. FIKER, 2000, p. 41. 16 Cf. Freud e as fadas Revista Época, nº 384, 26/09/2005. Disponível em http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,ESP889-1654,00.html. Acesso em 05 jul. 2006.

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infantil, mas também a sensação de insignificância que temos para com o mundo. Se os

contos de fadas hoje têm um forte apelo junto ao público infantil - basta olhar de soslaio

para a variedade de publicações, reedições e releituras destinadas à garotada -, é graças a

uma revisão do conceito de infância.

A partir dos estudos de Ariès, Corsino observa que as mudanças pelas quais a

sociedade passou, tais como “a ascensão da burguesia e o crescente interesse pela

alfabetização” (p. 12), foram fundamentais para a valorização - e por que não dizer

civilização? - da infância. Zipes (apud Abramowicz, 1998) acredita que a civilidade é “a

chave para se compreender o papel que os contos de fadas tiveram na França e sua

importância dinâmica da civilização”.

À época do já citado Ancien Regime, a infância não era vista como uma fase

“claramente distinta da adolescência, da juventude e da fase adulta por estilos especiais de

vestir e de se comportar” (DARNTON, p. 47). Tal fato acarretava o conhecimento

precoce da vida sexual dos adultos por parte dos seus filhos, uma vez que todos (pessoas

e animais) eram obrigados a dormirem juntos a fim de se aquecerem.

Por civilização, compreendemos o processo pelo qual os elementos culturais

de uma sociedade, leiam-se conhecimentos, técnicas, bens materiais, valores, costumes,

etc, são elaborados, desenvolvidos e aprimorados. Elias (apud Brandão, 2003, p. 2)

entende que “o processo civilizador constitui uma mudança na conduta e sentimentos

humanos rumo a uma direção muito específica”.

Nesse sentido, como os contos de fadas poderiam ter “civilizado” a infância?

De acordo Velay-Vallantin (apud Abramowicz, p. 9), o conto era um discurso literário que

tinha por objetivo

nutrir de hábitos, práticas e valores permitindo uma entrada mais fácil na civilização regida por códigos sociais aristocráticos; é necessário analisar as narrações como apelos às reivindicações nobres e às novas alianças socioculturais.

Alcançada a civilidade, os contos de fadas e as fábulas são histórias que não

pereceram com a pós-modernidade, pois, através (ou será apesar?) dos milênios, a

natureza humana continua a mesma. Ademais, para Lyotard (apud Souto, 1998, p. 194) “a

pós-modernidade é a reescrita de traços presentes na própria modernidade, reescrita que

já se encontra em curso na modernidade, e não uma era nova”. Vejamos: A verdadeira

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história dos três porquinhos (1993), de Jon Sciezka, é contada sob o ponto de vista do lobo,

que acaba reforçando a história “original” contada há três séculos.

Em O fantástico mistério de Feiurinha (1997), Pedro Bandeira não só vai além do

“Felizes para sempre” – as princesas dos contos de fadas estão velhas e rabugentas – mas

também age como seus predecessores: escreve a história de Feiurinha, colhendo-a da

tradição oral. Suas personagens Jerusa e Escritor têm um papel importante nesta peça

teatral: a primeira resgata a figura da fiandeira; a segunda presta uma homenagem a

Perrault, Grimm, Andersen, dentre outros escritores e escritoras.

Em “Hierarquia” (FERNANDES, M., 1973, p. 123), de forma bem humorada,

Millôr revisita a fábula O Leão e o Rato e propõe-nos não só uma outra moral: “AFINAL

NINGUÉM É TÃO INFERIOR ASSIM”; mas também uma submoral: “NEM TÃO

SUPERIOR, POR FALAR NISSO”. A paródia de Millôr humaniza-nos e sacraliza o

texto de La Fontaine. Por humanização, Candido (1989, p. 117) entende

o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade e penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.

A paródia aos contos de fadas e às fabulas se dá porque “o homem pós-

moderno continua a falar, a produzir seu discurso, embora consciente de que nada mais

pode fazer a não ser reciclar significados já cristalizados” (SOUTO, 1998, p. 198). Nesse

sentido, parece que Perrault, La Fontaine, Grimm e Andersen não só vivem a boa idade

dos contos de fadas, como também estão longe da aposentadoria.

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2.1 - No reino de Steig e Andrews: a história do moderno conto de fadas na literatura e no cinema.

“Quem conta um conto adapta um ponto.”

Era uma vez um ogro verde, feiíssimo, que cuspia fogo e soprava fumaça pelas orelhas.

Quando já estava “grandinho”, seus pais o expulsaram do buraco negro, de onde ele nunca havia saído.

Shrek (como era chamado), feliz, saiu pela estrada, soltando “puns” e assustando cobras, bruxas,

criancinhas, chuva, relâmpago, trovão e dragão. Mas o ogro também queria saber o que lhe reservava o

futuro. Ao saber que encontraria uma princesa para se casar e que esta era mais feia do que ele, o ogro-

herói vibra e vai ao encontro de sua amada. No caminho, encontra um “alazão”, quer dizer, um burro,

que vai levá-lo até o castelo maluco, onde está a princesa. Lá chegando, zomba do cavaleiro que guarda a

entrada do castelo, cospe uma rajada de fogo nele e deixa-o torradinho nas águas do fosso. Antes de chegar

ao salão onde a princesa mais horrorosa do planeta o aguardava, Shrek se depara com a Sala de

Espelhos: é o momento de revelação, pois o ogro-herói não conhecia a própria imagem. Ao se reconhecer tal

qual se havia imaginado, sente-se cheio de uma raivosa auto-estima; em seguida, encontra a princesa a

quem dedica versos horrorosos que são retribuídos com a mesma intensidade. Os passos seguintes são

trocar mordidas e beliscões, casarem o mais depressa possível e viverem horríveis para sempre.17

A história do ogro começa como tantos outros contos de fadas tradicionais,

com a expulsão do herói. Mas, diferente dessas narrativas, o conto Shrek! não precisou

percorrer o caminho da oralidade à escritura. Ademais, a figura clássica do herói é

substituída por um ogro verde. Para Warner (p. 458), “quem reformula os personagens e

muda o tom torna-se muito importante”. Isso ocorre porque uma história narrada, ainda

que tenha o mesmo título, jamais é igual ao seu modelo. Se tomarmos como exemplo

Chapeuzinho Vermelho, veremos que Perrault e Grimm transformaram-na, deixando-a ao

gosto de sua platéia, ou seria mais próxima de sua realidade?

A guinada do herói clássico (o príncipe encantado) para o herói moderno (o

ogro), nos contos de fadas, é uma resposta à saturação daquele que não atende mais a um

contexto moderno (pós-industrial). O responsável pela reformulação do “príncipe” foi o

cartunista e autor de livros infantis, William Steig (1907-2003). Colaborador da revista The

New Yorker, desde 1930, Steig foi considerado pela concorrente Newsweek como o rei dos 17 O texto destacado é uma paráfrase nossa e busca resumir os eventos principais do conto de Steig.

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cartuns. Em 1968, iniciou uma nova carreira: escritor (e ilustrador) de histórias infantis.

Fazendo uma breve incursão por alguns dos contos18 infantis, de Steig, deparamo-nos

com estórias de animais, particularmente com asnos e porcos, dentre as quais, Sylvester and

The Magic Pebble, Shrek! e The toy brother.

Sylvester and The Magic Pebble é a história de um pequeno asno que coleciona

seixos. Certo dia, o pequeno Sylvester descobre que uma de suas pedras é mágica e que,

ao fazer um pedido, seu desejo torna-se realidade. Um dia, estando em apuros, deseja se

transformar em um rochedo. A partir desse momento, os pais do pequeno asno sofrem

com o seu desaparecimento. Como muitos contos de fadas, essa narrativa tem um final

feliz, mas, como as fábulas, também encerra uma moral: “Be careful what you wish for”.19

Esse conto protagonizou dois momentos díspares: em 1970, a crítica

americana premiou Steig com The Caldecott Medal; no ano seguinte, as associações de

polícias tentaram remover as cópias do livro de várias bibliotecas dos Estados Unidos,

alegando que havia uma representação satírica das polícias como porcos. Irônico, Steig

respondeu que não incomodaria as crianças com propaganda política.20 Os contos de

Steig sempre tiveram uma recepção positiva por parte da crítica, não só americana - que o

agraciou com o American Book Award, em 1983, por Doctor De Soto -, mas também da

crítica italiana, que lhe concedeu o prêmio de melhor livro infantil, em 1990, por The Real

Thief (LORENZ, 1998, p. 673).

Em 1990, aos oitenta e três anos, Steig apresentou ao público americano

Shrek!. Indubitavelmente, esse irreverente conto de fada atingiu um público maior quando

a indústria da animação adaptou a história do ogro, resultando em dois filmes: Shrek

(2001) e Shrek 2 (2004). A escritura dessa narrativa parece a retomada de uma tradição

oral. Explicamos: nos contos de fadas, e com Shrek! não é diferente, é possível

encontrarmos traços do ciclo arturiano – cujas narrativas derivam da tradição oral céltico-

bretã -- como “a freqüência de situações, em que as mais perigosas tarefas são confiadas

ao herói, a presença do amor como força impelente à demanda de aventuras, tendo como

prêmio a bela noiva meta e conquista” (FERREIRA, J., 1979, p. 42).

18 Steig publicou mais de 15 livros infantis entre 1968 e 1998, todavia, a maioria das edições está esgotada, inclusive nos Estados Unidos. Cf. LORENZ, 1998, p. 673. 19 “Cuidado com o que você deseja” (Tradução nossa). 20 Disponível em < http://www.williamsteig.com> Acesso em 09 jul. 2006.

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“Sou bruxa, velha adivinha, teu futuro vou contar.

Um burro vai te levar a um cavaleiro feroz

Que num sangrento combate tu vais derrotar.

Então irás te casar com alguém de feiúra atroz,

Bem mais feia que tu: a princesa do lugar!

Pé de pato, mangalô, ouça o que vou te dizer.

É uma palavra mágica: ‘Apfelstrudel’,

É melhor não esquecer!”

“Oba, uma princesa!”, exclamou Shrek. “Lá vou eu!”

Essa divertida previsão que a bruxa faz para Shrek ratifica o que diz Ferreira, J.

acerca de o amor ser a força que impele o ogro à aventura; todavia, numa inversão

paródica, o “prêmio-meta” é uma noiva bem mais feia que o ogro-herói. Em a História do

Príncipe do Barro Branco e a Princesa do Reino do Vai Não Torna, Severino Milanês da Silva,

poeta cordelista, narra a história do personagem João que é obrigado, pelo príncipe do

Reino do Barro Branco, a trazer a princesa do Reino do Vai Não Torna para que se

casem. Todos os outros enviados sempre falharam e não voltavam porque não

conseguiam esconder-se do livro e do espelho com que os via a princesa. João, auxiliado

por uma ovelha, sai vitorioso e casa-se com a princesa.

[...]

João lhe disse princesa

eu venho aqui obrigado

do príncipe do Barro Branco

eu sou o encarregado

para levar a princesa

na côrte do seu reinado

[...]

João chegou no reinado

estava um desgôsto profundo

tudo coberto de luto

desde o rico ao vagabundo

e o príncipe do Barro branco

morrendo no outro mundo

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João voltou com a princesa

Naquele mesmo momento

já na côrte anunciava

a hora do casamento

no Reino do Vai Não Torna

receberam o sacramento. (SILVA, S., p. 11; 16)

Parte do conteúdo da sinopse e das estrofes desse folheto de cordel

assemelha-se à animação Shrek (2001), pois o ogro é “obrigado” por Lord Farquaad a

trazer a princesa com quem este iria casar. No entanto, da mesma forma que ocorre no

folheto de cordel, é o ogro quem desposa a princesa Fiona. Esse “parentesco” entre os

textos de William Steig, Andrew Adamson e Severino Milanês comprova que essas

narrativas, a saber, conto de fada, animação e cordel, beberam todas na mesma fonte, na

oralidade.

Shrek! chegou às telonas pelas mãos de Andrew Adamson. Embora tenha

trabalhado em outros filmes como Toys (1992) e Batman Forever (1995), o neozelandês

Adamson ganhou projeção ao dirigir Shrek e, mais tarde, Shrek 2. Continuando no

universo do maravilhoso, Adamson adaptou O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa (2005),

primeiro de sete livros escritos por C. S. Lewis sobre o reino de Nárnia.

Se ao adaptar o texto de Lewis, Adamson busca aproximar-se do texto

literário; na adaptação do conto de Steig, a aproximação entre texto literário e texto

fílmico é no nível da irreverência. Por outro lado, pensando no que seria uma forma bem

comportada, Shrek!, Shrek e Shrek 2 mantiveram a morfologia dos contos de fadas

tradicionais. Através da linguagem verbal ou audiovisual, ao contar essas histórias, Steig e

Adamson ratificam o papel dos contos de fadas de “transmitir ao mesmo tempo

significados manifestos e encobertos” e de “falar simultaneamente a todos os níveis da

personalidade humana, comunicando de uma maneira que atinge a mente ingênua da

criança tanto quanto a do adulto sofisticado” (BETTELHEIM, p. 14).

Além do mais, o texto de Steig - assim como fizeram as obras de Perrault, dos

Irmãos Grimm e de Andersen, à sua época – fala sobre as condições da vida moderna a

públicos diferentes. Ao ler o livro, certamente, uma criança de seis anos e uma pessoa

adulta farão leituras diferentes da “lição” que o relâmpago, a chuva e o trovão dão em

Shrek. Situação análoga deverá ocorrer no texto fílmico quando o ogro diz ao Burro que

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“os ogros têm camadas”: a criança sorrirá da “chatice” do asno, mas o adulto,

provavelmente, entenderá a metáfora21. Texto literário ou texto fílmico, a história do

ogro-herói significa e confirma a boa forma dos contos de fadas. Destarte, a fim de

comprovar nossa assertiva, analisaremos Shrek! e Shrek 2 à luz de algumas das funções das

personagens de Propp.22

Em sua Morfologia do conto maravilhoso, Vladimir Propp tece várias críticas aos

trabalhos que se propuseram a estudar o conto maravilhoso. De acordo com Propp (p.

14),

O estudo do conto maravilhoso era abordado sobretudo através de uma perspectiva genética, e, na maioria dos casos, sem a menor tentativa de uma prévia descrição sistemática. [...] falar da gênese sem dar atenção especial ao problema da descrição, como geralmente costuma ser feito, é completamente inútil.

Sobre as tentativas de sistematização do conto maravilhoso que antecederam à

sua Morfologia, Propp as classifica de “indicador convencional, e de valor bastante

duvidoso” (p. 17) ou “importante como guia prático” [grifo do autor] (p. 19). Essas críticas

referem-se, respectivamente, a Volkov e Aarne. Segundo Propp, aquele declarava que o

conto maravilhoso possuía quinze enredos, mas não “nos diz, entretanto, como estes

foram estabelecidos”(p. 17); este denominou os enredos de tipos o que, para o autor de

Morfologia do conto maravilhoso, “dá idéias falsas sobre o essencial”, uma vez que “não existe

uma divisão nítida dos contos em tipos e ela, com freqüência, é puramente fictícia” (p.

19). Apesar da “alfinetada”, Propp reconhece que Aarne “prestou enorme serviço no

campo do estudo do conto maravilhoso” e que “graças ao índice” foi “possível numerar os

contos” (p. 19).

Propp considera que o “método adequado de pesquisa é o estudo dos

fragmentos mais curtos que constituem o conto” (p. 20). Ele se referia às funções dos

personagens que “são partes constituintes básicas do conto”. Juntas, elas correspondem a

trinta e uma funções identificadas por Propp em sua Morfologia e, apesar de nem todos os

contos maravilhosos apresentarem todas as funções, a seqüência é sempre idêntica e

independe de como os personagens as executam (p. 27). A insistência nesta sistematização

21 Discutiremos essa questão no capítulo 3, “Literatura e Cinema: sobre ogros, cebolas e adaptações”. 22 Optamos por analisar apenas os textos Shrek! e Shrek 2 (e não outros contos), tendo em vista que nossas reflexões ao longo desse trabalho irão recair sobre eles, já que constituem o objeto de nossa pesquisa.

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deve-se ao fato de que uma elaboração histórica correta está condicionada a uma

elaboração morfológica também correta (p. 23).

Discutindo acerca do “Método e Material” de estudo do conto maravilhoso,

Propp observa que essa narrativa “atribui freqüentemente ações iguais a personagens

diferentes”, permitindo estudar “os contos a partir das funções dos personagens” (p. 25), e que

por função “compreende-se o procedimento de um personagem, definido do ponto de vista de sua

importância para o desenrolar da ação” [grifos do autor] (p. 26), por exemplo, “o herói é

mandado embora de casa”. De acordo com Propp, é essa função que “introduz o herói

no conto” (p. 39). Vale lembrar que o ogro, no conto de Steig, é expulso de casa por seus

pais para fazer sua dose de maldades; na adaptação fílmica, Shrek (2001), ele deixa seu

“lar” porque este havia sido invadido pelas “coisas dos contos de fadas”, o que leva Shrek

a fazer um acordo com Lord Farquaad: salvar a princesa Fiona da guarda do dragão e, em

troca, ter seu pântano de volta.

Acreditamos que (re)conhecer tais vestígios (as funções) no moderno conto de

Steig e nas adaptações de Adamson é relevante porque confirma a perenidade dos contos

de fadas tradicionais, através da escrita palimpsesta de Shrek!, Shrek e Shrek 2. Visando a

uma melhor compreensão por parte do leitor, propomos analisar essas narrativas à luz das

funções de Propp; antes, convém realizar a mesma tarefa com o tradicional conto de fada

A Bela Adormecida, de Perrault. Nossa escolha deve-se ao fato de que na abertura de Shrek

e Shrek 2 os personagens ogro e Encantado fazem, claramente, uma referência ao conto

da Mamãe Gansa.

A história da bela jovem, condenada a dormir por cem anos, começa quando

um sapo (ou rã, depende da adaptação) prevê, para a alegria do casal real, o nascimento de

uma linda princesinha. Com a chegada de tão gracioso presente, o rei e a rainha decidem

dar uma festa para apresentá-la e convidam toda a corte, inclusive as fadas que vêm como

convidadas de honra. Esta seria uma situação inicial23 de A Bela Adormecida. Uma das

fadas, entretanto, foi preterida. Rancorosa, dirige-se ao berço da princesinha, no

momento em que a última fada ofereceria o seu presente, e lança um feitiço: quando a

princesa completar quinze anos vai se ferir com o fuso de uma roca e morrerá. O feitiço é

suavizado pela última fada: a morte se converterá em sono profundo por um século.

23 Grifos nossos a fim de destacar a presença das funções de Propp nos contos de fadas.

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Impõe-se uma proibição: o rei ordena que todas as rocas do reino sejam

destruídas. Geralmente nos contos de fadas, a proibição é imposta ao herói, mas

conforme observa Propp (p. 26) “as funções de certos personagens dos contos

maravilhosos se transferem para outros personagens. Antecipando, podemos dizer que

existem bem poucas funções, enquanto os personagens são numerosíssimos”. A

proibição é transgredida, pois uma das rocas havia sido esquecida numa velha torre. A

princesa, então com quinze anos, encanta-se com o instrumento e pede a uma velhinha (a

fada-má) para experimentá-lo; no instante seguinte, cumpriu-se o feitiço, o antagonista

causa dano ou prejuízo a um dos membros da família.

Segundo Propp (p. 35), “as formas de dano são extremamente variadas”

dentre elas, o antagonista provoca um desaparecimento repentino [grifos do autor, p. 36). Como

exemplo, Propp cita o caso de uma madrasta que faz o enteado adormecer e sua noiva

desaparece para sempre. Após tocar no fuso da roca, a jovem princesa adormece e com

ela todo o seu reino e em volta do seu castelo surge uma vegetação tão densa que o

encobre, uma espécie de desaparecimento. Um século mais tarde, é divulgada a notícia

do dano ao herói e deixam-no ir. “Esta é a função que introduz o herói no conto”,

afirma Propp (p. 39). O príncipe toma conhecimento da história da bela princesa

adormecida, decide ir ao seu encontro, mas é desencorajado, uma vez que outros bravos

cavaleiros haviam falhado, pois temiam que ele tivesse a mesma sorte.

Na versão adaptada por Perrault, o príncipe enfrenta dificuldades para entrar

no castelo, pois cada vez que ele cortava as plantas que impediam a sua passagem, elas

ressurgiam mais fortes. Uma fada ouve a sua reclamação, vem em seu socorro e

transmite-lhe um auxiliar mágico, uma espada espacial com que ele abriu caminho até

chegar ao interior do castelo, deparar-se com um dragão feroz para em seguida vencê-lo.

Em seguida, o príncipe dirige-se ao quarto onde estava a princesa, beija-a, acordando-a, e

todo seu reino, do sono profundo.

Shrek! trilha um caminho análogo ao dos contos de fadas tradicionais. Ou seja,

o conto começa com uma certa situação inicial. Ficamos conhecendo a descrição dos

pais do herói, o seu nome (Shrek) e suas características físicas e psicológicas. “Embora

esta situação não constitua uma função, nem por isso deixa de ser um elemento

morfológico importante” (PROPP, p. 31). Nos contos de fadas, essa situação inicial é

seguida do afastamento de um dos membros da família, às vezes, por morte ou trabalho.

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Em Branca de Neve e os sete anões, primeiro morre a mãe da protagonista, depois é a vez de

seu pai, ficando a jovem aos cuidados de sua invejosa madrasta.

No conto de Steig, Shrek é expulso de sua casa e enviado a um mundo

desconhecido, a fim de cumprir uma designação: “fazer sua dose de maldade”. De

acordo com Bettelheim (p. 124), “Ser enviada para o mundo ou abandonada numa

floresta simboliza tanto o desejo dos pais de que a criança se torne independente, quanto

o desejo ou ansiedade da criança pela independência”. Todavia, como bem lembra

Bettelheim, esse impacto sobre a criança só é possível porque, antes de tudo, o conto é

“uma obra de arte” (p. 20).

Sendo esta uma narrativa de transgressões em que o herói é horrendo e sua

expulsão de casa em nada abala a sua moral, é compreensível que ele não respeite a

proibição de não entrar no bosque, do mesmo jeito que assume o papel de agressor,

destruindo “a paz da família feliz” (PROPP, p. 33). Nesse sentido, Shrek é mais

aterrorizante que a bruxa e o dragão, personagens (quase) inofensivos do conto de Steig.

Apesar disso, o ogro, como o príncipe, tem uma carência: ele deseja uma noiva. É nesse

instante que entra a figura do doador, a bruxa. Segundo Propp (p. 41), o doador costuma

ser “encontrado na mata, no caminho, etc. [...] Mas antes de receber o meio mágico, o

herói é submetido a certas ações bem diferentes entre si [...]”.

Nesse sentido, Steig parece ter compreendido a morfologia dos contos de

fadas e aplica-a, ainda que às avessas. Nas narrativas clássicas, é comum o doador mostrar

ao herói um objeto mágico e propor-lhe uma troca. Em Shrek!, é o ogro quem propõe à

senhora dos horrores alguns de seus piolhos raríssimos; em troca, ela lhe diria o seu

futuro. Na busca por sua noiva, é indispensável a ajuda de um meio mágico que pode

ser “maçãs, água, cavalo, espadas, etc.” (PROPP, p. 38). A bruxa de Shrek! oferece-lhe

não a maçã, mas a torta de maçã travestida da palavra mágica “Apfelstrudel”24. Esta será a

senha que levará o ogro ao “meio mágico”: um burro sonolento e apático que, apesar de

levar Shrek até o castelo onde estava a princesa, não participa de suas outras ações como:

assustar um lavrador e outras criaturas, enfrentar relâmpagos, chuvas e trovões e um

dragão enorme.

Além do mais, a escolha de um asno, em vez de um alazão, que levaria o

“herói” à princesa, ratifica duas características importantes desse animal na literatura: 24 Tipo de doce da culinária alemã, semelhante a um folhado, recheado com maçãs.

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divertir-nos e revelar a tolice alheia. A ignorância do burro pode ser lida como uma

metáfora da alienação humana na sociedade contemporânea, conforme discutiremos mais

adiante. Por ora, cumpre registrar o que nos diz Warner acerca da figura do asno (p. 167)

O animal mais intimamente associado com o divertimento e tolice é o asno; mas, paradoxalmente, os burros também são os bichos com maiores poderes de adivinhação e sabedoria do folclore popular e encantado. Com efeito, equiparam-se aos gansos em seu dom de se fazer de tolos e assim revelar a tolice alheia.

O papel do auxiliar mágico é transportar o herói ao objeto desejado. No conto

Shrek!, o burro ajuda o ogro a completar o trajeto até o castelo maluco. Lá, o antagonista

é vencido. Shrek derrota o cavaleiro biruta que guardava a entrada do castelo.

Finalmente, ao encontrar sua princesa, a carência é reparada. “Com esta função o conto

atinge o ápice”, afirma Propp (p. 51).

A análise da história do ogro, contudo, não se encerra com esta função. Ela

continua, por duas razões: primeiro, devido à sua adaptação para a linguagem do

audiovisual; segundo, porque, em Shrek 2, ao retomar a narrativa do ponto em que muitos

contos de fadas terminam, Adamson submete o ogro-herói a novas adversidades. É o

início de uma nova série de funções. Propp explica que

Este fenômeno mostra que um grande número de contos maravilhosos se compõe de duas séries de funções, que podemos chamar de seqüências. Uma nova desgraça dá origem a uma nova seqüência, e deste modo uma história reúne, às vezes, toda uma série de contos (p. 55).

A resistência em aceitar o “Felizes para sempre” aparece em outras narrativas.

Acerca desse tema, o Escritor, personagem de Feiurinha, faz as seguintes considerações:

“Mas afinal de contas, o que significa “viver feliz para sempre”? Significa casar, ter filhos,

engordar e reunir a família no domingo pra comer macarronada? Ora, quer dizer que a

felicidade não é viver mais nenhuma aventura? [...]”, e completa: “É preciso saber o que

acontece depois do fim! Sabem?” (BANDEIRA, p. 8). Adamson parece concordar com o

personagem Escritor.

Depois de casados, Shrek e Fiona recebem um convite para o baile real em Far

Far Away25, mas a recepção não é das mais calorosas. O ogro e seu sogro, o rei Harold,

não se entendem. Shrek quer voltar para casa, Fiona discorda, e eles brigam. Mais tarde,

25 O reino Tão Tão Distante.

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fingindo tentar se entender com Shrek, o rei convida-o para uma caçada no dia seguinte.

Esta representaria a situação inicial em Shrek 2. O rei não comparece ao compromisso,

mas envia o Gato de Botas que tem a missão de matar o ogro. Ao tomar tal atitude, o rei

(antagonista) causa um dano. “Essa função é extremamente importante, porque é ela, na

realidade, que dá movimento ao conto maravilhoso” (PROPP, p. 35). Além do mais, a

ordem para matar “é, em essência, uma expulsão modificada (reforçada)” (PROPP, p. 37).

A certeza de que não é bem-vindo ao reino e, conseqüentemente, à vida de

Fiona, abala o ogro. No entanto, como faz um herói-buscador, Shrek reage e vai à

procura da fórmula mágica que lhes traria (a ele e a Fiona) o “Felizes para sempre”. Antes

de partir nessa aventura, Shrek atende ao pedido de clemência do Gato de Botas e

poupa-lhe a vida. O passaporte, leia-se objeto mágico, para um “novo” eu, oferecido

pela Fada Madrinha e recusado pela princesa Fiona, passa a ser agora objeto de desejo do

ogro. Na seqüência do conto, “coloca-se à disposição do herói um novo objeto mágico”

(PROPP, p. 55). Em Shrek 2, junto com o Burro e seu mais novo companheiro, o Gato

de Botas, o ogro rouba a poção mágica do “Felizes para sempre” e, de certa forma, chega

incógnito a Far Far Away.

Todavia, em seu lugar, apresenta-se um falso herói: o Príncipe Encantado,

filho da Fada Madrinha. No decorrer da trama, o verdadeiro herói é reconhecido

“graças a uma marca ou estigma” (PROPP, p. 57). A marca de Shrek é a sua voz.

Simultâneo ao reconhecimento do ogro, ocorre o desmascaramento do príncipe

Encantado. As funções, assim como a narrativa, caminham para o fim: o herói recebe

nova aparência, ou seja, retorna à sua condição ogra; os inimigos são castigados.

Em geral, são castigados apenas o malfeitor da segunda seqüência e o falso herói; o primeiro antagonista só é castigado no caso de não haver na narrativa nem combate nem perseguição. Caso contrário, morre durante a luta ou a perseguição (a bruxa estoura ao tentar beber o mar, etc.) (PROPP, p. 58).

Nesse sentido, a Fada Má-drinha desaparece como bolhas no ar; o rei Harold

volta à sua forma anfíbia e o Encantado termina “nos braços” da Irmã Feia. Quanto a

Lord Farquaad, antagonista de Shrek (primeiro filme), foi devorado por um dragão-fêmea.

Como última função, é comum o herói se casar e subir ao trono. Sendo os

protagonistas desse moderno conto de fadas “marido e mulher”, há, na verdade, uma

renovação do casamento. Isso posto, cabe uma indagação: Qual é a importância dessas

funções na tessitura dos textos de Steig e Adamson?

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Página por página, cena por cena, Steig e Adamson confirmam a perenidade

dos contos de fadas tradicionais, mas também tecem um retrato mais humano do

“príncipe encantado”. Metamorfoseado em ogro, ele desobedece ao “curso da história”,

vai de encontro ao seu destino, e é feliz. Para BOURJEA (1986, 141-142), “as

metamorfoses são sempre o sinal de um desbloqueamento, simbolizam a liberação das

pulsões contidas por muito tempo e a brusca realização de um desejo”. Na aventura em

busca e pela preservação do “Felizes para sempre”, o ogro revela a (falsa) harmonia do

campo florido e entra em conflito com o reino Tão Tão Distante.

Identificar as funções de Propp na história do ogro verde, sujo e flatulento dá-

nos a impressão de que estamos diante de um palimpsesto. Isso ocorre porque Shrek! e

Shrek 2 possuem camadas de sentidos que são construídos a partir de uma escrita

paródica. Voltando à indagação acima, Propp sugere que o problema “só pode ser

resolvido mediante uma análise dos textos” (p. 59). Destarte, como leitores do irreverente

ogro, na literatura e no cinema, sugerimos não esperar “que uma palavra madrinha” nos

conceda a nós e a nosso “discurso a benção de uma interpretação” (NÓBREGA, 1986, p.

122); antes, propomos partir imediatamente para o próximo capítulo.

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3 – Literatura e Cinema: sobre ogros, cebolas e adaptações.

Era uma vez, num reino tão tão distante, um rei e uma rainha que foram abençoados com uma linda menininha. E por toda a parte, todos ficaram felizes até o Sol se pôr e eles verem que sua filha estava com um feitiço terrível que a transformava todas as noites.

Desesperados, eles pediram ajuda a uma fada madrinha que os fez trançarem a jovem princesa numa torre para esperar o beijo do belo Príncipe Encantado. Ele faria uma perigosa jornada através do frio cortante e do deserto escaldante viajando vários dias e noites arriscando a própria vida para enfrentar a guarda do Dragão. Porque ele era o mais corajoso e o mais belo de toda aquela terra. E o destino era que o seu beijo quebraria o horrível encanto.

Ele subiria sozinho até o quarto mais alto da mais alta torre para entrar nos aposentos da princesa e chegar até a sua silhueta adormecida, abrir as cortinas e ...26

A Bela Adormecida, de Gustavo Doré

O

Essa narrativa, com reino distante, princesa, feitiço, fada madrinha, príncipe

belo-corajoso-encantado e beijo salvador, poderia ser confundida com a história de A Bela

Adormecida se, ao invés de encontrar uma linda princesa, o destemido cavaleiro não se

deparasse com o lobo mau (travestido de vovozinha) lendo a “Pork Illustrated”, espécie

de Playboy com uma porca de biquíni na capa. O lobo-vovozinha, impaciente com a

interrupção, pergunta: “O que foi?”, ao que o príncipe, inseguro, indaga: “Princesa

Fiona?”. O lobo, enfático, responde: “Não!”; o príncipe, aliviado, “Graças a Deus!”.

“Onde está ela?”, questiona. “Na lua-de-mel”.__ diz o lobo. E volta a “ler” a sua revista.

Perplexo, o príncipe pergunta “Lua-de-mel?”, “Com quem?”

A partir desse momento, aparece uma seqüência da lua-de-mel de Shrek e

Fiona no “Chalé da lua-de-mel do João” (espécie de casa de doces onde vivia a bruxa que

prendeu os irmãos João e Maria, personagens do conto homônimo dos Irmãos Grimm).

O ogro Shrek ajusta a câmera, toma Fiona, princesa-ogra, nos braços e entra no chalé.

26 Essa narrativa é citada da abertura do filme Shrek 2.

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Enquanto Shrek prova um doce, oferecido por sua amada, que havia ficado sobre sua

cabeça, ouve-se a canção “Accidentally in Love", dos Counting Crows, e só então surge o

letreiro Shrek 2 (2004).

Como em muitas produções cinematográficas, só conheceremos os envolvidos

no processo de realização de Shrek 2, direção, produção, música, figurino, edição e, no

caso de desenhos animados, vozes do elenco, no final da película. Observamos, também,

que a história do ogro não é o resultado de um roteiro original; na verdade, trata-se da

adaptação do moderno conto de fadas Shrek! (2001), de William Steig.

Diferentemente dos contos de fada tradicionais adaptados pela Disney, dentre

eles, Branca de Neve e os sete anões27 (1937), Cinderella (1950), A Bela Adormecida (1959), A Bela

e a Fera (1991), em Shrek (2001) e sua seqüência Shrek 2 (2004), ambos produção da

DreamWorks, a história do ogro-herói tem vida própria; em outras palavras, o texto

fílmico não pretende ser uma cópia do texto literário. Na tradicional história da jovem de

cabelos negros como o ébano, poucas são as intervenções na transposição, o que nos leva,

de certa forma, a buscar um “parentesco”, no sentido de equivalência, entre ambas as

linguagens.

A título de exemplo, destacamos que, no texto literário, os anões não

possuíam nomes; a Rainha tentou diversas vezes, e não uma apenas, matar Branca de

Neve; e, ao invés do beijo salvador do príncipe, os anões são os verdadeiros responsáveis

por sua salvação, uma vez que ao carregarem o esquife de ouro, tropeçam numa pedra e o

pedaço da maçã envenenada salta da garganta da bela, devolvendo-lhe a vida.

Quanto às adaptações do conto de Steig, não somos levados a buscar esse grau

de “parentesco”. Talvez porque só tomemos conhecimento da existência de um texto

“original” nos créditos finais das animações, ou porque, diferente de as Crônicas de Nárnia:

o Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, de C. S. Lewis -- sucesso de crítica e público,

publicadas na metade do século passado e que tiveram o seu relançamento em 2005 -- a

obra de Lewis ainda figure nas prateleiras de livrarias e de grandes estabelecimentos

comerciais.

Shrek e Shrek 2 são textos que parecem ter uma independência maior do texto

que os inspirou. A independência das adaptações em relação ao texto de Steig ocorre 27 Primeiro longa de animação da Disney teve 8 relançamentos nos cinemas americanos: 1944, 1952, 1958, 1967, 1975, 1983, 1987 e 1993. Cf. http://www.animatoons.com.br/movies/snow_white/curiosidades.php.

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porque Adamson exacerba as intervenções paródicas realizadas nas animações no

processo de transposição para a linguagem do audiovisual, com a inserção dos

personagens dos contos de fadas como os três porquinhos e Chapeuzinho Vermelho. O

diálogo que esta personagem tem com o lobo mau no conto de fada tradicional é

adaptado para a fala do Burro, em Shrek (2001), que tenta fugir do dragão, uma relação

clara de intertextualidade. Vejamos:

Não! Não! Que dentes enormes você tem. Brancos e brilhantes. Deve ouvir sempre isso da sua comida. Deve fazer clareamento porque tem um sorriso ofuscante. Senti um frescor de hortelã? Sabe o que mais? Sabe o que mais? Você é um dragão moça!

Em Shrek 2, Adamson continua a revisitar os contos de fadas, e alguns dos

personagens dessas narrativas, como o lobo mau e os três porquinhos, agem como

auxiliares mágicos do ogro-herói, reforçando uma das funções dos personagens

apresentadas por Propp, cristalizando, assim, a paródia àquelas narrativas. Vale ressaltar

que estas considerações acerca de Shrek 2 não nega o texto-fonte; antes, amplia o seu

significado, pois insere um espaço social inexistente em Shrek!, além de recorrer à sátira a

fim de criticar o modo de vida na sociedade contemporânea, recurso esse já utilizado pelo

criador do ogro verde.

No que diz respeito à relação entre o texto literário e o texto fílmico, Cunha R.

(2006, p. 63) afirma que: “É importante se ter em mente que qualquer obra realizada a

partir de outra, para ser relevante, deve valer por si só, ou seja, ter vida própria”. Para Bela

Balaz (apud. Brito, 1996, p. 18), “quem adapta só pode utilizar a obra existente como

matéria prima, considerando-a sob o ângulo específico de sua própria natureza de arte,

como se ela fosse a realidade bruta, e nunca se ocupar da forma já conferida a essa

realidade.”

Há de se considerar que sendo a adaptação “o catalisador das relações entre

literatura e cinema”, conforme observa Brito (op. cit., p. 17), faz-se necessário

compreender por que adaptar o conto de Steig, à luz de estudos que versam sobre o tema.

Convém, ainda, ressaltar que o “namoro” entre a literatura e o cinema não teve início no

século passado com o desenvolvimento do aparato tecnológico deste. De acordo com

Nazário (apud Cunha, R., p. 17),

O homem sempre desejou compartilhar seus sonhos e, deste modo, o cinema sempre existiu: o avanço das técnicas apenas tornou possível a exteriorização

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mecânica do sonho. Assim, alguns pesquisadores remontam a invenção do cinema à pré-história, citando as pinturas rupestres nas paredes das cavernas. Outros mencionam a caverna de Platão e a câmara obscura imaginada no século IV a. C. por Aristóteles, e realmente inventada por Roger Bacon em 1267.

De certa forma, a literatura também sempre existiu. Para Rosenfeld (2005, p.

11, grifo nosso), “Na acepção lata, literatura é tudo o que aparece fixado por meio de letras –

obras científicas, reportagens, notícias, textos de propaganda, livros didáticos, receitas de

cozinha etc.” Dissemos anteriormente que a adaptação é “o catalisador das relações entre

literatura e cinema”; além do mais, existem razões que podem justificar a adaptação de

Shrek!, pela concorrente da criadora do camundongo Mickey.

De acordo com Johnson (1982, p. 9), “Muitos romancistas modernos já

escrevem com uma adaptação fílmica em mente, tendo em vista tanto o público

cinematográfico potencial quanto o público leitor”. A questão financeira,

indubitavelmente, é relevante se considerarmos que Shrek faturou cerca de meio milhão

de dólares, e os realizadores de Shrek 2 estimavam que a seqüência dobraria esse valor.28

Para Johnson,

Um filme é, pelo menos num contexto capitalista, uma mercadoria que dá (ou deve dar) lucro. [...] Mas, não se pode dizer que o lucro seja o único motivo atrás de cada adaptação fílmica de um romance. George Lukács sugere que as obras de arte são revitalizadas quando correspondem a ansiedades similares àquelas do período no qual foram originalmente produzidas. (p. 9)

Nesse sentido, um dos possíveis motivos para a adaptação fílmica do conto de

Steig diz respeito à demanda de um contexto moderno (pós-industrial), que responde à

saturação das composições clássicas presas a um referencial de unidade e exemplaridade -

ou seja, o príncipe encantado – e apresenta-nos como “herói” moderno, fragmentado,

desencantado, anômalo: um ogro. Shrek, embora filho dessa modernidade, não consegue

integrar-se à sociedade moderna e excludente a qual parodia.

Corseuil (2003) destaca que os elementos narrativos estão presentes tanto na

literatura como no cinema. Ademais, é possível observar a manipulação do tempo, o

enredo, a voz do narrador, do focalizador (personagem através do qual se vê a ação),

dentre outros, bem como de que forma “certas culturas são representadas na narrativa

cinematográfica ou literária” (p. 299).

28ISTOÉ Dinheiro, 26/05/2004. Cf. http://www.terra.com.br/istoedinheiro/351/negocios/351_apetite_shrek2.htm

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Sobre a temporalidade nos textos literários narrativos, Santos e Oliveira (2001,

p. 51) afirmam que

O tempo ficcional não ocorre no âmbito do discurso, mas no plano daquilo que é narrado, ou seja, na história propriamente dita. Esse tempo é, na verdade, a atribuição de uma dimensão temporal aos eventos relatados, por meio de palavras ou expressões que recorrem geralmente, ao calendário e ao relógio, tais como: “em 1930”, “às oito horas da manhã”, “naquele inverno”, “durante quarenta minutos”.

A idéia de uma dimensão temporal se dá, no conto de Steig29, através do

emprego não só de orações subordinadas adverbiais temporais “Quando aprendeu a

andar, Shrek era capaz [...]”, “Quando ela voltou a si [...]”, mas também de adjuntos

adverbiais em “Um dia os pais de Shrek trocaram más idéias [...]”, “E, claro, mal entrou

no bosque,” “[...]ficou inconsciente até o fim do dia”, “Ia perguntando aos seus botões

se um dia encontraria mesmo a tal princesa [...]”, “Trataram de se casar o mais depressa

possível”, “E viveram horríveis para sempre, [...]”; além do verbo intransitivo

“demorar” no pretérito perfeito acompanhado de advérbio de negação e intensidade que

intensificam e/ou indicam tempo decorrido: “Não demorou muito e Shrek encontrou

[...]”.

Em Shrek 2, o tempo ficcional é representado ora de forma cronológica, ora de

forma paródica. Na primeira, duas das estações do ano, clima ameno e inverno rigoroso,

ilustram não só a passagem do tempo como também a distância, no sentido denotativo –

marcada por espécies de placas de trânsito que mostram os quilômetros que restam para

chegar a Far Far Away -- e conotativo, entre o pântano e o reino Tão Tão Distante;

voltaremos à discussão da distância conotativa em momento ulterior.

A alusão paródica do tempo ficcional, no sentido de homenagem, está

presente na cena inicial da animação em que aparece a voz-off do Príncipe Encantado

narrando Era uma vez... sincronizada à imagem das páginas de um livro de contos de fadas,

conforme mostramos no início deste capítulo. Outra alusão paródica ao tempo ocorre

quando, após beber da poção mágica “Felizes para sempre”, o Gato de Botas alerta Shrek

que a fórmula só terá um efeito permanente se ele beijar a princesa à meia-noite. Ao que

Shrek responde: “Por que é sempre à meia-noite?”

Voltando à questão da adaptação, teóricos como André Bazin (apud Brito,

1996, p. 20) apresentam dois argumentos indiretamente favoráveis à adaptação: um é de 29 O conto Shrek! não possui paginação.

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ordem histórica e social; o outro, de ordem prática. “Para Bazin, o cinema teria realizado,

no nosso século, o que nenhuma atividade artística conseguira ao longo da história

moderna, que foi reacender a popularidade da arte, como só existira na idade média [...]” e

acrescenta “Ora, se os grandes escritores estão sendo adaptados pelo cinema, o público

em geral está tendo acesso indireto a eles, e este já é o argumento de ordem prática [...]”

(p. 20). Noutras palavras, a relação entre a literatura e o cinema não é uma via de mão

única. Acreditamos que muitos leitores não-americanos só tiveram contato com o conto

de Steig após assistirem ao (s) texto (s) fílmico (s).

Além das peculiaridades das linguagens do texto literário e fílmico, Azerêdo

(2003, p. 58) chama a atenção para a importância dos diversos fatores envolvidos no

processo de adaptação:

[...] a demanda do mercado, a reputação do autor30 a ser adaptado, a existência de um público prévio para aquele tipo de filme, a forma como a tradição literária já interpretou o autor, os discursos variados que circulam sobre o autor, a interpretação e escolhas do roteirista e cineasta, enfim, aspectos que situam a adaptação num entrecruzamento de diálogos e contextos. Portanto, a análise de um texto adaptado pressupõe uma consciência a respeito de tais fatores, de modo a fornecer uma base relevante para a discussão dos (novos) efeitos que o texto adaptado, em geral, suscita.

No processo de cotejamento entre Shrek! e Shrek 2, texto literário e texto

fílmico respectivamente, faz-se necessário, antes, uma breve análise do filme Shrek a fim

de observar não apenas a questão de equivalência de sentidos, mas também, e

principalmente, como determinados acréscimos são significativos para que se perceba

como os adaptadores traduziram uma determinada idéia. Para dar um exemplo, os

roteiristas de Shrek, ao inserirem a discussão do ogro com o Burro sobre o fato de “os

ogros serem como cebolas”, recriam/ dilatam uma cena já existente no conto de Steig:

trata-se do diálogo da “lição” que o Relâmpago e o Trovão tentam dar em Shrek por

acharem-no nojento. A atitude desses personagens equivale, de certa forma, àquela dos

camponeses que, no filme, perseguem o ogro por julgarem-no por sua aparência, não

reconhecendo que os “ogros têm camadas”.

Ambas as cenas são significativas e merecem ser aqui descritas:

a) no conto, Shrek estava indo ao encontro da princesa mais horrorosa de

todo o planeta quando se deparou com uns pingos de chuva grossa que batiam em sua

30 Discutimos acerca da reputação de William Steig, criador de Shrek, no capítulo No reino de Steig e Adamson: a história do moderno conto de fadas na literatura e no cinema.

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corcunda e “chiavam como água na frigideira”. Nesse momento, começa um breve

diálogo entre dois dos personagens da narrativa:

“Já viu alguém mais nojento?”, o Relâmpago perguntou para o Trovão.

“Nunca na vida”, trovejou o Trovão. “Vamos lhe dar uma lição.”

O Relâmpago disparou seu raio mais terrível no cocuruto do Shrek.

b) no filme, o ogro faz um acordo com Lord Farquaad: ele salvaria a princesa

Fiona da guarda de um dragão e em troca teria o seu pântano de volta, pois o seu “lar”

havia sido invadido por personagens dos contos de fadas. O Burro não entendia por que

Shrek simplesmente não fazia “umas coisas de ogro” para assustá-los.

A discussão que se inicia é reveladora . . .

“Eu sei. Eu poderia decapitar a vila toda, espetar as cabeças deles, pegar uma

faca, abrir seus baços e beber seus fluidos. Gosta disso?”, pergunta Shrek revoltado.

“Na verdade, não”, afirma o Burro pensativo.

“Os ogros são bem melhores do que as pessoas acham”, diz Shrek, desolado.

“Por exemplo”, indaga o Burro.

“Os ogros são como cebolas”, esperando que o Burro tenha entendido.

“Eles fedem?”, questiona o asno como se tivesse acertado.

“Sim. Não!”, grita Shrek, impaciente.

[..]

“Não! Camadas! As cebolas têm camadas. Os ogros têm camadas. As cebolas

têm camadas. Entendeu? Ambos temos camadas”; irritado, Shrek joga a cebola no chão e

continua a caminhar.

“Ambos têm camadas”, diz o Burro malicioso; cheira a cebola e afirma: “Não

são todos que gostam de cebola”. Em seguida, como se houvesse entendido a metáfora,

salta, gritando, na frente de Shrek: “Bolo! Todos adoram bolo! Os bolos têm camadas!”

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Shrek, visivelmente irritado, afirma: “Não me interessa o que as pessoas

gostam. Os ogros não são iguais a bolo.” A veemência com que Shrek afirma que os

ogros têm camadas e são melhores do que as pessoas pensam, reverbera o que diz Cooper

(2000, p. 45) acerca da simbologia da cebola: “La unidad de lo múltiple; el cosmos; la

Causa Primera; inmortalidad; revelación, por cuanto para alcanzar el centro hay que

mondarla. Apotropaica y especialmente potente contra los poderes lunares siniestros.”31 É

preciso “mondarla”, ou seja, limpar, tirar as camadas do ogro-cebola para se chegar à sua

essência.

De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001, p. 260), o

substantivo “apotropismo” significa aquilo “que tem poder de afastar (desgraça, influência

maléfica)”. No conto, ao casar-se com uma princesa feíssima e aterrorizar todos que

cruzassem seu caminho, Shrek cumpre o significado de sua forma apotropáica: afasta, por

temor, aqueles que o julgavam por sua aparência. Em Shrek (filme), ao beijar a princesa

Fiona, no dia de seu casamento com Farquaad, o ogro a liberta dos “poderes sinistros” do

entardecer -- razão que motivou seus pais a trancafiá-la em uma torre alta guardada por

um dragão feroz. O beijo salvador de Shrek não só a torna, definitivamente, uma ogra,

como desmascara uma sociedade excludente que encerra em guetos aqueles que ameaçam

a ordem estabelecida32.

Ainda sobre a questão da tradução de uma idéia, a dilatação do diálogo entre o

Relâmpago e o Trovão, no texto fílmico, é um índice revelador de mudança no

comportamento da personagem. “São essas pequenas coisas, essas minúcias que tecem a

tradução e a revelam uma leitura, ou melhor, uma recriação” (Cf. CUNHA, R., p. 74).

Para o autor de As formigas e o fel, no processo de recriação, “busca-se a essência das

coisas, e não a aparência” (p. 93).

Quanto à dilatação de uma cena, Brito acredita que

[...] um pequeno detalhe, físico ou psíquico, que não havia no romance pode aparecer no filme como um deflagrador semântico importante, em substituição ou não a elementos da estrutura romanesca, do mesmo modo que o destino do protagonista no romance pode receber, no filme, um desenvolvimento maior que responda por deficiências que a narração havia tido em recobrir aspectos abstratos do discurso literário, [...](p. 22, grifo nosso)

31 “A cebola é a unidade do múltiplo; o cosmo; a causa primeira; imortalidade; revelação, visto que para alcançar o centro é necessário limpá-la. Apotropáica, é especialmente poderosa contra os poderes lunares sinistros” (Tradução nossa). 32 Ampliaremos essa discussão em “Far Far Away: uma alegoria da sociedade contemporânea”, capítulo posterior.

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De acordo com Whelehan (1999, p. 12), raramente, as imagens literárias

transpostas para o cinema são acidentais ou desprovidas de ideologia. Na verdade, “They

have been designed and built (consciously or unconsciously) by their author(s) in order to

project a specific agenda and to encourage a particular set of responses.”33

Para Vanoye (1994, p. 144), “Adaptar é, portanto, não apenas efetuar escolhas

de conteúdo, mas também trabalhar, modelar uma narrativa em função das possibilidades

ou, ao contrário, das impossibilidades inerentes ao meio”.

A idéia de que “Os ogros são bem melhores do que as pessoas acham”, de

certa forma, é elastecida em Shrek 2 uma vez que o casal de ogros busca manter distância

da hostilidade humana. Sobre essa questão e de suas implicações, trataremos mais adiante.

Antes, contudo, analisaremos a condição ogra de nossos protagonistas, a saber, Shrek e

Fiona, a partir do Dicionário de Mitos Literários.

Segundo Bouloumié (2005, p. 758-759), o ogro é um mito ambivalente, pois,

como qualquer mito, debate-se entre forças antagônicas. E é graças a esses sentidos contraditórios que ele não é uma figura estática. [...] A etimologia sugere que o ogro seria a valorização negativa de Gargântua, o Sol céltico. Gargântua é um ogro bom, só que um glutão insaciável, nisso parecido com o ogro do Pequeno Polegar, que tem “para sua ceia um carneiro inteiro assando no espeto”. Como o ogro, ele pode ir de montanha em montanha, sem ser detido pelos rios. Apesar de não ser mau, pode fazer o papel de bicho-papão. [...] A oposição vida/morte estrutura o mito do ogro. Quem pode dar a morte, pode igualmente salvar da morte. [...] os ogros podem transformar-se em salva-vidas e vigilantes.

Essa ambivalência mau/bom, vida/morte está presente não só no diálogo de

Shrek e do Burro, mas também na atitude do ogro. Em outras palavras, em vez de “fazer

coisas de ogro”, como sugeriu o Burro, Shrek, civilizadamente, resgata a princesa Fiona e

33 “Foram projetadas e construídas consciente ou inconscientemente por seu (s) autor (es) a fim de projetar uma agenda específica e incentivar um conjunto particular de respostas” (Tradução nossa).

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tem o seu pântano de volta. Além disso, em momento algum o ogro mata; antes, age

como um salva-vidas, pois livra a princesa do dragão, quando outros já haviam falhado.

“Apesar de não ser mau, pode fazer o papel de bicho-papão.” É interessante

observar como essa assertiva pode ilustrar uma cena de Shrek. O ogro jantava

tranqüilamente em sua casa, no pântano, quando ouviu um barulho lá fora: eram os

camponeses que, armados com instrumentos de trabalho e tochas, vinham capturá-lo.

Shrek, esperto, sai de casa e segue-os sem ser visto. Ao verem luzes na cabana, deduzem

que o ogro está em casa. Um dos camponeses diz que vai pegá-lo, mas é desencorajado

por um companheiro:

“Sabe o que ele pode fazer com você?” Alguém se antecipa e diz: “É. Ele vai

moer todos os seus ossos”. Shrek sorri; todos olham para trás assustados, e o ogro corrige

a “informação”, ironizando: “Na verdade, isso é coisa de gigante. Agora, os ogros são

piores. Fazem um terno com sua pele recém-arrancada. Cortam seu fígado em fatias,

espremem a geléia dos seus olhos. Fica gostosa na torrada.”

Enquanto descrevia a cena de tortura, Shrek caminhava em direção aos

camponeses que estavam visivelmente aterrorizados. Um dos ex-algozes, contudo, decidiu

enfrentar o ogro: “Para trás, fera! Para trás! Estou lhe avisando”. Indiferente à ameaça,

Shrek molha os dedos com sua saliva e apaga sua tocha; em seguida, dá um grito

assustador e nojento (já que saem “melecas” de sua boca) que apaga as demais tochas.

Paralisados de medo, os camponeses não conseguiam fugir; Shrek, então, calmamente

aproxima sua mão esquerda do rosto e, como se confidenciasse algo, diz: “É nessa parte

que vocês fogem.” Todos largam suas armas e fogem; o ogro, gargalhando, ameaça: “E

fiquem longe daqui!”

Essa agressividade irônica do Shrek, tanto no texto literário como no texto

fílmico, está sintonizada com o seu parônimo “Shriek”. Substantivo ou verbo, esse

vocábulo tanto pode nos remeter à idéia de “som agudo, alto; grito”, como também, se

acrescentarmos a ele a expressão with laugther, “rir às gargalhadas” (MICHAELIS, 2001, p.

286). Acerca do significado do nome, Chevalier e Gheerbrant (2000, p. 641) afirmam que

Para os egípcios da Antiguidade, o nome pessoal é bem mais que um signo de identificação. É uma dimensão do indivíduo. O egípcio crê no poder criador e coercitivo do nome. O nome será coisa viva. Escrevendo-se ou pronunciando-se o nome de uma pessoa, faz-se com que ela viva ou sobreviva, o que corresponde ao dinamismo do símbolo.

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Dada a contemporaneidade de Shrek! e suas adaptações, que possíveis

implicações teria a escolha do nome “Shrek” no conto de Steig e a preservação desse

antropônimo nas animações dirigidas por Andrew Adamson? De acordo com Kátia Rose

Pinho, em seu ensaio “Mistérios dos nomes”34 (2003),

Hoje, talvez, na sociedade de consumo em que vivemos, a escolha de um nome não atenda tão somente aos ditames da própria obra. Há de se encontrar um meio para que se satisfaçam os desejos do autor, do editor e fisguem o leitor, incauto ou não. Para além (ou, quem sabe?, para aquém) de tudo isso, sabemos que numa obra nada é aleatório, tampouco o seu nome. [...] Que significa nomear um livro? Nomear uma obra não seria a possibilidade do [sic] autor atribuir-lhe uma função?

A título de exemplificação, podemos constatar a não-aleatoridade do nome do

protagonista no filme Duas Inglesas e o Amor (Les Deux et le Continent, 1971), de François

Truffaut. Segundo Vanoye (1994, p. 96), “as dificuldades futuras de Claude para afirmar

sua identidade, sua pessoa, seus desejos” manifestam-se através de indícios na narrativa,

dentre eles, “seu nome (Claude: o que manca)”. O termo cognato “claudicar” vem do

latim [claudicare] e significa “coxear; cometer falta; errar” (FERREIRA, A., 2001, p. 167 ).

Discutindo acerca dos nomes em um romance, Lodge (1992, p 37) observa

que aqueles “are never neutral. […] The naming of characters is always an important part

of creating them, involving many considerations, and hesitations […]”35. Lodge observa

também que, ao contrário do sobrenome, nossos primeiros nomes carregam uma

intenção semântica e que nossos pais vêem neles “some pleasant or hopeful association”36

(p. 36).

Nesse sentido, o “pai” do ogro, indubitavelmente, tinha consciência de sua

escolha uma vez que a palavra “Shriek” identifica-se com Shrek não apenas sonora e

graficamente, mas, principalmente, nos significados que o vocábulo tem no texto literário

e no texto fílmico. Noutras palavras, o grito e o riso estão presentes em Shrek! e Shrek 2,

simultaneamente, através da paródia e da sátira. Essa é empregada como crítica ao modo

de vida na sociedade contemporânea; aquela, para desconstruir os contos de fadas

tradicionais.

34 Artigo publicado na Revista Tambor, Recife, v. 01, n. 01, p. 63-69, 2003, da Faculdade de Formação de Professores de Belo Jardim, Pernambuco. Cf. http://www.secrel.com.br/jpoesia/katiarose3.html 35 nunca são neutros. [...] A nomeação dos personagens é sempre uma parte importante na criação dos autores, envolvendo muitos considerações, e hesitações […] (Tradução nossa). 36 algo agradável ou associação esperançosa (Tradução nossa).

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A paródia, contudo, não busca destruir ou apagar o texto parodiado. Em Um

olhar sobre a fábula: confabulando com o lúdico, o poder e os sentidos, Oliveira (2001, p. 37) observa

que o que o texto parodiado “intenciona é re-significá-lo, descontruí-lo, é instaurar, nos

sentidos já existentes, sentidos contrários, que afastados e unidos irão, numa incessante luta

de vozes, significar.”

De acordo com Fiker (2000, p. 95), em seu Mito e paródia: entre a narrativa e o

argumento, a paródia “cumpre um duplo papel: revela e anula a partir da relevação.” Na

análise que faz do termo paródia, o autor observa que

A origem do termo é grega e significa “canto paralelo”, refere-se ao comentário da ação na tragédia clássica pelo coro. O procedimento cômico-burlesco, bem como o caráter de reversão que lhe são associados podem estar relacionados ao fato de cada trilogia trágica ser seguida pela apresentação de um drama satírico. (p. 96)

A idéia de “canto paralelo”, contudo, não é consenso entre os estudiosos. A

maioria dos teóricos limita-se à noção de “contra-canto” como “Imitação cômica de uma

composição literária” (FERREIRA, A., 2001, p. 551), definição usual para o substantivo

grego paródia. Para a autora de Uma teoria da paródia, tal interpretação remonta à “raiz

etimológica do termo” (p. 47). Hutcheon, todavia, insiste que o radical “para” também

pode significar “ao longo de” e que a paródia pode sugerir acordo ou intimidade. Ao

discutir a prática paródica moderna, Hutcheon contesta uma caracterização

ridicularizadora e cômica, presente “na maioria das definições da paródia”, e sugere “um

leque de ethos pragmático (orientando os efeitos pretendidos), que inclua o reverencial, o

lúdico e o desdenhoso” (p. 38-39).

Tal argumento se sustenta no fato de que, diferente da piada e da burla, “Nada

existe em parodia que necessite da inclusão de um conceito de ridículo [...]” (p. 48). Na

verdade, a função de zombaria cabe à sátira. Esta, segundo Ferreira, A., constitui uma

“composição poética que visa a censurar ou ridicularizar defeitos ou vícios” (p. 662).

Diferente da paródia, esse “objectivo correctivo do ridículo desdenhoso da sátira é central

para sua identidade (HUTCHEON, p. 77).

De acordo com Bakhtin (apud Hutcheon, p. 98), a paródia tanto pode ser

centrípeta como centrífuga. Linda Hutcheon traduz essa ambivalência: “A paródia é

normativa na sua identificação com o outro, mas é contestatória na sua necessidade

edipiana de distinguir-se do outro anterior”. Nesse sentido, tanto Shrek! como Shrek 2 são

textos ao mesmo tempo homogeneizantes e desnormativos. No primeiro caso, mantêm,

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em sua estrutura narrativa, os mesmos elementos dos contos de fadas tradicionais:

príncipe encantado, princesa, bruxa/ fada, cavalo branco, feitiço. No segundo,

transgridem esses contos, pois o príncipe é um ogro; a princesa é horrorosa; o cavalo

branco é um burro; e a fada madrinha, na verdade, é uma bruxa.

Destarte, seguindo o que argumenta Hutcheon, Shrek! e Shrek 2 são textos

paródicos, pois repetem-se “com distância crítica que marca a diferença em vez da

semelhança” (p. 17). Além do mais, ao parodiar a estrutura do conto de fadas tradicional,

essas narrativas prestam-lhe uma homenagem, mas também torcem “o nariz a uma

tradição muito antiga” (Fowles apud Hutcheon, p. 49). Para Fiker (p. 99), o parodista tem

um duplo papel: exorciza a moléstia, o clichê37

com o conhecimento de sua origem, e de desmistificador revelando ao público o fundo falso (exaurido) da cartola. As condições propícias para tal manifestação residem na crise ou fim de uma tradição38, formação ou gosto literário, quando as formas estabelecidas estão prestes a se exaurir ou já exaustas e reduzidas no mais das vezes a clichê. Um clichê, conforme definição de dicionário, é uma expressão esgotada.

Ainda acerca da paródia e da sátira, Hutcheon (p. 67-68) ressalta a precisão

da definição que Ziva-Ben-Porat faz dos termos, que aqui transcrevemos parcialmente:

[...] As representações paródicas expõem as convenções do modelo e põem a nu os seus mecanismos, através da coexistência de dois códigos na mesma mensagem [...] A sátira, em contraste, é: “Representação crítica, sempre cómica e muitas vezes caricatural, de uma “realidade não modelada”, i. e., dos objectos reais (a sua realidade pode ser mítica ou hipotética) que o receptor reconstrói como referentes da mensagem. A “realidade” original satirizada pode incluir costumes, atitudes, tipos, estruturas sociais, preconceitos, etc.

Como exemplos de textos paródicos e satíricos, Hutcheon cita Dom Quixote, de

Cervantes e Love and Friendship, de Jane Austen. O primeiro, através da paródia às

convenções do romance épico e de cavalaria, satiriza aquele que acredita “que semelhante

heroicização na literatura é potencialmente transferível para a realidade” (p. 38). No

segundo, Austen, através da paródia ao romance popular de sua época, faz uma sátira

social à “visão tradicional do papel da mulher como amante dos homens” (p. 63).

37 O clichê, a nosso ver, corresponde ao estereótipo do príncipe encantado, da bela princesa, etc. 38 Falamos sobre o esgotamento das composições clássicas, na página 37.

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Todas essas considerações confirmam Shrek! e Shrek 2 como textos paródicos

e satíricos. Por outro lado, observando o leque de ethos pragmático sugerido por

Hutcheon, seria suficiente afirmar que são textos paródicos. Ou seja, dizem respeito a

narrativas respeitosas, divertidas e escarnecedoras. Além do mais, uma vez que se trata de textos

literário e fílmico, respectivamente, convém destacar que a literatura e o cinema servem-se

“hoje da paródia para comentar o “mundo” de alguma maneira” (HUTCHEON, p. 141,

grifo da autora).

No diálogo entre literatura e cinema, os realizadores de Shrek 2, assim como já

havia feito William Steig em Shrek!, utilizam-se da paródia e da sátira a fim de “criar novos

efeitos”. Essa estratégia, a nosso ver, ratifica o que havíamos dito, inicialmente, acerca de

o texto fílmico ampliar o significado do texto literário.

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3.1 – Do buraco negro ao castelo maluco: o herói moderno desnuda o espaço social do conto Shrek!, de William Steig.

Shrek, um ser de fronteira

“A personagem é um ser fictício” (CANDIDO, 2005, p. 55). A expressão

pode soar paradoxal, mas define bem o personagem Shrek. O ogro é fictício por

pertencer ao mundo da fabulação e é um “ser” porque “a noção a respeito de um ser,

elaborada por outro ser, é sempre incompleta, em relação à percepção física inicial”

(CANDIDO, p. 56). Dessa maneira, a percepção que temos desse “ser” fictício pode ser

fragmentária.

Essa assertiva, contudo, em nada diminui sua profundidade na obra literária;

ao contrário, “[...] o romance, ao abordar as personagens de modo fragmentário, nada

mais faz do que retomar, no plano da técnica de caracterização, a maneira fragmentária,

incompleta, com que elaboramos o conhecimento dos nossos semelhantes” (CANDIDO,

op. cit., p. 58). Nesse sentido, reconhecer Shrek como personagem fragmentário e

incompleto, é (re-)conhecer os nossos semelhantes a quem “conhecemos” a partir da

percepção externa e, portanto, incompleta.

Conscientes da diversidade do ser, na vida, a qual acrescentaremos o adjetivo

“real”, interpretamos cada pessoa de uma maneira a fim de conferir-lhe uma unidade.

Foster (apud Candido, p. 62), retoma essa distinção de forma pitoresca, classificando as

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personagens como “planas” e “esféricas”. As primeiras “são facilmente reconhecíveis

sempre que surgem,” e acrescenta: “permanecem inalteradas no espírito porque não

mudam com as circunstâncias”; as segundas, Candido conclui, são “organizadas com

maior complexidade e, em conseqüência, capazes de nos surpreender” (p. 62-63).

Plana ou estática, esférica/ redonda ou dinâmica, a classificação da

personagem se amplia em A narrativa de ficção (ATAÍDE, 1973). Para Ataíde, aquelas

vivem “uma vida que acontece a elas, não dentro delas”, além de não evoluírem ou

apresentar “alterações na conduta interior” e parecem “não ter eu” (p. 43). As dinâmicas,

por sua vez, possuem “profundidade, vida interior, dramaticidade consciência do seu eu,

dos conflitos e problemas internos” que vivem (op. cit, p. 43).

“Eles todos são eu!”, “TODOS SÃO EU!” (STEIG, 2001). Vibra o

personagem Shrek que, embora desconhecesse a própria feiúra, não se entristece ao ver

que as várias imagens horrendas refletidas nos espelhos eram suas. Estar consciente do

seu eu -- “feliz por ser exatamente como sempre tinha sido” (STEIG) --, a nosso ver,

caracteriza Shrek como uma personagem redonda. Respaldamos nossa assertiva a partir

do argumento de Ataíde: “A personagem redonda supera o meio em que vive, possuindo

particularidades próprias. É indivíduo, ela mesma, singular e pessoal, e não se importa

com o que os outros pensem dela, pois o que lhe interessa é o seu eu” (p. 44).

Esse herói horrendo que se aceita tal como é, sem esperar que o encantamento

se desfaça a fim de que ele possa assumir uma forma humana, bela e perfeita, não é

comum nos contos de fada tradicionais. De acordo com Warner (1999, p. 314), “contos

sobre noivos animalescos oferecem o sonho de que, embora o pai da heroína a tenha

entregue à guarda de uma Fera, esta se transformará – num jovem radiante, um amante

perfeito”.

O ogro, protagonista do moderno conto de Steig, assemelha-se, em parte, à

figura do Barba Azul, um bicho-papão que, segundo Warner, fascina e “o nome em si

desperta associações com sexo, virilidade, energia masculina e desejo” (p. 275). O fato de

Perrault ter tingido sua barba de azul “intensificou o horror por sua aparência”; ademais,

Barba Azul “é representado como um homem contrário à natureza, seja quando sua barba

se tinge como a de um luxurioso oriental, ou quando ganha volume monstruoso sem que

ele recorra a artifícios” (p. 276). Para Warner, esse monstro azul tem a cor da profundeza

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ambígua, ou seja, representa o céu e o abismo. Essa assertiva nos remete à expressão “ser

de fronteira”, sobre a qual discutiremos em momento ulterior.

Por ora, convém nos determos na simbologia das cores, mais precisamente na

cor de nosso herói, o verde. Na nossa época, em que o avanço tecnológico permitiu que o

homem, primeiro, fosse à Lua, e mais tarde depositasse um robô em solo marciano, a fim

de que este percorresse a superfície em busca de “seres” vivos, é lugar comum vermos

esses seres tingidos de verde – como outrora Perrault tingiu de azul, o Barba - na tentativa

de mostrar que os marcianos são o avesso da humanidade e que, portanto, devem ser

escondidos para que os papéis “jamais se invertam” (CHEVALIER; GHEERBRANT, p.

942, grifo nosso).

Nesse sentido, ao ser expulso por seus pais, Shrek ameaça a ordem

estabelecida. A semelhança do ogro-marciano com o “homenzinho verde” estende-se,

também, à sua moradia. Em outras palavras, o “planeta” de Shrek, o buraco negro,

aproxima-se do planeta vermelho (não na tonalidade), já que ambos encerravam seres

avessos àquilo que a sociedade, meio em que o indivíduo habitante do planeta Terra vive,

dita como normal.

O personagem de Steig pode ser identificado com o Barba Azul, o marciano, o

herói moderno e fragmentado, o monstro pós-romântico. De acordo com Bellei (2000, p.

11, grifo do autor), “O conceito de “monstruoso” aplica-se, de forma geral, tanto ao

humano quanto ao não-humano e designa principalmente o híbrido e o deformado [...]”.

Etimologicamente, a palavra monstro, dentre outras acepções, significa “ser de

conformação extravagante, imaginado pela mitologia [...], pessoa cruel, desnaturada ou

horrenda” (CUNHA, A., 2001, p. 531). Nesse sentido, Shrek, o ogro, é um monstro, uma

vez que “[...] era capaz de cuspir fogo a cem metros de distância e soprar fumaça pelas

duas orelhas. Só de olhar, ele fazia os jacarés se esconderem de medo. Se uma cobra

bancasse a boba e o mordesse, ela entrava imediatamente em convulsão e morria”.

O ogro (Do fr. ogre) é um ser fantástico, como o bicho-papão, de que se fala

para assustar as crianças. No universo da simbologia, o ogro liga-se à imagem “simbólica

do monstro, que engole e cospe fogo, lugar das metamorfoses, de onde a vítima deve sair

transfigurada” (CHEVALIER; GHEERBRANT, p. 651).

Todavia, no conto de Steig, mesmo quando nos parece que o ogro vai sofrer

uma transformação, tudo não passa de um sonho. A (única) cena que ilustra nosso

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comentário ocorre quando Shrek “estava fora do ar”, ou seja, ele sonhou que estava

recebendo abraços, beijos e carinhos das crianças. Acordou assustado, mas tranqüilizou-

se: “Ainda bem que foi só um pesadelo... um pesadelo aterrador!”. Ironicamente, o que

acontecia era as pessoas e os fenômenos naturais, como o relâmpago, o trovão e a chuva,

assustarem-se com ele.

Uns pingos de chuva grossa começaram a cair. Quando batiam na corcunda do Shrek, chiavam como água na frigideira. “Já viu alguém mais nojento?”, o Relâmpago perguntou para o Trovão. “Nunca na vida”, trovejou o Trovão. “Vamos lhe dar uma lição.” O Relâmpago disparou seu raio mais terrível no cocuruto do Shrek. Shrek nem ligou: engoliu o raio, cuspiu um pouco de fumaça e deu uma gargalhada. O Relâmpago, o Trovão e a Chuva caíram fora.

A fim de tornarmos nossa análise mais produtiva, e por que não dizer, também

mais prazerosa, convém analisarmos a monstruosidade de Shrek “não apenas como

fantasia exótica, mas como história social” (BELLEI, p. 14). Essa análise será

fundamental quando observarmos a relação entre o personagem e o espaço social.

A história tem-nos legado uma gramática do monstruoso com registro na

Idade Média, na época clássica e no Romantismo. Santo Agostinho, citado por Bellei,

preocupava-se com as formas mais diversas do monstruoso: “E existem homens sem

boca, que vivem apenas absorvendo odores pelo nariz; e outros que têm apenas um

cúbito de altura [...]”. David Williams, também citado por Bellei, observa que a cultura

Medieval européia “dedicou-se assiduamente a estabelecer quadros taxonômicos da

monstruosidade”, e acrescenta: “uma verdadeira gramática do monstruoso que tenta

explicar como o monstro é fabricado com base, principalmente, em quatro tipos diversos

de deformação: deformação por excesso, por falta, por deslocamento e por hibridismo”

(BELLEI, p. 12-13).

A figura do monstro tem se apresentado sempre como um ser de fronteira.

No período medieval, ele participava tanto do mundo material como do espiritual. Bellei

cita, como exemplo, um monstro de três cabeças representando a divina trindade.

Ademais, na cultural medieval, uma forma de “garantir simultaneamente as dimensões

material e simbólica do monstro era imaginá-lo com freqüência como dotado de uma

existência ao mesmo tempo real e incerta [...]” (Williams apud Bellei, p. 15).

No Classicismo, embora continue um ser de fronteira, o monstro é redefinido

sendo visto apenas como aberração da ordem natural das coisas. Tal redefinição não o

impede de querer participar dessa ordem. Diferente do monstro medieval que transitava

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entre o divino e o terreno, o monstro clássico não tinha a mesma “desenvoltura” uma vez

que “sua condição híbrida de humanidade (que o torna semelhante ao outro superior) e de

monstruosidade (que o torna um outro inferior a ser excluído)” (BELLEI, p. 17). Nesse

sentido, e como afirma Bellei (p. 17-18), trata-se de uma “Criatura da Fronteira marcada

sempre por um não-ser mais do que pelo ser”. Em outras palavras, o monstro clássico

vive tanto dentro da norma como fora dela. No primeiro caso, ele a questiona; no

segundo, confirma-a.

No séc XIX, o monstro sofre uma nova redefinição, em face do contexto

cultural, e, possivelmente, persiste até nossos dias. Segundo Bellei (p. 21), o monstro pós-

romântico distancia-se do monstro clássico: primeiro, porque é ambivalente, ou seja, é

humano e não-humano ao mesmo tempo; segundo porque, embora autônomo, ele está

“condenado a uma permanente falta de identidade”. A insegurança social que vive tem

levado-o a negar “a sua condição anômala”, todavia essa atitude não tem proporcionado a

sua integração completa “no sistema dominante de valores ao qual deseja pertencer”

(BELLEI, p. 11).

A figura do monstruoso, contudo, já aparece na mitologia clássica. Em seu

“Introdução ao Mito dos Heróis”, Brandão (1987, p. 53) observa que

a beleza e a bravura de Aquiles podem ser empanadas física e moralmente por caracteres monstruosos: um herói aparece igualmente e com muita freqüência sob forma anormalmente gigantesca ou como baixinho; pode ter um aspecto teriomorfo e andrógino; apresentar-se como fálico; sexualmente anormal ou impotente; pode ser aleijado, caolho, ou cego; estar sujeito à violência sanguinária, à loucura, ao ardil e astúcia criminosa, ao furto, ao sacrilégio, ao adultério, ao incesto e, em resumo, a uma contínua transgressão do métron, vale dizer, dos limites impostos por deuses aos seres mortais.

Admitindo uma tradução “mais ou menos livre” acerca do pensamento de

Angelo Brelich, Brandão (p. 67) atribui essa ambivalência no caráter do herói ao também

“mundo ambivalente dos começos, um mundo diferente do atual”. Ademais, personagens

“monstruosas e imperfeitas”, dentre as quais incluímos Shrek, “se constituem

simultaneamente nos agentes sobre-humanos da transformação criadora de que surge a

ordem atual”. Vale ressaltar que diferente do herói-monstro clássico que “está sempre

pronto para defender o status quo vigente” (p. 68), Shrek surge para romper com ele.

Retomando a análise do personagem Shrek, agora à luz dessa gramática do

monstruoso, observamos que o ogro verde é, de fato, um ser de fronteira e, tal qual o

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monstro clássico, revela-se como parte do dentro e do fora. Em outras palavras, enquanto

permanecia no buraco negro, longe da “civilização”, Shrek confirmava a ordem: as flores

desabrochavam; a bruxa cantarolava enquanto cozinhava morcegos num caldo de

terebintina e tartaruga; o lavrador ceifava; o dragão, ainda, era assustador, enfim, o mundo

estava harmônico.

Ao ser expulso do buraco negro, o ogro passa a ameaçar a ordem com sua

forma excêntrica, diversa, horrenda, ou seja, humana. Conforme citado anteriormente, a

humanidade persiste na própria deformação. Além disso, como o humano, ele deseja

saber do amanhã: “Diga o meu futuro, dona, que eu lhe dou alguns dos meus piolhos

raríssimos”. A dona com que ele fala é a bruxa, e o pedido é feito depois que ela volta a si.

A revelação que a bruxa lhe faz deixa-o contentíssimo: “Oba, uma princesa!”. “Lá vou

eu!”

Nesse sentido, a atitude de Shrek aproxima-o do herói dos contos de fadas

tradicionais que busca uma princesa com a qual irá se casar; bem como do monstro pós-

romântico uma vez que este, produto da insegurança social, marginalizado, deseja a

confirmação da norma. Todavia, a princesa com que se casou era mais feia do que ele, daí

o seu contentamento; além do mais, o fato de os dois, após o casamento, viverem

horríveis (e não felizes) confirma Shrek, assim como a sua esposa, mais como um não-ser

do que um ser, ou seja, um ser de fronteira.

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Quem transforma quem?

Puseram-no então para fora de casa com um bom pontapé no traseiro. Foi a primeira vez

que Shrek saiu do buraco negro em que fora criado.

Essa é a primeira referência verbal que temos do espaço social onde principia a

ação em Shrek!. Segundo Gancho (2003, p. 23), “Espaço é, por definição, o lugar onde se

passa a ação numa narrativa”. Nelly Novaes Coelho (apud Lins, 1976, p. 74), observa o

espaço social como ambiente natural e ambiente social. O primeiro corresponde à

natureza, paisagem livre; o segundo, à natureza modificada pelo homem, a saber, casa,

castelo.

Nesse sentido, o conto de Steig ocorre tanto em um ambiente natural como

em um ambiente social, uma vez que o cenário onde se desenrola a ação é a estrada, o

mato escuro, o bosque, o meio do caminho, o campo florido, o castelo maluco, a sala de

espelhos e o salão do castelo.

O que nos chama a atenção é o fato de esses lugares, aparentemente, ao

contrário do que preceitua Gancho (p. 25), parecerem não influenciar atitudes,

pensamentos e emoções do personagem ou, ainda, não sofrerem, eles próprios, eventuais

transformações. Principalmente, se levarmos em consideração que o espaço, em alguns

casos, “é o móvel, o fulcro, a fonte da ação” (LINS, 1976, p. 67).

Ademais, que funcionalidade um elemento espacial teria se não estivesse

relacionado a um outro elemento da narrativa? Segundo Lins, “a funcionalidade de um

fator incorporado à narrativa, (sic) só chega a ser devidamente captada e avaliada em

termos de macro-estrutura” (p. 95). Em outras palavras, não poderíamos estudar o

espaço, unidade do sistema complexo narrativo, sem considerarmos, por exemplo, o

tempo, o personagem. Isso ocorre porque as unidades desse sistema “se refletem entre si e

repercutem umas sobre as outras” (p. 95, grifo nosso).

Isso posto, o espaço social em Shrek! pode revelar-se cheio de surpresas. A fim

de confirmar nossa assertiva, começaremos por analisar a “casa” onde Shrek viveu. O

buraco negro, diferente dos demais ambientes da narrativa, passa-nos a idéia de sujeira e

mistério; além disso, a paisagem em volta parece sem vida, devastada.

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O buraco negro em que Shrek vivia, embora se situasse num mundo obscuro,

não era vazio, uma vez que encerrava possibilidades. Em outras palavras, ele encerrava o

herói moderno, excêntrico, falho, inconformado. Este seria revelado ao mundo, saturado

pelo estereótipo do herói clássico.

Em sua caminhada, Shrek se depara com um cenário diverso do que conhecia:

havia luz, flores, árvores e as duas últimas “vergam-se” à sua passagem ao sentir seus

gases horríveis. Destarte, o ogro se impõe à ordem que impera no ambiente natural da

narrativa.

Convém destacar que o buraco negro e o mato escuro contrastam com a

luminosidade dos demais ambientes de Shrek!. Segundo Schüler, “Desde a antigüidade

clássica, o mundo civilizado é luminoso, são nítidos os contornos dos objetos, a luz da

razão atravessa a realidade. O sombrio, o exótico determinam as fronteiras [grifo nosso] do

mundo civilizado (p. 64)

Dissemos, anteriormente, que Shrek é um ser de fronteira e sua relação com a

norma vai depender do seu grau de distância. Observamos que nosso argumento se

confirma a partir da análise de um outro ser especialista em horrores, a bruxa. Em “Pós-

modernidade e publicidade: a desinvenção da infância”, Tonin (2005, p. 10-11) observa

que nos contos

os monstros assumem a função socializadora, seja a de atribuir castigos às pessoas que não seguem as regras sociais de determinadas épocas, ou de servir como ameaça às ações consideradas transgressoras. A Mula-Sem-Cabeça, o Boi-da-Cara-Preta, o Lobo Mau, o Bicho-Papão, o Diabo e a Bruxa estabelecem os limites, os campos de ação e também fornecem a idéia da transgressão, ou seja, figuram o que não se pode fazer: adultério, preguiça, desobediência, ambição, fuga, etc., todas as condutas morais extintas de uma sociedade que se quer civilizada.

Ameaça à sociedade “civilizada”, assim como Shrek, o lugar reservado à Bruxa

é o mato escuro. Desse modo, estar longe da “civilização” confirma a ordem,

principalmente, quando ela própria, uma especialista em horrores, se assusta com a

aparência do ogro e desmaia.

Outro cenário em Shrek! repleto de simbologia é o bosque39. De acordo com

Fernandes, F. (1999)40, “O bosque desempenha um papel arquétipo (sic) essencial no

39 Usaremos o vocábulo “floresta” uma vez que este, assim como “mata” e “grande porção de árvores reunidas”, é um sinônimo para a palavra bosque. Cf. FERREIRA, A., 2001, p. 114.

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imaginário dos contos de fadas. Crianças e princesas perdem-se nele. Também nos

bosques se encontram os seres sobrenaturais e as bruxas”. A assertiva da autora pode ser

ilustrada com as estórias de “João e Maria” e “Chapeuzinho Vermelho.”

Nesse sentido, o significado do vocábulo bosque passa-nos a idéia de

ambiente aterrador, uma floresta perigosa. De acordo com Chevalier e Gheerbrant, “a

grande floresta devoradora tem sido cantada numa abundante literatura hispano-

americana inspirada pela floresta virgem, a madre-selva [...]”. Os autores registram ainda que

há “outros poetas mais sensíveis ao mistério ambivalente da floresta, que gera, ao mesmo

tempo, angústia e serenidade, opressão e simpatia, como todas as poderosas

manifestações da vida” (p. 439, grifo dos autores).

No conto de Steig, a cena que ocorre à entrada do (a) bosque/floresta

permite-nos observar essas características. Vejamos: ao se aproximar do bosque, Shrek

encontra um cartaz pregado numa árvore com os seguintes dizeres:

Presta atenção viajante, É grande o perigo que corres: Dê meia-volta, não vá adiante, Se entras no bosque, tu morres!

O alerta sobre os perigos que o bosque oferecia não deteve o ogro viajante que

seguiu o seu caminho tranqüilamente. Quanto ao mistério ambivalente da floresta,

reconhecemos a opressão, no dragão, e a simpatia, em Shrek.

E, claro, mal entrou no bosque, um dragão enorme cortou seu caminho. Shrek sorriu e curvou-se, fazendo reverência. O dragão derrubou-o no chão, mas Shrek nem ligou: ficou ali deitado, achando divertidíssimo.

Convém ressaltar que o caminho percorrido por Shrek, em busca de sua noiva,

paulatinamente, desnuda a (falsa) harmonia do espaço social, revelando seres que, embora

pareçam autômatos e acríticos, não admitem ser questionados. A título de exemplo,

reproduzimos abaixo o diálogo entre Shrek e um lavrador que ceifava e cantava:

“Ei, jeca”, chamou Shrek. “Por que você está tão feliz?” O lavrador cantarolou: “Eu nunca parei para me perguntar Por que é que eu vivo feliz a ceifar. Ceifando e cantando eu quero morrer, Então caia fora, cansei de te ver.”

40 Fátima Fernandes apresentou o ensaio “Os contos de fadas na poesia de Fernanda de Castro”, no SEXTO CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS. Disponível em < http://www.geocities.com/ail_br/oscontosdefadasnapoesia.htm> Acesso em 11 nov. 2005.

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Parte da resposta automatizada do lavrador assemelha-se à do burro41, que ao

ouvir a palavra mágica, dita por Shrek, reage de forma sonolenta, zurrando:

Pelos campos vou andando, Pelos campos vou pastando. Eu pasto trevo e capim, Ando e pasto, pasto e ando, Nunca paro, sou assim.

“Eu nunca parei para me perguntar”. A fala do lavrador, ao afirmar que nunca

havia se questionado acerca da sua felicidade, está em consonância com o que diz Heller

(1992, p. 37) sobre a vida cotidiana ser aquela que mais se presta à alienação. Para a autora de

O Cotidiano e a História (p. 37-38, grifos da autora),

Na cotidianidade, parece “natural” a desagregação, a separação de ser e essência. [...] o homem devorado por e em seus “papéis” pode orientar-se na cotidianidade através do simples cumprimento adequado desses “papéis”. A assimilação espontânea das normas consuetudinárias dominantes pode converter-se por si mesma em conformismo, na medida em que aquele que as assimila é um indivíduo sem “núcleo”; e a particularidade que aspira a uma “vida boa” sem conflitos reforça ainda mais esse conformismo com a sua fé.

Nesse sentido, Lavrador e Burro cumprem os seus papéis: “ceifando e

cantando eu quero morrer”, “ando e pasto, pasto e ando/ nunca paro, sou assim”. Tudo a

que almejam é uma vida boa, sem conflitos. Comportamento oposto é o de Shrek, que

mesmo se deparando com seres alienados, é um ser consciente, condutor de sua própria

vida. De acordo com Heller (p. 40, grifo da autora).

41 Na linguagem pejorativa, trata-se de um indivíduo pouco inteligente; bronco; estúpido. Cf. FERREIRA, A., 2001, p. 120.

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A condução da vida supõe, para cada um, uma vida própria, embora mantendo-se a estrutura da cotidianidade; cada qual deverá apropriar-se a seu modo da realidade e impor a ela a marca de sua personalidade. [...] a condução da vida não pode se converter em possibilidade social universal a não ser quando for abolida e superada a alienação. Mas não é impossível empenhar-se na condução da vida mesmo enquanto as condições gerais econômico-sociais ainda favorecem a alienação. Nesse caso, a condução da vida torna-se representativa, significa um desafio à desumanização [...].

Ao soltar “puns” e assustar todas as criaturas: homens, mulheres crianças,

porcos, vacas, galinhas, cães, coelhos e pássaros, Shrek impõe a “marca de sua

personalidade”. Além do mais, o seu diálogo com (o que estamos considerando) seres

autômatos, destaque para o lavrador, desvela a desumanização do indivíduo, subjugado

pela classe dominante.

Do ponto de vista da narrativa, a atitude do ogro desperta até a atenção do

narrador que, num raro momento de intromissão, indaga: “Como é que ele podia gostar

de ser tão repulsivo?” Esse herói anômalo, liberto do buraco negro, não conhece a

repressão. Sua linguagem, sua forma monstruosa, seus (maus) hábitos estão em sintonia

com o mundo real, não mais idealizado.

A retórica, que nos romances anteriores silenciava os conflitos com o peso da inércia, fragmenta-se agora. As palavras, libertas do respeito a convenções, afrontam, ferem, denunciam os véus com que se pretendia esconder a face real das coisas (SCHÜLER, 1989, p. 66).

Como ocorrem em muitos contos de fadas tradicionais, os lugares por onde

Shrek transita não são nomeados de modo definido: no meio do mato escuro, perto de

um bosque. Essa imprecisão do lugar não é privilégio apenas dos contos de fadas que,

visando ao mergulho na fantasia, conjugam a imprecisão de tempo e lugar: “era uma vez”,

“há muito anos atrás” bem como “num certo reino”, “próximo à cabana” e “no meio da

floresta”.

Acerca dessa questão, convém registrar o que diz Lins:

[...]os graus através dos quais o escritor define o espaço: sua liberdade de escolha (liberdade relativa, pois nunca é indiferente à estrutura global do texto) oscila entre a pintura minuciosa de uma sala, como em Thomas Mann, à simples nomeação de uma rua, um hotel, uma cidade etc., havendo ainda os casos em que nem sequer se chega ao nome, observando-se, em relação ao espaço, uma imprecisão que de certo modo, nega-o (p. 88, grifo nosso)

Ao nomear o cenário de Shrek! com dísticos (buraco negro, castelo maluco,

num campo florido), Steig faz algo que data de uma época longínqua e que já havia sido

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observado por Michel Butor (1974, p. 42), “primeiramente, como no teatro de outrora,

bastará uma tabuleta: “lugar magnífico”, “bosque encantador”, “floresta horrível”, “uma

esquina”, “um quarto”. [...] Lugar magnífico, você diz, mas que estilo de magnificência?”

A imprecisão, assim como a precisão, é muito freqüente no tratamento do

espaço e pode ser comprovada a partir da “leitura de relatos inseridos numa tradição

remota, tanto do Ocidente como do Oriente (LINS, p. 88). Como ilustração, citamos os

excertos de “Tema para versos” e “A perfeição”, contos de Eça de Queirós (DUARTE,

2002):

Era, pois, uma vez um rei, moço e valente, senhor de um reino abundante em cidades e searas, que partira a batalhar por terras distantes, deixando solitária e triste a sua rainha e um filhinho, que ainda vivia no seu berço, dentro das suas faixas (p. 138, grifo nosso).

Sentado numa rocha, na ilha de Ogígia, com a barba enterrada entre as mãos, donde desaparecera a aspereza calosa e tisnada das armas e dos remos, Ulisses, o mais subtil dos homens, considerava, numa escura e pesada tristeza, o mar muito azul que mansa e harmoniosamente rolava sobre a areia muito branca (p. 257, grifo nosso).

Embora no segundo excerto percebamos, claramente, uma especificação do

espaço, isto não “significa obrigatoriamente uma ruptura com o universo” (SCHÜLER,

op. cit, p. 71). Entendemos que as indagações/considerações de Ulisses, embora este esteja

na ilha de Ogígia, são universais. Ademais, acreditamos que a imprecisão do espaço social

no conto de Steig universaliza os pensamentos e conflitos vividos pelo homem/herói

moderno.

Além do mais, como esse é um conto de fadas moderno, entendemos que

algumas referências espaciais buscam parodiar os contos de fadas tradicionais. A título de

exemplificação, transcrevemos o diálogo entre Shrek e o burro:

“Não era para você me levar a um lugar, sei lá onde?”

“Era sim. Ao cavaleiro biruta. Que guarda a entrada. Do castelo maluco. Onde a repugnante princesa. Espera.”

“[...] a um lugar, sei lá onde”, essa imprecisão do espaço social é

indubitavelmente paródica e, como tal, subverte os modelos estéticos do passado,

proporcionando uma transformação renovadora. Em outras palavras, a expressão

coloquial “sei lá” corrobora a idéia de que os valores louvados numa época clássica não

atendem mais às necessidades do herói moderno. Sobre essa questão, Nina comenta:

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[...] o conceito de paródia no mundo moderno inclui um aspecto fundamental: a renovação. Os modelos estéticos – sejam eles provenientes da Antiguidade, Renascença, ou de décadas atrás – são revistos sob outros ângulos, dimensionados por um novo contexto histórico (1994, p. 17)

Há uma outra questão até então não discutida, mas que consideramos

relevante; refere-se à região escolhida por Steig para situar a narrativa: o campo. Por que

não a zona urbana ou o litoral? Segundo Ferreira, A. (2001, p. 132), dentre outras

acepções, o campo se caracteriza como “zona fora do perímetro urbano das grandes

cidades, na qual predominam as atividades agrícolas”. Para Schüler (p. 67), “as regiões que

se distanciam das cidades litorâneas podem atrair por lembrarem o paraíso [...]”.

Nesse sentido, o lugar onde o ogro se encontra quando “está fora do ar”

representa o paraíso: “Sonhou que estava num campo florido, onde as crianças brincavam

e os passarinhos gorjeavam. Algumas delas o abraçavam, cobrindo-o de beijos e carinhos

sem parar.”

A resposta de Shrek a essa demonstração de afeto é o choro. O que nos leva a

supor ser essa uma reação normal, pois, talvez, ele estivesse emocionado com o carinho

recebido. Nossa suposição, contudo, não se confirma uma vez que, no momento

seguinte, o ogro acorda assustado e diz: “Ainda bem que foi só um pesadelo... um

pesadelo aterrador!”

Então, como explicar o choro de Shrek? Uma possível interpretação seria,

justamente, por ele não querer recuperar a condição divina do herói clássico, obediente às

leis divinas, oprimido, conformado, acrítico. Além disso, Shrek é um monstro e ao

divergir da norma, reafirma sua liberdade. Em relação ao espaço (buraco negro), porém,

não há divergência.

Essa liberdade, contudo, é colocada à prova no momento em que o ogro

atravessa a ponte levadiça e adentra no castelo maluco. Shrek, sempre tão seguro, parece

titubear diante de sua até então desconhecida condição: aceitar-se como ser horrendo ou

negar sua condição anômala. Transcrevemos, abaixo, como o ogro se sentiu:

Shrek ficou tão assustado que mal conseguiu dar uma cusparadinha de fogo. Todos aqueles horrores cuspiram de volta. Ele saiu correndo; todos correram também. Deu um murro em um deles, mas seu punho atingiu um vidro! Shrek estava na Sala de Espelhos! “Eles todos são eu!”, admirou-se. “TODOS SÃO EU!” Olhou-se nos espelhos, cheio de uma raivosa auto-estima, feliz por ser exatamente como sempre tinha sido.

Mas, o que o espelho (Do lat. speculum) reflete/revela?

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A verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência [...]De acordo com sua orientação, o homem enquanto espelho reflete a beleza ou a feiúra. [...] O espelho não tem como única função refletir uma imagem; tornando-se a alma um espelho perfeito, ela participa da imagem e, através dessa participação, passa por uma transformação. Existe, portanto, uma configuração entre o sujeito contemplado e o espelho que o contempla. A alma termina por participar da própria beleza à qual ela se abre. (CHEVALIER; GHEERBRANT, p. 393 et. seq.)

Destarte, os espelhos refletem a verdade. Revelam ao mundo o herói

moderno, crítico, despido da falsa perfeição, que mais se impõe do que se intimida diante

da sociedade moderna. Ou seja, o espaço social, em Shrek!, não robotiza o personagem.

Ainda acerca dos espelhos, Colasanti (p. 104-105) observa que há os “que

abrem passagem para dentro do seu próprio reflexo, como o de Alice”, bem como

“imagens de todo tipo” e que “Preciso é fazer a própria escolha”. Shrek fez a sua. Ao

vibrar por sua forma anômala, reafirma sua individualidade.

O mesmo não ocorreu com o Anão, personagem do conto “O Aniversário da

Infanta” (1992), de Oscar Wilde. No dia de seu 12º aniversário, a Infanta de Espanha

recebeu várias homenagens, dentre elas, a mais engraçada de todas: “a dança do pequeno

Anão” (p. 92). Capturado por dois nobres que caçavam, era a primeira vez que o

monstrinho aparecia em público. A analogia do personagem de Wilde com Shrek se dá

por duas razões: primeiro, como o ogro, o Anão tinha “total falta de consciência do

grotesco de sua aparência. Na verdade, ele parecia muito feliz e com uma energia

infindável” (p. 93). Apaixonado e acreditando ser correspondido, o Anãozinho ficou

extasiado ao saber que repetiria, mais tarde, sua “dança” diante da Infanta.

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Enquanto aguardava, o Anão andou por toda parte esperando encontrar a

princesinha e declarar-lhe o seu amor. Confiante que a Infanta aceitaria o seu convite de ir

para a floresta com ele, o Anão entra na sala mais bela e brilhante, lugar da revelação, e vê

uma outra figurinha que o observava. Seria a Infanta?

Seu coração estremeceu, um grito de alegria escapou-lhe dos lábios, e ele saiu para a luz do sol. Quando o fez, a figura também se moveu, e ele pôde vê-la claramente. A Infanta! Era um monstro, o monstro mais grotesco que ele vira em toda a sua vida. Não era formado corretamente como eram todas as outras pessoas, mas corcunda, com as pernas e os braços tortos, e uma cabeça enorme com vasta juba de cabelo preto. O Anãozinho franziu o cenho, e o monstro também franziu o seu. Ele riu, e o outro riu com ele, pousando as mãos nos quadris, como ele mesmo estava fazendo. [...] Quando a verdade despontou dentro dele, o Anãozinho soltou um grito louco de desespero e caiu no chão aos prantos. [...] Por que não o haviam deixado na floresta, onde não havia espelhos que lhe dissessem o quanto ele era repulsivo? Por que seu pai não o matara, ao invés de vendê-lo, para passar essa vergonha? (p. 103-105)

Há uma outra questão que aproxima Shrek! e “O Aniversário da Infanta”:

trata-se da postura preconceituosa dos personagens secundários em relação ao ogro e ao

Anão, respectivamente. Enquanto no texto de Steig coube ao relâmpago, ao trovão e à

chuva esse comportamento, conforme discutimos anteriormente; no conto de Wilde, são

as flores do jardim do palácio que julgam o Anãozinho por sua aparência o que, segundo

Mendonça (1999, p. 185), não difere da opinião da Infanta. Em seu artigo “A reading of

Oscar Wildes’s “The Birthday of The Infanta””, Mendonça sugere que há conexões entre

as primeiras descrições do jardim do palácio e a personalidade da Princesinha. Vejamos

como se comportam as flores...

-- Ele é realmente feio demais para ter permissão de brincar em qualquer lugar

onde nós estejamos – gritaram as Tulipas.

-- Ele deveria beber suco de papoula e dormir por mil anos – disse um dos

grandes Lírios escarlates, muito acalorado e zangado (WILDE, p. 94).

[...]

Empinaram seus narizes, fazendo caras de grande superioridade, e ficaram

encantadas quando, depois de certo tempo, viram o Anãozinho levantar-se da

relva e caminhar na direção do Palácio.

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-- Não há dúvida de que ele deve permanecer trancado dentro de casa pelo

resto de sua vida – disseram elas. – Olhem só a corcunda dele, e suas pernas

tortas – e começaram a dar uns risinhos entre si. (Ibidem, p. 97)

E a Princesinha...

-- Mas por que não haveria ele de dançar de novo? – perguntou a Infanta rindo.

-- Porque seu coração partiu-se – respondeu o Tesoureiro.

E a Infanta franziu o cenho, enquanto seus delicados lábios cor-de-rosa

comprimiam-se com desdém.

-- No futuro, os que vierem brincar comigo não devem ter coração – gritou ela

e saiu correndo para o jardim. (Ibidem, p. 107)

Em uma cena como essa, podemos constatar que o narrador guia o leitor do

“world of fantasy” ao “world of reality”42 (MENDONÇA, p. 185). A leitura que temos

feito de Shrek! também aponta nessa direção. O julgamento (preconceituoso) do Trovão,

da Chuva e do Relâmpago, no conto de Steig, é traduzido/ ampliado no mundo fantástico

da animação Shrek (2001): “Os ogros são como cebolas”, “Os ogros têm camadas”, “Os

ogros são melhores do que as pessoas acham”, fazendo um “link” como o mundo real:

“As pessoas julgam-nos por nossa aparência”.

Retomando a questão do espelho nos textos de Steig e Wilde, constatamos que

ambas as cenas das salas de espelhos nos colocam diante de uma indagação feérica e

humana: “Espelho, Espelho meu, há alguém neste mundo mais belo do que eu?” Embora

metonímia da beleza na sociedade contemporânea, ironicamente, os espelhos do castelo

maluco, em Shrek!, multiplicam a feiúra do ogro (pleonasmo?, hipérbole?), subvertendo a

função tradicional que lhe foi atribuída.

Apesar da subversão, a localização da Sala de Espelhos dentro de um castelo,

construção que figura, geralmente, como local “tão inacessível quanto desejável”

(CHEVALIER; GHEERBRANT, p. 199), confirma a idéia de que o castelo maluco

possui dois dos principais “valores” dessa sociedade: fama e dinheiro. E, mesmo que falte

o fator beleza, essa sociedade leva em consideração a questão financeira. Ilustraremos

42 “mundo da fantasia”; “mundo da realidade” (Tradução nossa).

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nosso argumento com o diálogo entre Shrek e o cavaleiro que guardava a porta do

castelo, onde a princesa se encontrava:

“Tem alguém aí dentro e lá no castelo?” “Aqui há um cavaleiro que nada teme na vida, e lá dentro uma donzela horrorosa e bem-nascida”, foi a resposta.

Em outras palavras, embora o dinheiro da princesa minimizasse a sua

condição anômala, não impediu que ficasse encerrada num castelo (maluco!). Nesse

sentido, o castelo e o buraco negro, espaços sociais que iniciam e encerram esse conto

moderno, assemelham-se, pois ambos mantiveram os monstros (ogro e princesa

horrorosa) longe da sociedade “perfeita”.

Isso posto, podemos constatar que, ao percorrer o trajeto do buraco negro ao

castelo maluco, o herói moderno, além de desmascarar a sociedade contemporânea,

permite que outros seres anômalos (como a princesa horrorosa) passem a fazer parte

dessa sociedade, mas não como seres autômatos, robotizados. Ademais, o casamento de

um ogro verde com uma princesa (horrorosa) contribui para que se revejam os padrões

estabelecidos pela classe dominante.

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3.2 - Far Far Away: uma alegoria da sociedade

contemporânea. Todo mundo lê “filmes”.

Graeme Turner

Durante séculos, tem sido possível ler o mundo, principalmente, a partir de

textos escritos, muitos deles clássicos como: Dom Quixote, de Cervantes; Hamlet, de

William Shakespeare; Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões; Memórias de um sargento de

milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Ao leitor mais atento, foi possível, além do prazer

da leitura, compreender o homem e o meio social inseridos nessas narrativas.

Situação análoga ocorreu com a leitura dos contos de fadas como Branca de

Neve e os sete anões, Peter Pan, A Bela e a Fera, Alice no país das maravilhas, Cinderela, João e

Maria, dentre outros, uma vez que segundo Warner (1999, p. 18) essas histórias possuem

duas importantes características: “sentir prazer pelo fantástico e curiosidade pelo real”.

Para Wallace Stevens (apud Warner) “visualizar um mundo fantástico nos ajuda a enxergar

o mundo real” (p. 19).

Enxergar o mundo real a partir do universo fantástico dos contos de fadas tem

sido possível, uma vez que os elementos estruturais dessas narrativas – a saber, tempo,

espaço, personagens, etc. -- são anônimos, o que corrobora a universalização dos

conflitos vividos pelo sujeito leitor que, de alguma forma, se identifica com os conflitos

vividos pelas personagens.

Acerca dessa questão, convém registrar o que diz Warner:

Paradoxalmente, o aspecto remoto de seu cenário tradicional – o palácio, a floresta, o reino distante e sem nome, o anonimato e a falta de particularidade de seus personagens: reis, rainhas e princesas com nomes como Bela ou Princesa dos Cabelos de Ouro – que não podiam pertencer a ninguém no âmbito histórico e social dos narradores ou dos receptores dos contos de fadas -, tudo isso fortalece a capacidade das histórias de prender-se à realidade (p. 18).

Coelho (2003), por sua vez, analisando “Os contos de fadas e a memória

popular”43 observa que as fábulas de La Fontaine são atemporais, uma vez que se

fundamentam na natureza humana “e esta, como sabemos, continua a mesma através dos

milênios” (p. 23). 43 Trata-se do segundo capítulo do livro O conto de fadas: símbolos mitos arquétipos, de Nelly Novaes Coelho.

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No século XX, com a consolidação do cinema, assistimos a uma nova

possibilidade de leitura do mundo: o texto fílmico. Através da sétima arte, tem sido

possível, de acordo com Turner (1997, p. 83), “[...] compreendermos as sociedades

retratadas nos filmes por meio da experiência em nossa própria sociedade”. Turner,

contudo, chama-nos a atenção para o fato de levarmos em consideração

[...] as relações específicas estabelecidas entre um filme e todo o contexto em que ele é visto. [...] No nível mais simples, as narrativas do cinema são vistas dentro de um contexto que tanto é textual como social. Do contexto social pode-se (sic) inferir as ligações entre um filme e um movimento social – Rambo e o reaganismo, por exemplo – ou entre um filme e os fatos contemporâneos – Tubarão como um filme de Watergate, ou The Fly/A Mosca como uma alegoria da Aids, por exemplo (p. 81).

Desde a primeira metade do século passado, essas duas formas de leitura, a

saber: texto literário e texto fílmico, têm se aproximado através da adaptação da

linguagem verbal para a linguagem audiovisual. Diversos são os textos literários (e

consagrados) que foram adaptados pela indústria cinematográfica. Sem dúvida, o sucesso

econômico de adaptações fílmicas de obras conhecidas é um estimulo a produtores e

cineastas, mas, conforme já observado por George Lukács (apud Johnson, p. 9) a questão

não é só financeira, diz respeito à revitalização da obra literária.

Se o lucro não é o único motivo, que outra razão, então, teria um cineasta ao

adaptar Morte em Veneza, de Thomas Mann; Macunaíma: o herói sem nenhum caráter, de Mário

de Andrade; e histórias infantis como Cinderella, de Perrault; Crônicas de Nárnia: O Leão, a

Feiticeira e o Guarda-roupa, de C. S. Lewis e Shrek!, de William Steig?

Tomemos como exemplo, inicialmente, a adaptação do romance Macunaíma,

pois este reverbera o que diz Lukács uma vez que, para Johnson, “Joaquim Pedro44

tentou, em todos os momentos, fazer o filme relacionar-se diretamente com a realidade

social, política e econômica do Brasil moderno” (p. 123). A título de exemplo, o autor

observa que, na adaptação, Joaquim Pedro “inverteu o código de expectativas e

comportamento da ideologia dominante” (p. 155).

Noutras palavras, o herói (de mau caráter) do texto fílmico, diferentemente do

homem provedor da sociedade patriarcal, fica em casa desempenhando o papel de objeto

sexual, enquanto sua mulher vai “guerrear na cidade” (JOHNSON, p. 155). O tempo e as

44 Joaquim Pedro de Andrade é o roteirista do filme Macunaíma, o herói de mau caráter (1969), adaptado da obra Macunaíma: o herói sem nenhum caráter (1928), de Mário de Andrade. Cf. JOHNSON, 1982, p. 39 e 185.

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diferentes linguagens (verbal e visual) não impediram que os textos de Mário de Andrade

e Joaquim Pedro coincidissem em determinadas questões – no combate à ideologia

dominante, por exemplo – e divergissem em outras.

Quanto aos contos de fadas tradicionais, percebemos que em determinadas

adaptações fílmicas realizadas pela Walt Disney, destaque para Cinderella (1950), quatro

séculos depois da publicação do texto escrito, permanecem vivos os valores da sociedade

patriarcal como a submissão da criança e da mulher e o poder divino nas mãos de

personagens masculinos.

O que dizer, então, do moderno conto de fadas Shrek! (2001), de William Steig,

e suas adaptações na década seguinte? A adaptação Shrek 2 revitalizou, para usarmos a

expressão de Lukács, o já revitalizado45 conto de Steig? Compreendemos a sociedade

retratada na animação “por meio da experiência em nossa própria sociedade”, como disse

Turner? O que vem depois do “viveram felizes”?

Segundo Warner, “Os finais felizes dos contos de fadas são apenas o começo

da história maior, e qualquer estudo que tente dar conta de sua totalidade irá tropeçar e

cair antes que qualquer tipo de final possa ser alcançado” (p. 24). Essa assertiva nos

remete ao texto fílmico Shrek 2, uma vez que Andrew Adamson, roteirista e diretor da

animação, inicia a história com os recém-casados, Shrek e a princesa Fiona, em viagem de

lua-de-mel.

Além do mais, a animação vai discutir o que vem depois do casamento: eles

são felizes – ou horríveis, como queria Steig – para sempre? Vejamos: ao retornarem da lua-

45 Atribuímos essa revitalização ao conto Shrek! uma vez que, diferentemente dos contos de fadas tradicionais, o autor nos apresenta como herói um ogro-herói verde, feiíssimo, que cuspia fogo e soprava fumaça pelas orelhas.

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de-mel, os recém-casados recebem um convite dos pais de Fiona para irem a Far Far

Away. Shrek não acha que seja uma boa idéia, mas é convencido pela esposa.

No trajeto entre o pântano e Far Far Away, percebemos que a distância do

reino não se restringe à questão denotativa; na verdade, a distância entre o pântano e o

buraco negro em relação ao reino Tão Tão Distante se manifesta, principalmente, no nível

sócio-econômico, uma vez que os personagens não correspondem aos ideais do reino –

sendo este o símbolo da sociedade contemporânea. O reino Tão Tão Distante, assim

como a tríade que forma seu nome, ilustra os valores da sociedade capitalista: fama, beleza

e riqueza.

Dissemos anteriormente, ao citar Turner, que podemos inferir ligações entre

um filme e um movimento social e que uma película pode representar uma alegoria de um

fato contemporâneo. Conscientes da densidade do significado do vocábulo “alegoria”,

que compõe o título deste subcapítulo, convém registrar que o utilizamos no seu sentido

mais comum: “exposição de um pensamento sob forma figurada” (CUNHA, A., 2001, p.

28).

Para Rodella et al. (2005, p. 113),

A alegoria é uma metáfora elaborada, geralmente na forma de uma imagem. [...] Os gregos já usavam essa figura de linguagem em sua Filosofia e na Literatura. [...]Nas fábulas geralmente é comum termos atitudes e sentimentos humanos representados em animais. A raposa esperta também é uma forma de alegoria. Na escultura e na pintura as alegorias são bastante tradicionais. Desde a Idade Média, por exemplo, a figura de esqueletos tem sido utilizada para representar a morte”.

É no sentido de representação que entendemos o reino Tão Tão Distante

como uma alegoria da sociedade contemporânea que tem os seus símbolos parodiados46

no espaço social da adaptação fílmica Shrek 2; ademais, a animação tem muito de paródia

ao conto de fadas tradicional, conforme já discutimos.

Feitas essas considerações, convém retornarmos à análise da animação: Shrek

parecia prever o que lhes aguardava, pois reluta em ir conhecer os pais de sua esposa.

Essa relutância, contudo, não é mera implicância do ogro rabugento, uma vez que tanto

ele como Fiona se surpreendem com o convite. Vejamos a descrição da cena:

46 O termo paródia que ora utilizamos, ao contrário do que defende Linda Hutcheon em sua obra Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas de arte do século XX, corresponde a irônico, jocoso, ridicularizador.

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Shrek e Fiona acabam de chegar da lua-de-mel quando o burro comunica que

há uma “galera” lá fora, no pântano: trata-se do mensageiro do rei e da comitiva de

recepção. O mensageiro lê o seguinte convite:

Querida Princesa Fiona

Está convidada ao reino Tão Tão Distante para um baile real em homenagem ao seu

casamento. Quando o rei concederá a bênção real a você e a seu Príncipe Encantado [o

mensageiro hesita ao ler as duas últimas palavras].

Com amor, o Rei e a Rainha de Tão Tão Distante. Ou melhor, mamãe e papai.

Fiona, surpresa, indaga: “Mamãe e papai?”

Shrek, confuso: “Príncipe Encantado?”

O Burro, por sua vez, pergunta se pode ir ao baile, mas Shrek diz que eles não

irão. Fiona quer saber o porquê, e Shrek pergunta: “Não acha que eles podem ficar um

pouco chocados de verem você assim?” Vendo que não conseguiria dissuadir a Princesa,

o ogro, pouco otimista, concorda: “Certo, mas sinto que não serei bem-vindo no country

club.”

A preocupação de Shrek tem fundamento uma vez que os pais de Fiona

trancaram-na em um quarto de uma torre muito alta, guardada pelo dragão, até que seu

príncipe viesse salvá-la, com um beijo, de sua condição anômala47. Além disso, a

referência ao country club já é uma crítica à sociedade de consumo em que vivem os pais de

Fiona.

Os temores do ogro se confirmam no instante em que eles entram no reino

Tão Tão Distante e nossos protagonistas deparam-se com um cenário que em nada

lembra o pântano em que Shrek sempre viveu.

47 Com a chegada do pôr-do-sol, Fiona deixava de ser uma linda princesa e transformava-se em uma ogra. O casamento com Shrek, contudo, fez com que ela passasse, definitivamente, àquela forma anômala.

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Shrek, Fiona e o Burro não pertencem àquele universo exuberante com

castelos/mansões de princesas/atrizes e de lojas de grife famosas como a

Versarchery/Versace, além de um outdoor exibindo a Fada Madrinha, em uma roupa

sensual, e a frase: “Venha viver feliz para sempre”. Esse cenário exótico leva o Burro a

fazer o seguinte comentário: “Vai ser só champanhe e caviar de agora em diante”. O ogro

verde, sujo e flatulento, agora também desolado e deslocado, constata: “Definitivamente,

não estamos no pântano!” O alumbramento do Burro diante do luxo e ostentação de Far

Far Away, contudo, não assegura que este seja um lugar melhor que o pântano, conforme

iremos constatar.

Analisando o luxo e magnificência do palácio onde vive a Infanta, personagem

do conto de Oscar Wilde, Mendonça (p. 187) observa que tais características, comuns a

qualquer outro palácio dos contos de fadas, “does not convince us of it being a better

place the Dwarf’s forest”48. Mendonça observa, ainda, que o palácio é uma extensão dos

princípios, nada admiráveis, de seus habitantes, e que a descrição do palácio aponta para

sua artificialidade em oposição à vivacidade da floresta.

Todavia, a vivacidade da floresta refletida na figura do Anão não é suficiente

para ratificar a moral dos contos de fadas, e o bem não triunfa no final (MENDONÇA,

188). Ao construir esse cenário “medonho” (o palácio) num jogo “world of fantasy” x

“world of reality”, Wilde denuncia a segregação racial da sociedade de sua época e mostra-

nos como as construções do espaço e o modo de agir de seus personagens podem estar

imbricados.

De acordo com Santos (2004, p. 36-37), em sua obra Pensando o espaço do homem,

“Os construtores do espaço não se desembaraçam da ideologia dominante quando

48 “não nos convence de que é um lugar melhor que floresta do Anão” (Tradução nossa).

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concebem uma casa, uma estrada, um bairro, uma cidade”; o que justificaria, inicialmente,

a desolação do ogro, bem como o fato do criador de Shrek 2 -- assim como fez Wilde e

como fazem os construtores do espaço -- também ter “pensando o espaço do ogro”.

Além do mais, o cenário de Tão Tão Distante, juntamente com a assertiva do Burro,

remete-nos ao pensamento de Adorno e Horkheimer (1985) acerca da Indústria Cultural.

Para os teóricos da Escola de Frankfurt, “a Indústria Cultural permanece a

indústria da diversão” (p. 128). Os autores, contudo, afirmam que essa indústria “não

cessa de lograr seus consumidores quanto àquilo que está continuamente a lhes prometer”

(p. 130) e completam:

A promissória sobre o prazer, emitida pelo enredo e pela encenação, é prorrogada indefinidamente: maldosamente, a promessa a que afinal se reduz o espetáculo significa que jamais chegaremos à coisa mesma, que o convidado deve se contentar com a leitura do cardápio. Ao desejo, excitado por nomes e imagens cheios de brilho, o que enfim se serve é o simples encômio do quotidiano cinzento ao qual ele queria escapar (p. 130-131).

Observamos que a promissória sobre o prazer, em Shrek 2, diz respeito ao

“Felizes para sempre”, embora o ogro, protagonista dessa narrativa, jamais venha a ter o

direito à fórmula mágica. A fim de justificar nossa assertiva, convém analisarmos três

cenas que consideramos emblemáticas:

1 – após o jantar desastroso em que Shrek e o rei Harold (pai de Fiona) travam

uma batalha gastronômica (ambos disputam um leitão) e verbal acerca do pântano e da

possibilidade de Shrek vir a ser o pai de seus netos-ogros, Fiona, magoada, vai para o seu

quarto. Lá chegando, dirige-se à sacada. Nesse momento, a câmera focaliza primeiro o

letreiro Far Far Away, em seguida, o rosto triste da princesa que olha para a placa e chora.

Convém salientar que a relação entre esses dois planos, a saber: letreiro e tristeza de

Fiona, revela, indubitavelmente, que a princesa-ogra está distante daquela sociedade de

consumo em que o Ter (beleza, fama, dinheiro) é valorizado em detrimento do Ser, o que

nos leva à cena seguinte;

2 – a lágrima que escorre dos olhos de Fiona é a “senha” para chamar a Fada

Madrinha, que surge entoando a seguinte estrofe:

Suas lágrimas me chamaram

E aqui está o meu doce remédio

Sei o que toda princesa precisa

Para ter uma vida feliz

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Ao se dar conta de que o “chamado” foi feito pela princesa Fiona, a fada se

assusta e diz: “Minha querida. Olhe só como está!” Em seguida, disfarça: “Como você

cresceu”. Fiona indaga: “Quem é você?” E a fada responde: “Que docinho!” “Sou a sua

fada madrinha”. Fiona, desconfiada, pergunta: “Tenho uma fada madrinha?” E a fada,

silenciando-a, responde: “Não se preocupe. Estou aqui para resolver tudo”.

A partir desse momento, a fada começa a cantar uma espécie de “receituário”

do “Felizes para sempre”, acompanhada pelo coro dos amigos-mobília que buscam

adequar a princesa ao universo de Tão Tão Distante, o que nos lembra o fetichismo da

mercadoria; por ora, nos limitaremos a transcrever o “receituário” da fada.

Só com um movimento

Da minha varinha mágica

Seus problemas desaparecerão

Com um toquezinho, ganhará

Um príncipe cheio de grana

Um vestido caríssimo

Dos ratinhos

Sapato de cristal

E chega de estresse

Acabarão as preocupações

E terá paz

Confie nos amigos-mobília

Ajudaremos a achar uma nova

Tendência de moda

- Vou deixá-la diferente, linda!

Bem ao estilo do Príncipe!

Escreverão seu nome no banheiro

“Feliz para sempre?

Ligue para Fiona!”

Carruagem esporte, cheia de estilo

Um chofer muito gato: “Kyle”.

Nada de espinhas nem cáries

E o fim da celulite

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E já ia me esquecendo

Do bichon frisé!

Uma plasticazinha

Para ganhar o Príncipe bem penteado

Batom, sombras, blush

Para o príncipe saradão

Dia de sorte, ele é gostoso

Você e o seu Príncipe no feno

Olhando para a Lua

Ouvindo esta música

Você será fabulosa

Ele terá abdome desenhado

Suflê, Dia dos Namorados

E fricassê de frango

Uma plasticazinha para

O Príncipe bem penteado...

Fiona grita:

“- Pare! Escute... muito obrigada, Fada Madrinha, mas não preciso disso”.

Tanto a fada como a mobília se surpreendem, e um dos amigos-mobília

retruca:

“- Como quiser”. “Não gostei de você”.

Ao oferecerem à Princesa Fiona “um príncipe cheio de grana”, “vestido

caríssimo”, “uma nova tendência de moda”, “carruagem esporte”, o “fim da celulite”, e

um “príncipe saradão”, o que a fada e os amigos-mobília fazem é ratificar o que já tinha

sido investigado por Marx acerca de as mercadorias exercerem “um poder mágico sobre o

homem” (MARTINS, 1998, p. 67). Para Martins, é possível exemplificar, hoje, quais

seriam os objetos de consumo. Como exemplo, o autor cita “caros automóveis, aparelhos

eletrônicos de última geração, etc” (p. 67).

Fiona é bombardeada com todo esse material publicitário e, ao afirmar que

não precisa disso, é hostilizada com um “Não gostei de você”. De acordo com Martins, a

partir do pensamento do autor de O Capital, “[...] é natural para o homem ter e

desenvolver esses desejos, posto que é um ser social inserido num sistema econômico e

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quanto mais abundância a produção gera, tanto mais desperta possibilidades de consumo”

(p. 67-68).

Os produtos-fetiche do receituário são oferecidos à princesa-ogra como se

fossem necessidades vitais: Sei o que toda princesa precisa/ Para ter uma vida feliz, diz a fada. A

assertiva de Fiona, recusando o que lhe é oferecido, revela o que acontece na sociedade

capitalista.

Martins observa que no mercado, o qual o autor chama de “instituição

capitalista por excelência”, há uma relação entre coisas, e que, para Marx “há relações

humanas” por trás dessa instituição e que “o mercado ‘personifica as coisas’ e ‘coisifica as

pessoas’ (p. 69). Em outras palavras, o papel de sujeito ativo da produção social não é

desempenhado por Fiona, e sim pelos amigos-mobília (objetos nada inanimados na

narrativa) restando àquela a condição passiva de observadora.

A Indústria Cultural apresenta-se como saciadora das “necessidades”, de que

falou Martins. Para Adorno e Horkheimer, essas necessidades são “de antemão

organizadas de tal sorte que ele [o sujeito] se veja nelas unicamente como um eterno

consumidor, como objeto da indústria cultural” (p. 133). De acordo com Aumont e Marie

(2003, p. 123), os antropólogos vêem o fetiche como “um objeto ao qual se atribuem

poderes mágicos e benéficos”. Nesse sentido, Fiona seria uma consumidora das (pseudo-)

necessidades que lhe são apresentadas, e satisfeitas, pela representante da Indústria

Cultural, ironicamente, a fada.

Outrora conselheira, guardiã de princesas ameaçadas por seres cruéis, a fada

madrinha cumpria seu tradicional papel: como uma mãe zelosa, salvava sua “filha” do

borralho ou da ira de uma madrasta invejosa. Em Perrault e Grimm, a fada é boa; a bruxa é

má. Shrek 2 afasta-se do maniqueísmo dessas narrativas e demole estereótipos: a fada é

uma bruxa. Ironicamente, ao desconstruir esse “modelo”, Adamson resgata a “qualidade”

de conselheira da fada; pois esta, na história do ogro, continua a indicar o caminho que

levaria sua protegida à ascensão social, ou seja, ao príncipe encantado.

A terceira cena, que requer uma análise nossa, diz respeito à “distância” de

Shrek diante da realidade de Far Far Away. Shrek entra no quarto logo após a recusa de

Fiona à “ajuda” da fada. A princesa apresenta-o à mobília e à fada como seu marido. Esta,

perplexa, não entende como isso pôde acontecer, e Fiona lhe explica que Shrek a salvou.

O ogro interrompe a conversa e diz que eles vão voltar para o pântano e Fiona quer saber

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quando ele tomou essa decisão. Shrek afirma que foi assim que chegou. A fada se

desculpa dizendo que precisa ir embora; antes, contudo, avisa: “[...] lembre-se, querida, se

precisar de mim, a felicidade está a uma lágrima de distância” e entregou-lhe seu “cartão

de visitas”.

Com a saída da fada, o casal de ogros discute: Fiona acusa-o de se comportar

como um ogro; Shrek lhe diz que, seus sogros gostando ou não, ele é um ogro. Desolada,

Fiona responde: “Mudei muita coisa em mim por você, Shrek. Pense nisso!” Em seguida,

retira-se do quarto. Mais tarde, sem conseguir dormir, Shrek vê as horas passarem. Já é

tarde. Levanta-se da cama e olha, também desolado, pela janela e vê o letreiro com o

nome do reino - essa cena, assim como ocorreu com Fiona, não é gratuita: Shrek estava,

de fato, muito distante dos valores daquela sociedade.

O desejo de Shrek de voltar para o pântano, bem como o “deslumbramento”

do Burro em sua chegada ao reino Tão Tão Distante, está em sintonia com a análise que

Ramos (1998) faz sobre a representação do meio urbano na poesia de Mário de Andrade.

Para a autora, “A cidade exerce um fascínio no novo morador, seja pela presença das

luzes noturnas, seja pela sintaxe urbana, constituída por ruas, esquinas, prédios, igrejas,

bairros que se fundem dando um novo colorido a este meio que congrega diferentes

culturas” (p. 39).

Por outro lado, ela (a cidade) “fica indiferente ao desespero de seus filhos, pois

no momento em que eles se sentem ameaçados, devem fugir para casa, para o campo,

abrigo que os acolhe” (p. 39).

No dia seguinte à discussão com Fiona, Shrek descobre que seu sogro havia

contratado o Gato de Botas para matá-lo. O ogro desabafa e diz que seria melhor para

Fiona se ele fosse um príncipe encantado. O Burro lembra-lhe que Fiona sabe que ele

faria tudo por ela, e o ogro responde: “Se eu pudesse, eu mudava”. “Só queria fazê-la

feliz”. Nesse momento, Shrek lembra-se do cartão que a fada deu a Fiona, mas que ele

interceptou. De um lado do cartão, lia-se “Felicidade”; do outro, “A uma lágrima de

distância”. A pedido de Shrek, mas forçado pelo Gato de Botas, o Burro chora e sua

lágrima traz a figura da fada como em uma gravação telefônica ou programa de televisão:

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O quê? Está ligada?49

Aqui é a Fada Madrinha. Estou longe da mesa ou com um cliente. Se vier ao escritório,

marcaremos uma hora para você. Seja “Feliz para sempre”!

Shrek, então, decide ir ao chalé/ fábrica de poções mágicas da fada para lhe

pedir ajuda. Na fábrica, o funcionário diz que a fada está, mas não pode recebê-los. Shrek,

juntamente com o Gato e o Burro, diz que são do sindicato e pergunta se ele tem alguma

queixa a fazer. O funcionário estranha: “Sindicato?” Shrek diz que eles representam os

operários da indústria de magia tanto negra como branca e pergunta-lhe se ele se sente

menosprezado ou oprimido. Ele diz que um pouco, pois não tem assistência dentária.

Shrek aproveita a deixa e diz que irá dar uma “olhada”; pede-lhe, contudo, que não avise à

fada. O funcionário, cúmplice, libera sua entrada. O ogro, com seus amigos, encontram a

fada trabalhando em uma nova poção mágica com os seguintes ingredientes:

Uma dose de desejo

Uma pitada de paixão

E só uma alusão de luxúria!

Picante!

Ao perceber a presença de Shrek, a fada esconde seu mais novo experimento e

quer saber o que ele faz ali. Shrek diz que veio à sua procura, pois Fiona parece não estar

muito feliz. A fada ri irônica e diz: “Há alguma dúvida de qual seja o motivo?” Dirige-se a

uma estante onde há livros com contos de fadas e vai lendo o final das histórias:

“Viveram felizes para sempre”. “Cinderela, nenhum ogro!” – ela frisa. “Branca de Neve,

um belo príncipe”. “Bela Adormecida, nenhum ogro”. “João e Maria? Não”. “Tumbelina?

Não”. “Pássaro Dourado, Pequena Sereia, Uma linda mulher... Não, não, não, não!” E

completa: “Vê? Ogros não vivem felizes para sempre”.

Nesse bombardeio feito pela fada, três questões merecem nossa atenção:

a) dentre os contos de fadas tradicionais elencados, a fada cita o moderno (mas

não menos tradicional) “Uma linda mulher”;

b) essas histórias não apresentam nenhum ogro;

c) o fato de ogros não viverem felizes para sempre.

49 Nesta cena, a fada age como se estivesse diante de uma câmera, o que gera ironia, devido à explicitação do recurso discursivo.

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Uma linda mulher (Pretty Woman, 1990), filme dirigido por Garry Marshall, tenta

mostrar que o quase impossível pode se tornar realidade: Vivian (Julia Roberts) é uma

bela garota de programa que “trabalha” na Hollywood Boulevard e conhece por acaso

Edward Lewis (Richard Gere), homem milionário, que a contrata por algumas noites e

acaba se apaixonando por ela.

Em outras palavras, na película, a Cinderela moderna (prostituta) encontra seu

príncipe encantado (homem de negócios) e são felizes para sempre. Convém ressaltar que

a idéia de quase impossível é reforçada com uma mensagem no final do filme que diz “[...]

Qual é o seu sonho? Todo mundo vem aqui. Isso é Hollywood, terra dos sonhos. Alguns

se realizam, outros não. Mas continue sonhando. [...]”

No que diz respeito ao fato de os ogros não serem felizes para sempre, os

contos de fadas têm difundido essa idéia de geração a geração por vários séculos, uma vez

que não há espaço para o bizarro, para o estrangeiro nessas histórias. Além disso, é

comum a associação do belo com o bom, e do feio com o mau: heróis, heroínas e fadas

são bons e bonitos; vilões e bruxas são feios.

Ademais, quando povoam os contos de fadas, os ogros são maus como o

Barba Azul ou príncipes vítimas de algum encantamento, como a Fera do conto “A Bela e

a Fera”, e o sapo em “A Princesa e o Sapo”; neste caso, contudo, são redimidos de sua

monstruosidade e transformam-se em belos príncipes.

Embora não a tenhamos citado como cena emblemática - mas que julgamos

igualmente importante – convém ressaltar que o momento em que a fada cita os

“ingredientes” de uma nova poção mágica remete-nos às simpatias ensinadas por sites e

revistas esotéricas como algo do tipo “apimente o sexo”, “mantenha o fogo da paixão” e

“melhore o apetite sexual”.

Voltando à descrição da cena em que a fada é categórica ao dizer que “ogros

não são felizes para sempre”, Shrek não se conforma e, com a ajuda de seus amigos,

dirige-se a uma espécie de depósito de poções mágicas. Lá, pede ao Gato de Botas que

procure algo como “beleza”; o Gato encontra o frasco “Felizes para sempre”, cujo efeito

é o de “beleza divina”, localizado numa prateleira de uma estante muito alta onde se lê

“Acesso Restrito”.

Segundo a bula da poção mágica, se um dos apaixonados bebesse a fórmula,

os efeitos prometidos - “Felicidade, Bem-estar e Beleza Divina” - seriam sentidos por

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ambos. Antes de beber a fórmula, o Burro lembra a Shrek que ele não fará mais as coisas

de que gosta como: “chafurdar na lama” e “coçar o traseiro”. Além disso, ele “ama ser

ogro”. Shrek concorda; mas, acredita que, se tornando um príncipe encantado, seria aceito

pelos pais de Fiona, o que a deixaria feliz. Em seguida, bebe o resto50 do conteúdo do

vidro.

Nesse ínterim, Fiona, sentindo a ausência do marido, diz aos pais que foi um

erro trazer Shrek e que iria “consertar as coisas”. O rei prontamente concorda: “Essa é a

minha menina!” Sendo assim, ela comunica que vai procurá-lo para juntos voltarem ao

pântano que é o lugar deles.

A idéia de que aquele reino não é o seu lugar é ratificada quando na noite do

baile, em meio a fogos de artifícios, a voz do espelho-mágico-locutor anuncia: “Abdomes

fabulosos e glúteos que são o máximo aqui no Baile Real de Tão Tão Distante!”

“Carruagens fazem fila para as celebridades descerem... Todos os famosos vieram...” - sua

fala é completada por uma apresentadora - “... homenagear a Princesa Fiona e o Príncipe

Shrek.” “Nossa! Os trajes são maravilhosos.” “Vejam! João e Maria! – e, irônica, completa

- Para que essas migalhas?” “E, atrás deles, o Pequeno Polegar e Tumbelina! Não são

adoráveis?!”

Contrariando a exclamação da apresentadora, alguém os varre juntamente com

as migalhas deixadas por João e Maria. “Aí vem a Bela Adormecida! Como está cansada!”

– comenta surpresa ao ver a Bela cair de bruços quando o cocheiro/ chofer abriu a porta

da carruagem-limusine. Em seguida, o que parece ser o momento mais aguardado,

“Quem será? Quem será? É ela, a única, é a Fada Madrinha!”

50 O Burro, num gesto de amizade ao ogro, toma boa parte da poção mágica. No dia seguinte, ele tem se transformado em um belo cavalo branco.

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Neste momento, aquela que representa, a nosso ver, a indústria do espetáculo,

sai de sua carruagem e, sob aplausos, diz “Olá, Tão Tão Distante!” “E as exclamações?”

Ouve-se em uníssono um “Uh! Uh!”, ao que a fada completa: “Que todos os seus finais

sejam felizes e ... bem, já conhecem o resto!”, ouve-se novamente a voz do locutor:

“Voltamos já com o Baile Real de Tão Tão Distante depois dos comerciais.”

Convém destacar que a transmissão do “evento” foi realizada pela ME –

Medieval Entertainment e os “telespectadores” eram Pinóquio, o Lobo Mau (ainda

travestido de vovozinha), os Ratinhos Cegos e o Biscoito, personagens excluídos desse

espetáculo. O mesmo ocorre com os espectadores que assistiam ao vivo à entrada dos

famosos sob luzes e fogos de artifício. Em outras palavras, restava-lhes a “leitura do

cardápio”, da qual falamos anteriormente.

A probabilidade de algum desses espectadores vir a andar sobre o tapete

vermelho da fama é muito remota. Este argumento pode ser fundamentado através da

visão de Adorno e Horkheimer para quem

A felicidade não deve chegar para todos, mas para quem tira a sorte, ou melhor, para quem é designado por uma potência superior – na maioria das vezes a própria indústria do prazer, que é incessantemente apresentada como estando em busca dessa pessoa. [...] Só uma [espectadora, grifo nosso] pode tirar a sorte grande, só um pode se tornar célebre, e mesmo se todos têm a mesma probabilidade, esta é para cada um tão mínima que é melhor riscá-la de vez e regozijar-se com a felicidade do outro, que poderia ser ele próprio e que, no entanto, jamais é (p. 135-136).

No que diz respeito aos votos de felicidade da fada “Que todos os seus finais

sejam felizes...”, eles não se estendem a todos, uma vez que, como a fada havia dito a

Shrek, não há ogros nos contos de fadas nem eles são felizes para sempre. Ou seja, não há

espaço para o diferente, para a subjetividade, para o “amar ser ogro”.

Na sociedade contemporânea, da qual Far Far Away é uma alegoria, não há

espaço para a originalidade de Shrek uma vez que vivemos sob a ditadura da moda em

que, segundo Goblot (apud Santos, 1987, p. 36, grifos dos autores),

[...] cada qual deve tornar-se semelhante aos outros. É preciso “fazer como todo mundo”; não devemos “nos fazer notar”. Pois fazer-se notar, não fazer como todo mundo, é se excluir do meio social ao qual se pertence. Ser “ ‘um original’ é ser uma pessoa isolada. O que a sociedade, em geral, e cada uma das sociedades restritas que a compõem perdoam menos é todo ato pelo qual um dos seus membros dela se separa.

O ogro, contudo, passa a fazer parte desse espetáculo ao ingerir a poção

mágica. No dia seguinte, Shrek acorda, em um celeiro, queixando-se de sua cabeça, e uma

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bela jovem camponesa traz-lhe um pouco de água em um balde. Ao estender as mãos

para pegar o recipiente, Shrek observa que algo está diferente, vê sua imagem refletida na

água e deixa o balde cair: “Um nariz bonito?” “Cabelo ondulado?” “Bundinha durinha?”

“Eu estou...” E a jovem completa: “Lindo!”

Com essa metamorfose, o ogro havia se tornado no modelo de príncipe do

receituário da fada: sarado, gostoso e de abdome desenhado, disputado pelas jovens que estavam

no celeiro. O Gato de Botas observa que para que a poção tenha efeito permanente é

preciso que ele beije a princesa Fiona à meia-noite. As jovens camponesas, numa atitude

antes impensável, oferecem-se para o “papel” de princesa, mas Shrek diz-lhes que já tem

um amor. O Gato concorda e afirma que Fiona ficará satisfeita com sua aparência.

O Burro, gozador, observa que por dentro ele continua o mesmo ogro

malvado, desagradável, fedorento, imundo e zangado de sempre. Em outras palavras, a

mudança ocorreu no nível da aparência, diferentemente do que aconteceu com a Fera e o

Sapo que se tornaram gentis e educados.

Antes de prosseguirmos em nossa análise, cabe abrir um parêntese acerca do

comportamento inovador das jovens camponesas/ princesas. Nos contos de fadas

tradicionais, ao escolher seu príncipe encantado, é comum a princesa destacar como

principal qualidade de seus pretendentes, a coragem: “Porque ele era o mais corajoso e o

mais belo de toda aquela terra”. As camponesas, contudo, subvertem uma tradição, pois

disputam o “novo” Shrek não por sua coragem, mas por causa de seus atributos físicos:

sarado e gostoso.

Tal atitude ratifica a animação, Shrek 2, como obra atualizadora dos contos de

fadas uma vez que apresenta as princesas-camponesas-mulheres despertas, ativas, com

desejos e admiração pelo corpo do parceiro. Vale destacar que Shrek já havia explorado

essa questão ao colocar a princesa Fiona lutando contra (e derrotando) o bando de

Robbin Hood sem a ajuda de um bravo cavaleiro; Shrek, passivo, assiste à surra, quer

dizer, à luta. É compreensível que a coragem não seja um atributo do ogro, uma vez que

Shrek representa o anti-herói moderno e aquela é uma característica do herói clássico/

épico.

Retomando a observação do Gato de Botas, Shrek, sintonizado, ao menos na

aparência, com os valores da sociedade capitalista, retorna a Far Far Away. A recepção,

contudo, em nada se parece com a que ele e Fiona tiveram antes, quando se apresentaram

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com sua forma ogra. Montado em um belo cavalo branco, com roupas finas e aparência

elegante, o “príncipe” Shrek atrai os olhares de todos: as mulheres suspiram à sua

passagem, e os aldeões, sisudos e armados com ferramentas de trabalho, sorriem e

retribuem o tímido aceno do ogro que estava receoso da recepção que teria. Ao constatar

que agora é “aceito”, ou seja, ele não está mais tão distante dos valores daquele reino,

Shrek parte a galope ao encontro de Fiona.

Com a transformação, o lugar de Shrek, e conseqüentemente de Fiona, não é

mais o pântano, e sim, o reino Tão Tão Distante. Nesse sentido, convém registrar a

análise que Mayer (1994) faz acerca da ambientação:

O lugar é aquele onde o indivíduo se encontra ambientado, no qual está integrado. Ele faz parte do seu mundo, dos seus sentimentos e afeições e é o “Centro de significância ou um foco de ação emocional do homem”. O lugar não é toda e qualquer localidade, mas aquela que tem significância afetiva para uma pessoa ou grupo de pessoas (p. 94, grifo do autor).

De certa forma, o reino Tão Tão Distante tem significância para Shrek, uma

vez que ele julgava ser aquele o lar de sua amada e, para vê-la feliz, procura adequar-se à

nova realidade. Sua transformação, porém, não surte o efeito desejado, pois, ao chegar ao

castelo, os ex-ogros se desencontram, e como Fiona desconhecesse a forma humana de

Shrek, confunde-o com Encantado51, o príncipe que deveria salvá-la.

Do quarto de Fiona, impedido de sair pela fada, Shrek vê Fiona sendo

abraçada por outro homem. A fada zomba de seu desespero e lhe diz que ele já

atrapalhou bastante a vida de Fiona, mas que agora “ela achou o príncipe dos sonhos”.

Além disso, a fada diz que é hora de ele parar de viver num conto de fadas, pois Fiona é

uma princesa, e ele é um ogro e que nenhuma poção poderá mudar isso.

Na verdade, Shrek continuava distante daquele cenário de lojas caras, carros

luxuosos e mansões magníficas. Como havia alertado o Burro, ele ainda era o mesmo por

dentro, permanecendo, assim, um estrangeiro na sociedade do espetáculo. Deprimido, o

ogro dirige-se à taberna “The Poison Apple”52, lugar reles onde os seres anômalos dos

contos de fadas, como os ciclopes53, o capitão Gancho e a irmã Feia trabalham.

Enquanto a Irmã Feia tecia comentário à beleza do Príncipe Encantado, Shrek

e seus amigos percebem que o rei Harold entra na taberna disfarçado e dirige-se a uma

51 Encantado é filho da Fada Madrinha. 52 Maçã envenenada (Tradução nossa). 53 Na mitologia grega, gigante com um só olho na testa Cf. FERREIRA, A., 2001, p. 161.

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sala onde estão a fada e o seu filho. O rei sugere que desistam de fazer com que Fiona se

apaixone pelo príncipe, pois diz que não se pode forçar uma pessoa a isso. A fada

discorda, alegando que faz isso sempre, e entrega ao rei uma nova poção mágica que deve

ser dada a Fiona. Este, contudo, recusa, e a fada, ameaçadora, lembra-lhe que o ajudou

com o “seu feliz para sempre” e que pode desfazer o encanto facilmente. O rei esmorece

e desiste de enfrentar a fada.

Acerca desse episódio, convém observar que o esmorecimento dá-se porque,

inicialmente, o rei Harold é o ex-sapo da história “A Princesa e o Sapo”; em um segundo

momento, porque ele era um prisioneiro da Indústria Cultural. Nossa assertiva confirma-

se a partir da mise-en-scène54 do seu quarto, em que o tom verde é predominante nos

quadros, cortinas e roupas de cama. Ademais, a inserção desse personagem (também

verde) parece-nos um indício de quão semelhantes são sogro e ogro. Segundo, porque ele

(o rei) não é livre para tomar suas decisões; caso insista, será punido com a exclusão da

sociedade do espetáculo.

A ameaça que a fada faz ao rei Harold está em consonância com o que diz

Adorno e Horkheimer:

Sob o monopólio privado da cultura “a tirania deixa o corpo livre e vai direto à alma. O mestre não diz mais: você pensará como eu ou morrerá. Ele diz: você é livre de não pensar como eu: sua vida, seus bens, tudo você há de conservar, mas de hoje em diante você será um estrangeiro entre nós” (p. 125).

No final da animação, contudo, numa atitude de desalienação55, o rei impede

que Shrek seja destruído pela fada, recebendo o feitiço destinado àquele, e transforma-se

no sapo (-rei) de outrora. Segundo Santos (1987), a desalienação é o antídoto para o

homem ‘manietado’56 e que teve os olhos ‘fechados para a essência das coisas’ [grifos

nossos]. Convém registrar o pensamento do autor:

[...] nenhum ser humano se contenta com a simples aparência. A busca da essência é a sua contradição fundamental, num movimento sem-fim que inclui o sujeito em um processo dialético e o restitui a si mesmo. Aí a aparência dilui sua feição claro-escura, e nesse processo sofrido, porque atinge a profundidade do ser, a essência do homem se revigora. Quando a aparência se dissolve, é a essência que começa a se impor à sensibilidade. Essa mutação é reveladora porque permite abandonar o mundo do fenômeno e abordar o universo das significações. É assim que renasce o homem livre (p. 53-54).

54 “Apesar da flutuação em sua definição, a noção de “mise-en-scène” guarda o vestígio do valor espacial da cena Cf. AUMOT, 2003, p. 45 55 Expressão utilizada por Milton Santos em sua obra O espaço do cidadão. 56 Privado da liberdade, constrangido, subjugado. Maniatar ou manietar Cf. FERREIRA, A., p. 476.

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É compreensível que o rei, acuado pela fada, retrocedesse, uma vez que não

desejava voltar a ter a condição estrangeira de seu genro e filha. A condição anômala de

Shrek diante do universo de Far Far Away não se restringe à questão da beleza física; na

verdade, ela representa a luta de classes na sociedade contemporânea. Para Chauí (1995),

“A luta de classes é o quotidiano da sociedade civil. Está na política salarial, sanitária e

educacional, está na propaganda e no consumo [...]” (p. 76). De acordo com a autora de O

que é ideologia,

(um apartamento estilo “mediterrâneo” vale um “modo de viver”, um cigarro vale “um estilo de vida”, um automóvel zero km. vale “um jeito de viver”, uma bebida vale “a alegria de viver”, uma calça vale “uma vida jovem”, etc., etc.) (p. 57).

Nesse sentido, reconhecemos não só os comentários do rei Harold e da fada --

esta disse que ajudaria Fiona a “achar uma nova tendência de moda”, aquele fez um

comentário mordaz ao saber onde Shrek morava: “Um ogro do pântano. Que original!”--,

mas também o estilo de vida e as condições de trabalho de Far Far Away como

características da sociedade capitalista.

Nossa assertiva pode ser comprovada quando observamos a coexistência de

realidades díspares no reino:

1 - enquanto a carruagem-cebola que conduzia o casal de ogros e o Burro ao

castelo real aguardava num cruzamento de Tão Tão Distante, um flanelinha limpava uma

das ancas do cavalo que puxava o veículo.

2 – uma carruagem-limusine cruza a avenida na frente da carruagem cebola, e

em uma outra avenida passa, puxada por cerca de oito cavalos, uma carruagem-ferrari.

Essa descrição, a nosso ver, é relevante, uma vez que ilustra o mundo do

consumo. Para Pankow (1988, p. 42), este mundo é uma “variante contemporânea do

mundo do ter”.

Além do mais, no momento em que a carruagem-cebola entra na avenida

principal em direção ao castelo real, um narrador em voz-over57 anuncia “Piscinas! Estrelas

de cinema”, e a câmera focaliza primeiro o castelo/mansão da princesa/atriz Cinderela,

em seguida o nome do reino nas montanhas. Vale ressaltar que, embora o cenário e o

letreiro de Far Far Away nos lembrem Hollywood, a paródia aos elementos inseridos no

57 (...) a voz-over com freqüência, apenas inicia a estória e é subseqüentemente substituída pelo diálogo sincrônico, permitindo à diegese “falar por si mesma”. Cf. DOANE, 1983, p. 466.

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espaço social de Shrek 2 promove a reflexão crítica acerca da homogeneização da cultura

na formação do modo de vida contemporâneo, não necessariamente da Meca do Cinema.

Embora todo o reino estivesse em festa e o porta-voz do rei anunciasse “a tão

aguardada volta da bela [grifo nosso] Princesa Fiona e seu novo marido”, a recepção deixa

de ser calorosa quando os noivos saem da carruagem. Todos silenciam e recuam o tórax,

sincronicamente, assustados com sua aparência; nem mesmo uma das pombas, que havia

sido solta na chegada dos recém-casados, fica indiferente: assustada, bate na parede do

castelo e cai desmaiada (ou será que já morta?) aos pés do casal real.

Em seguida, ouve-se um choro de criança. Shrek pega a mão de Fiona e,

enquanto se dirigem aos sogros, indaga: “Ainda... acha isso uma boa idéia?” O rei, sem

reconhecer a própria filha, pergunta à rainha quem são aquelas pessoas. A rainha

responde que é a “pequenina” deles, numa referência à filha Fiona. E o rei responde:

“Não tem nada de pequeno! O problema é grande! Não beijou o Príncipe para quebrar o

encanto?”

Vendo que o casal de ogros se aproximava cada vez mais, o rei propõe fingir

que não estão em casa; Shrek, por sua vez, sugere a Fiona irem embora enquanto eles não

acendem as tochas. Fiona afirma que são seus pais, mas Shrek lembra-lhe que eles a

trancaram na torre, e ela diz que foi para seu próprio bem.

A idéia de trancafiar Fiona numa torre de difícil acesso, guardada por um

dragão feroz, assemelha-se ao enredo de outras narrativas, em que o pai entrega sua filha

ao noivo animalesco – que é a própria fera – certo de que este se transformará “num

jovem radiante, um amante perfeito” (WARNER, p. 314). A diferença neste moderno

conto de fadas é que a princesa Fiona não se transforma numa jovem radiante, bela e

perfeita, e o seu “príncipe”, na verdade, é um ogro.

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Além disso, a torre muito alta, assim como o pântano, a taberna “Maçã

Envenenada”, o buraco negro e o mato escuro representam os lugares onde estão

encerrados os seres anômalos e que lá devem permanecer. Sair desses “guetos”, antes que

haja alguma mudança, significa ameaçar a ordem estabelecida.

Em outras palavras, houvesse Fiona beijado o Príncipe Encantado, e Shrek

permanecido encerrado no pântano com os demais personagens anômalos de contos

fadas (vale ressaltar que não fazem parte desse grupo as belas: Adormecida, Cinderela e

Rapunzel), dificilmente o reino se chamaria Tão Tão Distante; ademais, esse reino faz eco

à significação do vocábulo “espaço”. De acordo com Santos, o “espaço é, na linguagem

filosófica, sinônimo de objetificação, coisificação, reificação [...]” (p. 60).

Nesse sentido, Far Far Away é o palco onde os sujeitos são reduzidos a valores

de coisas. O autor também chama a nossa atenção para o fato de que o valor de cada

homem “depende de sua localização no território” (p. 81). O “valor” de Shrek

corresponde ao valor que o rei Harold dá ao pântano: “Um ogro do pântano. Que

original!”

No início deste subcapítulo, observamos que, segundo Turner, é possível

inferir ligações entre um filme e os fatos contemporâneos. Paulo Emílio Gomes (apud

Lopes, 2000, p. 67), afirma que “Qualquer filme exprime, ao seu jeito, muito do tempo

em que foi realizado”. Essas assertivas, de certo modo, respaldam a análise que

procuramos fazer acerca do espaço social do texto fílmico Shrek 2, pois acreditamos que

Far Far Away revela muito da sociedade contemporânea em que vivemos.

Procuramos, também, seguir o que preceitua Lins (1976, p. 92):

Não deve o estudioso do espaço, na obra de ficção, ater-se apenas à sua visualidade, mas observar em que proporção os demais sentidos interferem. Quaisquer que sejam os seus limites, um lugar tende a adquirir em nosso espírito mais corpo na medida em que evoca sensações. Jean-Pierre Richard, estudando a presença do mundo exterior na obra de Chateaubriand, registra a freqüência dos latidos de cão no silêncio noturno, os gritos de pássaros, os murmúrios, observando ainda como o som do canhão de um navio que ergue as velas vem “redobrar intelectualmente o imediato poder sugestivo, e expansivo, do impacto”.58

Longe de esgotar nossa análise, mas a fim de justificar o número (significativo)

de parágrafos que dispensamos à fada, uma vez que nosso objeto de estudo é o espaço,

buscamos - como recomenda o autor de Lisbela e o Prisioneiro – não nos ater apenas ao

58 Grifo de Jean-Pierre Richard, destacado em nota de rodapé. Cf. LINS, 1976, p. 92

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espaço da narrativa, uma vez que constamos como o “receituário” da fada duplica a idéia

de que Shrek e Fiona estão distantes da tríade da sociedade contemporânea, representada

no cenário de Far Far Away por mansões magníficas, lojas caras e carros luxuosos.

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4 - De Shrek! a Shrek 2: um “reino” não tão distante

Diferentemente de Cinderella (dir. Wilfred Jackson, Clyde Geronimi e Hamilton

Luske), A Bela Adormecida (dir. Clyde Geronimi), A Bela e a Fera (dir. Gary Trousdale e

Kirk Wise), que mantiveram os mesmos títulos, tema, fábula, contexto sócio-cultural,

aspectos estético-ideológicos dos textos literários adaptados, Shrek 2 é mais que a

transposição de um texto literário para a linguagem do audiovisual.

A adaptação é uma ampliação do conto Shrek!, uma vez que retoma a narrativa

de onde William Steig havia parado: “E viveram horríveis para sempre, apavorando todos

os que tinham o azar de encontrá-los”. A retomada de Shrek 2, desse ponto em que

muitas narrativas são concluídas, reverbera o que diz Benjamin (1980, p. 68) sobre o fato

de não haver “narrativa alguma em que a pergunta: como continuou? pudesse perder o

seu direito”.

É preciso entender a ampliação não apenas no sentido de inserção de novos

personagens e de um novo espaço social à narrativa, mas, principalmente, como

discussões que a adaptação suscita. A fim de analisar como se dá a transposição de Shrek!,

propomos cotejar os elementos da narrativa comuns à literatura e ao cinema, com ênfase

ao espaço social e à relação de conflito que ele mantém com o personagem.

Antes de iniciarmos o cotejo entre os textos, convém fazer uma distinção

entre os termos “análise” e “interpretação” a fim de que possamos compreender como se

dá esse processo. Segundo Ferreira, A. (2001, p. 48), enquanto a análise é o “exame de

cada parte de um todo, para conhecer-lhe a natureza, as funções, etc.”, o ato de

interpretar busca “Explicar ou declarar o sentido de (texto, lei, etc.)” (p. 427).

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Sobre o cientificismo do processo analítico e o sentido da interpretação, Reis

(1976, p 36-38) afirma que enquanto

a análise se concebe, [...] como operação em certo sentido sistemática porque orientada por regras definidas em sintonia com a metodologia crítica eleita, a interpretação é essencialmente hermenêutica; como tal, procura, em última análise, concretizar uma penetração que se propõe ultrapassar a mera verificação dos elementos constitutivos do texto literário e revelar o sentido que esses elementos (assim como o sistema de relações entre eles estabelecidas) sustentam.

A título de exemplicação, em “Sobre ogros, cebolas e adaptações”, analisamos

a cena em que, no conto, o Relâmpago e o Trovão querem dar uma “lição” no

personagem Shrek por julgá-lo nojento, e a cena equivalente na animação, quando o ogro

diz ao Burro que “os ogros são bem melhores do que as pessoas acham” e que eles “são

como cebolas”: não nos limitamos a descrever as cenas, buscamos, antes, descobrir que

sentido a metáfora da cebola produzia no texto adaptado.

Convém observar, contudo, que Shrek 2 é um desenho animado em 3D, fato

que o aproxima dos filmes feitos “com pessoas reais”, permitindo-nos, portanto,

empregar o mesmo jargão técnico da filmagem (cena, mise-en-scène, plongée, câmera

subjetiva, etc.). Ademais, Cunha, R. (op. cit., p. 66) afirma que “ao se comentar um filme,

não é comum se referir ao plano tal, e sim, intuitivamente, à cena tal, até em razão de o

termo ter sido consagrado pela dramaturgia.”

Visando a uma melhor compreensão, por parte do leitor, propomos abrir um

parêntese sobre os desenhos animados de uma forma geral, e a adaptação Shrek 2. Em

“Alice no país das maravilhas e Peter Pan: imagens amadas de um desenho social”,

Almeida (1994, p. 84-85) tece considerações sobre a linguagem cinematográfica entre um

filme “produzido com pessoas em locais existentes” e a reprodução de um plano em duas

dimensões no desenho animado.

Segundo Almeida,

Não só por economia técnica mas também por decisões de estilo, o desenho animado vai apresentar somente os traços considerados mais importantes para reproduzir o que mais interessa expressivamente. Por exemplo, um rosto que ri, na realidade retorce-se inteiramente, inúmeros músculos alteram a máscara facial, a ponto de um riso poder ser triste, escancarado, nervoso, sarcástico, e assim por diante. Esse rosto num desenho animado vai aparecer somente com um ou dois traços característicos, aqueles mais facilmente entendidos pelo espectador [...] (p. 86-87)

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O autor afirma ainda que, num filme com pessoas reais, a câmera pegaria

todos os detalhes de uma determinada cena de forma indiferenciada; mas, em uma

animação, serão relacionados apenas aqueles “que forem considerados importantes para a

cena do desenho de acordo com escolhas de estilo e possibilidades técnicas” (p. 86).

Contrariando o pensamento de Almeida, em 2001, a DreamWorks lançou em

3D, Shrek. Acerca da técnica, Jeffrey Katzenberg, produtor da animação, observa que

“Este foi somente o quarto filme já feito com essa técnica, e para algo ainda em sua

infância, o tipo de progresso que ocorre do dia para noite é algo de tirar o fôlego”59.

Dentre os vários avanços, podemos citar a criação de ambientes ricos e orgânicos, o

vestuário que se move, enruga e reage à luz como um tecido na vida real.60

Para Simon J. Smith (Head of layout)61, o que se aprende sobre filmagens em 3D

“[...] é que você precisa imitar todas as grandes técnicas cinematográficas que já foram

usadas anteriormente em filmes de ação ao vivo”; além do mais, no filme em 3D, “o céu é

o limite para a câmera” e foi preciso que os produtores abdicassem de ângulos

impossíveis, a fim de manter a naturalidade de Shrek.

A título de exemplo, Bob Whitehill (Layout Artist)62 explica que, em uma cena

de ação ao vivo, tentou imitar uma “steady-cam” (câmera parada) para captar a cena em

que o Burro e Shrek cruzam a ponte cambaleante, até o castelo do dragão, para salvar

Fiona. O objetivo era que o espectador percebesse que ele podia estar ali. “Esse é o ponto

de vista da câmera, e dá a impressão de que a ponte é muito mais do que é, que ela sacode

e balança muito mais do que está.”

Sobre outros efeitos criados, como o vento, a poeira, a fumaça e o fogo,

Andrew Adamson, diretor de Shrek e Shrek 2, afirma que eles “adicionam riqueza e

realidade ao nosso mundo, o que é valioso quando se tenta criar essa ilusão de vida”.

Essas considerações, além de enfatizarem a aproximação entre as técnicas utilizadas em

3D e aquelas de filmes “com pessoas reais”, permitem-nos empregar as expressões: plano,

cena, mise-en-scène, plongée, câmera subjetiva, dentre outras, na análise do texto fílmico Shrek

59 As informações aqui colocadas sobre a técnica de Shrek são transcritas do “Special Features” (Recursos Especiais) do DVD, uma vez que não tivemos acesso ao Roteiro. Acreditamos não haver um roteiro da animação, no sentido cinematográfico da palavra. As várias seqüências do filme foram feitas a partir de storyboards criadas por diferentes desenhistas, o que ratifica a nossa assertiva. 60 Essas informações são dadas por Leo Laporte, narrador do “Special Features”. 61 Responsável pelo “layout”; aquele que está à frente da equipe do “layout”. 62 Artista/ profissional que trabalha com “layout”.

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2. Discutidas essas questões, retomamos o cotejo entre os textos literário e fílmico,

objetos de nosso estudo.

Quando se fala nos elementos constituintes do texto literário, é comum se

destacar a figura do narrador. No conto Shrek!, o foco narrativo é em terceira pessoa,

narrador heterodiegético, que ao longo de 32 páginas conta a história de um ogro verde

horrendo. O narrador limita-se a contar, exceto por raras intromissões:

Por onde quer que o Shrek passasse, todas as criaturas fugiam. Como é que ele podia gostar de ser tão repulsivo?

“Eles todos são eu!”, admirou-se. “TODOS SÃO EU!” Olhou-se nos espelhos, cheio de uma raivosa auto-estima, feliz por ser exatamente como sempre tinha sido.

O narrador heterodiegético é uma entidade que, geralmente, se enuncia na 3ª

pessoa e faz parte do universo extra-diegético63. Contudo, essa caracterização não o

impede de realizar intrusões, por exemplo, ao afirmar que o ogro sente-se feliz por ser

exatamente como sempre tinha sido. Segundo Reis e Lopes (1988, p. 123), a objetividade

narrativa é inatingível; sendo assim, “o narrador heterodiegético protagoniza, de modo mais ou

menos visível, intrusões [...] que traduzem juízos específicos sobre os eventos narrados”.

Na animação, o que há é uma voz-off 64 que, numa gradação, narra a cena

inicial do anti-conto Shrek 2, à moda dos contos de fadas tradicionais. O Príncipe

Encantado é o dono dessa voz, e a paródia ao “Era uma vez ...” já assinala uma das

primeiras intervenções do texto fílmico, uma vez que o texto literário não apresenta tal

abertura. Na animação, a “tarefa” de mostrar/contar a cena seguinte, seqüência da lua-de-

mel, é delegada ao narrador cinemático.

63 De acordo com Genette (apud REIS, Carlos & LOPES, Ana Cristina M. 1988, p.27), diegese é “o universo do significado, o “mundo possível” que enquadra, valida e confere inteligibilidade à história” (Grifos do autor). 64 A voz-off “refere-se a momentos nos quais ouvimos a voz de um personagem o qual não é visível no quadro” (Cf. DOANE, 1983, p. 462).

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Acerca de tell/show (contar e mostrar), Chatman (1993, p. 112) faz a seguinte

distinção:

In “told” narratives, such as epics and most novels, the narrating function is assigned to a set of signifiers that are “arbitrary”, unanalogous to the actions, characters, or settings they signify. In “shown” stories, such as narrative films, both characters and actions tend to be represented in an iconic or “motivated” fashion. For example, the reader of Joseph Conrad’s Outcast of the Islands can find little in the names “Willems” or “Lingard” or, indeed, in the descriptive epithets applied to them by narrator to form a precise mental image in Carol Reed’s film version of the novel.65

O papel da câmera não se restringe a mostrar as cenas; a câmera também narra

(tell). Para Xavier (2003, p. 74), a câmera “tem prerrogativas de um narrador que faz

escolhas ao dar conta de algo: define o ângulo, a distância e as modalidades do olhar [...]

dizer que um filme “mostra” imagens é dizer pouco e muitas vezes elidir o principal”.

Brait (2004, p. 56) compara a câmera a um narrador em terceira pessoa que “simula um

registro contínuo, focalizando a personagem nos momentos precisos que interessam ao

andamento da história e à materialização dos seres que a vivem”.

Acerca desse narrador cinemático, Chatman (op. cit., p. 134) chama a atenção

para o fato de o mesmo não ser confundido com a narrativa em voz-over66.

The cinematic narrator is not to be identified with the voice-over narrator. A voice-over may be one component of the total showing, one of the cinematic narrator's devices, but a voice-over narrator's contribution is almost always transitory; rarely does he or she dominate a film the way a literary narrator dominates a novel - that is, by informing every single unit of semiotic representation.67

65 “Em narrativas “contadas”, tais como épicas e a maioria dos romances, a função narrativa é atribuída a um conjunto dos indicadores que são “arbitrários”, que não são análogos às ações, aos personagens, ou aos cenários que eles significam. Em histórias “mostradas”, tais como filmes narrativos, ambos os personagens e as ações tendem a ser representados de forma icônica ou “motivada”. Por exemplo, o leitor de Outcast of the Islands de Joseph Conrad pode encontrar pouco sentido nos nomes “Willems” ou “Lingard” ou, certamente, nos epítetos descritivos aplicados a eles pelo narrador para compor uma imagem mental precisa do romance na versão fílmica de Carol Reed.” (Tradução nossa) 66 Ao contrário da voz-off, a voz-over é descorporalizada, ou seja, não pertence à diegese; dessa maneira, não pode ser “localizável, por não ser escrava de um corpo” Cf. DOANE, 1983, p. 466. 67 O narrator cinemático não deve ser identificado com a narração em voz-over. A voz-over pode ser um componente da exibição total, um dos recursos do narrator cinemático, mas, a contribuição da voz-over do narrador é quase sempre transitória; raramente ele ou ela domina um filme do mesmo modo que um narrator literário domina um romance – ou seja, de modo a informar cada unidade de representação semiótica. (Tradução nossa)

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Nesse sentido, observamos que “E viveram horríveis para sempre, apavorando

todos os que tinham o azar de encontrá-los” do conto Shrek! é traduzido para Shrek 2,

através do narrador cinemático que, sem o recurso da voz-over, conta-nos, em um clipe –

cujo fundo musical era uma canção romântica --, como foi a lua-de-mel do casal de ogros.

No clipe, além do prazer visual, ao flagrar o rosto aterrorizado de Chapeuzinho Vermelho

que foge, ao ser recebida por Shrek e Fiona -- esquecendo sua cesta com um par de coxas

de frango assadas que seria, mais tarde, saboreado pelos ogros --, a câmera estabelece um

vínculo entre Shrek! e Shrek 2.

Personagens como Chapeuzinho Vermelho, Lobo Mau, Três Porquinhos,

Pinóquio, dentre outros, presentes em Shrek e Shrek 2, são homenagens aos contos de

fadas tradicionais. Outras formas de homenagens são as citações de longas-metragens

como Missão Impossível 2 (2000, de John Woo), O Senhor dos Anéis: A sociedade do anel (2001,

de Peter Jackson), Homem Aranha (2002, de Sam Raimi), só para citar alguns. Essas são

intervenções não encontradas no texto literário. Por outro lado, há personagens comuns

aos textos literário e fílmico cuja transposição sofre dilatações, que ampliam os

significados do moderno conto de fadas Shrek!, de William Steig.

No conto, as personagens, por ordem de aparição, são Shrek e seus pais, uma

bruxa, um lavrador, as criaturas (homens, mulheres, crianças e animais), o Trovão, a

Chuva e o Relâmpago, o dragão, o burro, o cavaleiro biruta, e a princesa horrorosa. O

personagem “burro”, animal de carga (jerico, jegue, jumento), imbecil, curto de

inteligência (acrítico) ganha espaço no texto fílmico e transforma-se no “Burro” falante,

espécie de “fiel escudeiro” do ogro. Quanto à bruxa e aos pais de Shrek, não há quaisquer

referências a eles na animação. Por outro lado, a princesa “horrorosa e bem nascida” --

características observadas pelo cavaleiro biruta --, na animação, recebe o nome de Fiona,

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cujo significado em inglês antigo é “branca”68. Tal significado, a nosso ver, além de

corresponder à locução adjetiva “bem nascida”, é uma paródia à cor da pele das princesas

dos contos de fadas tradicionais, com destaque para Branca de Neve.

Diferentemente do conto, em que o dragão habitava o bosque e foi derrotado

por uma das “pestilentas chamas azuis” de Shrek, na animação69 o dragão-fêmea que

guarda o castelo apaixona-se pelo Burro. Quanto aos personagens, lavrador e criaturas

que no texto literário fogem do ogro, na animação, embora assustados, tentam capturar

Shrek em troca de uma recompensa. O Trovão, a Chuva e o Relâmpago, por sua vez, não

são transpostos para a tela.

As intervenções que sofreram esses personagens, no processo de transposição

do conto ao filme, estendem-se também ao protagonista da história, Shrek. A auto-estima

elevada do ogro-herói, personagem literária, é abalada por causa de um “mal entendido”:

o ogro ouviu uma conversa entre o Burro e a princesa, e esta dizia-lhe que “Princesa e

feiúra não combinam”. Fiona falava da própria feiúra, pois o Burro havia descoberto que,

ao entardecer, a princesa se transformava numa ogra. Tentando acalmá-la, disse-lhe que,

embora fosse muito feia, ela só era uma ogra à noite; já Shrek era feio o dia inteiro. A

princesa, inconformada, questiona: “Mas Burro, eu sou uma princesa, e não é assim que

uma princesa deve ser?”

Então, o Burro sugere que ela não se case com o Lord Farquaad; mas ela

contesta: “Só o beijo do meu verdadeiro amor quebrará o encanto”. O Burro insiste,

lembrando-lhe que é “meio ogro” e que ela e Shrek têm “muito em comum”. Surpresa,

Fiona indaga: “Shrek?” Essa cena intercala-se com outra em que Shrek vai ao encontro da

princesa, levando-lhe um girassol, e “ensaia” o que vai lhe dizer: “Achei esta flor e pensei

em você porque ela é bonita e, bem... Não gostei muito, mas achei que gostaria, porque

você é bonita. Mas gosto de você assim mesmo [...]”.

Ao se aproximar da porta da cabana, Shrek ouve o que Fiona dizia ao Burro:

“Quem amaria uma fera tão medonha e feia? Princesa e Feiúra não combinam. Não

posso ficar com o Shrek. A única chance de ser feliz é casando com meu verdadeiro

amor. Está vendo, Burro? É assim que tem que ser.” Shrek, triste, deixa cair a flor e

afasta-se da cabana, sem ouvir o que Fiona diz em seguida: “O encanto deve ser

68 Cf. http://www.mingaudigital.com.br/article.php3?id_article=526. 69 Trata-se do filme Shrek (2001).

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quebrado.” E o Burro lhe diz: “Conte a verdade para o Shrek.” A intercalação dessas

cenas é importante, uma vez que ilustra a “personagem como reflexo da pessoa humana”

(BRAIT, 2004, p. 23), e alguém que está em conflito com o mundo do conformismo e das

convenções.

Embora amasse ser ogro e gostasse de Fiona mesmo ela sendo bonita, Shrek

percebe que, no mundo das convenções, Princesa e feiúra não combinam. Essa situação se

exarceba em Shrek 2 quando, já casados, Shrek e Fiona chegam a Far Far Away e têm uma

recepção nada calorosa por parte do rei Harold (pai de Fiona), dos seus súditos e,

principalmente, da Fada Madrinha: “Ogros não vivem felizes para sempre.”

A auto-confiança do ogro, no conto -- “Eles todos são eu!” --, é minada pelo

mundo de Fiona, principalmente, em Shrek 2, o que o leva a adequar-se às convenções,

beber da fórmula “Felizes para sempre” a fim de obter felicidade, bem-estar e beleza

divina. A poção mágica dá a Shrek um nariz bonito, cabelo ondulado e bunda durinha, o

que o faz sentir-se “lindo”. Na Sala dos Espelhos do conto, o ogro está “feliz por ser

exatamente como sempre tinha sido; no filme, ao ver sua imagem refletida em um balde

de água, Shrek fica feliz por não ser mais um ogro. Tal intervenção por parte dos

adaptadores aproxima cada vez mais o anti-herói Shrek de Steig, do herói problemático de

Lukács. Segundo o autor de A teoria do romance (2000, p. 82),

O processo segundo o qual foi concebida a forma interna do romance é a peregrinação do indivíduo problemático rumo a si mesmo, o caminho desde o opaco cativeiro na realidade simplesmente existente, em si heterogênea e vazia de sentido para o indivíduo, rumo ao claro autoconhecimento. Depois da conquista desse autoconhecimento, o ideal encontrado irradia-se como sentido vital na imanência da vida, mas a discrepância entre ser e dever-ser não é superada, e tampouco poderá sê-lo na esfera em que tal se desenrola, a esfera vital do romance; só é possível alcançar um máximo de aproximação, uma profunda e intensa iluminação do homem pelo sentido de sua vida.

Sobre “A Personagem do Romance”, Candido (2005, p. 53) afirma que há o

pensamento simultâneo enredo-personagens-vida-problemas. Estes se “enredam, na

linha do seu destino – traçada conforme uma certa duração temporal, referida a

determinadas condições de ambiente.” Rosenfeld (op. cit., p. 45), por sua vez, compara o

papel das personagens ao dos seres humanos, e como estes “encontram-se integrados

num tecido de valores de ordem cognoscitiva, religiosa, moral, político-social, e tomam

determinadas atitudes em face desses valores.”

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A atitude de Shrek é influenciada pelo espaço social onde ocorre a narrativa

fílmica, o reino de Tão Tão Distante. Martin (2003, p. 211) observa que “o cinema é

sobretudo um meio magistral para nos fazer defrontar com espaços dramáticos”. Em

Como analisar narrativas, Gancho (2003, p. 23-25) argumenta que o espaço influencia

atitudes, pensamentos e emoções dos personagens; ademais, há casos em que o espaço se

opõe aos personagens e estabelece com eles um conflito. Para Betton (1987), “o cenário é

freqüentemente mais um protagonista do que um simples ambiente sem outra implicação

além de sua própria materialidade” (p. 52).

Tanto em Shrek!, mas, principalmente, em Shrek 2, o espaço é “o móvel, o

fulcro, a fonte da ação”, para usarmos uma expressão de Lins (1976, p. 67). Na narrativa

literária, o caminho percorrido por Shrek até chegar ao castelo maluco revela guetos como

o buraco negro e o mato escuro, espaços habitados por um ogro e uma bruxa,

respectivamente. Na narrativa fílmica, esses lugares sombrios são representados através

do pântano e da taberna “The Poison Apple”. O primeiro é a casa dos ogros; o segundo é

um ambiente freqüentado por seres anômalos, como o Ciclope, o Capitão Gancho, o

Cavaleiro Sem Cabeça, o Gato de Botas -- espécie de matador profissional contratado

pelo pai de Fiona para “acabar” com Shrek --, dentre outros.

Por outro lado, o campo florido, espaço belo e (aparentemente) harmônico,

tem como transposição correspondente o reino de Tão Tão Distante. A criação desses

espaços e a transposição recriada dos mesmos não é gratuita, pois o ser necessita de um

estar. “[...] quando concebemos um determinado ente – seja humano ou não, animado ou

inanimado --, criamos uma série de referências com as quais ele se relaciona de algum

modo. Ou seja: imaginamos uma forma de situá-lo, atribuímos ao ser um certo estar”

(Santos e Oliveira, op. cit., p. 67).

Segundo Santos e Oliveira, “o ser é porque se relaciona, a personagem existe

porque ocupa espaços na narrativa.” (p. 68). Os autores observam ainda que percebemos

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a individualidade do personagem à medida que ele contrasta “com aquilo que se diferencia

dele” (p. 68). Essa assertiva corrobora a idéia de individualidade de Shrek; além do mais,

está claro o contraste do ogro com o campo florido e Far Far Away, espaços sociais do

conto e do filme, respectivamente.

Acerca dos valores espaciais, Santos e Oliveira chamam-nos a atenção para o

fato de que “Quando falamos de espaço na análise de uma narrativa literária, pensamos,

imediatamente, no espaço físico por onde as personagens circulam” (p. 68); observam

também que “é impossível dissociar, do espaço físico, o modo como ele é percebido”(p.

69). Nesse sentido, buscamos ampliar a análise do espaço, no conto e no filme, para além

do “componente físico – paisagens, interiores, decorações objetos etc.”, ou seja, como

lugar de “configurações sociais” (p. 79).

Por configurações sociais, entendemos o estilo de vida de Far Far Away, que é

apregoado por uma voz-over, tanto na chegada de Shrek, Fiona e do Burro ao reino Tão

Tão Distante: “Piscinas! Estrelas de cinema”, como na voz do espelho-mágico-locutor

que anuncia o baile real: “Abdomes fabulosos e glúteos que são o máximo aqui no Baile

Real de Tão Tão Distante!” “Carruagens fazem fila para as celebridades descerem... Todos

os famosos vieram...”. Outros exemplos de configurações sociais, a nosso ver, dizem

respeito ao “receituário”70 da Fada Madrinha e à poção mágica do “Felizes para sempre”.

Esse estilo de vida é ratificado por imagens de carruagem-limusine e

carruagem-ferrari que circulam pelas ruas de Tão Tão Distante; um outdoor que exibe a

Fada Madrinha, em uma roupa sensual, e a frase: “Venha viver feliz para sempre”; pela

70 Discutimos a relevância do “receituário” da Fada Madrinha, no item 3.2 “Far Far Away: uma alegoria da sociedade contemporânea”.

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paródia a lojas de grife famosas como a Versace, e aos castelos/mansões das Estrelas-

atrizes-princesas dos contos de fadas.

Sobre o fato de a câmera mostrar as lojas de grife e o outdoor da Fada

Madrinha, Michael Andrews, editor de Shrek 2, observa que os críticos disseram tratar-se

de “merchandising”. Segundo Aron Warner, produtor de Shrek e Shrek 2, a idéia não era

fazer propaganda, “mas sim mostrar como tudo se tornou homogeneizado” e que “Todos

os lugares com dinheiro hoje em dia têm uma similaridade”. Michael Andrews corrobora

a assertiva de Aron e afirma:

Todas as sementes que plantamos, ao longo do filme, desde o diário até a seqüência do jantar, são para fazer o Shrek pensar: “De repente eu não pertenço aqui71.

Bowen (apud Stevick, 1967, p. 314) argumenta que “Scene is only justified in

the novel where it can be shown, or at least felt, to act upon action or character. In fact,

where it has dramatic use.”72 Nesse sentido, os elementos “plantados” no espaço social da

narrativa fílmica, como carruagem-limusine e celebridades que, provavelmente, possuem

abdomes fabulosos, correspondem à tríade de Far Far Away: dinheiro, fama e beleza, que

não estão distantes dos valores da sociedade do espetáculo em que vivemos.

Em A sociedade do espetáculo (1997, p. 30-31), Debord observa que

O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social. Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela: o mundo que se vê é o seu mundo. A produção econômica moderna espalha, extensa e intensivamente, sua ditadura. Nos lugares menos industrializados, seu reino já está em algumas mercadorias célebres e sob a forma de dominação imperialista pelas zonas que lideram o desenvolvimento da produtividade. Nessas zonas avançadas, o espaço social é invadido pela superposição contínua de camadas geológicas de mercadorias.

Na sociedade do espetáculo, não há lugar para a originalidade, “o indivíduo deve

desdizer-se sempre, se desejar receber dessa sociedade um mínimo de consideração”

(DEBORD, p. 191). Conforme já observado por Goblot (apud Santos, p. 36), é preciso

“fazer como todo mundo”, não “nos fazer notar”, ou seja, seguir as prerrogativas que

fundamentam os valores associados ao “reino do príncipe encantado”.

71 É possível verificar essa informação ao assistir à versão comentada de Shrek 2. 72 “a cena só se justifica no romance quando se percebe que ela age sobre a ação ou o personagem. Na realidade, quando ela tem uma função dramática.” (Tradução nossa)

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Ao beber a poção do “Feliz para sempre”, Shrek se desdiz, faz como todo

mundo, nega a sua originalidade. Isso ocorre porque a tríade de Tão Tão Distante “mina”

a feiúra, o diferente do monstruoso, o “amar ser ogro”. Na sociedade de consumo, é

preciso ser igual para ser aceito. Essa “uniformidade”, ofertada através da publicidade,

vende o sonho de uma vida “perfeita”: os problemas desaparecem, assim como as

celulites, as espinhas e as cáries; é o início de uma nova “era”: carro esporte, vestidos

caros, plásticas que tornam as mulheres lindas e desejáveis, por homens-príncipes ricos e

donos de corpos esculturais.

De acordo com Silva, A. (2001, p. 93-94),

As imagens utilizadas pela propaganda, de maneira subliminar ou não, são de juventude em liberdade, imagens de opulência e saúde, temperadas pelo erotismo e vinculadas, em geral, a uma estética da magreza. A intermediação das imagens veiculadas acaba por constituir parte dos indivíduos e das culturas: o corpo assume os traços dessas imagens e dos artigos ali expostos, em detrimento das raízes étnicas e culturais e da individualidade em questão. Adissemelhança do Outro, pelo contrário, ou gera hostilidade e, na melhor das hipóteses, a tolerância, ou gera a curiosidade por aquilo que é tornado exótico.

Em Far Far Away, a oferta da vida “perfeita” vai do outdoor à entrada do reino

ao “cartão de visitas”, espécie de cartão de crédito oferecido pela Fada Madrinha a Fiona,

cuja senha para a felicidade é uma lágrima. Ironicamente, o cartão de crédito (objeto

destituído de vida, passaporte para o consumo) necessita de “uma lágrima” (sentimento),

que é “símbolo da dor e da intercessão” (CHEVALIER; GHEERBRANT, p. 533).

Em Shrek 2, as lágrimas remetem ao sentimento de dor, tristeza, amargor. São

as lágrimas de Fiona que “chamam” a Fada que, dentro de uma bolha-lágrima, oferece à

princesa um “doce remédio”, a cura para os seus problemas: “Sei o que toda princesa

precisa/ Para ter uma vida feliz”, diz a Fada. As (pseudo-) necessidades propagadas pela

Fada são criadas pela sociedade de consumo, que através da publicidade, busca vender a

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felicidade. Em sua crônica “A felicidade é a empada do “Bigode””, Jabor (2004, p.190)

afirma que,

Hoje, felicidade é ser desejado. Felicidade é ser consumido, é entrar num circuito comercial de sorrisos e festas e virar um objeto de consumo. Hoje, confundimos nosso destino com o destino das coisas... Uma salsicha é feliz? Os peitos de silicone são felizes?

Na animação, após beber do “Felizes para sempre”, Shrek tem seu corpo

enquadrado num certo padrão de beleza: cabelo ondulado, nariz bonito, bumbum

durinho. Metamorfoseado, este corpo movimenta-se pelas ruas de Tão Tão Distante, sem

causar repulsa aos seus moradores, uma vez que o ex-ogro, ao menos na aparência, está

sintonizado com o glamour do reino. Agora, Far Far Away é a “sua casa” e a localização do

castelo confirma o status dele. Embora existam exceções, de acordo com Tuan (1983, p.

43-44),

As localizações residenciais têm a mesma hierarquia de valores. Assim como em uma casa as áreas de serviço estão escondidas no porão, [...] e as casas particulares aumentam de prestígio com a elevação. Os ricos e poderosos não somente possuem mais bens imóveis do que os menos privilegiados, como também dominam mais espaço visual. O status deles se torna evidente aos estranhos pela localização superior de suas residências; e de suas residências os ricos reafirmam sua posição na vida a cada vez que olham pela janela e vêem o mundo aos seus pés.

A localização do castelo onde vivem os sogros de Shrek corresponde,

exatamente, a essa descrição; além do mais, há uma clara separação entre as classes sociais.

Em outras palavras, enquanto a classe burguesa de Tão Tão Distante possui mansões,

lojas de grife e vai ao baile real, os camponeses limitam-se a olhar as vitrines e ver não o

baile real, mas a chegada das celebridades que passam sobre o tapete vermelho à entrada

do castelo.

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Mas não é só a “Romeo Drive” (avenida principal de Far Far Away) que separa

ogros e princesas; na verdade, é dentro do castelo real que o conflito de classes se

exacerba. Nesse sentido, a seqüência do jantar é significativa, pois ilustra a opressão do

espaço social através da mise-en-scène. Sobre o conceito de mise-en-scène, Turner (1997, p. 43)

observa que ela “nos permite falar de modo como os elementos dentro de um quadro ou

filme, ou de uma tomada composta de muitos quadros consecutivos, são dispostos,

movimentados e iluminados”. Estáticos ou em movimento, esses elementos podem

significar.

A título de exemplificação, destacamos a iluminação obscurecida da sala de

jantar do castelo real de Shrek 2 que, assim como os demais elementos postos em cena,

significa. Turner observa que há dois tipos de iluminação: high-key (luz alta) e low-key (luz

baixa). Enquanto a primeira é realista, a segunda é expressiva e nos dá “uma impressão de

ambigüidade ou ameaça” (p. 62). Para Turner, isso acontece porque

A iluminação low-key geralmente deslocará a luz-chave (luz principal) de sua posição convencional para um dos lados da personagem, de modo a deixar visível apenas metade da face, ou aumentar o ângulo para que o rosto seja iluminado de baixo e adquira um aspecto distorcido e ameaçador (p. 62).

Da cena do reencontro da Princesa Fiona com seus pais, e a conseqüente

apresentação de seu marido ogro, passa-se para um plano em que a câmera focaliza uma

imensa ave de rapina sobre a cabeça de Shrek que, desolado, ocupa uma das extremidades

da mesa; a câmera vai abrindo e capta toda a mesa de jantar, focaliza a rainha que come

delicadamente um escargot; depois o rei que, com um olhar baixo e furioso como se

estivesse pronto para atacar o “inimigo”, ocupa a outra cabeceira da mesa; a câmera, agora

alta, mostra o prato de Shrek, que sem saber usar os talheres, opta por “lançar” com as

mãos um escargot na boca, mastiga-o de forma barulhenta e sorri constrangido. Enquanto

isso, Fiona bebe o que parece ser um pouco de vinho e, sem querer, dá um arroto; meio

sem jeito, pede desculpas; os pais olham-na surpresos; Shrek sorri e diz: “Melhor soltar do

que prender! Não é?” Os ogros riem; Shrek, ainda sorrindo da própria piada, diz: “Essa é

boa!”. Logo em seguida, ele e Fiona percebem que o rei e a rainha não compartilham da

mesma opinião, e corrige-se: “Acho que não!”

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As gafes do ogro não param por aí. Tentando fugir do clima pesado que se

instaurara à mesa, Shrek concentra-se em tomar o que julga ser uma “sopa”. Fiona,

contudo, corrige-o, mostrando que se trata de um recipiente para lavar as mãos. O

constrangimento do ogro só não é maior do que a ira do rei Harold, o seu sogro.

Incentivados pela rainha, os ogros iniciam uma descrição do lugar em que vivem. Shrek,

no entanto, buscando ser aceito pela família real, “floreia” na descrição do pântano: “É

uma floresta encantada, repleta de esquilos e lindos patinhos e ...”; jocoso, o Burro revela

a verdadeira imagem do pântano. Após essa revelação, a face do rei passa do tom

ameaçador ao irônico e comenta: “Um ogro do pântano. Que original!”

Está claro que Shrek não pertence àquele espaço social. Para o rei, o lugar de

“tipos” como Shrek era o pântano e não Far Far Away. Não há mais espaço para a

tentativa de cordialidade. Em suas posições, ogro e rei dão início a um duelo verbal que é

interrompido pelo chef. Enquanto os garçons colocam os pratos sobre a mesa, a câmera,

num jogo campo-contracampo, focaliza Shrek e o rei que se olham ameaçadores puxando

os pratos principais para si, como se preparassem para a segunda fase do duelo, o verbo-

gastronômico. A música extra-diegética, que durante a primeira parte do jantar era

discreta, a partir desse momento, é mais intensa e dá o ritmo dos garçons que, em volta da

mesa, servem o jantar como se valsassem. Toda essa cena é mostrada por uma câmera

plongée73, que faz uma panorâmica da mesa de jantar, captando, inclusive, parte dos

requintados lustres.

Acerca da composição audiovisual, Aumont e Marie (2003, p. 205) observam

que ela tem, dentre outras funções, a de ilustrar ou criar “uma atmosfera correspondente à

situação dramática (cena lírica, violenta, elegíaca etc)”. Nesse sentido, o cenário do castelo

73 “Fala-se de enquadramento plongée, quando o objeto é filmado de cima; em contra-plongée quando ele é filmado de baixo [...]” (AUMONT; MARIE, 2003, p. 98)

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real de Tão Tão Distante com sua low-key; a disposição dos protagonistas desse duelo à

mesa do requintado jantar; as gafes cometidas pelo ogro; as tomadas da câmera que

revelam/ narram a inabilidade e o desconforto do ogro diante de tamanha opulência; a

música que se exacerba na terceira parte do duelo, o gastronômico; tudo corrobora uma

atmosfera dramática que ratifica o quanto um ogro do pântano está distante daquela

realidade.

Servido o jantar, o chef retira-se desejando um bon appétit; a trégua termina, é o

começo de uma nova batalha. A “luta” que já havia sido verbal e verbo-gastronômica,

passa a ser agora apenas gastronômica. Explicamos: os participantes do duelo levantam-se

de suas cadeiras e tentam puxar para si o leitão que estava no centro da mesa. O assado

desprende-se de suas mãos, “voa” em direção ao lustre, enquanto a câmera ora mostra

Fiona que reclama com Shrek, ora mostra seu pai, e ambos tentam se defender como se

não tivessem culpa alguma, retorna (a câmera) para Fiona que pede ajuda à mãe, esta

chama a atenção do rei e, finalmente, focaliza o Burro que chama a si próprio. Nesse

momento, o leitão cai sobre a mesa de jantar, que em nada lembra o requinte de instantes

atrás. Revoltada com a atitude do pai e do marido, Fiona ergue-se, sai da sala de jantar e

dirige-se para o seu quarto: é o fim do desastroso jantar em família.

Toda essa seqüência dura aproximadamente três (longos) minutos, tempo

suficiente para mostrar que o principal rival de Shrek não é o rei, mas sim a mise-en-scène do

ambiente. Turner (p. 65) enfatiza que a “montagem do cenário, o figurino, o arranjo e o

movimento das personagens, as relações espaciais (quem é obscurecido, quem parece

dominar, e assim por diante) [...]” são importantes porque “aprendemos muito com a mise-

en-scène” (p. 66). Parafraseando Turner, aprendemos muito com Tão Tão Distante, pois,

como já havia observado Vanoye (p. 77), “Nenhum elemento do cenário é gratuito”.

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Destarte, tudo no espaço social de Shrek 2 significa: da localização do castelo

real à variedade de talheres sobre a mesa de jantar, todos os elementos corroboram a idéia

de que Shrek está distante daquele reino. Na ampliação de Shrek!, de William Steig, para

além do horríveis para sempre, leia-se Shrek 2, de Andrew Adamson, Kelly Asbury e

Conrad Vernon, a animação enriquece o campo da percepção humana e amplia nossa

consciência crítica da realidade. Este é um importante papel do cinema já apontado por

Walter Benjamin e lembrado por Stam (2003, p. 84).

No final de “Literatura e Cinema: sobre ogros, cebolas e adaptações”,

dissemos que, no cotejo entre os textos literário e fílmico, a “fidelidade” não seria objeto

de nossas preocupações. E, embora ambos os textos apresentem um ogro-herói e espaços

indeterminados, como “um lugar sei lá onde” e “Tão Tão Distante”, é no texto fílmico

que vemos mais claramente o reflexo de uma sociedade que nos é contemporânea. Nosso

propósito era dar início à discussão sobre como a inserção dos símbolos do poder

capitalista na construção do espaço social da adaptação fílmica, Shrek 2, ampliou os

significados do conto de fadas Shrek!; esperamos, portanto, ter atingido nosso objetivo.

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4.1 - Far Far Away: o não-lugar é o melhor lugar

O lugar é o palimpsesto.

Michel de Certeau [...]

Eu sou a fenda para o cartão de crédito E a esteira do chek-in... Eu sou o shopping center Aquela vitrine Aquele manequim sem cabeça E sou de novo a rua A rua ex-ponto de encontro Eu sou o porto de passagem E a fluidez dos líquidos que facilmente se moldam...74 [...]

Fenda, esteira, shopping, rua, Far Far Away. . . O que têm em comum esses

espaços? De acordo com Marc Augé, são todos não-lugares. Augé (1994, p. 87) entende

por não-lugar “duas realidades complementares, porém distintas: espaços constituídos em

relação a certos fins (transporte, trânsito, comércio, lazer) e a relação que os indivíduos

mantêm com esses espaços”. Idéia esta corroborada por Relph (apud MAIA, 2004, p. 3-4)

para quem os não-lugares não se definem apenas por seus aspectos físicos, mas também

por ser “uma atitude e uma expressão desta atitude que está se tornando cada vez mais

dominante”.

Em seu artigo “Shopping center – entre a identidade e a inautenticidade na

construção do lugar”, a partir da leitura de Relph, Maia (p. 4) observa que os não-lugares

são “fruto de uma atitude inautêntica das pessoas, que cada vez agem como os outros

agem, sem qualquer reflexão, porque este é o comportamento aceito”. Em outras

palavras: é preciso “fazer como todo mundo”.

Substantivos concretos, espaços e lugares carregam significados que, muitas

vezes, parecem sinônimos. A narrativa classifica o espaço como físico, social e

psicológico. Na nossa pesquisa, tem nos interessado o estudo do espaço social, quer seja

no texto literário, quer seja no texto fílmico.

Por outro lado, sentimos necessidade de abrir um espaço (!) para discutirmos o

lugar como expressão geográfica de singularidade. Essa discussão nos permitirá entender 74 Excerto do poema “Não-lugar” (Cf. ANDRADE FILHO, 2005. p. 93).

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o não-lugar -- como queria Augé – de Shrek no reino Tão Tão Distante, e como este se

transforma no melhor lugar; antes, retomaremos a caracterização do espaço social, à luz da

geografia humanística.

De acordo com Santos (2004, p. 55), “O espaço social, como toda realidade

social, é definido metodológica e teoricamente por três conceitos gerais: a forma, a

estrutura e a função” e, ao citar Lefèbvre, observa que esse espaço é passível de uma

análise correspondente, ou seja, “formal, funcional e estrutural”.

Quanto à forma do espaço social, Lefèbvre (apud Santos, p 32) destaca que ela

é “o encontro, a reunião, a simultaneidade”. E, não sendo ele uma forma vazia, uma vez

que é cúmplice da estrutura social, Santos argumenta que “com o desenvolvimento das

forças produtivas e a extensão da divisão do trabalho, o espaço é manipulado para

aprofundar as diferenças de classes” (p. 32).

A assertiva de Santos acerca da não neutralidade do espaço social pode ser

comprovada se atentarmos para o fato de que desconhecemos localidades que não

“abriguem” diferentes classes sociais e relações de poder entre elas. Mesmo nos bairros

nobres é comum, mas nem sempre pacífica, a convivência de ricos e miseráveis. Nas

principais capitais do país, as favelas estão ao lado dos shopping centers, ou de prédios

luxuosos, alguns deles apenas com um apartamento por andar. A título de exemplos,

citamos a cidade do Recife e a cidade de São Paulo – o que não impede de encontramos

exemplos semelhantes em outras cidades e/ ou países -- por apresentarem duas realidades

díspares.

Na primeira, o maior centro de compras da América Latina – essa referência

nos remete ao que diz Tuan (p. 193) sobre o fato de os líderes das cidades novas, carentes

de “um passado venerável”, através da propaganda, promoverem-na por suas “excelências

abstratas e geométricas”: “a maior”, “a mais alta”, dentre outros superlativos --, fica à

entrada da favela Entra a Pulso, uma das principais da Veneza Brasileira, cujos moradores

buscaram assessoria jurídica, na década de 80, para garantir o direito de permanecer na

área ocupada desde os anos 50 do século passado.

Na capital paulista, há um exemplo semelhante: nos fundos da butique de luxo

Daslu está a favela Coliseu, cuja renda mensal somada das 215 famílias correspondia,

segundos dados do Censo do IBGE de 2000, ao valor de duas calças jeans de grifes

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famosas, conforme a matéria “Entre falcões e peruas”, publicada no site da revista Caros

Amigos.75

Apesar da proximidade geográfica entre as favelas e os centros de consumo

acima citados, há uma distância social que separa os personagens que habitam esses

lugares ou circulam por eles. De acordo com Tuan (p. 56), “A distância social pode ser o

inverso da distância geográfica. O criado vive perto do patrão, mas ambos não são amigos

chegados”.

Guardadas as devidas proporções, essa distância social não impede que a

parcela menos favorecida da sociedade freqüente esses lugares e fique tentada a consumir

os mesmos bens dos “patrões”. De acordo com Santos (1987, p. 34), “O poder do

consumo é contagiante, e sua capacidade de alienação é tão forte que a sua exclusão

atribui às pessoas a condição de alienados”. O consumo de um ou de vários itens de grifes

famosas, contudo, não é suficiente para diminuir a distância entre ricos e pobres, uma vez

que ambos pertencem a mundos diferentes. O lugar de um dominado não é o mesmo da

classe dominante.

Sendo assim, o “encontro” de que falou Lefèbvre revela-se um desencontro, uma

vez que, para o autor de Pensando o espaço do homem,

O que une, no espaço, é a sua função de mercadoria ou de dado fundamental na produção de mercadorias. O espaço, portanto, reúne homens tão fetichizados quanto as mercadorias que eles vêm produzir nele. Mercadorias eles próprios, sua alienação faz de cada homem um outro homem (p. 33-34).

Espaço-mercadoria, a alienação de Far Far Away faz de Shrek um príncipe. O

que parecer ser, apenas, o lugar onde se desenrola a narrativa fílmica, revela-se como

elemento perturbador de uma “simples” estória. Falsamente simples, a história do ogro

confirma o que nos diz Colasanti (2004, p. 222) acerca dos contos de fadas: “Uma falsa

ingenuidade as percorre. Uma linguagem muito simples as narra. Nada nelas parece

destinado a abalar adultos acostumados a diurnas e constantes violências”.

Em Shrek 2, o leitor mais atento, provavelmente, perceberá que o espaço social

da narrativa fílmica é violento, porque é excludente. Personagem e espaço vivem uma

relação conflituosa em que este tenta excluir aquele. Essa assertiva corrobora a idéia de

que ambas as categorias da narrativa -- a saber, personagem e espaço – estão intricadas.

75 Cf. http://carosamigos.terra.com.br/do_site/reportagem/reportagem17.asp. Acesso em 12 jan. 2007.

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Acerca dessa questão, mas sem se ater aos elementos constituintes do texto

narrativo, Tuan (p. 40) afirma que “Homem e mundo indicam idéias complexas”. É

possível entender essa complexidade se apreendermos, por exemplo, o sentido de lugar.

Em “Cultura e territorialidades urbanas – uma abordagem da pequena cidade”, Silva, J.

(2000, p. 17) observa que

A dimensão subjetiva da relação entre os homens e o espaço tem sido explorada pela corrente humanística da geografia através da categoria "lugar". Os geógrafos que fazem parte desta corrente preocupam-se em interpretar os códigos e significados dos lugares, desvendando as idéias e as ideologias dos indivíduos, pois estes vivem o lugar através de suas culturas que, por sua vez, influenciam suas experiências e ações.

Ao longo de seu artigo, Silva, J. discute o significado de termos como espaço,

território e lugar. Dentre as leituras do “território” que a autora apresenta, à luz de

diversos teóricos, destacamos a de Holzer (p. 20):

o território pode ser visto como um conjunto de lugares, onde se desenvolvem laços afetivos e de identidade cultural de um determinado grupo social, que o território não precisa ser necessariamente fechado a partir de uma delimitação rígida de fronteiras.

Principalmente produto da experiência humana, Relph (apud Leite, 1998, p. 10)

observa que o lugar é “muito mais que o sentido geográfico de localização”; diz respeito a

“tipos de experiência e envolvimento com o mundo, a necessidade de raízes e segurança”.

Tuan (op. cit., p. 3) concorda com Relph e afirma que “lugar é segurança”. Tuan cita como

exemplo de lugar, e, portanto, de segurança, a casa. O autor de Espaço e lugar (p. 184)

atribui àquela quatro qualidades: “Proporciona abrigo; a sua hierarquia de espaços

corresponde às necessidades sociais; é uma área onde uns se preocupam com os outros,

um reservatório de lembranças e sonhos”.

Duas dessas qualidades correspondem ao sentimento que Shrek tem em

relação à sua casa. Primeiro, nela, o ogro se sentia abrigado, seguro, sensação ratificada

pelo ar de satisfação de Shrek e Fiona ao reverem seu lar, após o retorno da lua-de-mel,

bem como pelo ar de desolação do ogro por ter que deixar o seu abrigo, o pântano, e

partir para o desconhecido Tão Tão Distante; segundo, os poucos cômodos visíveis no lar

de Shrek parecem ser suficientes para acomodar o ogro e, mais tarde, a sua esposa, a

princesa Fiona. Essa análise nos leva a pensar que o espaço representa uma antítese, ou

seja, insegurança, ameaça. Desse modo, o pântano é melhor lugar que Far Far Away.

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De acordo com Tuan, tal conclusão não é de todo errada se analisarmos o

termo “espaço” de uma forma negativa. Uma análise positiva, contudo, não elide a

diferença entre espaço e lugar. Esse “é um centro calmo de valores estabelecidos”; aquele,

“símbolo comum de liberdade no mundo”, “permanece aberto; sugere futuro e convida à

ação” (p. 61).

Quando analisamos um texto literário, é comum nos referirmos ao lugar onde

ocorre a narrativa como espaço. Para Gancho (2003, p. 23), o termo espaço “só dá conta

do lugar físico onde ocorrem os fatos da história”. A autora prefere o vocábulo

“ambiente” uma vez que este carrega aquele “de características socioeconômicas, morais,

psicológicas, em que vivem os personagens” (p. 23).

Essa descrição do ambiente proposta Gancho aproxima-se da indagação/

definição que Lins (1976, p. 74) faz do espaço social:

Como nomearíamos, senão assim, certo conjunto de fatores sociais, econômicos e até mesmo históricos em que muitas narrativas assumem extrema importância e que cercam as personagens, as quais, por vezes, só em face desses mesmos fatores adquirem plena significação?

Nesse sentido, parece-nos acertada a escolha de caracterizar, desde as

primeiras linhas de nossa pesquisa, Far Far Away como um espaço social. O efeito desse

ambiente sobre o ogro verde eleva o espaço social em Shrek 2 -- como ocorre em outras

narrativas literárias e/ ou fílmicas -- à categoria de opressor do personagem. Como

exemplos, citamos as análises que Osman Lins e Antonio Candido fazem do espaço social

(opressor) de Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911), de Lima Barreto e L’Assommoir

(1877), de Émile Zola, respectivamente. De acordo com Lins (p. 74),

A luta de Quaresma, travada contra a terra, é ordinariamente empreendida contra entidades menos concretas: circunstâncias sociais, econômicas e históricas nas quais está mergulhado. A Revolta da Armada, tão importante para o seu destino e essencial no plano do romance, cria um cenário específico, inconfundível, não construído com volumes, linhas, cores, mais respirável e que nos parece necessário precisar.

“Época de opressão como o grau de civilização de uma determinada área

geográfica”, “a festa”, “a peste ou a subversão da ordem (manifestações de rua, revolta

armada)” todas essas manifestações, juntamente com as edificações, compõem o espaço

social (LINS, p. 75). Da mesma maneira, o estilo de vida de Tão Tão Distante, o

receituário da Fada Madrinha, o baile real, os castelos/ mansões, as lojas, as carruagens,

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corroboram a análise que fizemos acerca de a composição do espaço da narrativa fílmica

ocorrer através, também, das configurações sociais, conforme discutido em “De Shrek! a

Shrek 2: um “reino” não tão distante”, bem como o espaço social como opressor do

indivíduo na modernidade.

Ambientes, edificações, manifestações, configurações. Em “Degradação do

espaço” (2004), Candido observa a correlação dos ambientes (o quarto de hotel, a

lavanderia e o botequim), das coisas e do comportamento em L’Assommoir. Na obra

analisada, Candido argumenta que “o significado da correlação estaria na intercalação da

limpeza entre a sujeira física e moral” (p. 65).

Para Candido, esses ambientes “exprimem em termos polares as opções que

regem os atos dos personagens, vinculando-os aos líquidos, que aparecem nos níveis

natural, social, metafórico e simbólico” (p. 56). Além disso, o autor de O discurso e a cidade

acredita ser significativo que o narrador retome esses lugares, uma vez que eles são vistos

pela protagonista degradada que tenta, através da prostituição, saciar sua fome. Convém

registrar a análise de Candido:

Neste recuo aos níveis mais ínfimos, parece que a dimensão cultural da cidade é dissolvida num desmesurado ambiente natural, formado pela noite, o frio, a chuva, a lama, a neve, o vento, a escuridão. Cuspida do universo da técnica e do objeto manufaturado, Gervaise retorna a uma situação primitiva que procura superar usando o próprio corpo como objeto negociável. Ou seja: indo ao cabo do processo alienador, ela se define como coisa, no espaço de um mundo que lhe nega condições para se humanizar (p. 79).

Nesse sentido, à personagem de Zola cabe o Pavé aux vaches76; assim como

convém a Shrek o seu pântano. Embora mais de um século e gêneros narrativos

diferentes separem L’Assommoir e Shrek 2, ambos os textos, através de seus espaços sociais

assépticos, expulsam seus personagens. É a luta de classes. No texto de Zola, após o

casamento -- realizado de má vontade pelo padre, “entre duas missas de verdade”

(CANDIDO, p. 48) --, Gervaise, Coupeau e seus convidados são discriminados ao saírem

às ruas para comemorar as bodas.

Uma vez que são operários (portanto, ogros), eles não têm direito ao “Felizes

para sempre”. De acordo com Candido (p. 48),

[...] é nas ruas do centro que a marginalidade explode, definida pelo riso com que é recebido o desejo de, pelo menos uma vez na vida, o operário vestir e passear como os burgueses. Nesse espaço ele não cabe, tem um ar de bicho de

76 Pavimento destinado às vacas (Tradução nossa).

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outro tempo e outro lugar, com as roupas desemparceiradas, misturando diversos momentos da moda num vago carnaval; [...]

Silêncio sepulcral, tórax recuados, susto e um “Não beijou o Príncipe para

quebrar o encanto?”, eis a “recepção” oferecida ao casal de ogros em sua chegada a Far

Far Away. Desemparceirado, bicho de outro lugar, “cuspido” daquele ambiente, para

usarmos as expressões significativas de Candido, Shrek deseja retornar ao pântano

porque, como os personagens de L’Assommoir, “o seu lugar não é em cima; é embaixo”

(CANDIDO, p. 49). Em vez do Museu do Louvre, “o restaurante modesto onde vão

comer o jantar das bodas” (p. 49); no lugar do castelo real dos contos de fadas, o pântano.

O que têm em comum esses lugares para Gervaise, Coupeau e Shrek? Servem de “âncora

no mar hostil da grande cidade” (p. 49).

A leitura que Candido faz do texto de Zola, especialmente acerca da

celebração das bodas, ratifica a distinção entre lugar e espaço. Essa distinção, contudo,

não impede que o espaço seja “promovido” à condição de lugar, conforme discutiremos

mais adiante; antes, vale ressaltar que Tuan “divide” o espaço em aberto e fechado. Este,

humanizado, é lugar; aquele, por sua vez, “como uma folha em branco”, necessita ser

trilhado, sinalizado. Ademais, no espaço aberto, “uma pessoa pode chegar a ter um

sentido profundo de lugar”. E, conforme argumenta Tuan, “Os seres humanos

necessitam de espaço e de lugar” (p. 61). Em outras palavras, os seres humanos precisam

de segurança e liberdade.

“O espaço é um lugar praticado”. A afirmativa de Michel de Certeau (1994, p.

202) corrobora a idéia de que espaço e lugar não se opõem; na verdade, eles estão

imbricados. Tal argumento, contudo, não impede que o autor de A invenção do cotidiano

diferencie esses elementos.

Inicialmente, entre espaço e lugar, coloco uma distinção que delimitará um campo. Um lugar é a ordem (seja ela qual for) segundo a qual se distribuem os elementos nas relações de coexistência. [...] os elementos considerados se acham uns ao lado dos outros, cada um situado num lugar “próprio” e distinto que define. Um lugar é portanto uma configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade (p. 201).

Se lugar é estabilidade, espaço é movimento. Para Certeau (p. 202),

Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais. [...] Diversamente do lugar, não tem portanto nem a univocidade nem a estabilidade de um “próprio”.

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Estabilidade e movimento, também, são características apontadas por Tuan.

Resta-nos saber como o reino Tão Tão Distante pode ser compreendido através dessa

classificação. É território, lugar ou espaço? O que nos autoriza a responder,

antecipadamente, que Far Far Away é um não-lugar? Antes de responder a essas

indagações e uma vez que “o espaço influencia atitudes, pensamentos e emoções dos

personagens”, conforme já discutimos, é preciso estender a discussão a uma perspectiva

antropológica.

Nesse sentido, Augé (op. cit., p. 75) observa que lugares e não-lugares passam

pela mesma “oposição do lugar ao espaço”. Identitário, relacional e histórico são

características daquele. Dessa forma, um espaço que não se defina por essas características

é um não-lugar. Na sociedade contemporânea, os não-lugares são contrastantes: cadeias

de hotéis, terrenos invadidos, clubes de férias e favelas destinadas aos desempregados são

alguns dos exemplos apontados por Augé (p. 74).

São não-lugares, também, as máquinas automáticas e os cartões de créditos.

Esses “lugares” levam-nos à individualidade solitária, em que o indivíduo, como observa

Debord em A sociedade do espetáculo, se desdiz sempre. Assim, individualidade não é

originalidade, é solidão. Paradoxal ou não, ser sozinho é ser semelhante aos outros, é

“abrir mão” de sua identidade. A esse respeito, Augé argumenta que

O cliente do supermercado, se paga com cheque ou com o cartão do banco, também declina sua identidade, assim como o usuário da auto-estrada. De certo modo, o usuário do não-lugar é sempre obrigado a provar sua inocência. [...] O passageiro dos não-lugares só reencontra sua identidade no controle da alfândega, no pedágio ou na caixa registradora. Esperando, obedece ao mesmo código que os outros, registra as mesmas mensagens, responde às mesmas solicitações. O espaço do não-lugar não cria nem identidade singular nem relação, mas solidão e similitude (p. 94-95).

Nesse sentido, viajar, comprar, repousar são ações que resumem a relação

indivíduos/ espaços. De acordo com Augé (p. 87-88), coube às palavras o papel de

mediadoras dessa relação: “Sabemos, antes de mais nada, que existem palavras que fazem

imagem, ou melhor, imagens: a imaginação de cada um daqueles que nunca foram ao Taiti

ou a Marrakesh pode se dar livre curso apenas ao ler ou ouvir esses nomes”.

Os não-lugares são criados pela supermodernidade que não integra a si os

lugares antropológicos que o passado criou. De acordo com Augé (p. 101), diferente da

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modernidade em que “os campanários e as chaminés são os “donos da cidade””, na

supermodernidade, o antigo é visto como “espetáculo específico”, “exotismo”.

Na sociedade contemporânea, onde abundam exemplos de não-lugares, a

experiência destes é significativa. Segundo Augé (p. 108-109),

O que é significativo na experiência do não-lugar é sua força de atração, inversamente proporcional à atração territorial, ao peso do lugar e da tradição. A invasão de motoristas na estrada do fim de semana ou das férias, as dificuldades dos controladores de tráfego em dominar o congestionamento das vias aéreas, o sucesso das novas formas de distribuição certamente comprovam isso. Mas também fenômenos que, à primeira vista, poderiam ser imputados à preocupação de defender os valores territoriais ou de encontrar as identidades patrimoniais.

Nos não-lugares da supermodernidade, a história de cada indivíduo parece

referir-se a três questões: onde moro/ aonde vou, que tal estou, o que tenho. Essas questões

aproximam-se do que Augé chama de “cocooning”77 ou “voltar-se para si mesmo” e,

acrescenta: “nunca as histórias individuais (pelo fato de sua necessária relação com o

espaço, a imagem e o consumo) foram também tomadas dentro da história geral, da

história simplesmente” (p. 109).

Espaço + imagem + consumo = Far Far Away. A equação traduz bem o que

havíamos dito, anteriormente, acerca de esse espaço social da narrativa fílmica ser um

símbolo da sociedade contemporânea, bem como de sua tríade significar: fama, beleza e

dinheiro. Nesse espaço, o outdoor da Fada Madrinha convida “Venha viver feliz para

sempre”, ou seja, usufruir a tríade; desde, é claro, que o indivíduo “zele” por sua imagem,

ou seja, consuma. Não corresponder a essa tríade, não ser um “igual” pode gerar atitudes

que, conforme aponta Augé, são concebíveis: fuga, medo ou revolta (p. 110).

Em Shrek 2, o ogro relutou em ir ao reino Tão Tão Distante, pois temia não

ser aceito pelos pais de Fiona nem por seus súditos. Confirmado o seu temor, o ogro

desejou voltar para o pântano, pois lá era o seu “lugar”. Mas, como nos diz Augé (p. 110),

revoltar-se contra os valores estabelecidos também faz parte das atitudes individuais

concebíveis.

Como exemplo de valor estabelecido e já apontado em nossa pesquisa,

citamos o fato de “os ogros não serem felizes para sempre”, segundo a Fada Madrinha.

Inconformado com sua “sentença”, Shrek luta por sua felicidade. O preço desta, contudo,

77 Der. “cocoon”, casulo (Cf. MICHAELIS, 2001, p. 58).

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é esquecer o “amar ser ogro” para tornar-se um príncipe encantado. Adentrar em Tão

Tão Distante metamorfoseado, e não ser rechaçado por seus habitantes, dá a Shrek a

sensação de pertencer àquele reino. De acordo com Augé (p. 99),

O personagem está em casa quando fica à vontade na retórica78 das pessoas com as quais compartilha a vida. O sinal de que se está em casa é que se consegue se fazer entender sem muito problema, e ao mesmo tempo se consegue entrar na razão de seus interlocutores, sem precisar de longas explicações.

Discutindo acerca dos “Efeitos de lugar” (p. 165), Pierre Bourdieu observa

que “certos lugares, e em particular, os mais “seletos” -- entendam-se bairros chiques ou

residências de luxos -- exigem não somente capital econômico e capital cultural como

também capital social”. Bourdieu chama de efeito de clube a “associação durável de pessoas

e de coisas, que sendo diferentes da grande maioria, têm em comum não serem comuns”

(p. 165). Todavia, estão exclusos desse “círculo” todos aqueles que “não apresentam as

propriedades desejadas ou que apresentam uma (pelo menos) das propriedades

indesejáveis” (p. 166).

Sobre as considerações de Bourdieu, duas questões chamam a nossa atenção: o

“efeito de clube” e a “exclusão dos diferentes”. A primeira remete-nos ao comentário de

Shrek sobre não ser bem-vindo ao “country club”, ou seja, a Far Far Away, lugar chique

com mansões luxuosas e lojas caras. A segunda, conforme haviam lhe lembrado a Fada

Madrinha e o Burro, que, apesar de seu gesto, beber da fórmula do “Felizes para sempre”,

ele continuava o mesmo por dentro. Em outras palavras, ele não só não apresentava todas

as propriedades desejadas (faltavam-lhe fama e dinheiro) como, ainda, possuía uma das

indesejáveis: era um ogro.

Essas considerações, a nosso ver, ratificam o espaço social da narrativa fílmica

como um não-lugar. Este, contudo, “ascende” à categoria de melhor lugar. Longe de fazer

apologia ao modo de vida de Far Far Away, acreditamos que o reino Tão Tão Distante é o

lugar certo para discutirmos a marginalização e intolerância de que o ogro é vítima. Ao

experienciar esse não-lugar, Shrek quebra os padrões estabelecidos e leva-nos a repensar a

sociedade, seus valores, as instituições e as regras dominantes.

Acerca da experiência, Tuan (p. 10) afirma que

78 a palavra é tomada no seu sentido clássico, “sentido definido por atos retóricos como a peroração, a acusação, o elogio, a censura, a recomendação, a advertência etc” (AUGÉ, 1994, p. 99).

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Experienciar é vencer perigos. A palavra “experiência” provém da mesma raiz latina (per) de “experimento”, “experto” e “perigoso”. Para experienciar no sentido ativo, é necessário aventurar-se no desconhecido e experimentar o ilusório e o incerto. Para se tornar um experto, cumpre arriscar-se a enfrentar os perigos do novo. Por que alguém se arrisca? O indivíduo é compelido a isso. Está apaixonado, e a paixão é um símbolo de força mental.

Acreditamos que a palavra “experiência”, no sentido de “vencer perigos”

(TUAN, p. 10) é mais coerente com a postura ativa do ogro-herói. Apaixonado por

Fiona, Shrek arrisca-se a ser um “igual” em Far Far Away. Para ser um experto79, enfrenta

o pai de Fiona e a Fada Madrinha. Essa, conforme discutimos em “Far Far Away: uma

alegoria da sociedade contemporânea”, é uma representante da Indústria Cultural. E, ao

mesmo tempo em que o texto fílmico mostra a “corrida” do ogro em busca de sua

felicidade, revela o “preço” que o rei Harold pagou para fazer parte daquela sociedade do

espetáculo, bem como a desalienação do (s)ogro-rei.

Embora pague o preço por sua desalienação, ou seja, voltar a sua forma

anfíbia, o rei liberta-se do jugo da Fada Madrinha e, assim como Shrek, torna-se

experiente, pois vence os perigos. O mundo do Ter em que viveu por muito tempo o pai

de Fiona não o satisfaz mais, é preciso Ser. Revigorado na sua essência e aceito por sua

família e súditos, o sapo-rei continua a ser uma “Very Important Person” (VIP) desse

“country-club” que é Far Far Away.

A fim de ratificar a relevância da experiência que os ogros (Shrek e o rei)

viveram no espaço social da narrativa fílmica, convém observarmos que Far Far Away já

não está mais tão distante, uma vez que o seu líder maior, o rei Harold, não apresentava

todas as propriedades desejadas/ propagadas por Tão Tão Distante: fama, beleza e

dinheiro. Esse fato abre espaço para a tolerância; afinal, sogro mas também ogro não são

belos.

A (nova) condição do rei e o retorno de Shrek à sua forma anômala, sem ser

execrado, ao que nos parece, contribuem para que Far Far Away torne-se um “lugar” para

o ogro. De acordo com Augé (p. 74),

existe certamente o não-lugar como o lugar: ele nunca existe sob uma forma pura; lugares se recompõem nele; relações se reconstituem nele [...] O lugar e o não-lugar são, antes, polaridades fugidias: o primeiro nunca é completamente apagado e o segundo nunca se realiza totalmente – palimpsestos em que se reinscreve, sem cessar, o jogo embaralhado da identidade e da relação.

79 “Que tem experiência”. Difere de “esperto”: indivíduo inteligente que “entende tudo o que lhe explicam”. Cf. FERREIRA, A., 2001, p. 311; 330, respectivamente.

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Entender esse jogo identidade/ relação é possível graças a dois fatores: o

primeiro de ordem literária e o segundo de ordem econômica. Explicamos: espaço e

personagem são unidades do sistema complexo narrativo que “se refletem entre si e

repercutem umas sobre as outras” (LINS, 1976, p. 95). Nesse sentido, Far Far away não é

só o espaço social onde se desenrola a narrativa. Para usarmos uma expressão de Betton

(1987, p. 52), Far Far Away é mais um “protagonista” que leva Shrek a reagir, ainda que

inicialmente o ogro se curve, à “pressão que o espaço exerce sobre ele” (LINS, p. 100).

No que diz respeito à questão financeira, não podemos ignorar que o ogro,

quer dizer, o homem é um ser social e a concepção dialética em que esse ser está inserido

só é possível se levarmos em consideração que o fator econômico é fundamental

(MARTINS, 1998, p. 50). Nesse sentido, vale lembrar que não é gratuito o comentário da

Fada Madrinha em seu “receituário” sobre poder oferecer a Fiona “um príncipe cheio de

grana” e “um vestido caríssimo”, bem como não é gratuita a inserção dos símbolos do

poder capitalista na construção do espaço de Shrek 2.

“Não há mais análise social que possa fazer economia dos indivíduos, nem

análise dos indivíduos que possa ignorar os espaços por onde eles transitam”, diz-nos

Augé (p. 110), ao comentar as atitudes individuais concebíveis no não-lugar. Assim, como

essas análises não se ignoram, acreditamos que não há espaço para ignorar que Far Far

Away é o melhor lugar para se fomentar o debate sobre a valorização do Ter em detrimento

do Ser na sociedade contemporânea.

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5 - E eles viverão horríveis (e felizes) até a próxima adaptação... (Conclusão)

“E eles viveram felizes para sempre!”. Guardadas as devidas adaptações, é com

essa frase que as fiandeiras-Sherazades de ontem e hoje encerravam/ encerram os contos

de fadas; não havendo, muitas vezes, espaço para análise e interpretação dessas histórias

por parte das narradoras. Essa tarefa, parece-nos, sempre coube ao ouvinte/ leitor que

procura desmanchar os fios que compõem o tecido dessas narrativas maravilhosas e

entender-lhes o significado para, mais tarde, na condição de contador, tecê-las com outros

fios.

Analisar a adaptação do texto literário Shrek!, de William Steig, para a

linguagem do audiovisual nos proporcionou instigantes descobertas: se o conto de fada é

falsamente simples, o caminho trilhado para se chegar à interpretação do texto-fonte, bem

como de suas adaptações, Shrek e Shrek 2, de Andrew Adamson, revelou-se igualmente

complexo uma vez que estavam “em jogo” questões socioculturais, ideológicas, bem

como as intervenções do adaptador, que possibilitaram a ampliação do texto literário.

Observamos que, embora independentes, os textos de Steig e Adamson

dialogam e percorrem as mesmas vias. Explicamos: através do ethos pragmático da paródia

proposto por Hutcheon e discutido em nosso texto, Shrek!, Shrek e Shrek 2 utilizam-se de

uma escrita palimpsesta (portanto, paródica) e reverenciam os contos de fadas

tradicionais, confirmando a perenidade dessas narrativas. Essa reverência, contudo, ocorre

às avessas, ou seja, desconstruindo arquétipos como nobreza de caráter, amor, grandeza

interior, dentre outros, que não correspondiam mais a um contexto pós-industrial.

Vale lembrar que, na adaptação Shrek, o que “move” o ogro partir para

resgatar a bela (?) princesa Fiona da torre mais alta do quarto mais alto é mais o desejo de

reaver o seu pântano, que havia sido invadido por “coisas dos contos de fadas”, do que a

nobreza de caráter de salvar a princesa da guarda do dragão feroz.

Por outro lado, Shrek! parece manter aqueles arquétipos, pois o ogro verde,

como o príncipe dos contos de fadas, deseja uma noiva, vai em sua busca, encontra-a,

apaixonam-se e vivem horríveis para sempre. A desconstrução do texto de Steig não se

restringe ao adjetivo “horríveis”; na realidade, ela se estende à caracterização avessa dos

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personagens: príncipe/ ogro; princesa/ horrorosa; alazão/ burro; bruxa/ dragão (quase)

inofensivos.

Falamos em desconstrução, não no sentido de destruição -- uma vez que seria

negar a história do ogro verde sujo e flatulento, quer seja na literatura quer seja no cinema,

como uma escrita palimpsesta dos contos de fadas tradicionais – mas como

recomposição, renovação. Ora, o que fizeram os textos de Steig e Adamson senão nos

apresentar novas possibilidades que vieram re-significar o clichê, o Príncipe Encantado,

por exemplo?!

A re-significação dos personagens em Shrek!, Shrek e Shrek 2 – esta ainda tem o

mérito de ampliar os significados do texto-fonte com a inserção de Far Far Away, espaço

social que se revela excludente uma vez que apresenta seres preocupados com o Ter – a

nosso ver, é uma sátira ao que Coelho (p. 95) chama de lei do mercado. Embora a discussão

da autora refira-se à “mitologia cibernética” (p. 94), ela se aplica, também, ao nosso

debate. Segundo Coelho, essa lei é “perversa, pois transforma tudo e todos em produtos”.

Nesse “sistema”, o indivíduo é levado a “consumir” ou “ser consumido” (p. 95).

Trazendo essas considerações para a reflexão de nosso objeto de pesquisa,

observamos que o “receituário” proposto pela Fada Madrinha é um exemplo contundente

de que a princesa Fiona deverá consumir para ser consumida. Em outras palavras, se usar “um

vestido caríssimo”, possuir “uma carruagem esporte, cheia de estilo” e fizer “uma

plasticazinha”, “escreverão seu nome no banheiro: Feliz para sempre?, Ligue para Fiona!”. O

“receituário” convida-nos a fazer parte do espetáculo, na maioria das vezes como

espectadores/ consumidores do que está exposto em revistas semanais como “Quem”,

“Caras”, “Contigo!”; sites de fofocas como “O Fuxico” e “Babado”, bem como de

programas televisivos vespertinos como “De olho nas estrelas”, da Rede Bandeirantes, e

“TV Fama”, da Rede TV!, dentre outros.

Mas há, também, casos em que o indivíduo “ascende” à condição de ser

consumido, ratificando o que diz Adorno e Horkheimer acerca de “A felicidade não deve

chegar para todos, mas para quem tira a sorte, ou melhor, para quem é designado por uma

potência superior – na maioria das vezes a própria indústria do prazer [...]” (p. 135). A

título de exemplo, citamos o quadro Dia de Princesa do extinto “Programa Domingo da

Gente” (2005), da Rede Record.

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Nele, a “princesa”, geralmente uma jovem da periferia, tinha a sua auto-estima

elevada através de certas doses de “Felizes para sempre” como tratamento de beleza, um

novo guarda-roupa, doação de dinheiro por parte dos anunciantes, cursos gratuitos de

capacitação profissional, um jantar com seu ídolo, tudo para ficar “Bem ao estilo do

Príncipe!”. Mas, como já haviam observado Adorno e Horkheimer (p. 136), só uma

“princesa” tira a sorte grande, restando às demais se regozijarem com a felicidade daquela;

o que de fato acontece, basta olharmos para o número significativo de ligações que um

programa como o Big Brother, da Rede Globo, costuma receber, em sua etapa final,

quando os espectadores elegem um “igual” (vendedor de coco, babá, diarista, etc) como

ganhador do prêmio máximo.

Agora, rico, belo e famoso, esse “igual” continuará a consumir e está “pronto”,

também, para ser consumido, ser notado. É a sua vez de entrar para o “seleto” (sic) mundo

dos famosos: posar para revistas e ter sua vida exposta em sites e programas de televisão.

São os quinze minutos de fama, depois mais um para os comerciais; são os quinze

minutos de fama, depois o descanso em paz (?), de que falam os Titãs (2001). Então, onde

poderia se dar esse binômio senão em um lugar de configurações sociais -- ou seria um

não-lugar? – um espaço social em que o ser humano é levado à condição de objeto, coisa;

importando, apenas, o que ele possui. Desse espaço social estão/ são excluídos aqueles

que ignoram a lei do mercado. O espaço social onde ocorre esse “jogo” é construído/

formatado com os símbolos do poder capitalista, ratificando o que diz o geógrafo Milton

Santos acerca do envolvimento dos construtores do espaço com a ideologia dominante.

Configurado, construído, “empossado” com os símbolos do poder capitalista,

o espaço social, alegoria da ideologia dominante, torna-se, ele próprio, o opressor do

estrangeiro, ou seja, daquele que não fizer parte do espetáculo. Nesse sentido, Far Far Away,

espaço social da narrativa fílmica Shrek 2, foi idealizado para que se configurasse como

uma alegoria da sociedade contemporânea. Mais do que “merchandising” de lojas de grife,

e um cenário criativo/ divertido, o cenário de Tão Tão Distante aponta para uma

importante questão: a cultura está homogeneizada, e não há, portanto, lugar para o

diferente.

Por ser diferente, Shrek não pertence àquele meio. Far Far Away é um não-

lugar; o pântano é o seu lugar, no sentido proposto por Marc Augé e Relph,

respectivamente. Nesse sentido, a inserção de Far Far Away, na seqüência Shrek 2,

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indubitavelmente, amplia o conto Shrek! uma vez o espaço social sai da condição de mero

lugar onde ocorre a narrativa para a condição de antagonista, opressor do ogro-herói.

Nossa assertiva se respalda em duas cenas que representam o encontro/

desencontro do ogro com o lugar e o não-lugar. A primeira corresponde à chegada de

Shrek e Fiona ao pântano, após a lua-de-mel. Nela, constatamos a satisfação do ogro por

retornar ao seu lugar; o mesmo não acontece quando o casal de ogros adentra em Far Far

Away. Intimidado, Shrek olha aquele cenário de luxo e ostentação, certo de que,

definitivamente, eles não estavam mais no pântano, estavam em um não-lugar.

Mas, como nos programas de TV, Shrek tem direito à sua versão masculina

do Dia de Princesa. A (usurpada) poção do “Felizes para sempre” eleva a auto-estima do

ogro, pois lhe proporciona um “tratamento” de beleza: nariz bonito, cabelo ondulado,

bunda durinha, enfim, Shrek estava lindo e Far Far Away passa a vê-lo como um dos seus.

Apesar de o preço para entrar no “country club” ser a alienação, e dela foram vítimas o

Shrek e o rei, é em Far Far Away que ambos recobram a sua originalidade: ogro e sapo,

respectivamente.

Esta cena final ocorre no meio do baile, na presença dos “famosos”, e é

“costurada” por falas e gestos que confirmam Far Far Away, agora, como o melhor lugar

para se discutir a valorização do Ser:

“Desculpe, Lillian. Só queria ser o homem que você merece”, diz o sapo-rei.

“E agora você é esse homem mais do que nunca. Com rugas e verrugas”,

responde, feliz, a rainha.

Mas, é meia-noite, hora da transformação. Enquanto nos contos de fadas

tradicionais, tudo é feito à revelia do personagem, em Shrek 2 -- embora deseje o que toda

princesa quer: “Viver feliz para sempre com o ogro com quem me casei” --, a princesa

Fiona escolhe ser feia porque Shrek é feio e sua origem é ogra.

De volta à forma anômala, o casal de ogros é aplaudido pelos famosos que

vieram homenageá-los. Isso posto, os textos de Steig e de Adamson permitem a quebra

de padrões estabelecidos, levam-nos, através do riso, a repensar a sociedade, seus valores,

as instituições e as regras dominantes.

The End ?

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Ainda não!

Percebemos que foi na condição de curiosos que começamos a tecer esse texto

que, como a tapeçaria de Penélope, encontra-se, ainda, à espera de novos fios

(argumentos) que se juntem a estes a fim de recobrir as lacunas desse tecido, corrigir-lhe

as falhas, mas sem nunca preenchê-lo, pois acreditamos que assim como aquele que “[...]

se indaga é incompleto” – já dizia Rodrigo S. M., narrador de A hora da estrela

(LISPECTOR, 1998, p. 15) --, essa narrativa (Dissertação), como um conto de fada, segue

também incompleta, ansiosa de outros (novos) narradores-leitores-pesquisadores-

adaptadores!

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