livro serviço social - direitos sociais e competências profissionais - cfess e abepss 2009
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Estudos Socioeconmicos
Regina Clia Tamaso Mioto
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Introduo
Abordar o tema estudos socioeconmicos no mbito do Servio Social remete a
pens-lo, inicialmente, enquanto parte intrnseca das aes profissionais dos assistentes
sociais. Afinal de contas o desenvolvimento das aes profissionais pressupe o
conhecimento acurado das condies sociais em que vivem os sujeitos aos quais elas se
destinam, sejam indivduos, grupos ou populaes. No entanto, esse tema se impe ao
debate, de forma especial, quando a Lei n. 8.662, que dispe sobre o exerccio da profisso,
no seu artigo 4o, lhe atribui o estatuto de competncia profissional. Entre outras
competncias elencadas nesse artigo, o item XI afirma que constitui competncia do
assistente social realizar estudos scio-econmicos com usurios para fins de benefcios e
servios sociais junto a rgos da administrao pblica direta e indireta, empresas
privadas e outras entidades (CRESS/SC, 1999).
Dentro dos marcos de uma legislao, esta definio legitima o reconhecimento social
de uma competncia construda historicamente pela profisso, particularmente, no mbito
das polticas sociais, que constitui o campo de trabalho privilegiado dos assistentes sociais.
Isso significa dizer que a realizao de estudos socioeconmicos esteve presente no
cotidiano do exerccio profissional dos assistentes sociais ao longo da trajetria do Servio
Social, mas nem por isso manteve o mesmo significado e direo. A sua concepo e as
questes implicadas na sua operacionalizao se transformaram medida que a profisso
tambm se transformou, buscando responder aos desafios impostos pela realidade social.
Nessa perspectiva, o texto que se apresenta pretende contribuir para o
aprofundamento da discusso dos estudos socioeconmicos como competncia
profissional, visando construo de um dilogo para uma qualificao mais apurada dessa
ao profissional e a produo de um marco de referncia para a operacionalizao dos
estudos socioeconmicos. Para tanto, est estruturado em quatro tpicos: Servio Social e
estudos socioeconmicos; Estudos socioeconmicos/estudos sociais: o que so, para que
so e onde se realizam; Estudos socioeconmicos/estudos sociais: quem so seus sujeitos;
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Estudos socioeconmicos/estudo sociais: realizao e elaborao de documentos; e
finalmente, uma brevssima (in)concluso.
1 Servio Social e estudos socioeconmicos
Os estudos socioeconmicos na trajetria do Servio Social brasileiro tiveram um
grande desenvolvimento tcnico no perodo da consolidao da profisso, atravs da
apropriao do marco conceitual do Servio Social americano e particularmente do Mtodo
do Servio Social de Caso. De acordo com Nicholds (1969), tinha como objetivo realizar o
ajustamento dos indivduos a seu meio, cooperando com eles a fim de benefici-los e
tambm a sociedade em geral. Enquanto mtodo de tratamento, inclua a necessidade de
diminuir ou resolver o problema trazido pelos clientes e, se possvel, modificar as
dificuldades e complicaes fundamentais. Esse mtodo previa que, quando um cliente
pedia auxlio, era necessria a realizao do estudo social de caso, numa primeira etapa,
posteriormente o diagnstico e por ltimo o tratamento.
No estudo social de caso, dois grupos de informaes eram importantes: aquelas
inerentes ao indivduo (aparncia fsica, capacidade mental, habilitaes especficas) e
aquelas prprias do ambiente (tipo de casa, tipo de emprego do presente e do passado,
companheiros dos quais gostava). A assistncia ao cliente tinha como premissa a busca de
recursos tanto na personalidade como no seu ambiente para corrigir a situao
(HAMILTON, 1976; NICHOLDS, 1969).
Essa postulao sobre o estudo social de caso no contexto do Servio Social
reveladora como apontaram inmeros estudos entre os quais se destacam os de Yazbec
(1993) e Iamamoto (1994) de uma perspectiva paradigmtica de orientao
positivista/funcionalista que partia da concepo que a desigualdade social era um fato
natural. Assim, as relaes sociais dos indivduos eram compreendidas no plano do
imediato e a soluo dos problemas sociais, como responsabilidade dos prprios
indivduos. Portanto, a busca de soluo dos problemas se concentrava essencialmente nas
questes de personalidade e adaptao dos indivduos. Disso se pode deduzir que o acesso
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a determinados auxlios materiais e a servios no mbito das instituies se vinculavam
muito mais a julgamentos morais do assistente social sobre a personalidade e os modos de
vida dos indivduos do que de suas condies objetivas de vida. Mais que isso, pautava-se
na ideia de que o auxlio pblico s deve acontecer de forma temporria e depois de
esgotadas as possibilidades da utilizao dos recursos dos prprios indivduos ou de seu
ambiente (materiais e imateriais).
Ancorados nessa perspectiva, os assistentes sociais aprimoraram os seus
instrumentos e tcnicas tais como a entrevista, a observao, a visita domiciliar
direcionados basicamente para o processo de averiguao dos modos de vida dos
indivduos. Houve, no interior das instituies, um processo de burocratizao dos
procedimentos e de regulamentao para a conduo dos estudos socioeconmicos. Nessa
linha, enraizaram-se no interior da profisso as bases dessa concepo e das formas de
operar os estudos socioeconmicos. A sua reatualizao tem encontrado terreno frtil no
contexto da lgica neoliberal que revigora tanto o iderio de seletividade e merecimento na
obteno de auxlios materiais e de servios, quanto incentiva o processo de
refilantropizao e despolitizao do tratamento da questo social (YASBEC, 2000).
Em contraposio lgica prevalente dos estudos socioeconmicos desenvolvida sob
a chancela do servio social de caso, uma outra lgica para o encaminhamento desses
estudos foi sendo engendrada. Isto ocorreu a partir do momento em que autores e
profissionais de Servio Social passaram a discutir a profisso dentro das bases da teoria
social de Marx, que permitiu tanto o avano do debate terico-metodolgico da profisso,
quanto a construo de seu projeto tico-poltico1. A partir dessa nova perspectiva
paradigmtica e da afirmao do compromisso tico poltico dos assistentes sociais com as
classes trabalhadoras, os estudos socioeconmicos ganham uma nova configurao pautada
em dois pontos fundamentais.
1 O debate terico-metodolgico do Servio Social com base na teoria social de Marx, bem como do projeto
tico-poltico encontram-se amplamente referenciados nesse curso, nos mdulos anteriores.
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O primeiro concerne interpretao das demandas postas aos assistentes sociais
pelos indivduos. Aquelas necessidades trazidas por sujeitos singulares no so mais
compreendidas como problemas individuais. Ao contrrio, tais demandas so interpretadas
como expresses de necessidades humanas bsicas no satisfeitas, decorrentes da
desigualdade social prpria da organizao capitalista. Assim, o assistente social tem como
objeto de sua ao as expresses da questo social, e essa premissa no admite que se
vincule a satisfao das necessidades sociais competncia ou incompetncia individual
dos sujeitos.
O segundo refere-se ao redimensionamento que a perspectiva crtico-dialtica exige
da ao profissional no que diz respeito ao seu alcance e direcionalidade. Ao postular que as
solues dos problemas dos sujeitos singulares s se efetivam, de fato, com a transformao
das bases de produo e reproduo das relaes sociais superao do modo de produo
capitalista , exige-se que a ao profissional seja pensada na sua teleologia. Para alm de
sua eficincia operativa ou de sua instrumentalidade, como prope Guerra (2000),
incorpora a elas o compromisso tico com a transformao social.
Por outro lado, ao reconhecer o terreno scio-histrico na qual se movimenta a
profisso, adota a categoria dos Direitos e da Cidadania como direo no encaminhamento
das aes profissionais. Os direitos so entendidos como caminhos para a concretizao da
cidadania por meio de polticas sociais orientadas para o atendimento das necessidades
humanas bsicas. O Estado reconhecido como instncia responsvel por essa garantia e
ateno (VIEIRA, 2004; LIMA, 2006).
Tal redimensionamento impe uma nova lgica aos estudos socioeconmicos, e eles
passam a ser entendidos como aes significativas no processo de efetivao, garantia e
ampliao de direitos fundamentais e no enfrentamento das expresses da questo social.
Assim, exigi-se a ampliao da ao profissional para alm dos sujeitos singulares que serve
de subsdio para as respostas coletivas s demandas que so singulares.
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Enfim, pode-se dizer que a perspectiva crtica no Servio Social provocou uma
verdadeira revoluo nas formas de conceber e conduzir os estudos socioeconmicos. As
mudanas abrangeram tambm as formas de relacionamento entre os sujeitos (agora
sujeitos de direitos), os assistentes sociais e a sociedade. A partir dessa tica, discutem-se
os estudos socioeconmicos enquanto ao de competncia dos assistentes sociais. Como
tal, constroi-se como processo sem poder ser definido priori e sem poder ser
desvinculado dos determinantes estruturais, conjunturais e profissionais, que condicionam
os seus limites e as suas possibilidades.
2 Estudos socioeconmicos/ estudos sociais: o que so, para que so e onde
acontecem
O avano e consolidao do debate da profisso no bojo da teoria crtica fizeram surgir
vrias aproximaes que passaram a ser construdas para redimensionar a prtica dos
estudos socioeconmicos em diferentes espaos sociocupacionais, especialmente aqueles
vinculados ao campo das polticas pblicas, com destaque seguridade social e ao campo
sociojurdico. Nesse processo de construo do debate, os estudos socioeconmicos
tambm foram se afirmando terminologicamente como estudo social, simplesmente. As
manifestaes provindas das diversas reas profissionais tm insistido na importncia
dessa ao profissional e tm destacado a realizao dos estudos sociais sob o ponto de
vista da totalidade e da garantia de direitos. A ao profissional dos assistentes sociais
reveladora do compromisso dos assistentes sociais com a matriz da teoria crtica.
A adoo da perspectiva de totalidade revela-se atravs da incluso no estudo social
da observao e anlise dos diferentes aspectos da vida social que incidem na configurao
das situaes singulares, inclusive os de ordem estrutural (COSTA; OLIVEIRA, 2004;
MOREIRA; ALVARENGA, 2004). Nessa tica, Fvero (2004, p. 42) afirma que o estudo social
tem por finalidade conhecer com profundidade, e de forma crtica uma determinada
situao ou expresso da questo social, objeto da interveno profissional especialmente
nos seus aspectos scio-econmicos e culturais.
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No mesmo sentido, Iamamoto (2004, p. 286) afirma que existe uma exigncia de
articulao da vida dos indivduos singulares com as dimenses estruturais e
conjunturais uma vez que so estas que a conformam. As situaes individuais ou
familiares condensam, simultaneamente, as dimenses universais, particulares e
singulares da vida em sociedade.
A perspectiva dos direitos de cidadania destacada como fundamental,
especialmente, medida que os estudos sociais subsidiam pareceres sociais que so
instrumentos de viabilizao de direitos, um meio de realizao do compromisso
profissional com os usurios, tendo em vista a equidade, a igualdade, a justia social e a
cidadania (SILVA, 2000, p. 116). Acrescenta-se a isso que a sistematizao e anlise do
conjunto de informaes contidas no conjunto dos estudos realizados geram possibilidades
de discusso do processo de fruio dos direitos relativa tanto garantia como sua
ampliao. Assim pode-se impactar tanto a gesto e o planejamento de programas e
servios, como a formulao de polticas sociais.
Os estudos sociais so realizados nos mais diversos campos de interveno
profissional e esto vinculados ao acesso a determinados benefcios sociais de ordem
material e financeira, em que se inclui a aquisio de bens e de servios. Ou ainda, so
realizados para servir como subsdio para o arbtrio de situaes conflituosas como tpico
do campo sociojurdico. Assim acontece em inmeros espaos sociocupacionais presentes
na organizao dos mais variados servios e programas vinculados s polticas pblicas, ao
judicirio de maneira geral, as organizaes privadas e tambm s organizaes no-
governamentais (ONGs).
No mbito das polticas pblicas, destaca-se a seguridade social, rea em que os
estudos sociais so largamente utilizados. Na Assistncia Social, so utilizados tanto para o
acesso de usurios ao Benefcio de Prestao Continuada (BPC), como aos programas de
transferncia de renda. Na Previdncia Social, destinam-se, concesso de benefcios,
recursos materiais e para subsidiar a deciso mdico-pericial. Na Sade, so realizados para
o acesso a determinados servios, como o caso da oxigenoterapia. Na Poltica Urbana, so
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utilizados pelas administraes municipais nos processos de iseno de impostos, caso do
Imposto Territorial Urbano (IPTU). Nos Programas Habitacionais de carter governamental
ou no, cresce o nmero de contratao de assistentes sociais para que realizem estudos
socioeconmicos, entre outras aes, com vistas aquisio e manuteno da casa prpria.
Nas empresas privadas, os estudos sociais servem para proporcionar acesso a
determinados benefcios, inclusive emprstimos financeiros. Nas ONGs destinam-se
adstrio da populao no acesso a determinados servios (creches, por exemplo) ou
concesso de diferentes auxlios. As mesmas finalidades esto presentes nos inmeros
programas vinculados s parcerias pblico-privadas to em voga atualmente. E, por fim, no
campo sociojurdico, os estudos sociais so a base para emisso de pareceres e laudos, que
inclusive tm valor de prova nos processos judiciais, Eles visam a contribuir, nas palavras
de Fvero (2004, p. 42), para a justa aplicao da lei.
Alm dos programas e servios vinculados s diferentes reas de interveno
profissional que tm os estudos sociais como finalidade precpua, merece destaque o
espao do planto social. Este existe no contexto de um grande nmero de organizaes
pblicas ou privadas, como espao tambm privilegiado de realizao de tais estudos. no
planto social que, tradicionalmente, se define o acesso a uma gama imensa de recursos e
servios dentro ou fora das organizaes. Tal definio tem na sua base a realizao de um
estudo socioeconmico/estudo social, independente de ser realizado com mais ou menos
tempo, com mais ou menos qualidade, ou ainda com mais ou menos compromisso, uma vez
que estas aes tm sido altamente desvalorizadas no contexto profissional.
Dentro desse universo de larga utilizao, que certamente extrapola os mencionados
acima, os estudos socioeconmicos assumem determinadas caractersticas e finalidades
condicionadas tanto pelas especificidades das reas (sade, educao, judicirio), como
pela natureza dos espaos sociocupacionais (o pblico, o privado) e isso tanto exige do
profissional conhecimentos relacionados a matrias especficas, como impe condutas
ticas e limites sua ao.
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Os estudos socioeconmicos/estudos sociais, como toda ao profissional, consistem
num conjunto de procedimentos, atos, atividades realizados de forma responsvel e
consciente. Contm tanto uma dimenso operativa quanto uma dimenso tica e expressa,
no momento em que se realiza a apropriao pelos assistentes sociais dos fundamentos
terico-metodolgico e tico-polticos da profisso em determinado momento histrico.
Os estudos sociais so estruturados a partir dos sujeitos para os quais a ao est
dirigida, formas de abordagem desses sujeitos, bem como pela utilizao dos instrumentos
tcnico-operativos e pela produo de documentos. Documentos esses relacionados tanto
s aes na sua singularidade, como na produo de sistematizaes como: informes e
relatrios que podem desencadear outras aes profissionais, de si ou de outros, ou
subsidiar outras instncias de planejamento, gesto e formulao de polticas sociais.
Operacionalmente, os estudos socioeconmicos/estudo social podem ser definidos
como o processo de conhecimento, anlise e interpretao de uma determinada situao
social. Sua finalidade imediata a emisso de um parecer formalizado ou no sobre tal
situao, do qual o sujeito demandante da ao/usurio depende para acessar benefcios,
servios e/ou resolver litgios. Essa finalidade ampliada quando se incluem a obteno e
anlise de dados sobre as condies econmicas, polticas, sociais e culturais da populao
atendida em programas ou servios, partir do conjunto dos estudos efetuados como
procedimento necessrio para subsidiar o planejamento e a gesto de servios e
programas, bem como a reformulao ou a formulao de polticas sociais.
Na breve apresentao sobre o que so os estudos sociais, suas finalidades e os
espaos onde essa ao profissional geralmente ocorre, o prximo passo ser conhecer um
pouco os sujeitos implicados na realizao desses estudos.
3 Estudos socioeconmicos/estudo sociais: quem so os seus sujeitos
Os estudos sociais se realizam, via de regra, a partir de demandas de um determinado
sujeito que chega a um programa ou servio. Eles devem contemplar o conhecimento da
situao em que o sujeito demandante est implicado e de suas condies de vida. Devem
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reconstruir processos sociais geradores de tal situao tendo em considerao o conjunto
de relaes e determinaes sociais para permitir um conhecimento mais amplo e profundo
e uma interpretao crtica da situao. (MIOTO, 2001; IAMAMOTO, 2004).
Tradicionalmente, a rede de relaes primrias tem sido sujeito privilegiado desse
processo, em particular, a famlia por ser o primeiro ncleo de referncia dos indivduos na
vida social e por conformar a sua condio social. De acordo com Cioffi (1998), as condies
de vida de cada indivduo dependem menos de sua situao especfica que daquela que
caracteriza sua famlia. A famlia reconhecida como instncia de proteo social, inclusive
em termos legais. No Brasil, alm de constar da Constituio Federal e do Cdigo Civil, essa
condio aparece em outras leis vinculadas proteo social. Atualmente, a Lei Orgnica da
Assistncia Social (CRESS/SC, 1999) clara em estabelecer a responsabilidade da famlia
para com seus membros quando no seu artigo 2o, item V, afirma que para o acesso aos
benefcios necessrio que se comprove que os indivduos no possuem meios de prover
sua manuteno e nem t-la provida por sua famlia (CAMPOS; MIOTO, 2003).
De acordo com a linha terica adotada neste trabalho, a famlia concebida na sua
condio histrica e as configuraes que ela vai assumindo no arco do tempo e das
culturas esto condicionadas s diferentes formas de relaes sociais estabelecidas. Assim,
reconhece-se a sua diversidade, descarta-se a ideia de modelos de estrutura e de relaes e
desprende-se do ideal do amor e da harmonia ao tomar o conflito como inerente s suas
relaes, inclusive quelas que estabelecem com outras esferas da sociedade (MIOTO,
2000).
A realizao dos estudos sociais implica, em termos gerais, conhecer as formas
assumidas pelas famlias, isto , sua estrutura de relaes tanto dentro de seus limites como
fora deles. Deve analisar como ela exerce a proteo social de seus membros e como o
Estado/Sociedade prov suas necessidades. Trata-se de um trabalho complexo que exige
clareza sobre os marcos tericos que orientam a sua compreenso, pois a falta dela pode
redundar numa ao profissional que reduz o social ao familiar e a proteo social
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solidariedade familiar. A falta de clareza pode levar perda da perspectiva de totalidade e
da lgica dos direitos e da cidadania.
Ao considerar que o ponto de partida para o conhecimento de uma determinada
situao vivida por um sujeito no contexto de suas relaes sociais a estrutura das
relaes familiares, a questo conceitual no pode ser desmerecida. Por isso, importante
saber distinguir as diversas referncias para transitar por ela e para definir o que uma
famlia. Isto propicia uma compreenso mais abrangente da situao e de suas inter-
relaes com os processos sociais, dos critrios estabelecidos para o acesso a benefcios no
mbito das polticas sociais.
Lima (2005) e Mioto e Nora (2006), apoiadas na literatura, apontam trs indicadores
importantes para definir famlia: o domiclio, o parentesco e os afetos. No indicador
domiclio, a famlia definida a partir da co-habitao na mesma unidade de moradia. O
termo domiclio refere-se estrutura fsica da residncia e ao grupo de pessoas que
residem no seu interior, sendo este o indicador utilizado pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatstica (IBGE). O IBGE classifica os domiclios em coletivos e particulares,
nos ltimos, convivem pessoas ligadas por laos de parentesco, dependncia domstica ou
normas de convivncia. Reconhece-se a existncia de vrios ncleos numa mesma unidade
de moradia quando existe independncia no acesso a determinado espao da habitao ou
quando existe independncia nas despesas de alimentao e moradia (MEDEIROS; OSRIO,
2001).
No entanto, embora a moradia seja um dos indicadores mais bvios da existncia de
uma famlia, nem sempre se considera famlia o conjunto de todas as pessoas que convivem
em seu espao. Em sentido inverso, tambm se reconhece que a organizao e as relaes
de dependncia entre os indivduos no se limitam quelas que se estabelecem dentro da
moradia. Portanto, no devem ser relegados os dois outros indicadores, a saber, o
parentesco e as relaes afetivas.
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O parentesco define-se pela existncia de laos consanguneos ou biolgicos e, no
necessariamente, coincide com a unidade de moradia ou com as relaes afetivas. No
entanto, quando se trata de famlia, a noo de parentesco um indicador importantssimo.
Toda a discusso antropolgica sobre famlia tem na categoria do parentesco sua pedra
fundamental, e esse indicador tem orientado ao longo da histria tanto as definies legais
sobre os direitos como as obrigaes familiares que rebatem fortemente nas definies
sobre os beneficirios das diferentes polticas sociais.
As relaes afetivas concorrem para se definir famlia a partir de aspectos e vivncias
subjetivas e por isso assumem caractersticas muito particulares. Nessa concepo de
famlia, podem ser includas pessoas, como amigos e vizinhos, que no tm laos nem de
parentesco e nem partilham da mesma unidade de moradia.
Apesar da distino efetuada, esses indicadores no se excluem, mas se apresentam
superpostos ou inter-relacionados e ganham sentidos diversos nas diferentes classes
sociais, nas diferentes culturas e nas diferentes formas de organizao e de convivncia das
famlias. Assim, forjam-se as estruturas e as dinmicas familiares que expressam a
constante inter-relao entre os acontecimentos prprios do curso de vida das famlias
(nascimentos, mortes, envelhecimento, casamentos, separaes), os acontecimentos e
exigncias do mundo extrafamiliar (trabalho/desemprego, migraes, exigncias
institucionais, catstrofes), as demandas individuais de seus membros, as demandas
impostas pela sociedade sobre ela. Tudo isso produz contnuas transformaes no carter
dos vnculos familiares, na natureza das competncias, nas atribuies de autoridade e de
poder e nas formas de insero dos grupos familiares na sociedade.
O conhecimento da estrutura de relaes das famlias permite chegar a um outro
ponto importante, que o entendimento de como as famlias se organizam para a satisfao
das necessidades de seus membros ou para a proviso de bem-estar. Para tanto
necessrio entender como as famlias dispem de seus prprios recursos (o trabalho, o
afeto) e de outros advindos da rede social primria, da rede social secundria (instituies,
associaes) e de direitos sociais assegurados. Nesse processo, se detectam justamente as
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condies que as famlias possuem e os mecanismos de proteo social disponveis, para
que exeram a sua proteo.
Na montagem desse quebra-cabea, torna-se possvel articular os processos familiares
com os processos sociais mais amplos e definir com maior clareza a situao em pauta. E
consequentemente, torna-se possvel propor alternativas e realizar encaminhamentos que
atendam as necessidades postas pelos sujeitos estudados e aes que permitam a
ampliao do leque de solues que podem ser estendidas a outros. O conhecimento dos
sujeitos envolvidos nos estudos implica adotar posturas profissionais, formas de
abordagens e instrumentos que estruturem a ao profissional.
4 Estudos socioeconmicos/estudo sociais: a aproximao com a realidade social e a
elaborao de documentos
Para realizar estudos sociais, necessrio aproximar-se da realidade social dos
sujeitos demandantes da ao para compreender com preciso a sua situao e poder
analis-la, avali-la ou emitir um parecer sobre ela. Prev-se que esse processo seja
conduzido de acordo com os princpios dispostos no Cdigo de tica Profissional do
Assistente Social. Na abordagem dos sujeitos, dever do assistente social inform-los
sobre os objetivos de seu trabalho, prestar as informaes solicitadas e manter o sigilo
profissional conforme dispe o captulo V do referido cdigo (CRESS, 1999, p. 17-18).
Os estudos socioeconmicos/estudos sociais se realizam pela abordagem de
determinados sujeitos implicados, diretamente ou indiretamente, na situao a ser
estudada. De acordo com Sarmento (1994, p. 281-282), a abordagem
um contato intencional de aproximao, atravs do qual criamos um espao
para o dilogo, para a troca de informaes e/ou experincias para a tomada de
conhecimento de um conjunto de particularidades necessrias a ao
profissional e, ainda, para o estabelecimento de novas relaes [...] permite a
criao de um espao para conhecimento (e interveno) desencadeando um
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processo de ao-reflexo (crtica) com a realidade e entre os sujeitos
envolvidos.
A abordagem ocorre, portanto, de diferentes formas. Nos estudos socioeconmicos
so mais comuns as abordagens individuais e grupais, realizadas atravs de instrumentos
tradicionalmente definidos pela profisso: a entrevista, a observao, a reunio, a visita
domiciliar e a anlise de documentos referentes situao.
As entrevistas supem habilidade e tcnica do assistente social para que viabilizem o
ato de conhecer. Para tanto podem ser utilizadas entrevistas estruturadas, no
estruturadas e semiestruturadas. As estruturadas so conduzidas com formulrios que
visam a obteno de determinadas informaes e que, na maioria das vezes, so
preenchidos de acordo com padres j definidos no mbito de programas ou de servios.
As no-estruturadas privilegiam o dilogo aberto, conduzido preferencialmente pelos
entrevistados. Nesse processo, as informaes vo sendo produzidas medida que os
temas surgem e se concatenam. Finalmente, as entrevistas semiestruturadas comportam
tanto a utilizao de determinados roteiros como tambm o dilogo aberto com os
entrevistados. Tem sido uma modalidade bastante adotada por permitir a obteno de
dados sobre a situao e a captao de sua dinmica.
As entrevistas podem ser realizadas de forma individual ou de forma conjunta. Essa
ltima modalidade permite observar e estudar as transaes concretas entre os sujeitos
participantes e criar uma situao em que se estabelece o dilogo entre eles sobre a
situao. So comuns, nessa modalidade, as entrevistas familiares conjuntas que
possibilitam ao assistente social compreender a dinmica e a estrutura das relaes das
famlias (MIOTO, 2001).
As visitas domiciliares, de acordo com Mioto (2001), acontecem na residncia dos
sujeitos envolvidos na situao e visam conhecer as condies de vida (residncia, bairro)
e os aspectos do cotidiano das relaes desses sujeitos que geralmente escapam s
entrevistas de gabinete. Alm da entrevista, da visita domiciliar e da observao realizada
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durante o processo de entrevistas e de visitas, os documentos gerados e que esto
relacionados situao tambm so fundamentais para o conhecimento da realidade em
questo. Os instrumentos acima referidos no devem ser vistos de maneira esttica, eles
so criados e recriados de acordo com os objetivos e com as exigncias da ao
profissional. No contexto das entrevistas e das visitas domiciliares, a observao
instrumento indispensvel, como fonte de dados e indcios sobre a realidade social.
Uma vez efetuado e documentado todo o processo, elabora-se o documento final. No
havendo um modelo institucionalmente definido, alguns pontos so fundamentais para sua
elaborao, tais como: a identificao dos sujeitos demandantes dos estudos e dos sujeitos
implicados na situao e da situao; a descrio concisa da situao estudada que deve
trabalhar, de forma organizada, o conjunto de informaes contidas nos relatrios de
entrevistas, documentos, visitas domiciliares, observaes; a anlise da situao na qual o
profissional dar a conhecer como articulou os dados da realidade com o marco terico-
metodolgica que orientou sua ao e com seu conhecimento da rea em que est se
realizando o estudo, das legislaes em vigor e de outros estudos que embasem sua
perspectiva analtica. No se trata obviamente de um ensaio terico, mas de uma anlise da
situao que permita embasar e direcionar o parecer sobre ela. O parecer deve expressar a
opinio do profissional sobre a demanda que motivou o estudo social ou responder
questes sobre a situao. Nele so sugeridos encaminhamentos possveis para atender
tanto demanda quanto situao. Destaca-se que o documento final, que expressa o
estudo social realizado, assume diversas configuraes de acordo com as caractersticas e
exigncias dos diferentes campos sociocupacionais do Servio Social.
A elaborao do documento final significa a consecuo de um objetivo importante da
ao profissional, que responder, a partir de uma perspectiva de totalidade, uma demanda
na sua singularidade. Uma vez realizados tais estudos, o assistente social passa a dispor de
um conjunto de informaes sobre as demandas e necessidades de uma determinada
populao. As informaes so fundamentais para desencadear outros processos que visem
tanto a garantia como a ampliao de direitos de cidadania, ou seja, a efetiva fruio da
proteo social. Portanto, trabalhar na realizao de estudos sociais pressupe o
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cumprimento de outros objetivos. Um deles subsidiar a realizao de diagnsticos sobre o
funcionamento de servios e programas e de processos de planejamento. Um outro
subsidiar o planejamento e a formulao de polticas sociais e o debate em espaos pblicos
(como os conselhos de direitos por exemplo). Ou seja, as informaes e as anlises geradas
a partir dos estudos podem colocar na agenda pblica o debate sobre o acesso aos direitos,
sobre como esto sendo acessados esses direitos no mbito das diferentes polticas sociais
e ainda sobre a qualidade dos servios responsveis pela execuo das polticas sociais.
Para tanto, a sistematizao das informaes, a sua anlise e a produo de documentos a
serem encaminhados para diversas instncias tambm fazem parte do conjunto de aes
profissionais do assistente social e devem ser realizadas de acordo com os princpios ticos
da profisso.
O redimensionamento dos estudos sociais exige planejamento para que as
informaes possam ser compiladas e trabalhadas posteriormente e para que contribuam
para a construo de respostas coletivas s demandas e s necessidades da populao. Eles
expressam no s as dimenses terico-metodolgicas/ tico-polticas/ tcnico-operativas
do trabalho do assistente social, mas tambm o carter investigativo da profisso.
5 Concluso
A ttulo de (in)concluso, destaca-se que, como toda ao profissional, o estudo social
coloca muitos dilemas e desafios aos assistentes sociais, pois ele se movimenta no terreno
da contradio: das contradies inerentes ao sistema capitalista que so geradoras das
mltiplas expresses da questo social e das contradies presentes no cotidiano do
trabalho profissional, que so vinculadas ao embate de projetos societrios antagnicos.
Para transitar no terreno da contradio, exige-se tanto competncia terico-metodolgica
como tico-poltica. Elas so necessrias para a anlise da conjuntura na qual os estudos
sociais se inserem, a fim de que no se reduzam efetivao de processos seletivos e nem
sejam realizados de forma simplista e desqualificada.
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Portanto, o redimensionamento dessa ao profissional na perspectiva crtica significa
o rompimento com uma perspectiva pautada na individualizao dos problemas sociais no
momento em que a hegemonia da lgica neoliberal insiste na reduo do papel do Estado
no mbito da proteo social e recoloca a famlia como instncia mxima de proteo social.
Significa tambm a afirmao do compromisso com os princpios do Cdigo de tica da
profisso que postula a defesa intransigente dos direitos humanos, a ampliao e
consolidao da cidadania, o posicionamento em favor da eqidade e da justia social.
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Introduo ao mtodo da teoria social
Jos Paulo Netto
Professor titular do Departamento de Mtodos e Tcnicas da Escola de Servio Social da
UFRJ.
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Introduo ao mtodo da teoria social
Todo comeo difcil em qualquer cincia.
(K. Marx)
Introduo
A questo do mtodo um dos problemas centrais (e mais polmicos) da teoria
social demonstra-o o esforo dos clssicos das cincias sociais: no foi por acaso que
Durkheim (1975) se ateve construo de um mtodo para a sociologia e que Weber
(1992, 2000), alm de se ocupar da conceptualizao das categorias sociolgicas,
escreveu largamente sobre metodologia. Por isto mesmo, toda aproximao sria a tais
cincias implica um esforo de clarificao metodolgica (FERNANDES, 1980). E no
casual que sempre que elas foram objeto de questionamento, o debate metodolgico
esteve em primeiro plano assim ocorreu, por exemplo, quando se tornou visvel, nos
anos 1970, a crise da sociologia acadmica (GOULDNER, 2000; MORIN, 2005; GIDDENS,
1978), e assim voltou a verificar-se quando, j aprofundada esta crise, as cincias sociais
desenvolveram explicitamente a discusso sobre os paradigmas (SANTOS, 1989,
2000).
A questo do mtodo que tambm alvo de polmica nas cincias que tm por
objeto a natureza (POPPER, 1980; GEYMONAT, 1984-1985; FEYERABEND, 1990, 2007)
apresenta-se tanto mais problemtica quanto mais est conectada a supostos de
natureza filosfica. De fato, no se pode analisar a metodologia durkheimiana sem
considerar o seu enraizamento positivista, bem como n~o se pode debater a sociologia
compreensiva de Weber sem levar em conta o neokantismo que constitui um de seus
suportes.
Tambm no que toca teoria social de Marx, a questo do mtodo se apresenta
como um n de problemas. E, neste caso, problemas que no se devem apenas a razes
de natureza terica e/ou filosfica: devem-se igualmente a razes ideopolticas na
medida em que a teoria social de Marx vincula-se a um projeto revolucionrio, a anlise
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2
e a crtica da sua concepo terico-metodolgica (e no s) estiveram sempre
condicionadas s reaes que tal projeto despertou e continua despertando. Durante o
sculo XX, nas chamadas sociedades democr|ticas, ningum teve seus direitos civis ou
polticos limitados por ser durkheimiano ou weberiano mas milhares de homens e
mulheres, cientistas sociais ou no, foram perseguidos, presos, torturados, desterrados e
at mesmo assassinados por serem marxistas.
Esta referncia ideopoltica no ser tematizada neste texto introdutrio,
elaborado especificamente para profissionais de Servio Social inscritos num processo
de formao continuada (donde, inclusive, o carter da bibliografia, citada apenas nos
idiomas mais utilizados pela categoria profissional). Mas preciso levar tal referncia
sempre em conta, porque uma parcela considervel das polmicas em torno do
pensamento de Marx parte menos de motivaes cientficas e mais de recusas
ideolgicas afinal, Marx nunca foi um obediente servidor da ordem burguesa: foi um
pensador que colocou, na sua vida e na sua obra, a pesquisa da verdade a servio dos
trabalhadores e da revoluo socialista.
1 Interpretaes equivocadas
O estudo da concepo terico-metodolgica de Marx apresenta inmeras
dificuldades desde as derivadas da sua prpria complexidade at as que se devem aos
tratamentos equivocados a que a obra marxiana foi submetida. Antes de tangenciar os
principais elementos que contribuem para superar as dificuldades especficas do tema,
cabe mencionar rapidamente alguns equvocos que decorrem das interpretaes que
deformaram, adulteraram e/ou falsificaram a concepo terico-metodolgica de Marx.
Curiosamente, quando se analisam os equvocos e as adulteraes existentes
acerca desta concepo, verifica-se que foram responsveis por eles tanto os prprios
seguidores de Marx quanto seus adversrios e detratores. Uns e outros, por razes
diferentes, contriburam decisivamente para desfigurar o pensamento marxiano.
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3
No campo marxista, muitas das deformaes tiveram por base as influncias
positivistas, dominantes nas elaboraes dos principais pensadores (Plekhanov,
Kautsky) da Segunda Internacional, organizao socialista fundada em 1889 e de grande
importncia at 1914. Essas influncias no foram superadas antes se viram
agravadas, inclusive com incidncias neopositivistas no desenvolvimento ideolgico
ulterior da Terceira Internacional (organizao comunista que existiu entre 1919 e
1943), culminando na ideologia stalinista. Delas resultou uma representao simplista
da obra marxiana: uma espcie de saber total, articulado sobre uma teoria geral do ser
(o materialismo dialtico) e sua especificao em face da sociedade (o materialismo
histrico). Sobre esta base surgiu farta literatura manualesca, apresentando o mtodo de
Marx como resumvel nos princpios fundamentais do materialismo dialtico e do
materialismo histrico, sendo a lgica dialtica aplicvel indiferentemente natureza
e sociedade, bastando o conhecimento das suas leis (as clebres leis da dialtica)
para assegurar o bom andamento das pesquisas. Assim, o conhecimento da realidade
no demandaria os sempre rduos esforos investigativos, substitudos pela simples
aplica~o do mtodo de Marx, que haveria de solucionar todos os problemas: uma
an|lise econmica da sociedade forneceria a explica~o do sistema poltico, das
formas culturais etc. Se, num texto clebre dos anos 1960, Sartre (1979) ironizava os
resultados obtidos desta maneira, j muito antes, numa carta de 5 de agosto de 1890,
Engels protestava contra procedimentos deste gnero, insistindo em que a
nossa [de Marx e dele] concepo da histria , antes de tudo, um guia
para o estudo [...]. necessrio estudar novamente toda a histria e
estudar, em suas mincias, as condies de vida das diversas formaes
sociais antes de fazer derivar delas as idias polticas, estticas,
religiosas [...] etc. que lhes correspondem (MARX;ENGELS, 1963, p. 283;
itlicos no originais).
Acresce, ainda, que, no registro dos manuais, Marx aparece geralmente como um
terico fatorialista ele teria sido aquele que, na anlise da histria e da sociedade,
situou o fator econmico como determinante em rela~o aos fatores sociais, culturais
etc. Tambm Engels, em carta de setembro de 1890, j advertira contra essa
deformao: recordando que Marx e ele sustentavam to somente a tese segundo a qual
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a produo e a reproduo da vida real apenas em ltima instncia determinavam a
histria, advertia: Nem Marx nem eu afirmamos, uma vez sequer, algo mais que isto. Se
algum o modifica, afirmando que o fato econmico o nico fato determinante,
converte aquela tese numa frase vazia, abstrata e absurda (ENGELS, op. e loc. cit., p.
284).
Tal concepo reducionista, que nada tem a ver com o pensamento de Marx,
compartilhada tambm por muitos dos adversrios tericos de Marx. Weber, por
exemplo, criticou, na concep~o materialista da histria, as explicaes
monocausalistas dos processos sociais, isto , explicaes que pretendiam esclarecer
tudo a partir de uma nica causa (ou fator); a crtica procedente se relacionada a
teorias efetivamente monocausalistas mas inteiramente inepta se referida a Marx,
que jamais recorreu a monocausalidades, uma vez que, como realou um de seus
melhores estudiosos, o ponto de vista da totalidade e no a predominncia das causas
econmicas na explicao da histria que distingue de forma decisiva o marxismo da
cincia burguesa (LUKCS, 1974, p. 41).
Atualmente, no diversificado e heterogneo campo dos adversrios (e mesmo
detratores) de Marx, porm, a crtica se concentra especialmente sobre dois eixos
temticos. O primeiro diz respeito a uma suposta irrelevncia das dimenses culturais e
simblicas no universo terico de Marx, com todas as consequncias da derivadas para
a sua perspectiva metodolgica. Apesar de amplamente difundida em meios acadmicos,
trata-se de crtica absolutamente despropositada, facilmente refutvel com o recurso
textualidade marxiana dados os limites deste texto introdutrio, recordo, to somente
como contraprovas, o peso que Marx atribui {s tradies quando tangencia a
propriedade comunal entre os eslavos (MARX, 1982, p. 18) e as suas permanentes
preocupaes com a especificidade de esferas ideais como a arte (MARX-ENGELS, 1971;
LUKCS, s.d. e 2009, p. 87-119). O segundo eixo temtico relaciona-se a um pretenso
determinismo no pensamento marxiano: a teoria social de Marx estaria comprometida
por uma teleologia evolucionista ou seja, para Marx, uma dinmica qualquer
(econmica, tecnolgica etc.) dirigiria necessria e compulsoriamente a histria para um
fim j previsto (o socialismo). Vrios estudiosos j mostraram a inconsistncia dessa
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5
crtica (MSZROS, 1993, p. 198-202; WOOD, 2006, p. 129-154; BORON et alii, 2007, p.
43-47); recentemente, contudo, ela foi retomada por um terico ps-moderno de grande
influncia no Brasil (SANTOS, 1995, p. 36-38, 243), a que dediquei uma nota crtica
(NETTO, 2004, p. 223 e ss).
Praticamente todas essas interpretaes equivocadas podem ser superadas
supondo-se um leitor sem preconceitos com o recurso a fontes que operam uma
anlise rigorosa e qualificada da obra marxiana como, por exemplo, os diferenciados
estudos de Rosdolsky (2001), Dal Pra (1971), Lukcs (1979), Dussel (1985), Bensad
(1999, terceira parte) e Mszros (2009, cap. 8).
Entretanto, a recorrncia aos prprios textos de Marx (e, eventualmente, de Marx
e Engels) que propicia o material indispensvel e adequado para o conhecimento do
mtodo que ele descobriu para o estudo da sociedade burguesa.
2 O mtodo de Marx: uma longa elaborao terica
Sabe-se que Marx (1818-1883) inicia efetivamente a sua trajetria terica em
1841, aos 23 anos, ao se doutorar em Filosofia pela Universidade de Jena. Mas entre
1843 e 1844, quando se confronta polemicamente com a filosofia de Hegel, sob a
influncia materialista de Feuerbach, que ele comea a revelar o seu perfil de pensador
original (so deste perodo os seus textos Para a questo judaica e Crtica da filosofia do
direito de Hegel. Introduo).
, porm, com o estmulo provocado pelas formulaes do jovem Engels acerca da
economia poltica que Marx vai direcionar as suas pesquisas para a anlise concreta da
sociedade moderna, aquela que se engendrou nas entranhas da ordem feudal e se
estabeleceu na Europa Ocidental na transio do sculo XVIII ao XIX: a sociedade
burguesa. De fato, pode-se circunscrever como o problema central da pesquisa marxiana
a gnese, a consolidao, o desenvolvimento e as condies de crise da sociedade
burguesa, fundada no modo de produo capitalista.
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6
Esta pesquisa, de que resultaro as bases da sua teoria social, ocupar Marx por
cerca de quarenta anos, de meados da dcada de 1840 at sua morte e pode-se
localizar o seu ponto de arranque nos Manuscritos econmico-filosficos de 1844 e a sua
culmina~o nos materiais constitutivos dO capital (MARX, 1994 e 1968-1975).
Alicerando essa pesquisa de toda uma vida, alm do profundo conhecimento que Marx
adquiriu em seu trato com os maiores pensadores da cultura ocidental e da sua ativa
participao nos processos poltico-revolucionrios da poca, est a sua re-elaborao
crtica do acmulo cultural realizado a partir do Renascimento e da Ilustrao. Com
efeito, a estruturao da teoria marxiana socorreu-se especialmente de trs linhas-de-
fora do pensamento moderno: a filosofia alem, a economia poltica inglesa e o
socialismo francs (LENIN, 1977, p. 4-27 e 35-39). Numa palavra: Marx no fez tbula
rasa do conhecimento existente, mas partiu criticamente dele.
Cabe insistir na perspectiva crtica de Marx em face da herana cultural de que era
legatrio. No se trata, como pode parecer a uma vis~o vulgar de crtica, de se
posicionar frente ao conhecimento existente para recus-lo ou, na melhor das hipteses,
distinguir nele o bom do mau. Em Marx, a crtica do conhecimento acumulado
consiste em trazer ao exame racional, tornando-os conscientes, os seus fundamentos, os
seus condicionamentos e os seus limites ao mesmo tempo em que se faz a verificao
dos contedos desse conhecimento a partir dos processos histricos reais. assim que
ele trata a filosofia de Hegel, os economistas polticos ingleses (especialmente Smith e
Ricardo) e os socialistas que o precederam (Owen, Fourier).
Avanando criticamente a partir do conhecimento acumulado, Marx empreendeu a
anlise da sociedade burguesa, com o objetivo de descobrir a sua estrutura e a sua
dinmica. Esta anlise, iniciada na segunda metade dos anos 1840, configura um longo
processo de elaborao terica, no curso de qual Marx foi progressivamente
determinando o mtodo adequado para o conhecimento veraz, verdadeiro, da realidade
social (MANDEL, 1968). Isto quer dizer, simplesmente, que o mtodo de Marx no
resulta de descobertas abruptas ou de intuies geniais ao contrrio, resulta de uma
demorada investigao: de fato, s depois de quase quinze anos das suas pesquisas
iniciais que Marx formula com preciso os elementos centrais do seu mtodo,
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formula~o que aparece na Introdu~o, redigida em 1857, aos manuscritos que,
publicados postumamente, foram intitulados Elementos fundamentais para a crtica da
economia poltica. Rascunhos. 1857-1858 (MARX, 1982, p. 3-21). nestas poucas pginas
que se encontram sintetizadas as bases do mtodo que viabilizou a an|lise contida nO
capital e a fundao da teoria social de Marx.
3 Teoria, mtodo e pesquisa
Antes de sinalizar rapidamente o processo intelectual que surge resumido na
Introdu~o referida linhas acima, e mesmo antecipando algo do contedo deste texto
de 1857, preciso esclarecer o significado que teoria tem para Marx. Para ele, a teoria
no se reduz ao exame das formas dadas de um objeto, com o pesquisador descrevendo-
o detalhadamente e construindo modelos explicativos para dar conta base de
hipteses que apontam para relaes de causa/efeito de seu movimento visvel, tal
como ocorre nos procedimentos da tradio empirista e/ou positivista. E no , tambm,
a construo de enunciados discursivos sobre os quais a chamada comunidade cientfica
pode ou no estabelecer consensos intersubjetivos, verdadeiros jogos de linguagem ou
exerccios e combates retricos, como querem alguns ps-modernos (LYOTARD, 2008;
SANTOS, 2000, cap. 1).
Para Marx, a teoria uma modalidade peculiar de conhecimento (outras
modalidades so, por exemplo, a arte, o conhecimento prtico da vida cotidiana, o
conhecimento mgico-religioso cf. MARX, 1982, p. 15). Mas a teoria se distingue de
todas essas modalidades e tem especificidade: o conhecimento terico o conhecimento
do objeto tal como ele em si mesmo, na sua existncia real e efetiva, independentemente
dos desejos, das aspiraes e das representaes do pesquisador. A teoria , para Marx,
a reproduo ideal do movimento real do objeto pelo sujeito que pesquisa: pela teoria, o
sujeito reproduz em seu pensamento a estrutura e a dinmica do objeto que pesquisa. E
esta reproduo (que constitui propriamente o conhecimento terico) ser tanto mais
correta e verdadeira quanto mais fiel o sujeito for ao objeto. Detenhamo-nos um pouco
neste ponto to importante e complexo, comeando pela prpria no~o de ideal.
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Ao mencionar a relao do seu mtodo com o de Hegel, de quem recolheu
criticamente a concepo dialtica, Marx anotou:
Meu mtodo dialtico, por seu fundamento, difere do mtodo hegeliano,
sendo a ele inteiramente oposto. Para Hegel, o processo do pensamento
[...] o criador do real, e o real apenas sua manifestao externa. Para
mim, ao contrrio, o ideal no mais do que o material transposto para a
cabea do ser humano e por ela interpretado (MARX, 1968, p. 16; itlicos
no originais).
Assim, a teoria o movimento real do objeto transposto para o crebro do
pesquisador o real reproduzido e interpretado no plano ideal (do pensamento).
Prossigamos: para Marx, o objeto da pesquisa (no caso, a sociedade burguesa) tem
existncia objetiva; no depende do sujeito, do pesquisador, para existir. O objetivo do
pesquisador, indo alm da aparncia fenomnica, imediata e emprica por onde
necessariamente se inicia o conhecimento, sendo essa aparncia um nvel da realidade e,
portanto, algo importante e no descartvel , apreender a essncia (ou seja: a
estrutura e a dinmica) do objeto. Numa palavra: o mtodo de pesquisa que propicia o
conhecimento terico, partindo da aparncia, visa alcanar a essncia do objeto1.
Alcanando a essncia do objeto, isto : capturando a sua estrutura e dinmica, por meio
de procedimentos analticos e operando a sua sntese, o pesquisador a reproduz no
plano do pensamento; mediante a pesquisa, viabilizada pelo mtodo, o pesquisador
reproduz, no plano ideal, a essncia do objeto que investigou.
O objeto da pesquisa tem, insista-se, uma existncia objetiva, que independe da
conscincia do pesquisador. Mas o objeto de Marx a sociedade burguesa um sistema
de relaes construdo pelos homens, o produto da a~o recproca dos homens (MARX,
2009, p. 244). Isto significa que a relao sujeito/objeto no processo do conhecimento
terico no uma relao de externalidade, tal como se d, por exemplo, na citologia ou
1 Para Marx, como para todos os pensadores dialticos, a distino entre aparncia e essncia primordial; com efeito, toda cincia seria suprflua se a forma de manifestao [a aparncia] e a essncia das coisas coincidissem imediatamente (MARX, 1985, III, 2, p. 271); mais ainda: As verdades cientficas sero sempre paradoxais se julgadas pela experincia de todos os dias, a qual somente capta a aparncia enganadora das coisas (MARX, 1982, p. 158). Por isto mesmo, para Marx, n~o cabe ao cientista olhar, mirar o seu objeto o olhar muito prprio dos ps-modernos, cuja epistemologia suspeita da distin~o entre aparncia e realidade (SANTOS, 1995, p. 331).
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na fsica; antes, uma relao em que o sujeito est implicado no objeto. Por isto mesmo,
a pesquisa e a teoria que dela resulta da sociedade exclui qualquer pretenso de
neutralidade, geralmente identificada com objetividade (acerca do debate que sobre
a objetividade se acumulou nas cincias sociais e na tradio marxista, cf. Lwy, 1975,
p. 11-36).
Entretanto, essa caracterstica no exclui a objetividade do conhecimento terico: a
teoria tem uma instncia de verificao da sua verdade, instncia que a prtica social e
histrica. Tomemos um exemplo: da sua anlise do movimento do capital, Marx (1968a,
p. 712-827) extraiu a lei geral da acumulao capitalista, segundo a qual, no modo de
produo capitalista, a produo da riqueza social implica, necessariamente, a
reproduo contnua da pobreza (relativa e/ou absoluta); nos ltimos cento e cinqenta
anos, o desenvolvimento das formaes sociais capitalistas somente tem comprovado a
corre~o da sua an|lise, com a quest~o social pondo-se e repondo-se, ainda que sob
expresses diferenciadas, sem soluo de continuidade. E ainda outro exemplo:
analisando o mesmo movimento do capital, Marx (1974, 1974a e 1974b) descobriu a
impossibilidade de o capitalismo existir sem crises econmicas; tambm, no ltimo sculo
e meio, a prtica social e histrica demonstrou o rigoroso acerto dessa descoberta. Essas
e outras projees plenamente confirmadas sobre o desenvolvimento do capitalismo
n~o se devem a qualquer capacidade proftica de Marx: devem-se a que sua anlise da
dinmica do capital permitiu-lhe extrair do seu objeto a lei econmica do movimento da
sociedade moderna (MARX, 1968, p. 6) no uma lei no sentido das leis fsicas ou das
leis sociais durkheimianas fixas e imut|veis, mas uma tendncia histrica determinada,
que pode ser travada ou contrarrestada por outras tendncias2.
Voltemos concepo marxiana de teoria: a teoria a reproduo, no plano do
pensamento, do movimento real do objeto. Esta reproduo, porm, no uma espcie
2 No posf|cio { segunda edi~o (1873) dO capital, Marx cita passagens de um crtico de sua obra que considera ter apreendido corretamente o seu mtodo de pesquisa, contrapondo-o aos velhos economistas [que] no compreenderam a natureza das leis econmicas porque as equipararam s leis da fsica e da qumica; ora, isto o que Marx contesta. [...] Cada perodo histrico, na sua opini~o, possui suas prprias leis (MARX, 1968, p. 15). De fato, Marx escrevera nO capital, a propsito das leis da popula~o: [...] Todo perodo histrico tem suas prprias leis [...], v|lidas dentro de limites histricos. Uma lei abstrata da populao s existe para plantas e animais e apenas na medida em que esteja excluda a a~o humana (MARX, 1968a, p. 733).
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de reflexo mecnico, com o pensamento espelhando a realidade tal como um espelho
reflete a imagem que tem diante de si. Se assim fosse, o papel do sujeito que pesquisa, no
processo do conhecimento, seria meramente passivo. Para Marx, ao contrrio, o papel do
sujeito essencialmente ativo: precisamente para apreender no a aparncia ou a forma
dada do objeto, mas a sua essncia, a sua estrutura e a sua dinmica (mais exatamente:
para apreend-lo como um processo), o sujeito deve ser capaz de mobilizar um mximo
de conhecimentos, critic-los, revis-los e deve ser dotado de criatividade e imaginao.
O papel do sujeito fundamental no processo de pesquisa. Marx, alis, caracteriza de
modo breve e conciso tal processo: na investigao, o sujeito tem de apoderar-se da
matria, em seus pormenores, de analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e
de perquirir a conex~o que h| entre elas (MARX, 1968, p. 16).
Neste processo, os instrumentos ou, se se quiser, tcnicas de pesquisa so os
mais variados, desde a anlise documental at as formas mais diversas de observao,
recolha de dados, quantificao etc.3. Esses instrumentos so meios de que se vale o
pesquisador para apoderar-se da matria, mas n~o devem ser identificados com o
mtodo: instrumentos similares podem servir (e de fato servem), em escala variada, a
concepes metodolgicas diferentes. Cabe observar que, no mais de um sculo
decorrido aps a morte de Marx, as cincias sociais desenvolveram um enorme acervo
de instrumentos (tcnicas) de pesquisa, com alcances diferenciados e todo
pesquisador deve esforar-se por conhecer este acervo, apropriar-se dele e dominar a
sua utilizao.
s quando est concluda a sua investigao (e sempre relevante lembrar que,
no domnio cientfico, toda concluso sempre provisria, sujeita comprovao,
retificao, abandono etc.) que o pesquisador apresenta, expositivamente, os resultados
a que chegou. E Marx, na sequncia imediata da ltima cita~o que fizemos, agrega: S
depois de concludo este trabalho [de investigao] que se pode descrever,
adequadamente, o movimento real. Se isto se consegue, ficar espelhada, no plano ideal,
a vida da realidade pesquisada (id., ibid.). Como se v, para Marx, os pontos de partida
3 O prprio Marx recorreu utilizao de distintas tcnicas de pesquisa (hoje caracterizadas como anlise bibliogrfica e documental, anlise textual, anlise de contedo, observao sistemtica e participante, entrevistas, instrumentos quantitativos etc.); conhece-se, inclusive, um minucioso questionrio que elaborou, disponvel em Thiollent (1986).
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so opostos: na investigao, o pesquisador parte de perguntas, questes; na exposio,
ele j parte dos resultados que obteve na investigao por isto, diz Marx, mister, sem
dvida, distinguir formalmente o mtodo de exposi~o do mtodo de pesquisa (id.,
ibid.).
importante observar que, considerado o conjunto da sua obra, Marx poucas
vezes se deteve explicitamente sobre a questo do mtodo. No casual, de fato, que
Marx nunca tenha publicado um texto especificamente dedicado ao mtodo de pesquisa
tomado em si mesmo, como algo autnomo em relao teoria ou prpria
investigao: a orientao essencial do pensamento de Marx era de natureza ontolgica
e no epistemolgica (LUKCS, 1979): por isto, o seu interesse no incidia sobre um
abstrato como conhecer, mas sobre como conhecer um objeto real e determinado
Lnin, alis, sustentava, em 1920, que o esprito do legado de Marx consistia na an|lise
concreta de uma situa~o concreta. O mesmo Lnin, uns poucos anos antes, j
compreendera que a Marx no interessava elaborar uma cincia da lgica (como o fizera
HEGEL): importava-lhe a lgica de um objeto determinado descobrir esta lgica
consiste em reproduzir idealmente (teoricamente) a estrutura e a dinmica deste objeto;
lapidar a conclus~o lenineana: [...] Marx no deixou uma Lgica, deixou a lgica de O
capital (LNIN, 1989, p. 284).
4 As formulaes terico-metodolgicas
Sublinhei, h pouco, que o mtodo de Marx no resulta de operaes repentinas, de
intuies geniais ou de inspiraes iluminadas e momentneas. Antes, o produto de
uma longa elaborao terico-cientfica, amadurecida no curso de sucessivas
aproximaes ao seu objeto. Vejamos, muito esquematicamente, os principais passos
dessa elaborao.
no segundo tero dos anos 1840 que se encontram as formulaes terico-
metodolgicas iniciais de Marx. Suas primeiras aproximaes ao materialismo devidas
influncia de Feuerbach j surgem, ntidas, numa crtica filosofia do direito de
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Hegel, redigida em dezembro de 1843 a janeiro de 1844 e logo publicada4.
especialmente no curso de 1844, quando comea a se deslocar da crtica filosfica para a
crtica da economia poltica como se verifica nos Manuscritos econmico-filosficos de
1844, s tornados pblicos em 1932 (MARX, 1994) , que essas aproximaes ganham
uma articulao claramente dialtica. No por acaso que, paralelamente redao
desses Manuscritos..., Marx retorne hegeliana Fenomenologia do Esprito,
demonstrando o domnio que j possui das suas categorias (MARX, 1994, p. 155-161), e
a leitura dos Manuscritos... se revela um conhecimento ainda insuficiente da economia
poltica, isso indica a segurana do autor no manuseio da dialtica. Manuseio que se
aprofunda na sequncia do estabelecimento da relao pessoal com Engels: no livro que
marca o comeo da sua colaborao intelectual, A sagrada famlia ou A crtica da crtica
crtica, de 1845 (MARX; ENGELS, 2003), confrontando-se com os pensadores alemes
contemporneos. Em vrias passagens, os dois jovens autores apontam a perspectiva
terica a partir da qual criticam filsofos com os quais, at pouco tempo antes,
mantinham boas relaes intelectuais.
Porm, na obra a que se dedicam em seguida, A ideologia alem (escrita em
1845/1846, mas s publicada em 1932), que surge a primeira formulao mais precisa
das suas concepes. Marx e Engels esclarecem que as suas anlises tm pressupostos,
mas se trata de pressupostos reais: constituem-nos os indivduos reais, sua a~o e suas
condies materiais de vida, tanto aquelas por eles j encontradas como as produzidas
por sua prpria a~o (MARX; ENGELS, 2007, p. 86-87)5. E escrevem que, por isto
mesmo, nas suas an|lises, n~o se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou
representam, tampouco os homens pensados, imaginados ou representados para, a
partir da, chegar aos homens de carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos [...],
do seu processo de vida real (id., ibid., p. 94; itlicos no originais). Na base dessas ideias,
est um argumento essencial:
4 Trata-se do ensaio Crtica da filosofia do direito de Hegel. Introduo, que no deve ser confundido com o manuscrito de 1843 conhecido como Crtica da filosofia do direito de Hegel, Manuscrito de Kreuznach, Manuscrito de 1843 etc. e s publicado em 1927 ambos esto disponveis em Marx (2005). 5 Observe-se nesta formula~o a antecipa~o de uma passagem clebre dO 18 brumrio de Lus Bonaparte, na qual os homens s~o tomados como, simultaneamente, autores e atores da histria: Os homens fazem a sua prpria histria, mas no a fazem como querem; no a fazem sob circunstncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado (MARX, 1969, p. 17).
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Os homens so os produtores de suas representaes, de suas idias e
assim por diante, mas os homens reais, ativos, tal como so
condicionados por um determinado desenvolvimento de suas foras
produtivas e pelo intercmbio que a ele corresponde [...]. A conscincia
no pode ser jamais outra coisa do que o ser consciente e o ser dos
homens o seu processo de vida real. [...] No a conscincia que
determina a vida, mas a vida que determina a conscincia (id., ibid.;
itlicos no originais).
Extrada da anlise da realidade histrica e expressamente materialista, esta
determinao das relaes entre o ser e a conscincia dos homens em sociedade que
permitir a Marx avanar, na segunda metade dos anos 1840, na sua anlise da
sociedade burguesa. Mas ela se insere na concepo que Marx e Engels j alcanaram
neste perodo acerca da histria, da sociedade e da cultura e que ser desenvolvida e
aprofundada nos anos seguintes. Para ambos, o ser social e a sociabilidade resulta
elementarmente do trabalho, que constituir o modelo da prxis processo,
movimento, que se dinamiza por contradies, cuja superao o conduz a patamares de
crescente complexidade e novas contradies impulsionam a outras superaes. Por
estes anos, como Engels o recordar bem mais tarde, j estavam ele e Marx de posse
de uma grande idia fundamental, que extraram de Hegel: a ideia de que n~o se pode
conceber o mundo como um conjunto de coisas acabadas, mas como um conjunto de
processos (MARX-ENGELS, 1963, p. 195). a partir desta idia fundamental
prosseguir Engels noutra oportunidade que
se concebe o mundo da natureza, da histria e do esprito como um
processo, isto , como um mundo sujeito constante mudana,
transformaes e desenvolvimento constante, procurando tambm
destacar a ntima conexo que preside este processo de
desenvolvimento e mudana. Encarada sob este aspecto, a histria da
humanidade j no se apresentava como um caos [...], mas, pelo
contrrio, se apresentava como o desenvolvimento da prpria
humanidade, que incumbia ao pensamento a tarefa de seguir [...] at
conseguir descobrir as leis internas, que regem tudo o que primeira
vista se pudesse apresentar como obra do acaso (ENGELS, 1979, p. 22).
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medida que Marx se desloca da crtica da filosofia para a crtica da economia
poltica, suas ideias ganham crescente elaborao. o que se verifica no primeiro texto
em que desenvolve com mais rigor a crtica da economia poltica o livro Misria da
filosofia (1847), de polmica com o socialista francs P.-J. Proudhon , alis, logo que l a
obra de Proudhon (Filosofia da misria, 1846) e antes mesmo de escrever a sua rplica,
Marx observa que o fracasso terico desse pensador deve-se a que ele n~o concebe
nossas instituies sociais como produtos histricos e no compreende nem a sua
origem nem o seu desenvolvimento (MARX, 2009, p. 250). Na mesma carta, Marx
esclarece como j concebe a estrutura do que constituir o objeto de pesquisa de toda a
sua vida (precisamente do qual investigar| a origem e o desenvolvimento):
O que a sociedade, qualquer que seja a sua forma? O produto da ao
recproca dos homens. Os homens podem escolher, livremente, esta ou
aquela forma social? Nada disso. A um determinado estgio de
desenvolvimento das faculdades produtivas dos homens corresponde
determinada forma de comrcio e de consumo. A determinadas fases de
desenvolvimento da produo, do comrcio e do consumo
correspondem determinadas formas de constituio social, determinada
organizao da famlia, das ordens ou das classes; numa palavra, uma
determinada sociedade civil. A uma determinada sociedade civil
corresponde um determinado estado poltico, que no mais que a
expresso oficial da sociedade civil. [...] suprfluo acrescentar que os
homens no so livres para escolher as suas foras produtivas - base de
toda a sua histria -, pois toda fora produtiva uma fora adquirida,
produto de uma atividade anterior. Portanto, as foras produtivas so o
resultado da energia prtica dos homens, mas essa mesma energia
circunscrita pelas condies em que os homens se acham colocados,
pelas foras produtivas j adquiridas, pela forma social anterior, que no
foi criada por eles e produto da gerao precedente. O simples fato de
cada gerao posterior deparar-se com foras produtivas adquiridas
pela gerao precedente [...] cria na histria dos homens uma conexo,
cria uma histria da humanidade [...]. As suas [dos homens] relaes
materiais formam a base de todas as suas relaes (id., p. 245).
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E Marx avana a indicao que, nos anos seguintes, fundamentar
persuasivamente: [...] Os homens, ao desenvolverem as suas faculdades produtivas, isto
, vivendo, desenvolvem certas relaes entre si, e [...] o modo destas relaes muda
necessariamente com a modificao e o desenvolvimento daquelas faculdades
produtivas (id., p. 250). Todas estas ideias comparecem na Misria da filosofia e so
basilares para a compreenso do mtodo de Marx. Observem-se duas passagens do
livro:
As relaes sociais esto intimamente ligadas s foras produtivas.
Adquirindo novas foras produtivas, os homens transformam o seu
modo de produo e, ao transform-lo, alterando a maneira de ganhar a
sua vida, eles transformam todas as suas relaes sociais. O moinho
movido pelo brao humano nos d a sociedade com o suserano; o
moinho a vapor d-nos a sociedade com o capitalista industrial (idem, p.
125).
Os mesmos homens que estabeleceram as relaes sociais de acordo
com a sua produtividade material produzem, tambm, os princpios, as
idias, as categorias de acordo com as suas relaes sociais. Assim, essas
idias, essas categorias so to pouco eternas quanto as relaes que
exprimem. Elas so produtos histricos e transitrios (MARX, 2009, p.
126).
ainda neste texto que Marx avana duas ideias fundamentais, que s se
desdobraro com mais elementos cerca de uma dcada depois. A primeira diz respeito
ainda s categorias econmicas, escreve ele: As categorias econmicas s~o expresses
tericas, abstraes das relaes sociais de produ~o (id., p. 125). E mais: As relaes
de produ~o de qualquer sociedade constituem um todo (id., p. 126). Trata-se, na
verdade, de duas determinaes tericas que constituiro ncleos bsicos do mtodo de
pesquisa de Marx, e a elas voltaremos logo adiante.
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Todas estas concepes e ideias, fundadas nos estudos histricos e nas anlises de
realidade que acumula a partir de meados dos anos 18406 ademais das experincias
polticas vividas no curso da revoluo de 1848 , vo adquirir um significado ainda
maior no perodo que se inicia (1850) com o exlio de Marx em Londres. Especialmente a
partir de 1852, ele se dedica obsessivamente ao estudo da sociedade burguesa: analisa
documentao histrica, percorre praticamente toda a bibliografia j produzida da
economia poltica, acompanha os desenvolvimentos da economia mundial, leva em conta
os avanos cientficos que rebatem na indstria e nas comunicaes e considera as
manifestaes das classes fundamentais (burguesia e proletariado) em face da
atualidade. Vivendo em Londres, ento capital do pas capitalista mais desenvolvido, de
um imprio de dimenses mundiais, sede do maior centro financeiro (a City), tendo
sua disposio a imprensa mais informada da economia e a mais completa biblioteca da
poca (a do British Museum), Marx pode enfim determinar precisamente, em sua plena
maturidade, o seu objeto de estudo e o seu mtodo de investigao. , pois, ao fim de
quase quinze anos de pesquisa que ele escreve, entre agosto e setembro de 1857, a
clebre Introdu~o, onde a sua concepo terico-metodolgica surge ntida7.
Ele inicia a Introdu~o delimitando com clareza o seu objeto de investigao: a
produo material, que s pode ser algo de indivduos produzindo em sociedade e,
com isto, Marx descarta figuras isoladas de indivduos nas atividades econmicas. De
fato, quando se trata [...] de produ~o, trata-se da produo em um grau determinado
do desenvolvimento social, da produ~o dos indivduos sociais. Por isto mesmo, Marx
considera que a produ~o em geral uma abstra~o, que denota apenas um fenmeno
comum a todas as pocas histrias: o fenmeno de, em qualquer poca, a produo
implicar sempre um mesmo sujeito (a humanidade, a sociedade) e um mesmo objeto (a
natureza)8. Este fenmeno confere unidade histria da humanidade, mas unidade no
6 N~o se esquea que Marx, de 1848 at o fim da vida, foi um permanente analista de conjunturas (histricas, poltico-econmicas e sociais). As incontveis anlises que ele produziu geralmente publicadas em jornais e revistas contriburam em boa medida para o seu acmulo terico. Para exemplos dessas anlises, cf. Marx (1979, 1986 e 1987). 7 Neste e nos seguintes pargrafos no farei a remisso s pginas donde se extraem as citaes de Marx, desde que retiradas da Introdu~o todas proveem de Marx (1982, p. 3-21). 8 Anos depois, nO capital, ele determinar o processo de trabalho humano (processo em que o ser humano, com sua prpria a~o impulsiona, regula e controla seu interc}mbio material com a natureza) como sempre constitudo por trs elementos: a atividade adequada a um fim, isto , o prprio trabalho; a matria a que se aplica o trabalho, o objeto de trabalho; os meios de trabalho, o instrumental de trabalho
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o mesmo que identidade: preciso distinguir as determinaes que valem para a
produ~o em geral daquelas que dizem respeito a certa poca; do contr|rio, perde-se a
historicidade na anlise, e s categorias econmicas atribuem-se vigncia e valor
eternos. Destarte, e consequentemente, Marx especifica que quer estudar uma
determinada forma histrica de produ~o material: a produ~o burguesa moderna.
Marx est convencido, em funo dos estudos histricos que j| realizara, de que a
sociedade burguesa a organizao histrica mais desenvolvida, mais diferenciada da
produ~o. E deixa bem claro que o conhecimento rigoroso da sua produ~o material
no basta para esclarecer a riqueza das relaes sociais que se objetivam no marco de
uma sociedade assim complexa; por exemplo, no trato da cultura, Marx enfatiza a
existncia de uma rela~o desigual do desenvolvimento da produ~o material face {
produ~o artstica e assinala ainda as dificuldades para clarificar de que modo as
relaes de produ~o, como relaes jurdicas, seguem um desenvolvimento desigual.
Mas por todo o acmulo terico que realizou com suas pesquisas anteriores ele est
igualmente convencido de que o passo necessrio e indispensvel para apreender inteira
a riqueza dessas relaes sociais consiste na plena compreenso da produo burguesa
moderna. Sem esta compreenso, ser impossvel uma teoria social que permita oferecer
um conhecimento verdadeiro da sociedade burguesa como totalidade (incluindo, pois, o
conhecimento para alm da sua organizao econmica das suas instituies sociais
e polticas e da sua cultura). Para elaborar a reproduo ideal (a teoria) do seu objeto
real (que a sociedade burguesa), Marx descobriu que o procedimento fundante a
anlise do modo pelo qual nele se produz a riqueza material.
A questo da riqueza material ou, mais exatamente, das condies materiais da
vida social , porm, no envolve apenas a produo, mas articula ainda a distribuio, a
troca (e a circula~o, que a troca considerada em sua totalidade) e o consumo. Por
que, ento, comear pela produo? A argumentao de Marx, baseada no
aprofundamento de seus estudos anteriores e consolidada no exlio londrino, depois de
demonstrar que a produo , em parte, consumo e este, parcialmente, produo, e
tambm depois de relacion-los distribuio e circulao, leva ao seguinte resultado:
(MARX, 1968, p. 202).
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estes momentos (produo, distribuio, troca, consumo) no so idnticos, mas todos
s~o elementos de uma totalidade, diferenas dentro de uma mesma unidade. Mas, sem
prejuzo da interao entre esses elementos, dominante o momento da produo:
A produo se expande tanto a si mesma [...] como se alastra aos demais
momentos. O processo comea de novo sempre a partir dela. Que a troca
e o consumo no possam ser o elemento predominante, compreende-se
por si mesmo. O mesmo acontece com a distribuio [...]. Uma [forma]
determinada da produo determina, pois, [formas] determinadas do
consumo, da distribuio, da troca, assim como relaes determinadas
desses diferentes fatores entre si.
Uma teoria social da sociedade burguesa, portanto, tem que possuir como
fundamento a anlise terica da produo das condies materiais da vida social. Este
ponto de partida no expressa um juzo ou uma preferncia pessoal do pesquisador: ele
uma exigncia que decorre do prprio objeto de pesquisa sua estrutura e dinmica
s sero reproduzidas com veracidade no plano ideal a partir desse fundamento; o
pesquisador s ser fiel ao objeto se atender a tal imperativo ( evidente que o
pesquisador livre para encontrar e explorar outras vias de acesso ao objeto que a
sociedade e pode, inclusive, chegar a resultados interessantes; entretanto, tais
resultados nunca articularo uma teoria social que d conta dos nveis decisivos e da
dinmica fundamental da sociedade burguesa.)9.
Uma vez determinado o seu objeto, pe-se a Marx a questo de como conhec-lo
pe-se a questo do mtodo. Aqui, nada melhor que dar a palavra ao prprio Marx:
Quando estudamos um dado pas do ponto de vista da Economia
Poltica, comeamos por sua populao, sua diviso em classes, sua
9 o caso, para ficarmos entre os cl|ssicos das cincias sociais, de Durkheim e Weber. Nas suas obras encontram-se anlises e proposies que oferecem indicaes pertinentes compreenso da vida social; dadas, porm, as suas concepes tericas e metodolgicas (todas conducentes a pensar as relaes sociais no marco de uma cincia particular e autnoma, a Sociologia, dela excluda precisamente a questo da produo material, tornada objeto de outra disciplina acadmica, a Economia), eles - mesmo Weber, que, sabe-se, interessava-se por Economia - no foram capazes de elaborar uma teoria social apta a dar conta da articulao entre relaes sociais e vida econmica. Para uma crtica de princpio Sociologia como cincia particular e autnoma, cf. Lukcs (1968, cap. VI).
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repartio entre cidades e campo [...]; os diferentes ramos da produo,
a exportao e a importao, a produo e o consumo anuais, os preos
das mercadorias etc. Parece que o correto comear pelo real e pelo
concreto, que so a pressuposio prvia e efetiva; assim, em Economia,
por exemplo, comear-se-ia pela populao, que a base e o sujeito do
ato social de produo como um todo. No entanto, graas a uma
observao mais atenta, tomamos conhecimento de que isso falso. A
populao uma abstrao se desprezarmos, por exemplo, as classes
que a compem. Por seu lado, essas classes so uma palavra vazia de
sentido se ignorarmos os elementos em que repousam, por exemplo: o
trabalho assalariado, o capital etc. Estes supem a troca, a diviso do
trabalho, os preos etc. O capital, por exemplo, sem o trabalho
assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preo etc. no nada.
Assim, se comessemos pela populao, teramos uma representao
catica do todo e, atravs de uma determinao mais precisa, atravs de
uma anlise, chegaramos a conceitos cada vez mais simples; do
concreto idealizado passaramos a abstraes cada vez mais tnues at
atingirmos determinaes as mais simples.
Como bom materialista, Marx separa claramente o que da ordem da realidade, do
objeto, do que da ordem do pensamento (o conhecimento operado pelo sujeito):
comea-se pelo real e pelo concreto, que aparecem como dados; pela anlise, um e
outro elementos so abstrados e, progressivamente, com o avano da anlise, chega-se
a conceitos, a abstraes que remetem a determinaes as mais simples. Este foi o
caminho ou, se se quiser, o mtodo:
[...] historicamente seguido pela nascente economia. Os economistas do
sculo XVII, por exemplo, comeam sempre pelo todo vivo: a populao,
a nao, o Estado, vrios Estados etc., mas terminam sempre por
descobrir, por meio da anlise, certo nmero de relaes gerais
abstratas que so determinantes, tais como a diviso do trabalho, o
dinheiro, o valor etc.
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Marx considera que este procedimento analtico foi necessrio na emergncia da
economia poltica, mas est longe de ser suficiente para reproduzir idealmente
(teoricamente) o real e o concreto. Com efeito, depois de alcanar aquelas
determinaes mais simples, teramos que voltar a fazer a viagem de modo inverso,
at dar de novo com a populao, mas desta vez no como uma representao catica de
um todo, porm como uma rica totalidade de determinaes e relaes diversas.
esta viagem de volta que caracteriza, segundo Marx, o mtodo adequado para a
elaborao terica. Ele esclarece:
O ltimo mtodo manifestamente o mtodo cientificamente exato. O
concreto concreto porque a sntese de muitas determinaes, isto ,
unidade do diverso. Por isso, o concreto aparece no pensamento como o
processo da sntese, como resultado, no como ponto de partida, ainda
que seja o ponto de partida efetivo [...]. No primeiro mtodo, a
representao plena volatiliza-se em determinaes abstratas; no
segundo, as determinaes abstratas conduzem reproduo do concreto
por meio do pensamento (itlicos no originais).
Deve-se distinguir, a esta altura, para alcanar a inteira compreenso do mtodo
que Marx considera cientificamente exato, o sentido de abstra~o e abstrato. A
abstrao a capacidade intelectiva que permite extrair da sua contextualidade
determinada (de uma totalidade) um elemento, isol-lo, examin-lo; um procedimento
intelectual sem o qual a anlise invivel alis, no domnio do estudo da sociedade, o
prprio Marx insistiu com fora em que a abstrao um recurso indispensvel para o
pesquisador10. A abstrao, possibilitando a anlise, retira do elemento abstrado as suas
determinaes mais concretas, at atingir determinaes as mais simples. Neste nvel,
o elemento abstrado torna-se abstrato precisamente o que no na totalidade de
que foi extrado: nela, ele se concretiza porquanto est| saturado de muitas
determinaes. A realidade concreta exatamente por isto, por ser a sntese de muitas
determinaes, a unidade do diverso que prpria de toda totalidade. O
10 [...] Na anlise das formas econmicas, no se pode utilizar nem microscpio nem reagentes qumicos. A capacidade de abstra~o substitui esses meios (MARX, 1968, p. 4).
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conhecimento terico , nesta medida, para Marx, o conhecimento do concreto, que
constitui a realidade, mas que no se oferece imediatamente ao pensamento: deve ser
reproduzido por este e s a viagem de modo inverso permite esta reprodu~o. J
salientamos que, em Marx, h uma contnua preocupao em distinguir a esfera do ser
da esfera do pensamento; o concreto a que chega o