lissa price destinos interrompidos - planeta.pt · ‑leitora e invicta defensora do projecto....

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Lissa Price Destinos Interrompidos Tradução Catarina F. Almeida destinos interrompidos***.indd 5 01/03/13 11:55

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Lissa Price

Destinos Interrompidos

TraduçãoCatarina F. Almeida

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Para Dennis, que sempre acreditou

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Agradecimentos  

Se isto fosse uma cerimónia de entrega de prémios, é provável que a orquestra tivesse de correr comigo para fora do palco, porque são muitos aqueles a quem tenho de agradecer.

Em primeiro lugar, a pessoa que tornou tudo isto possível, Bar‑bara Poelle, que sabia exactamente como vender este livro em seis dias (incluindo um fim ‑de ‑semana com ponte). Não se deixem iludir pelo facto de ser uma mulher muito bonita, porque é uma agente brilhante. Estou grata ao destino por nos ter reunido.

Barbara encontrou ‑me uma editora perfeita na maravilhosa Wendy Loggia. As suas notas e o seu apoio fizeram deste livro um livro melhor e Wendy fez tudo isto com a máxima amabilidade, sem nunca perder o sen‑tido de humor. Obrigada, Wendy. Estou muito agradecida a toda a equipa da Random House, desde o topo: Chip Gibson, o charmoso humorista, e Beverly Horowitz, a fada ‑madrinha dos escritores (se as fadas fossem sábias e entendidas a respeito da arte da edição); John Adamo, Judith Haut, Noreen Herits, Casey Lloyd, Adrienne Waintraub e Tracy Lerner; Linda Leonard, Sonia Nash e Mike Herrod, nos Novos Média; Joan DeMayo e todo o pessoal da equipa de vendas; Melissa Greenberg e o departamento de arte; Rachel Feld, que tornou a minha visita à BEA especialmente doce; e Enid Chaban, que foi a primeira a escrever um e­‑mail a toda a gente na Random House, quando os escritórios estavam

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fechados devido a uma mudança e a um feriado, a dizer que tinham de ler este livro. E também a Ruth Knowles e a toda a equipa da Random House UK, sobretudo Bob Lea, o talentoso artista que capturou o espí‑rito de Callie na capa.

Agradeço aos meus agentes que tratam dos meus direitos no estran‑geiro, Heather e Danny Baror, que souberam criar ruído no mundo inteiro. E também agradeço à talentosa Lorin Oberweger, que dirige as oficinas Free Expressions, e à eficiente Stephanie Mitchell, que também ajudou neste livro.

Esperem… Não comecem a música já!Senti ‑me especialmente encorajada quando Emma, uma rapariga

de doze anos que vive numa pequena aldeia da Nova Escócia, adorou o manuscrito. A minha querida amiga e colega de escrita S. L. Card foi quem estabeleceu a ligação, tendo sido também uma excelente pré‑‑leitora e invicta defensora do projecto. Obrigada a todos os meus outros pré ‑leitores: Patti, Mari, a escritora Suzanne Gates, e os meus queridos amigos Dawn e Robert, que me ofereceram a sua casa de Oregon para eu poder terminar o primeiro esboço. Uma saudação especial à minha tribo, o meu maravilhoso grupo de escritores: Liam Brian Perry e Derek Rogers, ambos autores extraordinários.

O apoio dos meus amigos no caminho até à publicação teve, para mim, um profundo significado – Lena e Nutschell, Paul e Joan, Luke, Greg, Michael, Marco, Susan, Gene, Paul e Matt, Ray e Marion Sader, Leonard e Alice Maltin, Martin Biro, Golddiggers e os meus colegas autores Jamie Freveletti, Robert Browne, Brett Battles, Boyd Morrison, Graham Brown, Stephen Jay Schwartz, Sophie Littlefield, James Rollins e The Apocalypsies. Obrigada, ITW, e obrigada a Robert Crais, estou tão grata, foste o meu anjo ‑da ‑guarda especial durante a escrita!

Enquanto grito por cima da música, termino com um agradecimento ao meu marido, que possui um grande sentido do que é a história, pelo seu constante encorajamento e apoio.

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Capítulo 1  

Os Terminantes davam ‑me arrepios. Ao abrir ‑me a porta do banco de corpos, o porteiro lançou ‑me um olhar sabido. Não era assim tão velho como isso, talvez tivesse uns cento e dez anos, mas não deixava de ser arrepiante. Como a maioria dos Terminantes, exibia um cabelo cinzento‑‑prateado, uma espécie de falsa medalha de honra pela idade que tinha alcançado. No interior, o espaço ultramoderno, com o seu pé ‑direito gigante, fez ‑me sentir minúscula. Atravessei o átrio como se deslizasse pelos caminhos de um sonho, os meus pés mal tocando no chão de mármore.

O porteiro levou ‑me até à recepcionista, uma mulher de cabelos brancos e lábios pintados com um batom vermelho ‑mate, que se trans‑feria para os dentes da frente quando sorria. Ali, no banco de corpos, eles tinham de ser simpáticos comigo. Mas, se me vissem na rua, eu seria invisível. Era indiferente que tivesse sido a melhor aluna da minha turma – quando ainda havia escolas. Eu tinha dezasseis anos. Para eles, era um bebé.

O tropel de saltos altos da recepcionista ressoou naquele espaço deserto enquanto ela me conduzia a uma pequena sala de espera vazia, onde havia apenas cadeiras de brocado prateado nos cantos. Pareciam antiguidades, mas o odor químico que pairava no ar indicava tinta fresca e materiais sintéticos. Os pretensos sons da natureza que se faziam ouvir,

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como o chilrear de pássaros da floresta, eram igualmente artificiais. Olhei de relance para a minha camisola puída e para os meus sapatos coça‑dos. Esfregara ‑os o melhor que soubera, mas as nódoas recusavam ‑se a sair. E, como tinha percorrido a pé o caminho todo até Beverly Hills, exposta aos chuviscos da manhã, também estava encharcada como um gato abandonado.

Doíam ‑me os pés. Só me apetecia afundar ‑me numa cadeira, mas não me atrevia a deixar a marca húmida das minhas nádegas no brocado. Um Terminante alto apareceu de repente na sala, interrompendo o meu pequeno dilema de etiqueta.

– Callie Woodland? – Olhou para o relógio. – Estás atrasada.– Peço desculpa. A chuva…– Não tem importância. Já estás aqui. – Estendeu ‑me a mão.O seu cabelo prateado parecia mais branco em contraste com o bron‑

zeado artificial. E, à medida que o sorriso se abria, os olhos arregalavam‑‑se, o que me punha ainda mais nervosa do que era hábito com um Terminante. Eles não mereciam que lhes chamássemos Seniores, como preferiam, aqueles velhos jarretas gananciosos na recta final das suas vidas. Fiz um esforço para lhe apertar a mão enrugada.

– Sou o senhor Tinnenbaum. Bem ‑vinda à Destinos Primordiais. – Enrolou a outra mão à volta da minha.

– Só vim aqui para ver… – Olhei em redor para as paredes, como se tivesse vindo contemplar a decoração.

– Como tudo funciona? Claro. Não cobramos nada por isso. – Fez‑‑me um sorriso de orelha a orelha e, por fim, libertou ‑me a mão. – Queres seguir ‑me?

Estendeu o braço, como se eu precisasse de ajuda para encon‑trar a porta de saída. Tinha os dentes tão brancos que estremeci um pouco quando ele sorriu. Percorremos um pequeno corredor até ao seu gabinete.

– Entra, Callie. Senta ‑te ali, ao pé da secretária. – Fechou a porta.

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Tive de morder a língua para não arquejar perante a total extravagân‑cia que se via no interior. Ao longo de uma parede, uma infinita torrente de água jorrava de uma enorme fonte de cobre. Dada a forma como permitiam que todo aquele caudal de água limpa e cristalina caísse e se espalhasse, até poderíamos pensar que a coisa era de graça.

Uma secretária de vidro com luzes LED embutidas dominava o centro do escritório e, a flutuar um palmo mais acima, via ‑se um ecrã aéreo. Este mostrava a fotografia de uma rapariga da minha idade, com uma com‑prida cabeleira ruiva e uns calções de ginástica. Embora estivesse a sorrir, a fotografia fora tirada de frente e fazia lembrar uma fotografia de corpo inteiro tirada na polícia. A expressão do rosto era doce. Cheia de esperança.

Sentei ‑me numa cadeira de metal moderna e o senhor Tinnenbaum pôs ‑se atrás da secretária, a apontar para o ecrã aéreo.

– É um dos nossos membros mais recentes. Tal como tu, ela soube da nossa existência através de um amigo. As mulheres que alugaram o seu corpo ficaram muito satisfeitas. – Tocou no canto do ecrã, mudando a fotografia para a de um adolescente com um fato de banho de compe‑tição e vigorosos abdominais. – Foi este indivíduo, Adam, quem a men‑cionou. Ele pratica snowboard, esqui e escalada. É um aluguer popular entre homens que apreciam actividades ao ar livre e que já não podem desfrutar, há décadas, desses desportos.

Ouvi ‑lo falar tornava tudo demasiado real. Velhos e sinistros Ter‑minantes, com os membros cheios de artrite, enfiavam ‑se durante uma semana no corpo daquele adolescente e viviam dentro da sua pele. Dava‑‑me voltas ao estômago. Eu só queria fugir dali a sete pés, mas um pen‑samento retinha ‑me.

Tyler.Agarrei ‑me ao assento da cadeira com as duas mãos. O meu estômago

roncou. Tinnenbaum estendeu ‑me uma travessa de liga de estanho com Supertrufas em cálices de papel. Os meus pais tinham tido uma travessa igual àquela.

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– Queres uma? – perguntou.Em silêncio, tirei um dos chocolates de tamanho desmesurado. E só

depois me lembrei da minha enferrujada boa educação.– Obrigada.– Tira mais. – Agitou a travessa para me encorajar.Tirei uma segunda e uma terceira, uma vez que a travessa continuava

a pairar junto da minha mão. Depois, embrulhei ‑as nos seus cálices de papel e enfiei ‑as no bolso da camisola. O senhor Tinnenbaum parecia desiludido por não me ver a comê ‑las, como se eu fosse o seu entrete‑nimento do dia. Atrás da minha cadeira, a água borbulhava e salpicava, desafiando ‑me. Se ele não me oferecesse depressa alguma coisa para beber, era possível que ainda me visse com a cabeça enfiada por baixo da fonte, a sorver a água como um cão.

– Pode dar ‑me um copo de água? Por favor?– Com certeza. – Estalou os dedos e levantou a voz, como se estivesse

a falar para algum dispositivo oculto. – Copo de água para a senhorita.Instantes depois, uma Terminante com uma silhueta de modelo

entrou no escritório com uma travessa com um copo de água a vacilar‑‑lhe nas mãos. Vinha coberta por um guardanapo de pano. Peguei no copo e vi pequenos cubos no interior, cintilando como diamantes. Gelo. A mulher pousou a travessa ao meu lado e saiu.

Inclinei a cabeça para trás e engoli a água doce de um trago, sentindo o líquido fresco a descer pela garganta. Fechei os olhos, saboreando a água mais limpa que já tinha bebido desde que a guerra terminara. Quando acabei, deixei um cubo de gelo deslizar para dentro da minha boca e trinquei ‑o, fazendo ‑o estalar. Quando abri os olhos, vi Tinnen‑baum a olhar fixamente para mim.

– Queres mais um?Queria, mas os olhos dele diziam ‑me que a pergunta não fora feita

com intenção. Abanei a cabeça e acabei de mastigar o cubo de gelo. As minhas unhas pareciam ainda mais sujas em contraste com o vidro

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do copo, quando o pousei na travessa. Ver o gelo a derreter ‑se no fundo do copo fez ‑me lembrar a última vez que eu tinha bebido água gelada. Parecia ter sido há uma eternidade, mas fora apenas há um ano atrás, no último dia que passáramos em nossa casa, antes de virem os Inspectores.

– Queres saber como tudo isto funciona? – perguntou Tinnenbaum. – Aqui, na Destinos Primordiais?

Contive ‑me para não revirar os olhos. Terminantes. Que outro motivo me teria levado até ali? Lancei ‑lhe um meio sorriso e aquiesci.

Ele bateu no canto do ecrã, para eliminar a imagem que lá estava, e tocou uma segunda vez, para ir buscar animações holográficas. A pri‑meira imagem mostrava uma mulher idosa a recostar ‑se numa espre‑guiçadeira e alguém a colocar ‑lhe um pequeno barrete na parte de trás da cabeça. Fios coloridos saíam do barrete, ligando ‑a a um computador.

– A locatária é conectada a uma ICC, Interface Corpo ‑Computador, numa sala recheada de enfermeiras experientes – explicou. – Depois, é posta num estado de semi ‑inconsciência.

– Como no dentista?– Sim. Os seus sinais vitais são todos monitorizados durante a via‑

gem. – No outro lado do ecrã, uma adolescente reclinava ‑se numa cadeira comprida acolchoada. – Tu serás posta a dormir, com uma espécie de anestesia. Completamente indolor e inofensiva. Acordas uma semana depois, um pouco atordoada, mas muito mais rica. – Tornou a mostrar‑‑me os dentes.

Fiz um esforço para não revelar crispação.– O que acontece durante essa semana?– Ela tem a possibilidade de ser tu. – Abriu as mãos e rodou as pal‑

mas. – Conheces os programas de computador que ajudam as pessoas amputadas a movimentar mãos artificiais? As pessoas limitam ‑se a pensar e a mão move ‑se? O processo aqui é muito semelhante.

– Portanto, ela vê que eu sou ela e, quando quer alguma coisa, limita‑‑se a pensá ‑lo e a minha mão agarra ‑a?

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– Tal qual como se estivesse dentro do teu corpo. Ela usa a sua mente para levar o teu corpo para fora daqui, ganhando a possibilidade de vol‑tar a ser jovem. – Apoiou o cotovelo na outra mão. – Por algum tempo.

– Mas, como…?Ele acenou para o outro lado do ecrã.– Aqui, numa outra sala, a dadora, neste caso, tu, é ligada ao compu‑

tador através de uma ICC sem fios.– Sem fios?– Nós introduzimos um minúsculo neurochip na parte de trás da tua

cabeça. Não sentes nada. É absolutamente indolor. E esse chip permite‑‑nos conectar ‑te ao computador a qualquer momento. Depois, conecta‑mos as tuas ondas cerebrais ao computador e o computador conecta ‑vos às duas.

– Conecta ‑vos. – Franzi o sobrolho enquanto tentava imaginar duas mentes conectadas daquela maneira. ICC. Neurochip. Introduzido. Isto estava a tornar ‑se mais arrepiante a cada minuto que passava. E aquele impulso de fugir regressava em força. Por outro lado, eu queria saber mais.

– Eu sei, é tudo tão novo… – Dirigiu ‑me um sorriso afectado e condescendente. – Certificamo ‑nos, então, de que estás completamente adormecida. A mente da locatária apodera ‑se do teu corpo. A locatária responde a uma série de perguntas feitas pela equipa, para nos assegu‑rarmos de que está tudo a funcionar como devia. Depois, fica livre para ir desfrutar do seu corpo alugado.

O diagrama mostrava gráficos do corpo alugado a jogar golfe e ténis e a fazer mergulho.

– Como o nosso corpo retém a memória muscular, qualquer des‑porto que tu tenhas jogado, ela conseguirá jogar. Quando o tempo acaba, a locatária traz o corpo que alugou de volta a estas instalações. A conexão é desligada numa sequência própria. A locatária é libertada das drogas que induzem o estado de semiconsciência. É submetida a um exame

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e, depois, segue o seu caminho. E a ti, dadora, são restituídas todas as funções cerebrais através do computador. Acordas no teu próprio corpo, como se tivesses passado vários dias a dormir.

– E se me acontece alguma coisa enquanto ela está no meu corpo? Snowboard? Pára ‑quedismo? E se eu me magoo?

– Aqui, nunca aconteceu nada desse género. Os nossos locatários assinam um contrato que os torna financeiramente responsáveis. Acre‑dita, toda a gente quer recuperar essa caução.

Aquele homem fazia ‑me sentir como um carro alugado. Fui sacudida por um arrepio, como se alguém tivesse percorrido a minha coluna com um cubo de gelo. Isto fez ‑me lembrar Tyler, a única coisa que me man‑tinha sentada naquela cadeira.

– E o chip? – perguntei.– É removido depois do teu terceiro aluguer. – Entregou ‑me uma

folha de papel. – Aqui tens. Talvez isto te dê algum conforto.

Regras para Locatários na Destinos Primordiais

1. Nãoépermitidoalteraraaparênciadoseucorpoalugadodemaneira

alguma,incluindo–masnãoselimitandoa–piercings,tatuagens,corte

oucoloraçãodecabelo,lentesdecontactocosméticasequalquertipo

deintervençãocirúrgica,mesmoimplantesdesilicone.

2. Nãosãoautorizadasquaisqueralteraçõesnadentição,incluindoobtu-

rações,remoçõeseincrustaçãodejóias.

3. O/Alocatário/adevepermanecerno interiordeumperímetrode

oitentaquilómetrosàvoltadas instalaçõesdaDestinosPrimordiais.

Aempresafornecemapasdazona.

4. Qualquertentativademanipularochipresultaránocancelamento

imediatodocontratodealuguer,semdireitoareembolso,eserão

aplicadasmultas.

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5. Setiverumproblemacomoseucorpoalugado,regresseàDestinos

Primordiaiscomamaiorbrevidadepossível.Por favor, trateoseu

aluguercomcuidado,recordandoatodososinstantesqueocorpoé,

narealidade,umapessoajovemeviva.

Fique ciente de que o neurochip impede os locatários de incorrerem em

actividades ilegais.

Aquelas regras não me reconfortaram. Pelo contrário, levantaram outros problemas que não tinha sequer considerado.

– E quanto a… outras coisas? – perguntei.– Como por exemplo?– Não sei. – Preferia que ele não me obrigasse a dizê ‑lo. Mas ia obri‑

gar. – Sexo?– O que tem?– Não figura nas regras – retorqui.É claro que não queria que a minha primeira vez acontecesse sem

eu estar presente.Ele abanou a cabeça.– Isso é explicado com toda a clareza aos locatários. É proibido.Pois, como se eu acreditasse. Pelo menos, era impossível engravidar.

Toda a gente sabia que era um efeito secundário, se possível temporário, da vacinação.

Senti um nó no estômago. Afastei o cabelo dos olhos e levantei ‑me.– Obrigada pelo seu tempo, senhor Tinnenbaum. E pela demons‑

tração.O lábio dele estremeceu. Tentou disfarçá ‑lo com um meio sorriso.– Se assinares hoje, há um bónus. – Tirou um formulário de dentro

da gaveta e escrevinhou qualquer coisa na folha, empurrando ‑a na minha direcção. – Este é o valor para os três alugueres. – Fechou a tampa da caneta.

Peguei no contrato. O dinheiro era suficiente para alugar uma casa e comprar comida durante um ano. Tornei a sentar ‑me e respirei fundo.

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Ele estendeu ‑me a caneta. Eu agarrei nela.– Três alugueres? – perguntei.– Sim. E serás paga no fim do terceiro.O papel estremeceu. Reparei que a minha mão estava a tremer.– É uma oferta muito generosa – disse ele. – Contando com o bónus,

se assinares hoje.Eu precisava daquele dinheiro. Tyler precisava dele.Quando segurei na caneta, pareceu ‑me que o borbulhar da água da

fonte se ampliara. Estava a olhar para o papel, mas a ver imagens fugazes do batom vermelho ‑mate, dos olhos do porteiro, dos dentes artificiais do senhor Tinnenbaum. Encostei o bico da caneta ao papel, mas, antes de fazer qualquer marca, levantei os olhos e perscrutei ‑o. Talvez precisasse de uma última garantia. Ele aquiesceu e sorriu. Tinha um fato impecá‑vel, tirando um pouco de cotão branco que se prendera à lapela – com a forma de um ponto de interrogação.

Pareceu ‑me tão ávido… Sem que eu mesma desse por isso, pousei a caneta.

Os olhos dele semicerraram ‑se.– Há algum problema?– É uma coisa que a minha mãe costumava dizer ‑me.– O quê?– Para dormir sempre sobre uma decisão importante. Tenho de

pensar no assunto.O olhar do senhor Tinnenbaum tornou ‑se glacial.– Não posso prometer ‑te que esta oferta se mantenha.– Terei de correr esse risco. – Dobrei a folha do contrato, meti ‑a den‑

tro do bolso e levantei ‑me da cadeira. Forcei ‑me a esboçar um pequeno sorriso.

– E podes dar ‑te ao luxo de fazer isso? – Pôs ‑se à minha frente.– Provavelmente, não. Mas tenho de pensar no assunto. – Con tor‑

nei ‑o e dirigi ‑me à porta.

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– Telefona ‑me se tiveres perguntas – disse, levantando demasiado a voz.

Passei à pressa pela recepcionista, que me pareceu contrariada por me ver sair tão cedo. Seguiu ‑me com os olhos enquanto premia o que eu imaginei que fosse um botão de pânico. Continuei. O porteiro fitou ‑me do outro lado da porta de vidro, antes de a abrir.

– Já de saída? – A sua expressão vazia era medonha.Passei por ele a correr.Mal saí do edifício, o ar fresco do Outono tocou ‑me no rosto. Res‑

pirei fundo enquanto serpenteava pela multidão de Terminantes que enchia o passeio. Eu devia ser a única pessoa que recusara a oferta de Tinnenbaum, que não caíra no seu engodo. Mas, a verdade é que tinha aprendido a não confiar nos Terminantes.

Caminhei pelas ruas de Beverly Hills, abanando a cabeça às bolsas de riqueza que ali permaneciam, mais de um ano volvido depois do fim da guerra. Aqui, apenas uma em três montras estava vazia. Roupas de marca, aparelhos electrónicos e lojas de robôs – havia tudo o que era preciso para os Terminantes ricos obterem a sua dose de consumo habitual. Ali, valia a pena respigar. Se alguma coisa se avariasse, eles tinham de deitá ‑la fora porque não havia ninguém para consertá ‑la e nenhuma forma de substituir peças.

Mantive a cabeça baixa. Embora não estivesse, nesse momento, a fazer nada de ilegal, se um Inspector me interpelasse, eu não teria os documentos necessários que os menores reclamados tinham de ter sempre consigo.

Enquanto esperava que a luz do semáforo mudasse, um camião parou. Lá dentro, um grupo soturno de Iniciantes, sujos e esfarrapados, iam sentados ao fundo, de pernas cruzadas, com pás e picaretas empi‑lhadas no centro. Uma rapariga com uma ligadura à volta da cabeça fitou ‑me, com os olhos vazios.

Vi acender ‑se neles uma centelha de inveja, como se a minha vida fosse melhor do que a dela. Quando o camião arrancou, a rapariga cruzou

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os braços, talvez abraçando ‑se a si própria. Por muito má que fosse a minha vida, a dela era de certeza pior. Tinha de haver uma saída para aquela loucura. Uma saída que não envolvesse um arrepiante banco de corpos ou o trabalho escravo legalizado.

Mantive ‑me nas ruas secundárias, evitando o Wilshire Boulevard, que era um íman de Inspectores. Dois Terminantes, homens de negócios com gabardinas pretas, caminhavam na minha direcção. Desviei o olhar e enfiei as mãos nos bolsos. No meu bolso esquerdo, estava o contrato. No direito, os chocolates embrulhados em papel.

Amargos e doces.Os bairros tornavam ‑se mais perigosos à medida que me ia afastando

de Beverly Hills. Contornei pilhas de lixo à espera de camiões de recolha que há muito já não paravam ali. Ao olhar para cima, reparei que estava a passar por um edifício que fora pintado de vermelho. Contaminado. Os últimos mísseis de esporos tinham sido lançados há um ano, mas as equipas especializadas em matérias perigosas ainda não tinham tido tempo – ou vontade – de descontaminar aquela casa. Levantei a manga para cobrir o nariz e a boca, como o meu pai me ensinara, e acelerei o passo.

A luz do dia esmoreceu e avancei com mais liberdade. Tirei para fora a minha lanterna de pulso e afivelei ‑a às costas da mão direita, mas não a acendi. Ali, tínhamos destruído os candeeiros de rua. Precisávamos da protecção das sombras, para as autoridades não nos levarem a pretexto de nada. Teriam todo o gosto em trancar ‑nos numa Instituição. Eu nunca tinha visto o interior de uma, mas ouvira os rumores. Uma das piores, a Instituição 37, ficava apenas a alguns quilómetros dali. Tinha ouvido outros Iniciantes a sussurrarem a seu respeito.

Quando já estava a dois quarteirões de distância de casa, a noite não podia ser mais cerrada. Acendi a minha lanterna de pulso. Um minuto depois, avistei os feixes de luz de duas lanternas de pulso, vindos do outro lado da rua, a varrer o espaço em ângulo. Como não tinham apagado as

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luzes, tive esperança de que fossem Companheiros. Mas, nesse mesmo instante, ambas as luzes se apagaram.

Renegados.Senti um aperto no estômago, o coração na garganta. E desatei a

correr. Não havia tempo para pensar. O instinto levou ‑me na direcção do meu edifício. Um deles, uma rapariga alta de pernas compridas, com uma tatuagem numa face, alcançou ‑me. Estava mesmo atrás de mim, esticando o braço para me agarrar na camisola.

Puxei pelas pernas. A porta lateral do meu prédio estava já ali, a meio do quarteirão, à minha espera. A rapariga voltou a tentar e, desta vez, agarrou ‑me no capuz.

Caí quando ela me puxou para trás e aterrei com violência no pas‑seio. Senti uma dor nas costas, a cabeça a latejar. Ela sentou ‑se a cavalo em cima de mim e vasculhou os meus bolsos. O amigo, um rapaz mais novo, tornou a acender a lanterna de pulso e dirigiu a luz para os meus olhos.

– Não tenho dinheiro. – Semicerrei os olhos e tentei afastar as mãos dela com um estalo.

Ela atingiu ‑me nas faces com as palmas abertas, batendo ‑me nos ouvidos com brutalidade. Um truque de rua sujo que fazia a cabeça da vítima vibrar de dor.

– Não há dinheiro para mim? – exclamou, e as suas palavras abafadas ressoaram na minha cabeça. – Então, estás metida nela até às orelhas.

Um surto de adrenalina fortaleceu ‑me o braço e dei ‑lhe um soco no maxilar. A rapariga começou a tombar, mas endireitou ‑se antes de eu conseguir sair de baixo dela.

– Estás morta, miúda.Contorci ‑me e esbracejei, mas ela prendeu ‑me ao chão com as suas

coxas de ferro. Depois, lançou o braço para trás e concentrou nele todo o peso do corpo. No último segundo, desviei a cabeça para o lado e o seu punho atingiu o pavimento. Gritou.

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O grito incitou ‑me a sair à pressa de baixo do seu corpo, enquanto ela se agarrava à mão, com dores. O meu coração disparara, como se quisesse saltar para fora do peito. O outro miúdo aproximou ‑se com uma pedra. Quando me levantei, mal conseguia respirar.

Algo caiu de dentro do meu bolso. Todos parámos a olhar.Uma das preciosas Supertrufas.– Comida! – gritou o amigo dela, apontando a lanterna.A rapariga rastejou nessa direcção, protegendo a mão esmagada

contra o peito. O parceiro lançou ‑se para o chão e arrecadou ‑a. Ela agarrou ‑lhe na mão, partiu um pedaço da trufa e engoliu ‑o. Ele devorou o resto. Corri até à entrada lateral do meu prédio. Empurrei a porta, a minha porta, e enfiei ‑me lá dentro.

Rezei para que não entrassem no edifício. Tudo dependia de eles terem demasiado medo dos meus Companheiros e das eventuais arma‑dilhas que eu pudesse ter montado. Apontei a lanterna de pulso para inspeccionar as escadas. O caminho estava livre. Subi, então, ao terceiro andar e espreitei por uma janela suja. Lá em baixo, os ladrões Renegados tinham ‑se posto em fuga, como vermes. Fiz um rápido balanço. Doía ‑me a nuca, que batera no pavimento, mas conseguira escapar sem golpes fundos ou ossos partidos. Pousei a mão sobre o peito e tentei acalmar a respiração.

Concentrei ‑me, então, no interior do edifício e fiz a minha inspec‑ção habitual. Escutei o melhor que pude, mas ainda tinha os ouvidos a zumbir por causa da luta. Abanei a cabeça para tentar limpá ‑los.

Não se ouviam novos sons. Não havia novos ocupantes. Não havia perigo. O escritório do fundo atraía ‑me como um farol, prometendo descanso. O nosso acampamento de secretárias barricava a esquina, selando uma secção daquela sala despida e cavernosa e produzindo a ilusão de conforto. Tyler já devia estar a dormir. Apalpei o que restava das Supertrufas que tinha nos bolsos. Talvez devesse fazer ‑lhe a surpresa só de manhã.

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Mas não conseguia esperar.– Acorda. Tenho uma coisa para ti. – Quando contornei as secretá‑

rias, não encontrei nada. Nem os cobertores nem o meu irmão. Nada. Os poucos bens que ainda possuíamos tinham desaparecido.

– Tyler? – gritei.Senti um nó na garganta e sustive a respiração. Corri até à porta, mas,

quando a alcancei, uma cara apareceu na entrada.– Michael!Michael afastou da cara o seu desgrenhado cabelo louro.– Callie. – Pondo a lanterna de pulso por baixo do queixo, fez uma

careta assustadora. Não conseguiu, porém, aguentá ‑la por muito tempo e desmanchou ‑se a rir.

Se Michael estava a rir era porque Tyler estava bem. Dei ‑lhe um pequeno empurrão.

– Onde está Tyler? – perguntei.– Tive de mudar ‑vos para o meu quarto. O tecto começou a pingar

aqui dentro. – Apontou o seu feixe de luz para uma mancha negra no tecto. – Espero que não te importes.

– Não sei. Depende dos teus dotes de decorador.Segui ‑o até uma sala que havia do outro lado do corredor. No inte‑

rior, em dois cantos distintos, as secretárias criavam nichos confortáveis e protectores. Ao aproximar ‑me, vi que Michael tinha recriado a dispo‑sição exacta dos nossos objectos. Entrei no nicho do canto, ao fundo, e vi Tyler sentado, encostado à parede, com um cobertor sobre as pernas. Parecia demasiado pequeno para os seus sete anos. Talvez fosse a ideia momentânea de que o tinha perdido, ou o facto de ter estado fora o dia inteiro, mas era como se estivesse a vê ‑lo pela primeira vez. Desde que vivíamos na rua, Tyler tinha perdido peso. E estava a precisar de um corte de cabelo. Olheiras profundas escureciam ‑lhe a pele por baixo dos olhos.

– Onde ’tiveste, Cara­de­Macaco? – Estava rouco.

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Fiz um esforço para disfarçar o meu ar de preocupação.– Na rua.– Estiveste fora muito tempo.– Mas Michael ficou contigo. – Ajoelhei ‑me ao seu lado. – E eu levei

muito tempo a encontrar um petisco especial para ti.Um sorriso subtil perpassou ‑lhe pelos lábios.– O que me arranjaste?Tirei para fora um dos cálices de papel e desembrulhei o chocolate

recheado de vitaminas. Era do tamanho de um biscoito. Os seus olhos arregalaram ‑se.

– Uma Supertrufa? – Olhou para Michael, que estava de pé ao meu lado. – Uau.

– Tenho duas. – Mostrei ‑lhe a outra. – Ambas para ti.Ele abanou a cabeça.– Fica com uma.– Tu precisas das vitaminas – retorqui.– Já comeste hoje? – perguntou ‑me.Fitei ‑o. Conseguiria escapar ‑me com uma mentira? Não, ele

conhecia ‑me demasiado bem.– Partilhem ‑na entre vocês – insistiu.Michael encolheu os ombros e uma mecha de cabelo caiu ‑lhe sobre

os olhos daquela maneira bonita e descontraída que lhe era própria.– Não digo que não.Tyler sorriu e segurou ‑me na mão.– Obrigado, Callie.

Comemos as Supertrufas sentados à volta de uma secretária posta no centro da sala. Servia ‑nos de mesa de jantar, com a lanterna de pulso de Michael no meio, acesa em modo de vela. Cortámos os chocolates em

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pequenos pedaços e brincámos com a ideia de que a primeira dentada seria o aperitivo, a segunda a entrada e a terceira a sobremesa. Eram o paraíso, aqueles chocolates doces e espessos, um cruzamento entre o brownie e o fudge, ricos e fumados nas nossas línguas. E acabaram demasiado depressa.

Tyler espevitou depois de comer. Trauteou uma canção para si mesmo, enquanto Michael, com o queixo pousado numa das mãos, me fitava do outro lado da secretária. Eu sabia que ele estava morto por me interrogar a respeito do banco de corpos. E talvez mais. Reparei que os seus olhos escrutinavam os meus novos golpes e arranhões.

– As trufas deram ‑me sede – afirmei.– A mim também – disse Tyler.Michael levantou ‑se.– É melhor ir encher as garrafas de água. – Agarrou nas nossas gar‑

rafas, que estavam penduradas em correias ao pé da porta, e no balde onde nos lavávamos, e saiu.

Tyler pousou a cabeça no tampo da secretária. A excitação pro‑vocada pelos chocolates já provocara o seu dano. Acariciei ‑lhe o cabelo macio como o de um bebé e o pescoço. A camisola com capuz escorregara ‑lhe do ombro, expondo a cicatriz da vacina. Percorri ‑a com o dedo, grata pela pequena marca. Se não fosse ela, já estaríamos todos mortos, como os nossos pais. Como todos aqueles que tinham entre vinte e sessenta anos de idade. Nós e os mais velhos Terminantes éramos os mais vulneráveis e tínhamos sido os primeiros a receber a vacina contra os esporos do genocídio. Agora, éramos os únicos que sobravam. Não era irónico?

Minutos depois, Michael regressou com as garrafas de água já cheias. Fui até à casa de banho onde ele deixara o balde. Durante a primeira semana em que ali tínhamos vivido, ainda havia água canalizada no edifício. Suspirei. Era muito mais fácil do que ter de roubar a água dos canos exteriores, quando ninguém estava a ver.

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A água fria era refrescante, embora estivéssemos em Novembro e não houvesse aquecimento no prédio. Borrifei os golpes que tinha nos braços e na cara.

Quando voltei para a sala, Tyler já se instalara, de novo, no nosso canto. Michael estava deitado no seu forte simétrico, no canto oposto. Sentia ‑me mais segura assim, quando estávamos todos juntos na mesma sala. Se alguém arrombasse a porta, um de nós apanharia o intruso por detrás. Michael tinha um cano de metal. Eu tinha um mini ‑Zip­Taser que pertencera ao meu pai. Não era tão potente como o de um Inspec‑tor, mas eu confiava nele. Era triste que se tivesse tornado o meu novo objecto de conforto.

Sentei ‑me por cima do saco ‑cama e tirei os sapatos. Depois, despi a camisola e enfiei ‑me no saco ‑cama como se fosse dormir. Acrescentei «pijama» à minha lista mental de coisas que me faziam falta. Flanela, quente do secador. Estava farta de estar sempre vestida, pronta para fugir ou lutar. Ansiava por pijamas fofos e um sono profundo, daqueles em que nos esquecíamos do mundo.

– Michael trouxe as nossas coisas para aqui. – Tyler iluminou com a sua luz os nossos livros e tesouros espalhados pelas secretárias que nos rodeavam.

– Eu sei. Foi simpático da parte dele.Tyler dirigiu a luz para um cão de brinquedo.– Tal como antes.De início, pensei que ele queria dizer «como em nossa casa», mas,

depois, percebi que se referia à disposição dos objectos no dia anterior. Michael fizera questão de organizar as nossas coisas exactamente como nós as tínhamos arrumado – ele sabia quão preciosas eram para nós.

Tyler puxou para baixo a moldura holográfica. Fazia ‑o em certas noites, aquelas em que se sentia mais triste. Segurando ‑a na mão aberta, percorreu os holos – a nossa família na praia, nós a brincar na areia, o nosso pai a praticar tiro ao alvo, os nossos pais no dia do seu casamento.

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Por fim, parou na mesma imagem onde parava sempre: os nossos pais num cruzeiro, três anos antes, pouco tempo antes de a guerra rebentar no oceano Pacífico. Ouvir as suas vozes era sempre difícil para mim. «Temos saudades tuas, Tyler. Amamos ‑te, Callie. Toma bem conta do teu irmão.» No primeiro mês, eu tinha chorado sempre que ouvia o som daquelas vozes. Depois, parei. Agora, pareciam vazias, como se pertencessem a actores anónimos.

Tyler nunca tinha chorado. Continuava a absorver aquelas palavras uma e outra vez. Para ele, elas eram a mãe e o pai.

– Muito bem, já chega. Está na hora de dormir. – Estiquei o braço para pegar na moldura.

– Não. Quero lembrar ‑me. – Os seus olhos suplicaram ‑me.– Tens medo de te esqueceres?– Talvez.Bati na lanterna que ele tinha no pulso.– Lembras ‑te de quem foi que inventou isto?Tyler aquiesceu com um ar solene, o lábio superior dilatando ‑se.– O pai.– É isso mesmo. Com a ajuda de outros cientistas. Portanto, sempre

que vires a luz, pensa nela como se fosse o pai a olhar por ti.– É isso que tu fazes?– Todos os dias. – Afaguei ‑lhe a cabeça. – Não te preocupes. Eu pro‑

meto ‑te: nós nunca, nunca os esqueceremos.Troquei a moldura pelo seu brinquedo favorito, o único brinquedo

que lhe restava, um pequeno cão ‑robô. Ele enfiou ‑o debaixo do braço e o brinquedo ficou em modo macio, deitando ‑se como um cão verdadeiro – se esquecêssemos os brilhantes olhos verdes.

Voltei a pôr a moldura na secretária por cima de nós. Tyler tossiu. Puxei ‑lhe o saco ‑cama para cima, cobrindo ‑lhe o pescoço. Sempre que ele tossia, eu fazia um esforço para não ouvir, no meu pensamento, as palavras do médico da clínica: «Uma doença rara dos pulmões… Pode

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curar ‑se, ou não.» Observei o peito de Tyler a subir e a descer e ouvi a laboriosa respiração do sono a assumir o controlo. Depois, esgueirei ‑me para fora do meu saco ‑cama e espreitei por entre as secretárias.

A lanterna de pulso de Michael luzia contra a parede. Pus a camisola sobre os ombros e aproximei ‑me, em bicos de pés.

– Michael? – sussurrei.– Entra – retorquiu ele, mantendo a voz baixa.Entrei na sua pequena fortaleza. Gostava de estar ali, rodeada pelos

seus desenhos a lápis e carvão, os instrumentos da sua arte enchendo cada recanto. Michael desenhava cenas de cidade, interpretando a nossa paisagem de edifícios desertos, Companheiros e Renegados, completos com lanternas de pulso, camadas de roupa esfarrapada, garrafas de água penduradas sobre torsos magros.

Michael pousou o seu livro e sentou ‑se de costas para a parede, fazendo sinal para eu me sentar ao lado dele, sobre o cobertor militar.

– Então, o que aconteceu à tua cara?Toquei na face. Ardia ‑me.– Está com mau aspecto?– Tyler não reparou.– Só porque está escuro aqui dentro. – Sentei ‑me de pernas cruzadas,

virada para ele.– Renegados?Aquiesci.– Sim. Mas estou bem.– Como era aquele lugar?– Estranho.Ele ficou em silêncio. De cabeça baixa.– O que foi? – perguntei.Michael levantou a cabeça.– Fiquei com medo que não voltasses.– Eu prometi, não foi?

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Ele aquiesceu.– Sim. Mas fiquei a pensar… E se não conseguisses voltar?Para isso, eu não tinha resposta. Ficámos ali um momento, até que,

por fim, Michael quebrou o silêncio.– E então, o que achaste desse lugar?– Sabes que eles introduzem um neurochip, aqui? – Apontei para

a minha nuca.– Onde? Deixa ‑me ver. – Tocou ‑me no cabelo.– Já te disse, só fui ver.Vi a preocupação escrita no rosto dele, os olhos macios de bondade.

Era curioso, eu nunca lhe dera grande atenção quando ele vivia no fundo da nossa rua. Não deixava de ser estranho que tivesse sido preciso acon‑tecer a Guerra dos Esporos para nos aproximarmos.

Enfiei as mãos nos bolsos e senti algo. Um papel. Tirei ‑o para fora.– O que é isso? – perguntou ‑me.– Foi o homem no banco de corpos que mo deu. É um contrato.Michael inclinou ‑se para junto de mim.– É isso que vão pagar? – Arrancou ‑me o impresso das mãos.– Devolve ‑mo.Leu o contrato.– … por três conexões.– Não vou fazê ‑lo.– Óptimo. – Fez uma pausa. – Mas, porquê? Eu conheço ‑te. Tu não

tens medo de nada.– Eles nunca me dariam tanto dinheiro. É irreal. Foi isso que me fez

desistir.– De qualquer modo, como conseguem contornar a lei? Alugando

Iniciantes?Encolhi os ombros.– Devem ter aproveitado alguma lacuna.– E quase não aparecem no radar. Não se vê nenhuma publicidade.

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Ele tinha razão.– Só soube da existência deles através daquele rapaz que vivia no

primeiro andar.– O mais provável é que faça dinheiro por cada Iniciante que traz

para o negócio.– Comigo, não fará um tostão. – Encostei ‑me para o lado, pousando

a cabeça na mão. – Não confio naquele lugar.– Deves estar cansada – disse ele. – Foi uma longa caminhada.– Já estou para lá do cansaço.– Amanhã, vamos até às docas para ver se conseguimos alguma fruta.A voz de Michael desvaneceu ‑se e comecei a sentir as pálpebras pesa‑

das. Quando me dei conta, abri os olhos. Ele estava a sorrir para mim.– Cal – disse ‑me, com delicadeza –, vai para a cama.Obedeci. Voltei a guardar o contrato no bolso e regressei para junto

de Tyler. O meu corpo derreteu ‑se no interior do saco ‑cama.Mudei a minha lanterna para o modo de dormir. Esta ficou a brilhar

suavemente.O Inverno no Sul da Califórnia não era agreste, mas, em breve, faria

demasiado frio para Tyler. Eu tinha de levá ‑lo para um lugar quente, para uma casa a sério. Mas como? Esta era a minha preocupação de todas as noites. Tinha esperado que aquele banco de corpos fosse a resposta, mas não era. Enquanto me deixava arrastar pelo sono, a minha lanterna desligou ‑se sozinha.

O meu sono foi estilhaçado pelo apito estridente dos detectores de fumo. Um odor amargo encheu ‑me as narinas. Senti Tyler, perto de mim, a sentar ‑se e a tossir.

– Michael? – gritei.– Fogo! – berrou ele, do outro lado da sala.

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Na faixa de pulso, li 05:00. Procurei a minha garrafa às apalpadelas e abri ‑a. Estiquei o braço para a gaveta que estava por cima de mim e tirei uma T­‑shirt para fora. Salpiquei ‑a com água.

– Encosta isto ao nariz – ordenei a Tyler.A lanterna de Michael rompeu a cortina de fumo.– Vamos! – gritou.Entrelacei o meu braço no do meu irmão. As nossas lanternas de

pulso penetraram o fumo apenas parcialmente enquanto avançávamos, curvados, na direcção da porta.

Michael pôs ‑me a mão nas costas, guiando ‑me para as escadas. O fumo enevoara a escadaria. Pareceu ‑me levar uma eternidade, mas conseguimos descer. Quando saímos do prédio, as minhas pernas pare‑ciam feitas de borracha.

Afastámo ‑nos do edifício, com receio das chamas e da queda de destroços. Na escuridão da madrugada, vimos outros Companheiros a sair – dois que nós conhecíamos e mais três que deviam habitar os andares mais baixos.

Estavam a olhar para o prédio, em estado de choque. Virei ‑me de repente.

– Onde estão as chamas? – perguntei.– Onde é o fogo? – indagou Michael.– Estão todos cá fora? – gritou um homem.– Sim. – Vi um Terminante, talvez com cem anos, a aproximar ‑se.

Vinha vestido com um fato completo e impecavelmente engomado.– Têm a certeza? – O Terminante olhou para os Companheiros, que

aquiesceram. – Óptimo. – Levantou a mão, e três outros Terminantes, com o uniforme e o equipamento dos trabalhadores da construção, avançaram para a frente.

Um dos trolhas arrancou a fita adesiva que cobria a fechadura da porta lateral. Outro usou uma ferramenta para afixar um aviso. O homem de fato deu ‑nos uma cópia desse aviso.

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Michael leu ‑o.– «Passagem proibida. Instalações com novo proprietário.»– Eles espantaram ‑nos com fumo – disse um dos Companheiros.– Têm de desocupar a zona agora – disse o homem de fato numa voz

calma mas autoritária.Como ninguém se mexia, acrescentou:– Têm um minuto.– Mas, as nossas coisas… – Aproximei ‑me do edifício.– Não posso deixar ‑vos entrar lá dentro. Por motivos de segurança –

replicou.– Vocês não podem ficar com a nossa propriedade – disse Michael.– A ocupação ilegal é uma violação da propriedade – retorquiu o Ter‑

minante. – Estou a avisar ‑vos para vosso próprio bem. Trinta segundos.Senti um aperto no peito.– Tudo aquilo que nos resta está lá dentro. Se não podemos entrar,

tragam, por favor, as nossas coisas cá para fora.Ele abanou a cabeça.– Não há tempo. Têm de ir. Os Inspectores já vêm a caminho.Isto pôs os outros Companheiros em fuga. Pousei o braço à volta

de Tyler e virei ‑me para ir, mas algo me fez parar. O homem de fato já nos tinha virado as costas, mas o trabalhador da construção viu ‑nos e fiz ‑lhe sinal. Ele virou ‑se.

– Por favor. Os nossos pais morreram. – Ardiam ‑me os olhos, cheios de lágrimas. – As últimas fotografias que temos deles estão dentro desse edifício. No terceiro andar, no fundo do corredor. Será que alguém pode, ao menos, devolver ‑nos a moldura? Mesmo que tenha de deitá ‑la pela janela?

Ele parou por um breve instante, como se estivesse a ponderar fazê ‑lo.– Quem me dera poder. Mas não posso. Lamento. – Virou ‑nos as

costas. Nunca me tinha sentido tão vazia por dentro. Era uma perda de tempo argumentar com ele. Havia mais de cem anos entre nós os dois; ele nunca compreenderia aquilo por que tínhamos passado.

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– Callie, não tem importância. – Tyler puxou ‑me pela mão. – Nós podemos recordá ‑los sem as fotografias. Não vamos esquecê ‑los.

As sirenes ressoaram.– São os Inspectores – disse Michael. – Corram!Não tínhamos alternativa. Corremos pela escuridão da madrugada,

deixando para trás os últimos laços físicos que nos ligavam à nossa família e à vida que leváramos juntos apenas um ano antes.

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