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EXTRAVIO DE NOITES
2005
No espaço imenso o que não está por acaso
está por engano.
Cruzeiro Seixas
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1.
Medito sobre teu corpo enquanto se extingue uma única vela acesa. Medito com Píndaro: “sonho de uma sombra o homem”. Vestígios de meu corpo dentro do teu: bailado de sombras impossíveis que se confundem em cena e se penetram mutuamente.
2.
Lábios de seda, um plantio dentro da pele. Se me amordaçasses ainda ouvirias o salmo de minhas ânsias. Pequenos lábios do mundo, algazarra insepulta de falas que são lâminas que falos e abismos: uma linguagem de coxas, trapézio mobiliado pelo desejo. Lábios perversos que não se negam jamais. Lençol que aturde os movimentos do sigilo que acoberta. Lanterna de lábios lavrando a cena a ser escrita. Por vezes o inferno não sabe onde cair: será deserto como no princípio ou evocado por débeis ratazanas viciadas na vida eterna de um
laboratório? Mandinga entranhada em cada sílaba, o que dizem a mesma reza prelúdio gasto sobretudo do acaso guarda-sóis devassados por falta de
uso. Tocas em mim, lábios na pélvis no visgo que buscas: o que haverá de mais visionário que o temor? Sussurro em teus lábios maiores que punição alguma me levará ao arrependimento de tocá-los. Lutuosa harmonia de quantos beijos? Açoites que planejam mechas em devaneios das formas que se misturam entre si: o impossível lábio único intransitivo que ninguém o culpe por haver agido sozinho.
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3.
Como te moves dentro de mim? Arrasto-me em tua direção e danças e te desdobras em sombras que são a própria noite coberta pelo desejo. Todos nos deixamos embaraçar por um atrito de vozes dentro delas, uma arte de tocaia, ouro de enigmas. Qual o argumento de tua volúpia? O que me escreves no corpo acaso não exagera tua figura? Onde estará o centro dessa orgia que levamos a público todas as noites? O que importa? Danço com tuas sombras e entrego-me a elas diferente de mim.
4.
O espelho no canto rabisca tua imagem: um seio abusado sobre a página do livro que te dei: a magia do espelho quebrado é uma longuíssima viagem sem regresso. O verso de Cruzeiro Seixas parece ter sido escrito por meu desejo de que estivesses ali. Tão sinuosamente nua que me deixo iludir pelo jogo de atalhos de teu corpo. O espelho me decifra um sombreado de vertigens. O olhar provocando adivinhações: onde o pousarás, onde? Deixa-me ler outro verso ante teus gemidos: no espaço imenso o que não está por acaso está por engano. O espelho ainda ali, enquanto gozamos. Suores emanam das páginas de um livro lido ao revés na pele do espelho. Por vezes não sabemos se estamos chegando ou saindo. O abismo não tem ponto. Mesmo o descanso de cena é um completo desatino.
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5.
Todos os sonhos são interessantes? O que se passa entre duas realidades é tanto um inferno quanto um regozijo.
A vida cai pesadamente sobre quem recorda ou não seus sonhos e ali nesse torvelinho de agruras e desencantos entre minúcias de êxtases com ou sem conseqüências não há brevidade entre um abismo e outro e se está voltando sempre a um engodo intransponível de abandonos e decepções a paisagem fortuita viciada que sonho algum mais a reivindica.
Quem está aí? (Segundo Louis Aragon, era para ser o infinito: quem mais bateria à porta do poeta?) O disfarce acaso me julga consciente dessas ações? O mistério é uma afirmação estética?
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6.
Te viras para mim em dois tempos. Recurvas o corpo de tal forma que ânus e olhos me encaram como se eu fosse um petisco de tua cobiça. Um riso derramado sobre o rosto e a seda mínima que te cobre manuscreve fibras do encanto. Te ris. A mão sobre um ombro desnudo. Fiz várias fotos e me pergunto: por onde começo a corresponder a teu olhar? Pela insinuação de que tempo e espaço se destorcem diante do desejo ou porque teus olhos não dispensariam a cena vislumbrada? Mas tudo se dá em dois tempos. Então a memória não é nada se não volta a concretizar-se. Rio contigo, e beijo tua bunda deslumbrante.
7.
Onde estás, meu amor? No engulho de quedas, na dor de uma máscara sem rosto, no dilema de espelhos à beira da cegueira? Onde estás? A retidão do ser não corresponde à sinuosidade do dilema. O que descubro em ti é parte do que perco de mim: ceia de fantasmas, a memória servindo seus melhores pratos. Não mora mais ninguém nessa casa. Não somos mais parte de nada. Reuno ações em busca de algo perdido. Onde estás, meu amor?
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8.
Compra-a para teu gozo, disse-me o pai, desejoso de livrar-se de uma viúva, ainda que sua filha fosse. E o fiz, sem hesitar. Aqui me tens a teus pés, senhor, disse-me a filha, disposta a servir à ceifa de aflições que me velavam o corpo. A doce mulher parecia apegada a seu destino. Mantinha os olhos vivazes sempre arregalados em busca de algo. Ao banhar-se, no antepasto, entre óleos e vinhos, mesma doçura. E foi se servindo de tudo à volta, ela própria a serva incomparável da aquilatada condição. Os olhos saltitantes, por vezes longínquos, cadentes. Aos poucos compreendi: não era apenas queda ou sedutora suavidade. Buscavam uma brecha onde voltasse a ser a infatigável dama do abismo.
9.
O corpo está tomado de véus que são cortes profundos na pele e são taças de um desastre no bosque de teus sonhos: o corpo folheado com seus recortes de gozo e estamparias laminadas que são rabiscos na pedra esboçada em teu ventre e pentelhos de fogo como árvores que se exibem ante um derrame de vozes: o corpo onde estavas quando a noite entoava ventanias e um olho a descoberto engolia toda a paisagem imaginada: o corpo em ruínas que se estreitam a recompor vertigens que são nomes inscritos em aves rochosas que se chamam coxas e um tropel de vultos ao passar de páginas de teu corpo: por noites te chamo mascando nomes como um dilema febril a confundir imagens como credenciais a evocar rasgos que anunciam a tormenta da restauração: o corpo se refazendo a cada anúncio do fim.
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10.
Agimos com palavras, e caímos em ardil quando não as prezamos acima de tudo. Não importa que seja a palavra empenhada em um jogo de cartas ou sobre o corpo de uma puta. Que esteja escrita em versos ou em discursos de posse, nada a diferencia. A palavra dada antecede qualquer ação, já o dissera um cavalo pela boca de Tolstoi. Construa ou destrua, tudo no homem se define por sua palavra. Concebe a Deus e se põe acima dele, porque assim está escrito. E escrito está o que por vezes se modifica. Porém irremovível parece restar um princípio: a palavra valerá nada se não valer o homem.
11.
Medito sobre teu corpo enquanto se extingue uma única vela acesa.
A sombra de versos caindo sobre nós, hordas de angústia e dilemas, tuas pernas alucinadas desenham um mote por onde começar a ruir toda a medida do mundo, sopa de preâmbulos, chá de reservas, pernas multiplicadas em enlaces e desenlaces, um clã de cicatrizes a projetar sombras queimantes, erupções de fálicos tormentos, zona de incidentes vulgares, falas entrecortadas, atores com dificuldades em relação à trama ensaiada, um pianista bêbado e a namorada encharcada de pó desentoando a vontade de alguns darem por certo o valor daquela montagem, o teatro despencando como uma casa abandonada, quedas sangrando de si, umas a perguntarem-se onde cairemos se não há mais ninguém em parte alguma, e outras querendo ouvir a mesma canção, vício de viagem, erma travessia de uma parte a outra, o mundo sem sentido, os próprios versos agora a desabarem, nossos corpos um único altar, todas as figuras de um sacrifício representadas por nós mesmos, tu e eu, apenas tu e eu, meto-me em ti, a vela já de todo extinta, e gemes esvoaçante ante o abismo que redesenhamos, caímos, caímos, os corpos não vislumbram nada
além da queda, e apenas assim
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te crias dentro de mim, assim unicamente me descubro em ti,
os vestígios somos nós, as sombras somos nós, o amor que temos um pelo outro, o mundo se resume a uma declaração de amor, não há dúvida, desde que a palavra seja o altar sagrado dos gestos, da afirmação de tudo quanto sentimos, e em tudo o que desejamos há uma vertigem de extravios, astucioso dilema, enquanto teu rosto descansa em minhas coxas indago sobre o que nos leva a escrever, a palavra gasta, se acaso não deveríamos buscar uma outra forma de expressão, ris e gozas e choras e te pões a imaginar estranhas figuras que nos visitam enquanto brinco com teu corpo, em meio a tudo isto sabemos que:
nada,
não sabemos mais nada.
O futuro é apenas uma queda de imagem.
Tudo entre nós não passa de um susto.
As sombras se esgotam em si.
Estamos caindo do nada.
Cada minúcia de queda é toda ela em seu apogeu.
Haverá uma noite?
Algo com que se possa contar quando o extravio for tudo? Uma noite que despenque agora sobre nós a confundir-se com pálpebras pesadas e moinhos de corpos, um absurdo cálculo da intuição que nos faz sentir dor e se põe a rasgar páginas e páginas de um livro que julgávamos escrito? Haverá a janela narrativa dos sonhos ou o beiço sedutor de umas palavras escapadas em silêncio, algo que se anuncie com aquele estupor do ar de que falava René Char? Ao que parece, os caminhos se abrem a toque de perdas, o descobrir-se é um ritmo vertiginoso de desfazimentos, assim te amo, assim me amas. Medito sobre teu corpo enquanto se extingue uma única vela acesa. A noite banha-se através dos signos que a martirizam: seja noite,
em oculta pele de palavras descobertas,
cálice de revelações,
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ecos dançarinos de dobras irreconhecíveis de corpos sugados pela veneração, viagem excêntrica do enlevo que são débeis figuras diante do espelho de faces que caminham entre gemidos e estremecem o vértice de códigos e mensagens mais simples do que a morte que nunca é a mesma em parte alguma. Um amor assim?, indagaria o poeta recolhido em seu abandono. Sim, poeta, um amor assim, não um amor aproximativo, um amor com aspecto igual à queimação de suas vísceras.
Para que a noite caia em seus vislumbres infernais.
Os rostos não se fazem ouvir de todo, e queimam-se irritados.
Tanto entusiasmo para reter coisas e nenhum para equilibrar tal dano.
Vozes gastas em elogio, precária despedida do ser.
Umas tantas sílabas trêmulas era todo o espólio da noite concentrada
em desfazer-se de si.
Medito sobre teu corpo enquanto se extingue uma única vela acesa.
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