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MÔNICA MARCONDES DE OLIVEIRA SANTOS LIBERDADE, TORTURA E RELAÇÕES COM O OUTRO: ASPECTOS DA FILOSOFIA DE JEAN-PAUL SARTRE NA PEÇA “MORTOS SEM SEPULTURA” MESTRADO: FILOSOFIA PUC - SÃO PAULO 2006

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Page 1: LIBERDADE, TORTURA E RELAÇÕES COM O OUTRO: ASPECTOS … · liberdade, tortura e relaÇÕes com o outro: aspectos da filosofia de jean-paul sartre na peÇa “mortos sem sepultura”

MÔNICA MARCONDES DE OLIVEIRA SANTOS

LIBERDADE, TORTURA E RELAÇÕES COM O OUTRO: ASPECTOS DA FILOSOFIA DE JEAN-PAUL SARTRE NA PEÇA “MORTOS SEM SEPULTURA”

MESTRADO: FILOSOFIA

PUC - SÃO PAULO 2006

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MÔNICA MARCONDES DE OLIVEIRA SANTOS

LIBERDADE, TORTURA E RELAÇÕES COM O OUTRO: ASPECTOS DA FILOSOFIA DE JEAN-PAUL SARTRE NA PEÇA “MORTOS SEM SEPULTURA”

Dissertação apresentada como

exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo sob orientação da Professora Doutora Thais Curi Beaini

PUC - SÃO PAULO

2006

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BANCA EXAMINADORA

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_______________________________________

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À Thais Curi Beaini

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AGRADECIMENTOS

À Profa. Thais Curi Beaini, minha orientadora na vida e na filosofia. Pelo incentivo constante, pela confiança depositada; pela humildade em saber ensinar respeitando seus discípulos; pelo exemplo de vida; e, principalmente, por me devolver a esperança quando tudo parecia perdido. Ao professor José Alves de Freitas Neto da Unicamp, por sua presença marcante em minha vida no passado, quando de modo magnífico, me conduziu aos caminhos da filosofia em 1999 ainda na graduação, e no presente, compondo a banca examinadora em minha defesa. “Lança teu pão sobre as águas, porque depois de muitos dias o encontrarás”. (Ec 11:1). Obrigada por tudo, professor! Ao professor Benedito Eliseu Cintra, pelas valiosas observações e sugestões apresentadas por ocasião de meu Exame de Qualificação. Ao Edson, meu marido, pelo incentivo, compreensão e apoio financeiro, fundamentais à realização desta pesquisa. Ao Herbert, meu filho, que me ensinou os “macetes” da digitação e formatação de textos. À Pamela e Yasmim, minhas filhas, que souberam compreender tão bem este momento. À Maria, minha mãe, pelos cuidados dispensados aos meus filhos, desde minha graduação. Às professoras Cidinha Anversa (minha primeira incentivadora), Mercedes Silva e Patrícia Bioto. Obrigada por acreditarem em mim! Aos amigos Mesaque Souza Reis (in memorian), Silvana, Pr. Eli e Bete, Cristina Barros, Wilson Luques Costa e Viviane Monteiro. Aos que não foram citados, mas que foram importantes em algum momento de minha vida acadêmica. Esta vitória é de todos vocês!

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“Quero fazer a tentativa de alcançar a liberdade, diz

de si para si a jovem alma (...) Ninguém poderá

construir-te a ponte sobre a qual deverás transpor o

rio da vida, ninguém exceto tu própria (...) Há no

mundo um único caminho que ninguém pode seguir a

não ser tu. Onde conduz ele? Não o perguntes. Segue-

o. (...) Os teus verdadeiros educadores, os teus

verdadeiros formadores revelam-te o que é a

verdadeira essência, o verdadeiro núcleo do teu saber,

alguma coisa que não se pode obter nem por educação,

nem por disciplina, alguma coisa que é, em todos os

casos, de um acesso difícil, dissimulado e paralisado.

Os teus educadores não poderiam ser outra coisa para

ti, senão os teus libertadores”

Nietzsche

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RESUMO

Esta pesquisa tem por objetivo analisar alguns aspectos da filosofia de

Jean-Paul Sartre encontrados ao longo da peça Mortos sem Sepultura.

Através de suas peças teatrais Sartre conseguiu colocar em cena quase a

totalidade de suas teses filosóficas, expressando dessa forma sua concepção de

Teatro de Situações, o qual pretende mostrar suas personagens em situações

simples e humanas e seu momento de escolha diante dessas situações. A ação

se passa na França durante a ocupação alemã, onde seis membros da

Resistência são capturados por colaboracionistas. Estes pretendem descobrir o

local do esconderijo do chefe dos resistentes que por sua vez são interrogados e

torturados um a um, necessitando a cada momento escolher como se comportar

diante daquela situação-limite.

Dessa forma, nos três primeiros capítulos desta pesquisa pretendemos

tecer uma breve análise de alguns aspectos da filosofia de Sartre relevantes para

a nossa pesquisa, no que concerne a questões como: Liberdade-Escolha,

Relações Concretas com o Outro e seus conflitos e a Relação Tortura-Violência-

Morte. Partindo dessa temática, pretendemos no quarto e último capítulo

estabelecer relações destes conceitos com as situações vivenciadas pelas

personagens de Mortos sem Sepultura. No decorrer de todo o enredo, verificamos

através dos próprios diálogos das personagens, um mergulho aprofundado no

comportamento dos indivíduos perante a tortura e como se dão as relações entre

torturados e torturadores, além de suas eventuais mudanças de postura diante da

guerra e da violência, o que fará com que em muitos momentos estas

personagens tomem atitudes inusitadas.

Ao confrontar os aspectos da filosofia de Sartre com as situações-limite

experimentadas pelas personagens na peça, procuraremos comprovar que as

situações-limite levam o homem a fazer escolhas o tempo todo, o que implica no

pleno exercício de sua liberdade. Estas escolhas por sua vez, levam o homem a

suportar as conseqüências da ação, o que implica uma moral e toda uma vida.

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ABSTRACT

This research hás the objective of analyzing some aspects of Jean-Paul

Sartre’s philosophy in the play “Dead without grave”.Thorough of her plays Sartre

get to put in scene almost the total of thesis of philosophy expressing his

conception of play’s situation what intending to seen his characters in situations

simple and humans and his moment of choice in front of this situations. The action

happens in France during the German occupancy, where six members of

Resistance are captured by colaborationists. They intend to find out the resistant

chief, and for this reason, they torture the prisioners one by one, and each moment

these prisioners have to choose how to behave facing that cutting-edge situation

they were passing thorough.

Thus, in the first, second and third chapters of this dissertation we intend to

trace a short analysis of some aspects of Jean-Paul Sartre’s philosophy, wich are

relevant to our research named: Freedon-Choice, Concrete Relations with the

Neighbor and its conflicts, and the relation Torture-Violence-Death.

Starting from this theme, in the fourth and last chapter we will establis the

relation of these concepts with the situation lived by characters of the play.

Throughout the play, we can notice by the dialogues what is deep inside the

behavior of individuals who face torture and how the relationship between tortured

people and tourterers and developed.

Also the eventual profile changes front to war and violence, wich will cause,

in many times, sudden change of attitude in the characters.

By confronting Sartre’s philosophy aspects with the cutting-edge situations

lived by characters in the play, we want to prove that those situations lead mem to

make choics every moments, wich implies in the full exercise of their freedon.

And the choices lead mem to stand against the consequences of action,

wich implies in the essence of moral and a whole life.

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SUMÁRIO

1 – APRESENTAÇÃO _________________________________________1

2 – SARTRE E O TEATRO DE SITUAÇÕES________________________4

CAPÍTULO I -A LIBERDADE SARTRIANA E AS ESCOLHAS DO HOMEM 1.1 - A concepção sartriana de Liberdade_________________________13

1.2 - A Responsabilidade do homem pelas suas escolhas____________37

1.3 - A Relação da Liberdade com a Moral e os Valores______________42

1.4 - Sartre e o caráter absurdo da morte_________________________47

CAPÍTULO II – A RELAÇÃO EU-OUTRO SEGUNDO SARTRE 2.1 - Considerações acerca da existência do Outro__________________52

2.2 - O Outro: um mal necessário________________________________62

2.3 - O Olhar x O conflito de Liberdades___________________________69

CAPÍTULO III – TORTURA, VIOLÊNCIA E SITUAÇÕES-LIMITE 3.1 - O problema da violência e o animal humano relatado em três

momentos da obra de Sartre________________________________________75

3.2 - A Tortura na visão de Sartre_______________________________81

3.3 - O termo Situações-Limite como parte integrante do Teatro de

Situações de Sartre________________________________________________87

CAPÍTULO IV – CONSIDERAÇÕES SOBRE A PEÇA “MORTOS SEM SEPULTURA DE JEAN-PAUL SARTRE”

4.1 – Mortos sem Sepultura____________________________________92

4.2 – As personagens em meio a situações de Liberdade e Escolha_____96

4.3 – Tortura, violência e Situações-Limite no contexto da peça_______109

4.4 – O conflito expresso nas Relações com o Outro________________122

4.5 – Outros aspectos da Filosofia de Sartre encontrados na peça_____125

CONCLUSÃO______________________________________________130

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APRESENTAÇÃO

A análise de alguns aspectos da filosofia de Jean-Paul Sartre encontrados

ao longo da peça Mortos sem Sepultura constitui o tema deste trabalho.

No talento de muitas facetas de Sartre, o teatro talvez seja o seu lado mais

forte, posto que através de suas peças ele conseguiu colocar em cena quase a

totalidade de seus temas filosóficos e políticos. A maioria das peças de Sartre

possui forte tendência política1.

Nossa escolha recaiu sobre este tema pelo fato de a peça abordar vários

aspectos da filosofia de Sartre, entre eles a Liberdade, Tortura e os conflitos

existentes nas Relações com o Outro.

Escrita por Sartre em 1945 e encenada em Paris em 1946 logo após o

término da Segunda Guerra Mundial numa época em que os fatos reais ainda

estavam recentes na memória de todos, a peça chocou platéias com as cenas de

tortura e os gritos lancinantes dos maquis. Mas o propósito principal de Sartre era

mostrar as personagens em seus momentos de livre escolha diante das situações

a elas impostas.

Sartre definiu este gênero teatral como um Teatro de Situações, sendo este

considerado por ele, como o único adequado a nossa época. Assim, nessa

modalidade de teatro, o enfoque principal passa a ser a ação das personagens, no

sentido de que a ação não é determinada pelo seu caráter, mas seu caráter é

determinado pela ação. Este ato de escolha das personagens em determinadas

situações lança por sua vez o expectador acima do plano psicológico para colocá-

lo no plano moral do ato.A situação é o conjunto de condições, barreiras e de

circunstâncias sempre ”situadas” e coagidas. Entretanto, por mais obstáculos que 1 Sartre iniciou sua trajetória teatral com a peça “As Moscas” em 1943, cujo texto atenta para a força crítica implícita na lenda de Orestes, um dos mais famosos personagens da mitologia grega, que volta do exílio para vingar a morte do pai (Agamêmnon) assassinado, matando a própria mãe, Clitemnestra e o amante dela, Egisto, usurpador do trono de Argos. Com a peça, Sartre pretendia chamar a atenção para o problema da invasão alemã na França na Segunda Guerra Mundial. Havia um simbolismo evidente na peça, que demonstrava uma relação nítida da cidade de Argos com a França ocupada pelos nazistas e governada por Vichy. Egisto representa o usurpador alemão e Clitemnestra, o colaboracionista francês. Assim, a peça era na verdade um apelo à liberdade dos franceses, para que como Orestes, a comprometessem na destruição do Egisto alemão e da Clitemnestra colaboracionista, por mais caro que fosse o preço a ser pago.

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a situação represente, ela nunca chega a anular nossa condição essencialmente

livre. Muito pelo contrário: “nunca fomos tão livres como durante a ocupação

alemã”, afirmou Sartre certa vez. Ainda de acordo com ele, cabe ao dramaturgo

inserir em sua peça conflitos que estejam engajados 2 em uma vida real. E dada à

diversidade do público, ele deve escolher situações tão gerais que digam respeito

a todos.

Dessa forma, Sartre comparou o Teatro de Situações a um Teatro da

Liberdade, uma vez que em sua obra, não é possível falar em liberdade sem se

referir à situação. A liberdade se concretiza na ação, mas para se afirmar, precisa

de um campo de resistência no mundo.A situação é o obstáculo que se deve

transpor para se realizar os fins escolhidos. Sem a situação, a liberdade acabaria

por se dissipar.

As situações-limite são definidas por Sartre como situações extremas nas

quais a liberdade está sujeita a maiores pressões, e é neste dado momento que

ela se afirma mais claramente, através das escolhas feitas pelo indivíduo.

Dessa forma, ao fazermos a leitura da peça em questão, procuramos

identificar alguns aspectos da filosofia de Sartre nela contidos. Inicialmente,

analisaremos a questão da Liberdade, cerne da filosofia sartriana, estando esta

diretamente envolvida com a escolha. Em “Mortos sem Sepultura”, os resistentes

se encontravam presos num sótão aguardando o interrogatório que culminaria em

uma sessão de tortura, e tinham de fazer suas escolhas a cada momento. Eles

deveriam escolher como se comportariam perante a tortura, decidindo até que

momento a dor se tornaria insuportável, resistindo bravamente ou se acovardando

e delatando seu chefe. A escolha recairia também sobre o modo como viriam a se

comportar perante seus companheiros. Alguns se revelariam covardes, outros

2 Alguns tradutores de Sartre explicam que a palavra francesa “engagement” tem duas implicações: em primeiro lugar, a de que estamos mergulhados na política, de bom ou mal grado, ou seja, o indivíduo toma consciência de sua responsabilidade total, diante de sua situação histórica e social e decide agir para modificá-la ou denunciá-la. Em segundo lugar, a de que temos de aceitar voluntariamente as conseqüências de uma determinada posição política em virtude das circunstâncias desagradáveis que a cercam. De acordo com Bentley, todos os artistas sérios são engajados politicamente.Nesse caso, não se trata apenas de saber se o artista tem um ponto de vista político formado, trata-se de saber se o seu ponto de vista político faz parte integrante de sua obra. Para saber mais, consultar: BENTLEY, E. O Teatro Engajado.Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969.

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demonstrariam coragem, e haveria ainda, aqueles que mudariam de postura

diante do desenrolar dos fatos.

Partindo dessa perspectiva, pretendemos no primeiro capítulo de nosso

trabalho tecer breves considerações sobre a concepção sartriana de Liberdade.

Para tanto, utilizamos como referencial teórico a obra magna de Sartre O ser e o

nada, na qual encontramos os elementos necessários para compor uma idéia

central sobre o significado da liberdade para Sartre.

No segundo capítulo, discorreremos sobre As Relações Concretas com o

Outro”, nos atendo principalmente no eterno conflito existente nessas relações.

Em uma leitura mais atenta da peça, pudemos identificar vários exemplos destes

conflitos, tanto nas relações entre os torturadores, como entre os resistentes, que

por várias ocasiões agiram de má-fé, deixando de assumir suas culpas diante dos

fatos, lançando-as sobre seus companheiros.

Não obstante, no terceiro capítulo, há um novo problema a se investigado: a

relação tortura-violência-morte. O tema da tortura aparece com uma insistência

quase obsessiva na obra de Sartre. Talvez esse fato se deva a alguma indignação

que ele possuía em relação à espécie humana, ou até mesmo ao fato de ter vivido

num período que abrangeu a duas guerras mundiais, e ter participado de uma

delas. A violência também parece ter sido algo preocupante para Sartre, conforme

podemos notar através de seu envolvimento com questões políticas que

envolviam repressão, como a Guerra da Argélia, a questão judaica; o racismo, etc.

A violência e a tortura nos remetem a uma outra questão: a morte. Para discorrer

sobre este assunto, Sartre reservou cerca de vinte páginas de O ser e o nada,

demonstrando dessa forma, ver a morte como “um fato contingente”, e afirmando

que “é absurdo que tenhamos nascido; é absurdo que tenhamos de morrer”.

No quarto e último capítulo, pretendemos fazer as devidas relações dos

aspectos da filosofia de Sartre analisados nos capítulos anteriores, com a peça,

procurando dessa forma, obter um olhar mais aprofundado sobre Mortos sem

Sepultura.

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SARTRE E O TEATRO DE SITUAÇÕES

1 – JEAN-PAUL SARTRE: NOSSO FILÓSOFO EM QUESTÃO Jean-Paul Charles Aymard Sartre nasceu em Paris a 21 de junho de 1905,

filho de Jean-Baptiste Sartre, um oficial da marinha, e Anne-Marie Schweitzer,

única filha mulher e caçula da família. O pai de Sartre morreu quando o menino

tinha apenas dois anos, vitimado por uma febre intestinal contraída na

Cochinchina. Assim, Anne-Marie com apenas vinte anos, foi morar com o pequeno

Sartre na casa de seus pais. Charles Schweitzer, avô de Sartre, era visto como a

pessoa mais importante naquela casa e criou seu neto com um misto de carinho,

mimos e extremo rigor. Futuramente ele seria visto por Sartre como a pessoa que

exerceu maior influência em sua formação e sua subseqüente carreira. A posição

de Anne-Marie dentro da nova casa era de subordinação completa.

Schweitzer, avô de Sartre, era um velho e austero professor de línguas de

severos costumes calvinistas que ensinou a seu neto a disciplina, o rigor e o amor

pelas palavras. Entretanto, Sartre cresceu presenciando o conflito de crenças

religiosas em sua família que se dividia em protestantes de um lado e católicos de

outro. Isso fez com que ele adquirisse grande aversão pela fé religiosa, vindo

futuramente a optar pelo ateísmo.

Até os doze anos Sartre não manteve contato com outras crianças de sua

idade por ordem de seu avô, que contratou professores particulares para ensinar

seu neto em casa. Isso fez com que Sartre se refugiasse num mundo imaginário,

alimentado pelos livros.

A mãe de Sartre tornou a se casar, quando ele possuía a idade de doze

anos e o menino foi levado pelo padrasto para La Rochelle, onde este trabalhava

no porto. Após dois anos Sartre é enviado de volta a Paris para prosseguir seus

estudos. Mas o projeto original de Sartre já estava elaborado na infância: o de

escrever.

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Em 1924 aos dezenove anos, Sartre ingressa na Escola Normal, no curso

de filosofia, onde conheceu Simone de Beauvoir que seria sua companheira por

toda a vida. Terminado o curso de filosofia, Sartre teve de prestar o serviço militar,

e o fez em Tours, na função de meteorologista. Ao estourar a Segunda Guerra

Mundial Sartre foi convocado para servir nesta mesma função. Em junho de 1940,

caiu prisioneiro e foi encerrado no campo de concentração em Trier, na Alemanha,

do qual conseguiu escapar após um ano, portando um falso atestado médico que

conseguira.

De volta a Paris, fundou o grupo Socialismo e Liberdade, a fim de colaborar

com a Resistência3 francesa, produzindo panfletos clandestinos contra a

ocupação alemã e contra os colaboracionistas4 franceses. Mas a guerra ainda

continuaria por mais três anos.

2 - O PANORAMA DA FRANÇA NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL E O SURGIMENTO DO TEATRO DE SITUAÇÕES

Com a crescente escalada nazista na Europa, a partir de 10 de maio de

1940, Hitler começou a ofensiva contra a França. Os alemães invadiram a Bélgica

e a Holanda. A queda da resistência belga tornou crítica a situação: 270 mil

ingleses e 100 mil franceses aguardavam a retirada de barcos ingleses protegidos

3 Resistência - Organização que, num país ocupado por forças militares estrangeiras, reúne civis e militares empenhados em combater o inimigo com ações de sabotagem, guerrilha, etc. Na Segunda Guerra Mundial, a França possuía importantes movimentos de Resistência, cujos esforços eram coordenados por um conselho nacional formado em maio de 1943, através do qual organizaram-se os maquis (resistentes), que uma vez armados, desenvolveram suas atividades particularmente em Glières (fevereiro de 1944) e Vercors (março-abril). Mas os alemães aumentaram a repressão, conduzida pela Gestapo, ocasionando prisões de resistentes e de judeus, e deportando estes para campos de concentração. 4 Colaboracionismo – Estabelecida por ocasião da entrevista do Marechal Pétain com Hitler em Montoire (outubro de 1940), a política de colaboração era no princípio livremente consentida pelo governo de Vichy, que inicialmente acreditava que ela poderia trazer benefícios à França.Ela se traduziria na prática, por uma exploração intensiva das riquezas do país (fornecimento de produtos agrícolas e industriais), pela transferência da mão de obra para a Alemanha, mas também por um apoio militar efetivo, com a criação da Legião de voluntários franceses (LFV) em 1941 e unidades francesas de Waffen SS ( fevereiro de 1943), ou ainda a milícia francesa criada por J.Darnard em janeiro de 1943. Impopular e minoritária, a colaboração tornou-se eco da propaganda nazista, anti-semita e anticomunista, cujos temas eram desenvolvidos no rádio bem como na imprensa colaboracionista.Com a libertação, os chefes da colaboração foram julgados e a seguir executados.

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pela frota aliada, constantemente bombardeada pela aviação alemã: todo o

material bélico desses exércitos caiu nas mãos dos alemães, e cerca de 40 mil

franceses foram aprisionados. Avançando para o sul o exército alemão venceu os

franceses, obrigando o governo a fugir para Tours, e depois para Bordeaux. No

dia 14 de junho de 1940, Paris caiu em poder dos nazistas. Em todos os países

ocupados pelos nazi-fascistas organizavam-se movimentos de resistência.

Associações clandestinas e nacionalistas procuravam paralisar o inimigo por meio

de sabotagem e ataques de surpresa, dificultando dessa forma, a ação dos

alemães. Esses movimentos tiveram grande importância especialmente na

França, Iugoslávia, Polônia e Grécia.

Somente após quatro anos na guerra, a França conseguiu sair vitoriosa

juntamente com os exércitos aliados, após estes se utilizarem uma determinada

estratégia, na qual cercaram a Alemanha por todos os lados, resultando na

rendição daquele país.

Todo esse contexto demonstrado nas linhas anteriores formou um ambiente

propício para o surgimento do Teatro de Situações5 sobre o qual iremos discorrer

a partir de agora.

O teatro do século XX é tido como teatro político6, por ter havido vasta

conscientização7 por parte dos dramaturgos no que concerne aos problemas

5 Alguns estudiosos defendem a idéia de que Sartre não foi o primeiro a fazer Teatro de Situações. As tragédias gregas já eram consideradas como pertencentes a essa categoria teatral. No século II antes de nossa era, a sociedade grega já se encontrava bastante abalada por contradições internas, com as crescentes revoltas de escravos e a intervenção dos romanos nos assuntos helênicos. Ésquilo, Sófocles e Eurípedes são exemplos de dramaturgos que definiram muito bem a tragédia grega no século V a.C. Numa estrutura rígida, o coro desempenha o papel central, representando principalmente, a “polis”.É a sociedade para os gregos, uma espécie de ordem universal que se faz presente julgando, comentando, criticando, e mesmo interferindo no conflito dos homens. As ações trágicas nas peças desses dramaturgos resumem-se em certo sentido, na desesperada e inútil luta dos homens contra o destino que lhes é imposto de forma inapelável, pelos deuses. Já a comédia clássica grega teve seu mais legítimo representante em Aristófanes, crítico implacável da ordem social. Seu teatro foi marcado pelo vigor sensorial, pela capacidade de incorporar em suas sátiras, elementos de uma obscenidade. (cf. PEIXOTO, F. O que é teatro, pp. 69-70). 6 Teatro político – Tomando-se política no sentido etimológico do termo, concordar-se-á que todo teatro é necessariamente político, visto que ele insere protagonistas na cidade ou no grupo. A expressão designa de maneira mais precisa o teatro popular, o teatro épico, o teatro documentário e o teatro de massa.Estes gêneros têm por características comuns uma vontade de fazer com que triunfe uma teoria, uma crença social, um projeto filosófico.A estética é então subordinada ao combate político até o ponto de dissolver a forma teatral no debate de idéias. 7 Podemos tomar a peça Os tecelões como um bom exemplo dessa conscientização e reflexão havida por parte de alguns dramaturgos da época.Escrita por G. Hauptmann, e encenada em 1892, a peça mostra uma greve de operários na região da Silésia, esmagada pelas forças de repressão.Levou pela primeira vez para o palco

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enfrentados pelo homem neste século8. Entre estes, podemos destacar: guerras,

massacres, genocídios e outros tipos de violências cometidas pelo homem contra

seres de sua própria espécie. O filósofo, dramaturgo e romancista Jean-Paul

Sartre teve relevante participação como testemunha destes problemas que

atingiram a espécie humana e o mundo naquela época. A guerra mudara muita

gente, e Sartre em particular. A liberdade experimentada por seu individualismo

antes da guerra acabara-se e naquele momento, ele necessitava de um projeto de

ação que incluísse todos os homens.Iniciando sua carreira de dramaturgo, optou

por um novo gênero, o qual ele chamou de Teatro de Situações, que ele considera

o único adequado à nossa época. Partindo do pressuposto de que o homem é

livre em determinadas situações, ele faz escolhas o tempo todo, dentro dessas

situações.O termo utilizado por Sartre, foi primeiramente usado por Karl Jaspers9,

que define situações-limite como situações extremas que nos colocam em face

dos fatos mais inesperados da existência humana: o sofrimento, o acaso e a

morte. Para Sartre, são situações como estas que fazem com que o homem tome

consciência de si mesmo. Juntamente com Albert Camus, Sartre fez com que o

existencialismo francês fosse particularmente fértil no campo teatral. A filosofia

existencialista esteve particularmente preocupada com o indivíduo, sua natureza

interior e seu destino. Camus10 e Sartre11 escreveram peças que trouxeram novas

alemão as lutas sociais do proletariado, marcando época no desenvolvimento de uma dramaturgia realista (“Os tecelões” foi escrita a partir de documentos sobre a revolta operária ocorrida em 1844 na Silésia). 8É importante lembrar, que ainda no fim do século XIX houve uma grande e contundente reflexão sobre a condição humana na sociedade burguesa. Gerhardt Hauptmann (autor de “Os tecelões”) já utilizava na época elementos da estrutura de um teatro não dramático e antecipava o teatro político revolucionário, elaborando acusadores painéis sociais: seus personagens são a massa miserável debatendo-se entre a fome e o álcool, entregues à passividade e conduzindo a revolta contra a opressão. São temas dos novos tempos que invadem o palco com inusitado vigor. 9 Jaspers, Karl – Filósofo alemão contemporâneo (1883-1969). Jaspers chama as Situações-Limite àquelas em que me encontro sempre que não posso viver sem luta nem dor, em que inevitavelmente assumo a culpa ou em que tenho de morrer. Jaspers compara as situações-limite a um muro contra o qual se embate, porque é da queda que o homem pode se erguer de novo. Encarar as situações-limite sem fugir e em as negar é o único modo que ele tem de poder decifrar ou ver o que está para além delas. Porque elas estão lá, sem que sejam previsíveis nem superáveis, sem que se possa produzir alguma outra coisa, ser explicadas ou modificadas. Não é possível estruturar uma teoria geral das situações-limite. Luta, dor, culpa ou sentimento de morte são vistos por ele como situações-limite, e têm sua origem na própria liberdade. 10 Camus, Albert (1931-1960) escreveu quatro peças: Calígula (escrita em 1938, estreou em 1945), O mal-entendido (1943); Estado de Sítio (1948) e Os justos (1949). Sua filosofia foi basicamente fundamentada sobre dois pilares fundamentais: o absurdo e a revolta. Sua definição de absurdo diz respeito ao confrontamento da irracionalidade do mundo como desejo de clareza e racionalidade que se encontra no

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esperanças para o teatro francês. Algumas delas pareceram representar uma

nova dramaturgia, uma maturidade recém-adquirida nessa tradição. Assim como

Sartre, Camus também engajou-se no movimento de Resistência durante a

Segunda Guerra. Seu principal papel nesta missão foi o de jornalista, profissão

que o obrigou a participar ativamente dos acontecimentos políticos daquela época.

Apesar disso, duas das peças escritas por Camus foram consideradas por críticos

como pertencentes ao chamado Teatro do Absurdo12 (que teve como precursor

Luigi Pirandello13, outro importante dramaturgo daquela época). São elas: Calígula

(1938) e O Mal-Entendido (1943). Especificamente em Mortos sem Sepultura,

Sartre aproxima-se ainda de outros dramaturgos na concepção de que a guerra e

a violência fazem com que o homem mude de postura, mas é diferente daqueles

que acreditavam que o teatro deveria trazer à tona o homem e sua relação com a

classe social a que ele pertencia, como Erwin Piscator 14e Bertolt Brecht15.

homem. Quanto ao conceito de revolta, ele está vinculado, em última análise, busca inconsciente de uma moral. Nas palavras de Camus: ela é um aperfeiçoamento do homem, ainda que cego”. 11 O teatro de Sartre e Camus foi ainda denominado “um teatro de tese”. Neste, o espetáculo é utilizado como instrumento para uma demonstração de questões essenciais do mundo moderno, que segundo estes dois dramaturgos, deveriam ser discutidos em cena. 12 Teatro do Absurdo – Expressão considerada pelas críticas alemã e inglesa, sobretudo após as publicações do discurso obtido sobre o Teatro do Absurdo, de Martin Esslin (1961), tendo por referência a corrente dramática anti-realista (em sua aparência exterior), antipsicológica, anti-retórica e extremamente caustica sobre a condição humana, que aproxima alguns autores do século XX (segunda metade): Samuel Beckett (Esperando Godot, Fim de Festa, Cinzas), Eugène Ionesco (A cantora careca, As cadeiras, O Rinoceronte), Albert Camus (Calígula, O mal-entendido), Arthur Adamov (A paródia, A invasão, O ping-pong) e Jean Genet (As criadas, Alta Vigilância, O balcão). Teatro de situações ilógicas, em que se manifestam contradições ou ausências de significado nos discursos e ações cotidianas, a angústia permanentemente experimentada pelo homem contemporâneo, a visão derrisória da condição humana, as artimanhas cínicas e inesgotáveis do poder de submissão.Comumente, os diálogos tornam-se jogos sem solução, já que, como assevera Adamov “ninguém entende ninguém”. As duas guerras mundiais, os totalitarismos, os valores burgueses fúteis, a ignorância ou a credulidade das massas e as narrativas de Kafka e de Camus exercem influências consideráveis sobre as perspectivas pessimistas que se projetam no Teatro do Absurdo. Nele, como observa Hildesheimer, há muitas perguntas, mas nenhuma resposta razoável ou convincente.Corre-se perversa e historicamente para o nada. Para saber mais, é válido consultar: CUNHA, N. Dicionário de Teatro.Porto Alegre: L&PM, 2001, 3a. ed. 13 Pirandello, (Luigi). Dramaturgo e escritor italiano (1867-1936).Em seus romances, contos, e, sobretudo em suas peças de teatro, salienta-se constantemente a obsessão pela pluralidade do ser individual e a inútil luta que o homem trava para atingir a verdade de sua própria identidade. Esta, sempre aparece fragmentada em hipóteses e aparências que se anulam umas às outras. Pirandello foi um homem de teatro por excelência. Entre as peças que escreveu destacam-se: Liolá (1916), Assim é se lhe parece (1917); Seis personagens à procura de um autor (1921), Henrique IV (1922) e Esta noite se improvisa (1930). 14 Diretor artístico de grande importância para o teatro internacional, deixando forte influência para aqueles que atuam neste campo.Essencialmente político, apoiado no marxismo é seu teatro. Seu livro Teatro Político (1929) é um convicto manifesto de projetos, um relato de uma trajetória difícil e contraditória, e uma reflexão vigorosa capaz de estimular qualquer conceituação. Piscator defende a arte como um meio, e não como um

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Dessa forma, diversas situações que ocorrem durante nossa existência

podem ser consideradas situações-limite, e ao nos depararmos com elas, temos

de fazer nossas escolhas. É importante lembrar, que ao fazer uma opção, o

homem abre mão de todas as outras escolhas possíveis, ficando dessa forma,

totalmente responsável pela decisão tomada e suas possíveis conseqüências.

“Se é certo que o homem é livre numa determinada

situação e que se escolhe a si próprio e em por essa situação,

teremos de apresentar no teatro situações simples e humanas e

liberdades que se escolhem nessas situações. O que o teatro pode

mostrar de mais emocionante é um caráter em processo de

formação, o seu momento de escolha, de livre decisão, o que

compromete uma moral e toda uma vida. E como só há teatro

realizando a unidade dos expectadores, é necessário encontrar

situações tão gerais, que sejam comuns a todos. (...) Parece-me

que a tarefa do dramaturgo é escolher entre situações-limite, a que

melhor exprima suas preocupações e apresentá-la ao público,

como a questão que se opõe a certas liberdades”.16

fim: está subordinada a tarefas políticas urgentes. O teatro precisa assumir-se enquanto instrumento de agitação e propaganda, sem abdicar de sua condição de arte: quanto mais artístico, mais político.Piscator buscava em suas peças retratar os temas mais diversos da Alemanha da década de 1920: petróleo, mazelas do capitalismo, guerra e revolução. Revolucionou a técnica teatral com inovações como o palco giratório, a esteira rolante, o filme, dados estatísticos e complexos mecanismos nos bastidores: para revelar a engrenagem da História sob um ponto de vista materialista e revolucionário, o palco precisa estar equipado.Sobre a trajetória deste dramaturgo, consultar: PISCATOR, E. Teatro Político. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968. 15 Opondo-se ao drama aristotélico (que apresentava apenas relações inter-humanas individuais – objetivo essencial do drama rigoroso da “peça bem-feita”), Brecht considerava que a forma épica de teatro é a única capaz de apreender aqueles processos que constituem para o dramaturgo a matéria para uma ampla concepção de mundo. O homem concreto só pode ser compreendido com base nos processo dentro e através dos quais existe. Brecht teve grande relevância para a Alemanha da década de 1920. Além disso, era poeta e romancista. Transformou o fazer teatro.Pode-se afirmar que seu teatro era político, e, sobretudo, social.Provocando a discussão em suas encenações, trouxe o teatro dialético, o qual oferecia peças que suscitassem a discussão. Sobre a biografia de Brecht, é válido consultar: PEIXOTO, F. Brecht, vida e obra. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1978. 16 SARTRE, J.P. Situations II. Paris: Gallimard, 1948.

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Foi através de suas peças de teatro que Sartre tornou-se realmente

famoso, tendo conseguido colocar em cena quase a totalidade de seus temas,

entre eles, a liberdade, vista por Sartre como o cerne de sua filosofia, e tida por

ele como aspecto imprescindível na obra de arte. Dentro dessa perspectiva, Sartre

afirma que:

“A finalidade da obra de arte é recuperar esse mundo,

mostrando-o tal como ele é, mas como se tivesse origem na

liberdade, sendo na cerimônia do espetáculo (ou da leitura) que

essa recuperação é consagrada. Eis o papel fundamental da

liberdade na obra de arte: a obra de arte é um ato de confiança na

liberdade, e uma vez que os expectadores e autor só conhecem

essa liberdade para exigir que ela se manifeste, a obra de arte

pode ser definida como uma apresentação imaginária no mundo,

na medida em que exige a liberdade humana, de forma que o

escritor, homem livre que se dirige a homens livres, tem apenas um

único tema: a liberdade”.17

No decorrer de nossas vidas nos deparamos constantemente com

situações-limite que nos obrigam a tomar decisões imediatas e viver suas

conseqüências, o que implica afirmar que em todos esses casos está em questão

o exercício da liberdade do homem.A liberdade é definida por Sartre como um

recuo do ser-em-si. Essa liberdade definida ontologicamente não é uma noção

abstrata, mas deve se manifestar concretamente através da escolha de uma ação,

da tomada de decisão.Ser livre é realizar escolhas concretas. Não há liberdade

em abstrato, ela é sempre situada e coagida. Entretanto, é pelos obstáculos que

se interpõem à realização de um ato concebido, pela distância entre o fim

escolhido e a consciência (distância imposta pela existência real do mundo) que

se realiza a liberdade, e de acordo com Sartre, esta se afirma mais claramente

17 SARTRE, J.P. Que é a literatura? São Paulo: Ática, 1987, p.39.

10

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quando sujeita a maiores pressões. Ao relacionar essas idéias à sua concepção

de teatro, Sartre esclarece que o homem só se define pela ação e o teatro é

essencialmente ação.Tal concepção é reforçada em uma série de textos,

conferência e entrevistas de Sartre sobre teatro, que mais tarde vieram a compor

o livro Um Thèatre de Situations, no ano de 1973. Nesses textos, o filósofo dizia

criar personagens que são forçadas à escolha e à ação. Estas personagens vão

formando suas características e constituindo seus destinos a partir de situações

vividas em perfeita harmonia com o princípio de que a “existência precede a

essência” e com a visão do homem como projeto vir-a-ser. Ao Teatro de Situações

de Sartre opõe-se o teatro clássico, cujo conflito essencial seria desencadeado por

“caracteres” formados a priori. Por exemplo, Orestes de Eurípedes chega a Argos

com um destino traçado, o Orestes de Les Mouches chega à cidade sem uma

determinação definida, a possibilidade de vingança se constitui a partir da relação

que se estabelece com sua irmã, Electra. Sartre confirma este raciocínio, quando

afirma que:

“A situação é um chamado: ela nos cerca; ela nos propõe

soluções, nós devemos nos decidir. É para que a decisão seja

profundamente humana, para que ela coloque em jogo a totalidade

do homem, a cada vez é preciso colocar em cena situações-limite,

quero dizer, que apresentam alternativas em que a morte é um dos

termos. Assim, a liberdade se descobre em seu mais alto grau

porque ela se aceita para poder se afirmar”.18

Nesse momento, tudo o que o ator pode faze é persuadir por contágio. Seu

ofício é reproduzir através de palavra por palavra, gesto por gesto, a totalidade da

obra, promovendo sobre o expectador um contágio afetivo e lançando este para

dentro de seu personagem.

18 SARTRE, J.P. Situations II. Paris: Gallimard, 1948.

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Autor e ator sabem que no exercício de seu ofício, a única maneira de

atingir os expectadores é fasciná-los o máximo possível.

“Eis porque no teatro, mais do que em qualquer outro gênero

literário, é preciso escrever com palavras fortes, palavras que

impressionem, posto que as réplicas passam rápido, e não se pode

retomá-las para melhor compreendê-las. Além disso, é preciso

também pôr em cena atitudes teatrais, isto é, é preciso que os

gestos e as palavras postas em cena admitam certa ênfase para

impressionar o expectador, é preciso que os atos representados

assumam uma certa monstruosidade”.19

Dentre as várias peças escritas por Sartre, escolhemos Mortos sem

Sepultura20 para ser analisada com certa profundidade em nosso trabalho. Ao

fazermos a leitura da peça, identificamos nela alguns aspectos relevantes da

filosofia de Sartre, sobre os quais pretendemos discorrer no percurso desta

dissertação. Entre estes, podemos destacar principalmente: a relação liberdade-

escolha-responsabilidade, a tortura e os conflitos nas relações com o outro.

19 ALVES, I.S. O drama da existência: Estudos sobre o pensamento de Sartre. São Paulo: Humanitas, 2003. 20Vale lembrar que Mortos sem Sepultura foi encenada no Brasil, primeiramente no TBC (Teatro Brasileiro de Comédia, situado em São Paulo), com direção de Fernando Peixoto, no ano de 1954.Nessa época, a peça não teve muita repercussão. Já nos anos 70 em plena ditadura militar, a peça estreou no Teatro Maria Della Costa, também em São Paulo, onde permaneceu por várias semanas, obtendo desta vez uma melhor aceitação por parte do público.O cartaz da peça foi elaborado pelo artista Elifas Andreatto, e mostrava um prisioneiro amarrado em um pau-de-arara (símbolo de tortura típico do Brasil), mas com um soldado ao fundo, portando uma farda nazista. Uma grande quantidade desses cartazes foram vetados e apreendidos pela censura, tão logo ocorreram as primeiras apresentações, sob a alegação de que “o pau-de-arara é uma invenção brasileira”.

12

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CAPÍTULO I

A LIBERDADE E AS ESCOLHAS DO HOMEM.

1.1- A CONCEPÇÃO SARTRIANA DE LIBERDADE

Neste ponto de nosso trabalho, pretendemos destacar alguns aspectos da

concepção sartriana de liberdade, procurando nos ater em algumas questões que

consideramos relevantes para nossa pesquisa.

Para Sartre, a liberdade surge na origem do Para-Si. Este é definido por

Sartre como o caráter do ser que tem consciência de sua existência. A

consciência é um “ser-para-si, porque é auto-reflexiva, visto que pensa sobre si

mesma”.

Na concepção de Sartre, a existência precede a essência, mas esse fato

aplica-se a um único ser: o homem, pois só ele é livre, o que significa que ao

contrário de outros seres, o homem não é predeterminado.

Primeiramente o homem existe, se descobre, surge no mundo, e só depois

se define. Inicialmente ele não é nada. Não existem idéias inatas, anteriores ao

surgimento do homem e destinadas a orientar sua vida, indicando que caminho

ele deve seguir. Só depois será alguma coisa, e tal como a si próprio fizer. O que

ele virá a ser dependerá de suas escolhas. No tocante a essa questão Sartre

define que:

“O homem é antes de mais nada um projeto que se vive

subjetivamente, nada existe anteriormente a esse projeto. Nada há

no céu inteligível, e o homem será antes de mais nada o que tiver

projetado ser. Não o que ele quiser. Porque o que entendemos

vulgarmente por querer é uma decisão consciente”.21

21 SARTRE, J.P. O ser e o nada. São Paulo: Vozes, 1997, p.181.

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Na citação vista anteriormente Sartre mencionou a palavra “projeto”, termo

muito utilizado por ele em sua filosofia. Portanto, aqui se faz necessário

esclarecermos o significado de tal palavra, já que ela se encontra inserida no

próprio conceito de liberdade sartriana.

Sartre define como projeto a propriedade da realidade humana de ser

continuamente lançada adiante de si e de estar sempre no futuro, ou seja, em tudo

o que fazemos, participamos daquela ação no momento presente, mas já sabendo

aonde queremos chegar, ou seja, já prevendo qual será o nosso objetivo final

sobre aquela ação. Por exemplo, nesse momento escrevemos esta pesquisa,

porém já estamos pensando na conclusão deste trabalho, ou melhor, no fim de

nosso projeto, na totalidade a alcançar. O homem não é nada mais do que o seu

projeto, só existe na medida em que o realiza através de seus atos.

Estamos para além de tudo o que fazemos, sempre no futuro em relação a

nós mesmos. Paulo Perdigão nos dá alguns exemplos pertinentes a este aspecto

da filosofia de Sartre:

“A linguagem, por exemplo: ao falar ou escrever, estou já

no fim da sentença, no significado geral do que pretendo

expressar. Ao caminhar em uma direção, sou orientado pelo fim

futuro que projetei: levanto-me para apanhar um livro na estante

situada a certa distância e, se não me desoriento no meio do

caminho, é porque cada um dos meus movimentos é determinado

pelo futuro projetado (o ato de ler o livro). O corpo, também é

passado para a consciência. Estou sempre à frente de meu corpo:

em um jogo de tênis, a minha consciência já está no gesto futuro

de rebater a bola enquanto o corpo é passado com relação a esse

gesto futuro, e tenho de conduzí-lo até lá. Sem o futuro, não

seríamos sequer capazes de dar um passo orientado, esboçar o

mais leve gesto coordenado”.22

22 PERDIGÃO, P. Existência e liberdade. Porto Alegre: L&PM, 1995, p.82.

14

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Tomemos um outro exemplo: um professor quando entra na sala para

ministrar uma aula, deverá ter projetado com antecedência o conteúdo a ser

ensinado para seus alunos, ou seja, ele deverá ter bem definido o ponto no qual

ele pretende chegar, e qual será a conclusão daquela aula.

O mesmo ocorre com um palestrante. Antes de proferir sua explanação

sobre determinado tema, ele necessitará de um projeto previamente estabelecido

sobre os assuntos que serão abordados na referida palestra, para que ele possa

ter dessa forma, seus objetivos alcançados.

Porém, cabe-nos lembrar, que o projeto original ao qual Sartre se refere

não é algo decidido nem determinado definitivamente, pois se trata de um projeto

sobre a qual não temos consciência plena, mas não pode ser definido como

inconsciente. Por isso, ele não é uma determinação definitiva do para-si, e sim,

uma escolha que surge fundamentada pela sua própria liberdade, apesar de não

haver vinculação do projeto com a nossa vontade, ou como nos exemplifica

Perdigão:

“Ao agirmos voluntariamente, fazendo valer as nossas

decisões, apenas captamos pela reflexão o projeto já estabelecido

por nossa liberdade originária. Agimos assim para nos

recuperarmos enquanto ser que atua e decide, para nos

apropriarmos dessa liberdade originária através de uma decisão

reflexiva (posicionamos nossa própria consciência que somos

enquanto liberdade). Daí a satisfação que acompanha o ato

voluntário. Fiz o que quis. Mas o fim visado já estava anteriormente

posto: quando agimos por vontade a decisão já estava tomada”.23

23 PERDIGÃO, P. Existência e Liberdade.Porto Alegre: L&PM, 1995, p. 82.

15

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Considerando essa afirmação, é lícito supor que a consciência apresenta

uma intencionalidade, e o para-si em seu ser mesmo, é intencional, ou seja: para

Sartre, todo ato humano é por princípio intencional. A liberdade é o ato de se fazer

como consciência de ser-no-mundo, ato de escolher a si como projeto existencial,

condição que se realiza de modo situado, sem que seja determinado senão pelo

próprio sujeito: o homem. Este é antes de mais nada, o seu fazer-se; é o que

escolheu para si mesmo. A noção de sujeito abarcada na filosofia sartriana é de

fundamental importância para o seu conceito de liberdade, uma vez que a

liberdade somente é liberdade de um sujeito cuja consciência é autônoma para

escolher, ou seja, é intencional. Dessa forma, o sujeito livre sartriano é aquele

elaborado na esteira da filosofia cartesiana, na medida em que Descartes

promulgou a liberdade do pensar e da consciência do sujeito. Nessa perspectiva

define Sartre:

“Como ponto de partida não pode existir outra verdade senão esta:

penso, logo existo, é a verdade absoluta da consciência que

apreende a si mesma. Qualquer teoria que considere o homem

fora desse momento em que ele se apreende a si mesmo, é de

partida, uma teoria que suprime a verdade, pois fora do cogito

cartesiano, todos os objetos são apenas prováveis e uma doutrina

de probabilidade que não esteja ancorada numa verdade

desmorona no nada, para definir o provável temos de possuir o

verdadeiro”.24

Dessa forma, a liberdade aparece como condição fundante do sujeito:

24 SARTRE, J.P. Questão de método. São Paulo: Abril Cultural 1987, p.54.

16

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“Certamente, eu não poderia descrever uma liberdade que fosse

comum a outro e a mim, não poderia, pois, considerar uma

essência de liberdade. Ao contrário, a liberdade é o fundamento de

todas as essências posto que o homem desvela as essências

intramundanas ao transcender o mundo rumo às suas

possibilidades próprias”.25

Entretanto, é importante lembrar que entre Sartre e Descartes existe uma

diferença. Descartes inicialmente elaborou o raciocínio que definia o pensamento

como a essência do ser e que sua mente era separada do corpo. Naquele

momento, todo o que ele tinha, porém, era sua idéia de uma coisa pensante.

Assim, para mostrar que não estava sendo enganado, ele precisava provar a

existência de Deus, pois essa seria a única garantia de que nossas idéias são

claras e definidas são verdadeiras e que não estamos sendo iludidos por nenhum

gênio maligno. Assim, Descartes deu-se por satisfeito ao usar a prova de uma

versão ontológica de Anselmo e afirmar que a idéia de um Deus perfeito deve ter

uma causa. O homem é cheio de defeitos e não pode ser essa causa, de modo

que Deus deve ser a causa de nossa idéia da perfeição dele. Partindo desse

pressuposto, Descartes considerou que havia conseguido comprovar a existência

de Deus. Em Situações I, Sartre procurou definir a visão que Descartes tinha

sobre Deus, relacionando essa idéia à liberdade do homem, e ressaltando um

ponto em que discorda de Descartes, pelo menos em parte:

“Ora, o Deus de Descartes é o mais livre dos deuses que o

pensamento humano forjou; é o único Deus criador. Com efeito,

não está submetido a princípios – nem sequer ao da identidade –

nem a um bem soberano de que seria o único executor. Não criou

apenas os existentes, de acordo com regras que se teriam imposto

25 SARTRE, J.P. O ser e o nada.Petrópolis: Vozes, 1997, p.212.

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à sua vontade, mas criou ao mesmo tempo os seres e suas

essências, o mundo e as leis do mundo, os indivíduos e os

princípios elementares. (...) Assim, Descartes oscila perpetuamente

entre a identificação da liberdade com a negatividade ou negação

do ser – o que seria a liberdade de indiferença – e a concepção do

livre-arbítrio como simples negação da negação. Em resumo,

faltou-lhe conceber a negatividade com produtora”.26

Porém, ao final de suas considerações sobre “A liberdade cartesiana”,

Sartre, diz “não censurar Descartes pelo fato de ter atribuído a Deus o que nos

pertence por direito” (no caso, a liberdade):

“Serão precisos dois séculos de crise para que o homem

recupere a liberdade criadora que Descartes atribuiu a Deus e para

que se conceba finalmente essa verdade, base essencial do

humanismo: o homem é o ser cuja aparição faz com que o mundo

exista. Mas não censuramos Descartes pelo fato de ter atribuído o

Deus o que nos pertence por direito; admiramo-lo principalmente

por ter, numa época autoritária, lançada as bases da democracia,

por ter seguido até o fim as exigências da idéia de autonomia e por

ter compreendido, muito antes de Heidegger, que o único

fundamento do ser era a liberdade”.27

Certa vez Sartre afirmou que o homem é livre mesmo quando preso em

uma cela. Mas como se explica tal afirmação?

26 SARTRE, J.P. Situações I. São Paulo: Publicações-Europa-América, 1947, pp.295-296. 27 Ibid, p. 301.

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De acordo com Sartre, não devemos entender o verdadeiro conceito de

liberdade como o mesmo que “obter o que se quer”, mas sim, querer

autonomamente. Esse querer envolve toda a ação humana. O problema da

liberdade diz respeito ao querer e não ao poder (poder para alcançar o que o

querer indica) e é por isso que o sucesso não importa em absolutamente nada

para liberdade: não se é menos livre porque não se consegue o que quer, mas

seríamos não-livres (o que é impossível) se nosso querer fosse condicionado.

Então, no caso do homem preso numa cela mencionado anteriormente, não

se quer dizer que ele é sempre livre para sair da prisão, mas sim, que ele é

sempre livre para procurar se evadir, ele pode sempre projetar sua fuga. Já o

sucesso ou fracasso desse projeto não diz respeito à liberdade, pois é na ação

livre que o homem se constrói como sujeito. Assim, toda ação, escolha, objetivo

ou condição de vida são frutos da liberdade humana. E esta deixa de ser uma

conquista humana para ser uma condição de existência do homem. Nessa

perspectiva, a consciência do homem, ou na terminologia sartriana, o Para-si não

é algo prontamente determinado, as ao contrário, o Eu ou a consciência passa a

existir a partir do momento em que ela se lança no futuro, na concretização das

escolhas, sendo assim preenchida pela liberdade.Já o exercício da liberdade em

nossas ações é sempre intencional e sempre movido por uma vontade consciente

dos princípios norteadores dessa escolha e dos fins às conseqüências dessa

ação. Na ação livre o homem é consciente dos princípios de sua ação, ou seja,

não existem valores morais nos quais se possa fundar a ação humana.

Nesse contexto de ausência de princípios norteadores de ação, é

consagrada a passagem do texto “O existencialismo é um humanismo”, no qual

um jovem pergunta a Sartre se ele deve ir para a guerra ou cuidar da mãe. A

resposta do filósofo foi a de que não existe uma regra, um valor ou um modelo, ou

mesmo uma resposta que seja correta e que sirva de parâmetro para a decisão a

ser tomada pelo jovem. Ou seja, é de sua total responsabilidade a escolha que ele

fizer, pois o jovem é livre para erigir os seus valores. Em suma: não existem

valores éticos universais para a vida humana.

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Na filosofia de Sartre a existência preceda a essência. Se quisermos existir

ao mesmo tempo em que construímos nossa imagem, esta imagem é válida para

todos: escolhendo-me escolho o homem. Essa co-responsabilidade dá

fundamento à angústia. Nenhum indivíduo escapa à sua profunda e total

responsabilidade de escolher para si a humanidade inteira.

Para Sartre, a não-existência de Deus é o princípio fundamental, o homem

está abandonado, pois não encontra em si, nem fora de si, nenhuma realidade a

que se apegar.Conforme Sartre menciona em O existencialismo é um

Humanismo, no século XVIII, para o ateísmo dos filósofos suprime-se a noção de

Deus, mas não a idéia de que a essência precede a existência.Filósofos como

Diderot, Voltaire e Kant defenderam o conceito de natureza humana, onde cada

homem é um exemplo particular de um conceito universal. Se tomarmos como

exemplo vários homens de épocas e classes sociais diferentes, veremos que

estes possuem as mesmas qualidades de base, mas sua essência continua a

preceder a existência histórica encontrada na natureza. Porém, no existencialismo

ateu representado por Sartre Deus não existe, dessa forma, há pelo menos um ser

no qual a existência precede a essência, e que existe antes de poder ser definido

por qualquer conceito: o homem. Por isso, não há natureza humana, visto que não

há um Deus para a conceber. O homem é livre e sem desculpas.A liberdade

humana fundamenta-se na autonomia da escolha concreta, na ação:

“Com efeito, tudo é permitido Se Deus não existe, fica o

homem, por conseguinte abandonado, já que não encontra em si

nem fora de si uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais

nada, não há desculpas para ele.(...) O indivíduo é livre. Ele não

apenas tem liberdade, mas é liberdade. Nós construímos tudo: até

mesmo nossos valores, regras e imposições.(...) Assim, não temos

atrás de nos, nem diante de nós no domínio luminoso de valores,

justificações ou desculpas.(...) O homem está condenado a ser

livre, condenado não porque criou a si próprio, e no entanto livre,

porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto

20

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fizer..(...) Se com efeito, a existência precede a essência, não será

nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana

dada e imutável, por outras palavras, não há determinismo, o

homem é livre, o homem é liberdade”.28

O homem estando condenado a ser livre carrega nos ombros o “peso do

mundo inteiro”, é responsável pelo mundo e por si mesmo como maneira de ser.

Sartre recusou a idéia de determinismo29 e demonstrou que somos nós que

escolhemos nossas ações e assim, tornamo-nos livres, controlamos nossas vidas

e ganhamos a possibilidade de mudá-la. Essa liberdade é condicionada por

questões concretas e, ao procurarmos resolver os problemas anulamos uma

realidade e tornamos real uma outra. O fato de escolhermos, de realizarmos

nossos projetos e acabarmos com uma situação e criarmos outras nos tornam

agentes de nossa história e da história da humanidade. Não há algo ou alguém

movendo nossas vidas, ou seja, não há determinismo. Somos nós os

responsáveis pelas nossas vidas, enquanto seres que escolhem a todo o

momento.

Em entrevista concedida ao jornal Correio Brasiliense30 Bornheim afirmou

que de acordo com Sartre, o determinismo pode ser biológico, social ou

psicológico. “Sartre não aceitava nenhuma forma de determinismo. Ele

considerava que o homem inventa esse determinismo para se proteger contra a

liberdade porque é difícil ser livre. Há a responsabilidade absoluta, mas não é uma

coisa aleatória, você tem que reinventar a responsabilidade em função de cada

ato cometido”.

28 SARTRE, J.P. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p.15.

29 Determinismo é o termo empregado a partir do século XIX para referir-se à realidade conhecida e controlada pela ciência, e no caso da ética, particularmente ao ser humano como objeto das ciências naturais e ciências humanas (sociologia e psicologia), portanto, como completamente determinado pelas leis e causas que condicionam seus pensamentos, sentimentos e ações, tornando a liberdade ilusória. (CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1999, p. 361). 30 BORNHEIM, G. Entrevista concedida ao Correio Brasiliense em março de 2000 e publicada em 15 de setembro de 2002. Bornheim não se considerava sartreano, mas foi um dos principais pesquisadores de Sartre no Brasil Faleceu em 05 de setembro de 2002.

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Aqui, convém mencionar, que na peça Mortos sem Sepultura, Sartre

demonstra suas personagens em pleno exercício de liberdade, mas trata-se da

liberdade na concepção sartriana, ou seja, uma liberdade na qual Deus não existe,

cabendo somente ao homem suas decisões e eventuais conseqüências.

O fato de o homem ter sido lançado ao mundo, sem justificativas e

gratuitamente nos remete a um conceito muito utilizado por Sartre: a contingência.

Quando falamos de contingência estamos nos referindo a uma

característica fundamental do próprio ser. O romance “A náusea” expressa

literariamente a contingência do ser-no-mundo, a angústia de ser. O livro é, pois,

uma análise feita pelo próprio sujeito dessa obsessão essencial do homem, mas

que ele procura mascarar ordinariamente pela vã agitação da vida. Roquentim (o

protagonista) encontra-se num estado de abstração que exige uma completa

reflexão sobre o íntimo das coisas. O que lhe aparece então, é a contingência, a

gratuidade do que o cerca e dele mesmo. Essa contingência, ou seja, a gratuidade

de sua própria existência, provoca em Roquentim sensações de náusea que

causam nele uma ruptura consciente com os outros e o mundo, sem que ele

descubra seu significado. No decorrer da história ele experimenta esta sensação

várias vezes e em diferentes lugares. Para Roquentim não existe uma razão que

explique a existência dos seres e dos acontecimentos, nenhuma coisa traz

consigo sua razão de ser. Nada contém em si mesmo sua própria definição. Tudo

é pura continência, absurdo, acaso. O argumento de João da Penha contribui

nessa perspectiva, quando ele afirma que:

“Comumente, acredita-se que o mundo é obra divina criada

para o homem, o que implica aceitar a necessidade dessa criação,

logo de uma finalidade dela. Afirmar então que algo é contingente,

é supor que sua existência é sem sentido, sem explicação. Dizer,

por exemplo, que o mundo é contingente, é descrer que sua

criação obedeceu a uma vontade superior, que assim procedeu,

determinando desígnios. Num mundo contingente, portanto, o

homem sente-se jogado nele, sem qualquer ponto de referência

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que não seja ele mesmo. Não há leis morais estabelecidas que lhe

orientem a vida – cabe-lhe criá-las”.31

“A náusea”, traz ainda a inscrição de autoria de um escritor francês, que

procura definir em apenas uma frase a situação do protagonista Roquentim:

“É um homem sem importância coletiva, exatamente um

indivíduo”.32

Dessa forma, no decorrer do romance, Roquentim descobre importantes

verdades: o mundo é contingente, ou seja, não é absolutamente necessário, e

quanto a nós, estamos demais nele, sobrando, por nada e para nada,

radicalmente gratuitos. Os objetivos nos permanecem estranhos, opacos;

impenetráveis, ininteligíveis.A nossa vida só encontra solidez quando está atrás de

nós, morta, irrecuperável, transformada em passado. No presente não temos

nunca uma essência necessária, como uma pedra o uma árvore. Portanto, a

contingência é algo que está relacionado ao acaso e à ausência de um

determinismo rígido.

Em seu tratado de ontologia fenomenológica O ser e o nada publicado em

1943, Sartre esclarece ainda o termo possibilidade, como também sendo algo

relacionado à sua concepção de liberdade. O homem é o ser dos possíveis, está

aberto a todas as possibilidades. Isto ocorre porque ele não é um ser

predeterminado.Ao assumir livremente algumas dessas possibilidades ele projeta

um modo de existir, além de projetar-se na existência, num tipo de experiência

que a realidade humana define mais como futuro do que como passado.O homem

só será aquilo que fizer de si a partir de um projeto de existência. Mas se ele pode

assumir qualquer possibilidade, significa que não está determinado para alguma 31 PENHA, J. O que é existencialismo.São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 80. 32 SARTRE, J.P. La nauseé. Paris: Gallimard, 1938.

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coisa em particular. Isso nos leva a crer que todas essas possibilidades são

igualmente contingentes, pois nenhuma o atrai mais do que a outra e o homem

não tem por obrigação assumir alguma entre elas.

Assim a liberdade originária concebida por Sartre só pode realizar-se a

partir da escolha radical de um projeto a ser assumido num mundo contingente.

A questão da contingência parece-nos estar diretamente relacionada a

facticidade33, visto que ao nascer já nos encontramos obrigatoriamente situados

em um lugar e uma circunstância qualquer:

“Não sou livre nem para escapar ao destino de minha

classe, minha nação, minha família, nem sequer para construir

meu poderio ou minha riqueza; nem para dominar meus apetites

mais insignificantes ou meus hábitos. Nasço operário, francês,

sifilítico, hereditário ou tuberculoso. (...) Bem mais do que parece”

fazer-se “, o homem parece” ser feito “pelo clima, a terra; a raça; a

língua; a história da coletividade da qual participa; a

hereditariedade, as circunstâncias individuais de sua infância, os

hábitos adquiridos, os grandes e pequenos acontecimentos de sua

vida”.34

Em O Ser e o Nada, Sartre faz algumas relações entre liberdade e

facticidade e nos deixa claro que o compromisso é uma espécie de noção

mediadora entre esses dois conceitos. Mas tudo depende da conduta que cada

um assume em relação a cada elemento da facticidade. Dessa forma, Sartre

reafirma a contingência do mundo histórico: ninguém está predeterminado a

33 Facticidade – Termo introduzido por Fitche para designar o caráter contingente do que é e impossibilidade em que estamos de justificar por intermédio de uma dedução racional a realidade do mundo. Fenomenologia contemporânea retomou o termo – principalmente Heidegger e Sartre – para exprimir a idéia de que nossa existência é um fato decerto constatável, as sem fundamento, sem razão e até, a princípio, absurda. A partir disso, Sartre chega à conclusão de que o homem, desvinculado de qualquer obediência a uma necessidade que organizaria sua vida, é soberanamente livre. 34 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Rio de Janeiro: Petrópolis, Vozes, 1997, p.130.

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qualquer coisa, por mais fortes que sejam os fatos que compõem uma situação.

Cada indivíduo é sujeito de sua história. Neste momento, faz-se importante

lembrar ainda, que a noção de facticidade leva-nos ao engajamento ou ao

compromisso. Franklin L.e Silva nos explica melhor essa afirmação, quando

menciona que:

“Diríamos que, primeiramente, não se trata tanto de

assumir um compromisso quanto de reconhecer que estamos

irremediavelmente comprometidos. (...) Como nascemos sempre

num dado contexto real e concreto, já estamos, somente por isso,

comprometidos com ele, isto é, com o mundo no qual temos de

viver. Ainda que venha optar pelo quietismo e pela indiferença, tais

atitudes não deixam de representar a maneira pela qual respondo

às solicitações do meu mundo, da minha época, da minha classe,

e, portanto, a forma como me comprometo com os problemas do

meu tempo”.35

O exercício da liberdade se dá no denso universo de possibilidades que

formam a teia complexa de tudo aquilo que devo afirmar ou negar, aceitar ou

recusar, superar ou evitar, transpor ou contornar. Nesta sucessão de atos

concretos, cada um se faz Ser.

Para Sartre a existência precede a essência, mas esse fato aplica-se

somente ao homem, pois só ele é livre, o que significa que ao contrário de outros

seres, o homem não é predeterminado.Ou seja: o homem é compreendido como

ser-no-mundo e possui consciência sobre todos os seus atos. Essa consciência,

em determinado sentido vive voltada para si própria, o que Sartre denomina “para-

si”. A consciência é para-si, porque aparece a si mesma e só existe na medida em

que aparece. Então, podemos dizer que a consciência permanece presa a si

mesma sem conseguir-se abandonar-se.

35 SILVA, F.L.S. Liberdade e Compromisso. In: Revista Cult, n. 91, Abril/2005. pp. 50-51.

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Sendo a consciência para-si, ela opõe-se ao em-si, o qual Sartre define

como um ser que exclui atividade e passividade, por estas serem noções

humanas relativas ao comportamento do homem e aos instrumentos de seu

comportamento. O em-si encontra-se ainda, além da negação e da afirmação, por

estas características serem oriundas a consciência. O em-si é o que é, ou seja,

absolutamente idêntico a si mesmo, além de ser supérfluo para toda a eternidade,

ou seja, não podemos derivá-lo de nada, nem de outro ser, nem de uma lei

necessária. Perdigão nos ajuda a definir o em-si, quando afirma que:

“Sartre usa então a expressão Em-si, pra designar o Ser,

compreendendo a realidade material, o mundo inorgânico dos

objetos e o organismo humano: é porque o Ser está fechado em si,

preso a si mesmo. O Em-si designa tudo o que existe, exceto a

consciência humana (...). O Em-si na se reduz à sua aparição à

consciência, não necessita do Para-si para existir enquanto

aparição ou fenômeno (assim como não preciso de um espelho

para existir, mas para aparecer a mim)”.36

O conceito-chave que Sartre vai buscar na fenomenologia é aquele que

afirma a intencionalidade da consciência. Esta é definida como a faculdade que

permite ao homem o conhecimento ou a avaliação do que se passa em si mesmo

e à sua volta. Perdigão utiliza-se de um exemplo fundamentado na filosofia de

Sartre, que cabe à definição da palavra consciência.

36 PERDIGÃO, P. Existência e Liberdade.Porto Alegre: L&PM, 1995, p. 39.

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“Para caracterizar melhor essa propriedade, podemos recorrer a

uma metáfora: Tento descobrir a significação de uma pintura,

aproximando os olhos da superfície da tela. Nesse caso, nada

consigo ver. Em seguida, tomo um recuo que me permita avançar

o quadro com o olhar. Da mesma maneira como (em termos de

espaço físico) preciso me afastar do objeto a ser percebido

exatamente para poder percebê-lo, também a consciência precisa

recuar de algum modo diante do objeto visado para ser consciente

dele”.37

Considerando essa afirmação, parece-nos lícito supor que a consciência é

algo que necessita se colocar à distância do mundo das coisas, para estar em

condições de presenciá-las. A consciência só existe na medida em que se

aparece.

Entretanto, convém aqui lembrarmos, que a consciência está atrelada ao

Ser, ou seja, está ligada a ele por fortes vínculos, mas ao mesmo tempo está à

distância dele. Sobre essa questão, Perdigão afirma que “a consciência é que faz

com que o Ser se mostre. Ela não cria o mundo, apenas o constata. Da mesma

maneira, é a consciência que traz interrogações ao mundo e coloca os “porquês”.

Sartre conclui a primeira parte de O ser e o nada, definindo que:

A consciência é um ser para o qual em seu próprio ser

ergue-se à questão do seu ser, enquanto este ser implica um ser

outro que não ele mesmo. (...) toda consciência é consciência de

alguma coisa”. 38

37 Ibid, p.38. 38 SARTRE, J.P O ser e o nada.Petrópolis: Vozes, 1997, p.34.

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Dizer que a consciência é intencional significa dizer que toda consciência

intenciona um objeto qualquer. Inicialmente essa proposição implica que não há

consciência que não seja posicionamento de um objeto, ou seja, o ato de visar um

objeto configura a consciência. A primeira conclusão que podemos obter dessa

definição é que a intencionalidade é o que caracteriza a consciência, ou seja, que

não há consciência fora do ato intencional. Dessa forma, a intencionalidade não

poderia ser uma propriedade da consciência, isto é, uma característica indiferente

ao modo de existir da consciência, mas sim, a única forma de existência para a

consciência. A noção de intencionalidade (denominada dessa forma por Husserl)

traria consigo uma segunda conseqüência: não há consciência sem o objeto ao

qual ela se dirige. A idéia de intencionalidade libera a consciência de qualquer

interioridade que a sustentaria fora da intenção e a transformaria em “coisa”.

Passemos neste momento, à questão de temporalidade em Sartre, onde se

encontram inseridos o passado, presente e futuro, sobre os quais discorreremos

aqui, de forma sucinta.

O Passado No capítulo “A temporalidade” de O ser e o nada”, Sartre lança a seguinte

pergunta: Qual é o ser de um passado? O senso comum formula duas

concepções vagas a esse respeito: o passado não é mais.Tudo é presente,

inclusive nossas recordações. Mas Sartre discorda dessa afirmação, pois se todos

os modos de ser do homem estiverem destinados Por essência a um perpétuo

presente, suprime-se dessa forma, todos os meios de compreender sua relação

originária com o passado.

A segunda concepção também imprecisa de acordo com Sartre, seria

aquela segunda a qual o passado teria uma espécie de existência honorária. O

passado de um acontecimento estaria recolhido e perderia a eficiência sem perder

o ser. Sartre encerra o capítulo afirmando que o passado é um Para-si

recapturado e inundado pelo Em-si, pois aquilo que pode ser um Para-si deve sê-

lo lá longe, atrás de si, fora de alcance, ou seja, como afirmava Hegel, “nossa

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essência está no passado”. Isto ocorre porque o nosso passado não pode ser

eliminado, é uma inelutável contingência, algo de irreparável que tem de ser, dado

e acabado.

“O passado é um Em-si que carrego atrás de mim,

exatamente como o rabo do peixe para o corpo da sereia.

Representa uma ameaça: é como se alguma coisa me

perseguisse, prometendo coagular-me em objeto, transforma-se

em um ser já feito. (...) Colocar-me no presente é um modo de

escapar ao passado. Ao fazê-lo, deixo um rastro atrás de mim: a

petrificação de meu ser, a redução de minha transcendência à pura

facticidade, a conversão total do para-si e em si”.39

Sou o ser pelo qual o passado vem ao mundo, entretanto, ele é algo

irremediável, visto que a liberdade não pode modificá-lo de forma alguma.Para

que tenhamos um passado, é necessário que o conservemos em existência por

nosso próprio projeto rumo ao futuro: não recebemos nosso passado, mas a

necessidade de nossa contingência comporta o fato de que nós não podemos

escolhê-lo.Porém, só eu posso decidir a cada momento sobre o valor do meu

passado.

O Presente O estudo do passado nos remete ao presente. Diferentemente do passado

que é Em-si, o presente é definido por Sartre como Para-si. O presente tem um

significado relevante em nossa existência, pois aquilo que existe nele se distingue

de qualquer outra existência, por seu caráter de presença. Tomemos o exemplo

de uma sala de aula composta pó diversos alunos. Quando o professor faz a

chamada, o aluno responde “presente”! Esse presente significa uma oposição à 39 PERDIGÃO, P. Existência e Liberdade.Porto Alegre: L&PM, 1995, p. 74.

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ausência desse aluno. Assim, o presente consiste na presença do Para-si ao Em-

si, ou seja, o presente entra no mundo pelo homem.

Existe uma relação infinita entre o presente e o passado, pois esta é a

forma como a consciência se reconhece no presente, conforme observa Perdigão:

“O presente onde nos colocamos logo se petrifica em

passado e temos a imediata necessidade de um novo presente.

Assim, o presente é perpétua fuga, e só nos aparece quando já

está transcendido e se desvaneceu em passado (uma simples

concentração mental basta para provar que é, com efeito,

impossível pensar o presente, como diz Hegel, quando digo eu

sou, já não o sou. O novo presente de que necessitamos aonde

iremos nos resguardar da aproximação do passado), nós o

recolhemos do futuro, espécie de eterno fornecedor do presente,

essa salvaguarda temporal de sermos devorados pelo em-si”.40

O Futuro No que concerne ao futuro, Sartre faz a seguinte análise: o futuro é algo

indeterminado, um possível, é aquilo que posso vir-a-ser, mas não

obrigatoriamente aquilo que serei, pois existe sempre a possibilidade de eu não vir

a ser.

O Em-si não pode ser futuro, nem conter uma parte deste. O futuro é o que

tenho-de-ser, na medida em que não posso sê-lo. É o que aguarda o Para-si que

sou. Projetando-nos no futuro para fundirmo-nos com aquilo que nos falta, pois de

acordo com Sartre, o futuro representa aquilo que nos falta, além de não ser visto

por ele como Em-si, apesar de não ter o modo do Para-si, já que é o sentido

deste. O futuro é aquilo que ainda não é, sendo apenas possibilidade, pois ao

mesmo tempo em que aparece no horizonte para me anunciar o que sou a partir

40 PERDIGÃO, P. Existência e Liberdade.Porto Alegre: L&PM, 1995, p. 74-75.

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do que serei.Futuro é a contínua possibilidade dos possíveis como sentido do

Para-si presente na medida que esse sentido é problemático e escapa

radicalmente ao Para-si presente. Por exemplo, a possibilidade de ir visitar um

amigo que não vejo há muitos anos é verdadeiramente um possível que sou.Mas

os possíveis mais próximos (o tipo de condução que utilizarei para chegar a meu

amigo, por exemplo), permanecem indeterminados no presente.

Neste momento, convém ressaltar que existe uma eterna relação entre

passado-presente-futuro, porquanto somos seres temporais.Consideremos aqui, a

discussão feita por Merleau-Ponty em torno da célebre “Metáfora do Rio”, na qual

o tempo é comparado a um rio que escoa, fazendo a analogia entre o curso do

tempo e o curso das águas. É importante ressaltar que essa ilustração nos mostra

com clareza a posição de Sartre, nisso semelhante à de Merleau-Ponty.

Na metáfora em questão, o tempo flui como um rio que passa. As águas

correm de modo contínuo, vindo da fonte em direção ao mar, como o tempo que

também escoa de modo contínuo Assim, o presente aparece como conseqüência

do passado e o futuro, como conseqüência do presente, tal como as águas que

vêm lá de trás e vão sempre para adiante.Encontro-me agora, sentado à beira do

rio.A água que passa diante de mim foi produzida há alguns dias atrás nas

montanhas, e vai agora em direção ao mar.

Entretanto, lembra Ponty, que as massas de águas que passam agora

diante de mim e vão para o mar não vão em direção ao futuro como ingenuamente

supõe a metáfora, ao contrário, elas desaparecem no passado.

“Ora, a partir do momento em que introduzo o observador,

quer ele siga o curso do riacho ou quer, da margem do rio, ele

constate sua passagem, as relações do tempo se invertem. As

massas de água já escoadas não vão em direção ao porvir, elas se

perdem no passado”.41

41 PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994, pp. 550.551.

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Além disso, a metáfora afirma que o que está para (as águas da montanha),

vêm lá de trás do lado da fonte, do passado.Entretanto, o que está para vir (na

ordem do tempo) não é passado, e sim, o futuro. De onde já se pode facilmente

verificar que a metáfora clássica inverte as relações do tempo. Posição

semelhante encontramos com relação ao senso comum, que supõe o futuro

preparado por detrás de nós, a partir do nosso passado, como as águas que vêm

“das nossas costas”. Para o senso comum, o tempo vem do passado. Porém,

como lembram Sartre e Merleau-Ponty, o que vem é o futuro, e o que escoa vai

para o passado, de modo que em vez de dizer que o passado impele ao presente

e o presente ao futuro, seria preciso dizer antes, que o tempo vem do futuro e vai

para o passado.

Dessa forma, a água que vem da fonte será futuro para mim se eu estiver à

margem do rio; a água que acaba de passar será passado para mim se eu estiver

à margem do rio.

Ou, de acordo com o raciocínio de Sartre: “todo futuro do Para-si presente

cai no passado como futuro, juntamente com esse mesmo Para-si”.42

Ou ainda, como nos explica M. Ponty:

“Não é o passado que empurra o presente, nem o presente

que empurra o futuro, para o ser, o porvir não é preparado atrás do

observador, ele se premedita em frente dele como a tempestade

no horizonte. Se o observador, situado em um barco segue a

corrente, pode-se dizer que com a corrente ele desce em direção

ao seu porvir. Mas o porvir são as paisagens novas que o esperam

no estuário, e o curso do tempo não é mais do que o próprio

riacho: ele é o desenrolar das paisagens para o observador em

movimento. Portanto, o tempo não é um processo real, uma

sucessão efetiva que eu me limitaria a registrar. Ele nasce da

42 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p.182.

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minha relação com as coisas nas próprias coisas. Nas próprias

coisas o porvir e o passado estão em uma espécie de

preexistência e de sobrevivência eternas; a água que passará

amanhã está neste momento em sua nascente, a água que acaba

de passar está agora um pouco mais embaixo,no vale. Aquilo que

para mim é passado ou futuro está presente no mundo”.43

A angústia da liberdade Após a breve definição de consciência vista anteriormente, parece-nos lícito

afirmar, ser a consciência algo inseparável da escolha, estando ambas

diretamente ligada uma à outra. É preciso ser consciente para escolher e é preciso

escolher para ser consciente segundo Sartre, que define consciência e escolha

como uma só coisa.

O homem vive de escolhas o tempo todo, pois a cada momento tem de

escolher aquilo que será no instante seguinte. Através da liberdade o homem

escolhe o que há de ser. É a escolha que permite criar seus valores e construir

sua essência como ser humano. Não há como fugir a essa escolha, pois só a

recusa em escolher já é uma escolha. Assim, o homem é responsável por tudo

aquilo o que escolhe e faz. Não há desculpas para ele, que não pode culpar os

outros ou as circunstâncias por seus erros.

Na concepção de Sartre, escolhemos o mundo, escolhendo a nós mesmos,

ou seja, por ser liberdade o fundamento de todos os valores, o homem reconhece

seu caráter universal, e ao defendê-lo, o faz para si e para todos os homens.

Dessa forma, ao escolher para si, o homem escolhe também para os outros.

Entretanto, essa liberdade não é absoluta, ela está restrita pela sociedade,

que possui suas regras e convenções. Por esse motivo em determinados

momentos, o homem entra em conflito com o meio social ao qual pertence.

43 PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994, pp. 551-552.

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Apesar disso, existe no homem uma coerência interna no que diz respeito

às suas ações, ou seja, há uma maneira própria de ser de cada pessoa frente às

situações. É o que Sartre chama de Projeto Fundamental.

O Projeto Fundamental não é inconsciente nem anterior aos nossos atos.

Ele é contemporâneo às nossas decisões e está inserido nelas. Podemos ainda

dizer, que ele penetra em nossas escolhas, emoções e tendências. Todas as

manifestações concretas da vida humana são diferentes manifestações desse

projeto fundamental.

Entretanto, o homem possui a opção de mudar ou não mudar seu projeto

fundamental, pois enquanto vivo, ele não é isso ou aquilo definitivamente.

Mas nesse momento, convém ressaltarmos um aspecto importante da

filosofia de Sartre: a angústia advinda da liberdade exercida pelo homem.Toda

escolha feita por ele envolve uma grande responsabilidade, já que como afirma

Sartre, é uma escolha que envolve toda a humanidade. E isso gera no homem

uma enorme angústia.

De acordo com Perdigão, existem dois tipos de angústia: uma de origem

temporal, outra e natureza ética, sendo ambas decorrentes do fato de o Para-si

ser livre e não ter como se precaver contra a permanente possibilidade de fazer

uma nova escolha de sua maneira de ser.

No caso da angústia temporal, uma decisão do passado não pode

determinar obrigatoriamente uma decisão atual, nem uma decisão tomada no

presente decidirá o que serei amanhã, ou seja, o destino de nossas escolhas corre

risco permanente, já que não temos domínio sobre o futuro. Sobre esse fato,

Perdigão cita o exemplo de Sartre anteriormente já mencionado anteriormente em

uma de suas obras:

“Deixei de fumar há um ano, mas preciso a toda

hora reiterar aquela decisão, porque a qualquer momento,

sou livre para mudar de projeto e voltar ao cigarro”.44

44 PERDIGÃO, P. Existência e Liberdade. Porto Alegre: L&PM, 1995, P. 112.

34

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O segundo tipo seria a angústia Ética (referente aos valores). Nesse caso, a

certeza e que os valores morais têm como único fundamento possível a nossa

decisão de criá-los. Explicando melhor: a vida é permanente escolha e através de

cada decisão nossa, definimos a nós mesmos por nós mesmos. A cada instante

optamos por um valor, uma regra e conduta. Nos angustia também saber que não

temos a quem recorrer para orientar nossas escolhas.Existem valores morais

estabelecidos pela sociedade, como por exemplo: “o bem existe”, “não devemos

mentir “, “é preciso ser honesto”, etc.

Entretanto, não há nada que nos diga que decisões tomar, nada justifica a adoção

de um valor em detrimento de outro. Ou, como nos adverte Perdigão:

“Nada, exceto a voz de minha consciência. A liberdade que sou é o

único fundamento a que posso me apegar. (...) os valores

dependem de mim e são aquilo que houver decidido que sejam.

Para que o certo e o errado existam para mim, é preciso que a

minha consciência intencione constituí-los como tais”.45

Assim, nos encontramos “arremessados” em um mundo sem valores

preestabelecidos. Sabemos que eles dependem de nossa liberdade e do

compromisso que cada homem assume face às suas decisões. Em relação a

estas pode ocorrer o arrependimento, quando mudamos nosso projeto e

colocamos em questão o valor constituído anteriormente.

Essa questão dos valores nos remete novamente àquela já vista

anteriormente que diz respeito à responsabilidade pelas escolhas do homem e a

angústia gerada por elas. Sartre acredita que todas as pessoas sentem esta 45 Ibid, p. 113.

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angústia e ansiedade, mas alguns a disfarçam, pois tentam escapar do paradoxo

de estarem condenados à liberdade. A esse comportamento, Sartre denomina

“má-fé”, conceito que João da Penha procura definir através da seguinte citação:

“Livre, consciente disto, o homem se angustia porque se vê

compelido a escolher. A angústia da liberdade é a angústia de

optar, de fazer escolhas contra a sua liberdade para fugir dela,

tentando assim, escapar da angústia que lhe provoca a

consciência de ser livre, o homem se refugia na má-fé Forçado

pelas circunstâncias a agir, a escolher, o que significa assumir a

responsabilidade pela decisão que tomar, o indivíduo busca

disfarçar essa exigência, adotando uma atitude de má-fé – finge

escolher, sem na verdade escolher”.46

No romance A Náusea escrito em 1938, Sartre nos fornece alguns

exemplos de má-fé. O primeiro deles refere-se ao Autodidata, companheiro de

estudos de Roquentim na biblioteca. Inconsciente de que nos é vedada a

apreensão do mundo, ele resolve apossar-se dele através dos livros e dedica sua

vida a ler todos os volumes da biblioteca, em ordem alfabética.

Luís C. Maciel cita um outro exemplo de má-fé contido na mesma obra: a

má-fé exercida pelos burgueses de Bouville, aos quais Roquentim (o protagonista)

devotava enorme desprezo. Esses burgueses procuravam fugir da angústia de

serem totalmente livres, através da atitude mentirosa que adotavam em relação a

si e aos outros. A esse respeito, diz Maciel:

“A má-fé, entretanto, é mais evidente nos burgueses de

Bouville. Esses sujos pretendem salvar-se da contingência,

46 PENHA, J. O que é existencialismo. São Paulo: Brasiliense, 1990, p.80.

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negando a liberdade, instituindo falsos valores petrificados, e

petrificando a eles próprios, numa pose desumana. Roquentim

passeia pelo museu de Bouville e olha com asco os retratos dos

grandes pilares da comunidade: rígidos, sérios, petrificados pela

respeitabilidade, eles sacrificaram a única fonte do valor

existencial: a liberdade”.47

Sartre denuncia e denomina como má-fé, a falsa tranqüilidade daqueles

que vivem tranqüilamente e seguros de si mesmos, e que se crêem justificados se

instalando e se instalando e se petrificando numa atitude de conforto que eles

chamam de “felicidade” (apesar da angústia vivida por eles). Eles homens, aos

quais Sartre chama de “salafrários” evitam os problemas fundamentais de sua

existência. A falsa importância com a qual os “salafrários” compõem e si mesmos

uma imagem complacente e tranqüilizadora, esconde o caráter mais agudo e mais

angustiante de sua liberdade e de sua responsabilidade, imagem essa feita por

sua honorabilidade, sua posição social, a consciência segura de seus direitos.

Mas nada disso é suficiente para justificar um homem, visto que a importância

exterior e mundana não é suficiente para constituir uma verdadeira vida moral e

uma verdadeira sinceridade humana. Um valor moral pode tornar-se máscara em

vez de inquietude, falsa justificação em vez de responsabilidade. Portanto, Sartre

desconfia de todos os valores morais, na medida em que estes se degradam,

tomando totalmente o aspecto de convenções.

Mas se o homem estiver desengajado das rotinas, das convenções e das

rotinas pré-fabricadas que poderiam ajudá-lo a viver é colocado descoberto e

afrontado, sem escapatórias, com seu destino em toda a pureza e a sua condição

humana. Aquele que se faz covarde poderá mudar sua atitude, mudando sua

posição ou sua postura no que diz respeito a esse fato. Ele não será covarde toda

a vida e assim não o quiser. O mesmo ocorre com um herói. Para Sartre, o que

conta é o compromisso total. A consciência permanece sozinha e vazia se o

homem não tiver a coragem de fazê-la viver, de engajá-la num projeto. É 47 MACIEL, L.C. Sartre: vida e obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p.52.

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conquistando por seus projetos, pelo sentido que lhe dá, pelas transformações

que lhe impõe o mundo, que a consciência encontra seu verdadeiro destino,

fazendo da responsabilidade, reivindicação lógica das conseqüências de nossa

liberdade.

1.2 – A RESPONSABILIDADE DO HOMEM PELAS SUAS ESCOLHAS Na quarta parte de O ser e o nada que trata a questão da liberdade,

podemos encontrar uma subdivisão que se refere à responsabilidade do homem.

Esta é tomada por Sartre, no sentido de a consciência de ser o autor de um

evento ou objeto. Mesmo que o resultado de uma atitude minha seja o fracasso e

eu me sinta culpado por isso, essa culpa seria ma escolha minha, por ter sido eu

quem escolheu interpretar assim o evento, lançando sobre mim a culpa elo meu

fracasso. Em suma: é a liberdade que se escolhe culpada. A essa consciência

Sartre denomina responsabilidade. Na condição de ser totalmente livre, o homem

“carrega o peso” de ser responsável pelo mundo inteiro e por si mesmo. Nada

nem ninguém pode livrá-lo desse peso. Nossa responsabilidade abrange toda a

espécie humana e por esse motivo, torna-se algo opressivo ao para-si, o qual

deve assumí-la com a consciência orgulhosa de ser o seu autor.Ou, como nos

adverte Sartre:

“Nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos

supor, porque ela engaja a humanidade inteira (...) sou responsável

por mim mesmo e por todos. Escolhendo a mim, escolho o

homem”.48

48 SARTRE, J.P. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 12-13.

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Convém ainda lembrar, que ao escolher uma possibilidade, o homem nega

todas as outras. A responsabilidade é uma conseqüência de minha total liberdade.

Tudo aquilo que me acontece é meu.

“Se sou mobilizado em uma guerra, esta guerra é minha guerra, é

feita à minha imagem e eu a mereço. Mereço-a primeiro, porque sempre

poderia livrar-me dela pelo suicídio ou pela deserção. (...) Por ter deixado

de livrar-me dela, eu a escolhi; pode ser por fraqueza, por covardia frente à

opinião pública, porque prefiro certos valores ao valor da própria recusa de

entrar na guerra (a estima de meus parentes, a honra de minha família,

etc). De qualquer modo, trata-se de uma escolha (...) Portanto, se preferi a

guerra à morte ou à desonra, tudo se passa como se eu cerceasse inteira

responsabilidade por esta guerra”.49

Partindo dessa perspectiva, parece-nos lícito supor que não temos

desculpa alguma diante das situações que permeiam nossa existência. Não há

situações inumanas: as mais atrozes situações de guerra e as piores torturas não

criam um estado de coisas inumano. Não há acidentes na vida, mesmo ao se

tratar de uma guerra para a qual fui mobilizado, visto que cada um tem a guerra

que merece50.

Eu sou responsável por tudo, menos pela minha responsabilidade, porque

não sou fundamento de meu ser, tudo se passa como se eu fosse coagido a ser

responsável. Eu me encontro só e sem auxílio, envolvido num mundo em que

assumo integral responsabilidade, sem poder arrancar-me a essa

responsabilidade, porque sou responsável mesmo por meu desejo de fugir às

responsabilidades. Isso ocorre devido a facticidade absoluta do Para-si. Esta

significa que o Para-si está num mundo, ou seja, está “em situação”. O Para-si,

embora escolhendo o sentido de sua situação e constituindo-se a si mesmo como

49 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p.678-679. 50 Ibid, p. 680.

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fundamento de si mesmo em situação, não escolhe sua posição. É o que faz com

que ele se apreenda a um só tempo, como total responsável de meu ser, na

medida em que é seu fundamento e como totalmente injustificável.O fato de eu ter

nascido refere-se à minha facticidade, porém, esta só irá aparecer na medida em

que eu vier a transcendê-la rumo a meus fins, já que no início, ela é inapreensível

e inconcebível.

“Assim, a facticidade está por toda parte, porém,

inapreensível; jamais encontro senão a minha responsabilidade,

daí porque não posso indagar ‘por que nasci?’, maldizer o dia de

meu nascimento, ou declarar que não pedi para nascer, pois essas

diferentes atitudes com relação ao meu nascimento, ou seja, com

relação ao fato de que realizo uma presença no mundo, nada mais

são precisamente, do que maneiras de assumir com plena

responsabilidade este nascimento e fazê-lo meu. (...) Minha

facticidade consiste simplesmente no fato que estou condenado a

ser integralmente responsável por mim mesmo”.51

Sartre escolhe como personagem principal do romance “A Náusea”,

espécie de diário metafísico, um intelectual, Antoine Roquentim, um homem só, se

responsabilidades e sem gostos, que descobre na angústia, que nada tem motivo

ou justificação. E, no entanto, essa gratuidade não o livra de sua liberdade e de

sua responsabilidade que pertencem à sua própria essência.Essa liberdade

exigente que é dada ao homem numa existência onde nada o acolhem ou ajuda,

se manifesta sob a forma de um mal-estar. A gratuidade se torna amargura,

porque se descobre o vazio de uma liberdade sem conteúdo, e, sobretudo, porque

se descobre também, que a liberdade não elimina a responsabilidade do homem.

51 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p.681.

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Roquentim conclui que todos os homens (inclusive ele), se encontram

vazios e desorientados. O que estes fazem não passa muitas vezes, de agitação

vã e de falsa importância. A náusea então seria, ao mesmo tempo, a questão do

porquê de nossa vida, somada à terrível vertigem de não sentir resposta imediata

a essa questão. A conseqüência disso é a responsabilidade, que devemos

constatar em nós pelo simples fato de existirmos.

Ao ver que a existência não tem sentido o homem sente medo e gostaria de

não estar aí. Ele gostaria de limitar-se e deixar-se viver, receber uma existência

que não precisasse ser justificada, existir simplesmente como existem as coisas,

sem preocupações, sem esforços, sem responsabilidades. Entretanto, não é

assim que as coisas se passam. Esta liberdade que nos é dada, só tem

fundamento na ação, ou seja, é preciso de um esforço por parte do homem para

torná-lo eficiente.

A responsabilidade é primeiro sentida como horror, pois no primeiro

momento nós gostaríamos de poder recusá-la, mas não podemos nos livrar desse

jogo arriscado, porque existimos e temos horror deste eu que existe, e que deve

encontrar uma justificação para si. Do mesmo modo que não nos escolhemos

livres também não nos escolhemos responsáveis, mas como tudo que nos

acontece, nos acontece por causa de nossa liberdade, isso implica também na

existência da responsabilidade em cada um de nossos atos.

A assunção é, pois, o temo para o qual aponta a doutrina sartriana de

liberdade.Quando o homem diz sim ou não a uma situação em que se encontra

mergulhado está optando por assumí-la. Ainda que ele se cale, esta atitude

também será considerada uma escolha.

“Além disso, liberdade é liberdade de escolher, mas não

liberdade de não escolher. Daí resulta que a escolha é fundamento

41

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do ser escolhido, mas não fundamento do escolher. E daí a

absurdidade da liberdade”.52

A absurdidade da liberdade mencionada por Sartre na citação anterior

reside no seguinte raciocínio: a liberdade do Para-si não é um dado nem uma

propriedade, ela só pode ser escolhendo-se. Entretanto, essa liberdade é sempre

comprometida e a escolha sempre incondicionada. E uma escolha dessa natureza

feita sem ponto de apoio pode parecer absurda. Isso porque de acordo com

Sartre, a liberdade é escolha de seu ser, mas não fundamento de seu ser. Sartre

menciona o suicídio como exemplo claro de uma escolha absurda cometida por

um indivíduo, mas absurda, não porque careça de razão, mas porque não houve

possibilidade de não escolher.

1.3 – A RELAÇÃO DA LIBERDADE COM A MORAL E OS VALORES Após a publicação do Tratado de Ontologia Fenomenológica L’être et le

néant Sartre afirmava a necessidade de elaborar uma moral fundada nos

princípios de sua ontologia. De acordo com ele, questões relevantes como

liberdade, responsabilidade e valor, só poderiam encontrar respostas no terreno

moral. Marx formulou uma citação na qual ele dizia que os filósofos apenas

interpretaram o mundo, e agora era preciso transformá-lo. De acordo com

Bornheim, esta frase pode ser aplicada ao pensamento de Sartre, desde que nela,

a palavra mundo seja substituída pela palavra homem, posto que em sua

ontologia, Sartre não conseguiu disfarçar um inconformismo em face da condição

usual do homem. Ele concluiu O ser e o nada com uma série de questionamentos

“que só poderiam encontrar resposta no terreno moral”.53Ou seja, o raciocínio de

Sartre conduz obrigatoriamente a uma ética. A promessa de Sartre não foi

52 SARTRE, J.P. O ser e o nada.Petrópolis: Vozes, 1997, p. 593. 53 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 765.

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cumprida no que se refere à elaboração dessa ética, talvez porque como afirma

Bornheim “seu pensamento se emaranhou num impasse”.Mas conforme já

afirmamos, há indícios na obra de Sartre que permitem vislumbrar as diretrizes

básicas que seriam utilizadas na análise sobre a problemática moral. Um destes

indícios seria o que se refere à psicanálise existencial. Tal psicanálise procura

determinar a escolha original realizada por cada indivíduo, que na verdade,

constitui o projeto fundamental de cada homem.Sartre rejeita o postulado do

inconsciente, pois se o homem sabe em que consiste seu projeto fundamental,

esse projeto é vivido plenamente por ele, entretanto o fato do homem ser

totalmente consciente não quer dizer que seu projeto lhe seja totalmente

conhecido. A psicanálise existencial se propõe a tornar conhecido o que o para-si

compreende desde sempre. E o sentido dessa teoria desemboca na prática

transformadora do homem.

A Má-fé também se constitui em outro aspecto diretamente relacionado à

formação de uma moral sartriana, por ser algo que bloqueia a espontaneidade

inventiva dos atos:

Todo homem que se refugia na desculpa de suas

paixões, todo homem que inventa um determinismo é um

homem de má-fé”.54

Outro resquício que poderia levar Sartre à elaboração de uma moral, seria a

questão da Responsabilidade, sobre a qual já discorremos na divisão anterior

deste capítulo.

Em O Existencialismo é um Humanismo, onde ele afirma que sua filosofia

é a única apta a dar dignidade ao homem. Este, ao nascer é lançado num mundo

54 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p 763.

43

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que não quisera, numa situação que não escolheu, sendo apenas “uma criação”,

segundo Sartre. O homem se resume na possibilidade de tomar decisões numa

dada situação, ou seja, ele está constantemente “para ser feito”.

“Uma vida... é feita com o futuro, como os corpos são feitos

com o vazio”.55

Sartre recusa toda a moral tradicional com valores preestabelecidos. Não

há moral geral e nem sinais no mundo indicando quais atitudes devemos tomar.

Nossos valores somos nós que teremos que criar. O mundo nos oferece situações

que parecem limitar nossa liberdade. Os homens respondem apenas por um

projeto que serve como referência ao futuro. Tudo o que existe deve ser

ultrapassado.

Em O Existencialismo é um Humanismo Sartre faz menção a dois tipos de

moral: uma concreta, imediata, as que diz respeito somente a um indivíduo. A

outra, seria uma moral mais larga, que abrange um vasto grupo, uma coletividade

nacional.

A moral dos homens deve ser uma criação perpétua, uma vez que o mundo

oferece sempre novas situações.Não há verdades absoltas, valores universais,

nem sabedoria perpétua aos quais devemos prender-nos. Nenhuma experiência

do passado deve comprometer nosso futuro, sublinha Sartre. O homem sartriano

nunca será condicionado por um passado. É desligado de toda obrigação anterior

e totalmente livre. Mas à medida que nos desliga do passado, Sartre

imediatamente nos torna responsáveis pelo futuro. “O que é já morreu, o que deve

ser está vivo”. Eis porque em sua ontologia o homem que está vivo não é. O

homem não pode estar comprometido ao mesmo tempo, pelo passado e pelo

futuro. Um valor demasiado grande dado a passado poderá corromper e enviscar

o futuro.

55 SARTRE, J.P. A idade da Razão.São Paulo: Abril Cultural, 1979, p.216.

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Considerado como uma longa introdução a uma futura ética sartriana, L’etre

et le nèant demonstra dois tipos fundamentais de relação. Através destes, é

constituído o palco em que se desenvolve o comportamento do homem.

Bornheim define aqui, estes dois tipos de relação:

“Considerado como o prolegômenos a uma ética futura, a

filosofia de L’ etre et le Nèant” autoriza dois tipos fundamentais de

relação. A primeira é a relação do sujeito consigo mesmo, visto que

o para-si se manifesta antes de mais nada, como presença a si:

toda moral só pode descobrir seu fundamento na subjetividade do

sujeito. A outra relação é a do sujeito-objeto, em última instância,

não há mais uma relação intersubjetiva no existencialismo, pois

como vimos, o conflito que preside o relacionamento com o outro

termina por frustrar qualquer tentativa de superar a categoria do

objeto”.56

Nos dois tipos de relação a que nos referimos anteriormente estão contidos os

elementos basilares da ética: liberdade, compromisso, responsabilidade e valor.

Vamos, entretanto, nos ater a este último, por ser considerado por Sartre, o mais

importante entre eles. É a liberdade que estabelece os valores. Por essa razão, a

liberdade é o valor supremo. Escolher é agir livremente, mesmo quando essa

escolha se faz necessária. Nessa perspectiva, a liberdade será a condição de

todos os valores, visto que o valor implica a escolha, e esta implica a liberdade.

Mas a liberdade só existe quando inclui a razão57, porque na verdade é a razão

que escolhe. Assim, ambas não podem estar separadas, visto que se implicam

mutuamente.

56 BORNHEIM, G. Sartre: Metafísica e existencialismo. São Paulo: Perspectiva, 2000, p.124. 57 Razão – Para Sartre Razão e Liberdade são inseparáveis e implicam-se mutuamente. A liberdade só existe enquanto inclui a razão, porque de fato é a razão que escolhe. Uma “liberdade pura” separada de uma razão que a justifique e, na verdade a constitua, seria apenas uma forma da indiferença e da passividade ou, em última análise, do acaso. Se existe liberdade é porque há razão: é esta que pode, além de justificar, fazer surgir a escolha como tal. (cf JOLIVET, R. Sartre ou a Teologia do Absurdo. São Paulo: Herder, 1968).

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Mas Sartre objeta que pode haver liberdade de escolher o necessário,

ainda que este necessário implique numa obrigação moral ou signifique um

destino irrecusável, mas que tomo meu pela escolha. A razão pode, além de

justificar, fazer surgir a escolha como tal. Somente a razão pode, por exemplo,

confirmar uma morte inevitável que decido, todavia, afirmar livremente.

A liberdade de escolha e a razão são fatores que se encontram inseridos na

escala de valores do ser humano.Então, retornemos a essa questão, explicitando-

a melhor: o Para-si é liberdade compreendida como autonomia de escolha, e uma

vez que a liberdade é absoluta, o valor não poderia apresentar consistência

objetiva, posto que ele brota da subjetividade. O homem é o ser pelo qual os

valores existem, conforme nos afirma Bornheim:

“Assim, como não há uma natureza humana que dite o que

o homem deve fazer, também não há uma ordem pré-estabelecida

de valores. Desse modo, o valor que encontra sua gênese no ato

livre, é absolutamente indeterminado: escolher é inventar. Disso se

infere que o homem é apenas seu projeto, só existe na medida em

que se realiza, ele é tão somente o conjunto de seus atos”.58

Porém, aqui torna-se necessário deixarmos claro que para Sartre não existe

liberdade “pura”. Esta depende das circunstâncias, onde o homem poderá perder

a liberdade exterior. Apesar disso, ninguém jamais poderá privá-lo de sua

liberdade interior, visto que essa se encontra separada da situação e da ação. A

liberdade interior define essencialmente a autonomia de um pensamento que não

escolhe e não decide. Já a liberdade exterior, identifica-se com o puro

determinismo.

Em razão da existência da má-fé, Sartre recusa toda moral tradicional que é livre

para o mal e não para o bem. Podemos arrumar justificativas e desculpas para

darmos a entender que fomos “vítimas das circunstâncias”. O fato de não termos 58 BORNHEIM, G. Sartre: Metafísica e Existencialismo. São Paulo: Perspectiva, 2000, p.125.

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tido um grande amor ou uma grande amizade; de não termos encontrado alguém

digno de se casar conosco ou de não termos escrito um livro são alguns exemplos

de má-fé praticada por nós. Todo homem que se refugia na desculpa de suas

paixões e que inventa um determinismo é considerado por Sartre, um homem de

má-fé, ao passo que esse procura fugir da angústia de ser totalmente livre através

da atitude mentirosa que adota em relação a si mesmo e aos outros.

Já os valores, são estabelecidos pela liberdade, defende Sartre. Por essa

razão, a liberdade é o valor supremo, conforme nos explica Jolivet:

“Escolher é sempre, por definição, agir livremente, mesmo

quando acontece de a escolha ser necessária, e nessa

perspectiva, a liberdade será verdadeiramente a condição de todos

os valores, visto que se o valor implica a escolha, esta implica a

liberdade. Mas a liberdade só existe quando inclui a razão, porque

de ato, é a razão que escolhe. Uma ‘liberdade pura’ separada de

uma razão que a justifique e, na verdade, a constitui seria apenas

uma forma da indiferença e da passividade, ou, em última análise,

do acaso. Razão e Liberdade implicam-se mutuamente”.59

Sartre finaliza, afirmando que cada homem tem de inventar o seu caminho

no risco e na dificuldade, a cada instante, sem outro guia que não seja sua

consciência, pois essa é a própria definição de liberdade. Mas esse caminho é

sempre mais humano, diferentemente dos caminhos dos animais, por exemplo.

Sou livre para o meu destino que é humano, e por isso assumo-me a mim mesmo,

e minha liberdade se perfaz nesta escolha.O homem só existe na razão, e essa

abstrai as essências.

59 JOLIVET, R. Sartre ou a Teologia do absurdo. São Paulo: Herder, 1968, p.75.

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1.4 – SARTRE E O CARÁTER ABSURDO DA MORTE Vida e morte não são para nós humanos simples acontecimentos

biológicos. Viver e morrer são a descoberta da finitude humana, de nossa

temporalidade e de nossa identidade: uma vida é minha, e minha a morte.

Morrer é um ato solitário. Morre-se só, a essência da morte é a solidão. O

morto parte sozinho e os vivos ficam sozinhos ao perdê-lo.Resta saudade e

recordação.

Enquanto estamos vivos decidimos o que somos, damos um sentido ao

nosso passado e aos nossos projetos.Mortos, somos reduzidos à condição de

puro passado e nossas ações são dadas como acabadas.

Em sua filosofia, Sartre sublinha o “Caráter absurdo da morte”.Para ele, a

morte nada tem de humana, mas é um limite, o termo final da vida humana.

Se o animal ignora que vai morrer, o mesmo não acontece com o homem:

embora não se possa experimentá-la diretamente, a morte aparece como um

escândalo e como manifestação radical que “arranca” o homem do universo.

“Já foi dito muitas vezes que estamos na situação de um

condenado entre condenados, que ignora o dia de sua execução,

mas vê serem executados a cada dia seus companheiros de

cárcere. Não é totalmente exato. Melhor seria comparar-nos a u

condenado à morte que se prepara valentemente para o derradeiro

suplício, toma todos os cuidados possíveis para desempenhar um

bom papel no cadafalso, e no meio tempo, é levado por uma

epidemia de gripe espanhola”.60

60 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 654.

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Aqui, Sartre evidencia que a morte chega inesperadamente, destruindo

todos os nossos projetos futuros, além de ressaltar que a morte é um fato

contingente, absurdo e acidental, assim como o nascimento, pertencendo ambos a

facticidade do Em-si. Certa vez Sartre afirmou que é absurdo que tenhamos

nascido, é absurdo que tenhamos de morrer.61

Sartre e Heidegger possuíam visões diferentes sobre o caráter da morte na

existência humana, ocasionando alguns pontos de discordância entre ambos.

Heidegger deu forma filosófica à humanização da morte. Se o Dasein62 não

padece nada, precisamente porque é o projeto e antecipação, então deve ser

antecipação e projeto de sua própria morte enquanto possibilidade de não mais

realizar presença no mundo. Na medida em que o Dasein determina o seu projeto

rumo à morte, realiza a liberdade-para-morrer e constitui a si mesmo como

totalidade pela livre escolha da finitude. Assim, o ser da realidade humana é visto

por Heidegger como um ser-para-a-morte: como existir é estar exposto à

possibilidade de morrer, a morte (ameaça que pesa sobre o homem desde seu

nascimento), faz parte da realidade humana, sendo considerado algo que lhe é

essencial. Para Heidegger, escolhemos livremente a nossa morte como um

projeto, uma possibilidade suprema, que irá concluir e dar acabamento final ao

nosso ser, até então, inconcluso, ou seja, a morte é um projeto que dá sentido

acabado e definitivo à nossa vida. Ele refere-se à morte, ainda como um meio de

alcançarmos enfim, a nossa unicidade de pessoa, totalizando-nos como ser

individualizado, pois a morte é a única coisa que ninguém pode fazer por mim.

Dessa forma, ela torna-se individualizada por Heidegger em cada um de nós, por

ser algo que ninguém pode fazer por nós.

Sartre menciona uma evidente má-fé neste raciocínio formulado por

Heidegger, pois para Sartre não é a morte que individualiza nosso ser por torná-lo

61 Ibid, p.670.

62 Dasein – Termo utilizado por Heidegger para designar o caráter específico da existência humana, o privilégio que lhe é próprio de poder interrogar o ser ao mesmo tempo em que se delimita como “presença intencional”. A descrição do Dasein, ao mesmo tempo psicológica e ontológica, insiste particularmente nos fenômenos da angústia (o homem se reconhece contingente) e da preocupação (o ser do homem manifestando-se no projeto, que é afirmação de uma liberdade e interpretação do mundo). Cf. DUROZOI, G. e ROUSSEL, A. Dicionário de Filosofia.Campinas: Papirus, 1993.

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finito e acabado. Mesmo que o homem fosse imortal, continuaria sendo finito e

acabado, conforme nos informa a temporalidade. Ele sublinha ainda, que a morte

não constitui minha unicidade de pessoa.Pelo contrário: é a unicidade do Para-si

que determina a morte como algo meu, pois não é apenas na morte que

experimento algo que ninguém pode fazer por mim: em qualquer ato sou

insubstituível e único, porquanto ninguém pode amar ou sofrer por mim, vivendo o

amor e o sofrimento que são meus. Minha individualidade não necessita da morte

para se constituir. Porém a morte, como algo imprevisível, retira todo o sentido da

vida.

“Assim, a morte jamais é aquilo que dá vida a seu sentido.

Pelo contrário, é aquilo que suprime da vida toda significação. Se

temos de morrer, nossa vida carece de sentido, porque seus

problemas não recebem qualquer solução e a própria significação

dos problemas permanece indeterminada”.63

Ao abordar a questão da morte, Sartre se preocupa ainda, em enfatizar a

posição do Outro no tocante a este fato.O problema da existência do Outro,

aspecto que veremos no próximo capítulo de nossa pesquisa, começa a ser

esboçado aqui.

Sartre argumenta que o Outro se faz guardião de minha morte e como ser-

para-si, ele toma uma determinada posição sobre minha morte, podendo escolher

entre a indiferença, o esquecimento o ao grau de valor ou sentido aos meus feitos

enquanto vivo. Em suma: após nossa morte, estamos “nas mãos dos vivos”, pois

enquanto vivo posso desmentir o que o Outro descobre em mim projetando-me de

imediato rumo a fins diferentes, posso esquivar-me de suas ações contrárias ao

meu ponto de vista, ou posso defender-me ao meu modo, quando necessário.

63 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 661.

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“Estar morto é ser presa dos vivos. (...) Enquanto vivo,

posso desmentir o que o outro descobre em mim, projetando-me

de imediato rumo a fins diferentes e, em qualquer caso, revelando

que minha dimensão de ser-para-mim é incomensurável com

minha dimensão de ser-para-outro. (...) Morrer é ser condenado a

não existir, a não ser pelo outro, e a ficar devendo a este sentido e

o próprio sentido de sua vitória”.64

A morte está fora de minhas possibilidades e não pertence à estrutura

ontológica do para-si, por se tratar de um limite, um termo final da vida

humana.Representa o triunfo do Outro sobre mim, apesar da existência daquele

ser algo totalmente contingente. Não teríamos conhecimento da morte se o Outro

não existisse, conforme menciona Sartre:

“Neste sentido, qualquer que seja a vitória efêmera obtida

na luta contra o Outro, e ainda que tenhamos nos servido do Outro

para ‘esculpir nossa própria estátua’, morrer é ser condenado a

não existir, a não ser pelo Outro, e a ficar devendo a este seu

sentido e o próprio sentido de sua vitória”.65

Por fim, Sartre conclui, contra Heidegger, que a morte é um fato contingente e

pertence por princípio à nossa facticidade. Não podemos tomar uma atitude com

relação à nossa morte, nem esperá-la, por se tratar de algo irrevelável à realidade

humana. Mas todo corpo que foi vivo foi significante, pois por mais modesta e 64 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 666. 65 SARTRE, J.P. O ser e o nada, p. 666.

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fugidia que tenha sido sua relação com o mundo, ele abriu e constituiu um

caminho e nele deixou rastro. Este rastro sobrevive, embora apagado. Reavê-lo e

fazê-lo reviver é tarefa dos vivos, que poderão optar sobre qual imagem farão dos

mortos após a partida destes.

A morte estará sempre para-além de minha subjetividade, posto que em

minha subjetividade não há lugar algum para ela.

“E esta subjetividade não se afirma contra a morte, mas

independentemente dela, embora esta afirmação seja

imediatamente alienada. Portanto, não poderíamos pensar a morte,

nem esperá-la, nem nos armarmos contra ela, mas também nossos

projetos, enquanto projetos – não devido à nossa cegueira, como

diz o cristão, mas por princípio – são independentes dela. E, ainda

que haja inúmeras atitudes possíveis frente a esta irrealizável ‘a

realizar além do mais’, não cabe classificá-las em autênticas e

inautênticas, posto que, justamente, sempre morremos ‘além do

mais’”.66

CAPÍTULO II

A RELAÇÃO EU-OUTRO SEGUNDO SARTRE

2.1 – CONSIDERAÇÕES ACERCA DA EXISTÊNCIA DO OUTRO O problema da existência do Outro foi tratado por Sartre de modo bastante

amplo no decorrer de sua obra, especialmente em L’être et le néant. O fato de o

homem estar condenado a ser livre nos remete à idéia de solidão desse homem.

Mas esta fica agora irremediavelmente comprometida com a presença do Outro. 66 Ibid, p.671.

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Surjo num mundo já habitado pelo Outro, e assim, passo a ter plena

convicção de sua real presença. Ele não é mero objeto, reconheço-o como

consciência, como sujeito, como para-si igual a mim. Estou tão consciente da

existência do Outro quanto da minha própria existência.

“(...) antes mesmo de qualquer encontro com o Outro, eu já

tenho de ser consciente dele de algum modo. Isto é: minha relação

com a consciência do Outro deve anteceder à primeira aparição

mesma do corpo do Outro frente a mim. O Outro deve fazer parte

de minha consciência desde o nascimento, como parte constituinte

do meu ser. Há uma predisposição ontológica do Para-si para

reconhecer o Outro enquanto sujeito. Assim, o Outro deve fazer

parte de mim como estrutura do Para-si que sou. Seu corpo

aparece depois quando o encontro. É então, na consciência, que

devemos buscar a existência do Outro, e não fora dela. (...) A

realidade humana é sempre Para-si-Para-Outro”.67

O Outro me aparece sempre como um objeto que devo conhecer e isso faz

com que a questão da intersubjetividade limite-se a um problema de

conhecimento. Ao abordar a questão da existência do Outro, Sartre destaca

inicialmente o problema da vergonha.”Tenho vergonha do que sou”. Mas o fato é

que só sinto vergonha diante de alguém. Ao cometer um gesto desastrado ou fútil,

levanto a cabeça e observo que alguém estava ali e me viu. Verifico subitamente

toda a vulgaridade de meu gesto e sinto vergonha de mim, tal como apareço ao

Outro, ou seja, sem a existência do Outro, meu lado vergonhoso não poderia

existir.

67 PERDIGÃO, P. Existência e Liberdade. Porto Alegre: L&PM, 1995, P.138.

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“O Outro é mediador indispensável entre mim e mim

mesmo, sinto vergonha de mim tal como apareço ao Outro. (...)

Reconheço que sou como o Outro me vê. (...) Assim, a vergonha é

vergonha de si diante do outro, essas duas estruturas são

inseparáveis”.68

É preciso que o Outro me veja, para que eu venha a saber que sou desta

ou daquela maneira. É o juízo dos outros, a maneira como eles me vêem, que

reflui sobre mim e interfere na minha maneira de ser e aprender o que sou.

Sartre menciona o exemplo de alguém que observa outras pessoas sem ser

visto, por exemplo, pelo orifício da fechadura (...) Mas se surge alguém e me vê

vendo, me fixa como um voyeur. O domínio que eu antes possuía da situação se

inverte, agora me submeto a juízo do olhar do Outro. Sou o que ele acha que sou.

Envergonho-me e mostro minha vergonha. O Outro me vê no meu rubor e meu

constrangimento, na minha justificativa ou no me disfarce. E porque ele a vê, eu

também a vejo por meio dele.Agora sou um voyeur para mim mesmo, sou alguém

envergonhado e só me apreende por meio do Outro.

Necessito do Outro para captar por completo todas as estruturas de meu

ser, ou seja, o Para-si remete ao Para-Outro. A aparição do Outro na minha

experiência refere-se a fenômenos fora de minha experiência. Através do cogito69

cartesiano, somos conduzidos a uma verdade indubitável de nossa existência.

Sartre dedicou-se a mostrar a partir da obra “A transcendência do ego”, que o

cogito constitui a primeira evidência a partir da qual se coloca ao mesmo tempo a

questão do sentido dessa existência e da sua liberdade. O cogito comprova-se na

pura facticidade (em sua existência como fato imediato, aqui e agora), mas como

centro dos sentidos possíveis a serem inventados incansavelmente.

O cogito deve ser o ponto de partida para tentarmos extrair daquilo que nos

permite afirmar a realidade da existência do Outro. 68 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p.290. 69 Cogito ergo sun (Descartes, Discurso do Método IV) – Argumento que extrai da existência do pensamento atual, a realidade da alma enquanto substância individual. “Sou uma coisa que pensa” (ID Meditações, II 6) cf LALANDE, A. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

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Descartes apreende Deus como perfeito, e através do cogito, coloca o

indivíduo como um marco entre Deus e o nada. O indivíduo por sua vez, tem com

o outro uma relação peculiar, diferente da relação que ele possui com os objetos.

A essa relação Sartre denomina negação interna. Essa relação é recíproca, o

outro é aquele que não sou eu.

Entretanto, posso converter-me em objeto para o outro e nesse caso, ele

perde sua objetividade, tornando-se sujeito da relação.Mas posso também

converte-lo em objeto e nesse caso, perco minha objetividade, assumindo a

posição de sujeito da relação. O outro-objeto é um ser real e concreto que exclui

de mim através de minha negação interna, organizando-o junto com os outros

objetos do mundo em função de meus próprios fins. Ele é apreendido por mim

através de meu saber e de minha experiência, devendo permanecer preso à

objetividade que constituí para ele:

“A negação é interna porque o outro se constitui como

outro si mesmo pela negação de mim-mesmo: o outro não ‘é’ eu.

Mas eu não sou o outro do mesmo modo que não sou a mesa.

Pois o modo como não sou o outro vai incidir na maneira como me

apreenderá enquanto sendo eu mesmo”.70

A análise da intersubjetividade leva Sartre a desenvolver ainda, uma

Ontologia do Corpo. Uma vez que ou bem sou objeto para o Outro, ou então o

outro se faz objeto para mim, há que se concluir que em ambos os casos nos

referimos ao corpo. Porém, neste momento surgem as questões: “O que é meu

corpo? O que é o corpo do Outro?”.

70 SILVA, F.L Ética e Literatura em Sartre. São Paulo: Unesp, 2004, p.186-187.

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Para melhor investigar análise do corpo, Sartre dividiu-a em três dimensões

ontológicas. Na primeira delas ele levanta a seguinte questão: “O que é meu corpo

para mim?”.

Primeiramente, é importante lembrar, que em relação ao meu corpo, tudo o

que sei é proveniente do Outro, ao passo que este me capta como “corpo-no-

mundo”.

Por outro lado, devemos considerar que o corpo manifesta minha

contingência no mundo, já que a realidade humana é necessariamente

contingente. Assim, encontramos no corpo uma facticidade radical que caracteriza

o para-si, facticidade que resulta de minha contingência. Por outro lado, o corpo é

aquilo que eu nadifico, que deve ser compreendido como ultrapassado: um em-si

compreendido pelo para-si nadificador. Meu corpo é um corpo no meio do mundo

e minha relação com o mundo deve passar necessariamente pelo meu corpo.

Este, entretanto, expande-se através das coisas, tornando-se assim co-extensivo

ao mundo, especialmente em nossa relação com coisas e utensílios.É importante

ressaltar a preocupação que Sartre possui em não separar consciência de corpo.

Contrariando toda a tradição filosófica ocidental que apresenta o homem como um

ser composto de corpo e alma, Sartre nos define como sendo inteiramente corpo e

consciência.

“(...) É evidente que a consciência só pode existir seu corpo como

consciência. Assim, portanto meu corpo é uma estrutura

consciente de minha consciência”.71

Sartre nos remete ainda, à questão da transcendência do corpo, tratada por

ele de uma forma bastante peculiar. Meu corpo como referência no mundo situa-

se sobre dois pontos: quando estou situado no mundo, meu corpo é ponto de

71 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p.416.

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vista, mas quando o ultrapasso em direção àquilo que tenho-de-ser, meu corpo é

ponto de partida.

Dessa forma, pudemos ter um breve panorama do significado de “meu

corpo para mim”, segundo Sartre. Passemos agora, à questão que procura definir

o significado de “Meu corpo para Outro”.

Na segunda dimensão ontológica da análise do corpo, intitulada “O corpo

para Outro”, Sartre afirma que tanto faz estudar o modo como meu corpo aparece

ao outro, quanto o modo como meu corpo aparece a mim.72 Ele faz ainda, questão

de sublinhar que devo captar primeiramente o Outro como aquele para quem

existo como objeto. Expliquemos melhor: o Outro existe para mim primeiro, capto-

o como corpo depois, já que o corpo do Outro é para mim uma estrutura

secundária. Entretanto, o corpo do Outro não pode ser confundido com sua

objetividade. Não posso ter um ponto de vista sobre o meu corpo, ao passo que o

corpo do Outro me aparece originariamente como algo sobre o qual posso adotar

um ponto de vista. Além disso, ele é captado por mim de forma radicalmente

diferente da forma como capto os objetos do mundo.

Já o meu corpo não pode ser utilizado como um instrumento que está fora

de mim, pelo fato de que o meu corpo sou eu. Devemos considerar ainda, que o

corpo do Outro é constituído por um conjunto de órgãos sensíveis, o que em leva

a ser conhecido pelos sentidos do Outro.Nós podemos sentir a presença do Outro

por toda parte, na medida em que nos deparamos com coisas-utensílios que se

revelam utilizadas e conhecidas por ele.

“Esta sala onde espero o dono da casa revela-me em sua

totalidade, o corpo de seu proprietário. Essa poltrona é poltrona-

onde-ele-se-senta, essa mesa é mesa-na-qual-ele-escreve, esta

janela é janela por onde entra a luz que-ilumina-os-objetos-que-vê.

Assim, ele está esboçado por toda parte, e este esboço é esboço-

objeto. Um objeto pode a qualquer momento vir a preencher tal

72 Idem, ibid.

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esboço com sua matéria. Mas isso não impede que o dono da casa

ainda “não esteja aí”. Está em outro lugar, está ausente”.73

A ausência é uma estrutura do ser-aí. Mas se a pessoa que estava ausente

(tomemos como exemplo o dono da casa da citação anterior) de repente aparece

frente a mim, esta aparição não modifica em nada a estrutura fundamental de

minha relação com ela. Eu existo para essa pessoa, ela fala comigo, e eu, por

minha vez, posso olhá-la e captá-la. Desse modo, descubro que a facticidade dela

é algo explícito.

O corpo do Outro, é, portanto, a facticidade da transcedência-transcendida,

na medida em que se refere á minha facticidade, além desse corpo nos ser dado

imediatamente como aquilo que o Outro é.

Sartre termina esta análise afirmando que a corporeidade e objetividade do

Outro são rigorosamente inseparáveis.

Na terceira (e última) dimensão ontológica do corpo, Sartre trata o problema

do meu corpo como objeto para-outro, atendo-se na questão do Olhar.

Eu existo para mim como conhecido pelo Outro. Com a aparição do olhar

do Outro, tenho a revelação do meu ser-objeto e passo a ser conhecido pelo Outro

como corpo. O olhar faz com que a existência do meu corpo seja revelada a mim,

minha facticidade é objetiva e meu corpo torna-se alienado. Para ilustrar melhor

essa questão, Sartre utiliza o exemplo da timidez:

“A experiência de minha alienação faz-se em e por

estruturas afetivas, como a timidez. ‘Sentir-se enrubescer’, ‘sentir-

se transpirando’, são expressões impróprias que o tímido usa para

explicar seu estado: o que ele quer dizer com isso é que tem

consciência viva e constante de seu corpo, tal como é, não para si

mesmo, mas para o outro”.74

73 SARTRE, J.P. O ser e o nada.Petrópolis: Vozes, 1997, p.430. 74 SARTRE, J.P. O Ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 335.

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Sartre enfatiza ainda, que é dos conceitos por meio dos conceitos do Outro

que eu conheço meu corpo. A aparição do Olhar do Outro faz com que eu tenha a

revelação do meu ser-objeto, pois sou conhecido pelo outro como corpo, através

do qual manifesta-se o sentido profundo da facticidade. Para ilustrar esse fato,

Sartre utiliza um exemplo no qual se refere a uma criança pequena:

“(...) esta aparição do corpo como coisa-utensílio é muito tardia na

criança: é em qualquer caso, posterior à consciência do corpo

propriamente dito e do mundo como complexo de utensilidade; é

posterior à percepção do corpo do outro. A criança sabia há muito

tempo pegar, puxar, empurrar, segurar, antes de aprender a tocar

e ver sua mão. Olha para ela, e ela se afasta de seu campo visual,

vira o rosto e procura-a com o olhar, como se não dependesse de

si mesmo voltar a colocá-la ao alcance de sua vista. É por uma

série de operações psicológicas e de sínteses de identificação e de

reconhecimento, que a criança chegará a estabelecer tabelas de

referências entre o corpo-existido e o corpo-visto. Ainda é preciso

que já tenha anteriormente iniciado seu aprendizado do corpo do

outro. Assim, a percepção de meu corpo situa-se

cronologicamente, depois da percepção do corpo do outro”.75

Ao se referir ao corpo, Sartre suprime a distinção entre consciência e corpo:

existimos em consciência da mesma maneira como existimos corporalmente. Meu

corpo sou eu. Eu o existo, portanto, não posso usá-lo como algo que se encontra

fora de mim. Por outro lado, não me é possível vê-lo como um “amontoado” de

órgãos e membros. Não chegarei a ver meu cérebro ou minhas vértebras

75 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 449.

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executando suas funções. Poderei vê-los somente através de exames como

radioscopias, por exemplo. Neste caso, verei tais imagens em uma tela, sendo

apresentadas a mim, ao passo que me encontro fora destas. Se anteriormente vi

dissecações de cadáveres humanos ou livros de fisiologia ou anatomia, concluo

que meu corpo é constituído exatamente como aqueles que observei em tais

circunstâncias.Não vejo meu corpo como ele é visto por médicos, cientistas ou

psicólogos, fisiologicamente, pois não posso assumir o ponto de vista do Outro

sobre mim. Tal tarefa seria impossível. Entretanto, há membros e órgãos que se

encontram fora de meu corpo, o que me possibilita tocá-los, apalpá-los. Mas esses

membros e órgãos são utilizados pelo corpo para executar diversas funções e

neste caso, sou considerado “o outro” em relação a estas partes de meu corpo.

Por exemplo, apreendo meu olho como órgão sensível, mas não posso vê-lo

vendo, não posso captá-lo enquanto ele me revela um aspecto do mundo.

Citemos um outro exemplo, elaborado por Sartre: “Minha mão revela todas as

características dos objetos, mas não revela a ela mesma76”. Observo minha mão

tocar os objetos, mas não a conheço em seu ato de tocá-los. Esse acontecimento

exige que eu tome a distância necessária de minha mão e neste momento, ela se

torna para mim como qualquer objeto que posso avistar naquele momento.

Em Sursis, Sartre nos fornece um claro exemplo que reforça esta idéia:

“No meio da Pont-Neuf, ele parou e pôs-se a rir. (...) Estendeu as

mãos e passou-as devagar sobre as pedras do parapeito (...) havia

suas mãos no parapeito branco: quando as olhava, pareciam de

bronze. Mas justamente, porque as podia olhar, não lhe pertenciam

mais, eram de outro de fora, como as árvores, como os reflexos do

Sena, mãos cortadas. Fechou os olhos e elas tornaram a ser dele

(...) Minhas mãos: a inapreciável distância que me revela as coisas

e delas me separa para sempre”.77

76 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 386. 77 SARTRE, J.P. Sursis.São Paulo: Abril Cultural, 1974, pp. 384-385.

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O Outro conhece de meu corpo, as partes que são visíveis a ele, e seria incapaz

de reconhecer um de meus órgãos internos, caso o visse exposto dentro de um

vidro, como Sartre procurou descrever no conto Intimidade do livro O Muro, em

uma fala da personagem Lulu:

“Ele me ama, mas não ama minhas tripas; se lhe mostrassem meu

apêndice num vidro, não o reconheceria; ele vive a me apalpar,

mas se lhe pusessem o vidro nas mãos não sentiria nada

intimamente, não pensaria: ‘isto é dela’; deveríamos poder amar

tudo de uma pessoa, o esôfago, o fígado, os intestinos. Talvez não

gostemos dessas coisas por falta de hábito, se as víssemos como

vemos nossas mãos e nossos braços, talvez as amássemos; é por

isso que as estrelas-do-mar devem amar-se melhor que nós, elas

se estendem sobre a praia quando faz sol e expelem o estômago

para fazê-lo tomar ar e todos podem vê-lo; eu me pergunto por

onde faríamos sair o nosso, pelo umbigo, talvez”.78

Dessa forma, cabe, pois concluir, que o Outro é um ser que me vê, assim

como eu o vejo. Só posso negar ser o Outro porque me sei visto por ele. Durante

toda nossa existência, somos objeto do olhar do Outro, ou seja, existimos sob

esse olhar. E através do olhar, primeiramente, percebo o corpo do Outro para

depois ter a percepção de meu corpo. Meu ser precisa ter o Outro como

referência, para saber com certeza que existo como consciência alheia.

Entretanto, mesmo que ocorra a ausência do Outro, nunca estamos sós: mesmo

estando trancado em meu quarto, posso estar em relação com o Outro, através de

uma carta do Outro sobre minha mesa, através do livro que leio (esse livro foi

78 SARTRE, J.P. O Muro.Trad. H. Alcântara Silveira. São Paulo: Nova Fronteira, 1982, p. 91.

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escrito por alguém, no caso, o outro); posso ver na parede o quadro que alguém

pintou, ou estar ouvindo uma música (que foi composta e está sendo cantada por

alguém). Porém, o “ser-visto”, faz com que meu corpo se torne um em-si-para-

outro, como experiência que se torna perpétua em nossa existência, pois

conformadamente me submeto a conhecer meu corpo através de informações

dadas pelo Outro, o qual, através de seu olhar, seu saber e sua linguagem, torna-

se fator essencial ao conhecimento de meu corpo e de meu ser-no-mundo.

Cabe ainda lembrar, que a existência de meu corpo e do corpo do Outro

pode gerar um conflito, já que ou bem sou objeto para o Outro, ou o Outro se faz

objeto para mim, e esse fato pode gerar um empecilho à comunicação das

consciências.

Assim, não posso captar-me como apareço ao Outro, pois nunca poderei

me ver da forma como o Outro me vê. Na última entrevista de Sartre que

antecedeu sua morte, podemos encontrar um exemplo que se aplica a essa

situação:

“Segundo os outros, sei o que minha velhice implica a quem me vê

de fora, mas não sinto a minha velhice. A velhice é uma realidade

minha que os outros sentem. Os outros é que são a minha

velhice”.79

2.2 – O OUTRO: UM MAL NECESSÁRIO Na divisão anterior deste capítulo discorremos acerca de nossa existência como

corpo no meio do mundo. Estando agora cientes da resposta à esta questão,

79 Testamento de Sartre. Porto Alegre: L&PM, 1980, p.33.

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podemos a partir daí, examinar as Relações concretas com o Outro. Estas são

comandadas pelas minhas atitudes em face do objeto que sou para o Outro.

O existencialismo elevou a questão do Outro a uma posição central e Sartre, por

sua vez, descreveu a intersubjetividade de maneira magistral no que tocante à

elaboração de sua filosofia. Antes dele, outras correntes filosóficas se limitavam a

tratar da nossa maneira de estar presente no Outro e de nossa maneira de fazer o

Outro estar presente à nossa subjetividade.Mas Sartre deixou claro que não basta

pensar o Outro como aquele que é visto por mim, mas ele deve também, ser visto

como aquele que me vê, aquele que invade minha subjetividade.

Conforme vimos anteriormente, não existe uma consciência isolada. Cada

homem existe no mundo com outros homens e interage com eles. A convicção da

existência do Outro é um dado imediato em minha vida. Tenho plena certeza da

existência do Outro, como de minha própria existência. Reconheço-o como

consciência, como sujeito e Para-si igual a mim, portador do mesmo poder de

nadificação, da mesma intencionalidade e de fazer o mundo o lugar dos seus

projetos.

O termo alteridade (originário do latim “alter”: outro), designa a

multiplicidade de consciências, o caráter daquilo que é o Outro.

Mas o simples conhecimento do Outro não me dá condições de apreendê-lo

como sujeito, mas apenas como objeto e sua consciência é impenetrável a mim,

está fora do meu alcance, “o Outro é a consciência que eu não sou”. Ainda assim,

antes mesmo de qualquer encontro com o Outro, já tenho de ser consciente de e

de algum modo.Ele deve fazer parte de minha consciência como parte constituinte

de meu ser. É na consciência que devemos buscar a existência do Outro. Assim, a

realidade humana é sempre Para-si-Para-outro.

Quando dois homens estranhos se encontram pela primeira vez,

independente de sua classe social e interesses, ambos se reconhecem

reciprocamente como homens, como se aquela relação sempre tivesse existido,

posto que somos desde o nascimento, o Para-si-Para-outro. Cada homem

reconhece o caráter humano do Outro e tem sua humanidade reconhecida pelo

Outro. Este é um ser que me vê, assim como eu o vejo: só posso negar o ser do

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Outro porque me sei visto por ele. Sou objeto de olhar e existo sob o olhar de

alguém. Diante dessas afirmações, concluo que posso reconhecer o Outro como

consciência, liberdade e projeto. Mas é importante lembrar que apesar do Outro

ser igual a mim em minha condição humana, ele é aquele que eu não sou e possui

um projeto único, próprio, singular, insubstituível e realiza-se em uma ação única.

Essa compreensão imediata da singularidade de cada homem revela-me a sua

liberdade.

Par obter qualquer verdade objetiva a meu respeito dependo do Outro. Ele

é indispensável para que eu me conheça. Sozinho eu não teria como fazer uma

representação de mim e não poderia saber-me visto objetivamente.

“Para obter um pensamento objetivo sobre mim, preciso da

mediação do Outro. Ele é o intermediário indispensável que remete

de mim a mim mesmo. Se eu estivesse sozinho no mundo, jamais

teria como me atribuir qualidades. Eu me conheço objetivamente

pelos conceitos que o Outro formula sobre mim. Aquilo que sei

sobre mim (meu caráter, meu corpo), provém do mundo como o

Outro me vê”.80

Entretanto, na relação eu-outro ocorre um conflito de liberdades. Necessário para

mim, o Outro é também um mal (um mal necessário). Minha liberdade é

ameaçada pela liberdade alheia.

“Não podemos constranger o Outro a pensar de nós o que

queremos: se o olhar do Outro me censura, torno-me objeto de

reprovação; se me admira, torno-me objeto de admiração. Também

80 PERDIGÃO, P. Existência e Liberdade. Porto Alegre: L&PM, 1995, p. 143.

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não podemos fazer o Outro agir como desejamos. (...) O Outro faz

de mim um mero instrumento de seus possíveis, se assim o

desejar. (...) O Outro me faz um ser indefeso perante uma

consciência que me julga. (...) De certo modo, somos escravos do

Outro, que é nosso juiz e senhor. Não temos para onde fugir”.81

A primeira atitude para com o Outro: o Amor, a Linguagem e o Masoquismo.

A primeira atitude para o Outro se refere ao amor, a linguagem e ao

masoquismo, conforme vimos no título acima. Expliquemos melhor: o Para-si

possui duas condutas de posse pelas quais tenta assimilar a liberdade do Outro.

A primeira conduta seria um projeto de nos apoderarmos da liberdade

desse alguém e que essa pessoa consinta em fazer de mim um centro de

referência absoluto em torno do qual ordenam-se as coisas do mundo. Posso

tentar assimilar a visão que o Outro possui de mim, pretendendo roubar a

consciência alheia enquanto consciência livre. Pretendo ter de mim essa visão

exterior que só o Outro possui.

Assim, esforço-me para ser o mais possível corpo, e menos possível

liberdade. Quero ser eu mesmo responsável pelo que o Outro faz de mim.

Sartre utiliza como exemplo aqui, o amor. O amante reivindica a liberdade

do amado e pretende apropriar-se dele como sujeito livre. Por isso, a amante faz-

se o mais possível objeto para o amado. Quero que a pessoa amada se conserve

como consciência e assim me faço o mais possível coisa para capturar a visão

que ela tem de mim.Por isso esse projeto é falho, pois nesse caso ocorre um

conflito de projetos, o que pode conduzir um dos amantes à atitude masoquista.

Isso ocorre no momento em que um deles abandona sua subjetividade para

perder-se na subjetividade da pessoa amada.Ele sabe que sua subjetividade é um

obstáculo, por isso busca fazer-se apenas um objeto para que o Outro possa

possuí-lo integralmente. Ou seja: deixa livre a subjetividade do amado e extermina 81 PERDIGÃO, P. Existência e Liberdade. Porto Alegre: L&PM, p. 146.

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a sua própria. Entretanto, essa tentativa termina em fracasso. Podemos possuir o

corpo do amado, o seu exterior, mas não a sua subjetividade.

A segunda atitude para com o Outro: a Indiferença, o Desejo, o Ódio e o Sadismo.

O fracasso da primeira atitude para com o Outro pode ser ocasião para que

adotemos a segunda.

Conforme vimos anteriormente, toda tentativa de assimilação da

consciência alheia está fadada ao fracasso.

Ao ver-me em perigo diante do olhar do Outro, adoto a segunda atitude

colocada por Sartre: contra-ataco o olhar do outro, reenviando-lhe o meu olhar. O

objetivo dessa tentativa é afrontar a liberdade do Outro, o qual é visto por mim

como um objeto.A partir do momento em que olho em direção ao olhar do Outro,

esse se desvanece e não vejo mais do que olhos. Neste momento, o Outro torna-

se um ser que possuo e que reconhece minha liberdade. Penso que minha meta

foi alcançada. Mas percebo que não posso apropriar-me da liberdade do Outro,

pois tudo o que me restou dele é um “outro-objeto”. Posso escolher refugiar-me na

indiferença, imaginando que estou sozinho no mundo fingindo não enxergar outras

liberdades. Mesmo assim, continuarei a ser objeto para o Outro, ainda que eu

pretenda ignorar esse fato. Ou seja: a indiferença, neste caso implica em minha

“cegueira” com relação aos outros, e esses têm para mim mera função de objetos:

o bilheteiro nada mais é do que sua mera função de coletar ingressos, o garçon

nada mais é do que a atitude de servir os fregueses. Porém, minha indiferença

com relação ao Outro nada mais é do que uma atitude vinda de mim que resulta

em um novo fracasso em minha tentativa de apreender a liberdade do Outro.

Assim, posso fazer uma nova tentativa: através do desejo sexual, procuro

roubar a atitude alheia pela objetividade.No ato sexual, viso possuir o corpo da

amada como um corpo dotado de liberdade, captando-o como um corpo alheio

com consciência alheia. Vejo a carícia como a expressão de tocar a liberdade

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corporificada do Outro. Nesse momento, sinto-me como que apoderando-me

dessa liberdade. Entretanto, também o desejo sexual como modalidade de

buscarmos a liberdade do Outro se destina ao fracasso. A realização do desejo

faz desaparecer o desejo de possuirmos a consciência encarnada do Outro, pois

no clímax dessa relação me volto para o meu próprio gozo e nesse momento, a

consciência alheia é excluída ao mesmo tempo em que meu desejo é

suprimido.Desse modo, a pretendida apropriação da consciência alheia através da

carne não foi conseguida, e a liberdade do Outro continuou intocável. Na área

sexual, resta, contudo, outra alternativa: o sadismo. Este pode ser definido da

seguinte forma: o sádico deseja possuir a transcendência do Outro como pura

transcendência, e, no entanto como corpo, ocorre uma impossibilidade de

apropriar-se da consciência encarnada, já que o Outro perde sua transcendência

ao apresentar-se como objeto. Assim, o Outro torna-se instrumento nas mãos do

sádico, que age à força sobre o Outro. Mas ao apropriar-se da carne do Outro

através da violência e da dor, o sádico visa na realidade, apropriar-se da liberdade

do Outro.

“O sadismo é um esforço para encarnar o outro pela

violência, e esta encarnação à força já deve ser apropriação e

utilização do outro. O sádico procura – tal como o desejo – despir o

outro dos atos que o disfarçam (...) Portanto, há uma encarnação

pela dor... (...) é da liberdade que o sádico tenta apropriar-se”.82

O sadismo não procura suprimir a liberdade daquele a quem tortura, mas

sim, obrigá-la a identificar-se livremente com a carne torturada.

82 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 500.

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“Eis porque o sádico irá exigir provas manifestas desta

servidão de liberdade do Outro pela carne. Seu propósito será

fazer com que ele peça perdão, obrigará o outro se humilhar por

meio da tortura e da ameaça, irá forçá-lo a renegar o que lhe é

mais caro. (...) O sádico se coloca como aquele que dispões de

todo o tempo do mundo” . 83

Todavia, a liberdade alheia é por princípio um campo fora de alcance, por

isso, quanto mais o sádico se propõe a tratar o Outro como instrumento, mais a

liberdade do Outro lhe escapa. Assim, na atitude sádica do homem percebemos

mais uma tentativa fracassada de apreender a liberdade do Outro.

O empreendimento da morte do Outro Todos os projetos até agora aqui demonstrados, foram frustrados. Dessa

forma, resta uma última tentativa de possuir a liberdade do Outro: o

empreendimento de sua morte. A finalidade desta, é não deixar que ele guarde

segredo do que nós somos objetivamente. A essa livre determinação, Sartre dá o

nome de ódio (ou consciência odiosa).O Para-si abandona seu projeto de uma

possível união com o Outro e idealiza um mundo onde este não exista.Não há

como ignorar o Outro, que por sua vez, representa não só um único indivíduo, mas

toda a espécie humana.

O Outro que odeio representa na verdade, “Os Outros”.

Entretanto, a tentativa de eliminarmos o Outro, também redunda em

fracasso, uma vez que não poderia evitar que o Outro houvesse existido ou

tivesse levado consigo para o túmulo algo que jamais poderei conhecer sobre

mim.

83 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 500.

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“Se o Outro está vivo, posso sempre mudar a imagem que

ele tem de mim. Mas o aniquilo, o que fui para ele está petrificado,

irremediavelmente fixado em uma essência pura. A morte do Outro

sempre empobrece o que sou objetivamente. Á medida que os

outros morrem, morre com eles um pouco mais daquilo que sou

objetivamente no mundo”.84

2.3 - O OLHAR E O CONFLITO DE LIBERDADES “Vêem-me, logo existo!” 85 afirma o personagem Daniel em Sursis. Esta

afirmação resuma a angústia de existir sob o olhar do Outro. Entretanto, ele

comunica essa sua descoberta para Mathieu, para que este se conscientize de

que ele vê o Outro, e não somente é visto.

“É neste sentido que se utiliza a fórmula do cogito: não é

possível fugir do olhar do Outro porque não há como duvidar de

que a existência está vinculada a esse olhar”.86

Na concepção de Sartre, a realidade humana é para-si-para-outro.

O homem que vejo passar na rua, o vendedor ambulante ou o mendigo que

ouço cantar de minha janela ao para mim, meros objetos. Mas essa relação de

objetividade entre o Outro e mim, é uma relação essencial à minha existência e

totalmente previsível de minha parte. Ou seja: entre mim e o Outro há uma relação

fundamental. O Outro me vê. Percebo seus dois globos oculares vindo em minha

direção a todo o instante. Quando eu apreendo o olhar, cesso de perceber os

olhos que em vêem. Nesse momento, tomo consciência de ser visto. Esse olhar

84 PRDIGÃO, P. Existência e Liberdade. Porto Alegre: L& PM, 1995, 153. 85 SARTRE.J.P. Sursis.Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Difel, 1964, p. 335 86 SILVA, F.L. Ética e Literatura em Sartre. São Paulo: Unesp, 2004, p. 194.

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se manifesta nos olhos do Outro, mas me devolve a mim mesmo. Mas o que

representa para mim ser visto?

Suponhamos que eu vá ao cinema.Já ao adentrar o saguão encontro

muitas pessoas pelo caminho.Algumas compram balas, outras disputam lugares,

ou riem durante a sessão que ainda não terminou. Quanto a mim, vejo todas

aquelas pessoas como objetos.Só eu me sinto sujeito. Eu os meço, classifico,

analiso. Sinto que entre aquelas pessoas só eu tenho projetos e consciência.Já

sentado de repente meu olhar encontra um olhar que me observa. Minha posição

muda, ao passo que esse olhar me transforma em objeto. Esse olhar me

escapa.O dono desse olhar se recusa a tornar-se objeto de meu olhar. É como um

duelo.E finalmente pelo olhar do Outro, tomo consciência de que ele é também

consciência.

“Pois o mundo em que surjo é um mundo em que o outro já

habita. E o conflito é constitutivo, pois mesmo minha intenção de

respeitar a liberdade do outro já constitui um projeto acerca de sua

liberdade e por isso a violenta. Quando duas pessoas se medem

pelo olhar, é inevitável que uma tente paralisar a outra, isto é,

apossar-se da liberdade da outra. O ser-para-outro é

estruturalmente conflituoso”.87

Assim, toda minha relação com o Outro está condicionada pelo “ser visto”.

O olhar do Outro me rouba o mundo que era meu e rouba minha intimidade.

Quando o olhar do Outro me fixa, ocorre uma espécie de “hemorragia” em minha

consciência. Esta perde o seu caráter de ser presença a si e é dominada pelo

olhar. O Outro me reduz então a objeto e minha reação imediata passa a ser a

vergonha. Mas poderei fingir que não a sinto, disfarçando-a com a má-fé.

87 SILVA, F.L Ética e Literatura em Sartre: Ensaios Introdutórios. São Paulo: Unesp, 2004, p. 190.

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“Pelo olhar vivo a solidificação de minhas possibilidades.

Se, como vimos, sou minhas possibilidades, não posso deixar de

sê-las. Mas através do olhar do Outro elas são alienadas. Por isso,

o Outro como olhar é apenas isto: minha transcendência-

transcendida. O Outro se resume em ser a morte escondida de

minhas possibilidades, e uma morte da qual me envergonho,

porque a vivo”.88

O olhar do Outro me remete a mim, diz Sartre. Sou um ser olhado e nada

sei a respeito desse olhar. Sei o que é ser olhado, capturado pelo olhar do Outro,

mas não sei definir este olhar a partir de sua origem no Outro.

“Assim, só estou capacitado a formular sobre mim um juízo

objetivo, saber-me de determinado modo (vergonhoso, covarde,

feliz, generoso, colérico, alto, gordo, feio, etc), porque esse tipo de

autoconhecimento passa pelo Outro. Ele é o intermediário

indispensável que remete de mim a mim mesmo. Se eu estivesse

sozinho no mundo, jamais teria como me atribuir qualidades. Eu

me conheço objetivamente pelos conceitos que o Outro formula

sobre mim. Aquilo que sei sobre mim (meu caráter, meu corpo),

provém do modo como o Outro me vê”.89

Capto olhar do Outro como o próprio cerne de meu ato, como solidificação

e alienação de minhas possibilidades. O Outro como olhar é minha 88 BORNHEIM, G. Sartre. São Paulo: Perspectiva, 2000, p.88. 89 PERDIGÃO, P. Existência e Liberdade. Porto Alegre, L&PM, 1995, P. 143.

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transcendência-transcendida. Com o olhar do Outro, a “situação” me escapa, já

não sou dono daquela situação. A aparição do Outro faz surgir nessa situação um

aspecto não desejado por mim do qual não sou dono e que me escapa por

princípio, posto que sou minhas possibilidades, não posso deixar de sê-las, mas

através do olhar do Outro elas são alienadas.

No romance Le Sursis Sartre no fornece um exemplo esclarecedor no

tocante a essa discussão:

“(...) Certamente já experimentastes no metrô, no saguão

de um teatro, no trem, a impressão súbita e insuportável de ser

espiado por trás. Tu te voltas, mas o curioso mergulhou o nariz em

seu livro, nem chegas, a saber, quem te observava. Retomas tua

primeira posição, mas sabes que o desconhecido reergue seus

olhos. (...) Eis que o senti pela primeira vez no dia 26 de setembro

às três horas da tarde, no parque do hotel. E não havia ninguém,

compreendes, Mathieu, ninguém. Mas o olhar estava lá”.90

Conforme afirmamos anteriormente, o homem é um ser-para-outro e o olhar

por sua vez, revela a existência indubitável desse Outro para quem nós somos. O

olhar me revela como um fato a existência do Outro e minha existência para-outro.

Mas de acordo com o que vimos na divisão anterior deste capítulo, eu e o

outro são duas liberdades que se afrontam mutuamente e por vezes, tentam

paralisar-se pelo olhar. Pelo fato de existir como limite à liberdade alheia, o

homem fará tentativas constantes de possuir a liberdade do Outro, posto que essa

característica faz parte de cada indivíduo. Ou seja: o Para-si jamais terá uma

atitude de passividade absoluta diante do Outro. Assim a palavra final de todo o

problema da intersubjetividade resume-se o conflito congênito que ocorrerá entre

mim e o Outro.Esse tema aparece em uma das melhores peças do teatro de

Sartre: Huis-Clos (Entre Quatro Paredes) como poderemos observar a seguir.

90 SARTRE, J.P. Sursis. Trad. De Sérgio Milliet. São Paulo: Difel 1964, p. 102.

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“O Inferno são os Outros” O olhar, as relações com o Outro e seus conflitos são assuntos tratados

como foco principal na peça Entre Quatro Paredes (Huis Clos91, título original em

francês). Escrita por Sartre em 1944 chamava-se inicialmente Os Outros.A ação

da peça desenrola-se no inferno. Não o inferno da mitologia cristã, com diabos,

garfos e chuva de enxofre, mas um salão decorado no estilo do Segundo Império,

com três poltronas e uma estátua de bronze sobre a lareira.

Levados um a um a este espaço pelo criado, chegam os “mortos” Garcin,

Inês e Estelle, respectivamente, um homem de letras, uma funcionária dos

correios, lésbica e uma mulher da alta sociedade. Essas três pessoas deverão

viver aqui para sempre, sem poder sair, sem dormir, sem comer e em sequer

piscar os olhos. Enclausurados e condenados à vida em comum, não tardam em

tornar a convivência entre eles, verdadeiramente insuportável. Inês é a primeira a

reconhecer que o carrasco naquele estranho inferno será cada um deles para

cada um dos outros. Os pecados cometidos por eles na terra foram

respectivamente: Garcin: em vida, era incapaz de amar e tolerar a esposa, por

isso jogara sadicamente com ela. Alegando uma posição pacifista, fugira do

serviço militar. Posteriormente, fôra preso e depois executado. Inês: lésbica, levou

sua amante ao suicídio. Estelle: burguesa e ninfomaníaca, trouxe a morte ao

amante e ao filho. Os três necessitam-se mutuamente para se se sentirem

justificados e livres da culpa através do olhar dos outros: “Olhe para mim – diz

Garcin a Estelle – preciso que alguém me olhe quando dizem que sou um

covarde” 92. A questão do olhar do Outro sobre nós surge em vários trechos da

peça, portanto, vamos destacar neste momento, aquele que talvez explicite melhor

este problema: Estelle, uma das personagens que se preocupa em manter a

beleza de sua aparência, num determinado momento se dá conta de que não 91 Huis Clos em 1993 é encenada pela quinta vez no Brasil em montagem dirigida por Antônio Abujamra. Rebatizada O inferno são os Outros, a peça marca a reabertura do Teatro Glória, no bairro do mesmo nome, na zona sul do Rio de Janeiro.(“Abujamra encena clássico de Sartre”, in: Folha de São Paulo, Ilustrada, 30 de julho de 1993). 92 SARTRE, J.P. Entre quatro paredes.Trad. de Guilherme de Almeida, 1954, p.42.

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tinha à sua disposição u espelho, através do qual pudesse ver sua própria imagem

refletida. Então Inês (a personagem homossexual), convida Estelle a mirar-se na

pupila de seus olhos. Após realizar tal experiência, Estelle sente-se intimidada e

subjulgada pelo olhar de Inês.

Quem necessita do olhar justificador, entretanto, nega-o ao Outro. Essa

batalha de consciências se processa num torturante ciclo de insatisfações. Inês

procura Estelle, porque quer seu olhar sobre ela ao mesmo tempo em que o nega

a Garcin: o mesmo acontece quando Estelle procura Garcin, e este, por sua vez,

assedia Inês. Dentro dessa perspectiva, Maciel nos afirma que:

“Essa batalha de consciências, no diz Sartre, é o mais

horrível de todos os instrumentos de tortura que podem ser usados

no inferno. Os condenados não precisam de um torturador: eles

próprios se servem... como nos restaurantes automáticos. Cada

um procura sua justificação, mas a liberdade de um sempre

termina onde começa a do Outro”.93

As preocupações filosóficas demonstradas por Sartre na peça Entre Quatro

Paredes são nitidamente inseparáveis das teses de O ser e Nada: o essencial das

relações entre consciências é o conflito. Se o Outro existe, a existência do homem

está ligada ao julgamento que o Outro faz de si.

Garcin, Inês e Estelle foram condenados ao inferno por terem assumido a

liberdade que lhes facultava sua condição humana. Sendo obrigados a torturar-se

mutuamente, descobrem o verdadeiro inferno: uma consciência não pode furtar-se

a enfrentar outra consciência que a denuncia.

A presença do Outro é uma constante em nossas vidas, mesmo nas

ocasiões em que se ocorre sua ausência física. Ainda que ninguém nos veja,

existimos sempre para todas as consciências.Garcin, ao perceber que eles 93 MACIEL, L.C. Sartre: Vida e Obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p.104.

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estariam eternamente naquele lugar de onde nunca poderiam sair, conclui

desalentado:

“(...) Vocês são só duas? Pensei que eram muitas, muitas

mais. Então isto é que é o inferno? Nunca imaginei... Não se

lembram? O enxofre, a fogueira, a grelha... Que brincadeira! Nada

de grelha. O inferno são os Outros”.94

Numa interpretação moral da peça, podemos concluir que as outras

pessoas são o inferno, porque a sua presença faz-nos recordar como foi

inadequado o nosso comportamento em determinadas situações. A situação-limite

de Huis-Clos revela a essência da relação entre o homem e seu próximo. Certa

vez, um crítico perguntou a Sartre se a situação seria a mesma no caso de

estarem reunidos no inferno um general, uma freira e uma mãe de família. Sartre

respondeu que a máscara de respeitabilidade de três personagens essa natureza

logo desapareceria, revelando idêntica má-fé. Mesmo que Che Guevara, Simone

de Beauvoir e Calvino estivessem se entreolhando, eles também não seriam

capazes de evitar que suas vidas deixassem de ser um inferno.

CAPÍTULO 3

TORTURA, VIOLÊNCIA E SITUAÇÕES-LIMITE

3.1 – O PROBLEMA DA VIOLÊNCIA E O ANIMAL HUMANO RELATADO EM TRÊS MOMENTOS DA OBRA DE SARTRE

94 SARTRE, J.P. Entre Quatro Paredes.Trad. de Guilherme de Almeida. 1954 p.52.

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O problema da violência foi tratado de formas diferentes através da obra de

Sartre. Nota-se que em muito de seus escritos ele tomou por base situações reais

das quais participou persistentemente como ativista político e escritor engajado de

sua época.

Desde 1939 quando partiu para a frente de combate na Segunda Guerra

Mundial na função de soldado meteorologista, Sartre começou a sofrer profundas

mudanças no que concerne à sua moral individualista e idealista. Fatos como a

guerra, a mobilização e o convívio em campo de concentração nazista impactaram

fortemente o seu lado de escritor pequeno-burguês e acabaram por trazer

notáveis mudanças à sua personalidade, tornando-o “um homem responsável pela

humanidade inteira”. A oposição ao colonialismo ocidental também passou a ser

uma fonte característica de Sartre a partir de 1946, somada às suas constantes

manifestações de apoio aos movimentos de libertação nacional nos países

subdesenvolvidos. Suas tomadas de posição mais vigorosas e que tiveram maior

repercussão na imprensa de todo o mundo, referem-se à independência da

Argélia, ao socialismo instalado em Cuba por Fidel Castro e à luta no Vietnã.

Entretanto, a luta pela independência da Argélia parece ter sido o momento

determinante de sua adesão à causa dos países subdesenvolvidos.

Colônia da França desde 1930, a Argélia sofreu o domínio dos franceses

por mais de um século, através da força das armas e pelo apoio da elite local.

Com a Segunda Guerra Mundial, radicalizaram-se as aspirações nacionalistas

naquele país, levando-o a um movimento revolucionário liderado pela FLN95

(Frente de Libertação Nacional), a qual entre 1954 e 1962 promoveu uma guerra

civil naquele país. A luta entre colonos e nacionalistas argelinos degenerou-se em

sangrentos atentados terroristas de parte a parte. Mas após plebiscito realizado na

França em 1961 pelo presidente Charles de Gaulle, 75% dos franceses

95 FLN (Frente de Libertação Nacional). Partido nacionalista argeliano fundado em 1954 para organizar a insurreição armada na Argélia. Em 1958, a Frente nomeou o governo provisório da República da Argélia (GPRA), com o qual a França negociou em 1962 a independência do país. A constituição de 1963 transformou a FLN no partido único da Argélia.

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declararam-se favoráveis à independência da Argélia. Assim, em março de 1962,

de Gaulle reconhece a independência argelina.

No que se refere ao relacionamento de Sartre com seu próprio país, os

últimos anos da guerra argelina estiveram entre os mais infelizes de sua vida. Ele

ficou profundamente desapontado com as declarações vindas de líderes franceses

contrários à independência da Argélia, os quais afirmavam que Sartre deveria ser

fuzilado por estar lutando por aquela causa.A forte oposição sofrida por Sartre

resultou em dois ataques à bomba feitos em seu apartamento pela OAS96, sendo

o primeiro deles realizado em 19 de julho de 1961, e o segundo em 7 de janeiro de

1962.Felizmente, em ambas as ocasiões, Sartre estava ausente de sua

residência.

Passemos agora a uma outra questão na qual Sartre também esteve

engajado: o problema do Colonialismo e Neocolonialismo em países do Terceiro

Mundo. No tocante a esta questão, Sartre escreveu um prefácio para o livro de

Fanon97, que tratava justamente desta questão.Sartre conheceu Fanon em 1961

quando este havia terminado de escrever Les Damnés de la Terre, sendo este

uma à beira da exaltação sobre a libertação dos povos colonizados, que se daria

através da violência.Um dos resultados do encontro foi o prefácio de Sartre escrito

para o livro que ficou famoso. Sobre este, Sartre fez questão de afirmar que:

“Este livro não tinha nenhuma necessidade de um prefácio.

Tanto menos que não se dirige à nós. No entanto, fiz-lhe uma para

conduzir até o fim a dialética”.98

96 OAS – Organização francesa extremista, decidida a conservar a Argélia francesa a qualquer custo. Ela almejava conseguir este objetivo, intensificando a própria guerra da Argélia através de ataques provocadores a civis árabes e em parte, aterrorizando qualquer um que defendesse na França metropolitana o fim da guerra através de um acordo negociado. 97 FANON, Frantz. Psiquiatra e teórico político francês (1925-1961). Médico em Blida, na Argélia, deixou seu posto em 1956, para reagrupar-se à FLN (Frente de Libertação Nacional) e tornar-se um dos principais teóricos do anticolonialismo. 98 SARTRE, J.P. Situations V. Paris: Gallimard, 1964, p. 148.

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Demonstrando revolta através de suas palavras, em uma das passagens

deste prefácio, Sartre fez ainda questão de sublinhar que:

“A violência colonial não tem somente a finalidade de impor

respeito a homens escravizados, procura também desumanizá-los.

Nada será poupado para liquidar-lhes as tradições, substituir-lhes

as línguas pela nossa para destruir-lhes a cultura sem dar-lhes na

nossa, embrutecer-lhes-ão de fadiga. Desnutridos, doentes, se

ainda resistem, o temor terminará o serviço: apontam fuzis para os

camponeses, vêm civis que se instalam em sua terra e obrigam-no

pelo chicote a cultivá-la para eles. Se ele resiste, os soldados

atiram é um homem morto; se cede, se degrada, não é mais um

homem, a vergonha e o medo vão fissurando seu caráter,

desintegrando sua pessoa”99

Fanon sustentava a tese de que só a luta armada e a violência poderiam

levar à libertação, países subdesenvolvidos tidos como colônias de países

europeus. E pelo menos no que se refere ao enfrentamento dessa questão, Sartre

demonstrou concordar plenamente com Fanon:

“Nossas almas são racistas. Elas aproveitarão lendo

Fanon, esta violência irreprimível ele a mostra perfeitamente, não é

uma tempestade absurda, nem a ressurreição de instintos

selvagens, nem muito menos efeito do ressentimento: é o próprio

homem se recompondo. Esta verdade a conheceríamos, penso eu,

e a esquecemos: as marcas da violência, nenhuma doçura as

apagará: é a violência que unicamente pode destruí-las.”100

99 SARTRE, J.P. Situations V .Paris: Gallimard, 1964, p. 144. 100 Ibid, p.149.

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Num plano mais pessoal, a determinação de Sartre aliar-se mais

intimamente àqueles que seu país explorou de forma vergonhosa, levou-o em

1965, a dar um passo bastante curioso.Este reside no fato de naquele mesmo

ano, Sartre ter adotado uma moça argeliana. Seu nome: Arlette El-Kaim.

Estudante de filosofia, ela defendia entusiasticamente as idéias de Sartre, tendo

algumas vezes sido repreendida por seus professores. Nos anos que se

sucederam, Arlette desempenhou um importante papel como secretária de Sartre,

colaborando com importantes publicações deste filósofo. Foi ela quem editou o

sumário das conclusões alcançadas pelo Tribunal de Russel101, e quem preparou

o texto em inglês intitulado On Genocide elaborado por Sartre, além de um

sumário de provas e julgamentos do Tribunal Internacional de Crimes de Guerra.

Neste momento, vamos discorrer sobre mais um problema que mereceu a

atenção de Sartre: a Questão Judaica.

Sartre publicou o livro Reflexões Sobre a Questão Judaica em 1946, logo

após o término da Segunda Guerra Mundial. Ele considerava esta fase, própria

para eventuais “ajustes de contas”. E segundo ele, havia muitas contas a ajustar,

sobretudo na França, onde o colaboracionismo havia sido um fenômeno

disseminado, que serviu para auxiliar os alemães em seus objetivos no que se

refere ao extermínio do povo judeu.

Sob o nazismo, o anti-semitismo francês ganhou força: milhares de judeus

foram denunciados, presos, deportados e enviados para o massacre em campos

de extermínio.

Mas por outro lado, a França possuía a Resistência, da qual Sartre fazia

parte.Assim, após a libertação da França, os fatos vieram à tona, fazendo com

que colaboracionistas fossem presos e julgados.

101 Em 1967, Sartre aderiu à idéia de Bertrand Russel de formar um tribunal de intelectuais de todo o mundo para julgar Lyndon Johnson e o governo dos Estados Unidos, com criminosos de guerra em vista das atrocidades cometidas pelas tropas norte-americanas no Vietnam.

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A Questão Judaica é um livro curto, cujo objetivo seria o de despertar as

consciências para o problema do preconceito contra os judeus. Num determinado

momento de sua vida, Sartre afirmou que passou a ter uma ligação profunda com

alguns judeus, entre os quais: Arlette El-Kaim (sua filha adotiva), Benny Lévy (seu

discípulo e secretário particular), e Annie Cohen-Solal (sua biógrafa). Conhecendo

mais intimamente essas pessoas, Sartre tinha um poderoso motivo para lançar luz

sobre a face oculta da sociedade francesa. Em algumas passagens do livro, ele

menciona nomes de dois homens, aos quais ele “ataca” com palavras ásperas.

Seus nomes são: Charles Maurras e o romancista Louis-Ferdinand Céline, sendo

este último um colaboracionista que veio posteriormente a ser julgado e

condenado. Fatos como estes, fizeram com que o livro se tornasse ainda mais

polêmico. Some-se a isso a declaração feita por Sartre em certa ocasião, na qual

ele afirmou que este livro seria uma forma de ele declarar guerra ao anti-

semitismo, conforme ele deixa bem claro na seguinte citação:

“E divertido ser anti-semita. Pode-se espancar e torturar

sem medo os judeus: quando muito, estes irão apelar para as leis

da república, e as leis são brandas. (...) Destruidor por ofício,

sádico de coração puro, o anti-semita é no fundo do coração, um

criminoso. O que ele deseja, o que ele prepara é a morte do

judeu”.102

Com efeito, nem todos os inimigos do judeu exigem explicitamente sua

morte, mas tomam atitudes que visam rebaixá-lo, humilhá-lo e baní-lo do convívio

social. E todas estas atitudes podem ser consideradas como homicídios

simbólicos. Através da prática do anti-semitismo, os homens demonstram sua

condição animal contra os judeus, visto que ambos não se diferenciam no que se

refere à sua condição humana. Os judeus diferenciam-se por sua religião e por

alguns costumes que deveriam ser respeitados. Ou, como afirma Sartre: 102 SARTRE, J.P. Reflexões sobre a Questão Judaica. São Paulo: Ática, 1995, p. 32-33.

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“O anti-semitismo é, em resumo, o medo em face da

condição humana. O anti-semita é o homem que quer ser rocha

implacável, torrente furiosa, raio destruidor – tudo, menos

homem”.103

3.2 – A TORTURA NA VISÃO DE SARTRE

La Question O tema da tortura aparece insistentemente na obra de Sartre. Poderemos

encontrá-lo inscrito em algumas de suas peças de teatro, contos e prefácios de

livros e artigos escritos para jornais e revistas de sua época.

Dessa forma, pretendemos aqui nos ater a três ocasiões em que Sartre

utilizou-se desta questão para chamar a atenção de leitores e líderes políticos no

que se refere a este problema.

Comecemos por um fato real ocorrido com um jornalista de origem

comunista chamado Henri Alleg, durante a Guerra da Argélia. Em junho de 1957,

Alleg havia sido preso por tropas de pára-quedistas franceses naquele país, e

mantido durante um mês como prisioneiro. Durante este tempo, ele foi brutalmente

torturado e presenciou outros prisioneiros árabes e europeus serem submetidos

ao mesmo tratamento. O governo francês permitia, e, portanto praticava a tortura

na Argélia. Em fevereiro de 1958, Alleg publicou o relato de suas experiências em

um livro intitulado La Question, o qual foi imediatamente proibido pelo governo

francês.

103SARTRE, J.P. Reflexões sobre a Questão Judaica, p.35.

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Sartre encarregou-se de escrever o prefácio deste livro, ao qual nomeou

Une Victoire. Este prefácio apareceu na revista L’Express, que foi apreendida pela

polícia em 6 de maio de 1958, em Paris.

Vejamos um trecho do prefácio escrito por Sartre para o livro de Alleg,

aonde ele expressa sua vergonha por tais atos cometidos pelos franceses contra

os argelianos:

“Em 1943, na Rue Lauriston104, havia franceses que

gritavam de angústia e de dor, a França inteira os ouvia. O

resultado da guerra ainda era incerto e não queríamos pensar no

futuro. Uma coisa única parecia-nos impossível: que um dia, em

nosso nome, se pudesse fazer os ouros gritarem. O impossível não

é o francês: em 1958 em Argel, tortura-se regularmente,

sistematicamente, todo o mundo o sabe, desde o senhor

Lacoste105 até os agricultores do Averyon, mas ninguém fala sobre

isso. Ou quase ninguém (...) A França está tão muda como durante

a Ocupação, mas até então, havia a desculpa de que o país estava

amordaçado. No estrangeiro já se chegou a uma conclusão: nós

não cessamos de degradar-nos”.106

Sartre via o problema da tortura dentro de um contexto especificamente

político. Na base do uso sistemático desta, Sartre reconhece um projeto mais

importante do que a simples coleta de informações. O objetivo preciso da

colonização seria neste caso, o de transformar os nativos em criaturas sub-

humanas. Sua única função seria então servir os homens “por direito divino”, da

nação colonizadora, e a tortura funcionaria como a arma exatamente adequada a

104 Aqui, o escritor refere-se às instalações que a Gestapo possuía nesta rua de Paris durante a Ocupação alemã. 105 Ministro residente da Argélia desde fevereiro de 1956 até maio de 1958. 106 SARTRE, J.P. Une Victoire (prefácio do livro La Question e Henri Alleg). Paris: Gallimard, 1958.

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esta ambição. No caso da guerra da Argélia, a prática da tortura serviu para

destruir em cada vítima em particular o silêncio e a resistência de todo um povo.

Mas quando um homem consegue como Alleg, resistir a todo tipo de tortura

e ao mesmo tempo silenciar-se, ele coloca em evidência a condição animal dos

torturadores, os quais só podem vencer negando sua própria humanidade.

Em O Ser e o Nada, Sartre afirma que o “homem permanece livre mesmo

sob tortura”.Com esta afirmação, ele pretende dizer que pelo fato de a tortura ser

uma situação extrema, no momento em que ela ocorre, a liberdade humana

aparece de uma forma mais pura e o torturado poderá optar sobre o modo como

reagirá àquela tortura.

Os Seqüestrados de Altona Ainda durante a Guerra da Argélia, Sartre escreveu a peça “Os

Seqüestrados de Altona”, que tinha na tortura, um dos componentes de seu

enredo.

Vamos, portanto, neste momento, fazer uma breve análise desta peça,

como o segundo exemplo que escolhemos para demonstrar como Sartre tratou o

problema da tortura em sua obra.

Os Seqüestrados de Altona, escrita em 1959, é considerada por críticos

como umas das melhores e mais originais peças escritas por Sartre. Conforme ele

confessou certa vez durante uma entrevista, seu objetivo nesse caso, era dar um

retrato aos franceses da consciência de um torturador. Num momento em que os

franceses praticavam a tortura na Argélia, o espelho nazista era perfeitamente

adequado. Naquela época Sartre se encontrava em plena campanha contra a

Guerra da Argélia e através da peça conseguiu combinar o comprometimento

político com o estudo generalizado da condição humana que caracteriza a

literatura existencialista. Assim como em As Moscas, em Os Seqüestrados de

Altona as idéias foram expressas por alegoria.

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A peça estreou em Paris no Théàtre de La Renaissance a 23 de setembro

em 1956, permanecendo até 4 de junho de 1960 e possuía quatro horas de

duração. A história passa-se na Alemanha de 1956 e descreve os esforços feitos

por um oficial alemão para esconder de si próprio o real significado das torturas a

que ele submeteu um grupo de partisans107 russos durante a Segunda Guerra

Mundial.Assim, desde o término da guerra em 1946 e após a derrota nazista,

Frantz Von Gerlach vivia trancado no sótão da casa de seu pai, onde passa anos

sem se comunicar com ninguém da família, com exceção de sua irmã Leni, com

quem vive uma relação incestuosa. Dado como oficialmente morto Frantz não

sabe dos acontecimentos políticos do pós-guerra. Desconhece a reconstrução da

Alemanha Ocidental com a ajuda dos norte-americanos vitoriosos.

O pai de Frantz costuma enviar mensagens ao filho através de Leni, que,

no entanto, não as entrega, com o intuito de preservar de qualquer influência

externa seu relacionamento incestuoso com o irmão. Porém, o pai, Gerlach, está

sofrendo de câncer e terá somente mais seis meses de vida, por isso, necessita

falar urgentemente com o filho, pois diante das circunstâncias, pensa em cometer

suicídio. Assim, Gerlach consegue enviar a mensagem ao filho, através de

Johanna, cunhada de Frantz e esposa de seu irmão Werner.Quando Frantz

recebe visita de Johanna, seu mundo ilusório desaba, e ele volta à realidade,

tendo de abandonar sua postura de má-fé. Ele descobre que a Alemanha tornou-

se o país mais próspero da Europa Ocidental, precisamente devido á derrota que

ele diz ter desesperadamente tentado evitar através das torturas que infligiu aos

partisans.

Johanna possuía um amor imaginário por Frantz, que desmorona quando Leni

conta a ela a verdade. Assim, Johanna volta para seu marido Werner, enquanto

Frantz, confrontado por um mundo em que nenhuma de suas ações fazem

sentido, sai com seu pai, para ambos cometerem suicídio em um passeio de carro.

Já Leni, opta pelo seqüestro voluntário e tranca-se no quarto de Frantz, passando

a viver isolada de tudo e de todos dali em diante.

107 Partisan – Combatente voluntário não pertencente a um exército regular e que luta por um ideal nacional, político, religioso, etc (designa mais especificamente os guerrilheiros da Resistência contra os invasores nazi-fascistas na França, na Itália, Bálcãs, etc durante a Segunda Guerra).

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Através da peça, pode-se concluir que Frantz oscilava entre a negação de

que tivesse torturado alguém (má-fé), e a afirmação de que só a tortura poderia ter

evitado uma derrota desastrosa dos alemães. Na última cena, quando Frantz vê o

pai novamente após treze anos, concorda em cometer suicídio juntamente com

ele, somente sob uma condição: seu pai teria de reconhecer que era responsável

por tudo o que havia acontecido.

Mas Frantz, sabendo que só poderia acreditar nisto por um curto período de

tempo, sugere que eles se suicidem imediatamente. Em suma: conclui-se daí, que

Frantz passou todos aqueles anos fugindo de suas responsabilidades, e continuou

fazendo-o até o fim de sua vida. Assim termina a peça.

Entretanto, conforme afirmou Sartre em um debate no Teatro Natal em São

Paulo por ocasião de sua visita ao Brasil em 1960, Sartre afirmou que embora a

trama de Os Seqüestrados de Altona se passasse na Alemanha, era na verdade,

o caso da Argélia que ele estava fixando.Porém era preciso tomar uma certa

distância para que o tratamento do tema não fosse repudiado.

“Na França todos perceberam que, embora Les Seqüestres

d’Altona se passe na Alemanha, era o caso da Argélia que eu

estava fixando. Precisa-se de uma certa distância, sem o que todos

repudiariam o tratamento do tema. Uma sociedade culpada que

imputa a si mesma certos crimes reconhece-os logo na família

alemã que aceitou o regime nazista. Aqueles que participam de um

mecanismo de opressão acabam também, inevitavelmente, por

torturar. Mas para uma sociedade que não carrega semelhante

fardo, talvez escape o verdadeiro significado da peça.

Conversando, certa vez, com uma jornalista sueca, expus minhas

dúvidas se Os Seqüestrados de Altona interessaria ao público de

seu país Na Suécia não existe a consciência do marasmo, de

apodrecimento, trazida pela política colonialista. Ela replicou então,

que a peça interessaria de qualquer modo, pois os suecos haviam

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sofrido com os alemães. Verifiquei imediatamente que ela havia

compreendido às avessas o que pretendi exprimir no texto”.108

O Muro

Num terceiro exemplo de como Sartre trabalhou a questão da tortura em

sua obra, podemos nos tomar como exemplo o conto “O Muro”. Um ano após a

publicação de La Nausée em junho de 1939, Sartre publicou seu segundo livro de

ficção: um volume de cinco contos, intitulado Le Mur. Este é talvez considerado o

livro mais conhecido de Sartre nos países de língua inglesa.O primeiro conto Le

Mur (O Muro, em português) que dá título ao livro, tem como protagonista o

personagem principal Pablo Ibbieta, o qual é colocado frente a frente com a tortura

e a morte.

Ibbieta, durante a Guerra Civil espanhola é aprisionado pelos fascistas que

o ameaçam de fuzilamento caso ele não revele o esconderijo de seu chefe Ramón

Gris.A partir daquele momento, ele vê seus companheiros de cela sendo fuzilados

um por um, e resolve protelar sua morte, indicando um falso esconderijo aos

inimigos, na esperança de salvar o chefe e aguarda a descoberta da mentira.Após

refletir por algum tempo, Ibbieta tenta pregar uma peça nos fascistas, ao dizer que

seu chefe está escondido no cemitério, em um túmulo ou na cabana dos

coveiros.Logo após, quinze homens partem daquele local para averiguarem se

realmente era verdade o que Ibbieta dissera. O homem que o interrogara minutos

atrás prometera que se Ibbieta estivesse falando a verdade, seria libertado

imediatamente.

“Partiram com ruído e eu esperei pacatamente sob a guarda dos

falangistas. De quando em quando sorria porque imaginava a cara

que eles iam fazer. Sentia-me embrutecido e malicioso. Imaginava-

os levantando as lápides, abrindo, uma a uma, a porta dos

108 ROMANO, L. A. C. A Passagem de Sartre e Simone de Beauvoir pelo Brasil em 1960.São Paulo: Fapesp, 2002, p.327.

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túmulos. Eu me representava a situação como se fosse outro. Esse

prisioneiro obstinado a bancar o herói, esses graves falangistas

com seus bigodes e esses homens uniformizados correndo entre

os túmulos, todo era de um cômico irresistível”.109

Entretanto, em meio àquelas circunstâncias, outra situação-limite se revela: o

acaso e contingência que governam a realidade.O chefe Ramón Gris, por

precaução, abandonara seu esconderijo e refugiara-se no local indicado por

Ibbieta, ou seja: no cemitério. É encontrado e morto. Ao descobrir o que

aconteceu, Ibbieta explode num riso histérico.

Garcia (o padeiro): “– Pegaram o Gris. (...) Esta manhã.

Ele fez besteira. Deixou o primo terça-feira porque tiveram

uma briga. Não faltaria quem se dispusesse a escondê-lo,

mas ele não queria comprometer ninguém. ‘Ia me esconder

na casa do Ibbieta’ – disse ele –‘ mas como ele foi preso,

vou me esconder no cemitério’ “.110

Pablo Ibietta: “Tudo se pôs a girar e me surpreendi

sentado no chão – ria tão forte que as lágrimas me vieram

aos olhos”.111

3.3 – O TERMO SITUAÇÕES-LIMITE COMO PARTE INTEGRANTE DO TEATRO DE SITUAÇÕES DE SARTRE

109 SARTRE, J.P. O Muro (trad de H. Alcântara Silveira). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. 110 Ibid, p.33. 111 Idem, Ibid.

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Dentre suas inúmeras realizações como filósofo, romancista, crítico literário,

ensaísta e escritor engajado politicamente, foi através do teatro que Sartre tornou-

se mais conhecido publicamente.Se considerarmos afirmações de críticos de sua

época, parece-nos ser lícito afirmar, que o teatro é o lugar onde se coloca em

cena quase a totalidade de suas teses.

Considerado um dos intelectuais mais importantes de nosso tempo, Sartre

conseguiu demonstrar através de sua obra as inquietações das gerações do pós-

guerra. Seu teatro repercute grandemente ainda hoje, tanto no que concerne ao

estudo acadêmico, quanto à encenação de suas peças em vários países do

mundo, inclusive no Brasil. Sendo assim, parece-nos impossível separar o filósofo

do dramaturgo, já que sua filosofia encontra-se quase que totalmente arraigada

nos temas de suas peças. O ponto-chave do teatro sartriano expressa-se através

da ação de suas personagens, como explica o crítico Sábato Magaldi:

“O homem sartriano se define pela ação. Daí ser

absolutamente válido assimilar-se a ética de Sartre ao

conceito de teatro, concluindo que o palco é o lugar ideal

para a realização de seu pensamento e de sua arte”.112

A citação anterior no remete à seguinte indagação: até que ponto a

dramaturgia de Sartre pode ser considerada apenas um instrumento de suas

idéias filosóficas?

Benedito Nunes procura responder a esta questão ao argumentar que:

112 MAGALDI, S. Sartre: Dramaturgo Político. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1964, p.109.

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“Encontramos na dramaturgia de Sartre um jogo dialético,

sustentando e justificando a ação dramática. É essa dialética da

liberdade humana traz em si mesma nos limites específicos do

tempo do drama, o sentido e as idéias que a constituem e

esclarecem. As idéias não vêm de fora, não são extrínsecas à ação

teatral”.113

O Teatro de Situações de Sartre caracteriza-se por um eterno conflito entre

a consciência do homem tentando agir livremente, e a situação enfrentada por ele

em determinado momento, que lhe demarca limites à sua ação. Ou seja, o homem

é livre, enfrenta as mais diversas situações e vê-se obrigado a fazer escolhas

diante dessas situações E diante dessas situações de decisões extremas, o

homem entra em confronto com o seu meio, o que o leva a refletir sobre sua

própria condição. E esta forma de teatro contribui dentro desse contexto, pois o

que o teatro pode mostrar de mais verdadeiro é exatamente o momento de

escolha, de livre decisão, por isso, falar em Teatro de Situações é inevitavelmente

falar em Teatro da Liberdade. E na obra de Sartre, não é possível falar de

liberdade sem se referir à situação.Através das situações surgem obstáculos, e a

liberdade necessita justamente destes para se afirmar. Ela necessita de um

campo de resistência no mundo, de algo que a contrarie. Em suma: sem

obstáculos, não há liberdade.

“A situação é o obstáculo que se deve transpor para se

realizar os fins escolhidos, sem a situação a liberdade se

desvaneceria, sendo que a liberdade se afirma mais claramente

quando sujeita a maiores pressões, quanto maior o obstáculo,

quando a situação é extrema, daí a afirmação de que os franceses

113 NUNES B. Reflexão sobre o Teatro de Sartre. “O Estado de São Paulo”, Suplemento Literário, p.4, 1960.

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nunca foram tão livres quanto durante a ocupação alemã na

Segunda Guerra”.114

Uma situação é geralmente definida pelo lugar que o homem ocupa, pelo

seu passado imutável, pelo seu corpo e pela existência do Outro. Através destas

características peculiares a seu ser, o homem se depara com obstáculos e

resistências que não foram criados por ele e que não pode evitar. Entretanto, irá

depender do projeto de cada homem o fato de uma determinada situação adquirir

aspectos favoráveis ou negativos. Por isso, Sartre rejeita os gêneros da tragédia e

do drama burguês, para optar pelo Teatro de Situações, posto que neste é

mostrado o momento de livre escolha do indivíduo em uma determinada

situação.O teatro para Sartre tem a função de mostrar as opões e implicações de

quando o indivíduo faz sua escola perante a vida, sendo esta composta de

sucessivas situações-limite.Certa vez durante uma entrevista, Sartre afirmou que

não há diferença entre o teatro e a vida. Esta afirmação reside justamente no fato

de que o homem define-se nas situações, e o Teatro de Situações, seria dessa

forma, o locus privilegiado da captura do momento em que o homem faz escolhas

e assume suas eventuais conseqüências. Note-se o seguinte exemplo de Sartre:

“Se o teatro deve mostrar o momento de livre escolha em uma

determinada situação, então para Sartre não é adequado à nossa

época o drama psicológico que coloca em cena o conflito entre

caracteres prontos. O enfoque passa a ser agora a ação dos

personagens, isto é, a ação de um personagem não é determinada

pelo seu caráter, mas seu caráter é determinado por sua ação O

ato joga o expectador acima do plano psicológico para colocá-lo no

plano moral. (...) O teatro de Sartre tem a liberdade não só como

114 ALVES, I.S. Que é Teatro de Situações? In: O Drama da Existência. São Paulo: Humanitas, 2003, p. 110.

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condição de possibilidade, mas também como tema

fundamental”.115

Dessa forma, o teatro deve mostrar o momento de livre escolha, dando

enfoque à ação dos personagens. O dramaturgo deve escolher temas e situações

com as quais o público se identifique e que estejam amplamente relacionados com

a vida real, para que essas situações possam tocar o expectador.A função dos

atores também é fator fundamental.Suas palavras e gestos devem conter grande

ênfase, com o objetivo de impressionar o expectador o máximo possível.

“O papel do dramaturgo é pôr em cena conflitos que apaixonem e

interessem ao expectador, que são conflitos de direitos atuais,

engajados em uma vida real. E dada a diversidade do público, o

dramaturgo deve escolher situações tão gerais que digam respeito

a todos”.116

Em suma: o enfrentamento dessa questão baseia-se na compreensão de

que diversas situações que ocorrem durante nossa existência podem ser

consideradas como situações-limite, e ao nos depararmos com elas temos de

fazer nossas escolhas, o que nos torna responsáveis pelas eventuais

conseqüências advindas destas escolhas. De acordo com Sábato Magaldi:

“O homem sartreano se define ela ação. O drama,

também, por sua própria etimologia. Daí ser absolutamente válido

115 ALVES, I.S. Que é Teatro de Situações? In: O Drama da Existência.São Paulo: Humanitas, 2003, p. 111. 116 ALVES, I.S. Que é Teatro de Situações: In: O Drama da Existência. São Paulo: Humanitas, 2003, p. 110.

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assimilar-se a ética de Sartre ao conceito de teatro, concluindo-se

que o palco é o lugar ideal para a realização de seu pensamento e

de sua arte. A cada instante, a personagem sartreana fica dividida

pela necessidade de escolha, e a resposta ao dilema se traduz

sempre por um ato ou um gesto. O homem se fazendo, se

inventando em face de novas situações explica a trajetória de

Sartre para um futuro amoldável, e o palco traz também a angústia

do vácuo em direção a um mundo que é incessantemente criado.

Impelido muitas vezes por situações forjadas, com o objetivo de

mostrar uma concepção própria do homem, o teatro de Sartre

nunca deixa por isso de ser teatral. Não se trata, propriamente de

uma dramaturgia de tese. É o próprio teatro se pensando”.117

CAPÍTULO 4

CONSIDERAÇÕES SOBRE A PEÇA “MORTOS SEM SEPULTURA” DE JEAN-PAUL SARTRE

4.1 – MORTOS SEM SEPULTURA Dentre as peças escritas por Jean-Paul Sartre, talvez a que melhor tenha

explorado a questão das situações-limite, seja Mortos sem Sepultura.Escrita em

1945, o enredo se passa em 1943, na época em que os exércitos nazistas

invadiram a França. Foi montada no Théàtre Antoine em Paris, no ano de 196.

Naquela época, iniciava-se a Guerra Fria118 e a direita pretendia “enterrar o

117 MAGALDI, S. Sartre: Dramaturgo Político. In: Aspectos da Dramaturgia Moderna. São Paulo, 1964, p. 109. 118 Guerra Fria – Expressão que define o período marcado por permanente tensão política entre as potências do Ocidente após a Segunda Guerra Mundial, tendo de um lado a liderança da ex-URSS e de outro o bloco sob influência dos EUA. O termo surgiu para refletir a situação de hostilidade e corrida armamentista crescentes, que em algumas ocasiões esteve próxima da deflagração de um confronto armado real de proporções apocalípticas. O período da Guerra Fria foi caracterizado por dois grandes conflitos locais: A

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passado” o mais rápido possível. Assim, no momento em que os antigos traidores

ameaçaram “levantar a cabeça”, Sartre julgou oportuno reavivar a memória dos

franceses através da peça. Esta é dividida em quatro quadros e estes,

subdividem-se em cenas.Composta por nove personagens, seis deles são

patriotas, membros da Resistência Francesa durante a Segunda Guerra Mundial

(também chamados de maquis119 ).São eles: Jean (o líder do grupo), Lucie

(namorada de Jean); Canoris, Henri, Sorbier e François (um garoto de apenas

quinze anos, irmão de Lucie).

Os outros três personagens são soldados franceses, colaboracionistas dos

exércitos alemães: Clochet, Landrieu e Pellerin. Estes pretendem descobrir o local

do esconderijo do chefe dos maquis, para capturá-lo.

Na peça, temos de um lado os resistentes, que têm entre si, um pacto

firmado de não dizerem nada, e de outro lado, os colaboracionistas, que estão

dispostos a submeter os resistentes aos mais diversos tipos de tortura, para

obterem deles as informações de que necessitam. Dessa forma, encontramos

expressa uma batalha ferrenha entre dois campos visivelmente opostos. Quando

os presos não falam nada durante a tortura, sentem que estão vencendo, mas

desde que expressem suas dores, ainda que seja pelos gritos, os torturadores

sentem-se vitoriosos. Mas ainda que sejam levados à morte, a intenção dos

resistentes é não deixar que os torturadores saiam vitoriosos.

No início da peça, os resistentes já se encontravam presos e algemados em

um sótão semi-escuro na penumbra de um antigo prédio, local de onde aguardam

serem chamados para interrogatório. O local da tortura é uma antiga sala de aula

do mesmo prédio, para a qual os maquis são chamados um a um.

Guerra da Coréia, na década de 50, e a Guerra na Indochina, que durou desde o início dos anos 60 até o início da década de 70. O período testemunhou também a divisão da Europa em dois blocos militares antagônicos: a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), no lado ocidental, e o Pacto de Varsóvia, na Europa Oriental. Muitos analistas consideram as revoltas que as revoltas civis no leste europeu e na ex-URSS em 1989 levaram ao fim da Guerra Fria. (cf Enciclopédia Larousse). 119 Maquis – Membros da Resistência Francesa durante a Segunda Guerra Mundial, que se escondiam dos alemães e colaboracionistas para escapar da vingança. Geralmente, seu esconderijo de dava em locais constituídos por vegetações predominantemente arbustivas de formação densa e de difícil penetração.

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Inicialmente na peça, através dos diálogos, nota-se que os próprios

resistentes se encarregam de se torturar por estarem ali e não poderem mais lutar

pela libertação de seu país.

O primeiro a ser chamado à sala de tortura é Sorbier, que se considera o

mais fraco de todos, pois teme falar. Mas resiste na primeira vez, retornando ao

sótão um tanto ferido e sentindo-se humilhado pelos torturadores.

Jean, o chefe, não estava presente no início da trama, mas os milicianos

inadvertidamente, o prenderam e o levaram ao mesmo local onde estavam os

outros, sem saberem que ele era o chefe dos maquis. Agora, os prisioneiros

teriam algo a esconder, e isso era muito importante para o seu fortalecimento.

Assim, eles não seriam torturados por nada. Mas ao se encontrar preso

juntamente com seus liderados, Jean sente-se excluído do grupo, pois eles já não

mais compartilhavam da mesma realidade (Jean não será levado à tortura, já que

os colaboracionistas não sabem quem ele é). Por esse motivo, ele se tortura a

todo o momento, por não estar passando pelo mesmo sofrimento que seus

companheiros.

O segundo preso a ser levado à tortura, é Canoris. Ele tem a postura de um

homem que enfrenta a tortura a está pronto para morrer a qualquer momento. Mas

se puder sobreviver a tudo aquilo sem se portar como um traidor ele escolherá a

vida, com todos os novos desafios e responsabilidades que ela trouxer. Assim,

Canoris tem a atitude que Sartre aprova, ou seja, ele exerce sua liberdade através

de suas escolhas, assumindo sua responsabilidade por elas, sem desculpas.

Começa o Segundo Quadro da peça. Aqui, tem início uma conversa entre

os torturadores, através da qual Sartre procura mostrar como se dá a relação

entre eles. Landrieu, Pellerin e Clochet travam um diálogo através do qual, pode-

se perceber que Clochet pretende se sobressair em relação aos outros dois, além

de demonstrar grande frieza em relação ao trabalho que exerce, adotando dessa

forma, uma postura sádica. Landrieu, por sua vez, mostra um certo

arrependimento por estar servindo aos alemães, apesar de ser o verdadeiro líder

dos torturadores e milicianos que se encontravam naquele lugar. Já Pellerin, diz

não se arrepender de nada.

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Desta vez, Henri é levado à tortura. Neste ponto da peça, Sartre nos dá

uma descrição dos tipos de tortura aos quais Henri é submetido, os quais veremos

mais à frente deste texto. Mas os soldados não conseguem arrancar nada dele,

senão gritos. Pouco tempo depois ocorre a volta de Henri ao

sótão.Consecutivamente, Sorbier é levado novamente à tortura, pela segunda vez

no mesmo dia. Os colaboracionistas vêem-no como um covarde e acreditam que

se ele for pressionado com maior rigidez, acabará por revelar quem é seu chefe.

Entretanto, neste momento, em meio àquela situação-limite, Sorbier toma uma

atitude totalmente inesperada: após distrair os torturadores, salta sobre o

parapeito da janela, pulando prédio abaixo, suicidando-se, talvez por considerar

que aquela seria a melhor solução naquele momento.Porém, antes de fazê-lo,

através de sua última fala na peça, ele se declara vitorioso por não ter delatado

seu chefe. Aqui, Sartre ressaltou a questão da escolha de Sorbier, que culminou

com um trágico desfecho.

Tem início o Terceiro Quadro da peça. Lucie é a próxima a ser levada à

presença dos três carrascos, que a estupram, passando pouco mais de duas

horas em poder dela.Quando Lucie retorna ao sótão, já não se senta mais a

mesma pessoa, e percebe não ser capaz de sentir amor por mais ninguém nem

mesmo por Jean. Aqui, nota-se que ela começa a mudar de postura em meio

àquela situação-limite que vivia, visto que antes da tortura possuía um

determinado comportamento, e após a tortura, havia mudado de postura em

relação aos fatos. Jean, por sua vez, continua torturando-se a si próprio, e diz ser

o mais infeliz entre todos eles, apesar de não ter sofrido fisicamente como seus

companheiros. Estes, por sua vez, responsabilizam ao próprio Jean pelo mal que

ele sente. François, irmão de Lucie, era o único a não assumir a culpa por estar

ali, e afirmava ter feito apenas o que lhe mandaram fazer, tendo assim, a atitude

que Sartre denomina como “má-fé”. Nos constantes diálogos que ocorrem entre os

prisioneiros do sótão, todos percebem que François está apavorado, e na primeira

chance que tiver, delatará Jean, o chefe do grupo. Diante deste fato, seus

companheiros decidem matá-lo, com o consentimento de sua própria irmã, Lucie

(na cena, Henri aperta-lhe a garganta, e nenhum dos outros o detém, o que faz

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com que todos eles sejam responsáveis pela morte de François). Posteriormente,

Henri diria que resolveu matar François, porque acreditava que tanto ele como os

outros teriam poucas horas de vida a mais do que François, por isso, não se

sentia culpado por tê-lo matado.

Neste momento da peça, restam apenas restam apenas três sobreviventes:

Lucie, Henri e Canoris, fora seu líder Jean, que logo seria solto pelos

colaboracionistas. Antes de ser solto, porém, Jean revela aos três um plano para

livrá-los de subseqüentes torturas: após ser solto, Jean resgataria o corpo de um

amigo já morto, que se encontrava dentro de uma gruta, e colocaria seus

documentos no bolso do cadáver. Sua intenção era fazer com que os

colaboracionistas pensassem que o cadáver era dele.Jean pediu aos três

sobreviventes, que este plano fosse revelado aos colaboracionistas somente

quatro horas após sua partida, de modo que ele tivesse tempo suficiente para

executá-lo.

No dia seguinte, os três prisioneiros são chamados para interrogatório

novamente, mas desta vez, juntos. Os carrascos descobrem que na noite anterior,

em conjunto, eles decidiram optar por assassinar François. Na cena que segue,

Lucie, Henri e Canoris decidem contar aos torturadores a história inventada por

Jean, na qual os carrascos parecem acreditar, posto que mandam alguns

soldados milicianos para averiguarem se é verdadeira. Mas mesmo sem ter

certeza da verdade, Clochet atira neles pelas costas no momento em que estão

indo embora, matando aos três, demonstrando uma violência desnecessária

naquele momento. Termina a peça.

Podemos encontrar vários aspectos da filosofia de Sartre arraigados no

enredo de Mortos Sem Sepultura. Esta pesquisa não busca esgotar a análise de

tal obra, porém, pretendemos destacar aqui, alguns pontos que consideramos

relevantes para uma análise mais aprofundada da peça, o que procuraremos fazer

nas próximas páginas desta pesquisa.

96

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4.2 – AS PERSONAGENS EM MEIO A SITUAÇÕES DE LIBERDADE E ESCOLHA

PRIMEIRO QUADRO

Um sótão iluminado por uma trapeira120, confusão de objetos heteróclitos: arcas, um fogão

velho, um manequim de costureira. Canoris e Sorbier estão sentados. Um numa arca, outro num

mocho velho. Lucie no fogão. Estão algemados. François caminha de um lado para o outro. Está

também algemado.Henri dorme, deitado no chão.121

Assim inicia-se o Primeiro Quadro de Mortos sem Sepultura. A breve

descrição vista acima nos dá uma idéia da situação dos maquis logo após sua

captura pelos colaboracionistas. Do lado de fora do prédio, havia cerca de 300

resistentes mortos, que podiam ser avistados pela janela do sótão (trapeira).Neste

momento, têm início os primeiros diálogos entre os prisioneiros. Em algumas das

falas, podemos comprovar o quanto eles se culpavam por não poderem mais lutar

pela resistência de seu país contra os alemães (o que não deixa de ser uma

escolha).

Sorbier: Morreram muitos outros. Mulheres e crianças.

Mas eu não dei pela morte deles. Ao passo que a miúda, ainda

parece que a ouço gritar. Não podia guardar só para mim esses

gritos.

Lucie: Ela tinha treze anos. Foi por nossa causa que

morreu.

120 Abertura ou janela sobre o telhado. 121 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura.Trad. Francisco da Conceição. Lisboa: Presença Editorial, 1965, p. 11.

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Sorbier: Foi por nossa causa que todos morreram.122

Neste capítulo, nos propusemos a abordar o problema da Liberdade e da

Escolha, na concepção de Sartre, relacionando estes conceitos ao comportamento

das personagens na peça. Parece-nos um tanto quanto contraditório empregar o

conceito de Liberdade em uma situação tão específica quanto a tortura, visto que

desde o início do enredo todas as personagens já se encontravam presas e

aguardando para serem interrogadas.

Os Resistentes franceses tinham em comum o projeto de não delatarem

seu chefe, independente do que acontecesse. Tratava-se de um plano

coletivo.Entretanto, neste caso poderia ser levado em conta o lado individual de

cada um dos presos, visto que durante a tortura cada um deles estaria sozinho,

tendo assim, a opção de continuar fiel ao pacto resistindo aos diversos tipos de

tortura, por mais cruéis que fossem; ou poderiam quebrar o silencio, delatando seu

chefe. Aqui, faz-se interessante notar, que apesar dos resistentes estarem presos

em poder dos colaboracionistas, ainda possuíam a Liberdade de Escolha, e esta

segundo Sartre, depende única e exclusivamente do próprio homem, somente ele

pode escolher o que poderá ser no momento seguinte de sua vida, ou seja,

somente o homem pode escolher o seu destino.

Embora houvesse um forte pacto de não cederem à tortura, todos se

encontravam em meio a uma situação-limite, portanto, o acordo estabelecido

previamente entre eles, se concretizaria no plano individual, quando cada um

deles fosse chamado para interrogatório.

Porém neste momento, surge-nos a seguinte pergunta: Os resistentes

encontravam-se presos naquele local por escolha própria?

Se considerarmos o raciocínio concebido por Sartre, no qual ele afirma que

o homem escolhe o tempo todo e em todas as situações, então podemos

considerar afirmativa a resposta a esta questão.Os seis prisioneiros haviam

escolhido resistir à investida alemã na França, e a partir do momento em que 122 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura, p.11.

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fizeram tal opção, sabiam que poderiam sofrer conseqüências por tal ato, assim

sua prisão naquele momento era uma conseqüência do exercício de suas

liberdades. Entretanto, um deles (François, irmão de Lucie) escolheu adotar o

comportamento que Sartre denomina como “Má-Fé”, no qual ele não assumia sua

responsabilidade por estar preso juntamente com os outros, conforme veremos

nas falas que seguem:

Sorbier: François!

François: François o que? Acaso me preveniram quando

fui ter convosco? Disseram-me que a Resistência precisava de

homens, mas nunca me falaram de que ela precisava de heróis. Eu

não sou um herói; não sou herói! Fiz o que me disseram: distribuí

panfletos a transportei armas, e vocês diziam que eu estava

sempre de bom humor. Mas ninguém me fez saber o que me

esperava. Juro-vos que nunca soube em que é que me metia.123

No início, os resistentes realmente não tinham nada a esconder, pois

sequer sabiam do paradeiro de seu líder, Jean, e dessa forma, pensavam em uma

maneira de escapar ao sofrimento quando fossem levados à tortura.

Canoris (aproximando–se de François): Tu não tens

nenhum dever, François. Nem dever, nem segredo. Nada sabemos

e nada temos a calar. Cada um que arranje maneira de escapar

aos sofrimentos. Os meios não têm importância.124

123 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura, p. 30. 124 Ibid.

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Sorbier: Os meios não têm importância... Evidentemente,

grita, chora, suplica, pede-lhes perdão, revolve a tua memória em

busca de qualquer coisa que lhes possa confessar, alguém que

lhes possa entregar.

Aqui, convém ressaltar eu Sorbier considerava-se um covarde. Mas como

nos lembra Sartre, um indivíduo que nasceu covarde não precisa necessariamente

morrer covarde, ele pode mudar de postura no momento em que assim o desejar.

No entanto, Sorbier sempre se considerara covarde, e naquele momento,

continuava a manter a mesma postura. A seguinte fala confirma nossa afirmação:

Sorbier: Gostaria de me conhecer. Já sabia que

acabariam por me prender e que um dia, haveria de me encontrar

encostado à parede, diante de mim mesmo, sem outra alternativa.

Dizia então com meus botões: agüentarás tu o golpe? É o meu

corpo que me preocupa, compreendes? Tenho uma porcaria de

corpo com nervos de mulher. Pois bem, chegou o momento, ao

trabalhar-me125 com os instrumentos do ofício. Mas fui roubado:

vou sofrer por nada, morrerei sem saber o quanto valho.126

Pouco tempo depois desta afirmação, Sorbier é levado pelos torturadores, e

tanto ele quanto seus companheiros não sabem qual será sua reação diante da

tortura. Depois de um certo tempo, os quatro prisioneiros ouvem os primeiros

gritos de Sorbier. Em um ato simultâneo a esse acontecimento, os milicianos127

abrem a porta do sótão, e surpreendentemente trazem Jean, que não vem 125 O verbo trabalhar utilizado neste contexto, refere-se ao próprio ato da tortura. 126 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. 1965 p. 32. 127 Milicianos - Soldados subordinados aos colaboracionistas.

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algemado, pois não sabiam que ele é o verdadeiro líder. Os colaboracionistas o

capturaram e resolveram prendê-lo somente para averiguação no tocante à sua

pessoa, sem desconfiarem de quem ele era na verdade.

Após a tortura, Sorbier é levado de volta ao sótão. Ao ver-se novamente entre

seus companheiros, afirma que se soubesse onde estava Jean, ter-lhes-ia

dito.Neste momento, avista Jean e se surpreende ao vê-lo ali, admite que agora

pelo menos, eles teriam algo a esconder quando fossem levados à tortura.

Entretanto, Sorbier dizia naquele momento, já se conhecer verdadeiramente e

sabia que se ele se encontrasse novamente nas mãos dos carrascos, delataria

seu chefe.

Alguns minutos depois, os milicianos vêm buscar o segundo dos maquis a

ser torturado: Canoris. Este, diante da tortura, decide não gritar. Certo tempo

depois, retorna ao sótão, conduzido pelos milicianos.Canoris tem a atitude que

Sartre aprova: encarna o homem de ação, que ao enfrentar a tortura está pronto

para morrer. Mas se há possibilidade de viver sem trair, ele escolherá a vida com

todas as novas lutas e responsabilidades que ela há de trazer.Para ele, as vitórias

são sempre provisórias e não podem ser eternizadas. Jean, por sua vez, sofre por

não estar na mesma situação de seus liderados e por não poder fazer nada por

eles, sentindo-se por isso, excluído do grupo.

Cai o pano. Termina o primeiro ato da peça.

SEGUNDO QUADRO

Uma sala de aulas.Bancos e carteiras. Paredes caiadas de branco. Na parede do fundo,

um mapa da África e o retrato de Pétain128. Um quadro preto. Á esquerda, uma janela. Ao fundo,

uma porta. Um aparelho de rádio em cima de uma mesinha, junto à janela.129

128 PETAIN, Philippe – Militar e político francês (Cauchy-à-la-Tour, Pas-de-Calais, 1856, Ilha de Yeu, 1951). Vencedor em Verdum em 1916 sucedeu a Nivelle no comando supremo dos exércitos franceses do Nordeste (1917-1918). Ministro da Guerra no Gabinete Doumerge (1934), embaixador em Madri (1939), em junho de 1940 tornou-se chefe do governo e firmou armistício com a Alemanha e a Itália. Marechal da França, chefe do Estado francês instalado em Vichy durante a Ocupação Alemã, exerceu uma política de

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Neste ato da peça, Sartre procura nos mostrar a conduta e a visão dos

torturadores acerca daquela situação. Vamos aqui prosseguir, procurando mostrar

as situações de liberdade e escolha neste segundo quadro.

Os três torturadores colaboracionistas, Clochet, Landrieu e Pellerin,

dialogavam. Pellerin e Landrieu alegavam estar com fome e decidiam o que iriam

comer no almoço, ao mesmo tempo em que Clochet (o mais sádico entre eles),

procurava escolher qual dos prisioneiros seria o próximo a ser torturado.Após os

três se alimentarem, mandam buscar Henri e o submetem a vários tipos de tortura

para que ele confesse (nos aprofundaremos mais na questão da tortura no

próximo tópico deste capítulo).Enquanto sofre sucessivos maus-tratos, Henri grita

por várias vezes, o que faz os torturadores sentirem-se vitoriosos. Nesse

momento, ligam o rádio e o colocam em alto volume para disfarçar o som vindo

dos gritos.Entretanto, percebem que Henri jamais delatará seu líder, por mais que

o torturem.Os carrascos levam-no embora, e decidem que o próximo torturado

será novamente Sorbier, pois consideram-no um covarde e presumem que ele não

suportará mais uma sessão de tormentos e acabará desta vez,

confessando.Buscam Sorbier, pela segunda vez no mesmo dia. Iniciam com ele,

mais um interrogatório, no qual ele admite que realmente é um covarde. Com uma

pinça, começam a lhe arrancar uma das unhas. Ele pede para que o soltem para

que ele confesse o que eles lhe pedem, mas nesse momento,

surpreendentemente, Sorbier faz uma escolha trágica perante a situação-limite

que enfrentava:

Sorbier: O que vocês querem saber? Onde está o chefe? Eu sei.

Os outros não sabem, mas eu sei. Eu estava ao facto dos seus

colaboração, estabelecendo um Estado hierárquico e autoritário. Foi condenado à morte em 1945, mas teve sua pena convertida em prisão perpétua na Ilha francesa de Yeu, situada no Atlântico. 129 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. Trad. Francisco da Conceição.Lisboa: Editorial Presença, 1965, p. 63.

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segredos. Ele está...(Designando bruscamente um ponto atrás

deles )...Acolá! (Todos se voltam. De um salto ele alcança a janela

e trepa para o parapeito). Ganhei! Não se aproximem, senão salto!

Ganhei! Ganhei!

Clochet: Não te armes em idiota. Se falas, nós livramos-te!

Sorbier: Malandros! (gritando).Ei, lá em cima! Henri Canoris, não

falei! (Os milicianos lançam-se sobre ele. Sorbier salta no

vácuo).Boas noites!130

Os torturadores haviam deixado uma das janelas aberta para “refrescar o

ambiente”. Mas não imaginavam que Sorbier faria uma escolha tão inusitada como

suicidar-se, atirando-se pela janela do prédio. Término do Segundo Quadro.

TERCEIRO QUADRO

O sótão. François, Canoris, Henri, sentados no chão uns ao pé dos outros.Formam um grupo unido

e fechado. Falam entre si, a meia voz Jean passeia em torno deles com um ar infeliz. De tempos a

tempos, faz um gesto como que para se associar à conversa; depois arrepende-se e prossegue a

sua marcha.131

Os prisioneiros conversam para procurarem se distrair. Através dos

diálogos, percebe-se que Lucie fora levada pelos torturadores anteriormente e

naquele momento, já estava nas mãos deles há duas horas. Henri afirma que com

mulheres os carrascos costumavam se divertir. Jean sente-se perplexo diante de

tal situação, e ao mesmo tempo, sente-se desprezado por seus companheiros.

Àquelas alturas eles já sabiam do suicídio de Sorbier e de vez em quando, um

deles subia no fogão e através da trapeira, avistava o cadáver de Sorbier com o 130 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura.Trad. Francisco da Conceição.Lisboa: Editorial Presença 1965, p. 89. 131 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura Trad. De Francisco da Conceição.Lisboa: Presença Editorial, p. 93.

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crânio esmagado, caído há vários metros abaixo do local ode eles estavam

presos.Lucie retorna ao sótão. Após a tortura que sofreu, ela começa a

demonstrar uma mudança de postura perante aquela situação. Horas antes,

dissera a Jean, que independentemente do que ocorresse com ela nas mãos dos

torturadores, cada vez que ela olhasse para Jean, não haveria nos seus olhos,

nada, senão amor.

Jean (dirigindo-se primeiramente aos outros, e depois a Lucie):

Não me chateies. Ela é minha e eu nada tenho a dizer, mas ela é

que não me tiram. (Para Lucie): Fala. Tu não és como eles, pois

não? Não é possível que sejas como eles. Por que não me

respondes? Ainda me queres?

Lucie: Já não te quero.

Jean: Minha doce Lucie.

Lucie: Nunca mais serei doce, Jean.

Jean: Já não me amas?

Lucie: Não sei. (Jean dá um passo em direção a ela).Suplico-te

que não me toques. (com esforço) Julgo que ainda te amo. Mas já

não sinto o meu amor. (cansada) Já não sinto absolutamente

nada.132

Algum tempo depois, numa conversa com François, Lucie afirma que

apesar de tudo o que sofreu nas mãos dos torturadores, não delatou seu chefe, e

pede que ele faça o mesmo quando chegar a sua vez, ainda que os carrascos

causem a Jean sofrimentos difíceis de suportar.

132 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. Lisboa: Editorial Presença, pp. 105-106.

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Lucie (com violência): Eles não me tocaram. Ninguém me

tocou. Eu era de pedra e não senti as mãos deles. Olhei-os no

rosto e pensei: não acontece nada (com paixão).E nada aconteceu.

Por fim, já lhes causava medo (pausa). François, se tu falas, então

eles ganharão a partida. Dirão com os teus botões: ”Acabamos por

tê-los na mão!” Sorrirão das suas recordações, comentando: “Com

a garota divertimo-nos à grande”. É preciso enchê-los de vergonha.

Se eu não esperasse tornar a vê-los, enforcava-me agora mesmo

nas grades desta trapeira. Não dirás nada?133

François encolhe os ombros sem responder (silêncio).134

Na verdade, aquela situação era para os prisioneiros, um jogo no qual eles

pretendiam sair vencedores. Quanto a Jean, este se declarava o mais infeliz do

todos, pois apesar de seu corpo não ter passado por nenhum tipo de sofrimento,

ele dizia não ter a consciência tranqüila.E seus companheiros o ironizavam cada

vez que ele mencionava este fato.

François (saltando para Jean).

Olhem para ele! Olhem bem para ele! O mais infeliz de todos nós!

Comeu e dormiu! Tem as mãos livres, tornará a ver a luz do dia,

regressará à vida! E é o mais infeliz. Que queres tu? Que te

lamentemos? Porco!135

Àquela altura dos acontecimentos, François encontrava-se em meio a um

estado uma tensão emocional muito grande. Qualquer ruído causava-lhe um

sobressalto, e ele já não conseguia mais engolir a própria saliva. Cada vez mais 133 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. Lisboa: Editorial Presença, 1965, p.108. 134 Idem, ibid. 135 Idem, p.109.

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assustado, revela aos outros que na primeira chance que tivesse, denunciaria

Jean.

François: Denuncio-te! Denuncio-te! Faço-te partilhar das nossas

alegrias (...) Denuncio-te, pois. E pronto. Será tudo tão simples:

eles aproximam-se de mim, a minha boca abre-se por conta

própria, o nome sairá espontâneo e eu ficarei de acordo com a

minha boca. Há alguma coisa a atrever? Salvar-te-ei, Lucie. Eles

hão de poupar-nos a vida.136

Os companheiros de François constatam sua última afirmação e percebem

que François colocará tudo a perder, caso chegue às mãos dos torturadores.

Dessa forma, surpreendentemente, decidem assassiná-lo, no que Lucie, sua irmã,

dá pleno consentimento.Jean tenta impedir, mas ao final acaba por permitir aquele

ato desesperado, tornando-se um dos cúmplices do assassinato de François.

Lucie: Ele tem de se calar. Os meios não interessam.

François: Vocês não vão...(eles não respondem).Juro-vos que não

falarei (eles não respondem).Lucie. Socorro, não os deixes

fazerem-me mal, não falarei; juro-te a ti eu não falarei.

Henri aproxima-se de François e começa a apertar-lhe a garganta.

François olha para ele e depois começa a gritar: Lucie! Socorro!

Não quero morrer aqui esta noite! Não me mates na escuridão!

(Henri aperta-lhe a garganta).Lucie! (Lucie vira a cabeça).Odeio-os

todos. 137

136 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. Lisboa: Editorial Presença, 1965, p. 110. 137 Idem, p. 137.

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A situação-limite vivida pelos resistentes naquele momento acabou por

gerar-lhes uma tensão excessiva, levando-os a assassinarem um dos seus.

Henri: Pronto, está morto.

Canoris: Decidimos em conjunto e somos todos responsáveis.

Jean: Em que é que se tornaram? Por que não morreram com os

outros? Causam-me horror.138

Jean acusa a todos como sendo responsáveis pela morte de François,

embora não tenha tomado nenhuma atitude concreta para impedí-los, o que

comprova uma atitude de má-fé vinda de sua parte.

Lucie afirmava sentir-se uma outra pessoa, muito diferente daquela que

Jean conhecera há alguns meses, ao demonstrar uma mudança de postura diante

da situação-limite que vivia frente àquelas circunstâncias. Dirigindo-se a Jean, faz

a seguinte afirmação:

Lucie: Eu sou outra. Não me reconheço a mim própria. Há

qualquer coisa na minha cabeça que se deve ter fechado. (...) Amei

meu irmão, que deixei que matassem. O nosso amor está tão

longe, porque me vens tu falar dele? (...) Esperava o fim da guerra,

esperava-te todas as noites: já não tenho futuro, já não espero

senão a morte e morrerei só. (Pausa) Deixa-me. Nada temos a

dizer, não sofro e não preciso de consolo.(...) A única coisa que

138 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura.Lisboa: Editorial Presença, 1965, p. 116.

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desejo é que eles venham buscar-me outra vez e me batam para

que eu possa voltar a calar, e troçar deles, e fazer-lhes medo.139

Jean, abatido: Não passas de um deserto de orgulho.

Lucie: E eu sou culpada disso? Foi o meu orgulho que eles

feriram. Odeio-os, mas estou em poder deles. Mas também os

tenho em meu poder. Sinto-me mais próxima deles do que de ti.

(Ri).Nós! Queres que eu diga: nós! Tens os pulsos esmagados

como os de Henri? Tens feridas nas pernas como Canoris?

Vejamos, tudo isso é comédia: tu não sentiste nada, imaginas

simplesmente.140

Através de suas falas, Lucie confirma a concepção de Sartre, na qual ele

afirma que somos nós quem decidimos a intensidade da nossa dor, fato que está

diretamente relacionado à questão da escolha.

Lucie (dirigindo-se a Jean): Podes partir os ossos, podes

cegar os olhos, mas és tu que decides tua própria dor.141

Por meio desta afirmação, Lucie reforça a tese de Sartre, na qual ele afirma

que “não há situação que possa ser considerada inumana”. E mesmo que

tenhamos que determinar o que é inumano em uma determinada situação, esta

decisão não deixa de ser humana, e quanto a nós, teremos de assumir total

responsabilidade por ela. Dessa forma, caberá a nós determinar o coeficiente de

adversidade das coisas a até mesmo seu grau de imprevisibilidade. Ou, como nos

adverte Perdigão:

139 Idem, p. 126. 140 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. Lisboa: Editorial Presença, 1965, p. 126. 141 Idem, p.27.

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“A dor física é um dado objetivo. Se, porventura, sou torturado para

confessar um segredo, não será a dor que me fará ceder ou resistir: se

meu fim consiste em dar mais valor ao segredo do que ao sofrimento, irei

julgar a dor tolerável e resistirei sem cessar; caso contrário, elejo-a

insuportável e confesso o que me exigem. Se estou excursionando a pé e

desisto de prosseguir a caminhada, não é a condição de minha

musculatura que me faz interromper a marcha. Certo: o aclive da encosta

que escalo, e a noite mal dormida, um modo como existo neste momento,

enquanto corpo. Mas o que determina a minha desistência é a maneira

como eu padeço essa fadiga, de acordo com o fim que projetei: se não

estou tão interessado em atingir o cume da encosta, desistirei ao menor

sinal de esgotamento”.142

Um dos fatores fundamentais da condição humana é, de acordo com

Sartre, a liberdade, a qual ele define como sendo a escolha incondicional que o

próprio homem faz de seu ser e de seu mundo. Por exemplo: Quando julgamos

estar sob o poder de forças externas mais poderosas que a nossa vontade, esse

julgamento é uma decisão livre, cada indivíduo age conforme suas escolhas. Se

dissermos estar enfraquecidos, a fraqueza essa fraqueza é uma decisão nossa.

Quando dizemos estar exaustos, a exaustão também é uma escolha vinda de

nossa parte. Por isso, Sartre afirma que “estamos condenados à liberdade”. É ela

que define a humanidade dos humanos, sem escapatória.

4.3 – TORTURA, VIOLÊNCIA E SITUAÇÕES-LIMITE NO CONTEXTO DA PEÇA.

142 PERDIGÃO, P. Liberdade e Existência. Porto Alegre: L&PM, 1995, P. 84.

109

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A Tortura Conforme mencionamos anteriormente, Sartre demonstrou grande

preocupação com a questão da tortura em todo o decorrer de sua obra.De acordo

com G. Mattoso:

“(...) A tortura pode ser definida como todo o sofrimento a

que uma pessoa é submetida por outra, desde que de propósito da

segunda e contra a vontade da primeira”.143

A peça Mortos sem Sepultura tem como tema central, justamente as

relações entre torturadores entre torturados e torturadores em meio a uma

situação limite durante a Segunda Guerra Mundial.

De acordo com Sartre, a tortura é algo inerente ao sadismo, aspecto, que

ele “destrincha” com propriedade na Terceira Parte de O ser e o Nada.Para ele, o

sadismo teria como ênfase a apropriação instrumental do Outro-encarnado, ou, “a

negação de ser encarnado e fuga de toda facticidade e, ao mesmo tempo,

empenho para apoderar-se da facticidade do Outro”.144 Mas, uma vez que não

pode realizar a encarnação do Outro por meio da própria encarnação, o sádico

busca utilizar o corpo do Outro como instrumento de modo a realizar no Outro uma

existência encarnada.

“O sadismo é um esforço para encarnar o Outro pela

violência, e esta encarnação à força já deve ser apropriação e

utilização do Outro. O sádico procura descobrir a carne por baixo

da ação”.145

143 MATTOSO, G. O que é Tortura. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 29. 144 SARTRE, J.P. O ser e o nada.Petrópolis: Vozes, 1997, p. 495. 145 Idem, p. 496.

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O sádico busca na verdade, a liberdade do Outro, é desta que ele tenta

apropriar-se. E ao cometer um ato de sadismo, ele se colocará como aquele que

dispõe de todo o tempo do mundo. Será calmo, agirá sem pressa, dispondo de

seus instrumentos como um técnico, testando-os, tal como um chaveiro testa

diversas chaves em uma fechadura, supondo que esta fechadura se abrirá

automaticamente, quando ele tiver “encontrado a chave certa”, ou seja, o sádico

utiliza-se de muita paciência, dispõe de vários meios, visando um fim que será

alcançado automaticamente, mas por outro lado, este fim predeterminado só pode

ser realizado com a livre e total adesão do Outro.

O seguinte diálogo entre os três torturadores logo no início do Segundo

Quadro nos dá uma noção acerca de seu comportamento perante a tortura,o que

não deixa de envolver uma postura sádica:

Clochet: Passemos ao seguinte?

Landrieu: Espera um minuto. Ao menos para mastigarmos

alguma coisa.

Clochet: Mastiguem se quiserem. Entretanto, eu talvez

possa ir interrogando outro.

Landrieu: Não, isso te dá demasiado prazer. Não tens

fome?

Clochet: Não. (...) Quando trabalho não tenho fome.146

146 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura.Lisboa: Editorial Presença, pp. 63-64.

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Os três carrascos ressaltam seu lado animal em pleno exercício de sua

função.Entre eles, Clochet é o que mais demonstra estar à vontade no “trabalho”

que executa, sem se importar com a intensidade do sofrimento causado pelas

torturas praticadas nos resistentes, utilizando-se até mesmo do sangue de Canoris

para impressioná-los (a poça de sangue encontrava-se no chão, e fôra resultado

da tortura empregada em Canoris):

Landrieu: Depois manda lavar isto.

Clochet: O que?

Landrieu: Isto: Foi aqui que o grego sangrou. É

desagradável.

Clochet: Não se deve limpar o sangue. Pode ser que

impressione os outros.147

Henri, (um ex-estudante de medicina antes da guerra) um dos prisioneiros

resistentes, é o terceiro deles a ser torturado. Diante do interrogatório e dos socos

aos quais é submetido, não delata seu chefe, e ainda desafia os torturadores com

respostas irônicas às perguntas que eles lhe fazem. Por fim, quando os carrascos

começam a cansar-se, desamarram suas mãos que inicialmente estavam atadas

aos braços da cadeira, e submetem-no a um tipo de tortura ainda pior, executado

por Clochet:

147 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. Lisboa: Editorial Presença, 1965, p. 66.

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Clochet: Enfiem os paus nas cordas. (os milicianos

introduzem dois paus nas cordas que prendem aos pulsos de

Henri). Perfeito. Vão fazê-lo girar até que fales.

Henri: Não falarei.

Clochet: Agora ainda não. Daqui a pouco gritarás.

Henri: Experimentem fazer-me gritar.

Clochet: Não és nada humilde. Devemos ser

humildes. De quanto mais alto caíres, mais depressa

quebras os ossos.Torçam. Lentamente. Então? Nada?

Não. Torçam, torçam. Esperem: o homem começa a sofrer.

Então? Não? (...) Estás a suar. Afliges-me. (Limpa-lhe o

rosto com o lenço). Torçam. Grita ou não grita? Estás a

mexer-te. Podes impedir-te de gritar, ms não consegues

ficar quieto com a cabeça. Que aflito estás. Como tens as

mandíbulas cerradas. Estarás com medo? (...) Não te

largaremos. (Toma-lhe a cabeça nas mãos). (...) Torçam.

(pausa, triunfante). Vais gritar, Henri, vais gritar. Vejo o

grito inchar-te o pescoço; sobe aos teus lábios, só mais um

pequeno esforço. Torçam. (Henri grita).Hei! (Pausa).Como

deves sentir vergonha. Torçam. Não parem. (Henri grita).

Vês? Só custa o primeiro grito. Agora, docemente, com

naturalidade, vais falar.

Henri: Não me arrancarão senão gritos.148

Na cena que segue, Sartre narra a continuação da tortura a que Henri é

submetido, até o momento em que seus pulsos são partidos e ele perde os

sentidos. Clochet dá-lhe álcool para beber. Assim que ele acorda, a tortura

148 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. Lisboa: Editorial Presença, 1965, pp. 77-78.

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recomeça em um outro local que ficava alguns andares abaixo de onde ele se

encontrava.

Henri grita. Landrieu vai até a porta e fecha-a. Novos

gritos, que soam distintamente, através da porta. Landrieu dirige-se

para o aparelho de rádio e faz girar o botão.149

Landrieu: São esses gritos. É preciso ter uns nervos de

ferro.150

Enquanto Henri gritava durante a tortura, Landrieu aumenta o volume do

rádio para “abafar” o som dos gritos. Por fim, Landrieu conclui que ainda que

matem Henri, não obterão dele a confissão de que necessitam. Dessa forma, ele é

levado de volta à presença dos torturadores e dos milicianos na sala de aula

utilizada para tortura. Pellerin bate-lhe mais uma vez e ordena que o algemem e o

levem ao sótão novamente.

Violência Agora, falemos um pouco a respeito da violência, outro tema tratado em

várias obras de Sartre, tendo sido ainda, um tema dominante na vida francesa nos

anos posteriores à produção de Os seqüestrados de Altona.

Em 1960, De Gaulle151, em meio à Guerra da Argélia, cogitou a

possibilidade de abandonar aquele país, o que levou à formação da organização

149 Idem, p. 81. 150 Ibid. 151 DE GAULLE, C. (1890-1970). General e estadista francês. Ganhou reputação primeiro como teórico militar, debatendo a questão da grande mecanização do exército francês. Quando a França se rendeu em 1940, fugiu para a Inglaterra e de lá liderou as forças francesas da França Livre. Foi chefe do governo provisório (1944-46), quando, após um desentendimento sobre a Constituição adotada pela Quarta República, retirou-se para a vida privada. Em 1947, criou o Rassemblement du Peuple Français, partido que defendia um governo forte. Seu modesto sucesso desapontou De Gaulle, que o dissolveu em 1953 e aposentou-se novamente. Voltou à vida pública em 1958, no auge da crise na Argélia. A Quarta República foi dissolvida e nova

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OAS 152na França. Esta organização executou dois ataques a bombas de plástico

ao apartamento de Sartre na Rue Bonaparte, tendo o primeiro deles ocorrido em

19 de junho de 1961, e o outro, em 7 de janeiro de 1962. Podemos mencionar

ainda o apoio que Sartre dispensou a seu amigo e discípulo Francis Jeanson, que

organizou uma rede de simpatizantes preparados a oferecer ajuda e conforto aos

jovens franceses que se recusavam a fazer o serviço militar na Argélia, bem como

aos membros do Exército de Libertação Nacional Argelino. Entretanto, esta rede

criada por Jeanson foi descoberta pela polícia e ele ia ser processado. Mas em

seu julgamento realizado em 20 de novembro de 1960, Sartre declarou em carta

lida para o Tribunal, que se Jeanson tivesse pedido, ele teria carregado malas em

favor da Frente de Libertação nacional Argelina, ainda que estas estivessem

carregadas com explosivos, única arma que se encontrava à disposição dos

argelinos na época. Fora outros fatos já aqui citados, como os prefácios escritos

para os livros de Henri Alleg (Une Victoire) e Fanon (Les damnés de la Terre),

queremos mencionar uma citação de Sartre sobre a violência, em Crítica da

Razão Dialética. Lá, ele escreve que:

“Nada, nem micróbios, nem os senhores da Selva, pode

ser mais terrível para o homem do que uma espécie altamente

inteligente, cruel, carnívora, capaz de entender e superar a

inteligência do homem, e cujo objetivo está na destruição do

constituição redigida, para fortalecer o poder presidencial: veio então a “Quinta República”, tendo De Gaulle como presidente (1959-69). Ele concedeu independência à Argélia e às colônias africanas e dominou a Comunidade Econômica Européia, excluindo a Grã-Bretanha de seus quadros. Desenvolveu um sistema de contenção nuclear independente e em 1966 retirou o apoio francês à OTAN. Sua posição foi abalada por uma séria revolta em Paris (maio-junho de 1968), por estudantes descontentes com o contraste entre as altas despesas na defesa e aquelas na educação e serviços sociais. Os estudantes foram apoiados por trabalhadores das indústrias, no que se tornou a mais longa greve da história da França. De Gaulle foi obrigado a liberalizar o sistema de educação superior e fazer concessões econômicas aos trabalhadores. Em 1969, depois de um resultado adverso em plebiscito nacional, renunciou ao cargo (cf Enciclopédia Larousse. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 256). 152 OAS – Organização extremista decidida a conservar a Argélia francesa a qualquer custo. Ela almejava conseguir este objetivo, intensificando a própria Guerra da Argélia, através de ataques provocadores a civis árabes, e em parte, aterrorizando a qualquer um que defendesse na França Metropolitana, o fim da Guerra, através de um acordo negociado. (Cf. TODDY, P. Sartre. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1971, p. 144).

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homem. Essa espécie é obviamente a nossa própria espécie,

existindo em cada indivíduo pelo intermédio dos outros, num

ambiente dominado pela escassez”.153

Aqui, vale lembrar, que o termo “escassez interiorizada” empregado por

Sartre em Critique de la Raison Dialectique enfatiza a importância que o homem

dá ao conflito como parte inevitável da condição humana, ou seja,escassez

significa a falta ou inadequação de meios para satisfazer as necessidades

humanas que se verifica no mundo. Pelo fato de o homem não encontrar no

mundo a satisfação imediata de suas necessidades, torna-se obrigado a lutar

contra a escassez, e essa luta vai determinar o movimento de toda história

humana.

Terminemos esta parte que se refere à violência, citando um trecho de

Mortos sem Sepultura, no qual Henri, Canoris e Lucie são mortos covardemente

pelas costas, por salvas de tiros disparados da metralhadora de Clochet, que se

utiliza de uma violência desnecessária sobre eles. A cena se passa no final da

peça, logo após eles revelarem o falso esconderijo de seu chefe, Jean:

Pellerin: Acreditas que eles tivessem dito a verdade?

Landrieu: Naturalmente. São umas bestas. Acabamos por

tê-los nas mãos.

Clochet (esfregando as mãos com ar distraído): Sim, sim,

apanhamo-los.

Pellerin, para Landrieu: Vai poupar-lhes a vida?

153 SARTRE, J.P. Critique de la raison Dialectique.Paris: Gallimard, 1985, p. 208.

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Landrieu: Bem! De toda a maneira, agora...(Salva por

baixo das janelas). O que é...? (Clochet, com um ar equívoco

oculta o riso com a mão).Clochet, tu não...

Clochet faz sinal que sim, sempre a rir.

Clochet: Achei que era mais humano.

Landrieu: Patife!

Segunda salva, ele corre à janela.

Pellerin: Deixa isso, anda, não há duas sem três.

Landrieu: Não quero...

Pellerin: Teríamos boa cara aos olhos do sobrevivente?

Clochet: Daqui a um momento, ninguém pensará em nada

disto. Ninguém, exceto nós.

Landrieu: Uff!

Clochet dirige-se para o aparelho e faz girar os botões.

Música.154

Toddy P. em seu livro Sartre, fez uma observação que se encaixa

perfeitamente na visão que Sartre possuía sobre a violência vinda do animal

154 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. Lisboa: Editorial Presença, 1965, pp. 165-166.

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humano, além de ter plena relação com as atitudes dos torturadores de Mortos

sem Sepultura:

“Todos os atos de violência são os mesmos, e se o homem

mata pela revolução, ou tortura para salvar o seu país, é o mesmo

‘macaco nu e sem pêlos’ que mata a si próprio na outra pessoa,

antes de testemunhar contra seu próprio crime a aboli-lo por sua

própria morte. (...) Eles são heróis trágicos, presos numa situação

que não conseguem entender, vítimas de seus próprios atos e

crucificados por suas próprias intenções; capazes de entender o

que está acontecendo consigo mesmo, mas não de supera-lo;

responsáveis por aquilo que são, mas incapazes de agir de outra

forma; prisioneiros do tribunal da história embora sem nenhum

carrasco a não ser eles próprios”.155

Situações-Limite Neste momento, pretendemos discorrer acerca do termo situações-limite,

que está na verdade, arraigado à própria concepção sartriana de teatro. Assim

como no conto O Muro, Sartre explora com propriedade a questão das situações-

limite na peça Mortos sem Sepultura. Nela, seis resistentes foram feitos

prisioneiros e firmam entre eles um pacto definitivo: não falar.A partir daí, está

expressa uma batalha ferrenha entre dois campos visivelmente opostos:

torturados x torturadores. Dessa forma, Sartre coloca como foco principal o

comportamento dos indivíduos perante a tortura, sejam eles prisioneiros ou

colaboracionistas alemães.

Entretanto, ao levarmos em conta as circunstâncias em que se encontram

os personagens na peça, percebemos que eles que todos eles estão em meio a

uma situação-limite. Em O Muro, Sartre exercita pela primeira vez a utilização 155 TODDY, P. Sartre.Rio e Janeiro: Edições Bloch, 1974, pp. 143-144.

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literária do termo situação-limite.O Muro mostra seu protagonista, Pablo Ibbieta

frete a frente com a tortura e a morte, do início ao fim da história. Ibbieta, durante

a Guerra Civil Espanhola é aprisionado pelos fascistas que o ameaçam de

fuzilamento, caso ele não revele o esconderijo de seu chefe. Ao ver seus

companheiros de ela serem fuzilados um a um, decide protelar sua morte.Indica

um falso esconderijo aos inimigos, na esperança de salvar seu chefe, e aguarda a

descoberta da mentira. Entretanto, outra situação-limite se revela. Esta se

encontra diretamente relacionada à contingência. O chefe de Ibbieta, por

precaução, abandonara seu esconderijo e refugiara-se no cemitério, o mesmo

local indicado por Ibbieta. É encontrado e morto. Quando fica sabendo do que

aconteceu, Ibbieta explode num riso histérico, posto que provavelmente seria

libertado das mãos dos fascistas. Segue abaixo, uma passagem de O Muro, na

qual Sartre procura descrever as sensações de Ibbieta numa noite fria na prisão,

enquanto ele aguardava a tortura e a morte:

“O médico não parava de me olhar, com um olhar duro. De

súbito, compreendi e levei a mão no rosto; estava molhado de

suor. Naquele porão, no auge do inverno, em plena corrente de ar,

eu suava. Passei os dedos pelos cabelos e os senti empastados

pela transpiração; minha camisa estava úmida e colada à pele; há

pelo menos uma hora eu suava em bicas e não havia sentido nada.

Mas aquilo não escapou ao safado do belga, que viu as gotas de

suor rolarem sobre minha face, e com certeza pensou: ‘eis a

manifestação de um estado de terror quase patológico’, e devia ter

se sentido normal e orgulhoso de o ser, porque tinha frio. (...)

Contenta-me em me esfregar o pescoço com o lenço, porque

agora sentia o suor que pingava de meus cabelos sobre a nuca, o

que era desagradável. Logo, porém, renunciei à fricção, era inútil: o

lenço já estava molhado, era preciso torcê-lo e eu continuava a

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suar. Suava também nas nádegas e as calças umedecidas

aderiam ao banco”.156

As situações podem fazer com que o homem mude de postura,

principalmente quando se trata de situações extremas, como o sofrimento, a morte

e a tortura, por exemplo. Diante de situações como estas, o homem poderá tomar

decisões inesperadas ao decidir o que ele será no momento seguinte, ainda que,

no caso da peça em questão, no plano coletivo, os resistentes tivessem um

projeto firmado, seria no plano individual que este projeto se reafirmaria ou não,

pois tudo dependeria de como cada um deles se comportaria no momento do

interrogatório.

Karl Jaspers157 compara as situações-limite a um muro contra o qual se

embate, porque é da queda que o homem se pode erguer novamente. Encarar as

situações-limite sem fugir e sem negar é o único modo que ele tem de poder

decifrar ou ver o que está para além delas. Porque elas estão lá se que sejam

previsíveis nem superáveis sem que se possam deduzir de alguma outra coisa,

ser explicadas o modificadas. Não é possível estruturar uma teoria geral das

situações-limite. E é precisamente nisso que reside sua grandeza. Assumir

livremente a sua ruína é a única forma do homem descobrir que essa ruína não

tem um fim, mas um novo começo.

156 SARTRE, J.P. O Muro. Trad. De Alcântara Silveira. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 1982, p. 17. 157 JASPERS, K. Filósofo e psiquiatra alemão (Oldemburgo 1883- Basiléia, Suíça, 1969).Ensinou em Heidelberg e em Basiléia, onde se refugiou dos nazistas. Considerava a reflexão filosófica não como uma atividade teórica, mas como uma prática de um gênero único, implicando sabedoria e experiência. Pensava que a política e a história fazem parte desta reflexão porque manifestam a presença do Ser no mundo.Escreveu A Situação Espiritual do nosso tempo (1931), Filosofia da existência (1938), A bomba atômica e o futuro do homem (1958). Jaspers foi o primeiro filósofo a utilizar o termo Situação-Limite. “Chamo situações-limite àquelas em que me encontro sempre que não posso viver sem luta nem dor, em que inevitavelmente assumo a culpa e em que tenho de morrer. Não se se transformam apenas na sua aparência, sendo em relação ao Dasein, definitivas, mas não previsíveis: enquanto Dasein, nada mais vemos por detrás delas. São como uma parede que enfrentamos e na qual fracassamos. Não podem por nós serem alteradas, chegando-se apenas à clareza sem a qual não explicamos nem deduzimos outra coisa”. Cf. JASPERS, K. Philosophie.Berlin: Springer-Verlag, vol. 2, 1956, p. 203.

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O valor existencial das situações-limite é o de acordarem e de

entorpecerem o indivíduo, situando caminhos possíveis a diferentes possibilidades

de uma escolha pessoal.

Voltando à nossa peça em questão, após a primeira enfrentada por Sorbier,

(dos resistentes ele foi o único que teve o infortúnio de se deparar com os

torturadores por duas vezes) ele afirmava já se conhecer, e se porventura voltasse

às mãos dos torturadores, quebraria o pacto.

Sorbier: Eu digo-te que entregaria até minha mãe. Não há

direito que baste um só minuto para apodrecer uma vida.

Canoris: É preciso muito mais do que um minuto. Julgar

que um momento de fraqueza pode apodrecer essa hora em que

decides abandonar tudo para te reunires a nós?E esses três anos

de coragem e de paciência? E o dia em que, apesar de derreado

cansaço, carregaste com a espingarda e a mochila do miúdo?

Canoris: Verdadeiramente? Por que serás tu verdadeiro

hoje quando te batam, do que ontem quando deixavas de beber

para dares a tua parte a Lucie?

Não somos feitos para viver em situações-limite158. Até nos

vales existem caminhos.159

Note-se que na citação anterior, na fala de Canoris, Sartre mencionou o

termo situações-limite, e apesar de na fala de Canoris ele ter afirmado que não

fomos feitos para viver em situações-limite, não há como fugir delas. Uma vez

que o indivíduo se encontra frente a esse tipo de situação, ele deverá enfrentá-las,

158 Grifo nosso 159 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. Lisboa: Editorial Presença, p. 55.

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exercendo sua liberdade, através de suas escolhas. Pois para Sartre, são as

situações que fazem com que o homem mude de postura e é somente nelas que

ele se decide. Assim como Henri, Lucie se considera responsável pelo plano não

ter dado certo, e os resistentes terem sido capturados. E através das falas

seguintes, pode-se notar que antes da tortura, ela apresentava uma determinada

postura:

Jean (dirigindo-se a Lucie): Como é que eu vou conseguir

suportar o olhar de Henri quando ele voltar? Me diz que você me

odeia?

Lucie: Eu tenho ar de quem te odeia?

Jean: Me dá a tua mão. (Ela lhe estende as duas mãos

algemadas). Você está aí? Eu disse a mim mesmo: pelo menos

tudo acabou para ela. Terminou a fome e a dor. E você está aí!

Eles vão vir buscar você e depois vão trazer você de volta reduzida

pela metade.

Lucie: Nos meus olhos só haverá amor!

Jean: Vou ter de escutar os seus gritos.

Lucie: Vou tentar não gritar.160

Já após a tortura, Lucie apresentava uma outra postura, totalmente

diferente da anterior:

160 Idem, p.57.

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Jean: Lucie!

Canoris: Deixa ela.

Lucie: Amor? (Ela encolhe os ombros tristemente).

Jean: Não me chateies. Ela é minha. Vocês desprezaram-

me e eu nada tenho a dizer; mas ela é que vocês não me tiram.

(Para Lucie).Fala. Tu não és como eles, pois não? Não é possível

que sejas como eles. Por que não me respondes? Ainda me

queres?

Lucie: Já não te quero.

Jean: Minha doce Lucie.

Lucie: Nunca mais serei doce, Jean.161

Dessa forma, a tentativa de Lucie definir sua postura perante a tortura sem

antes ter passado por ela, fora totalmente inútil, ou seja, após a tortura, Lucie

apresentou um reação totalmente diferente daquela já determinada antes. Nesse

caso, o desespero e a angústia não surgem apenas da possibilidade de vivermos

uma determinada situação. Como limite dessa mesma situação, surge também

nossa liberdade de decisão. Toda e qualquer situação-limite tem sua origem na

própria liberdade. Como a liberdade é luta e conflito, a culpa é inevitável. O

homem pode tentar suprimí-la, mas jamais poderá escapar a ela.

4.4 – O CONFLITO EXPRESSO NAS RELAÇÕES COM O OUTRO

161 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. Lisboa: Editorial Presença, 1965, p. 105.

123

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Sei que não posso ser o Outro e persisto nessa minha negação. Sei

também que não posso agir sobre a liberdade do Outro e nem ele sobre a minha,

posto que esse ideal é irrealizável. A liberdade do Outro é fundamento de meu ser.

Mas por existir pela liberdade do Outro, não tenho segurança alguma, estou em

perigo nesta liberdade que modela meu ser e me faz ser.Enquanto experimento-

me como objeto para o Outro e projeto assimilar o Outro na e por esta experiência,

o Outro me apreende como objeto no meio do mundo e não projeta de modo

algum me identificar com ele. Assim, esse projeto de unificação é fonte de conflito

entre eu e o Outro. Entretanto, por mais conflituosa que seja a relação entre as

pessoas, tenho de admitir que esse conflito deriva da origem da liberdade.

Franklin L.e Silva explica:

“Toda relação concreta é o conflito de duas liberdades

concretas. Como solução é impossível, porque é impossível anular

a liberdade: ninguém pode anular a do outro e ninguém pode

anular a sua. Portanto, o mundo de Sartre, por ser um mundo de

conflito das consciências, não é um mundo em que uma

consciência triunfará definitivamente sobre a outra. É a liberdade

absoluta de todas as consciências em conflito que deveria impedir

a submissão e heteronomia. E isso nos faz compreender também

porque por mais forte que seja a relação de dominação, nunca é

um fato consumado. (...) O traço ontológico do conflito não

contraria a liberdade, pelo contrário, enfatiza-a (...) O

reconhecimento do outro é inseparável do reconhecimento desse

conflito”.162

Em suma: o conflito existente nas relações humanas é algo inerente à

liberdade de cada indivíduo, e por isso, esse conflito nunca deixará de existir. 162 SILVA, F.L. Ética e Literatura em Sartre: Ensaios introdutórios. São Paulo: Unesp, 2004, pp. 192-193.

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Em Mortos sem Sepultura Sartre nos remete a esta questão, através de

várias situações vivenciadas por suas personagens. Através dos diálogos, nota-se

que os próprios torturadores (Clochet, Landrieu e Pellerin) viviam em permanente

discordância que culminava em conflitos. Citemos aqui, as falas entre eles, numa

cena que se passa logo após o suicídio de Sorbier, que saltara pela janela, a qual

em uma das cenas anteriores antes da chegada de Sorbier, Clochet pedia para

que fosse fechada:

Clochet: Bem vos dizia eu para fecharem a janela.

Landrieu avança para ele e assenta-lhe um murro em

pleno rosto.

Landrieu: Põe isto no teu relatório.

Pausa: Clochet tirou o lenço e limpa a boca. Os milicianos

regressam.

No momento das tortura de Henri, logo depois que seus pulsos foram

partidos e ele desmaiou, os torturadores novamente se desentendem:

Clochet: (no momento em que dá álcool para Henri beber).

Bebe, pobre mártir. Sentes-te melhor? Bem, vamos começar. Vão

buscar os aparelhos.

Landrieu: Não!

Clochet: O que?

Landrieu passa a mão pela testa.

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Landrieu: Levem-no. Tratarão dele lá embaixo.

Clochet: Lá estamos apertados.

Landrieu: Quem manda sou eu, Clochet. É segunda vez

que to faço lembrar.

Clochet: Lá estamos apertados.

Landrieu: Quem manda sou eu, Clochet. É a segunda vez

que to faço lembrar.

Clochet: Mas...

Landrieu, gritando.

Quer que eu te atire um soco às ventas?

Dessa forma, podemos concluir que o conflito entre os torturadores era, na

verdade, a plena demonstração da liberdade exercida por cada um deles.

4.5 – OUTROS ASPECTOS DA FILOSOFIA DE SARTRE ENCONTRADOS NA PEÇA

1 - A Morte Sartre menciona o caráter absurdo da morte e a certeza de que ela

ocorrerá, mais dia, menos dia.A morte significa o limite à vida humana, seu temo

final.Minha morte é somente minha.Assim como o amor, ela é insubstituível, posto

que ninguém pode amar por mim e nem experimentar minha emoções.”Se

existissem somente mortes por velhice (ou por condenação explícita), eu poderia

esperar a minha morte. Mas, precisamente, o próprio da morte é que ela pode

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sempre surpreender ates do tempo aqueles eu a esperam para tal ou qual

data”.163 Não existe uma data específica para nossa morte, pelo contrário, ela

comporta sempre a possibilidade de que venhamos a morrer de surpresa, a

qualquer momento, suprimindo da vida toda significação. Por isso, é absurdo

termos nascido, e igualmente absurdo que tenhamos que morrer.Landrieu, um dos

torturadores de Mortos sem Sepultura, reforça essa concepção de morte, vinda de

Sartre:

Landrieu: A morte, o que é a morte? Hã? O que é isso?

Mais tarde ou mais cedo temos de passar por ela: hoje, amanhã,

depois de amanhã, ou dentro de três meses.164

Encontramos a mesma concepção em uma fala de Canoris:

Canoris: Então, nada ficou definitivo: é sobre a tua vida

inteira que julgaremos cada um dos teus factos. Se deixas que te

matem quando ainda podes trabalhar, não haverá maior absurdo

do que a tua morte.165

Em uma conversa entre Henri e François, Sartre também demonstra parte

de seu raciocínio:

François: Terei esta cabeça esmagada, estes olhos...

Henri: Isso não te interessa, não estás lá para e veres. 163 SARTRE, J.P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 657. 164 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura, p. 137. 165 Idem, p. 41.

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Após nossa morte, os vivos farão de nós a imagem que quiserem, e se

lembrarão de nós até quando lhes convier. Percebemos essa tese de Sartre

inserida em uma das falas de Sorbier:

Sorbier: Tenho os velhotes (meus pais). Julgam-me na

Inglaterra. Devem estar à mesa: jantam cedo. Se ao menos

pudesse convencer-me de que vão sentir uma beliscadurazinha no

coração, qualquer coisa como um pressentimento...Não tenho

certeza de que estão perfeitamente tranqüilos. Esperarão por mim

durante anos, cada vez mais tranqüilamente, e acabarei por morrer

no coração deles sem que disso se apercebam.166

O caráter contingente do nascimento também é lembrado por Sartre no

enredo da peça em questão:

Henri: Lucie! Achas que falávamos nos nossos mortos?

Não tínhamos tempo de os enterrar, nem sequer nos nossos

corações. Não. Não faço falta em parte alguma, não deixo nenhum

vazio. (...) Deslizei para fora do mundo e ele continua cheio como

um ovo. Tenho e concluir que não era indispensável. Teria

preferido ser indispensável. A alguém, a alguma coisa. Pronto. (Ri).

Foi completamente inútil eu ter nascido. 167

166 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. Lisboa: Editorial Presença, p. 41. 167 SARTRE, J.P. Mortos sem Sepultura. Lisboa: Editorial Presença, 1965, p. 42.

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Passemos agora a um outro aspecto que se refere à condição animal dos

torturadores, que era ressaltada, cada vez que eles executavam “suas funções”:

Clochet: Vês, vês como é verdade? Leio nos teus olhos

(referindo-se à covardia e Sorbier). Mostra-os, esses grandes olhos

escancarados...

Sorbier: Tê-las-ás iguais quando te apanharem.

Clochet: Não te armes em forte, fica-te mal.

Sorbier: Iguaizinhos; somos irmãos. Agrado-te, hein? Não

é a mim que torturas. É a ti. 168

Landrieu, em diálogo com Clochet:

Landrieu: Olha, vamos dar cabo dos patifezinhos lá de

cima, pois bem, não me aquece nem me arrefece. A cada um, a

sua hora. Aí está o que tenho para dizer. Hoje, a deles, amanhã, a

minha. Cá por mim, sou regular. (Bebe).Somos uns animais. 169

Através dos diversos diálogos de Mortos sem Sepultura transcritos neste

trabalho, pudemos ter uma noção de como Sartre construiu suas personagens, em

cujas ações estavam expressas várias de suas teses filosóficas, cooperando

dessa forma, para um melhor entendimento de sua filosofia por parte daqueles

que procuram conhecer sua obra como dramaturgo, além de sua contribuição em

uma modalidade de teatro explorada por poucos autores de peças teatrais. 168 Idem, p. 87. 169 Idem, p. 112.

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CONCLUSÃO:

Trilhamos com Sartre, percursos de seu pensamento, vindo de várias de

suas obras, o que nos deu subsídios para procurarmos analisar a peça Mortos

sem Sepultura, tema deste trabalho.Posto que nosso propósito era o de

reconstruir percursos da filosofia de Sartre, confrontando-os com as falas da peça

em questão no último capítulo, cabe-nos agora, à guisa de conclusão, recuperar o

caráter específico de tal relação.

Sartre teve uma infância vivida entre livros e diversos estudos. Quando

adulto, participou da Segunda Guerra Mundial como soldado meteorologista,

tendo sido feito prisioneiro em um campo de concentração, onde passou um ano

de sua vida. Tal experiência fez com que Sartre adotasse uma nova postura e

interpretação da condição humana, e o fizesse “responsável por toda a

humanidade”.De volta a Paris, engajou-se no combate ao nazismo e ao regime

colaboracionista pró-Hitler, instaurado na cidade de Vichy, capital da França

durante a Ocupação alemã no país (1940-44). Juntamente com Merleau Ponty,

Simone de Beauvoir, Jean Pouillon e outros, criaram o grupo “Socialismo e

Liberdade” 170, que visava à Resistência ao regime colaboracionista. No tocante a

esta questão, C. Liudivik observa que:

“Ganhava assim, espessura histórica, o apelo crucial ao

existencialismo a que assumamos a responsabilidade por nossos

próprios atos, abrindo mão das desculpas (a má-fé), com as quais

muitas vezes tentamos, na vida política e pessoal, esconder de nós

mesmos a angústia de sermos livres. Livres, e sem nenhuma ‘mãe’

natureza que nos possa justificar (daí o sentido eminentemente

‘matricida da rebelião existencial) Livres, e sem nenhuma divindade

benevolente que nos pudesse conduzir”.171

170 O grupo Socialismo e Liberdade visava não só enxotar as forças da Ocupação, como também as bases de um nova sociedade, em que o homem não mais fosse o lobo do homem. Com pouca eficácia, porém, o grupo já estava dissolvido, quando em outubro de 1941, Sartre começa a escrever “As Moscas”.(cf Liudivik, C., Prefácio de As Moscas. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2005, p. xiii). 171 SARTRE, J.P. As Moscas.Trad. Caio Liudivik. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. viii.

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Partindo desse pressuposto, o governo da França, agora instalado em

Vichy, assina o armistício com os alemães em junho de 1940. Antigo herói de

guerra, Pétain é visto na época, como uma espécie de “salvador da pátria”, cuja

função é recolher os cacos e iniciar a reconstrução nacional. Porém, o que restava

da França, era uma imitação e Estado, na verdade, uma “colônia” que servia aos

interesses econômicos da Alemanha e que introjetava a prática totalitária e anti-

semita. Auxiliado pela Igreja Católica, o governo de Pétain acabou por inculcar

certos valores ao povo francês, entre eles, o de que este deveria sofrer “um

aprendizado” com as culpas passadas, formando uma nova aliança com o Deus

da História. Sobre esse aspecto, Liudivik destaca:

“Pagar-se-ia no presente, pelo ‘pecado original’, nesse

caso, pelos vícios da democracia derrubada. ‘Aberrações’ como o

individualismo, a perda das antigas tradições, a rebeldia juvenil a

libertinagem, os judeus, e o perigo vermelho representado pela

Frente Popular – efêmera coalizão de socialistas, comunistas e

radicais que chegou ao poder em 1936, sendo dissolvida após

meses de violenta oposição da direita fascista”.172

Dentro desse contexto, Sartre desenvolveu um novo gênero teatral, que

denominou como Teatro de Situações. A situação é o conjunto de condições,

barreiras e de circunstâncias que o mundo impõe aos nossos projetos. Não há

liberdade em abstrato, ela é sempre “situada” e “coagida”. Entretanto, por mais

obstáculos que a situação represente, ela nunca chega a anular nossa condição

de sermos essencialmente livres. Por isso, Sartre menciona a famosa citação na

qual afirma que o povo francês nunca foi tão livre como quando estava sob a

Ocupação alemã. Igualmente, o enredo de Mortos sem Sepultura, se passa na

172 SARTRE, J.P. As Moscas. Trad. Caio Liudivik.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. xiii.

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época da Resistência francesa contra o regime colaboracionista alemão. Na peça,

temos a história de seis resistentes que são capturados e presos em um sótão de

um velho prédio, de onde aguardam o interrogatório, seguido por sessões de

tortura. O objetivo dos torturadores era descobrir o paradeiro de Jean, o chefe dos

resistentes. No decorrer de todo o enredo, verifica-se as mudanças e postura por

parte dos resistentes frente às situações-limite que enfrentavam. Podemos

entender como situação-limite, os fatos mais incontestáveis da existência humana:

o acaso, o sofrimento e a morte. Uma vez que estivermos frente a frente com

essas situações, necessitamos tomar decisões, sobre as quais teremos total

responsabilidade.

Ao fazermos a leitura da peça por algumas vezes, encontramos nela

inseridos vários aspectos da filosofia de Sartre, sobre alguns dos quais optamos

por discorrer neste trabalho, procurando nos ater, principalmente, à questão da

Liberdade, Tortura, e nos conflitos existentes nas Relações com o Outro, visto,

que uma análise de todas as teses filosóficas de Sartre contidas na peça em

questão, seria por demais extensa para uma dissertação de mestrado.

Assim, nos três primeiros capítulos, discorremos de forma sucinta sobre os

três aspectos já mencionados, para encontrá-los no último capítulo de nosso

trabalho, onde procuramos apresentar as falas das personagens, confrontando-as

com os aspectos anteriormente vistos.

Talvez o título da peça Mortos sem Sepultura deva-se ao fato, de que ao

final da história, todos os resistentes serem mortos (Sorbier suicida-se, o garoto

François é morto por seus próprios companheiros, e Henri, Lucie e Canoris são

assassinados pelos torturadores). Somente Jean, o líder se salva, pois os

colaboracionistas acabam soltando-o, por não desconfiarem de quem ele era, na

verdade. E assim como os corpos dos 300 resistentes mortos no início da peça

ficam “jogados ao relento”, o mesmo ocorre com os corpos dos resistentes

mencionados acima, após também serem mortos.Seus corpos não passam por

nenhum ritual fúnebre, por nenhum tipo de homenagem póstuma, não são

enterrados, e nem possuem uma sepultura com seus nomes nas lápides. De certa

forma, parece que Sartre, através deste fato, procurou nos demonstrar a

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banalização da existência humana e a condição animal ressaltada através das

atitudes dos torturadores colaboracionistas.

No início da peça, apesar da situação que viviam, os resistentes

procuravam conversar entre si, procurando disfarçar suas angústia e mostrando-

se solidários uns com os outros. Na verdade, talvez fizessem isso, para tentar

manter sua sanidade diante da proximidade da morte de cada um. Eles possuíam

um ideal em comum, porém a realização coletiva desse ideal iria depender de

como cada um deles se portasse diante da tortura, não gritando, não cedendo, e

não delatando seu chefe, posto que se algum deles cometesse tal ato, faria tudo

aquilo resultar em um fracasso coletivo Imaginamos o desafio que Sartre

enfrentou ao escrever uma peça em que ele procurou demonstrar o homem tendo

uma atitude libertária num momento de risco de perda dessa mesma liberdade.

Prisão, interrogatório, tortura e morte. Eis a seqüência da situação-limite

enfrentada pelos resistentes, que realmente culmino com a morte de todos eles.

Já os torturadores e os milicianos permanecem vivos no final da peça, mas por

tempo indeterminado, segundo Sartre, já que todos nós morreremos e esse fato

pode ocorrer a qualquer momento, quando menos esperarmos, o que reforça o

caráter absurdo da morte, tão bem definido por Sartre.

Enfim, encontramos na peça Mortos sem Sepultura, diálogos entre as

personagens, muito bem elaborados por Sartre, onde se encontram implícitos,

vários aspectos de sua filosofia. É interessante observar, também, como cada um

se expressa diante da tortura, e isso diz respeito tanto aos torturados, quanto aos

torturadores. Os torturados sentem as dores da tortura, embora finjam não senti-

la, ou seja, procuram agir de acordo com o ideal do grupo. Os torturadores, por

sua vez, possuem momentos de discordância entre si, mas não deixam de exercer

seu papel de carrascos, o que culmina com a morte de todos os resistentes que

existiam naquele lugar. Através de Mortos sem Sepultura, Sartre dá sua

contribuição para o mundo da dramaturgia mundial e nos faz refletir acerca da

condição humana e seu exercício de liberdade frente a situações-limite, as quais

sempre farão parte de nossa existência.

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