lendas e apariÇÕes do bairro da vÁrzea

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LENDAS E APARIÇÕES DO BAIRRO DA VÁRZEA Organização: Laboratório de Produção Cultural Cominutária Realização: Edital FIC da Lei Aldir Blanc do municipio do Recife

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LENDAS E APARIÇÕES DO BAIRRO DA VÁRZEA

Organização: Laboratório de Produção Cultural CominutáriaRealização: Edital FIC da Lei Aldir Blanc do municipio do Recife

Licença Creative Crommons de atribuição não comercial, qualquer tipo de venda deste produto é proibido.

Projeto executado da Lei Aldir Blanc no municipio de Recife em 2020.

Equipe Técnica Coordenação do Projeto Gráfico:Kellen Karollyne

Coordenação Executiva e de pesquisa:Elizama Messias

Ilustradores:Joyce MirelyLetícia SantosMarcos JúniorAmanda Mayo

Atores:Beta FerralcLuan Amim

Colaboradores:Beth CruzLuiz EuricoJoseil Gonçalves de FreitasMônica XavierSocorro BarrosSusi Barros Revisão Ortográfica e Gramatical:Fernando Alvim

Edição dos áudios das histórias contadas:Well Carlos

Colaboradores na Pesquisa de Campo:Rosevaldo BritoDona Creuza, in memorianDona IsabelFernando SerpaLuiz EuricoMarcos Júnior

Realização

Apoio

Parcerias

Índice

Convite a leitura ---------------------------------------------------------------- 03

Curiando sobre o projeto Lendas e Aparições do Bairro da Várzea ----------------- 04

Parte I: A natureza e suas histórias ---------------------------------------------- 05

O gemido das bananeiras ------------------------------------------------- 07

A surucucu de fogo -------------------------------------------------------- 09

Vamos Curiar -------------------------------------------------------------- 11

Parte II: O Arruado e suas histórias ---------------------------------------------- 13

A noiva do arruado ------------------------------------------------------- 15

A lenda da estátua viva --------------------------------------------------- 18

Vamos curiar... ----------------------------------------------------------- 21

Parte III: De botijas e cemitérios ------------------------------------------------- 22

O Causo da Botija, segundo Índio Batera ----------------------------------- 23

Os fantasmas da lotação -------------------------------------------------- 26

Parte IV: Algumas aparições ----------------------------------------------------- 29

1. O canino branco --------------------------------------------------------- 30

2. O homem Caprino ------------------------------------------------------- 30

3. Aparição no entorno da igreja -------------------------------------------- 31

4. A loira do CDU/Várzea -------------------------------------------------- 31

5. O padre sem cabeça ---------------------------------------------------- 31

6. Almas escravizadas ----------------------------------------------------- 32

7. Os fantasmas do casarão Magitot ----------------------------------------- 33

Curiando sobre o Projeto A Voz na Praça ------------------------------------- 33

Parte V: Alguns Lugares onde as histórias acontecem ---------------------------- 35

Arruado do engenho velho -------------------------------------------------- 36

Praça Pinto Damaso ou Praça da Várzea ------------------------------------- 37

Igreja Matriz Nossa Senhora do Rosário ------------------------------------- 38

Cemitério da Várzea -------------------------------------------------------- 39

Casarão Magitot------------------------------------------------------------ 40

Fonte de Pesquisas -------------------------------------------------------------- 41

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Convite à Leitura

Nada melhor do que uma boa história contada em momentos de descontração,

com muita emoção e mistérios. Pois é, a arte de contar histórias é muito antiga e acon-

tece em todas as culturas ao redor do mundo. Na cidade do Recife esta arte ainda per-

dura. É possível vivenciar momentos prazerosos de contação de histórias na intimida-

de das casas, nas praças, nas calçadas. Os contos de assombração, os causos e lendas

urbanas dão asas à imaginação e despertam a curiosidade. No bairro da Várzea, que

fica na zona oeste da cidade - um bairro centenário ainda com muitos resquícios de

histórias antigas - não podia ser diferente, temos muitas histórias de assombração e

contadores de causos. Neste e-book você vai encontrar 6 contos de assombração e a

descrição de 7 aparições que rondam as ruas da nossa querida Várzea do Capibaribe.

O material foi ilustrado com diferentes técnicas por uma equipe de jovens artistas. Há

ainda 03 vídeos curtos encenados por atrizes e atores do bairro e áudios de contação

de histórias gravados por colaboradoras do Projeto “A Voz na Praça”, as contadoras

animadas.

Disponibilizamos assim, um material interativo e acessível para os vários públi-

cos, oferecido com muito carinho como resultado de uma pesquisa comunitária reali-

zada em 2019. Ao longo do texto você vai encontrar pequenas notas informativas na

seção “Vamos Curiar” e, ao final, na seção “Os lugares onde as histórias acontecem”, é

possível encontrar uma descrição afetiva e vivencial sobre os principais lugares retra-

tados nas histórias. Este é um trabalho que valoriza a tradição oral e o saber contar

histórias como patrimônio imaterial da nossa cidade e do nosso bairro. Assim, con-

vidamos os leitores a mergulhar na experiência das Lendas e Aparições do Bairro da

Várzea.

4

CURIANDO SOBRE O PROJETO LENDAS E APARIÇÕES DO BAIRRO DA VÁRZEA

A contação de histórias pode ser compreendida como uma forma de expressão ligada à tradição oral de uma determinada localidade. Um bairro centenário como o da Várzea tem muitas histórias e neste e-book você vai poder conhecer algumas. Em 2019, foi realizada uma oficina chamada Movi Várzea - Movimento e Inventário Participativo -, com a colaboração de moradores do bairro, de estudantes do curso de De-sign da UFPE e da Escola Municipal de Arte João Pernambuco. Essa ação teve o apoio do Neafi/UFPE (Núcleo de Educação Integral e Ações Afirmativas). Depois de estudar alguns te-mas, foi realizado o levantamento inicial que identificou 68 referências culturais do bairro. Sabemos que existem muitas outras, porém a lista inicial não se pretendeu exaustiva. Em seguida, utilizou-se uma metodologia sistematizada pelo Iphan (2016), o inventário par-ticipativo, sendo realizadas pesquisas iniciais sobre algumas dessas referências culturais. O saber contar histórias foi apontado como um bem cultural importante do bairro, junta-mente com as lendas e as aparições. Neste e-book, ampliamos a pesquisa sobre as lendas e aparições e convidamos contadoras de histórias do Projeto “A Voz na Praça” para parti-cipar, ao longo do texto, com os áudios das histórias contadas. O projeto “A Voz na Praça” também foi apontado por nós como uma referência cultural importante do bairro. A paisagem local do bairro da Várzea, que inclui Igrejas centenárias, um cemité-rio, casarões abandonados, casarios e ruas antigas, o nosso rio Capibaribe e uma área verde de mata relativamente preservada, contribui para alimentar o imaginário dos moradores, povoados por estranhas aparições na calada da noite e histórias inexplicá-veis que ligam os contemporâneos a criaturas do outro mundo. Algumas vezes, essas criaturas aparecem para deixar algum tipo de lição ou simplesmente para provar que existem e, de vez em quando, elas vêm assuntar entre nós. As lendas e aparições são expressões culturais bastante comuns em várias localida-des e em diferentes regiões de nossa cidade, que é considerada a capital mais mal assom-brada do Brasil. Isso tem ensejado diferentes ações e propostas, geralmente bem aceitas pelo público. Este e-book também se inspira em algumas dessas ações e tem como fina-lidade registrar algumas dessas histórias presentes aqui no bairro da Várzea, contribuindo para manter vivo este saber: a arte de contar histórias. Pretende, ainda, servir como subsí-dio para ações de educação patrimonial e de valorização da identidade local. Assim, por meio da pesquisa realizada em 2019, conseguimos garimpar algumas histórias e oferecê-las ao leitor neste formato de livro virtual. As ilustrações, as interpre-tações, a organização e a escrita deste material foram feitas com muito afeto e cuidado por colaboradores que, morando ou não no bairro da Várzea, vivenciam o lugar e têm por ele um carinho especial pois como dizem alguns amantes da localidade: “o bairro da Várzea é um estado de espírito”.

5

PARTE IA Natureza e suas Histórias

Ilustração de: Letícia Santos

6

Olá! Meu nome é Socorro Barros, moro no bairro da Várzea e aqui coordeno um

projeto chamado “A Voz na Praça”. Nele a praça principal do bairro (Pinto Dâmaso), as-

sim como outras localidades, viram palco para reunir crianças de todas as idades em

torno da arte de contar histórias, em diferentes momentos do ano. Hoje quero con-

vidar vocês para mergulhar no universo das Lendas e Aparições do Bairro da Várzea,

conhecendo diferentes Histórias coletadas num processo de pesquisa comunitária.

Vamos começar com contos que têm seres da natureza como personagem principal.

Para isto, trazemos a parceria de Joseil Freitas, um antigo morador do bairro e partici-

pante do Projeto O Recife Assombrado, com duas histórias de arrepiar.

Vamos conhecê-las!

7

O Gemido das Bananeiras

Quero compartilhar a história, inúmeras vezes contada pelo meu pai, e ocorrida,

segundo ele, no bairro da Várzea, no Recife, em meados de 1950. Na época, havia uma

vila próxima às terras da família Brennand, afastada da Várzea, o que gerava um pouco

de dificuldade no transporte até o centro do Recife e outras localidades.

Era necessário passar por um caminho um tanto deserto, margeado por plan-

tações frutíferas, principalmente, de bananeiras. Pois eis que neste referido percurso,

por volta do anoitecer, os transeuntes eram acometidos de verdadeiro pavor ao atra-

vessá-lo, devido a sons assustadores de gemidos, ora femininos, ora infantis, advindos

das proximidades das bananeiras. Desta forma, os moradores do vilarejo evitavam ao

máximo passar no local após o anoitecer e, se o fizessem, esperavam uns pelos outros

a fim de formar grupos, que sempre se desfaziam ao som dos temíveis gemidos.

Num pequeno bar, sempre se discutiam as possíveis origens dos sons, não se

chegando a uma conclusão, devido à falta de provas. Pois que, numa das tantas noites

de prosa e bebedeira no bar, um dos homens, entusiasmado e encorajado pelo efeito

8

do álcool, propõe-se a desfazer o mistério, se armando com um facão e indo em di-

reção às bananeiras. Nenhum dos outros quis acompanhá-lo, de forma que ele foi só.

Lá chegando, ouviu nitidamente os sons e se orientou pelos ventos, a fim de encontrar

a origem dos mesmos.

Então, cheio de temor, na escuridão, mas com a curiosidade mais aguçada que

nunca, se aproximou das bananeiras e viu que o ruído era originado pela fricção das

folhas da bananeira umas nas outras, resultando naquele ruído tão característico e

horripilante. Logo, cortou a folha maior, a que mais ruído fazia, e se dirigiu vitorioso ao

bar repleto de moradores da vila.

Lá, foi recebido como herói, passando a noite inteira a narrar o heróico feito de

desvendar o mistério que a todos afligia e, em última ação, pôs a folha da bananeira

numa mesa, puxou o facão e cortou-a em vários pedaços, dizendo alto que, a partir

daquela data, ela não assustaria a mais ninguém. Depois de passada a excitação da

noite, dirigiu-se à sua casa, banhou-se, vestiu um pijama e, na penumbra, deitou-se

em sua cama. Qual não foi seu susto ao ver, envolto em lençóis, um braço humano,

ensanguentado e cortado em pedaços, tal qual a folha da bananeira havia sido por

ele cortada.

O que se diz é que o homem, enlouquecido, foi para o Hospital Psiquiátrico da

Tamarineira e que era vivo até bem pouco, repetindo a todos sua desventura horripi-

lante e sua fobia por bananeiras.

Contado por Susi Barros

Colaboração do site O Recife Assombrado

Acesse em: https://bit.ly/3ovkOQ6

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A Surucucu de Fogo

Era verão de 1954. Um grupo de amigos sempre se reunia no Sítio Vanderley,

“Caxito”, comunidade localizada na Várzea para conversar, contar histórias e planejar

caçadas. Os amigos José Henrique, Aurino Cabeleira, Júlio Tato e Joel Cabeleira foram a

uma caçada na Mata dos Brennand. Era noite escura do mês de outubro, por volta das

21 horas. Partiram com os equipamentos de caça e os cachorros, Moleque e Bilontra, e

a cachorra Veneza.

O grupo se embrenhou mata adentro. Após meia hora, os cães farejaram uma

caça, que logo entrou na toca. Veneza, cachorra boa de faro começou a cavar e a latir

no lugar onde estava entocado o bicho. Com o candeeiro aceso, Júlio Tato falou:

“Joel, é sua vez!”

Ele logo começou a cavar e em seguida Aurino tomou o enxadeco de Joel e pas-

sou a cavar mais rápido. Já era quase meia-noite e estavam quase alcançando o bicho.

10

De repente ouviu-se um som assim:

“Ou...Ou.”

Júlio Tato que segurava o candeeiro, gritou:

“Ouviu, Joel?”

Joel respondeu:

“Deve ser algum sapo.”

Logo ouviram o som mais próximo:

“Ou...Ou!”

De um lado e do outro o som era mais forte ainda:

“Ou...Ou...!”.

Júlio gritou:

“É a Surucucu de fogo!”

Quando acabou de falar, sentiu uma lapada na mão que derrubou o candeeiro no

chão. Júlio gritou:

“Valei-me São Bento!” - e disparou por dentro da mata.

Cada um disparou na carreira por dentro da mata. Cada um para seu lado. Per-

deram-se. Só se reencontraram às quatro da madrugada quando o dia já estava cla-

reando. Identificaram-se por assobios e retornaram frustrados da caçada sem suces-

so. José Henrique falou:

“Graças a são Bento que ninguém foi picado, pois a Surucucu de fogo ou Pico de jaca,

quando pica o indivíduo não dura nem doze horas.

Assim sempre falavam para os caçadores que iam caçar: “Cuidado com a Surucu-

cu de fogo!”, cobra peçonhenta de veneno mortal que é atraída pelo fogo do candeeiro,

da lamparina, enfim diversos tipos de fogo. Prefere se esconder nas folhagens secas da

mata fechada.

(História vivida e repassada pelos amigos citados. Foi contada por Joseil Gonçalves de Freitas, 75 anos, morador da Várzea.)

Publicada originalmente no jornal “A Voz Varzeana”, organizado por professores e estudantes da Escola Municipal Rodolfo Aureliano, Ano I, Edição I, out. 2019.

áudio do conto

11

Vamos Curiar...

O bairro da Várzea é um dos bairros do Recife que é banhado pelo Rio Capibari-

be. O rio possibilita a criação de um corredor ecológico onde é possível, apesar de um

processo crescente de poluição, identificar a existência de uma grande diversidade da

fauna e da flora, com resquícios de Mata Atlântica, manguezal e diferentes espécies

nativas ou mesmo vindas de outras localidades. A presença de diferentes mamíferos,

répteis, aves, peixes e crustáceos caracteriza o trecho do rio que banha o bairro da

Várzea como um dos que mantêm maior biodiversidade. A mata da Várzea, também

conhecida como Mata dos Brennand, é uma Unidade de Conservação da Natureza, cria-

da pela prefeitura do Recife visando proteger áreas importantes para o equilíbrio do

ecossistema local. Existe uma forte relação dos moradores do bairro da Várzea com a

Mata e com o Rio Capibaribe, que fazem parte da paisagem local e são considerados

patrimônios naturais. Recentemente, a Escola Municipal de Arte João Pernambuco teve

seu teatro reinaugurado e o mesmo recebeu, carinhosamente, o nome de Teatro As

Margens do Capibaribe¹.

¹ A Escola Municipal de Arte João Pernambuco é uma das poucas no Norte e Nordeste que agrega no mesmo espaço o ensino da música, do teatro, da dança e das artes visuais. Teve como início de suas atividades um projeto social organizado por moradores do bairro no final da década de 1980, com o crescimento e visibilidade das suas ações foi municipalizada no início da década de 1990 e funcionam até hoje com grandes contribuições a formação de artistas na cidade do Recife.

12

Pois é meus amigos, a natureza tem seus mistérios e temos muito que apren-

der com ela. Vou aqui me despedindo e deixando vocês em excelente companhia para

conhecer um pouquinho de um lugarejo todo especial do nosso bairro: o Arruado do

Engenho Velho.

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PARTE IIO ARRUADO E SUAS HISTÓRIAS

Ilustração de: Kellen Karollyne

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Olá minha gente, eu sou Beth Cruz pedagoga e contadora de histórias, e foi um prazer participar voluntariamente do Projeto Lendas e Aparições do bairro da Várzea. O Arruado do Engenho Velho é uma comunidade centenária composta por casas simples localizada dentro do Campus Recife da UFPE, e saibam que essa comunidade habita esse local muito antes da construção da Universidade! Pois então, eu vou contar pra vocês uma história que aconteceu no Arruado do Engenho Velho que virou lenda. E u apenas fiz uma adaptação, porque quem a escreveu mesmo foi o meu amigo e mestre Lula Eurico.

Cataplum cataplão ouçam essa lenda de assombração...

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A NOIVA DO ARRUADO(à dona Creusa do Arruado, in memoriam)

Ainda não havia luz elétrica nessa região oeste da cidade do Recife. E, naquela

noite de sexta-feira, com uma luz soturna e bruxuleante, alguns poucos candeeiros

amarelavam as frestas dos postigos das casas da Rua do Enterro. Chamava-se a essa

rua, do Enterro, pois por ela passavam os cortejos fúnebres em direção ao cemitério da

Várzea. Por isso, Carlitos andava, apressadamente, para cruzar logo o pátio das igrejas,

dobrar à esquerda, alcançar a rua do Bom Gosto e seguir rumo ao caminho de sua casa,

no Arruado do Engenho Velho.

A escuridão da noite deixava entrever umas poucas estrelas e um semicírculo da

Lua, contra o firmamento. Esse trecho do velho arrabalde era muito deserto e o longo

muro do seminário dos padres holandeses, parecia não ter fim...

Carlitos sentia uns calafrios por todo o corpo. Sua mãe sempre lhe aconselhava

a voltar cedo da rua. Mas, conversa vai conversa vem, na praça com os amigos, ele se

atrasou. Justamente, numa sexta-feira 13, do aziago mês de agosto.

Ninguém na rua. Todos já se haviam recolhido. Afinal, já se aproximava da meia-noite.

Aquela gente suburbana dormia cedo.

16

Carlitos ouviu um longo assobio:

- Fiiiiuuuu!

Não teve coragem de olhar pra trás. O assobio finíssimo vinha dos fundos da

igreja.

O jeito era apressar o passo e alcançar a venda de dona Zefinha Cega. Ali, um ou outro

bebum costumava se demorar, sentado num tronco de coqueiro.

- Carlitooosssss!

Agora alguém o chamava. Uma voz suave e meiga se ouvia na escuridão do ca-

minho velho.

Carlitos não teve dúvida. Desatou a correr. Passou pela quitanda de dona Zefinha

feito uma bala. Zé de Quitéria, única testemunha do ocorrido, diz que viu o cabra passar

voando, pálido feito um cadáver. Zé garante que depois também passou uma moça branca

e bonita, com um véu na cabeça, como aquele que as noivas usam no casamento.

Mas, minha gente, Carlitos chegou em casa esbaforido, suando frio e com os ol-

hos esbugalhados. Sua velha mãe pegou água fresca da quartinha e lhe deu de beber.

- Que foi que tu visse, menino?

Carlitos não conseguia dizer uma palavra.

Mas, dona Creusa, sua genitora, velha moradora do Engenho Velho, desconfiou

que aquilo era assombração. Pegou do candeeiro e saiu de casa, a ver o que foi aquilo.

Contam os mais antigos que, logo em seguida, chegou Zé de Quitéria, trôpego de tanta

cachaça, com uma flor de grinalda na mão.

Olhe, dona Creusa, aquela moça bonita deixou cair essa flor dos cabelos. Ela cha-

mava o nome de seu filho e chorava muito. Eu vi tudo e não acreditei.

- Tu tás é bêbo! - disse a mãe de Carlitos.

Mas, de repente, surgiu de trás da cajazeira, uma moça branca, vestida de noiva, com

uma coroa de flores na cabeça. As vestes de renda transparente mostravam a sua silhueta

delgada. Usava luvas brancas nas mãos franzinas e delicadas. Nos pés, um belo par de sa-

patos brilhantes, feito estrelas do céu. Um par de meias compridas cobria as suas pernas

até os joelhos... A mãe de Carlitos, acostumada com as coisas misteriosas da noite, levan-

tou o candeeiro até a fronte e viu o que agora vou lhes revelar:

Sob o vestido de noiva havia apenas ossos de um velho esqueleto. O fêmur alon-

gado, a ossada da bacia, as costelas... Era um cadáver!

- Cruz credo! - gritou dona Creusa. - E a corajosa matriarca do Arruado, não resistiu e

desmaiou...

Escrito por Luiz Eurico

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N. do A.:

Não sei se é coincidência ou não mas, há muitos anos atrás, quando arqueólo-

gos estudaram o piso da matriz da Várzea, entre outros célebres despojos cadavé-

ricos, como o do índio Filipe Camarão, foi encontrada uma ossada, vestida de noiva,

que decerto não tinha valia para aqueles estudiosos.

No entanto, um bom conselho dado pela, hoje saudosa, dona Creusa do Arrua-

do, serve para os notívagos varzeanos, os boêmios e quejandos, pois é de bom al-

vitre não cruzar o pátio das Igrejas, nas noites de sexta-feira, 13, mormente, se o

caminhante mora em lugar ermo e isolado, como é o Arruado do Engenho Velho.

Espero que vocês tenham gostado desta histó-

ria, que sirva de lição e de aviso para os moços que

costumam chegar tarde em casa. Agora vou mostrar

pra vocês a mesma história de uma forma diferentes.

Pra isso eu vou chamar a minha amiga Beta Ferralc. Ela

é artista do nosso bairro e uma contadora das boas.

Espia este vídeo.

Acesse em: https://bit.ly/35lFl1S

18

A LENDA DA ESTÁTUA VIVA(à dona Creusa do Arruado, in memoriam)

Há muito, muito tempo, o caminho dos engenhos da Várzea era ermo e desolado

e apenas um canavial denso e ondulante acompanhava as suas margens. Os camin-

hantes noturnos cruzavam o trecho da antiga casa-grande, pressurosos. Alguns mora-

dores antigos contam que, nas noites de lua cheia, ouviam-se gritos aflitos, vindos do

meio das touceiras de cana. Gritos das moças forçadas pelos capitães do mato. Gritos

de negros capturados em fuga...

Essas vozes assombravam os passantes e durante muito tempo se evitava cru-

zar o velho engenho do Meio, nas noites enluaradas.

No atual Arruado do Engenho do Meio, que consiste de um casario de telhado

19

único e paredes conjugadas, à margem do velho caminho, escondido bem dentro do

sítio arqueológico da Universidade Federal de Pernambuco. A comunidade do Arruado

se assustava com tudo. Falava-se de botijas e de antigas assombrações.

Foi então que, numa noite de fortes chuvas, trovões e relâmpagos, a vivenda do

engenho desabou, misteriosamente. Dizem que múltiplos raios atingiram em cheio a

cumeeira do casarão e, assim, todo o madeiramento do telhado veio abaixo, num es-

trondo terrível. Os moradores mais crédulos diziam que foi castigo de Iansã, a rainha das

tempestades, cobrando o sofrimento do povo de África, que aqui penou por séculos.

Para honrar um dos donos daquela casa grande, o latifundiário e escravocrata,

João Fernandes Vieira, a recém-chegada Escola de Belas Artes da nova UFPE mandou o

seu decano, o professor Bibiano Silva, erguer uma imponente estátua. O monumento,

que foi colocado no lugar em que o casarão desabou, consistia de duas imensas figuras

humanas, uma em cima da outra, talvez para realçar, infelizmente, a diferença de clas-

ses entre as duas.

A figura de cima, em pé e altaneira, representava o próprio Fernandes Vieira, o iras-

cível senhor de vários engenhos da Várzea, louvado como mestre de campo nas batalhas

de Tabocas e dos Guararapes. A figura de baixo, sentada, com vestes de uma pessoa es-

cravizada, portando uma espada, representava as diversas etnias que foram recrutadas

à força, para lutar e até para dar suas vidas pela restauração pernambucana.

Anos depois, alguns vândalos quebraram a lâmina da espada da figura sentada e

dali em diante, novamente, a fama de lugar mal-assombrado voltou a rondar a comu-

nidade, que ainda habita esse trecho do caminho da Várzea.

Contam que um morador tinha ido negociar na feira e voltava tarde da noite pelo

caminho velho.

A lua brilhava no firmamento e o velho feirante vinha caminhando, absorto em

seus pensamentos, quando ouviu alguém chamando:

- Ei, vosmecê! Alto lá!

O morador assustado com as velhas histórias quis correr, mas as pernas não

deixaram. Olhou pro lado da estátua e a figura sentada não estava no seu lugar. O pa-

vor foi tomando seu coração. Começou a suar frio e palpitar.

A voz insistia:

-Alto lá! Não se mexa!

E um vulto foi se aproximando. Andava lentamente fazendo um barulho, como quem

arrastava correntes nos pés. O morador criou coragem e voltou os olhos para o lado

do caminho de onde vinha aquela voz. Era um homem alto, empunhando uma espada

quebrada.

20

- Vosmecê sabe quem quebrou a minha espada?

Perguntou aquela figura com a pele metálica, da cor de chumbo, bem perto de

seus ouvidos.

- Eu quero saber quem quebrou minha espada! - gritava a assombração.

O morador, coitado, desmaiou de tanto pavor.

- Vôte! Cruz credo!

Era mesmo o fantasma da estátua viva, que ainda deve estar por lá nas noites de

lua cheia, procurando o pedaço de sua espada!

Eu tenho certeza que vocês gostaram desta estória porque toda vez que chegam

perto de qualquer estátua - e a nossa cidade tem muitas - ficam imaginando: e se esta

estátua ganhasse vida? Mas agora eu vou me despedir de vocês e

vou chamar uma outra amiga minha, Monica Xavier

Escrito por Luiz Eurico

áudio do conto

21

Vamos Curiar...

Em meados da década de 1990, dá-se o início um trabalho de pesquisa arqueo-

lógica, onde são realizadas escavações no interior da igreja Matriz Nossa Senhora do

Rosário, no bairro da Várzea. Em matéria publicada pelo Jornal do Comércio, de 08

de agosto de 1997, é possível encontrar algumas informações sobre as descobertas

desta pesquisa conduzida pelo Departamento de Arqueologia da UFPE, que indicam a

existência de um pequeno cemitério existente desde a época colonial. Na ocasião fo-

ram encontrados dois sepultamentos primários e mais 27 sepultamentos secundários

e revolvidos, não sendo possível naquela ocasião realizar trabalho de identificação.

Apesar de não termos localizado informações sobre as circunstâncias da continuidade

ou suspensão das pesquisas no local, vale a pena pontuar a importância das pesqui-

sas arqueológicas para a preservação da memória e do patrimônio cultural. Por falar

nisso, você sabe o que é Arqueologia? Certamente que há diferentes visões e formas de

compreender a arqueologia ao longo da história dando origem a diferentes vertentes

e usos do termo, no entanto, uma definição mais comumente utilizada é da arqueo-

logia como “ciência que estuda culturas por meio da escavação de fósseis, materiais,

pinturas, monumentos e objetos... a ARQUEOLOGIA conta histórias que não estão es-

critas... resgata a memória de sociedades por intermédio de pesquisas de campo em

sítios arqueológicos”¹.

Extraído do site: http://www.juventudect.fiocruz.br/arqueologia, Acesso em 26 de dezembro de

2020.

22

PARTE IIIDe Botijas e Cemitérios

Ilustração de: Marcos Júnior

23

Olá, gente querida, sou Monica Xavier, nesta pequena coletânea não poderia fal-tar histórias envolvendo o cemitério da Várzea, nem tão pouco coisas antigas vindas da época da escravatura. Para engrossar este angu tão gostoso, tenho a satisfação de convidar duas pessoas muito especiais: o querido Rosevaldo Brito, mais conhecido como Índio Batera, um excelente contador de causos; e outro amigo escritor, que vo-cês, provavelmente, já conhecem! Ele é o nosso querido Luiz Eurico que, com sua arte, transforma os causos contados pelo Índio Batera em literatura. Vamos ou bora?!!

24

O Causo da Botija, segundo Índio Batera

A Várzea do Capibaribe, como é de todos con-sabido, foi o arrabalde mais distante da comarca de Olinda, ainda sob o governo de Duarte Coelho. Con-tudo, somente quando aquela pequenina vila de pes-cadores, chamada Arrecifes dos Navios, passou a ser vila e depois cidade, foi que essa próspera região de sítios, chácaras e balneários de água doce começou a se desenvolver mais rapidamente. Os barões do açú-car - que moravam na cidade alta de Olinda - começa-ram a construir vivendas às margens do Capibaribe e a Várzea começou a mudar de fisionomia. Sobrados, chalés e até edifícios de dois pavimentos começaram a surgir na paisagem varzeana. Há casarões famosos, como o do antigo Hospital Magitot, o imponente Educan-dário Magalhães Bastos e outros. Muitos desses casarões são tidos como mal-assombrados e variados causos e lendas urbanas são contadas de boca em boca pelo povo. Um causo muito interessante me contou o Sr. Rosevaldo Brito - ou Índio Batera -, filho de uma cigana com um fulni-ô e neto de Antonio Brito, um dos maiores cons-trutores do Recife. A estória é mais ou menos assim: “Naqueles dias, meu avô começou a me olhar de um jeito estranho. Ele me en-carava por horas, sentado em sua cadeira de palhinha. Tínhamos um vínculo afetivo tão forte que eu creio que ele lia meus pensamentos. Minha família estava na pindaíba. Meu pai sumira no mundo e minha mãezinha lutava muito para cuidar dos filhos. Toda a família morava no casarão dos Cavalcanti, que fica ali, depois da Escola Senador No-vaes, por trás dos Sete Mocambos, bem na beira do rio Capibaribe. Meu avô, então, quebrou o silêncio. - Meu neto, venha cá. Preciso lhe contar um segredo. Mas você não deve contar pra mais ninguém.

- Certo, vovô. - disse eu, bastante curioso.

O que vovô me contou, minha gente, era de arrepiar os cabelos! Ele disse que naquele casarão havia uma botija - espécie de baú lacrado e enterrado. Dentro dela estavam depositados muitos lingotes de ouro puro, joias da família Cavalcanti e outras preciosidades. Mas, para escavar a botija com ele, teriam de ser três pessoas muito po-bres. Uma dessas pessoas seria eu.- Arranje mais duas pessoas e marcaremos uma noite para procurarmos essa botija. E guarde segredo, senão a botija se esconde e ninguém jamais vai conseguir achar.

Eu não tive dúvidas. Corri até a casinha de meu tio, Monterrúbio, na rua das La-ranjeiras, e ele aceitou. Faltava mais um. Já sei! Meu sogro, Seu Bonifácio do Engenho

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Velho. Atravessei o pátio das igrejas e fui depressa até a casa dele, lá dentro do campus da UFPE. Seu Bonifácio aceitou, prontamente, a empreitada. - Botija? É comigo mesmo! Quando vai ser?

- Guarde segredo que meu avô irá marcar!

Mas vejam só como são as coisas desta vida. Meu avô marcou a data, seria à meia-noite, do dia aprazado. Estava tudo certo e em segredo. Então veio a morte so-rrateira e, repentinamente, levou meu querido vovô. Durante o enterro, eu, meu sogro e meu tio, fomos para um canto conversar em segredo, quando minha mãe começou a me olhar de longe. Era o mesmo olhar de vovô. Parecia que ia me atravessar com aquele olhar profundo, que só as ciganas possuem.Os dias se passaram. Teve a missa de sétimo dia e mamãe desconfiada, me olhando daquele jeito.- Filho, o que tanto você, seu tio e seu sogro conversam pelos cantos?

Então, não aguentei mais e contei tudo. Mamãe era uma vidente. Uma mulher muito corajosa e decidida. E me disse:-- Eu sou a quarta pessoa e vou, no lugar de seu avô. Avise aos outros que, nessa sex-ta-feira, iremos buscar a botija.

Assim eu fize, dias depois, lá estávamos no casarão dos Cavalcanti, escavando a botija. Era uma noite de lua cheia e ouvimos um relógio distante, batendo as doze ba-daladas da meia-noite. Eu até hoje me arrepio todo! Começamos a cavar no lugar indicado pelo meu finado avô. Cavamos muito, até achamos areia mole, pois era muito perto do rio. Cavamos mais e veio areia seca, de-pois areia mole. E assim, o buraco já me cabia em pé dentro dele. E nada de botija. Nada. A lua já ia se escondendo aos primeiros raios da manhã. E nada... Resolvemos parar e meu tio e meu sogro voltariam para suas casas. Lembro que Seu Bonifácio, meu sogro, estava preocupado com o que iria dizer à sua esposa, já que saíra sem dizer nada, por causa do segredo e só chegaria em casa de manhã. Ele se foi e eu e mamãe, exaustos, sentamos no terraço do casarão a olhar o imenso buraco, bem perto de uma velha e frondosa mangueira.

O que estaria acontecendo na casa de meu sogro? Vocês não vão acreditar no que aconteceu lá no Engenho Velho. Dias depois, meu sogro apareceu espantado e nos contou o ocorrido com sua esposa:- Gente, quando cheguei em casa, tentei explicar o motivo de ter passado a noite fora. Mas a minha mulher nem me deixou falar.

- Já sei de tudo! – disse ela.

A mulher me contou que teve um sonho. E disse que, no sonho, estavam eu, Seu

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Monterrúbio, dona Rosilda e o Índio cavando um grande buraco, na beira do rio Capi-baribe. Enquanto a gente cavava, vários negrinhos davam gargalhadas, trepados nas galhas da mangueira do quintal. Junto de nós estava um homem todo de branco, com um chapéu panamá, observando a gente cavar aquele buraco. Os negrinhos riam muito e riam de todos nós, disse a minha sogra. E sabe por que riam? É que a botija não estava ali. Só eles sabiam o lugar certo. Foram eles que ente-rraram a botija, a mando do homem de branco, o senhor das terras. Depois que termi-naram o trabalho, aquele homem avarento e cruel, os convidou para jantar no casarão. Foi um baita banquete. Comeram de tudo o que quiseram comer. Mas, o dono da casa não comeu nada. Dali a pouco, os escravos tiveram uma diarreia e náuseas terríveis e foram mo-rrendo um por um. A comida estava envenenada. O patrão não queria que ninguém soubesse onde estava o seu tesouro e os matou.***

Aquela botija, até hoje deve estar por lá, escondida debaixo da terra, esperando que alguém sonhe com ela e lhe seja indicado o lugar certo para fazer a escavação. Quem quiser, pode ir lá conferir essa história. Mas não vá se não sonhar antes. Não se encontra uma botija se não tiver primeiro o sonho. E se sonhar, me chamem que eu irei junto!

(Texto baseado em causo contado pelo artesão Índio Batera, o nosso Rosevaldo Brito).Escrito por Luiz Eurico de Melo Neto, Dia de Natal do estranho ano de 2020

áudio do conto

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Os fantasmas da lotação A Várzea era um arrabalde dis-

tante e servido apenas pelos bondes,

que ainda circularam até a década de

1960. Depois dos bondes, começaram

os serviços de lotação. A princípio eram

uns ônibus feitos da carroçaria de ca-

minhão, com aquele bico de fora e, en-

caixada de todo jeito, vinha a traseira,

com os bancos dos passageiros. Era

esse tipo de transporte coletivo que o

povo chamava de “lotação”. Os cobra-

dores circulavam pelo corredor com as cédulas de vários valores entre os dedos, do-

bradas ao meio, para facilitar o troco. Encostavam-se nos bancos e perguntavam para

onde ia o passageiro, pois, a cada percurso, o preço era diferente, menor ou maior.

Ainda não havia o monopólio das empresas Borborema, Metropolitana, Caxangá

e outras. Quem tivesse um velho caminhão adaptado, com bancos na traseira, poderia

explorar o serviço de transporte coletivo da época.

O nosso querido amigo, o Rosevaldo Brito, (conhecido por Índio Batera, primeiro

por ser fulni-ô, depois, por ser baterista profissional, especialista em reggae), nos con-

tou uma estranha história que aconteceu com uma das lotações de seu tio Monterrú-

bio, e dizem ser verídica.

Pois bem...

Seu tio era dono e fiscal da linha de ônibus que fazia o percurso Várzea – centro

do Recife. A última lotação saía da cidade às 23 horas e chegava sempre por volta da

meia noite, um pouquinho antes ou um pouquinho depois. Dependia de quantos pas-

sageiros ficassem pelo caminho.

Naquela noite, o ônibus-lotação não chegou. Deu 1 hora da manhã, deu 1h30 e

nada de chegar. Era um tempo em que não havia a comunicação que existe nos dias de

hoje.

Seu Monterrúbio foi em casa e tirou o carro da garagem.

- Vou ver o que houve! Neco nunca se atrasa assim!

Neco era um motorista de confiança e só se acontecesse um acidente, ele atrasa-

ria tanto.

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- Meu Deus! Que terá acontecido? - pensava Monterrúbio, enquanto girava a pesada

volante de seu carro.

Qual não foi sua surpresa, ao dobrar a rua do Cemitério. Lá estava o ônibus, pa-

rado, com os faróis acessos e sem ninguém no assento do motorista.

A rua era um deserto só. Seu Monterrúbio se aproximou, cautelosamente, e viu,

espantado, dois corpos estendidos no corredor da velha lotação. O motorista e o co-

brador estavam desmaiados e a muito custo ele conseguiu fazê-los acordar.

Chegando ao terminal da praça da Várzea, eles contaram o que sucedeu:

- A gente vinha pela Av. General Polidoro, pois queríamos cortar caminho, evitando ir

até o fim da Av. Caxangá. De repente, avistamos um senhor de terno branco, chapéu de

massa na cabeça e uma bengala. Estava muito elegante, caminhando pela rua deserta.

O cobrador disse: vamos ver se ele quer carona para a Várzea, Seu Neco!

Paramos o coletivo e o homem embarcou.

E Neco continuou, ainda trêmulo:

Na altura do cemitério, eu me virei para perguntar o que ele estava fazendo na

rua, àquela hora da noite. Quando olhei para trás, a lotação estava com todos os ban-

cos ocupados, por dezenas de homens de terno branco. O cobrador estava se tremen-

do todo e o ônibus estancou, bem na frente do cemitério. Eles começaram a desembar-

car e quando olhei para um deles, no lugar dos olhos eram dois buracos. Em verdade,

eram esqueletos vestidos de terno. Foi então que eu desmaiei e não vi mais nada.

Seu Monterrúbio conta essa história com certo

tom de zombaria:

- Dois cabras frouxos... Quem mandou cortar caminho

pela rua do cemitério? Acho bem pouco!

Essa história assombra as pessoas até os dias de hoje.

áudio do conto

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PARTE IVAlgumas Aparições

Ilustração de: Leticia Santos Joeyce Mirely Marcos Júnior

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Aqui estou eu novamente, gen-

te boa! No bairro da Várzea aparece

de tudo. Além dos contos de assom-

bração, temos algumas aparições avis-

tadas, de vez em quando, por alguns

moradores. Tudo verdade verdadeira.

Eu vou relatar algumas dessas apa-

rições pra vocês:

1. O CANINO BRANCO Em noite de lua cheia, por volta da meia noite, um

vulto que parece ser um enorme cachorro ora branco, ora

acinzentado aparece no Arruado do Engenho Velho. A pre-

sença do canino acua os cachorros da redondeza, porém, de

vez em quando, ele aparece junto com outros animais.

2. O HOMEM CAPRINO Um fato inaceitável, que ocorreu em um povoado

existente próximo das matas dos Brennand, foi o de um

homem que, estando transtornado de ódio, agrediu cruel-

mente sua mãe. Noites depois, as pessoas do lugar rela-

tam terem visto este mesmo homem transformando-se

em bode e correndo mata adentro.

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3. APARIÇÃO NO ENTORNO DA IGREJA Em dias chuvosos, ossos emergem dos bueiros que

ficam nos arredores da Igreja Nossa Senhora do Rosário,

a matriz da Várzea. Reza a lenda que estes ossos são dos

pecadores enterrados na câmara subterrânea da igreja,

aparecendo e desaparecendo misteriosamente.

4. A LOIRA DO CDU/VÁRZEA A famosa linha de ônibus CDU/Várzea, que ligava

o bairro da Várzea ao centro da cidade do Recife, foi ce-

nário de muitos acontecimentos medonhos. Os trabal-

hadores da linha, junto aos passageiros que seguiam

na última viagem, de vez em quando, cruzavam com

uma loira misteriosa, vestida de branco, que permane-

cia com a cabeça voltada para o chão. A mulher exala-

va um cheiro familiar e ao mesmo tempo desconheci-

do. Subia na parada da Praça da Várzea e se mantinha

de pé, na traseira do ônibus. Silenciosa, descia na parada do cemitério e desaparecia

adentrando o portão do mesmo. Após a extinção da linha de ônibus, a mulher foi vista

em outros coletivos com percurso similar.

5. O PADRE SEM CABEÇA O amor pode ser cruel. Em certa ocasião, um antigo sa-

cerdote pertencente a Congregação dos Sacerdotes do Sagra-

do Coração de Jesus, enamorou-se de uma mulher casada. O

romance, ao ser descoberto pelo marido ciumento, transfor-

mou-se em tragédia. O sacerdote, além de ser excomungado,

teve sua cabeça cortada pelo marido traído e passou a circular

pelos arredores da igreja à procura de sua amada.

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6. ALMAS ESCRAVIZADAS Existem terras povoadas e habitadas por almas de

homens e mulheres escravizados desde a época colo-

nial, como é o caso do bairro da Várzea, palco de muitas

atrocidades cometidas pelos senhores de engenho e seus

feitores. Este local segue habitado por milhares de almas

penadas, que continuam presas e exploradas pelo mal-

trato dos seus escravocratas.

7. OS FANTASMAS DO CASARÃO MAGITOT O velho casarão Magitot vem servindo de celeiro de boas

vibrações, de sua fundação aos dias atuais. No início do século

XX abrigou famílias e depois serviu à comunidade ao transfor-

mar-se em hospital odontológico. Suas paredes, hoje em ruínas,

abrigam luzes de eventos culturais e espíritos que rondam o sí-

tio, zelando pelo monumento para que ele permaneça de pé.

Acesse em: https://bit.ly/2LjOZvd

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Curiando sobre o Projeto A Voz na Praça

A Voz na Praça teve início em 13 de dezembro de 2012, com a primeira contação

de histórias na Praça da Várzea, tendo a participação de quatro pessoas: Amara Elias,

Socorro Barros, Conceição Barros e Tarcísio Quinamo. O público eram duas pessoas

sentadas no banco da praça, que se aproximaram para ouvir histórias.

Nesse dia, eu falei para minha mãe sobre o desejo de iniciar uma contação de

histórias na Praça da Várzea. Em seguida, ela almoçou comigo, dormiu seu sono de

costume e no meio da tarde acordou. De repente chega na sala já arrumada.

- Vamos, Socorro.

- Para onde, mamãe?

- Você não disse que a gente iria contar histórias hoje na Praça da Várzea.

E para não frustrar seu desejo, fomos contar histórias no banco da Praça da Vár-

zea, num final de tarde. A partir daquele momento ficou registrado a primeira contação

de histórias na Praça da Várzea, iniciada por um grupo de família, tendo a grande con-

tribuição da minha mãe, Amara Elias, na ocasião com 83 anos de idade, alagoana, resi-

dente na cidade de Porto Calvo, estado de Alagoas. Ela, compartilhando seu vasto acervo

oral com a prática de contar histórias entre família e amigos, nos inseriu no universo

dos griots. Griots esses que, por gerações, alimentam o imaginário de adultos, jovens e

crianças, transmitindo ensinamentos e entretenimentos por meio da tradição oral.

A partir desse encontro, o convite foi se ampliando aos amigos, pessoas do bairro

e posteriormente a grupos culturais, tornando-se um espaço cultural e de entreteni-

mento aberto para quem gosta de ouvir ou contar histórias. Desde então isso vem

acontecendo sistematicamente no Coreto da Praça da Várzea. A comunidade acolheu

as histórias com muita receptividade. Minha mãe vinha contar histórias a cada dois

meses, durante aproximadamente dois anos, vindo a se afastar por motivo de doença.

Até o terceiro ano de existência, a produção das rodas de contação de histórias era

realizada por um grupo de família, constituído por Socorro Barros, Conceição Barros

e Tarcísio Quinamo, tendo também a participação Guara Rios - com a contribuição no

registro fotográfico e na divulgação, contando, vez por outra, algumas histórias.

No decorrer desse tempo, algumas pessoas do bairro foram se aproximando pela

identificação com as histórias, vindo a se integrar ao Projeto A Voz na Praça. Atual-

mente, a equipe é composta por cinco pessoas, além da parceria de outras contades

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de histórias e pessoas amigas que vêm contribuindo com a continuidade desta ação

no espaço público. Dentre elas, merecem destaque no reconhecimento: Beth Cruz,

com a linguagem musical e a arte de contar de histórias; Beta Ferralc e Emília Juliana,

que já fizeram parte da equipe e continuam dando sua colaboração nos momentos de

contação de histórias. Abissal é um grande parceiroe vem, desde o início, integrando a

ciranda às rodas de contação de histórias, juntamente com o Maracatu Real da Várzea.

Temos uma especial parceria com contadoras de histórias do Cia Palavras Andarilhas,

numa interação de aprendizados mútuos.

Como a Voz na Praça se organiza? No primeiro ano, a roda de contação de histórias ocorria toda última terça-feira

de cada mês, às 19h. A partir de 2015, passou a acontecer em torno de quatro rodas de

contação de histórias por ano, realizadas na Praça da Várzea. Nessas rodas têm se tra-

balhado temas integrados ao calendário cultural, como: o Dia Internacional da Mulher,

em março; o Arraial Literário, em junho; o Dia das Crianças, em outubro; a confraterni-

zação natalina e o Aniversário do projeto A Voz na Praça, em dezembro.

No decorrer desse tempo, a Voz na Praça também construiu uma parceria com a

Feira de Leitura, do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),

participando da organização do evento, oferencendo contação de histórias e articu-

lando também para que outras contadoras, principalmente do Cia Palavras Andarilhas,

integrem essa ação coletiva.

Assim, a arte de contar histórias procura promover o diálogo entre a tradição

oral e a linguagem musical, fazendo articulação com contador@s de histórias, mora-

dores da comunidade, grupos culturais, universidade, escolas públicas e organizações

sociais, todos localizados no bairro da Várzea e entorno, ampliando, portanto, outras

possibilidades de leitura e fortalecendo o espaço coletivo no bairro da Várzea.

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PARTE VLugares onde as Histórias

acontecem

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Arruado do Engenho Velho

Pequeno arruado de casas que existe há pelo menos 150 anos. É situado a Rua

Francisco Lisboa, antiga Rua do Bom Gosto. Essa rua corta o Campus Recife da Univer-

sidade Federal de Pernambuco, na altura do CTG. Remanescentes de antigos morado-

res que lá chegaram, muito antes da construção da UFPE, os arruadenses têm como

principal desafio o reconhecimento e valorização de suas memórias e a garantia de

melhor infraestrutura e condições de vida para as famílias que lá habitam. A história

dos antigos moradores tem relação com a história do extinto Engenho do Meio e, pos-

teriormente, com a prática da agricultura familiar, onde os produtos eram vendidos na

feira livre da Várzea. As ações de educação patrimonial desenvolvidas por diferentes

grupos de pesquisa da UFPE, moradores e amigos do Arruado tem garantido desde

2014 a permanência e visibilidade deste importante lugarejo que exala história, luta e

resistência. “Quem nasceu e se criou no Arruado tem esse relacionamento muito forte

com a natureza. Minha vó era agricultora e ela me ensinou algumas coisas em relação

a isso. Ela gostava muito de plantar, ia muito ao roçado e as vezes eu ia com ela” (Me-

mórias de Elidiane Cúrcio). Existindo e resistindo neste local institucionalizado como

Sítio Arqueológico, os moradores e amigos do Arruado seguem firmes na crença que

alimenta a luta de que “o maior patrimônio do Arruado é sua gente”, como dizia um

grande articulador politico e ex-morador, já falecido, Maurício Peixoto.

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Praça Pinto Damaso ou Praça da Várzea

Teve seu projeto original assinado por Burle Marx em 1936 e mesmo não tendo

sido executado por completo, possui alguns traços do paisagista. Desde então passou

por várias reformas e requalificações, guardando ainda alguns elementos originais,

como as palmeiras imponentes. A praça da Várzea movimenta o coração de todo o

bairro e é um patrimônio vivo da cidade do Recife. Vale registrar alguns depoimentos

de moradores sobre o lugar: “Eu credito que pode se dizer que a praça é um museu

vivo. Vivo porque está sempre se transformando e aí vai guardando história. Se a gen-

te para e observa, a gente vai percebendo a história da Várzea ou parte dela...” (Beta

Ferralc) “A praça tem música, tem circo, tem atos públicos, contação de histórias, tem

oficina de maracatu. Se todos os bairros tivessem uma praça como esta onde as pes-

soas ocupassem... Acho que como a gente tá junto dá pra fazer política... só o fato de

estarem ocupando a praça já é político”. (Leonardo)

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Igreja Matriz Nossa Senhora do Rosário

Tem sua origem no final do século XVI e comecinho do Século XVII. Em 29 de No-

vembro de 1859, Dom Pedro II visitou a Várzea e concedeu à Matriz o título de “Imperial

Matriz de Nossa Senhora do Rosário da Várzea”, com direito de levar a coroa imperial

na fachada. Nela encontra-se uma placa indicativa que foi o local onde foi sepultado

“o bravo Dom Antônio Filipe Camarão, governador dos índios”, que lutou na guerra

contra os Holandeses.

É em frente à Igreja Matriz Nossa Senhora do Rosário que é feita a queima da lapinha

do Pastoril Meninas Encantadas, em homenagem a Maria do Badeco. Um folguedo

popular que sempre existiu, em diferentes períodos do nosso bairro, liderado por di-

ferentes pessoas, dentre elas Dona Maria do Badeco, que é homenageada nesta for-

mação contemporânea, organizada pelo Peixe Beta Espaço Cultural, em parceria com

outros colaboradores

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Cemitério da Várzea

Dentre os moradores nascidos e criados no bairro da Várzea - os Vazeanos - é

comum ouvirmos a expressão “daqui não saio nem quando morrer”, fazendo referên-

cia ao cemitério do bairro, construído em 1867. Os que se mudaram do bairro, mas

guardam dele as boas memórias, prometem voltar “nem que seja depois da morte”.

A relação/vida/morte/território/memória/identidade é algo presente na fala das

pessoas que moram no bairro. É sabido que além do cemitério público existiu outros

lugares de sepultamento no bairro, como é o caso das ossadas encontradas nas igrejas

do Rosário e do Livramento. O cemitério da Várzea passou por uma reforma em 1953.

Construído inicialmente em uma área afastada, com o crescimento populacional do

bairro, um dos maiores problemas é a existência de casas conjugadas junto aos seus

muros, além de práticas irregulares em seu interior, causando preocupações sanitárias

e ambientais.

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Casarão Magitot

Construído incialmente como moradia e inaugurado em 27 de maio de 1905, o

chalé romântico de dois pavimentos em arquitetura inglesa, situado a rua Azeredo

Coutinho, nos arredores da Praça da Várzea, já abrigou o primeiro hospital odonto-

lógico da América Latina, o hospital Odontológico Magitot, como ficou conhecido em

homenagem ao médico francês que o inaugurou. O prédio, que atualmente pertence

à prefeitura da cidade do Recife, foi classificado como Imóvel Especial de Preservação

em 21 de agosto de 2015. No entanto, encontra-se abandonado há mais de 40 anos,

tendo sido habitado por mais de 20 anos por uma família do bairro que cuidava do

local. Hoje o Casarão da Várzea é palco de uma disputa comunitária pelo seu destino,

o que dá ensejo a criação do movimento Salve o Casarão da Várzea (MSCV), que desde

2016 mobiliza moradores do bairro e apoiadores da causa entorno da luta pelo seu

restauro e a construção de um espaço cultural e um mercado público na área externa.

O MSCV articulando artistas locais, comerciantes, moradores e apoiadores da causa

vem promovendo a ocupação do espaço com ações culturais e sociais em diversas

ocasiões do ano, juntamente com a luta política em prol da revitalização do imóvel

e sua administração pela comunidade, oferecendo atividades educativas e culturais,

como a rádio Magitot e uma galeria de exposição sobre a história do Bairro da Várzea.

O casarão Magitot é um exemplo da luta e mobilização popular em torno da preser-

vação de seu patrimônio cultural.

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Fontes de Pesquisa• CAVALCANTI Rafaella dos Santos; MELO Leonardo César de Olivira; MONTEIRO Circe

Maria Gama Como resgatar a relação da cidade com os ambientes naturais: projeto parque Capibaribe, Recife – PE, In: Cidades Verdes, v.03, n.08, 2015, pp. 33-48

• FRANÇA.Inácio. A Prefeitura do Recife Vai Construir Prédios de 24 Metros na Mata da Várzea. Disponível em: https://marcozero.org/prefeitura-do-recife-vai-libe-rar-construcao-de-predios-de-24-metros-de-altura-na-mata-da-varzea/ Acesso em: 27 de dezembro de 2020

• FREYRE, Gilberto, Assombrações do Recife velho Gilberto Freyre. — Rio de Janeiro: Record, 1987.

• MELO, Fábio Cavalcante; HALLEY, Bruno Maia. Morte e Vida no Bairro: os paradoxos do Cemitério da Várzea em seu Território.

• MACHADO, Regina Coeli Vieira. Rio Capibaribe, Recife, PE. Pesquisa Escolar Onli-ne, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar>. Acesso em:24 de Dezembro de 2020.

• SILVA, Leonardo Dantas. Várzea (bairro, Recife). Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaes-colar/>. Acesso em: 26 de Dezembro de 2020.

• SOBRINHO Marcos Ferreira da Silva. Várzea, lembranças de um tempo que se foi, Recife, 2012

• Catálogo da Biblioteca do IBGE. Disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=440307. Acesso em 27 de Dezembro 2020.

• Bairro da Várzea. Disponível em:http://profbiuvicente.blogspot.com/2009/06/bairro-da-varzea.html. Acesso em: 27 de Dezembro de 2020.

• https://www.orecifeassombrado.com/o-gemido-das-bananeiras/

• Jornal do Comercio 08 de agosto de 1997, Disponível em: http://www.brasilar-queologico.com.br/materias/1997/08.08.1997%20-%20Jornal%20do%20Com-mercio%20-%20Descoberto%20cemit%C3%A9rio%20na%20Matriz%20da%20V%C3%A1rzea.pdf