lian hearn - a saga otori 3 - o brilho da lua
TRANSCRIPT
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
1/300
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
2/300
Bela e fascinante evocao de um tempo e um lugar alm do nosso
alcance. A terceira e ltima parte de A saga Otori nos transporta mais uma vez ao
Japo medieval tal como Hearn o imaginou, uma terra de cdigos e rituais, de
beleza rude e aparncias enganosas.
Otori Takeo e Shirakawa Kaede esto casados e mais decididos do que
nunca a fortalecer seus domnios. No entanto, seu casamento apressado
enfureceu Arai Daiichi, o comandante que controla a maior parte dos Trs Pases,
e insultou o nobre Senhor Fujiwara, que se considerava noivo de Kaede. O brilho
da lua, terceiro volume de A saga Otori, acompanha o empenho de Kaede e
Takeo em consolidar seu poder e cumprir a profecia da mulher sagrada: Suas
terras se estendero de um mar a outro. A paz, no entanto, vir ao preo desangue derramado. Cinco batalhas lhe custar a paz, quatro para vencer e uma
para perder...
O brilho da lua, continuao fascinante de A relva por travesseiro e O
piso-rouxinol, nos faz conhecer mais profundamente as complexas relaes de
lealdade que vinculam os personagens do romance desde o nascimento. Cheio de
aventuras e de tramas surpreendentes, tambm nos proporciona uma rara viso
das influncias externas que se introduzem naquele reino isolado.
"Eu no contara a ningum sobre as palavras da profetisa, mas agora
tinha vontade de cont-las a Kaede. Sussurrei-lhe algumas delas: disse-lhe que
em mim misturavam-se trs sangues; que eu nascera entre os Ocultos mas minha
vida j no me pertencia; que eu estava destinado a governar em paz de um mar
a outro, quando a Terra realizasse o que o Cu desejava. Dissera essas palavras
para mim mesmo repetidamente, e, como j disse, s vezes acreditava nelas e s
vezes no. Disse a Kaede que cinco batalhas nos trariam paz, quatro para vencer
e uma para perder, mas no lhe falei das previses da mulher sobre meu filho, ou
seja, que eu morreria pelas mos dele."
2
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
3/300
3
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
4/300
4
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
5/300
Lian Hearn
A SAGA OTORITerceira parte O BRILHO DA LUA
Martins Fontes
So Paulo 2004
Esta obra foi publicada originalmente em ingls com o ttulo
OTORI TRILOGY: ACROSS THE NIGHTINGALE-FLOOR
Por Hodder Headline Australia Pty Limited, Austrlia.
Lian Hearn, 2002.
Citao retirada do Manyoshu. vol. 9, n 1790, de "The Country of lhe
Eight Islands" de Hiroaki Sato e Burton Watson 1986 Columbia University
Press.
Reimpresso com a permisso do editor.
1edio Outubro de 2002
Traduo WALDA BARCELLOS
Reviso da traduo e texto final Monica StahelReviso grfica Luzia Aparecida dos Santos e Renato da Rocha Carlos
Produo grfica Geraldo Alves
Paginao/Fotolitos Studio 3 Desenvovimento Editorial
5
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
6/300
Para B.
Tambm outros, em povoados remotos,
Sem dvida vem esta lua Que nunca indaga que sentinela pede a noite...
No vento invisvel da montanha,
Um grito alto estremece no corao,
E em algum lugar um galho deixa cair uma folha
The Fulling Block [A pedra de pisoar] (Kinuta), de Zeami
Japanese No Drama: Penguin Books
Trad. para o ingls: Royall Tyler
6
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
7/300
Prefcio
Estes acontecimentos ocorreram nos meses seguintes ao casamento deOtori Takeo com Shirakawa Kaede, no templo de Terayama. Esse casamento
reforou a deciso de Kaede de herdar o domnio de Maruyama e propiciou a
Takeo os recursos necessrios para vingar seu pai adotivo, Shigeru, e tomar seu
lugar como chefe do cl Otori. No entanto, essa unio tambm enfureceu o senhor
Arai Daiichi, que ento controlava a maior parte dos Trs Pases, e insultou o
nobre senhor Fujiwara, que considerava Kaede sua noiva.
No inverno anterior, Takeo, sobre quem pesava a sentena de morte da
Tribo, fugira para Terayama. L teve acesso s informaes detalhadas que
Shigeru registrara sobre a Tribo e recebeu Jato, a espada de Otori. No caminho,
sua vida foi salva pelo pria Jo-An, membro da seita proibida, os Ocultos, que o
levou a um santurio na montanha para ouvir as palavras profticas de uma
mulher sagrada.
Trs sangues se misturam em voc. Nasceu entre os Ocultos, porm sua
vida foi trazida a cu aberto e j no lhe pertence. A Terra realizar o que o Cu
deseja.Suas terras se estendero de um mar a outro ela disse, finalmente.
A paz, no entanto, vir ao preo de sangue derramado. Cinco batalhas lhe custar
a paz, quatro para vencer e uma para perder...
7
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
8/300
1.
A pena estava na palma da minha mo. Segurei-a com cuidado, ciente desua idade e de sua fragilidade. Sua brancura ainda era translcida, a cor vermelha
de suas pontas ainda brilhava.
de um pssaro sagrado, o houou disse-me Matsuda Shingen,
abade do templo de Terayama. Ele apareceu para seu pai adotivo, Shigeru,
quando ele tinha apenas quinze anos, portanto menos do que voc tem agora. Ele
nunca lhe falou sobre isso, Takeo?
Balancei a cabea. Matsuda e eu estvamos em seu quarto, numa das
extremidades do claustro que rodeava o ptio principal do templo. De fora,
abafando os sons habituais do templo, o dos cantos e o dos sinos, chegava o
rudo agitado dos preparativos, de muita gente indo e vindo. Eu ouvia Kaede,
minha esposa, do outro lado do porto, falando com Amano Tenzo sobre os
problemas da alimentao de nosso exrcito durante a jornada. Estvamos nos
preparando para a viagem a Maruyama, o grande domnio a oeste, de que Kaede
era herdeira por direito. amos reivindic-lo em nome dela e lutar por ele, se
necessrio. Desde o final do inverno, guerreiros chegavam a Terayama para se
juntar a mim. Agora eu j tinha quase mil homens, alojados no templo e nos
povoados dos arredores, sem contar os lavradores do distrito, que tambm me
apoiavam intensamente.
Amano era de Shirakawa, lar ancestral de minha esposa, e o mais
confivel de seus serviais, grande cavaleiro e bom com todos os animais. Nos
dias que se seguiram a nosso casamento, Kaede e sua acompanhante, Manami,
tinham se mostrado muito hbeis em lidar com a preparao e distribuio deequipamentos. Discutiam tudo com Amano, que comunicava suas decises aos
homens. Aquela manh ele estava enumerando os carros de boi e cavalos de
carga que tnhamos nossa disposio. Tentei no ouvir, concentrar-me no que
Matsuda me dizia, mas estava inquieto e ansioso para partir.
Tenha pacincia disse Matsuda, com brandura. -S mais um minuto.
8
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
9/300
O que voc sabe sobre o houou?
Relutante, voltei a prestar ateno na pena que tinha na mo e tentei me
lembrar do que Ichiro, meu antigo professor, me ensinara quando eu morava na
casa do Senhor Shigeru, em Hagi.
o pssaro sagrado lendrio que aparece em tempos de justia e paz.
E se escreve da mesma maneira que o nome de meu cl, Otori.
Certo disse Matsuda, sorrindo. No aparece com freqncia, pois
justia e paz so coisas raras hoje em dia. Mas Shigeru o viu, e acredito que essa
viso o tenha inspirado a buscar essas virtudes. Eu lhe disse ento que as penas
do pssaro eram tingidas de sangue, e, de fato, ns dois, voc e eu, ainda somos
guiados pelo sangue, pela morte de Shigeru.
Examinei a pena mais detidamente. Ela estava pousada na palma daminha mo direita, sobre a cicatriz de uma queimadura que eu sofrera havia muito
tempo, em Mino, minha terra natal, no dia em que Shigeru salvara minha vida. Eu
tambm trazia na mo a marca dos Kikuta, famlia da Tribo a que eu pertencia, da
qual eu fugira no inverno anterior. Minha herana, meu passado e meu futuro
pareciam estar ali, na palma da minha mo.
Por que est me mostrando a pena agora?
Logo voc vai partir. Esteve conosco o inverno todo, estudando,
treinando e se preparando para cumprir as ltimas instrues que Shigeru lhe deu.
Queria que voc compartilhasse a viso que ele teve e se lembrasse de que o
objetivo de Shigeru era a justia, tal como deve ser o seu.
Nunca me esquecerei disso prometi. Inclinei-me reverente para a
pena, segurando-a de leve com as duas mos, e a devolvi ao abade. Ele a pegou,
tambm se inclinou e voltou a coloc-la na caixinha laqueada da qual a tirara.
Fiquei em silncio, relembrando tudo o que Shigeru fizera por mim e o quanto
ainda me restava fazer por ele.
Ichiro me falou sobre o houou quando estava me ensinando a escrever
meu nome eu disse, finalmente. Quando o vi em Hagi, o ano passado, ele
me aconselhou a esper-lo aqui, mas no posso esperar mais.
Preocupava-me com meu velho professor desde que a neve comeara a
9
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
10/300
derreter, mas sabia que os senhores Otori, tios de Shigeru, tentavam tomar posse
de minha casa e de minhas terras em Hagi e que Ichiro continuava resistindo a
eles obstinadamente.
O que eu no sabia era que Ichiro j estava morto. Recebi a notcia no dia
seguinte. Estava conversando com Amano no ptio quando ouvi sons ao longe,
vindos de baixo: gritos furiosos, ps correndo, pisadas de cascos. O rudo de
cavalos subindo a encosta a galope era inesperado e assustador. Quase ningum
subia a cavalo at o templo de Terayama. As pessoas em geral subiam a
montanha a p, e os idosos e invlidos vinham carregados.
Alguns segundos depois Amano tambm ouviu. Eu j estava correndo at
os portes do templo, chamando pelos guardas.
Rapidamente eles fecharam e trancaram os portes. Matsuda veiocorrendo pelo ptio. No estava de armadura, mas trazia a espada na cinta. Antes
que pudssemos falar um com o outro, ouviu-se um desafio na casa da guarda:
Quem ousa chegar a cavalo aos portes do templo? Desa e aproxime-
se com respeito deste lugar de paz.
Era a voz de Kubo Makoto. Jovem monge guerreiro de Terayama, nos
ltimos meses ele se tornara meu melhor amigo. Corri at a paliada e subi pela
escada at a guarita. Makoto gesticulava pela vigia. Pelas frestas entre as tbuas
eu via quatro cavaleiros. Tinham subido a montanha a galope e, agora, puxavam
as rdeas para deter os cavalos. Estavam de armadura e o emblema dos Otori era
nitidamente visvel em seus elmos. Por um momento, pensei que fossem
mensageiros de Ichiro. Ento meus olhos deram com o cesto amarrado a uma das
selas. Meu corao virou pedra. Foi fcil adivinhar o que havia naquele cesto.
Os cavalos se empinavam e corcoveavam, no s excitados pelo galope,
mas tambm alarmados. Dois deles j estavam com a garupa sangrando. Uma
multido de homens enfurecidos surgiu do caminho estreito, todos armados de
estacas e foices. Reconheci alguns deles: eram lavradores do povoado vizinho. O
ltimo guerreiro da fila os espantou, dando golpes de espada no ar. Os homens
recuaram um pouco mas no se dispersaram, mantendo sua postura ameaadora,
formando um semicrculo cerrado.
10
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
11/300
O chefe dos cavaleiros lanou-lhes um olhar de desprezo e depois gritou
alto, na direo do porto:
Sou Fuwa Dosan, do cl Otori, de Hagi. Trago uma mensagem dos
Senhores Shoichi e Masahiro para o impostor que chama a si mesmo de Otori
Takeo.
Makoto respondeu:
Se forem mensageiros de paz, desam de seus cavalos e larguem as
espadas. Os portes sero abertos.
Eu j sabia qual seria a mensagem deles. Sentia a cegueira da fria
invadir meus olhos.
No h necessidade disso Fuwa replicou, desdenhoso. Nosso
recado curto. Digam ao assim chamado Takeo que os Otori no reconhecemsuas reivindicaes e desse modo lidaro com ele e com quem quer que o siga.
O homem a seu lado largou as rdeas sobre o pescoo de seu cavalo e
abriu o cesto, tirando dele o que eu temia ver. Segurando a cabea de Ichiro pelos
cabelos, ele balanou o brao e a jogou por cima da cerca, para dentro dos limites
do templo.
A cabea caiu com um baque surdo sobre o gramado do jardim. Tirei Jato,
minha espada, da cintura.
Abram os portes! gritei. Vou sair atrs deles. Desci a escada
voando, Makoto desceu atrs de mim. Quando os portes se abriram, os
guerreiros Otori, brandindo as espadas, viraram seus cavalos e os fizeram
avanar contra a muralha de homens que os rodeava. Decerto imaginaram que os
lavradores no fossem ousar atac-los. At eu me surpreendi com o que
aconteceu em seguida. Em vez de se afastarem para deix-los passar, os homens
que estavam a p se arremessaram sobre os cavalos. Dois lavradores morreram
imediatamente, cortados ao meio pelas espadas dos guerreiros, mas ento o
primeiro cavalo foi derrubado e seu cavaleiro caiu entre os homens sua volta. Os
outros tiveram a mesma sorte.
No tiveram oportunidade de usar sua habilidade de espadachins, pois
foram arrancados de suas montarias e espancados at morrer, como ces.
11
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
12/300
Makoto e eu tentamos coagir os lavradores e, finalmente, conseguimos
tir-los de cima dos corpos. S conseguimos acalm-los depois que decapitamos
os guerreiros e expusemos suas cabeas nos portes do templo. O exrcito
espontneo ainda lanou insultos contra elas por algum tempo e depois se retirou.
Os homens desciam a montanha prometendo aos gritos que, se qualquer estranho
ousasse se aproximar do templo para insultar o Senhor Otori Takeo, o Anjo de
Yamagata, receberia o mesmo tratamento.
Makoto tremia de dio, e outras emoes sobre as quais queria falar
comigo, mas naquele instante eu no tinha tempo. Voltei para dentro dos muros.
Kaede trouxera panos brancos e gua numa tina de madeira. Ajoelhada
no cho, embaixo das cerejeiras, ela lavava tranqilamente a cabea de Ichiro,
que estava com a pele azul-acinzentada e os olhos semicerrados. O pescoo notinha sido cortado de uma s vez e trazia marcas de muitos golpes. Kaede lidava
com ela carinhosamente, como se fosse um objeto precioso e bonito.
Ajoelhei-me a seu lado, estendi a mo e toquei o cabelo do morto. Era
listrado de cinza, mas o rosto, na morte, parecia mais jovem do que a ltima vez
que eu vira Ichiro, na casa de Hagi, melanclico e assediado por fantasmas,
embora ainda desejando me mostrar afeio e me orientar.
Quem ? Kaede perguntou, em voz baixa.
Ichiro. Foi meu professor em Hagi. E de Shigeru tambm.
Estava com o corao muito apertado para falar mais. Enxuguei as
lgrimas. A lembrana de nosso ltimo encontro me veio mente. Desejaria ter
conversado mais com ele, ter falado de minha gratido e de meu respeito.
Perguntava-me como ele teria morrido, se fora humilhado e se agonizara.
Desejava que seus olhos se abrissem, que seus lbios exangues falassem. Como
so irrecuperveis os mortos, como se separam completamente de ns! At
quando seus espritos retornam, no falam de sua prpria morte.
Nasci e fui criado entre os Ocultos, que acreditam que s aqueles que
seguem os mandamentos do Deus Secreto voltaro a se encontrar alm da vida.
Todos os outros sero consumidos no fogo do inferno. Eu no sabia se Shigeru,
meu pai adotivo, fora crente, mas ele conhecia todos os ensinamentos dos
12
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
13/300
Ocultos e disse suas preces na hora da morte, junto com o nome do Iluminado.
Ichiro, seu conselheiro e mordomo, nunca dera sinal disso. Na verdade, pelo
contrrio, desde o incio ele suspeitara que Shigeru me salvara da perseguio de
Iida Sadamu aos Ocultos e me vigiava como um cormoro para evitar que eu
fosse levado embora.
Mas eu j no seguia os ensinamentos de minha infncia e no acreditava
que um homem com a integridade e a lealdade de Ichiro estivesse no inferno.
Muito mais fortes eram minha indignao contra a injustia daquele assassnio e a
conscincia de que agora havia mais uma morte a ser vingada.
Eles pagaram com suas vidas disse Kaede. Por que matar um
velho e se dar ao trabalho de trazer a cabea dele at voc?
Ela lavou os ltimos vestgios de sangue e envolveu a cabea em umpano branco limpo.
Imagino que os Senhores Otori queiram me eliminar repliquei.
Preferem no atacar Terayama. Se o fizerem, daro com os soldados de Arai.
Esperam me atrair para fora da fronteira e me encontrar l.
Eu ansiava por esse encontro para puni-los de uma vez por todas. As
mortes dos guerreiros tinham atenuado minha fria temporariamente, mas eu a
sentia ferver em meu corao. No entanto, era preciso ter pacincia. Minha
estratgia era antes me retirar para Maruyama e l constituir minhas foras. No
desistiria disso.
Encostei a testa na grama, despedindo-me de meu professor. Manami
veio do quarto de hspedes e se ajoelhou um pouco atrs de ns.
Trouxe uma caixa, senhora ela sussurrou.
Era uma espcie de pequeno estojo tecido de ramos de salgueiro e tiras
de couro tingido de vermelho. Kaede o abriu e de dentro dele desprendeu-se um
cheiro de alo. Ela colocou a pequena trouxa branca dentro da caixa e em torno
dela ajeitou as alos. Ento pousou a caixa no cho, sua frente, e ns trs mais
uma vez nos inclinamos diante dela.
Num arbusto, um passarinho entoou seu canto de primavera e um cuco, o
primeiro que eu ouvia aquele ano, respondeu do meio da floresta.
13
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
14/300
No dia seguinte procedemos aos rituais fnebres e enterramos a cabea
perto do tmulo de Shigeru. Ordenei que uma outra lpide fosse erigida para
Ichiro. Eu ansiava por saber o que acontecera com a velha Chiyo e com os outros
criados da casa de Hagi. Atormentava-me a idia de que a casa talvez j no
existisse, de que tivesse sido incendiada: a casa de ch, a sala do andar superior
onde tantas vezes nos sentvamos olhando para o jardim, o piso-rouxinol, tudo
destrudo, suas canes silenciadas para sempre. Minha vontade era ir correndo
at Hagi para reivindicar minha herana, antes que me fosse tomada. No entanto,
eu sabia que era exatamente isso que os Otori esperavam que fizesse.
Cinco lavradores tinham morrido na hora, outros dois morreram um pouco
depois, em conseqncia de seus ferimentos. Dois cavalos foram gravemente
feridos e Amano os sacrificou, mas os outros dois estavam ilesos.De um deles eu gostava especialmente: era um belo garanho preto que
me lembrava o cavalo de Shigeru, Kyu, e talvez at fosse seu meio-irmo. Por
insistncia de Makoto, enterramos os guerreiros Otori com todos os rituais, orando
para que seus espritos, ofendidos por suas mortes ignbeis, no passassem a
nos assombrar.
Ao entardecer, o abade foi at o quarto de hspedes, e ficamos
conversando at tarde da noite. Makoto e Miyoshi Kahei, meu aliado e amigo de
Hagi, tambm estavam conosco. Gemba, irmo mais novo de Kahei, fora enviado
a Maruyama para avisar o chefe dos criados, Sugita Haruki, de nossa partida
iminente. No inverno anterior, Sugita garantira a Kaede que apoiaria sua
reivindicao. Kaede no ficou conosco. Por vrias razes, ela e Makoto no se
sentiam vontade um na presena do outro e ela o evitava ao mximo. No
entanto, eu lhe sugerira antes que se sentasse atrs da porta para ouvir o que
dizamos. Eu desejava ouvir sua opinio depois. Desde que nos tnhamos casado,
eu conversava com ela como nunca antes conversara com ningum. Por tanto
tempo eu me calara que agora eu no me cansava de compartilhar meus
pensamentos com ela. Confiava em seu julgamento e em sua sabedoria.
Quer dizer que agora vocs esto em guerra disse o abade , e
seu exrcito j enfrentou um primeiro conflito.
14
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
15/300
No bem um exrcito disse Makoto. Um bando de lavradores!
Como ir puni-los?
O que est querendo dizer? repliquei.
Lavradores no deveriam matar guerreiros ele disse. Qualquer
um no seu lugar os puniria duramente. Seriam crucificados, mergulhados em leo
fervente, esfolados vivos.
Sero punidos se os Otori os pegarem resmungou Kahei.
Estavam lutando para me defender eu disse. No fundo, eu achava
que os guerreiros tinham merecido seu fim vergonhoso, embora lamentasse no
os ter matado pessoalmente. No irei puni-los. Minha maior preocupao
como proteg-los.
Voc soltou um bicho-papo. Espero que consiga control-lo.O abade sorriu por trs de seu copo de vinho. Alm de seus comentrios
anteriores sobre justia, durante todo o inverno ele me dera aulas de estratgia e,
por ter ouvido minhas teorias sobre a tomada de Yamagata e outras campanhas,
sabia de meus sentimentos para com meus lavradores.
Os Otori querem me eliminar eu disse, conforme dissera antes a
Kaede.
Sim, mas voc deve resistir tentao ele replicou. Naturalmente,
seu primeiro impulso de vingana, mas, mesmo que vocs derrotassem seu
exrcito num confronto, eles simplesmente se retirariam para Hagi. Um cerco
longo seria um desastre. A cidade praticamente invulnervel e, cedo ou tarde,
vocs teriam as foras de Arai na sua retaguarda.
Arai Daiichi era o comandante de Kumamoto que tirara vantagem da
derrota dos Tohan para assumir o controle dos Trs Pases. Eu o enfurecera ao
desaparecer com a Tribo no ano anterior. Agora, depois de meu casamento com
Kaede, certamente estava mais furioso ainda. Ele tinha um exrcito imenso, e eu
no queria enfrent-lo antes de fortalecer o meu.
Ento devemos primeiro ir at Maruyama, conforme o planejado. Mas,
se eu deixar o templo desprotegido, vocs e os habitantes do distrito sero
atacados pelos Otori.
15
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
16/300
Podemos trazer muita gente para dentro de nossos muros disse o
abade. Acho que temos armas e suprimentos suficientes para resistir aos Otori
se eles de fato atacarem. Pessoalmente, no acredito que o faam. Arai e seus
aliados no desistiro de Yamagata sem uma longa luta, e muitos dos Otori
relutariam em destruir este lugar, considerado sagrado pelo cl. Seja como for,
estaro mais preocupados em perseguir voc ele fez uma pausa e continuou:
Voc no pode entrar numa guerra sem estar preparado para o sacrifcio.
Muitos homens morrero nas batalhas e, se voc perder, muitos deles, inclusive
voc, podero ter uma morte sofrida. Os Otori no reconhecem sua adoo, no
sabem quem so seus ancestrais. Para eles, voc um impostor, no de sua
classe. Voc no pode deixar de agir porque pessoas iro morrer. At seus
lavradores sabem disso. Sete deles morreram hoje, mas os que sobreviveram noesto tristes. Esto comemorando a vitria sobre aqueles que o insultaram.
Eu sei disse eu, olhando para Makoto. Ele apertava os lbios, e,
apesar de seu rosto inexpressivo, eu sentia sua desaprovao. Eu tinha
conscincia de minha fraqueza como comandante. Temia que Makoto e Kahei,
criados dentro da tradio guerreira, passassem a me desdenhar.
Ns nos juntamos a voc porque escolhemos, Takeo prosseguiu o
abade , por causa de nossa lealdade a Shigeru e porque acreditamos que sua
causa justa.
Inclinei a cabea, aceitando a repreenso e fazendo votos de que nunca
mais ele tivesse que me falar naquele tom.
Partiremos para Maruyama depois de amanh.
Makoto ir com voc disse o abade. Como voc sabe, ele adotou
sua causa.
Os lbios de Makoto se encurvaram levemente quando ele meneou a
cabea, concordando.
Mais tarde, aquela noite, por volta da segunda metade da Hora do Rato,
quando estava prestes a me deitar ao lado de Kaede, ouvi vozes do lado de fora.
Um pouco depois Manami nos chamou baixinho para dizer que um monge viera
com um recado da casa da guarda.
16
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
17/300
Pegamos um prisioneiro ele me disse, quando fui lhe falar. Foi
pego escondido entre os arbustos perto do porto. Os guardas o perseguiram e
quase o mataram ali mesmo, mas ele gritou seu nome e disse que era um de seus
homens.
Vou falar com ele eu disse, pegando Jato. Suspeitei que o tal
prisioneiro fosse o pria Jo-An, que me vira em Yamagata quando eu libertara
pela morte seu irmo e outros membros dos Ocultos. Ele me dera ento o apelido
de Anjo de Yamagata e, depois, salvara-me a vida em minha caminhada
desesperada at Terayama, no inverno. Eu lhe havia dito que mandaria cham-lo
na primavera e que deveria esperar at receber meu recado. No entanto, Jo-An s
vezes tinha atitudes imprevisveis, geralmente em resposta ao que dizia ser a voz
do Deus Secreto.Era uma noite suave e quente, no ar sentia-se a umidade do vero. Uma
coruja piava no meio dos pinheiros. Jo-An estava deitado no cho, perto do
porto. Fora amarrado rudemente, com as pernas dobradas sob o corpo e as
mos atadas nas costas. Tinha o rosto sujo de poeira e sangue e os cabelos
emaranhados. Movia os lbios levemente, fazendo uma prece silenciosa. Dois
monges o vigiavam a uma distncia prudente, com expresso de desdm.
Chamei-o pelo nome e seus olhos se abriram. Vi neles um brilho de alvio.
Ao tentar se ajoelhar, caiu para a frente, incapaz de se segurar com as mos, e
bateu o rosto no cho.
Podem desamarr-lo eu disse.
Um dos monges disse:
Ele um pria. No devemos tocar nele.
Quem o amarrou?
Na hora no percebemos disse o outro.
Depois vocs se lavam. Esse homem salvou-me a vida. Desamarrem-
no.
Ainda relutantes, ergueram Jo-An e soltaram as cordas que o amarravam.
Ele se aproximou de mim rastejando e se prostrou a meus ps.
Sente-se, Jo-An eu disse. O que houve? Eu disse que s viesse
17
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
18/300
quando eu mandasse cham-lo. Teve sorte de no ser morto, chegando aqui sem
avisar e sem autorizao.
A ltima vez que o vira eu estava quase to esfarrapado e desgrenhado
quanto ele. Eu era ento um fugitivo, exausto e faminto. Agora eu vestia uma
tnica, tinha os cabelos presos ao estilo dos guerreiros e trazia a espada na
cintura. Sabia que os monges deviam estar profundamente chocados por me ver
conversando com um pria. Uma parte de mim estava tentada a expuls-lo, a
negar que houvesse qualquer relao entre ns e a afast-lo para sempre da
minha vida. Se eu desse essa ordem aos guardas, eles o matariam
imediatamente. No entanto, eu no podia faz-lo. Ele salvara minha vida. Alm do
mais, em nome do vnculo que havia entre ns, os dois nascidos em meio aos
Ocultos, eu tinha que trat-lo no como pria, mas como ser humano. Ningum me matar enquanto o Deus Secreto no me chamar ele
murmurou, levantando os olhos para mim. At esse dia, minha vida pertence ao
senhor.
No lugar em que estvamos havia apenas a luz do lampio que o monge
trouxera da casa da guarda e colocara no cho, perto de ns. Mesmo assim, eu
via os olhos de Jo-An inflamados. Tal como j fizera muitas vezes, perguntei-me
se ele estava mesmo vivo ou se era um visitante de outro mundo.
O que voc quer? perguntei.
Tenho uma coisa muito importante para lhe dizer. Vai me agradecer por
eu ter vindo.
Os monges tinham recuado para no se poluir, mas estavam a uma
distncia suficiente para nos ouvir.
Preciso falar com este homem eu disse. Onde podemos ficar?
Entreolharam-se constrangidos, e o mais velho sugeriu:
Talvez no pavilho do jardim.
No precisam vir comigo.
Devemos proteger o Senhor Otori disse o mais moo.
Com este homem no corro perigo. Deixem-nos sozinhos. Digam a
Manami que traga gua, comida e ch.
18
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
19/300
Eles fizeram uma reverncia e se afastaram. Atravessaram o ptio
olhando para ns e cochichando um com o outro. Ouvi tudo o que disseram e
suspirei.
Venha comigo eu disse a Jo-An.
Ele foi mancando atrs de mim at o pavilho, que ficava no jardim, no
muito longe do lago. A gua cintilava sob a luz das estrelas e de vez em quando
um peixe pulava acima da superfcie e voltava a cair ruidosamente. Do outro lado
do lago as lpides brancas acinzentadas dos tmulos destacavam-se da
escurido. A coruja voltou a piar, desta vez mais perto de ns.
Foi Deus que me mandou vir ele disse, depois que nos instalamos
no piso de madeira do pavilho.
No deve falar to abertamente em Deus repreendi. Est numtemplo. Os monges no tm pelos Ocultos mais apreo do que os guerreiros.
O senhor est aqui ele murmurou. nossa esperana e nossa
proteo.
Sou apenas um. No posso proteger todos vocs dos sentimentos de
todo um pas.
Ele se calou por um momento, depois disse:
O Deus Secreto pensa no senhor o tempo todo, mesmo que o senhor o
tenha esquecido.
Eu no queria ouvir esse tipo de mensagem.
O que tem a me dizer? perguntei, impaciente.
Os homens que encontrou o ano passado, os carvoeiros, estavam
levando o deus deles de volta para a montanha. Encontrei-os no caminho.
Disseram-me que os homens dos Otori esto vigiando todas as estradas em torno
de Terayama e Yamagata. Fui verificar pessoalmente. H soldados escondidos
por toda parte. Eles o pegaro em emboscada assim que o senhor partir. Se
quiser sair, ter que lutar para passar por eles.
Seus olhos estavam fixos em mim, observando minha reao. Eu me
maldizia por ter me demorado tanto no templo. O tempo todo eu sabia que rapidez
e surpresa eram minhas armas principais. Deveria ter ido embora antes. Eu adiara
19
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
20/300
minha partida esperando por Ichiro. Antes de me casar, eu saa todas as noites
para vigiar as estradas em torno do templo. Mas desde que Kaede viera juntar-se
a mim eu no conseguia me afastar dela. Agora eu cara na armadilha da minha
prpria vacilao e falta de vigilncia.
Quantos homens voc calcula que sejam?
Cinco ou seis mil ele respondeu. Eu no tinha nem mil.
Ento vai ter que atravessar pela montanha, como fez no inverno. H
uma trilha que vai para oeste. Ningum a est vigiando porque ainda h neve no
desfiladeiro.
Meu pensamento corria veloz. Eu conhecia a trilha de que ele falava.
Passava pelo santurio em que Makoto planejara passar o inverno antes de eu
irromper do meio da neve na minha fuga para Terayama, no inverno. Eu aexplorara algumas semanas antes e acabara voltando quando a neve se tornara
profunda demais, impedindo a passagem. Pensei em minha fora, nos homens,
cavalos e bois. Os bois no conseguiriam passar, mas os homens e os cavalos
sim. Eu os mandaria noite, se possvel, para que os Otori pensassem que ainda
estvamos no templo... Tinha que agir rpido, consultar o abade imediatamente.
Meus pensamentos foram interrompidos por Manami e um criado. O
homem carregava uma vasilha de gua. Manami trazia uma bandeja com uma
tigela de arroz com legumes e duas xcaras de ch de ervas. Ela colocou a
bandeja no cho, olhando para Jo-An com repugnncia, como se ele fosse uma
cobra. A reao do homem tambm foi de horror. Perguntei-me se me prejudicaria
ser visto na companhia de um pria. Pedi-lhes que se retirassem e eles o fizeram
rapidamente. Ainda ouvi os murmrios de reprovao de Manami no caminho de
volta casa de hspedes.
Jo-An lavou as mos e o rosto, depois juntou as mos para dizer a
primeira prece dos Ocultos. Embora eu respondesse quelas palavras que me
eram familiares, uma onda de irritao tomou conta de mim. Mais uma vez Jo-An
arriscara a vida para me trazer aquelas notcias vitais, mas eu desejava que fosse
mais discreto, e meu esprito sucumbiu diante do pensamento do risco que ele
poderia representar.
20
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
21/300
Quando ele terminou de comer, eu disse:
melhor voc ir embora. Tem um longo caminho de volta para casa.
Jo-An no respondeu, mas se sentou, com a cabea levemente inclinada,
na posio de escuta que para mim, agora, era to conhecida.
No ele disse, finalmente. Tenho que ir com o senhor.
Impossvel. No o quero comigo.
o desejo de Deus ele disse.
No havia como faz-lo desistir, a no ser matando-o ou mandando
prend-lo, maneiras vergonhosas de agradecer sua ajuda.
Tudo bem eu disse , mas voc no pode ficar no templo.
No mesmo ele concordou, docilmente , tenho que buscar os
outros. Que outros, Jo-An?
Nossos outros homens, os que vieram comigo. O senhor viu alguns
deles.
Eu vira aqueles homens no curtume perto do rio, onde Jo-An trabalhava, e
nunca me esqueceria do modo como me olhavam. Sabia que esperavam de mim
justia e proteo. Lembrei-me da pena: justia era o que Shigeru desejava. Eu
tambm deveria busc-la, em memria dele e por aqueles homens que, afinal,
ainda estavam vivos.
Jo-An voltou a juntar as mos e agradeceu a comida. Um peixe saltou em
meio ao silncio.
Quantos eles so? perguntei.
Cerca de trinta. Esto escondidos na montanha. Nas ltimas semanas,
foram atravessando a fronteira um a um ou de dois em dois.
A fronteira no est guardada?
Houve rixas entre os homens de Otori e os de Arai. No momento houve
um recuo. As fronteiras esto todas abertas. Os Otori deixaram claro que no
esto desafiando Arai nem querendo retomar Yamagata. S querem eliminar o
senhor.
Essa parecia ser a misso de todo o mundo.
21
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
22/300
O povo est dando apoio a eles? perguntei.
Claro que no! ele disse, quase com impacincia. O senhor sabe
quem o povo apia: o Anjo de Yamagata. Alis, como todos ns. Seno, por que
estaramos aqui?
Eu no tinha certeza de desejar o apoio deles, mas no podia deixar de
me impressionar com sua coragem.
Obrigado eu disse.
Ele sorriu, mostrando as falhas de seus dentes. Lembrei-me ento das
torturas que sofrera por minha causa.
Vamos encontr-lo do outro lado da montanha. Pode estar certo de que
vai precisar de ns.
Pedi aos guardas que abrissem o porto e me despedi dele. Fiqueiolhando seu vulto frgil e tortuoso afastar-se na escurido. Na floresta uma raposa
uivou, como um fantasma atormentado. Estremeci. Jo-An parecia guiado e
amparado por algum poder sobrenatural. Embora eu j no acreditasse nisso,
temia sua fora como uma criana supersticiosa.
Voltei casa de hspedes, arrepiado. Tirei as roupas e, apesar de j ser
muito tarde, pedi a Manami que as levasse, para lav-las e purific-las, e depois
fosse casa de banhos. Ela me esfregou inteiro e fiquei mergulhado na gua
quente por dez ou quinze minutos. Depois de vestir roupas limpas, pedi ao criado
que fosse chamar Kahei e perguntar ao abade se poderamos falar com ele. Era a
primeira metade da Hora do Boi.
Encontrei Kahei na galeria, falei-lhe brevemente sobre o que soubera e fui
com ele at o quarto do abade. Mandamos o criado chamar Makoto no templo,
onde ele estava de viglia. Decidimos que assim que possvel mobilizaramos o
exrcito inteiro, exceto um pequeno grupo de cavaleiros, que ficaria em Terayama
durante um dia para lutar na retaguarda.
Kahei e Makoto foram imediatamente ao povoado para alertar Amano e os
outros homens e comear a embalar vveres e equipamentos. O abade mandou
alguns criados levarem as informaes aos monges, temendo que tocar o sino do
templo quela hora da noite pudesse ser um aviso aos espies. Fui ter com
22
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
23/300
Kaede.
Ela estava esperando por mim, j de roupa de dormir, o cabelo solto nas
costas, como uma segunda tnica, intensamente preto em contraste com o tecido
marfim e sua pele branca. V-la, como sempre, me fez perder o flego. O que
quer que nos acontea, nunca me esquecerei daqueles dias de primavera que
passamos juntos. Minha vida parecia cheia de bnos imerecidas, mas aquela
era a maior de todas.
Manami disse que voc deixou um pria entrar e conversou com ele
ela estava to chocada quanto a criada.
, ele se chama Jo-An. Encontrei-o em Yamagata -eu disse. Tirei a
roupa, vesti o roupo e sentei-me na frente dela, com os joelhos encostados nos
seus.Seus olhos procuravam meu rosto:
Voc parece exausto. Venha se deitar.
Vou, sim. Precisamos tentar dormir algumas horas. Vamos partir assim
que amanhecer. Os Otori esto cercando o templo. Vamos atravessar pela
montanha.
Foi o pria que lhe trouxe notcias?
Arriscou a vida para isso.
Por qu? Como voc o conheceu?
Lembra-se do dia em que chegamos aqui com o Senhor Shigeru?
Nunca poderei esquecer disse Kaede, sorrindo.
Na noite anterior, fui at o castelo e acabei com o sofrimento dos
prisioneiros pendurados em suas muralhas. Eram dos Ocultos. Ouviu falar neles?
Kaede meneou a cabea:
Shizuka me falou um pouco sobre eles. Foram torturados do mesmo
modo pelos Noguchi.
Um dos homens que matei era irmo de Jo-An. Quando sa do fosso,
Jo-An me viu e pensou que eu fosse um anjo.
O Anjo de Yamagata Kaede disse, lentamente. -Aquela noite,
quando voltamos, a cidade toda estava falando nele.
23
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
24/300
Depois disso voltamos a nos encontrar. De certo modo, nossos
destinos parecem estar entrelaados. O ano passado, ele me ajudou a chegar
aqui. S no morri no meio da neve por causa dele. No caminho, levou-me para
falar com uma mulher sagrada e ela disse coisas sobre minha vida.
Eu no dissera nada, nem mesmo a Makoto e a Matsuda, sobre as
palavras da profetisa, mas agora tinha vontade de cont-las a Kaede. Sussurrei-
lhe algumas delas: disse-lhe que em mim misturavam-se trs sangues; que eu
nascera entre os Ocultos mas minha vida j no me pertencia; que eu estava
destinado a governar em paz de um mar a outro, quando a Terra realizasse o que
o Cu desejava. Dissera essas palavras para mim mesmo repetidamente, e, como
j disse, s vezes acreditava nelas e s vezes no. Disse a Kaede que cinco
batalhas nos trariam paz, quatro para vencer e uma para perder, mas no lhe faleidas previses da mulher sobre meu filho, ou seja, que eu morreria pelas mos
dele. Ponderei que seria um fardo pesado demais para Kaede. No entanto, a
verdade era que eu no queria falar sobre um outro segredo que eu no lhe havia
revelado: Kaede no sabia que uma moa da Tribo, Yuki, filha de Muto Kenji,
carregava um filho meu.
Voc nasceu entre os Ocultos? ela disse, reticente. Mas a Tribo o
queria por causa do sangue de seu pai. Foi Shizuka quem me deu essa
explicao.
Muto Kenji revelou que meu pai era Kikuta, da Tribo, j na primeira vez
que esteve na casa de Shigeru. Mas s Shigeru sabia que meu pai tambm era
meio Otori.
Eu j havia mostrado a Kaede os documentos que confirmavam isso. O
pai de Shigeru, Otori Shigemori, era meu av.
E sua me? ela perguntou, em voz baixa. Se voc no se importa
de me contar...
Minha me era dos Ocultos. Fui criado entre eles. Minha famlia foi
massacrada em nossa aldeia, Mino, pelos homens de Iida. Eles teriam me matado
se Shigeru no me tivesse socorrido fiz uma pausa e ento falei daquilo em que
mal conseguia pensar. Eu tinha duas irms, ainda pequenas. Imagino que
24
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
25/300
tambm tenham sido mortas. Uma tinha nove anos e a outra sete.
Que coisa terrvel disse Kaede. Sempre temo por minhas irms.
Espero que possamos mandar busc-las quando chegarmos a Maruyama. Espero
que agora estejam em segurana.
Fiquei em silncio, pensando em Mino, onde todos nos sentamos to
seguros.
Que vida estranha a sua prosseguiu Kaede. A primeira vez que o
encontrei, achava que voc escondia tudo. Via-o se afastar como se estivesse
indo para um lugar escuro e secreto. Tinha vontade de segui-lo. Tinha vontade de
saber tudo sobre voc.
Vou lhe contar tudo. Mas agora vamos deitar e descansar.
Kaede tirou a colcha e nos deitamos no colcho. Abracei-a, soltei nossasroupas para sentir sua pele na minha. Ela chamou Manami para apagar as
lanternas. O cheiro de fumaa e leo ainda pairava no quarto depois que o rudo
dos passos da criada desapareceu.
Eu j conhecia todos os sons noturnos do templo: os perodos de
completo silncio, interrompidos a intervalos regulares pelos passos macios dos
monges que se levantavam no meio da noite para orar, os cantos baixos, o
repentino toque de um sino. Mas aquela noite o ritmo harmonioso e regular estava
perturbado, o tempo todo ouvia-se o barulho de pessoas indo e vindo. Eu estava
inquieto, sentindo que deveria participar dos preparativos, embora relutasse em
deixar Kaede.
O que significa ser um dos Ocultos? ela sussurrou.
Fui criado dentro de algumas crenas. J abandonei a maioria delas.
Ao dizer isso, senti um arrepio na nuca, como se um ar frio tivesse
passado por mim. Seria verdade que eu tinha abandonado as crenas da minha
infncia, pelas quais minha famlia morrera?
Diziam que Iida punira Shigeru por ele pertencer aos Ocultos, assim
como minha parenta, a Senhora Maruyama murmurou Kaede.
Shigeru nunca me falou disso. Ele conhecia as preces dos Ocultos e as
disse antes de morrer, mas a ltima palavra que pronunciou foi o nome do
25
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
26/300
Iluminado.
Eu ainda tinha dificuldade em pensar na morte de Shigeru. Ficava
paralisado de horror por me lembrar do que houvera depois e por meu luto
sufocante. Aquele dia, ao pensar em todos os acontecimentos, pela primeira vez
eu associei as palavras da profetisa s de Shigeru. " tudo um s", ela dissera.
Ento Shigeru tambm tinha essa crena. Pude ouvir seu riso maravilhado e tive a
impresso de que sorria para mim. Senti que alguma coisa profunda revelava-se
de repente a mim, algo que nunca eu conseguiria expressar em palavras. Meu
corao parecia ter parado de bater de tanta admirao. Em minha mente
silenciosa muitas imagens passaram ao mesmo tempo: a compostura de Shigeru
quando estava prestes a morrer, a compaixo da profetisa, minha sensao de
reverncia e expectativa ao chegar a Terayama, as pontas vermelhas da pena dehouou na palma de minha mo. Enxerguei a verdade que estava por trs dos
ensinamentos e das crenas, enxerguei como a luta humana turvava a clareza da
vida, enxerguei penalizado como estamos todos sujeitos ao desejo e morte,
tanto o guerreiro como o pria, o sacerdote, o lavrador e at o imperador. Que
nome eu poderia dar quela clareza? Cu? Deus? Destino? Ou uma multido de
nomes como os incontveis velhos espritos que os homens acreditavam habitar
neste mundo? Eram todas faces do que no tem face, expresses do que no
pode ser expresso, partes de uma verdade mas nunca toda a verdade.
E a Senhora Maruyama? perguntou Kaede, admirada com meu
longo silncio.
Acho que ela tinha crenas slidas, mas nunca conversamos sobre
isso. A primeira vez que a encontrei, ela desenhou o sinal em minha mo.
Mostre-me pediu Kaede. Tomei-lhe a mo e tracei o sinal em sua
palma.
Os Ocultos so perigosos? Por que todos os odeiam?
Eles no so perigosos. So proibidos de matar e por isso no se
defendem. Acreditam que todos so iguais diante de seu Deus e que ele julgar a
todos depois da morte. Grandes senhores, como Iida, odeiam esse ensinamento.
A maioria da classe dos guerreiros tambm. Se todos so iguais e se Deus v
26
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
27/300
tudo, certamente errado tratar o povo to mal. Nosso mundo viraria de cabea
para baixo se todos pensassem como os Ocultos.
E voc acredita nisso?
No acredito que exista um Deus assim, mas acredito que todos
deveriam ser tratados de maneira igual. Prias, lavradores, os Ocultos, todos
deveriam ser protegidos contra a crueldade e a cobia da classe guerreira. Quanto
a mim, quero utilizar todos os que estejam preparados para me ajudar. No me
importa que sejam lavradores ou prias. Todos sero aceitos em meu exrcito.
Kaede no contestou, mas imaginei que aquelas idias lhe parecessem
estranhas e repulsivas. Eu podia deixar de acreditar no Deus dos Ocultos, mas
no podia lutar contra minha formao de acordo com seus ensinamentos. Pensei
na ao dos lavradores contra os guerreiros Otori nos portes do templo. Eu osaprovara, pois os via como iguais, ao passo que Makoto se chocara e ficara
indignado. Ser que tinha razo? Ser que eu estava soltando um bicho-papo
que nunca conseguiria controlar?
Os Ocultos acreditam que as mulheres so iguais aos homens?
Kaede perguntou baixinho.
Aos olhos de Deus elas so. Geralmente os sacerdotes so homens,
mas, quando no h um homem na idade adequada, as mulheres mais velhas se
tornam sacerdotisas.
Voc me deixaria lutar em seu exrcito?
Com a habilidade que voc tem, se voc fosse outra mulher eu ficaria
feliz em t-la lutando a meu lado, como fizemos em Inuyama. No entanto, voc a
herdeira de Maruyama. Se morrer numa batalha, nossa causa estar
completamente perdida. Alm do mais, eu no suportaria.
Puxei Kaede para perto de mim, mergulhando o rosto em seus cabelos.
Havia mais uma coisa sobre a qual precisava falar com ela. Referia-se a outro
ensinamento dos Ocultos, incompreensvel para a classe guerreira: a proibio de
tirar a prpria vida.
Aqui estamos seguros sussurrei. Quando formos embora, tudo
ser diferente. Gostaria que pudssemos ficar juntos, mas haver momentos em
27
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
28/300
que seremos obrigados a nos separar. Muita gente quer que eu morra, mas isso
s acontecer depois que a profecia se cumprir e nosso pas estiver em paz,
estendendo-se de um mar a outro. Quero que prometa que, acontea o que
acontecer, seja o que for que lhe digam, voc no ir acreditar que eu morri
enquanto no vir com seus prprios olhos. Prometa que no vai se matar
enquanto no me vir morto.
Prometo ela disse, tranqilamente. E quero que voc faa o
mesmo.
Fiz a mesma promessa a Kaede. Ela adormeceu, e eu continuei deitado
no escuro, pensando no que me fora revelado. Tudo o que me fora concedido no
o fora por mim mas por aquilo que eu deveria realizar: um pas de paz e justia
onde o houou, alm de ser visto, pudesse construir seu ninho e criar seus filhotes.
2.
Dormimos pouco. Quando acordei, ainda estava escuro. Ouvi l fora
passos de gente e de cavalos subindo a montanha. Chamei Manami e acordeiKaede, pedindo-lhe que se vestisse. Eu voltaria para encontr-la quando fosse
hora de partirmos. Tambm lhe confiei a caixa com os registros de Shigeru sobre
a Tribo. Sentia que deveria mant-los protegidos o tempo todo, pois seriam uma
salvaguarda contra a sentena de morte que a Tribo decretara contra mim e uma
possvel garantia de aliana com Arai Daiichi, agora o senhor mais poderoso dos
Trs Pases.
O templo j fervilhava de atividade. Os monges se preparavam, no para
as preces matinais mas para um contra-ataque s foras dos Otori e para a
resistncia a um eventual cerco prolongado. Tochas formavam sombras trmulas
nos rostos soturnos dos homens que se aprontavam para a guerra. Vesti uma
armadura de couro, atada com cordes vermelhos e dourados. Era a primeira vez
que eu a envergava com um propsito real. Ela me fazia sentir-me mais velho e eu
28
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
29/300
esperava que me desse segurana. Fui at o porto assistir partida de meus
homens ao raiar do dia. Makoto e Kahei j tinham partido na frente, com as tropas
de vanguarda. Maaricos e faises chamavam no vale. O orvalho se grudava s
folhas de bambu e s teias de aranha tecidas entre elas, teias que logo foram
pisoteadas.
Quando voltei, Kaede e Manami estavam vestidas com roupas de
montaria masculinas. Kaede vestira uma armadura que eu lhe arranjara,
originalmente feita para um pajem. Eu mandara forjar-lhe uma espada, que ela
trazia na cintura, junto com um punhal. Comemos um pouco de comida fria e
fomos at onde Amano esperava com os cavalos.
O abade estava com ele, com elmo, couraa de couro e espada na
cintura. Ajoelhei-me diante dele para agradecer tudo o que fizera por mim. Ele meabraou como um pai.
Mande mensageiros de Maruyama ele disse, jovial. Voc chegar
l antes da lua nova.
Sua confiana em mim me emocionou e me deu fora.
Kaede montou em Raku, o cavalo cinzento com crina e cauda pretas que
eu lhe dera, e eu montei no garanho preto que tnhamos tomado dos guerreiros
Otori, ao qual Amano dera o nome de Aoi. Manami e algumas das outras mulheres
que partiriam com o exrcito foram instaladas em cavalos de carga. Manami ainda
verificou se a caixa de documentos estava bem amarrada atrs dela. Juntamo-nos
multido que serpenteava pela floresta e subia a trilha ngreme da montanha,
pela qual Makoto e eu tnhamos descido no ano anterior, ao cair das primeiras
neves. O sol em chama comeava a bater sobre os picos nevados, tornando-os
rseos e dourados. O ar estava frio, a ponto de entorpecer-nos as bochechas e os
dedos.
Olhei para trs e vi o templo com seus amplos telhados inclinados
emergindo como navios imensos do mar de folhas novas. Parecia eternamente em
paz, sob o sol da manh, com pombas brancas esvoaando em torno dos beirais.
Rezei para que fosse preservado exatamente como estava naquele momento, que
no fosse destrudo nem incendiado nas batalhas futuras.
29
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
30/300
O cu vermelho da manh trazia uma ameaa. Logo chegaram do oeste
nuvens pesadas e cinzentas, trazendo primeiro um chuvisco e depois chuva
grossa. medida que subamos para o desfiladeiro, chuva juntou-se a neve. Os
homens a cavalo saam-se melhor do que os carregadores, que levavam cestos
enormes nas costas, mas, medida que a neve se acumulava, tambm para os
cavalos a subida se tornava difcil. Eu sempre imaginara que ir para a batalha
seria um ato herico, com as trombetas soando e as bandeiras esvoaando. No
me ocorrera que seria aquela investida soturna contra um inimigo que no era
humano, contra as intempries e a montanha, e a dolorosa caminhada para cima,
sempre para cima.
Finalmente os cavalos comearam a refugar, e Amano e eu desmontamos
para gui-los. Quando atravessamos o desfiladeiro, estvamos encharcados atos ossos. Na trilha estreita, no havia espao para recuar ou avanar para passar
o exrcito em revista. Quando comeamos a descer, pude v-lo, sinuoso como
uma serpente, contrastando com a brancura dos ltimos vestgios de neve, como
uma imensa criatura de milhares de pernas. Alm das pedras e pedregulhos,
aparecendo cada vez mais medida que a chuva derretia a neve, estendiam-se
densas florestas. Se nelas houvesse algum nossa espera, estaramos sua
merc.
Mas as florestas estavam vazias. Os Otori nos esperavam do outro lado
da montanha. Com a cobertura das rvores, alcanamos Kahei no lugar em que
ele havia parado para dar um descanso vanguarda. Fizemos o mesmo,
permitindo que os homens se aliviassem em pequenos grupos e depois
comessem. O ar mido foi tomado pelo cheiro acre de sua urina. Tnhamos
caminhado por cinco ou seis horas, e eu estava satisfeito por ver que tanto
guerreiros como lavradores tinham agentado bem.
Durante nossa parada a chuva aumentou. Estava preocupado com Kaede,
pois passara meses mal de sade. No entanto, apesar de aparentemente estar
com frio, ela no se queixava. Comeu um pouquinho, mas no tnhamos nenhum
alimento quente e no podamos perder tempo acendendo fogueiras. Manami
estava excepcionalmente silenciosa, vigiando Kaede de perto e sobressaltando-
30
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
31/300
se, nervosa, a qualquer rudo. Continuamos nossa caminhada o mais cedo
possvel. Eu tinha a impresso de que j passava do meio-dia, algo entre a Hora
da Cabra e a do Macaco. A descida j era menos ngreme e logo o caminho se
alargou um pouco, o suficiente para que eu pudesse avanar pela lateral.
Deixando Kaede com Amano, tocou meu cavalo e desci a ladeira at a frente do
exrcito, onde encontrei Makoto e Kahei.
Makoto, que conhecia a rea melhor do que qualquer um de ns, disse-
me que um pouco adiante, na outra margem do rio, havia uma cidadezinha, Kibi,
onde poderamos passar a noite.
protegida?
H no mximo uma pequena praa forte. No h castelo e a cidade em
si no fortificada. De quem so as terras?
Arai instalou nela um de seus guardies disse Kahei. O dono
anterior e seus filhos eram partidrios dos Tohan em Kushimoto. Todos morreram
l. Alguns dos homens juntaram-se a Arai, os outros ficaram sem patro e se
retiraram para as montanhas, como bandidos.
Mande alguns homens na frente, para dizer que pedimos abrigo por
esta noite. Faa-os explicar que no queremos briga, s estamos de passagem.
Vamos ver qual ser a resposta.
Kahei chamou trs homens e os mandou sair a galope, enquanto
continuvamos mais devagar. Menos de uma hora depois eles estavam de volta.
Seus cavalos vinham com os flancos inchados, cobertos de lama at os joelhos,
as narinas vermelhas e inflamadas.
O rio est cheio e a ponte foi derrubada relatou o chefe deles.
Tentamos atravess-lo a nado mas a correnteza muito forte. Mesmo que o
fizssemos, os soldados a p e os animais de carga no conseguiriam.
E as estradas ao longo do rio? Onde a prxima ponte?
A estrada de leste atravessa o vale para Yamagata, direto de volta aos
Otori disse Makoto. A estrada do sul se afasta do rio e atravessa a
cordilheira, na direo de Inuyama. Mas, nessa poca do ano, a passagem deve
31
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
32/300
estar bloqueada.
A no ser que consegussemos atravessar o rio, estvamos encurralados.
Venha na frente comigo eu disse a Makoto. Vamos verificar
pessoalmente.
Pedi a Kahei que avanasse com o resto do exrcito lentamente. Apenas
uma retaguarda de uns cem homens deveria caminhar para leste, para o caso de
j estarmos sendo seguidos por aquele lado.
Makoto e eu avanamos, e mal havamos caminhado meia milha ouvi o
gemido constante e soturno de um rio em cheia. Avolumado pela neve derretida,
inevitvel naquela estao, o rio de primavera derramava sua gua verde-
amarelada pela paisagem. Ao sairmos da floresta pelas moitas de bambu e
darmos com os canteiros de juncos, pensei que tivssemos chegado ao mar. Agua estendia-se nossa frente at onde a vista alcanava, salpicada pela chuva,
da mesma cor que o cu. Eu devia estar ofegante, pois Makoto disse:
No to ruim quanto parece. A maior parte so campos irrigados.
Reparei ento no padro quadriculado de diques e trilhas. As plantaes
de arroz estavam alagadas mas eram rasas. No entanto, pelo meio delas corria o
rio. Ele tinha cerca de cem ps de largura e transbordara os diques de proteo,
que deviam estar agora a uns doze ps de profundidade. Eu via os restos da
ponte de madeira: dois pilares cujos topos escuros apareciam vagamente acima
da gua agitada. Pareciam indescritivelmente desamparados sob a chuva
torrencial, como todos os sonhos e ambies humanos acabam devastados pela
natureza e pelo tempo.
Eu olhava para o rio, pensando se conseguiramos atravess-lo a nado,
reconstruir a ponte ou o que fosse, quando ouvi, sobrepondo-se ao rudo
constante da gua, sons de atividade humana. Concentrei-me e tive a impresso
de reconhecer vozes humanas, a batida de um machado e, sem dvida, o sbito
estrondo de madeira caindo.
minha direita, a montante, o rio fazia uma curva e a floresta se
aproximava da margem. Vi o que restava do que deveria ser um cais,
provavelmente para embarcar madeira da floresta para ser levada cidade. Fiz
32
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
33/300
meu cavalo virar e atravessei os campos, rumo curva do rio.
O que foi? Makoto gritou, seguindo-me.
H algum ali agarrei-me crina de Aoi, que escorregou e quase foi
ao cho.
Volte gritou Makoto , perigoso, no pode ir sozinho.
Ouvi-o empunhar seu arco e ajustar uma flecha corda. Os cavalos
mergulharam e chapinharam na gua rasa. Uma lembrana veio-me mente, de
outro rio, intransponvel por razes diferentes. Eu sabia o que, ou quem,
encontraria.
L estava Jo-An, seminu, encharcado, com outros trinta prias, ou mais.
Tinham tirado madeira do cais, onde ela ficara encalhada, e tinham derrubado
mais rvores e cortado junco para fazer uma ponte flutuante.Pararam de trabalhar quando me viram e ajoelharam-se na lama. Tive a
impresso de reconhecer alguns deles, do curtume. Continuavam magros e
miserveis como sempre e em seus olhos brilhava a mesma chama da fome.
Tentei imaginar o que lhes custara sair com Jo-An de seu territrio, transgredir
todas as leis contra a derrubada de rvores, baseados na vaga promessa de que
eu lhes traria justia e paz. No quis nem pensar no quanto sofreriam se eu
falhasse.
Jo-An! chamei, e ele se aproximou do meu cavalo, que resfolegou e
tentou recuar. Mas Jo-An segurou-o pelo freio e o acalmou.
Diga-lhes que continuem trabalhando eu disse. -Assim, minha dvida
com voc ser maior ainda.
O senhor no me deve nada ele replicou. Deve tudo a Deus.
Makoto se ps a meu lado, e tive a esperana de que ele no tivesse
ouvido as palavras de Jo-An. Os focinhos de nossos cavalos se tocaram e o
garanho preto relinchou, tentando morder o outro. Jo-An afagou-lhe o pescoo.
Makoto olhou para ele.
Prias? ele exclamou, incrdulo. O que esto fazendo aqui?
Salvando nossas vidas. Esto construindo uma ponte flutuante.
Ele fez seu cavalo recuar alguns passos. Sob seu elmo, pude ver seus
33
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
34/300
lbios se apertarem.
Nossos homens no iro us-la... comeou, mas eu o interrompi.
Iro us-la, sim, pois estou mandando. a nica maneira de
escaparmos.
Poderamos batalhar para passar pela ponte de Yamagata.
E perder toda a distncia que j avanamos? De todo modo, seramos
um para cada cinco. E no teramos uma rota de retirada. No farei isso. Vamos
atravessar o rio por esta ponte. V buscar alguns homens para ajudar os prias.
Os outros que fiquem preparando a travessia.
Ningum atravessar essa ponte se for construda por prias disse
Makoto, num tom de voz que me irritou. Era como se ele estivesse falando com
uma criana. Senti o mesmo que alguns meses atrs, quando os guardas deShigeru tinham deixado Kenji entrar no jardim em Hagi, deixando-se enganar por
seus truques, sem saber que ele era um assassino da Tribo. Eu s poderia
proteger meus homens se obedecessem a minhas ordens. Esqueci-me de que
Makoto era mais velho, mais sensato e mais experiente do que eu. Deixei a fria
tomar conta de mim.
Faa o que estou mandando, j. Precisa convenc-los ou ter que se
ver comigo. Os guerreiros tero que cumprir a funo de guardas enquanto os
cavalos de carga e os soldados a p estiverem atravessando. Traga arqueiros
para dar cobertura ponte. Vamos atravessar antes do anoitecer.
Senhor Otori ele inclinou a cabea. Seu cavalo entrou na gua e foi
chapinhando de volta pelos campos de arroz, para depois subir a encosta do outro
lado. Vi-o sumir entre os bambus, depois voltei a ateno para o trabalho dos
prias.
Estavam amarrando as madeiras que tinham conseguido e os troncos
derrubados, formando balsas, cada uma colocada sobre hastes de junco atadas
em feixes, amarrados com cordas feitas de cascas de rvores e cnhamo
tranados. Cada balsa que terminavam de fazer era colocada na gua e amarrada
s outras j prontas. Mas a fora da correnteza mantinha as balsas coladas
margem.
34
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
35/300
Uma extremidade da ponte precisa ser ancorada do outro lado eu
disse a Jo-An.
Algum atravessar a nado ele replicou.
Um dos homens mais jovens pegou um rolo de corda, amarrou a ponta ao
pulso e mergulhou no rio. Mas a correnteza era forte demais para ele. Vimos seus
braos se agitarem acima da superfcie, depois ele desapareceu sob a gua
barrenta. Puxaram-no para fora j quase afogado.
Dem-me essa corda eu disse.
Jo-An olhou angustiado para baixo da ribanceira.
No, senhor, espere suplicou. Quando seus homens chegarem
um deles poder atravessar.
Quando meus homens chegarem a ponte dever estar pronta repliquei. D-me a corda.
Jo-An a desamarrou do pulso do rapaz, que agora estava sentado,
cuspindo gua, e a entregou para mim. Amarrei-a com fora ao pulso e toquei
meu cavalo. A corda deslizou por suas ancas, fazendo-o pular na gua, antes que
o esperado.
Gritei, encorajando-o, e ele ps as orelhas para trs, para me ouvir. Deu
os primeiros passos com os cascos encostando no fundo, depois a gua chegou-
lhe aos ombros e ele comeou a nadar. Tentei manter sua cabea voltada para o
ponto ao qual deveramos chegar. No entanto, embora o cavalo tivesse vigor e
coragem, a correnteza era mais forte e nos carregou rio abaixo, at as runas da
antiga ponte.
Olhei em sua direo e no gostei do que vi. A correnteza arremessava
galhos e outros entulhos contra os pilares e, se meu cavalo ficasse preso ali,
certamente entraria em pnico e ns dois afundaramos. O cavalo e eu sentimos e
tememos o poder do rio. Suas orelhas estavam baixadas para trs e seus olhos
revirados. Felizmente, o pavor lhe redobrou as foras. Ele lutava e se debatia com
as quatro patas. Passamos a alguns palmos dos pilares e, de repente, a
correnteza se abrandou. Tnhamos passado da metade do rio. Alguns momentos
depois, passou novamente a dar p para o cavalo e ele subia e descia, dando
35
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
36/300
passadas enormes para vencer a gua. Caminhou com dificuldade para terra
firme, com a cabea baixa, ofegante, sua exuberncia de antes completamente
extinta. Saltei de seu lombo e afaguei-lhe o pescoo, dizendo-lhe que seu pai
decerto era um esprito das guas para ele nadar to bem. Estvamos ambos
encharcados, mais parecendo peixes ou sapos do que animais terrestres.
Senti o puxo da corda em meu pulso e tive medo de ser arrastado de
novo para a gua. Caminhei, meio rastejando, at um pequeno arvoredo beira
do rio. As rvores cercavam um pequeno santurio dedicado ao deus-raposa, a
julgar pelas esttuas brancas, e a gua chegava at seus galhos mais baixos. Os
ps das esttuas tambm estavam submersos, de modo que as raposas pareciam
flutuar. Passei a corda em volta do tronco da rvore mais prxima, um pequeno
bordo que comeava a dar folhas, e comecei a pux-la. Ela estava atada a umacorda muito mais forte; eu sentia seu peso imenso, como se ela relutasse em sair
do rio. Assim que consegui puxar um comprimento suficiente, amarrei-a a uma
rvore maior. Ocorreu-me que talvez estivesse conspurcando o santurio, mas
quela altura no me importava ofender um deus, esprito ou demnio, contanto
que conseguisse fazer meus homens chegarem sos e salvos ao outro lado do rio.
O tempo todo eu estava escuta. Apesar da chuva, no acreditava que
aquele lugar estivesse to deserto quanto parecia. Ali havia uma ponte, numa
estrada que, pelo visto, era bem movimentada. Em meio ao chiado da chuva e ao
estrondo do rio, eu ouvia o guincho de milhafres, o coaxar de milhares de sapos,
felizes com tanta gua, e gritos estridentes de corvos, vindos da floresta. Mas
onde estavam as pessoas?
Depois que a corda ficou firme, cerca de dez prias atravessaram o rio
agarrados a ela. Muito mais hbeis do que eu, eles refizeram todos os meus ns e
construram um sistema de polias, usando os galhos flexveis do bordo.
Lentamente, com muito trabalho e engenho, arrastaram as balsas, com os peitos
arfando e os msculos saltados como cordas. O rio puxava as balsas com
violncia, rejeitando sua intromisso em seu domnio, mas os homens persistiam.
As balsas, boiando e estabilizadas por seus colches de junco, obedeciam
docilmente e aos poucos aproximavam-se de ns.
36
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
37/300
A correnteza fez um dos lados da ponte flutuante se comprimir contra os
pilares j existentes. Se no fosse isso, acho que o rio nos venceria. Eu via que a
ponte estava quase pronta, mas no havia sinal de Makoto voltando com os
homens. Eu perdera o senso do tempo, e as nuvens estavam muito baixas e
escuras para que se pudesse distinguir a posio do sol. No entanto, eu achava
que pelo menos uma hora j se passara. Ser que Makoto no conseguira
convenc-los? Ser que tinham voltado a Yamagata, conforme ele havia
sugerido? Amigo ou no, eu o mataria com minhas prprias mos se isso tivesse
acontecido. Agucei os ouvidos, mas no ouvi nada alm do rio, da chuva e dos
sapos.
Alm do santurio, onde eu estava, a estrada emergia da gua. Atrs dela
viam-se as montanhas, com a neblina branca pendurada como flmulas em suasencostas. Meu cavalo tiritava. Achei que deveria faz-lo andar um pouco para
mant-lo aquecido, pois no havia como enxug-lo. Montei e o fiz caminhar um
pouco pela estrada, tambm para tentar enxergar melhor o outro lado do rio, de
um ponto mais alto.
No muito longe, dei com uma choupana de madeira e reboco,
toscamente coberta de junco. Ao lado dela, uma barreira de madeira atravessava
a estrada. Perguntei-me o que seria: no parecia um posto de fronteira oficial de
algum feudo e no havia guardas vista.
Ao me aproximar, vi vrias cabeas humanas amarradas barreira,
algumas mortas recentemente, outras apenas caveiras. Mal tive tempo para sentir
nusea. Meus ouvidos conseguiram captar, vindo de trs de mim, o som que eu
esperava: pisadas de cavalos e homens do outro lado do rio. Olhei para trs e vi,
atravs da chuva, a vanguarda de meu exrcito saindo da floresta e chapinhan-do
na direo da ponte. Reconheci Kahei pelo elmo. Ele vinha cavalgando na frente,
Makoto a seu lado.
Senti um alvio no peito. Fiz Aoi dar meia-volta. Ao ver os vultos distantes
de seus companheiros, ele deu um relincho alto, que foi ecoado imediatamente
por um grito terrvel vindo de dentro da choupana. O cho chacoalhou quando a
porta se abriu e por ela saiu o maior homem que eu jamais vira, maior ainda do
37
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
38/300
que o gigante dos carvoeiros.
Meu primeiro pensamento foi o de que se tratava de um ogro ou de um
demnio. Ele tinha mais de dois metros de altura e era largo como um touro. Alm
disso, sua cabea era desproporcionalmente grande, como se o crnio nunca
tivesse parado de crescer. Tinha o cabelo comprido e emaranhado, barba e
bigode cerrados e rijos. Seus olhos eram redondos como olhos de animal. S
tinha uma orelha, enorme e pendurada. No lugar da outra orelha havia uma
cicatriz cinza-azulada, que brilhava atravs de seus cabelos. Mas, quando ele
gritava, sua voz era humana.
Ei! ele berrou. O que pensa que est fazendo na minha estrada?
Sou Otori Takeo repliquei. Estou conduzindo meu exrcito. Abra a
barreira!Ele deu uma gargalhada que parecia o rudo de pedras desmoronando
pela encosta de uma montanha.
Ningum vai passar por aqui sem autorizao de Jin-emon. Volte e diga
isso a seu exrcito!
A chuva caa mais pesada, a luz do dia desaparecia rapidamente. Eu
estava exausto, molhado, com fome e frio.
Desbloqueie a estrada! gritei, impaciente. Vamos passar.
Ele avanou para mim sem responder. Segurava uma arma atrs das
costas, por isso no pude ver bem o que era. Ouvi o som antes de ver seu brao
se mexer: era como um tilintar metlico. Com uma mo virei a cabea do cavalo,
com a outra empunhei Jato. Aoi tambm ouviu o som e viu surgir o brao do
gigante. Desviou-se para o lado, e o basto e a corrente do gigante passaram por
minha orelha, uivando como um lobo.
Uma das extremidades da corrente era presa a um basto com uma
pequena foice na ponta. Eu nunca tinha visto uma arma como aquela e no tinha
idia de como lutar contra ele. A corrente balanou de novo, acertando a pata
traseira direita do cavalo. Aoi gritou de dor e medo e disparou. Tirei os ps dos
estribos, deslizei da montaria e me pus de frente para o ogro. Com certeza eu
estava diante de um louco, que me mataria se eu no o matasse antes.
38
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
39/300
Ele sorriu para mim. Decerto eu era, para ele, como o Pequeno Polegar ou
algum outro personagem minsculo de um conto de fadas. Captei o incio do
movimento de seu msculo e dividi minha imagem, jogando-me para a esquerda.
A corrente acertou meu segundo eu, sem danific-lo. Jato saltou no ar entre ns e
enfiou sua lmina em um de seus braos, um pouco acima do pulso.
Normalmente, sua mo teria sido amputada, mas aquele adversrio tinha ossos
de pedra. Senti as reverberaes no alto de meu ombro e por um momento temi
que minha espada ficasse presa em seu brao como um machado numa rvore.
Jin-emon soltou uma espcie de gemido estalado, parecido com o som de
uma montanha ao congelar, e transferiu a arma para a outra mo. Sua mo direita
vertia um sangue vermelho escuro, quase preto, que no jorrava, como seria de
esperar. Quando a corrente uivou de novo, tornei-me invisvel por um momento,pensando brevemente em voltar para o rio e me perguntando onde estariam meus
homens quando eu mais precisava deles. Ento vi uma rea de carne
desprotegida e enfiei Jato nela. O ferimento deixado por minha espada era
enorme, no entanto mais uma vez ele mal sangrou. Uma nova onda de pavor me
invadiu. Seria possvel venc-lo?
No golpe seguinte a corrente se enrolou na minha espada. Com um grito
de triunfo, Jin-emon arrancou-a de minhas mos. Jato saiu voando e aterrissou a
vrios metros de mim. O ogro se aproximou, girando os braos como uma
ventoinha, prevenido contra meus truques.
Fiquei parado. Trazia o punhal na cintura, mas no queria tir-lo, pois ele
balanaria sua corrente e acabaria com minha vida ali mesmo. Queria que o
monstro olhasse para mim. Ele avanou, pegou-me pelos ombros e me ergueu do
cho. No sei qual era seu plano. Talvez quisesse rasgar-me a garganta com os
dentes enormes e beber meu sangue. Pensei: "Ele no meu filho, no pode me
matar." Ento olhei dentro de seus olhos. Tinham uma expresso de animal, mas,
ao encontrarem os meus, vi-os arregalados de espanto. Senti por trs deles sua
malvadeza estpida, sua natureza brutal e impiedosa. Senti o poder que havia em
mim e deixei-o agir. Seus olhos comearam a se anuviar. O gigante deu um
gemido baixo, seus dedos se afrouxaram e ele foi ao cho como uma rvore
39
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
40/300
imensa derrubada pelo machado de um lenhador. Joguei-me de lado, para no ser
esmagado debaixo dele, e rolei at onde estava Jato. Aoi, que circulava nervoso
em volta de ns, empinou e recuou. De espada na mo, corri at onde Jin-emon
cara. Ele roncava em seu profundo sono Kikuta. Tentei erguer-lhe a cabea
enorme para cort-la mas era pesada demais e eu no queria correr o risco de
estragar a lmina da espada. Ento enfiei-lhe Jato no pescoo e rasguei-lhe a
artria e a traquia. Mais uma vez, o sangue correu lentamente. Ele bateu os
calcanhares, arqueou as costas mas no acordou. Finalmente parou de respirar.
Pensei que Jin-emon estivesse sozinho, mas de dentro da choupana veio
um rudo. Virei-me e vi um homem muito menor saindo apressado pela porta.
Gritou alguma coisa incoerente, pulou sobre a barreira atrs da choupana e
desapareceu dentro da floresta.Removi a barreira, olhando para os crnios e perguntando-me de quem
seriam. Dois dos mais antigos caram com o movimento e larvas de insetos saram
rastejando pelas rbitas. Coloquei-os no capim e voltei at meu cavalo, arrepiado
e nauseado. A pata de Aoi estava machucada e sangrava no lugar em que a
corrente a acertara, embora pelo visto no estivesse fraturada. Ele conseguia
andar, mas mancava muito. Levei-o de volta ao rio.
Aquele confronto parecia ter sido um pesadelo, no entanto quanto mais
pensava nele mais me sentia bem. Jin-emon podia ter me matado, minha cabea
estaria agora na barreira, junto das outras. Os poderes que eu herdar da Tribo
haviam me salvado. A profecia parecia totalmente confirmada. Se aquele monstro
no tinha conseguido me matar, quem conseguiria? Desde que voltara ao rio, uma
nova energia flua em mim. No entanto, o que vi ento a transformou em fria.
A ponte estava instalada mas s os prias tinham atravessado. O resto de
meu exrcito ainda estava do outro lado. Os prias estavam aglomerados daquele
seu modo acabrunhado, que eu estava comeando a entender. Era sua reao
irracionalidade da repulsa que o mundo tinha por eles.
Jo-An estava sentado sobre as prprias coxas, olhando com tristeza para
a gua que corria. Ao me ver, ele se levantou.
No querem atravessar, senhor. Ser preciso que o senhor ordene.
40
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
41/300
isso que vou fazer eu disse, com a raiva me subindo cabea.
Pegue o cavalo, lave o ferimento e faa-o andar para no se resfriar.
Jo-An pegou as rdeas.
O que aconteceu?
Dei de frente com um demnio respondi, e subi na ponte.
Os homens que esperavam do outro lado deram um grito ao me ver, mas
nenhum deles fez meno de atravessar a ponte. No era fcil caminhar por ela. A
ponte balanava, s vezes o rio a submergia parcialmente, a puxava e inclinava.
Eu caminhava depressa, lembrando-me da maneira como havia atravessado o
piso-rouxinol, com passos leves e rpidos, em Hagi. Rezei para que o esprito de
Shigeru me acompanhasse.
Do outro lado, Makoto desceu do cavalo e agarrou-me pelo brao. Onde estava? Ficamos com medo de que tivesse morrido.
Quase morri, mesmo eu disse, furioso. Onde estavam vocs?
Antes que ele respondesse, Kahei veio at ns.
O que esto esperando? perguntei. Faa os homens
atravessarem.
Kahei hesitou:
Eles temem ser contaminados pelos prias.
Desa eu disse. E, quando ele desceu do cavalo, mostrei aos dois a
fora da minha fria. Por causa da estupidez de vocs, quase morri. Quando
dou uma ordem, devem cumpri-la imediatamente, independentemente do que
pensem dela. Se no lhes convier, podem voltar j, para Hagi, para o templo, para
qualquer lugar, mas fora da minha vista eu falava em voz baixa, pois no queria
ser ouvido pelo exrcito inteiro, mas percebi que minhas palavras os
envergonhavam. Agora mandem entrar na gua primeiro os que esto a cavalo
e querem atravessar a nado. Conduzam os cavalos de carga atravs da ponte
enquanto a retaguarda fica a postos, depois os soldados a p, apenas trinta de
cada vez.
Senhor Otori disse Kahei. Subiu de novo na sela e saiu a galope.
Desculpe-me, Takeo Makoto disse, baixinho.
41
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
42/300
A prxima vez vou mat-lo eu disse. D-me seu cavalo.
Cavalguei ao longo da fila de soldados, repetindo as ordens.
No tenham medo de contaminao eu dizia. -J atravessei a ponte.
Se havia alguma contaminao, ela caiu sobre mim.
Eu estava num estado quase de exaltao. Achava que nada do cu ou
da terra poderia me prejudicar.
Com um grito forte, o primeiro guerreiro entrou na gua, e os outros foram
atrs dele. Os primeiros cavalos atravessaram a ponte, e, para meu alvio, ela os
agentou bem. Uma vez a travessia em marcha, cavalguei de volta ao longo da
fileira, dando ordens e estimulando os soldados a p, at chegar aonde Kaede
esperava com Manami e as outras mulheres que nos acompanhavam. Manami
trouxera guarda-chuvas e todas se aglomeravam embaixo deles. Amano seguravaseus cavalos. O rosto de Kaede se iluminou quando ela me viu. Seu cabelo
cintilava e pingos de chuva pendiam de seus clios.
Desmontei e entreguei as rdeas a Amano.
O que aconteceu com Aoi? ele perguntou, reconhecendo o cavalo
de Makoto.
Ele se machucou, no sei se grave. Est do outro lado do rio.
Atravessamos a nado quis dizer a Amano o quanto o cavalo fora corajoso, mas
no tnhamos tempo. Vamos atravessar o rio eu disse s mulheres. Os
prias construram uma ponte.
Kaede me olhava sem dizer nada, mas Manami imediatamente abriu a
boca para protestar. Levantei a mo para que ela se calasse.
No h alternativa. Vocs devem fazer o que mandei repeti o que
dissera aos homens: que qualquer contaminao recairia sobre mim.
Senhor Otori ela murmurou, meneando a cabea quase
imperceptivelmente e olhando de soslaio.
Resisti vontade de espanc-la, embora achasse que ela merecia.
Devo ir a cavalo? perguntou Kaede.
No, muito instvel. melhor ir a p. Vou levar seu cavalo a nado.
Amano no quis ouvir falar nisso.
42
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
43/300
H muitos cavalarios para fazer isso ele disse, olhando para minha
armadura enlameada.
Ento um deles que venha comigo eu disse. Ele pode levar Raku
e trazer outro cavalo para mim. Preciso voltar outra margem. No esqueo o
homem que vi fugir para a floresta. Se ele foi avisar outros da nossa chegada,
quero estar l para enfrent-los.
Traga Shun para o Senhor Otori Amano gritou para um cavalario. O
homem veio at ns num pequeno cavalo baio e pegou as rdeas de Raku.
Despedi-me rapidamente de Kaede, pedindo-lhe que cuidasse para que o cavalo
de carga que levava os documentos atravessasse em segurana, e voltei a montar
no cavalo de Makoto. Percorremos de volta a fila de soldados, que agora
caminhava com bastante rapidez. Cerca de duzentos j tinham atravessado, eKahei os organizava em pequenos grupos, cada um com um chefe.
Makoto me esperava beira da gua. Devolvi-lhe o cavalo e segurei
Raku, enquanto ele e o cavalario entravam no rio. Fiquei observando o cavalo
baio, Shun. Ele entrou sem medo na gua, nadando bem e calmamente, como se
fizesse aquilo todo dia. O cavalario voltou pela ponte e pegou Raku. Enquanto
eles atravessavam a nado, acompanhei os outros homens pela ponte flutuante.
Eles passavam rpidos e esquivos, como os ratos no porto de Hagi,
tentando ficar sobre a ponte o menos tempo possvel. Imaginei que poucos
deveriam saber nadar. Alguns me cumprimentavam, um ou dois tocaram-me o
ombro como se eu pudesse exorcizar o mal e trazer boa sorte. Encorajei-os o
mais possvel, fazendo brincadeiras sobre o banho quente e as comidas
excelentes de que desfrutaramos em Maruyama. Pareciam bem-humorados,
embora soubssemos todos que Maruyama ainda estava muito longe.
Na outra margem, pedi ao cavalario que esperasse por Kaede, com
Raku, e eu montei Shun. Era um cavalo meio baixo e no era bonito, mas havia
alguma coisa nele que me agradava. Ordenando que os guerreiros seguissem, fui
na frente com Makoto. Eu queria especialmente arqueiros ao nosso lado, e dois
grupos de trinta j estavam a postos. Pedi-lhes que se escondessem atrs do
muro e esperassem por meu sinal.
43
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
44/300
O corpo de Jin-emon ainda jazia perto da barreira, e o lugar estava em
silncio, aparentemente deserto.
Isso tem a ver com voc? perguntou Makoto, olhando com
repugnncia o corpo imenso e a exposio de cabeas.
Mais tarde eu lhe conto. Ele tinha um companheiro que fugiu. Desconfio
que vai voltar com mais homens. Kahei disse que esta rea est cheia de
bandidos. O morto certamente fazia as pessoas pagarem para usar a ponte e
cortava a cabea das que se recusavam.
Makoto desmontou para ver mais de perto.
Alguns deles so guerreiros ele disse , e jovens tambm.
Devemos levar a cabea dele como recompensa e ele puxou a espada.
No faa isso avisei. Ele tem ossos de granito. Vai estragar sualmina.
Makoto lanou-me um olhar incrdulo e no disse nada, mas com um
movimento rpido golpeou-lhe o pescoo. Sua espada estalou com um som quase
humano. Os homens nossa volta soltaram exclamaes de espanto e medo.
Makoto olhou aflito para a lmina quebrada, e depois me lanou um olhar
envergonhado.
Desculpe-me ele disse de novo. Eu deveria ter ouvido sua
advertncia.
Minha raiva voltou a se inflamar. Tirei minha espada, minha vista se
avermelhou, como j acontecera outras vezes. Como poderia proteger meus
homens se eles no me obedeciam? Makoto ignorara meu aviso diante daqueles
soldados. Merecia morrer por isso. Quase perdi o controle e o cortei ao meio ali
mesmo, mas na mesma hora ouvi rudos de cascos de cavalo a distncia,
fazendo-me lembrar que eu tinha outros inimigos, e reais.
Ele era um demnio, no era humano eu disse a Makoto. Voc
no tinha como saber. Agora vai ter que lutar usando seu arco.
Fiz um sinal para que os homens nossa volta se calassem. Ficaram
como se tivessem virado pedra. Nem os cavalos se mexiam. A chuva tornara-se
uma garoa fina. Sob aquela luz enevoada, parecamos um exrcito de fantasmas.
44
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
45/300
Ouvi os bandidos se aproximarem, chapinhando no cho molhado, e
ento eles surgiram da nvoa. Eram mais de trinta a cavalo e o mesmo nmero a
p. Formavam um bando diversificado, uma colcha de retalhos. Alguns eram
visivelmente guerreiros mercenrios, com bons cavalos e armaduras que j tinham
sido excelentes. Outros eram a ral: fugitivos de patres tirnicos de terras ou de
minas de prata, ladres, lunticos, assassinos. Reconheci o homem que fugira da
choupana. Ele vinha no estribo do cavalo da frente. Quando o bando parou,
espirrando barro e lama para todos os lados, ele apontou para mim e gritou
novamente alguma coisa ininteligvel. O cavaleiro berrou:
Quem matou nosso amigo e companheiro Jin-emon?
Sou Otori Takeo respondi. Estou conduzindo meus homens a
Maruyama. Jin-emon me atacou sem motivo e pagou por isso. Deixem-nos passarou pagaro o mesmo preo.
Volte para o lugar de onde veio ele rosnou. Aqui odiamos os
Otori.
Os homens que o rodeavam zombaram. Ele cuspiu no cho e brandiu a
espada acima da cabea. Levantei a mo, fazendo sinal aos arqueiros.
Imediatamente o rudo de flechas encheu o ar. um rudo assustador, o
estalo e o chiado das hastes, o baque seco quando atingem a carne viva, os gritos
do ferido. Mas eu no tinha tempo para refletir sobre isso, pois o chefe deles
tocava seu cavalo e galopava na minha direo, com o brao esticado
empunhando a espada.
Seu cavalo era maior do que Shun e seu alcance maior do que o meu. As
orelhas de Shun estavam voltadas para a frente, seus olhos tranqilos. Quando o
bandido estava prestes a golpear, meu cavalo saltou para o lado e virou quase no
ar, de modo que consegui atingir meu adversrio por trs, abrindo-lhe o pescoo e
o ombro, enquanto ele batia em vo no lugar onde eu estava antes.
Ele no era demnio nem ogro, era um ser humano como os outros. Dele
jorrava sangue vermelho. Seu cavalo continuava galopando, ele balanou na sela
at que, de repente, caiu de lado e foi ao cho.
Enquanto isso, Shun, ainda muito calmo, deu meia-volta para ir ao
45
-
7/28/2019 Lian Hearn - A Saga Otori 3 - O Brilho Da Lua
46/300
encontro do atacante seguinte. O homem estava sem elmo, e Jato dividiu-lhe a
cabea ao meio, espalhando sangue, crebro e ossos. O cheiro de sangue nos
envolvia, misturado a chuva e lama. medida que mais guerreiros entravam na
briga, os bandidos iam sendo completamente esmagados. Os que ainda estavam
vivos tentavam fugir, mas corramos atrs deles e os retalhvamos. A raiva
levantara-se em mim durante todo o dia e chegara ao auge com a desobedincia
de Makoto; agora encontrava alvio naquele conflito breve e sangrento. Eu ficara
furioso com o atraso que aqueles sem-lei malucos tinham nos causado e agora
estava profundamente satisfeito por eles terem sido castigados. No fora bem
uma batalha, mas ns tnhamos vencido e sentamos gosto de sangue e vitria.
Trs dos nossos homens tinham morrido e dois estavam feridos. Mais
tarde, quatro mortes por afogamento me foram relatadas. Um companheiro deKahei, Shibata, do cl Otori, sabia um pouco sobre ervas e curas, e foi ele quem
limpou e c