literatura brasileira i - ufsc - 2008.pdf
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Literatura Brasileira I
Florianpolis - 2008
Alckmar Luiz dos Santos
Cristiano de Sales
1Perodo
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Ficha Catalogrfica
S237lSantos, Alckmar Luiz dosLiteratura brasileira I / Alckmar Luiz dos Santos, Cristiano de Sales .Florianpolis : LLV/CCE/UFSC, 2008.
91p. : 28cmISBN 978-85-61482-03-9
1. Formao da Literatura no Brasil. 2. Manifestao literria. I. Sales, Cristiano de.II. Ttulo.
CDU 37.015.3
Elaborado por Rodrigo de Sales, supervisionado pelo setor tcnico da Biblioteca Universitria da
Universidade Federal de Santa Catarina
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Sumrio
Unidade A ............................................................................................ 9
Elementos constitutivos de uma literatura nacional1 ......................11
1.1 Literatura como sistema ................................................................................11
1.2 Uma literatura empenhada ...........................................................................12
1.3 Pressupostos .......................................................................................................13
1.4 O terreno e as atitudes crticas .....................................................................13
1.5 Os elementos de compreenso ...................................................................14
1.6 Conceitos .............................................................................................................15
A Carta do escrivo da armada Pero Vaz de Caminha2 ....................17
2.1 Observaes para a leitura da Carta..........................................................19
Tempo colonial da Literatura Brasileira3 ................................................27
O Tratado da Terra do Brasil4 .....................................................................31
4.1 Observaes sobre o Tratado .......................................................................31
A Obra de Padre Jos de Anchieta5 .........................................................35
Unidade B ...........................................................................................43O Boca-do-Inferno1 ......................................................................................45
1.1 Algumas leituras em paralelo .......................................................................45
1.2 Do Antigo Estado Mquina Mercante, algumas anotaes ........... 51
A obra de Padre Antnio Vieira2 ...............................................................57
2.1 Anotaes sobre Vieira, ou a Cruz da desigualdade ............................57
2.2 O Sermo da Sexagsima ..............................................................................64
Arcadismo Brasileiro: a lira de Gonzaga3 ...............................................73
3.1 Anotaes de Uma aldeia falsa, de Antonio Candido .........................73
O Uraguai e o sculo XVIII4 ........................................................................79
4.1 Anotaes a O Uraguai eA dois sculos dO Uraguai ..................... ......79
Referncias .........................................................................................91
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Apresentao
Aperspectiva que aqui se adotar, no estudo da Literatura Brasileira,, em princpio, histrica. Isso quer dizer que sero analisadas, na
seqncia, as manifestaes literrias na Era Colonial, do sculoXVI ao XVII, baseados em dois dos mais importantes crticos brasileiros dosculo XX, Antonio Candido e Alfredo Bosi. Todavia, a abordagem histricano se esgota em si mesma e no ser a nica. Este material pretende tambmfornecer uma srie de elementos de reflexo para as leituras que sero feitas,propondo perspectivas de abordagem tanto da obra literria, quanto do ma-terial extraliterrio. Em resumo, a disciplina Literatura Brasileira I pretendeuma abordagem panormica e, claro!, no exaustiva, de alguns escritores e dealgumas obras dos sculos XVI a XVII, perodo de formao daquilo que, apartir do sculo XIX, ser chamado Literatura Brasileira. Como conseqncia,
uma srie de escritores, listados como portugueses nos compndios e man-uais lusitanos, passa a ganhar outro relevo, por estarem inseridos numa srieliterria no mais europia. Por outro lado, tambm importante salientarque essa perspectiva autnoma no pode nos impedir de entender sempre essanossa literatura dos primeiros sculos dentro do contexto artstico e estticoportugus. justamente das tenses entre ser portugus ou brasileiro que sealimentam algumas das leituras crticas mais interessantes que procuramos as-sociar s obras.
A este material impresso, se acrescenta o material desenvolvido especialmentepara a navegao na internet. Ambos se complementam e, por vezes, se reco-
brem, sem que o aluno tenha a qualquer obstculo a seu processo de aprendi-zagem. De fato, seja por meio do papel impresso, seja na tela do computador,um curso de Literatura Brasileira deve incentivar as pessoas a ler, a refletir, aescrever: ler obras literrias, crticas sobre essas obras, elementos de histrialiterria e de teoria do texto, informaes de histria e de esttica; refletir so-bre os elementos apresentados e sobre suas prprias leituras; escrever a partirde sua experincia concreta de leitor. Em funo disso, foram programadas asdiferentes atividades presenciais e no presenciais listadas no plano deensino.
De outro lado, tambm importante salientar que tais possibilidades no soas nicas. Ao leitor destas pginas sempre estar aberta (e encorajada!) a pos-sibilidade de caminhar por seus prprios meios, buscando mais informaes,alm das que aqui so colocadas: outras obras de histria e de crtica literria,outras obras literrias de outros autores, outros tipos de adaptao da obraliterria a diferentes meios (filmes, histrias em quadrinhos etc.).
Alckmar Luiz dos Santos
Cristiano de Sales
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Unidade AMomentos da Colnia
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1 Elementos constitutivos deuma literatura nacional
Apresentar e discutir os elementos constitutivos de uma literatura nacio-
nal: o que faz com que, a partir de determinada poca, se afirme a existncia
de uma literatura nacional diferente e minimamente autnoma?
LEIA!
CANDIDO, Antonio.Formao da Literatura Brasileira: momentos de-cisivos. 5. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975.
1.1 Literatura como sistema
Candido entende que a formao da literatura deve se dar manei-
ra de um sistema. Para o crtico, isso distinguiria manifestaes liter-
rias de literatura.
Em outras palavras, para Candido, literatura est definida como
um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permi-
tem reconhecer as notas dominantes duma fase. Estes denominadores
so, alm das caractersticas internas (lngua, temas, imagens), certos
elementos de natureza social e psquica, embora literariamente organi-
zados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto
orgnico da civilizao. (p. 23)
Dentre os elementos desse sistema, Candido destaca os autores
(conjunto de produtores (...) mais ou menos conscientes de seu papel),
os leitores (conjunto de receptores (...) formando os diferentes tipos de
pblico) e as obras (mecanismo transmissor, linguagem traduzida
em estilo). (p. 23) O conjunto dos trs, diramos melhor, a relao dos
trs d origem literatura.
Candido fala ainda de uma literatura enquanto fenmeno de ci-
vilizao. Para que isso ocorra, necessrio instaurar-se uma tradio
(algo que se transmite entre os homens) para que, no contato entre os
escritores de diferentes perodos, uma espcie de tocha seja passada.
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A tradio consolida-se a partir do momento em que as obras no
sejam tomadas autonomamente, mas sim dentro de um dado sistema,
articulando-se assim com outras obras.
Antonio Candido atribui o termo manifestaes literrias sobras que no se articulavam ainda nesse sistema (pensando aqui nos
textos feito no Brasil desde o sculo XVI at as academias do sculo
XVIII). Atentemos, porm, para o fato de que mesmo no estando inse-
ridos ainda no sistema da literatura brasileira, esses textos (e os autores
que surgiram nesse perodo) tm suas importncias reconhecidas pelo
crtico: perodo importante e do maior interesse, onde se prendem as
razes de nossa vida literria e surgem, sem falar dos cronistas, homens
do porte de Antnio Vieira e Gregrio de Matos... (p. 24)Para percebermos em que momento o sistema realmente se estabelece,
Candido aconselha que olhemos para os artfices imediatos, pois assim se
verifica a real continuidade que define uma tradio. E essa condio atinge
plena nitidez apenas na primeira metade do sculo XIX. (p. 25)
Antes disso, segundo o crtico, o que se pode notar uma vonta-
de de fazer literatura, que d origem a conjuntos orgnicos. E Candi-
do estabelece como incio desses conjuntos o perodo que se inicia em
1750, quando surgem as Academias dos Seletos e dos Renascidos, bem
como os primeiros trabalhos de Cludio Manuel da Costa.
1.2 Uma literatura empenhada
Empenho, nesse caso, no se restringia apenas vontade de mos-
trar que no Brasil se fazia literatura como na Europa, mas tambm se
aplica vontade de construir um pas livre (principalmente depois da
independncia). Da a importncia dada por Candido ao fato de teremou no os escritores conscincia de seus afazeres literrios.
Porm, esse esprito nacional custou certo preo em termos de estti-
ca, pois o engajamento podia muitas vezes limitar a inventividade: Como
no h literatura sem fuga do real, e tentativas de transcend-lo pela ima-
ginao, os escritores se sentiram freqentemente tolhidos no vo, preju-
dicados no exerccio da fantasia pelo peso do sentimento de misso, (...)
Por outro lado favoreceu a expresso de um contedo humano,... (p. 27)
Tendo sua poesia publi-cada apenas em 1881,
Gregrio de Matos noteria infludo no sistemada literatura antes dessa
data.
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Do ponto de vista esttico, Antonio Candido afirma ser positivo
que esse primeiro empreendimento tenha se dado no sculo XVIII:
graas a isto, persistiu mais conscincia esttica do que seria de esperar
do atraso do meio e da indisciplina romntica. (p. 27)
Por outro lado, essa relao direta com a Ilustrao neoclssica fez
de nossos poetas desse perodo verdadeiros guardies da realidade.
1.3 Pressupostos
imprescindvel, para Candido, esclarecer alguns aspectos acerca
da escolha de abordar a literatura pelo vis da histria. Isso se justifica
mais ainda, se levarmos em conta o uso que se fez desse tipo de crticanos anos que antecederam a Formao: um esteticismo mal compreen-
dido procurou, nos ltimos decnios, negar validade a esta proposio
o que em parte se explica como rplica aos exageros do velho mto-
do histrico, que reduziu a literatura a episdio da investigao sobre a
sociedade, ao tomar indevidamente as obras como meros documentos,
sintomas da realidade social. (p. 30)
Deve-se tambm um pouco dessa resistncia ao mau uso do forma-
lismo que ... se fecha na viso dos elementos da fatura como universoautnomo e suficiente... (p. 30)
Porm, essa forma equivocada de abordar a histria em suas re-
laes com a literatura no desacredita o crtico que tentar estabelecer
como ponto de equilbrio de seu trabalho justamente o fino trao en-
tre contedo e forma. Na busca desse equilbrio, est o ideal do crtico:
uma crtica equilibrada no pode, todavia, aceitar essas falsas incom-
patibilidades, procurando, ao contrario, mostrar que so partes de uma
explicao tanto quanto possvel total, que o ideal do crtico... (p.31)
1.4 O terreno e as atitudes crticas
Sobre a postura e o procedimento que o crtico deve assumir, Can-
dido nos ensina que Toda crtica viva isto , que empenha a perso-
nalidade do crtico e intervm na sensibilidade do leitor parte de uma
impresso para chegar a um juzo... (p. 32)
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O arbtrio deve ser experimentado pelo crtico para que suas im-
presses pessoais (diramos melhor, suas percepes) lhe mostrem a
particularidade de cada autor, ou obra. A partir de ento, o crtico deve
relacionar essa primeira experincia com suas respectivas leituras para
que, dessa relao, haja julgamento da obra. O crtico feito pelo es-
foro de compreender, para interpretar e explicar; mas aquelas etapas se
integram no seu roteiro, que pressupe, quando completo, um elemento
perceptivo inicial, um elemento intelectual mdio, um elemento volun-
trio final. Perceber, compreender, julgar. (p. 33)
A Formao da Literaturafoi escrita num perodo em que muito se
trabalhava com o formalismo. Por isso Candido chama a ateno para
que o estudo das formas seja utilizado, sim, mas como etapa impor-tante da elaborao crtica e no como base para todo o argumento.
Nada melhor que o aprofundamento, que presenciamos, do estudo da
metfora, das constantes estilsticas, do significado profundo da forma.
Mas erigi-lo em critrio bsico um sintoma da incapacidade de ver o
homem e as suas obras de maneira una e total. (p. 33)
A filosofia e a histria fizeram, nesse sentido, um grande bem ao
pensamento crtico dos sculos XIX e XX libertando-o dos gramticos
e retores.
1.5 Os elementos de compreenso
Os elementos so exatamente aqueles do sistema literrio: social (pbli-
co), individual (escritor) e os resultados manifestados em objetos (texto).
O crtico deve abordar esses trs elementos juntos para no se tor-
nar um socilogo, psiclogo, bigrafo, esteta da lngua.(...) olhar os trs
elementos simultaneamente entender a obra como uma realidade au-tnoma, cujo valor est na frmula que obteve para plasmar elementos
no-literrios: impresses, paixes, idias, fatos... (p. 34)
Propomos a leitura do exemplo dado por Candido na pgina 35,
em que se recorta o sofrimento de trs poetas que perderam seus filhos
e que fazem da pena instrumento de alvio. Nessa passagem, o crtico
deixa claro que a inspirao pode servir como ponto de partida, mas o
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sucesso ou no, o alcance ou no do efeito literrio conseguido pelo
tratamento literrio que se d.
Diferente do que pensam os formalistas, a interpretao dos textos
literrios no dispensa os elementos no literrios. Se nos limitarmos carga emotiva e no relacionarmos todos os elementos no h crtica,
operao, segundo vimos, essencialmente de anlise, sempre que pre-
tendemos superar o impressionismo. (p. 35)
A mera ordenao de elementos formais, bem como a recorrncia a
imagens no so crtica literria se no vierem acompanhadas da anlise
que nos dar o homem e o mundo que refletido pela literatura: Um
poema revela sentimentos, idias, experincias; um romance revela isto
mesmo, com mais amplitude e menos concentrao. Um e outro valem,todavia, no por copiar a vida, como pensaria, no limite, um crtico no-
literrio; nem por criar uma expresso sem contedo, como pensaria,
tambm no limite, um formalista radical. Valem porque inventamuma
vida nova, segundo a organizao formal, tanto quanto possvel nova,
que a imaginao imprime ao seu objeto. (p. 35)
1.6 Conceitos
Quando Antonio Candido presta contas sobre a forma com que
trabalhou os conceitos em sua Formao, ele procura deixar bem clara
aquela proposta de continuidade, de tradio. Por isso, aproveita um
conceito comum histria literria, o de perodo.
proposto ainda uma troca do conceito gerao por tema: procu-
rando apontar no apenas a sua ocorrncia, num dado momento, mas a
sua retomada pelas geraes sucessivas, atravs do tempo. (p. 37)
Conceito bsico na Formao da Literatura a coernciatanto dos
acontecimentos internos quanto externos da obra. Candido entende por
coerncia uma integrao orgnica dos diferentes elementos e fatores
(meio, vida, idias, temas, imagens etc.), formando uma diretriz, um
tom, um conjunto, cuja descoberta explica a obra como frmula. (p.
38). No nvel do autor, essa coerncia se d atravs da personalidade li-
terria. E no se trata de psicologizar o autor, mas sim de buscar o trao
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afetivo, intelectual e moral do mesmo. E ela (a coerncia) se d tambm
no nvel do momento: se manifesta pela afinidade, ou carter comple-
mentar entre as obras. (p. 38)
Nesse empreendimento de desenhar uma coerncia e um estilo parao tempo e para a obra que se olha, o crtico pe em prtica aquele exerc-
cio que apontamos inicialmente: faz valer um arbtrio que d asas a sua
inventividade e depois submete o imaginrio a julgamento. Nessa ordem
que o pensador da literatura poder contribuir para o sistema literrio,
imprimindo sua prpria leitura na obra e no tempo analisados.
Leia mais!
CASTELLO, Jos Aderaldo.Manifestaes literrias do perodo colonial:1500-1808/1836. So Paulo: Cultrix, 1975.
COUTINHO, Afrnio. Introduo literatura no Brasil. Rio de Janeiro:Editora Distribuidora de Livros Escolares, 1975.
PICCHIO, Luciana Stegagno. Histria da literatura brasileira. Rio de Ja-neiro: Nova Aguilar, 1997.
ROMERO, Slvio. Historia da Literatura Brasileira: 1500-1830. Dispon-
vel em: http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0006-00768.html. Acessado em 24/08/2007.
VERSSIMO, Jos. Histria da Literatura Brasileira. Disponvel em:http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0006-00767.html.Acessado em 24/08/2007.
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A Carta do escrivo da armadaPero Vaz de Caminha
Apresentar e discutir sobre o que tido como o primeiro documentoescrito produzido no Brasil, na perspectiva da cultura europia colonizadora, a
Carta, do escrivo da armada Pero Vaz de Caminha.
LEIA!
Carta ao rei D. Manuel, de Pero Vaz de Caminha, de LeonardoArroyo (org.), So Paulo: Dominus, 1963.
http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0006-02136.html
Numa introduo crtica a uma das edies dA Cartade Caminha,
Leonardo Arroyo destaca um apontamento feito por Jaime Corteso.
Diz ele que o texto apresenta um carter eminentemente literrio da
missiva, considerando-a como obra-prima literria dum gnero muito
portugus e muito quinhentista: as cartas-narrativas de viagens, diri-
gidas a El-Rei, e em que se colhem na espontaneidade nativa das emo-
es a fora ntima dos caracteres e modos de a dizer... E diz ainda queesse texto deixa mais evidente um carter de documento que de obra de
arte, que , alis, o esprito em que est vazada.
Leonardo Arroyo v no autor dA carta um admirvel cronista,
sim, e por todos os ttulos. Em Pero Vaz de Caminha, ilustrado nas suas
observaes, transparece realmente um profundo humanista, tocado
pela graa da terra, de suas mulheres e de seus mancebos.
E os elogios vo alm: Tocado pela inocncia da terra e dos homens,
traos que se notam em muitas das passagens do documento, com um
acentuado lastro lrico, cheio de compreenso e tolerncia. (p. 11-12)
O crtico diz tambm que a carta de Pero Vaz de Caminha, a par de
sua beleza como descrio, como fotografia de um mundo novo e surpre-
endente, rica de contedo humano, de conhecimento humano... (p. 13)
No perodo de escrita do documento, 1 de maio de 1500, as nar-
rativas dos escrives das armadas eram ao depois largamente utilizado
pelos cronistas... (p. 13)
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Malheiros Dias se referiu Cartacomo certido de batismo, e Ar-
royo via essa certido como um dos mais belos na sua significao e no
realismo de seu contedo: a terra tal como era e seu gentio, no alvorecer
indeciso de uma nao... (p. 14)
Ele concorda com a opinio de Antnio Baio, que afirma: no con-
texto geral (...) a carta (...) de uma notvel naturalidade.... Diz ainda
que a maior impresso colhida por Pero Vaz de Caminha ante a nova
paisagem foi a do autctone... (p. 14)
Leonardo Arroyo lembra tambm que ela representou um registro
da surpresa e da admirao do escrivo. (p. 15)
Acompanhemos o crtico lendo passagens da Carta: As mulheres,
por outro lado, so objeto de particular admirao (...): bem novinhas
e bem gentis, com cabelos mui pretos e compridos pelas costas. Vai ele,
porm, a maior detalhe, quando se refere s suas vergonhas, to altas
e to cerradinhas e to limpas das cabeleiras que, de as ns muito bem
olharmos, no se envergonhavam. (...) atitude que seria, ao longo da his-
tria, talvez o fundamento dessa misteriosa plasticidade do portugus
em todo o mundo: a confraternizao...
Por outro lado, Arroyo parece esquecer que a empreitada colonial eli-de, desde o incio, qualquer trao dessa tolerncia que ele pretende ver no
portugus. Iluso de ptica, distoro de quem se embaraa no esttico-
literrio e esquece as mazelas do sistema colonial e a imposio destrutiva
da cultura branca, como se pode ver em passagens como ... o respeito pelo
indgena, pela sua inocncia, que ao depois, ao longo da conquista, no
seria assim to tocante, mas assim mesmo, ainda, orientado num sentido
de profunda confraternizao racial. Confraternizao de que resultaria,
principalmente, o mameluco a sintetizar as qualidades do branco e do in-
dgena em benefcio da conquista e do domnio da imensa terra. (p. 15)
Atentemo-nos ao recorte que Arroyo faz de Jacques Barzun: Pero
Vaz de Caminha totaliza amplamente um esprito humanista, inclusi-
ve na preocupao pelo encontro do ouro, motivao fundamental dos
feitos portugueses. (p. 15) Da pode-se perceber que falta indiscutivel-
mente um t no ouro que procuram os portugueses. De fato, nessa busca
obsessivas pelo ouro, eles nunca chegam ao ou(t)ro.
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2.1 Observaes para a leitura da Carta
Olhando ento para1) A Carta(da citada edio organizada por
Arroyo), notamos algumas intromisses do organizador que
parecem tirar um pouco da espontaneidade do original: Na
noite seguinte segunda-feira (quando) amanheceu, se perdeu
da frota Vasco de Atade com a sua nau, sem haver tempo for-
te ou contrrio para (isso) poder ser! (p. 28). Vejamos, mais
uma vez, a intromisso descaracterizadora do organizador: E
depois tornou (a entregar) as contas a quem lhas dera. (p. 35)
E novamente: ... para l andar com eles e saber de seu viver e
(das suas) maneiras. (p. 36)
Pensemos com mais calma naquilo que Arroyo chama de tra-2)
balho estetizante de Caminha: Ali andavam entre eles trs ou
quatro moas, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pre-
tos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, to altas e to
cerradinhas e to limpas das cabeleiras que, de as ns muito
bem olharmos, no se envergonhavam (p. 38) A partir do jogo
de palavras com o termo vergonha, poderamos pensar tam-
bm que se queria dizer: no nos envergonhvamos. Oswald
de Andrade, nos poemas de Pau-Brasil, retoma trechos como
esse. E tambm o trecho seguinte: ... Diogo Dias (...) fez-lhe ali
muitas voltas ligeiras, andando no cho, e salto real, de que se
eles espantavam e riam e folgavam muito. (p. 49)
Mais que a mera preocupao documental, v-se aqui e ali o3)
desejo de verbalizar alguma preocupao de fidelidade (o que
talvez seja herana das crnicas de Ferno Lopes) ... para afor-
mosentar nem afear, aqui no h de pr mais do que aquilo quevi e me pareceu. (p. 28)
Duas indicaes so importantes quanto ao descobrimento do4)
Brasil. Primeiro, uma designao diferente para o ato da des-
coberta: ... a notcia do achamento desta Vossa terra nova...
(p. 27). Segundo, na Cartano h indicaes da calmaria que
teria levado os navios de Cabral at o Brasil, como se pode ver
nas pginas 28-29.
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Arroyo fala de uma mistura dos ndios e dos europeus no sen-5)
tido de uma confraternizao (como se v na pgina 46). Esse
contato se d realmente nesse sentido, ou poderamos falar
mais de um confronto que de uma confraternizao?
H, ao menos, a conscincia de que o smbolo cristo no , natu-
ralmente, reconhecido pelo nativo: ... muito mais para verem a ferra-
menta de ferro com que a faziam do que para verem a cruz, porque eles
no tm coisa que de ferro seja... (p. 55)
Em certas passagens, se percebe uma dificuldade de compreenso
entre ndios e europeus, e lugar-comum atribuir essa dificuldade di-
ferena das lnguas: Mas no pde deles haver fala nem entendimentoque aproveitasse, por o mar quebrar na costa. (...) E com isto se volveu s
naus por ser tarde e no poder haver deles mais fala, por causa do mar.
(p. 55) Mas no estaria Caminha falando sobre uma falta de entendi-
mento pela posio fsica e no pela diferena das lnguas?
A compreenso que tm os portugueses dos atos e gestos dos in-
dgenas reflete, ao mesmo tempo, incapacidade para compreender o
outro, mesmo que mediada pela vontade de faz-lo, e tambm de um
sentimento de superioridade cultural e intelectual.
Os outros dois o Capito teve nas naus, aos quais deu o que j ficou
dito, nunca mais aqui apareceram fato de que deduzo que gente bestial e
de pouco saber, e por isso to esquiva. (p. 50) A questo se esse sentimen-
to natural, ao menos nos primeiros contatos com a terra e com o nativo.
patente que os portugueses consideram a f crist universal. Ademais,
a inocncia aqui associada ao puro sentimento cristo, como se um estives-
se ligado ao outro, indissoluvelmente: Parece-me gente de tal inocncia que,se ns entendssemos a sua fala eles a nossa, seriam logo cristos, visto que
no tm nem entendem crena alguma, segundo as aparncias. (p. 60)
De todo modo, essa no compreenso da religiosidade indgena
o no entender do europeu implicaria a no-existncia da religio
do mesmo teor das consideraes dos jesutas quanto a Tup, tomado
como o Deus-pai, quando ele de fato no nada disso.
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Interpretao ou imposio de sentidos? Temos a, claramente,6)
um confronto cultural. Ser que o Humanismo de Caminha se-
ria suficiente para bem compreender o alcance da cultura que
estava diante dele?
Por outro lado, a inteno propagandstica de Caminha fica bem
evidente nesse trecho, em que no consegue esconder a nsia de atrair
o interesse da Coroa e justificar o investimento e a empreitada: Mas
nem sinal de cortesia fizeram, nem de (querer) falar ao capito; nem a
algum. Todavia um deles fitou o colar do Capito, e comeou a fazer
acenos com a mo em direo terra, e depois para o colar, como se
quisesse dizer-no que havia ouro na terra. E tambm olhou para um
castial de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para
o castial, como se l tambm houvesse prata! (p. 34)
Todavia, ainda uma vez, as inseres do organizador tiram o ritmo
e a espontaneidade da expresso de Caminha.
O que, antes, era sinal de que o objeto podia ser encontrado na ter-
ra, agora se torna signo de troca. Caminha inventa, a seu bel-prazer, ou
de acordo com suas necessidades, uma estratgia de decodificao dos
gestos dos indgenas, sem se dar conta, talvez, de que ele faz os gestosdos indgenas significarem exatamente aquilo que ele deseja ou que ele
deseja que El-Rei pense: Viu um deles umas contas de rosrio, brancas;
fez sinal que lhas dessem, e folgou muito com elas, e lanou-as ao pesco-
o; (...) e acenava para a terra e novamente para as contas e para o colar
do Capito, como se dariam ouro por aquilo. Isto tomvamos ns nesse
sentido, por assim o desejarmos! Mas se ele queria dizer que levaria as
contas e mais o colar, isto no queramos ns entender, por que lho no
havamos de dar! (p. 35).Novamente, temos interpretaes pr-concebidas e ideologizadas
dos europeus. Se os ndios no se fazem entender, a superior mente
europia se faz entender pelos ndios: Ali por ento no houve mais
fala ou entendimento com eles, por a barbaria ser tamanha que se no
entendia nem ouvia ningum. Acenamo-lhes que se fossem. E assim o
fizeram e passaram-se para alm do rio. (p. 38)
Seria interessante umaanlise semitica dessasdicotomias gestos indge-nas interpretaes deCaminha.
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Aponta-se para um possvel livre-arbtrio associado aos nativos. A
preocupao de Caminha centra-se na correta interpretao dos gestos
e intenes significativas dos ndios: E concordaram em que no era
necessrio tomar por fora homens, porque costume era dos que assim
fora levavam para alguma parte dizerem que h de tudo quanto lhes
perguntam. (p. 44)
O que notamos aqui seria ingenuidade de Caminha, ou estratgia fic-
cional para que a Coroa criasse interesse na nova terra? ... mas ningum o
entendia, nem ele a ns, por mais coisas que a gente lhe perguntava com
respeito a ouro, porque desejvamos saber se o havia na terra. (p. 48)
A retrica de Caminha e os seus raciocnios valem um estudo7)
aprofundado, pois suas indues e dedues so extremamente
distorcidas por idias pr-concebidas e por preconceitos. Veja-
se, como exemplo: ... porque os seus corpos so to limpos e
to gordos e to formosos que no pode ser mais! E isto me
faz presumir que no tm casas nem moradias em que se reco-
lham; e o ar em que se criam os faz tais. (p. 50)
A imitao que fazem os indgenas dos gestos dos portugueses
interpretada por estes como reverncia natural diante da superioridade
de uma f e de uma cultura que eles no entendem, mas que sentem
instintivamente ser superior. Sculos depois e ainda no nos libertamos
dessa postura espantada diante da superioridade do que incompreen-
dido. Seria mais interessante especular como o indgena estava vendo
aquele ritual europeu e como ele tentava relacion-lo a suas realidades
imediatas. Vejamos um trecho em que isso aparece: E quando se veio
ao Evangelho, que nos erguemos todos em p, com as mos levantadas,
eles se levantaram conosco, e alaram as mos estando assim at se che-
gar ao fim; e ento tornaram-se a assentar, como ns. (p. 62)
Ora, em toda leitura, h sempre esse perigo de reduzir o texto ex-
terior a nossas vontades interiores, nossa vontade de ter razo e de en-
tender o texto perfeio. Cremos que o esforo de Caminha se insere
na viso que o cristianismo tem de si mesmo como nica f natural
e universal. Encontrar selvagens que no (re)conheciam os smbolos e
as verdades reveladas do cristianismo deveria ser uma experincia no
mnimo traumtica: E andando assim entre eles, falando-lhes, acenou
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com o dedo para o altar, e depois mostrou com o dedo para o cu, como
se lhes dissesse alguma coisa de bem; e ns assim o tomamos! (p. 64)
Um elemento que atravessa todo o discurso (entenda-se docu-8)
mento) a pretensa superioridade europia. Caminha d umacerta nfase no interesse despertado pelos brancos nos selvagens.
E quando fizemos vela estariam j na praia assentados perto do
rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado
ali aos poucos. (p. 31) O autor parece comprazer-se com esse
interesse, sem deixar de demonstrar a humildade de lei.
Evidencia-se tambm a legitimao da superioridade do branco,
demonstrada no modo como mostram objetos e seres que os europeus
dominam e que fazem medo aos nativos. Ao mesmo tempo, a con-firmao de que havia um mnimo de comunicao entre europeus e
nativos, confirmando a compreenso dos portugueses de que a suspeita
da existncia de ouro e prata era factvel. A histria da galinha, ademais,
no plausvel, se pensamos na quantidade de animais emplumados,
semelhantes a galinhas, que os ndios deviam, por certo, conhecer.
Aparecem, contudo, algumas diferenas nas interpretaes que os
nativos fazem dos portugueses. De todo modo, Caminha enfatiza sem-
pre que os europeus conseguem entender a gestualidade dos nativos e es-
tes no entendem a dos portugueses. Acenaram-lhes que pousassem os
arcos e muitos deles os iam logo pr em terra; e outros no os punham.
Andava l um que falava muito aos outros, que se afastassem. (p. 43)
Caminha no consegue esconder seu senso de superioridade, a
despeito do humanismo que lhe confere Arroyo. Mesmo os condenados
europeus seriam capazes de domesticaro nativo: ... mas sim, para os de
todo amansar e apaziguar, unicamente de deixar aqui os dois degreda-
dos quando daqui partssemos. (p. 46)
E os europeus, naturalmente, ensinam aos ndios: ... e, antes que
chegssemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos, e
acenaram que sassemos. ( p. 46)
Nota-se, at mesmo, um certo deleite ao se fazer referncia in-
genuidade do nativo: ... como se fossem mais amigos nossos do que
ns seus. (p. 61)
Mostraram-lhes um papa-gaio pardo que o capitotraz consigo; tomaram-nologo na mo e acenarampara a terra, como se oshouvesse ali. Mostraram-
lhes um carneiro; nofizeram caso dele. Mos-traram-lhes uma galinha;quase tiveram medo dela, eno lhe queriam pr a mo.Depois lhe pegaram, mascomo espantados. (p. 34)
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No que se refere ao europeu diante do Novo Mundo ressalte-se a9)
bela imagem da intromisso do estrangeiro em terras brasileiras,
indo de corrida atrs dos nativos, sendo guiados por eles, mas,
no final das contas, trazidos beira do mar-oceano para espojar-
se na gua e provar o gosto da novidade trazida pelas ondas.
Nem mesmo dissimulado foi o projeto de dominao. A imposio
cultural j detectada desde o incio. Assim, tudo no se passa exata-
mente como eles querem, mas, na verdade, como querem os europeus:
Bastar (isso para Vossa Alteza ver) que at aqui, como quer que se lhes
em alguma parte amansassem, logo de uma mo para outra se esquiva-
vam, como pardais (com medo) do cevadouro. Ningum no lhes ousa
falar de rijo, para no se esquivarem mais. E tudo se passa como eles
querem para os bem amansarmos. (p. 50)
Novamente o projeto de colonizao j visto como imposio cultu-
ral e controle estrito das manifestaes culturais por parte do portugus:
... esta gente boa e de bela simplicidade. E imprimir-se- facilmente
neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor
lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. (p. 60)
Na empresa de levar a F aos pagos apreciemos um mote propa-
gandstico do projeto colonial europeu: E o Ele nos para aqui trazercreio que no foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja
acrescentar a santa f catlica, deve cuidar da salvao deles. (p. 60).
O incio da escravido aqui mostrado quase como conseqncia na-
tural da supremacia cultural e intelectual do europeu: ... Simo de Miranda,
um que j trazia por pajem; e Aires Gomes a outro, pajem tambm. (p. 61)
No obstante, h o que se pode chamar de projeto de aculturao do
nativo: ... e foram esta noite mui bem agasalhados tanto de comida como decama, de colches e lenis como de cala, para os mais amansar. (p. 61)
Contudo, possvel uma passagem da inocncia salvao, pela
obra da pregao dos europeus: Entre todos estes que hoje (...) o que
pertence sua salvao. (p. 66)
Poderamos tambm falar de uma publicidade oficial: Em tal ma-
neira graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se- nela tudo; por cau-
sa das guas que tem! (p. 67)
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O argumento da catequizao serve algumas vezes, na pena de Ca-
minha, para encobrir o projeto comercial: At agora no pudemos sa-
ber se h ouro ou prata nela (...) Contudo, o melhor fruto que dela se
pode tirar parece-me que ser salvar esta gente. E esta deve ser a princi-
pal semente que Vossa Alteza em ela deve lanar. (p. 67)
Prticas poltico-administrativas, como o clientelismo e o nepotis-
mo, j comeavam a ser praticadas em 1500, conforme mostra o prprio
documento E pois que, Senhor, certo que tanto neste cargo que levo
como em outra qualquer coisa que de Vosso servio for, Vossa Alteza h
de ser de mim muito bem servida, a Ela peo que, por me fazer singular
merc, mande vir da ilha de So Tom a Jorge de Osrio, meu genro o
que dEla receberei em muita merc. (p. 68)Por fim, destaquemos a imagem da tbula rasa aristotlica, mesmo no
que se refere crena religiosa. Atravs desse raciocnio de base escolstica,
os europeus pretendem justificar a imposio de sua cultura e de sua religio
que no seria imposio, mas ensinamento aos indgenas das verdades
que eles ainda no foram capazes de aprender no contato com o real, com a
natureza. H aqui, assim, todo o projeto catequtico dos jesutas: construir a
f catlica em selvagens atrasados que ainda no tiveram a graa de conhe-
cerem a verdade revelada. Por outro lado, seria interessante especular sobrea sorte dos degredados que aqui ficaram. Mais do que converter os nativos,
de presumir que foram eles os aculturados, como os europeus dos anos
seguintes que, vivendo entre ndios antropfagos, adotaram os hbitos todos
dos nativos, para horror dos europeus recm-chegados ao Novo Mundo: E
segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente, no lhes falece outra coisa
para ser toda crist, do que entenderem-nos, porque assim tomavam aquilo
que nos viam fazer como ns mesmos; por onde pareceu a todos que nenhu-
ma idolatria nem adorao tm. (...) E por isso, se algum vier, no deixe logo
de vir clrigo para os batizar; porque j ento tero mais conhecimentos de
nossa f, pelos dois degredados que aqui entre eles ficam... (p. 65)
Leia mais!
CASTELLO, Jos Aderaldo.Manifestaes literrias do perodo colonial:1500-1808/1836. So Paulo: Cultrix, 1975.
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COUTINHO, Afrnio. Introduo literatura no Brasil. Rio de Janeiro:Editora Distribuidora de Livros Escolares, 1975.
PICCHIO, Luciana Stegagno. Histria da literatura brasileira. Rio de Ja-neiro: Nova Aguilar, 1997.
SCHLER. Donaldo. A retrica da subordinao e da insubordinaona carta do achamento. Revista Agulha. Disponvel em: http://www.revista.agulha.nom.br/dschuler.html#pero. Acessado em 24/08/2007.
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CAPTULO03Tempo colonial da Literatura Brasileira
2727
Tempo colonial da LiteraturaBrasileira
Apresentar e discutir a posio de Alfredo Bosi, quanto ao sculo XVI,
dentro da Literatura Brasileira.
LEIA!
BOSI, Alfredo. A condio colonial. In: Histria Concisa da Literatura
Brasileira. So Paulo: Cultrix, 1973, p. 11-29.
Observaes sobre a condio colonial
A condio colonial, mesmo que determinada parcialmente1)
pela cultura europia, teve de adaptar-se s condies e s con-
tingncias locais. No se tratou apenas de uma transposio da
mentalidade europia, mas de um modo de ver europeu que foi
levado a ver coisa totalmente nova e, por isso, modificou-se em
sua prpria maneira de ver. Vide pgina 13:
O problema das origensda nossa literatura [deve ser entendido]nos mesmos termos das outras literaturas americanas, isto , a partir
da afirmao de um complexo nacionalde vida e de pensamento.
Bosi v nas diferenas entre metrpole e colnia a origem do2)
nativismo e do incio do processo de autonomizao (criao
de esfera prpria de auto-reflexo). No final desse processo,
desenvolve-se o nacionalismo. Com isso, as questes que mar-
caram a fase colonial transcendem o prprio perodo colonial
e so fundamentais para se entender a cultura brasileira como
um todo, at os dias de hoje.
Bosi aponta que ciclos de3) ocupaoe de exploraoformaram
ilhas sociais (Bahia, Pernambuco, Minas Gerais, Rio de Janeiro,
So Paulo), que deram Colnia a fisionomia de um arqui-
plago cultural. (p. 13-14). Como conseqncia, temos dois
movimentos diferentes: a disperso do pas em subsistemas
3
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Literatura Brasileira I
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regionais, at hoje relevantes para a histria literria e a seq-
ncia de influxos da Europa, responsvel pelo paralelo que se
estabeleceu entre os momentos de alm-Atlntico e as esparsas
manifestaes literrias e artsticas do Brasil-colnia....
Haveria um paralelismo nada rigoroso entre as manifestaes4)
culturais europias e as brasileiras. Como exemplo, a coexis-
tncia do barroco arquitetnico de Aleijadinho (e outros) e os
textos neoclssicos, nas Minas Gerais.
Disso resulta, segundo Bosi, uma mistura de cdigos literrios5)
europeus maismensagens ou contedos j coloniais, um ca-
rter hbrido (...) luso-brasileiro... (p. 14).
Com a decadncia portuguesa, no sculo XVII, o Brasil passa6)
a receber manifestaes culturais j de segunda mo. O Brasil
reduzia-se condio de subcolnia... (p. 14)
E as diferenas entre a produo portuguesa e a brasileira? A rigor,7)
s laivos de nativismo, pitoresco no sculo XVII e j reivindica-
trio no sculo seguinte, podem considerar-se o divisor de guas
entre um gongrico portugus e o baiano Botelho de Oliveira, ou
entre um rcade coimbro e um lrico mineiro. (Nesses termos,haveria apenas diferenas de contedo. Seria s isso mesmo?!)
Mesmo com a Conjurao Mineira, as idias de renovao e de8)
liberdade so emprestadas da Europa, da Revoluo Francesa.
De qualquer modo, a busca de fontes ideolgicas no-portu-
guesas ou no-ibricas, em geral, j era uma ruptura consciente
com o passado e um caminho para modos de assimilao mais
dinmicos, e propriamente brasileiros, da cultura europia,
como se deu no perodo romntico. (p. 14-15)
De todo modo, o perodo inicial importante para compreen-9)
dermos em que bases se deu a mestiagem cultural (e no apenas
racial), base de nossa literatura, inserida nessa dialtica (que, em
muitos casos, no passa de hesitao) entre localismo e universa-
lismo (transposta, inclusive, para o nvel nacional, em que tam-
bm se estabelecem tenses entre local leia-se regies menos
desenvolvidas e universal regies mais desenvolvidas).
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CAPTULO03Tempo colonial da Literatura Brasileira
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Textos de informao
A respeito desses textos, Bosi afirma, na pgina 16, que en-1)
quanto informaes, no pertencem categoria do literrio,
mas pura crnica histrica e, por isso, h quem as omita porescrpulo esttico (Jos Verssimo, por exemplo, na sua Hist-
ria da literatura brasileira).
Prestemos ateno, porm, a esses textos que no tm valor2)
apenas pelo teor documental, nem apenas pelo literrio, mas
nos faz enxergar um fundamento primeiro, de imposio de
uma lngua e de descoberta de temtica e de cenrio. pgina
16, l-se: No entanto, a pr-histria das nossas letras interessa
como reflexo da viso do mundo e da linguagem que nos lega-
ram os primeiros observadores do pas.
Conseqentemente, em decorrncia da imposio de formas e3)
de assuntos, podemos ver tambm de que forma nossa produ-
o escrita reage a ... sugestes temticas e formais. Em mais de
um momento a inteligncia brasileira, reagindo contra certos
processos agudos de europeizao, procurou nas razes da terra
e do nativo imagens para se afirmar em face do estrangeiro...
Textos de origem portuguesa que merecem destaque:4)
aa) Cartade Pero Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel (...);
ob) Dirio de Navegaode Pero Lopes e Sousa, escrivo do
primeiro grupo colonizador, o de Martim Afonso de Sou-
sa (1530);
oc) Tratado da Terra do Brasil e a Histria da Provncia de
Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil de PeroMagalhes Gndavo (1576);
ad) Narrativa Epistolare os Tratados da Terra e da Gente do Brasil
do jesuta Ferno Cardim (a primeira certamente de 1583);
oe) Tratado Descritivo do Brasilde Gabriel Soares de Sousa
(1587);
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osf) Dilogos das Grandezas do Brasilde Ambrsio Fernan-
des Brando (1618);
asg) Cartas sobre a Converso dos Gentiosdo Pe. Manuel da
Nbrega;
ah) Histria do Brasildo Fr. Vicente do Salvador (1627).
Sobre Caminha, Bosi diz:
... a Cartade Caminha a D. Manuel (...) insere-se em um gnero
copiosamente representado durante o sculo XV em Portugal e Espa-
nha: a literatura de viagens...
Esprito observador, ingenuidade (no sentido de um realismo sem
pregas) e uma transparente ideologia mercantilista batizada pelo zelo
missionrio de uma cristandade ainda medieval (...) atenuando a im-
presso de selvageria que certas descries poderiam dar... (p. 16-17)
Leia mais!
CASTELLO, Jos Aderaldo.Manifestaes literrias do perodo colonial:
1500-1808/1836. So Paulo: Cultrix, 1975.
COUTINHO, Afrnio. Introduo literatura no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora Distribuidora de Livros Escolares, 1975.
PICCHIO, Luciana Stegagno. Histria da literatura brasileira. Rio de Ja-
neiro: Nova Aguilar, 1997.
SANTOS, Ilda dos. Peregrinaes braslicas Modalidades da Aventura no s-
culo XVI. O exemplo de Antony Knivet, ingls. Disponvel em: http://www.
geocities.com/ail_br/peregrinacoesbrasilicas.htm. Acessado em 24/08/2007.
Literatura de viagens. Disponvel em: http://www.instituto-camoes.pt/cvc/literatura/litviagens.htm. Acessado em 24/08/2007.
Literatura de viagens. Disponvel em: http://www.universal.pt/scripts/
hlp/hlp.exe/artigo?cod=6_145. Acessado em 24/08/2007.
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CAPTULO04O Tratado da Terra do Brasil
3131
O Tratado da Terra do Brasil
Apresentar e discutir uma das obras mais importantes
da chamada literatura informativa, o Tratado da Terra do Brasil,de Pero de Magalhes Gndavo.
LEIA!
Tratado da Terra do Brasil, de Pero de Magalhes Gndavo.
Disponvel em: http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/
texto/0006-00941.html
4.1 Observaes sobre o Tratado
Pensemos na importncia da estratgia de convencimento ou1)
de propaganda, apontada por Bosi em Tratado da Terra do Bra-
sil e Histria da Provncia Santa Cruz, de Gndavo: Ambos os
textos so, no dizer de Capistrano de Abreu, uma propaganda
da imigrao, pois cifram-se em arrolar os bens e o clima da
colnia, encarecendo a possibilidade de os reinis (especial-mente aqueles que vivem em pobreza) virem a desfrut-la. (p.
18)
Ainda nos dizeres de Bosi, o texto denota um perfil ... huma-2)
nista, catlico, interessado no proveito do Reino. (p. 18)
preciso ateno ao Nativismo da obra. De acordo com Bosi,3)
a sua atitude ntima, na esteira de Cames, e que se rastrea-
r at os picos mineiros, consiste em louvar a terra enquan-
to ocasio de glria para a metrpole. (...) o nativismo, aqui
como em outros cronistas, situa-se no nvel descritivo e no
tem qualquer conotao subjetiva ou polmica. (p. 19)
Aparecem imagens ednicas do novo mundo: ... certo otimis-4)
mo (...) quanto s potencialidades da colnia: e quem respin-
gou os louvores desses cronistas, ainda imersos em uma credu-
lidade pr-renascentista, pde falar sem rebuos em viso do
4
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Literatura Brasileira I
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paraso como leitmotivdas descries: Eldorado, den recupe-
rado, fonte da eterna juventude, mundo sem mal, volta Idade
de Ouro... (p. 19)
Na pgina 20, Bosi aponta a descrio de costumes e de elemen-5)tos scio-econmicos: Nem faltam passagens pinturescas; no
captulo Das plantas, mantimentos e frutos que h nesta Pro-
vncia...; Sua atitude em face do ndio (...) vai da observao
curiosa ao juzo moral negativo...
Atitudes preconceituosas e cheias de presuno so encontra-6)
das no Tratado: A lngua tupi carece de trs letras, convm a
saber, no se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto
porque assim no tm F, nem Lei, nem Rei, e desta maneiravivem desordenadamente sem terem alm disso conta, nem
peso, nem medido.
Uma constante preocupao mercantil tambm apontada por7)
Alfredo Bosi: A Histriatermina com uma das tnicas da li-
teratura informativa: a preocupao com o ouro e as pedras
preciosas... (p. 20)
Em outra passagem, Bosi deixa entrever que a existncia das8)riquezas, para os homens do sculo XVI, se explicaria pela pro-
vidncia divina, que aqui as colocaria para atrair a ambio dos
homens e, assim, permitir a chegada da palavra de Deus.
Olhemos um pouco mais de perto oTratado.
Logo na dedicatria, vemos o alcance poltico da literatura infor-
mativa e a importncia e originalidade (pretextada pelo autor) das vi-
ses do paraso. Isso se repete no Prlogo ao leitor, que evidencia tam-
bm uma certa rivalidade com a Espanha.
Na Declarao da costa o que se nota uma preocupao com da-
dos geogrficos, que por sua vez nos faz pensar num pragmatismo: faci-
litar a ocupao do pas e a produo de riquezas.
A partir do Captulo Primeiro, a diviso geogrfica obedece divi-
so em capitanias, imposta por Portugal, em vez de uma diviso baseada
nas diferenas tnicas entre os povos indgenas.
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CAPTULO04O Tratado da Terra do Brasil
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No Captulo Segundoo que se v uma nfase no empreendimento
mercantil e na acumulao de riquezas. E poderamos destacar tambm
um otimismo propagandstico.
No Captulo Terceiroaparecem dados demogrficos e apresentaodas foras produtivas.
Os primeiros espantos do europeu diante da especificidade brasi-
leira aparecem no Captulo Quarto. O pitoresco comea a aparecer e vai
ser presena constante na Literatura Brasileira.
No Captulo Quintotemos as primeiras descries de ndios hostis,
nota-se isso pela nfase que se d na diferena deles com relao aos de-
mais ndios (ningum os entende, so avessos a contatos com civilizados).
Com isso o europeu opera num sentido de demonizar o indgena
para justificar a violncia da empreitada colonial.
No Captulo Nonofica marcada uma cumplicidade dos jesutas na
empreitada da coroa em colonizar (a qualquer custo) a terra e sua gente.
Tratado Segundo
No Captulo Primeirodo segundo Tratadose inverte uma relao:
h uma adaptao da terra cultura europia e no o oposto; a terra
que tem de ser propcia criao de cabras e ovelhas, por exemplo. H
tambm uma defesa da base servil da economia.
No Captulo Segundovemos a recriao de imagens da terra da Co-
cagne, isto , do paraso terrestre, na viso de uma mitologia europia
medieval.
Uma hospitalidade do clima da terra pode ser observada no Cap-
tulo Terceiro.Poderamos pensar novamente numa viso ednica.
Do Captulo Quartoao Sextodestaca-se uma viso nativista, tema a
se tornar recorrente em nossa Literatura: so os casos de Bento Teixeira,
Botelho de Oliveira, Rocha Pita e tantos outros.
O Captulo Stimo traz descries dos brbaros e dos costumes
segundo a perspectiva europia, etnocntrica; em nenhum momento, se
atenta para o fato de que h tambm a perspectiva do Outro.
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Descrio que se compraz no exotismo autctone perceptvel no
Captulo Oitavo. Podemos at pensar num antecedente da postura que,
at hoje, assume grande parte dos brasileiros intelectual ou no no
exterior.
E, por fim, o Captulo Nono demonstra a cobia e predestinao
como mveis da expanso europia (e, claro, tambm da f catlica).
Leia mais!
CASTELLO, Jos Aderaldo.Manifestaes literrias do perodo colonial:1500-1808/1836. So Paulo: Cultrix, 1975.
COUTINHO, Afrnio. Introduo literatura no Brasil. Rio de Janeiro:Editora Distribuidora de Livros Escolares, 1975.
NOELLI, Francisco Silva; GUIRADO, Maria Ceclia. Relatos do descobri-mento do Brasil as primeiras reportagens Revista Brasileira de Histria.Vol. 25, n 50. So Paulo, julho/dez. de 2005. Disponvel em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-1882005000200014&script=sci_arttext.Acessado em 24/08/2007.
PICCHIO, Luciana Stegagno. Histria da literatura brasileira. Rio de Ja-
neiro: Nova Aguilar, 1997.VAZ. Joo. Upupiara: o que vive no fundo das guas. Disponvel em:http://maritimo.blogspot.com/2003/12/upupiara-o-que-vive-no-fun-do-das-uas.html. Acessado em 24/08/2007.
VERSSIMO, Jos. Histria da literatura Brasileira. Disponvel em:http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0006-00767.html.Acessado em 24/08/2007.
Livro 02. Histria da provncia Santa Cruz a que vulgarmente chamamos
Brasil. Pero de Magalhes Gndavo (1576) Histria e Estrias de um PasPrimitivo. Disponvel em: http://www.senado.gov.br/sf/senado/ilb/Bra-sildasLetras/mod1_02.html. Acessado em 24/08/2007.
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CAPTULO05Obra de Padre Jos de Anchieta
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A Obra de Padre Jos de
Anchieta
Apresentar e discutir a obra e a atuao cultural do Padre Jos de Anchieta,
segundo a perspectiva de Alfredo Bosi.
LEIA!
BOSI, Alfredo.Anchieta, ou as flechas opostas do sagrado. In: Dialticada Colonizao. 2. ed. So Paulo: Companhia das Letras, 1994.
Alfredo Bosi dedica todo um captulo de sua Dialticaa Anchieta,
por isso a importncia de se ler oAutoacompanhado das reflexes que
destacamos abaixo.
Na tentativa de utilizar a tradio literria europia com intui-1)
tos pedaggicos precisos, ou seja, catequizar os nativos, nota-
se um descompasso entre a pretenso ideolgico-pedaggica
dos jesutas e o material humano ndios e lingsticos de
que dispunham os padres: no ... idioma tupi (...) O poeta pro-
cura, no interior dos cdigos tupis, moldar uma forma poticabastante prxima das medidas trovadorescas em suas variantes
populares ibricas... (p. 64)
Os jesutas (sobretudo Anchieta) apostam na tentativa de2)
transpor o imaginrio e a linguagem do colonizador para o
espao do colonizado. Em decorrncia disso, aculturar tam-
bm sinnimo de traduzir. (...) transpor para a fala do ndio
a mensagem catlica (...) um esforo de penetrar no imagin-
rio do outro... E ainda: Como dizer aos tupis, por exemplo, apalavrapecado, se eles careciam at mesmo da sua noo (...)?
Anchieta, neste e em outros casos extremos, prefere enxertar o
vocbulo portugus... (p. 65)
Notamos ento, a criao de uma mitologia terceira, hbrida3)
entre os ndios e os europeus, cujos frutos cumpre discutir e,
talvez, questionar. A ttulo de exemplo, pensemos em trs co-
mentrios de Bosi:
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O mais comum a busca de alguma homologia (...) Bispo
Pai-guau, (...) paj maior. Nossa Senhora (...) Tupansy, me de
Tup. O reino de Deus Tupretama, terra de Tup. Igreja, coe-
rentemente tupka, casa de Tup. Alma anga, que vale tanto
para sombra quanto para o esprito dos antepassados. Demnio Anhanga, esprito errante e perigoso. Para a figura bblico-cris-
t do anjo, Anchieta cunha o vocbulo karaibeb, profeta voador
(...) A nova representao do sagrado assim produzida j no era
nem a teologia crist nem a crena tupi, mas uma terceira esfera
simblica, uma espcie de mitologia paralela que s a situao
colonial tornara possvel. (p. 66)
De qualquer modo, o que poderia significar para a mente dos
tupis, fundir o nome de Tupcom a noo de um Deus uno e
trino, ao mesmo tempo todo-poderoso, e o vulnervel Filho do
Homem dos Evangelhos?
Kara tanto o homem branco (...) quanto o profeta-cantor gua-
rani, a santidade que vai de tribo em tribo anunciando a Terra
sem Mal. Mas em que pensariam os ndios acoplando kara
idia de vo expressa em beb? Nos seus prprios xams nma-
des e videntes, mas agora dotados de asas? Ou ento em portu-
gueses alados? (p. 66)
Logo, possvel observar que a mitologia indgena perde suas4)
caractersticas tradicionais: O crculo sagrado dos indgenas
perde a unidade fortemente articulada que mantinha no estado
tribal e reparte-se, sob a ao da catequese, em zonas opostas e
inconciliveis. De um lado, o Mal, reino de Anhanga, (...). De
outro lado, o reino do Bem, onde Tup se investe de virtudes
criadoras e salvficas, em aberta contradio com o mito origi-
nal que lhe atribua precisamente os poderes aniquiladores do
raio. (p. 66)
Primeira conseqncia desse descompasso: imposio de uma5)
viso simplista e redutora: os ndios eram considerados uma
sociedade sem religio, esperando a chegada da verdadeira
religio o catolicismo. Da a afirmao de Bosi de que h em
... Anchieta (...) uma poesia e um teatro cujo correlato imagi-
nrio um mundo maniquesta cindido entre foras em perp-
tua luta... (p. 67)
Que significa raio.
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Na pgina 68, Bosi fala do que seria uma iluso de ptica do co-6)
lonizador: ... os tupis no prestavam culto organizado a deuses
e heris, foi relativamente fcil aos jesutas inferir que eles no
tivessem religio algumae preencher esse vazio teolgico com
as certezas nucleares do catolicismo, precisamente a criao e
a redeno.
Segunda conseqncia dessa viso do europeu imposta cul-7)
tura do indgena americano: a demonizao da religiosidade
indgena. De acordo com Bosi, ... se deveria buscar em outro
locus simblicoo cerne da religiosidade tupi. (...) nem em li-
turgias a divindades criadoras, nem na lembrana de mitos as-
trais, mas no culto dos mortos, no conjuro dos bons espritos eno esconjuro dos maus. (p. 68)
Acontece uma espcie de aculturao, isto , de modificao nos
esquemas culturais do indgena, mas com a inverso simblica de sua
religiosidade. De fato, a ... pregao jesutica [acaba por] diabolizar toda
cerimnia que abrisse caminho para a volta dos mortos. (p. 69)
De outro lado, a colonizao acaba apostando at na inverso do
sentido do fato histrico. Segundo Bosi, exemplar, a fala de Guaixar,
rei dos maus espritos, no auto intitulado Na Festa de So Loureno. (...)
o nome de Guaixar se deve ao fato de assim chamar-se o heri tamoio
do Cabo Frio que atacou duas vezes os lusos... (p. 70)
Como resultado, temos ... religies que tendem a edificar a figura
da conscincia pessoal unitria, como o judasmo e o cristianismo, te-
mem os rituais mgicos (...) suspeitando-os de fetichistas ou idlatras.
(...) H uma tradio multissecular de luta judeu-crist (a que no esca-
pou o islamismo) para depurar o imaginrio... (p. 71)
Em conseqncia, no caso luso-brasileiro, a ponte entre a vida
simblica dos tupis e o cristianismo acabou-se fazendo graas ao car-
ter mais sensvel, mais dctil e mais terrenal do catolicismo portugus,
se comparado com o puritanismo ingls ou holands dominante nas
colnias da Nova Inglaterra. A devoo popular ibrica no dispensa-
va o recurso s imagens; antes, multiplicava-as. Por outro lado, valia-se
muitssimo das figuras medianeiras entre o fiel e a divindade... (p. 72)
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Mas, ... as cerimnias indgenas de relao com os mortos foram
vistas, sob a tica dos viajantes e missionrios, como sintomas de barb-
rie e, mais comumente, caram sob a suspeita de demonizao. O pro-
cesso colonial impedia que a aculturao simblica se fizesse livre, lisa e
horizontalmente sem desnveis e fraturas de sentido e valor. (p. 73)
Terceira conseqncia: a demonizao da cultura indgena e da8)
natureza. De fato, isso correspondia ao espanto e ao temor dos
colonizadores postos em terra hostil, diante de uma natureza
e de costumes a que eram totalmente alheios. Diz Bosi que a
natureza que no se pde domar perigosa. Os espritos infer-
nais chamam-se, Na festa de So Loureno: boiuu, que cobra-
grande;mboitininguu
, cobra que silva, cascavel;andiraguau
,morcego-vampiro;jaguar, jaguar ou co de caa; jibia; soc;
sukuriju, sucuri, cobra que estrangula; taguat, gavio; atyra-
beb, tamandu grenhudo; guabiru, rato-de-casa; guaikuka,
cuca, rato-do-mato; kuiruru, sapo-cururu; sariguia, gamb;
mborar, abelha-preta; miaratakaka, cangamb; sebi, sangues-
suga; tamarutaka, espcie de lagosta, tajassuguaia, porco.Tudo
quanto no reino animal metia medo ou dava nojo ao europeu
vira signo dbio de entidades funestasem ambos os planos, o
natural e o sobrenatural. (p. 73-74)
Quarta conseqncia: mascaramento das verdadeiras ques-9)
tes polticas.
Do auto Na vila de Vitria:
Como o processo todo figurado e rebatido para uma cena em
que se movem entes emblemticos, o espectador no v nem co-
nhece de perto o drama histrico real, nem sequer os atos polticos
dos grupos supostamente possudos pela megera Ingratido. (...)mimar as atitudes socialmente reprovveis com falas e gestos gro-
tescos que, por hiptese, agradariam a pblicos iletrados. A moral
e o circo enlaados a servio de um interesse poltico. (p. 77)
Podemos destacar, ainda, trechos do ensaio de Bosi que nos10)
mostram a produo do colonizador dentro da colnia e o
quanto se usava de forma estratgica as alegorias para a elabo-
rao do discurso.
A esse propsito, ler Cata-tau, de Paulo Leminski.
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A inspirao dos motivos internos e a sua seqncia obedecem
lgica do pensamento mtico, mas tudo vem preso a um ponto de
vista alegrico-poltico fundamente enraizado na dinmica dos
interesses e do poder. (p. 78)
... na alegoria, o cotidiano dos grupos sociais e os seus desejos e
conflitos reduzem-se a extremos de funo exemplar: ou degra-
dam-se ao nvel bestial, ou sublimam-se pelo mecanismo ideo-
lgico que consiste em assumi-los figuradamente pelo discurso
sobre uma coisa para fazer entender outra. (p. 80)
... Anchieta (...) Nas entranhas da condio colonial concebia-se
uma retrica para as massas que s poderia assumir em grandes
esquemas alegricos os contedos doutrinrios que o agente acul-
turador se propusera incutir. A alegoria exerce um poder singularde persuaso, no raro terrvel pela simplicidade das suas imagens
e pela uniformidade da leitura coletiva. Da o seu uso como ferra-
menta de aculturao, da a sua presena desde a primeira hora
da nossa vida espiritual, plantada na Contra-Reforma... (p. 81)
Na maneira como se apresente a obra de Anchieta, a literatura11)
surge como subjetividade e como revelao. Poderamos pen-
sar numa pausa em meio ao processo colonial? ... Anchieta (...)
sua lrica (...) em vez de pregar ao tupi e ao colono, diz as suas
prprias tenses espirituais (...). A f atinge o nvel da experi-
ncia. (p. 82)
Bosi fala de duas linhas de formao potica (...) a) a prtica de
smbolos tomados vida cotidiana; b)a proliferao da linguagem ms-
tico-efusiva. (p. 82)
A transposio dos mesmos elementos de um discurso a outro12)
modifica-lhes a validade e evidencia um etnocentrismo. O co-
lonizador cai, muitas vezes, em contradio por querer fazer de
seu discurso sempre o mais importante, por ser, acima de tudo,
centralizador. Tudo quanto se condenava como inspirao
diablica na vida das comunidades tupis o uso e a celebrao
tribal da comida e da bebida, da dana e do canto, da orao e
do transe reverte positivamente Eucaristia como expresso
de um culto de teor interpessoal que se vale do alimento para
santific-lo. (p. 83)
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A religiosidade vivida e mostrada como experincia lem-13)
brando o misticismo de um San Juan de la Cruz ou de uma S-
ror Juana Inez de la Cruz. possvel percebermos a revivescn-
cia de uma ritualidade que se aproxima imperceptivelmente de
um substrato comum aos indgenas.
Algumas vezes podemos ver a cultura do colonizado desper-14)
tando latncias na cultura do colonizador. Haveria nisso uma
comunicao cultural? ... na averso que certas prticas in-
dgenas (...). Talvez (...) o pavor de recair em algum escuro e
vertiginoso poo pr-histrico submerso (...) Sacerqueria di-
zer tambm, no velho latim, tremendo e nefando (auri sacra
fames), aquilo que no se deve sequer nomear. (p. 84 )Uma diferena importante: Se nas cerimnias tupis h a difuso
do sagrado com a perda de identidade anterior (a cada ritual antrop-
fago seguia-se uma renomeao dos seus participantes), no itinerrio
cristo ortodoxo busca-se a mais perfeita realizao da alma individual
que os telogos medievais, mestres de Incio de Loyola, denominavam
visio beatifica. (p. 84)
Reatemos os fios.15)
Houve duas faces da colonizao: deturpao da cultura do colo-
nizado e incorporao de alguns de seus elementos culturais prpria
cultura do colonizador. A pedagogia da converso apagava os traos
progressistas virtuais do Evangelho fazendo-os regredir a um substituto
para a magia dos tupis. No entanto, a poesia do Anchieta [surge] outro
tempo histrico e psicolgico, o tempo da pessoa que escolhe aceitar
ou recusar o amor de um Deus pessoal e entranhadamente humano.
(p. 92) ... o que aconteceu (...) ter significado uma franca regresso da
conscincia culta europia quando absorvida pela prxis da conquista e
da colonizao. (p. 93)
Como material complementar para o tema podemos destacar
tambm alguns recortes feitos a partir do captulo I da Histria Con-
cisa, tambm de Alfredo Bosi.
Quanto informao dos jesutas ele afirma: ... to rica de infor-
maes e com um plus de inteno pedaggica e moral. (p. 21)
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E centrando fogo em Anchieta fala que ... os missionrios (...) uni-
ram sua f (neles ainda de todo ibrica e medieval) um zelo constante
pela converso do gentio... (p. 22) Fala tambm que ... s em Jos de
Anchieta que acharemos exemplos daquele veio mstico que toda obra
religiosa, em ltima anlise, deve pressupor. (p. 22) E que o enxerga
como ... diligente anotador dos sucessos de uma vida acidentada de
apstolo e mestre; para conhec-lo precisamos ler as Cartas, Informa-
es, Fragmentos Histricos e Sermes... (p. 22)
Bosi emite tambm um juzo esttico-ideolgico acerca do Padre An-
chieta: E se seus autos so definitivamente pastoris (no sentido eclesial
da palavra), destinados edificao do ndio e do branco em certas ceri-
mnias litrgicas (Auto Representado na Festa de So Loureno, Na Vila deVitria, e Na Visitao de Santa Isabel), o mesmo no ocorre com os seus
poemas que valem em si mesmos como estruturas literrias. (p. 22)
Novamente uma viso direcionada para o esttico-ideolgico: A
linguagem de A Santa Ins, Do Santssimo Sacramento e Em Deus,
meu Criador molda-se na tradio medieval espanhola e portuguesa;
em metros breves, da medida velha, Anchieta traduz a sua viso do
mundo ainda alheia ao Renascimento e, portanto, arredia em relao
aos bens terrenos. (p. 22-23)
Diz ainda que ... aqueles traos de mortificao (exasperados mais
tarde pelo jesuitismo barroco) nele servem de contraponto ao motivo
mais abrangente do alimento sagrado, smbolo da unio com Deus... (p.
24); e que, ao lado desse veio, outro igualmente religioso, mas tirante a
um cmico simples, quase simplrio no trato das comparaes... (p. 24)
Novamente a ideologia e a esttica atuando juntas: quanto aos
autos atribudos a Anchieta, deve-se insistir na sua menor autonomia
esttica: so obra pedaggica, que chega a empregar ora o portugus,
ora o tupi, conforme o interesse ou o grau de compreenso do pblico a
doutrinar. (p. 25)
E, por fim, ressalte-se a ... tradio ibrica dos vilancicos, que se
cantavam por ocasio das festas religiosas... e a constatao feita acerca
do alegrico nessa empreitada esttico-ideolgico: os autos de Anchie-
ta, como os mistriose as moralidadesda Idade Mdia, que estendiam
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at o adro da igreja o rito litrgico, materializam figuras fixas dos anjos
e dos demnios os plos do Bem e do Mal, da Virtude e do Vcio (...) da
o seu realismo, que primeira vista parece direto e bvio, ser, no fundo,
alegoria. (p. 26)
Leia mais!
CANDIDO, Antonio & CASTELLO, Jos Aderaldo. Presena da litera-tura brasileira. Das origens ao Romantismo. 7. ed. So Paulo: DifusoEuropia do Livro, 1979. V. 1.
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Unidade BRazes de um Brasil literrio
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1 O Boca-do-Inferno
Apresentar e discutir a obra e a trajetria intelectual
de Gregrio de Matos, o Boca-do-Inferno.
1.1 Algumas leituras em paralelo
LEIA!
CANDIDO, Antonio.Formao da Literatura Brasileira: momentos de-
cisivos. 5. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975.
INDO O POETA PASSEAR PELAILHA DA CAJAIBA, ENCONTROULAVANDO ROUPA A MULATA
ANNICA E LHE FEZ ESTE
ROMANCE
Gregrio de Matos
Achei Anica na onte
lavando sobre uma pedra
mais corrente, que a mesma gua,
mais limpa, que a onte mesma.
Salvei-a, achei-a corts,
alei-a, achei-a discreta
namorei-a, achei-a dura,
queixei-me, voltou-se em penha.
Fui dar Ilha uma volta,
tornei onte, e achei-a:
riu-se, no sei se de mim,
e eu ri-me todo pra ela.
Dei-lhe segunda investida,
e achei-a com mais clemncia,
ROSRIO
Vinicius de Moraes
E eu que era um menino puro
No ui perder minha inncia
No mangue daquela carne!
Dizia que era morena
Sabendo que era mulata
Dizia que era donzela
Nem isso no era ela
Era uma moa que dava.
Deixava... mesmo no mar
Onde se azia em gua
Onde de um peixe que era
Em mil se multiplicava
Onde suas mos de alga
Sobre meu corpo boiavam
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Trazendo tona guas-vivas
Onde antes no tinha nada.
Quanto meus olhos no viram
No cu da areia da praiaDuas estrelas escuras
Brilhando entre aquelas duas
Nebulosas desmanchadas
E no beberam meus beijos
Aqueles olhos noturnos
Luzindo de luz parada
Na imensa noite da ilha!Era minha namorada
Primeiro nome de amada
Primeiro chamar de filha...
Grande filha de uma vaca!
Como no me seduzia
Como no me alucinava
Como deixava, fingindo
Fingindo que no deixava!
Aquela noite entre todas
Que cica os cajus! travavam!
Como era quieto o sossego
Cheirando a jasmim-do-cabo!
Lembro que nem se mexia
O luar esverdeado
Lembro que longe, nos Ionges
Um gramoone tocava
Lembro dos seus anos vinte
Junto aos meus quinze deitados
Sob a luz verde da lua.
Ergueu a saia de um gesto
Por sobre a perna dobrada
desculpou-se com o amigo,
que estava entonces na terra.
Conchavamos, que eu voltasse
na segunda quarta-eira,que osse costa da Ilha,
e no pusesse o p em terra,
Que ela viria buscar-me
com segredo, e diligncia,
para na primeira noite
lhe dar a sacudidela.
Depois de eito o conchavopassei o dia com ela,
eu deitado a uma sombra,
ela batendo na pedra.
Tanto deu, tanto bateu
coa barriga, e coas cadeiras,
que me deu a anca endida
mil tentaes de od-la.
Quando lhe vi a culatra
to tremente, e to tremenda,
punha eu os olhos em alvo,
e dizia, Amor, pacincia.
O sabo, que pelas coxas
corria escuma deseita,
dizia-lhe eu, que seriam
gotas, que Anica j dera.
Porque segundo jogava
desde a popa proa, a perna,
antes de eu lhe ter chegado,
entendi, que se viera.
De quando em quando esregava.
a roupa ao caro da pedra,
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Mordendo a carne da mo
Me olhando sem dizer nada
Enquanto jazente eu via
Como uma anmona na guaA coisa que se movia
Ao vento que a aralhava.
Toquei-lhe a dura pevide
Entre o plo que a guardava
Beijando-lhe a coxa ria
Com gosto de cana brava.
Senti presso do dedoDesazer-se desmanchada
Como um dedal de segredo
A pequenina castanha
Gulosa de ser tocada.
Era uma dana morena
Era uma dana mulata
Era o cheiro de amarugem
Era a lua cor de prata
Mas oi s naquela noite!
Passava dando risada
Carregando os peitos loucos
Quem sabe para quem, quem sabe?
Mas como me seduzia
A negra viso escrava
Daquele eixe de guas
Que sabia ela guardava
No undo das coxas rias!
Mas como me desbragava
Na areia mole e macia!
A areia me recebia
E eu baixinho me entregava
e eu disse mate-me Deus
com puta, que assim se esrega.
Anica a roupa torcia,
e torcendo-a ela mesma,eu era, quem mais torcia,
que assim az, quem no pespega.
Estendeu a roupa ao sol,
o qual, levado da inveja
por quitar-me aquela glria,
lha enxugou a toda a pressa.
Recolheu Anica a roupa,dobrou-a, e p-la na cesta,
oi para casa, e deixou-me
a la Luna de Valencia.
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Com medo que Deus ouvisse
Os gemidos que no dava!
Os gemidos que no dava...
Por amor do que ela davaAos outros de mais idade
Que a carregaram da ilha
Para as ruas da cidade
Meu grande sonho da inncia
Angstia da mocidade.
In: Poemas, sonetos e baladas
In:Antologia PoticaIn: Poesia completa e prosa: O encon-
tro do cotidiano
Gregrio
Discreta e ormosssima Maria,
enquanto estamos vendo a qualquer hora
em tuas aces a rosada Aurora,em teus olhos e boca o sol e o dia.
Enquanto com gentil descortesia
o ar, que resco Adonis te namora,
te espalha a rica trana brilhadora,
quando vem passar-se pela ria,
goza, goza da flor da mocidade,
que o tempo trota a toda ligeireza
e imprime em toda a flor sua pisada.
, no aguardes que a madura idade
te converta em flor, essa beleza,
em terra, em cinza, em p, em sombra,em nada.
Gngora
Ilustre y hermossima Maria,
mientras se dejan ver a cualquier hora
en tus mejillas la rosada Aurora,Febo en tus ojos, y en tu rente el dia,
y mientras con gentil descortesa
mueve el viento la hebra voladora
que la Arabia en sus venas atesora
y el rico Tajo en sus atena cria....
Goza cuello, cabello, labio y rente,
antes que lo que ue en tu edad dorada
oro, lilio, clavel, cristal luciente,
no slo en plata ou viola truncada
se vulha, mas tu y ello juntamente
en tierra, en humo, en polvo, ensombra, en nada.
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Quevedo
Muchos dicen mal de mi,
y yo digo mal de muchos;
mi decir es ms valiente,por ser tantos, y ser uno.
Que todos digan verdad,
por imposible lo juzgo;
que yo la diga de todos,
con mi licencia lo dudo.
Gregrio
Querem me aqui todos mal
mas eu quero mal a todos;
eles e eu, por nossos modos,nos pagamos tal por qual.
E querendo eu mal a quantos
me tm dio to veemente,
o meu dio mais valente,
pois sou s, e eles tantos.
Gregrio
Triste Bahia! quo dessemelhante
Ests e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vi eu j, tu a mi abundante.
A ti trocou-te a mquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim oi-me trocando, e tem trocado,
Tanto negcio e tanto negociante.
Deste em dar tanto acar excelente,
Pelas drogas inteis, que abelhuda,
Simples aceitas do sagaz Brichote.
Oh se quisera Deus, que de repente,
Um dia amanheceras to sisuda
Que ra de algodo o teu capote.
Francisco Rodrigues Lobo
Formoso Tejo meu, quo dierente
te vejo e vi, me vs agora e viste:
turvo te vejo a ti, tu a mim triste,
claro te vi eu j, tu a mim contente.
A ti oi-te trocando a grossa enchente
a quem teu largo campo no resiste;
a mim trocou-me a vista, em que consiste
o meu viver contente ou descontente.
J que somos no mal participantes,
sejamo-lo no bem. O quem me dera
que ramos em tudo semelhantes!
Mas l vir a resca primavera:
tu tornars a ser quem eras dantes,
eu no sei se serei quem dantes era.
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LEIA!
No se trata talvez de perguntar se participa Gregrio de Matos
desse estado de esprito a que chamamos cultura brasileira; cabe j
perguntar sem rodeios como ele participou na formao desse es-
tado. Optando pela primeira investigao, como se duvidssemos
que uma das causas ocasiona a conseqncia; em outras palavras,
trata-se de considerar Gregrio de Matos como um dos agentes cau-
sadores da nacionalidade e no de perguntar se ele teria tido algu-
ma influncia na conseqncia (pois at mesmo Vieira, mais lusitano
que todos, tambm influenciou a nossa lbia, como j disse Oswald!)
Para pensar tais questes, importante percorrer o ensaio de AlfredoBosi, Do Antigo Estado Mquina Mercante, em Dialtica da Coloni-
zao. (2. ed. So Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 94-118).
Em seguida, novamente o soneto de Gregrio que motiva o ttulo
desse terceiro captulo da Dialtica da Colonizao.
Triste Bahia! quo dessemelhante
Ests e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vi eu j, tu a mi abundante.
A ti trocou-te a mquina mercante,
que em tua larga barra tem entrado,
A mim oi-me trocando e tem trocado
Tanto negcio e tanto negociante.
Deste em dar tanto acar excelente
Pelas drogas inteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.
Oh se quisera Deus que de repente
Um dia amanheceras to sisuda
Que ra de algodo o teu capote!
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CAPTULO0
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1.2 Do Antigo Estado Mquina Mercante,
algumas anotaes
Bosi destaca a relao de um eu lrico e de um tu: Pelo primeiro, o
eu lrico entra em simpatia com o tu, a cidade da Bahia (...). Pelo segun-
do, vem a separao: o eu, agora juiz, invoca um castigo para o outro...
(p. 94), mas no para si mesmo!
E ala ainda de como isso se desenrola nos tercetos: ... eeito inicial
de empatia (...) triste (...). A Bahia no est s magoada; tambm um
exemplo lastimvel de mudana para situao pior, de cuja responsabi-
lidade no pode isentar-se. (p. 95)
Veja como Gregrio, na concepo de Bosi, descreve a construo
lrica do poema: ... Bahia e Gregrio, o tu e o eu. sobre essa identifi-
cao prounda de sujeito e objeto que assenta a liricidade do texto: as
contradies da histria social alam aqui pela voz do indivduo. (p. 95)
A propsito do soneto de Rodrigues Lobo (acima transcrito) obser-
va Bosi o quanto o segundo quarteto obsessivo na denncia do agente
responsvel pelo desastre comum. (...) mquina mercante... (p. 96)
E ainda: A esperteza da mquina mercante, esse engenho danoso,
a Coisa por excelncia, levou a Bahia a entregar-se; e aqui se d a passa-
gem do lrico sorido (Triste Bahia!) ao satrico encrespado. (p. 97)
Sobre o que Bosi chamou de situao e estamento, o recorte eito
a partir de Gramsci, que ala (...) dos grupos ideolgicos undamen-
tais que coexistem em sociedades onde o modo de pensar capitalista e
burgus ainda est lutando, palmo a palmo, com instituies e valores
herdados ao antigo regime. (...) o intelectual eclesistico (em contrastecom o orgnico, rente ao sistema produtivo)... (p. 100)
Em certo sentido, notamos no um germe de nosso esprito de na-
cionalidade, mas juzos contra o mestio e contra o mercador: O que
est em jogo no uma orma irritada de conscincia nacionalista ou
baiana, mas uma rija oposio estrutural entre a nobreza, que desce, e a
mercancia, que sobe. O antagonismo vem do Medievo, que j lanara as
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pechas de vilo e tratante contra o homem de negcios... (p. 101-102).
Ao mesmo tempo, aparece a insinuao de que a mistura das raas no